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Sobre a visualidade do Brasil Moderno Causas e combates pelo “retorno A ordem” Maria Bernardete Ramos Flores Aestética monumental Sob a linguagem visual do entre-guerras, todo pais que desejou fazer propagan- da de seu regime politico langou mio da monumentalidade, dentro do espitito clés- sico, universal © atemporal, por enfeixar valores comuns a todo 0 Ocidente, desde a Antighidade. Nos Estados Unidos, a politica simbélica do governo Roosevelt, paurou-se por duas estratégias fundamentais: monumentalidade clissica ¢ representagio das rafzes agririas. A natureza como simbolo do solo patrio resumia os valores da nacio ¢ rio afrontava a moderna micologia industrial’. Na ltélia, Laura Malvano diz que ‘qualquer andlise da culcura do regime de Mussolini no pode prescindir da abor- dagem das imagens. Os temas recorriam a um feixe de ideologias: do fascismo rural, uma nostalgia do séc. XