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O homem que caminhava na cor GAMINHAR NO DESERTO Esta fibula comege com um lugar desertado, © nosso personagem principal (mas seri que se pode chamar a isso wm personagem?), E wma “. ‘0 nosso personager secundirio sera, singular cestse outros, algae que sei palmithando 0 hy gar, um homemn que eaminha, Camsinhs sem fim = uns quatenta anos fio, segundo parece, mas como a sua faculdade de contr os dias bem de- press se exgaton, o tempo real da sus caminheda jinada tem que ver com. tempo verosimilmente decorvide: da eonsigo, pois. num eaminhar sem fim, num camiahar sem fin na auséncia de qualquer trapada, de qualquer rota, O objecto da sun cominhada nao € wma destinagio", mas um destino, Afinal de contas, tilver, provavelmente até, mais nde ter’ Feito do que andar as voltas. Sem o saber ow farto de o saber, mo se lugar desta marcha vagaross € um giganieseo monoeromo. E um deverto. (fig. 1) O homer caminha no amarelo ardente da arcia, e este amaelo ja nao tem limites para ele. O homem 15 Bc epee Ps Mn, 2 0 que sr efctivamente eso peri colorida gue no estan ogy antes? Néo ei, munea ona esi. Parac algo som rlaydo corn a ute, elo menes se es minkosrecordagies da arte so eves 8, Beckett, Teois dafogues (0940), Pavin. Minit, 1998, p30. eaminha no amarelo ¢ pereebe que o proprio horizonte, por muite nitide que eja, liga fundo, jamais The servied dle limite ou de smokduray tle bem sabe, agora, que pata ki do limite visivel 0 memo lugar térrice que hé-de continuar E 6 eeu? Como poders cle trarer algum remédio» sempre, idéntico © amarelo, até xo desesper ‘eta causura colorids, ele que no propde senio uma chapa de cobalto ardente, impossivel de olhar de frente? Fle que obriga 0 nosso eeminhan curva a nucs para um solo eda vez mais cru? Em det naos moments, porém, @ homem ous a tex- cansado apercebe-se de que algo n sara dis areia ja rito é a mesma; algumas rochas emergirum; uit cinzento cinza, wma imensa vein de feerugem oeuparam a paisagem, Quando se teri dado esta mudanga? Descle quando € que 6 monte esta diante dele? Nao sabe. Por vezes imagina ques moldura do monoeromo, o limite entre © amarelo eamagador de hi tres semanas 0 cimento-amarelo de hoje terdo somente sido trscidos pelo vento, signe Uctil de uma passa gem, sigmo talver de que ele estava a beira de um horizonte da cor. Ou signo de que € apenas © eserto que vive € ae move sob 08 seus pes. Seria ess a experigneia, Ela nio gera neaburna obra aruisiea, Nao veremos nada do que fos Visio. Nao hs nenhum objectoreliquia. Nao nos restam mais do que unas quanta pslintas, unas quantas fiases vielents de wm livre smtituledo Aoodo, que wolam a essa auséneia conta 0 proprio Iugir qualquer coisa como um culto, Promvelmente nio sera preciso win deserto para conaatar em not essa limitagio essencial aos nosion detejos, ao nowo pensamento, as nosses ores. que éaausénela. Maso deverto —espagono, cespojado, monocrome constitui porventura igar visual mais apropriado para recanhecer essa auséneia come algo de infinitamente poderoso, soberano, Mais além, ele constitui provavelmente o lugar imaginsia mais apro priado para crer que esta suséneia se manifes- tard como uma pettoa com um nome proprio ‘impronuneivel ou incessantemente pronuineia- do, Mais além ainda, ele constitu: provavelmente © luger simbélico mais apropriado para inventar a antiguidacle de uma lei e de urs sliangs pe sada com o auscnte Isso mesmo nos canta o Frodo, Nele o ausente do desejo —, nele ganha nine, nele se larna ciogo, ou entio firioss, 0 ainda benevolente. Ji nao ¢ o despovondor mas nieriador. Ja no € 0 ausente en quanto tal, mas deseppdo, 0 iminente, o dentro Boresce do deserto odivino, 0 eam breve presente. Na imensiddle desértica le encontrars 0 seu Ingar: coloesr-se-& doravante diante deste homem que eaminha ¢ que cré en objeeto nico parm todos os seus descjos. Eis assim por que rio a homem teré aceite 0 facilmente a prow absurda de eaminhar sem isn. 1 8% 1860 men que amine neve le inventarse caminhando «pera ele, abrindo ‘eaminho para o assis de um dislogo, de ma Ie, de ume alianga definitiva a concluir. Entio, 0s Tengais de gua silgida poderio adogar-se sob 0 aside de Moisss. Entio poderio inventar-se & files dos rss da Tei", O Ausente, doravante maiusealo, fascina ¢ slimenta @ «sen povo uma camada de orvalho pela aurora deixard aparscer # nuperficie granulosa © coagulida de ‘uma dadiva de alimento. Choveri pio, paésaros cobrirso a seein amatela, a agua jorcars dum rochedo’, O homem que carinha ousara erguct ‘os otha para o € para o monte, em frente ~ ‘ccle veta’o Ausente, Por fim. ‘Mas eeapitulemos. havia ams lugar desestade ‘© sjeita real do meu apdloga —e um homem que caminhava nesse lugar, na auséncia do que quer que fosse, na sinien evid amarela ow invents obsidional © roberans, Aum dado momento, a auséneia evidine esvzziante|* tornou-se um nome, e 0 homers decidiu concluir uma alianga, encher-se do Ausente. O livro conta que primeira fot preciso rmanter se 8 distineia das mulheres e do monte — 0s proprios lugares da alianga, lugares conde por execléncia a alteridacle ver abragar fo homem ~ & que aquele que fosse tocado nem ‘que forse pela sua orls, seria lapidado até & movie’. Seguidamente, © mito narm-nos 9 apanigae do deus: epiodio claramente wuleanice, Frito develimpgose de epessas nuvens, de foges fe de fumos escapanddo-se do Sinai no meio de inconeebiveis ramores. E logo depois Tortuitamente ~ que o Decélogo preserve que nko te Fagan “imagens esculpidas, nem qualquer imagem do que existe no alto dot e€us, odo aque existe em haixo, na terra, 1 do que exite nas aguas, por debaixo da terra’. © paradoxo reside, sobretudo, no facto de a este homem ertante no deserto, sem nada para se fxar, Deus impor como condigio da sun lianga® a forma Gama imensa prescrigio anquitectural haverd aque construr altares de terra, uma Arca, tia mesa de oblagio, um candelabro, uma «mo- sada? com as suas cortinas, as sues eobertas, «8 suas vigns, a sua bacia ritual, 0 seu Atrio’... E tudo into Mois regitta © consagra, gravando ts polavras definitivas e partilhanda o sangue de tam sacifiio; metade dele derramade sobre 0 ahar de deus ~ mesa monocromitia, vermclha despide de qualquer figura , outrs meade expalhada sobre 0 povo. Ungto dividide,signo da alianga’, E conclude a alianga (o hebraico diz, a alianga incinia®,j8 que conciuie cma alianga com o Ansenie equiva a assumir que o Awsente nos trunce alguna coisa, nos esa, os priva © nos refende), no resta aos homens seniio parte de nove pata o deserto. De novo, por- tanto, eaminkam na cor, mas tranquilizados, cou melhor; experangadon: Doravante, © Ausente, com o seu Agrande (ou o seu yod grande, mais propriamente), proteye-os com a sua le, pre céle-en, espert-on ‘Quando a nuvern se retirava de cima do tber- niculo, os filhos de fsrael pastiam, ¢ quando @ rnuvem no ce retirava, nao partiam, ate 20 instante om que els ae afastava, Porque uma nuvem divina cobria o taberniculo durante © dis, ¢ um fogo brithacs ali durante » noite aos thos de toda a casa de Israel, em toa as suas caminhadas'.>. (CAMINHAR NA LUZ O tempo passa. Dois mil trezentos ¢ cinquenta ccineo anos, para ser preciso. © homem ja nao caminha nos desertos, mas no labirinto das cidades: imaginemos Veneza, Lembremo-nos de que agora o mundo é matizado, que as figuras invadiram o espago, e que o Ausente dos Judeus se encarnow para uma nova religito sob um rosto de filho sacrifieado. Mas, judcu ou cristio, © Ausente continua a agir, continua a exigir que. homem com cle passe a sua alianga. O que nomeamos “arte? serve também para isso", Assim, no ano 1105 da Enearnagao, 0 doge ‘Otdefilo Falier manda renovar 0 antependium, ou tej, 8 fachada do grande altar da basiliea de Son Marco. Decide que cvla seré toda em ouro fe enriquecida com pedras preciosas © esmaltes bizamtinos”. Quando o nosso homem penetra na basiliea aps tum pereurso de dguas turvas © pontes sinuosas, reencontra-se subitamente com esta cor mociga, saturada, misteriosa, once julgars deeifrar o seu praprio pasado, o seu destino, o ananeio da sua talvagio: cor de fim dos tempos. Jf nto € 0 amarelo wirrido do deserto, mas um amarclo Auido, um amarelo que a luz humida de Venera projecta em ondas fugitivas ers todo o seu redor, de Longe a longe, sem que jamais ce saiba exacta mente de onde vem, por onde se refracta. Acima dlele, o ouro afivel, quase maternal, das absbadas de mosuicos, A sua volta, of veios organicos de mirmores ruboreseidos. E, defronte, © owe frontal, surgindo aos seus olhos como um pane mseigo, da joia central da basilica, essa pals d’oro conde se eristaliza 0 lugar sigrado por excelenct co restingulo do Ausente —o alear. ig 2) Seconsiderarmos0 espace da basi imensa «instalagio» ritual, podemos dizer que nna Hdadie Media 0 altar constitui 6 seu ponte (ow por conseguinte, o pane) focal. o lugar visual mais saliente, o lugar simbélico mais pregnantes cspago tabular sdoador de sacramentom coeramenti donatrix mena), superficie de intersecgio rom © deus, superficie de eficicia Ligaygics, ou mesmo milagrosa, area eontral da esperanga, ou até da concessio de yracas. Colocar a:mio em cima dele significava compro. meter-se num jursmento, num eantato, numa alianga, O oficiante devia beija-lo nove vezes tu rante 0 ofieio volene, Os fieis eram mantidos & \incia—isto € «em respeito”—, ow entio pre ipitavam-se para ele num ardor de mil betjos", Ele representava, no espago sayredo, 0 lugar central do mistévio, com a sua ubrupta frontal dade mineral, © seu valor sobredeterminado de Rguen Christ, © 0 segredo corporal — ame reliquia santa — que devia ineorporar em si E 4 distinguir nenhum detalhe, nie poderd desere portanto, 0 nowo homem mantide tancia dite da pale d'oro. Nao poderi ‘er a quem quer que seja extetamente 0 que vé Raios intersticiais envolvem © objecto numa especie de véu ow cofte de luz. Mar nada pode obnubilar a sua brilhante frontalidade mono eromiticn, © pano dourado Isteralmente aparece, surge L¥do fundo, mas, coma sarge no elemento do brilho, ainguém pode dizer onde se encontra exactamente esse ld do undo. O britho no € uma qualidade estivel do objecte: 1,6, Cc 94 depende do sndar do espectador e do seu encontro com wma orientaglo luminosa sempre singular, sempre inesperada. O objecto esta Ti no fundo, € verdacle, mas © beilho yem ‘a9 meu encontro, é um acontecimento do meu thar © da meu corpo, o resultado do. mais infimo — intime — des mes movimentos. Existe portanto, no altar dowrado da hasten de San Marco, uma dupla distineia eontraditéria, turaa lonjuta que se aproxima s medida do mex passa, sem que eu possa prever o sen quase téetil ccncontro. Uma eapécie de vento. Trata-se, para falar com rigor, de uma qualidade de aura”. Um enigma vesplindecente, no sentido em que © ‘entendin Sio Paulo'. © deus do homem que ‘eaminhs intitulava-se 4 si proprio a lie do mundo (ego stan Jax mundi), ¢ 6 homem que caiminka no espaga de Sun Mateo, vindo a0 encontro do acontceimento colorido, talverdiga 4 mesmo, messe momento, que ¢ para ele apenas que brilha lé ao fundo 0 objecto. ‘A pesada superficie monocromstica torna-se asim o hagar imagindvio de onde vies vor a luz E 0 altar que tera possado, onde «Ele® terd habitado ~masde onde, presentemente, «Flex» s€ terd monifestamente ausenteda, Um lager vinio, mas em que esse vaio ter sido convertido «em marca de uma presenga passed ou iminente Um lugar portador de evidencia, portanto, 0 de evidanice, como se queira. Algo que evoque ‘um Santo dos Santos. Algo que, a seu modo, qualquer visualidade monocromitien ousai apresentar-se como 2 evidéncia apareeente da cor da seuidance , A Biblia havia, pois, prevenide toda fa gente, inchiindo os cristios: a evidéncin do Ausente dicse no elemento da dissemelhangs. Quando os tedlogos medievais comentayam (© salmo “© homem caminha na imagem Gn imagine pereransit homo), era geralmente para construir o tema da regio dissimifitadinis, a sregito de dissemelhanga, onde 0 homem. cere imaginado caminhando, procurande 0 seu deus, como num deserto”. Quando © preude-Dionisio 6 Arcopagita, quis conciliar a impossibilidade ontologica das “imagens semelhantes de Deus com a exig cin anagogica de produzir imagens apesa de ‘tudo da sua presenga (ou da sua iminéneia), ele cobtove a entidade «st6piea e monstruosa® — tal eno seu proprio woesbulirio — das «similitudes distemelhantes>, algo que ele abordava através da prerericao de «despir imagens», e que cle svrastavs para um esteanko mundo de veus, de fogos, de lures e de mineralidades preciosa Ui ig utara porta aaron eqeesnya de sem meacha stems de tudo, cme eatente spared de tain cnr tips Sotalentnte Rained ene se secret, imposiel de se conhecer erat mesma se nfo se The asociar uma matérin[..] sob a empécis do oto, do Tenae, do cobre dat pedras multicore? A pals d'oro responde muito evidentemente sgrandle exigeneia. Como jgualmente os mossicos bizantinos os cilices em sardénica de San Marco ou da tesoura de Saint-Denis Gobre o qual o abade Suger. como é sebido. nos deixou o sew insubstituivel testemunho'"). Do no se tratn de modo algum de um , experiénciaem que a matetia Juminoss do lugar enquanto lugar desertado 68 rh fyb {SH 160 O bee que cola mt or = portant, enquanto Igor dotado de poder. ‘enquanto snatricial de coisas ignoradks. Experiéncis paradoxal, intense vorar como a evidencin dos nossos sonhos. 0 lager (chen) no & pereepicel senso geapasa wins especie dé raciacinio hiride que nto € de anodo, do pels semsagio [2a realidad; mal ppodemos crer nele. E ele, € certo, que percep. tiomamos como nui fonka, quando afirmamas que toda o ser esté forgostmente aalgun parte, mam certo sti, ocupand was certo lugar. Mas tacos esta obcereaconel cie de ete de somho, de as diringate mitdaamente © J.-somos incapazes devido esa espe de dizer 9 que ¢ verdad E-é por isso que uma fibula convinha a esse lugar. Genrges Dit Huberman Fissofo # Hisvorindor de Arte “Traci: Joana Caputo

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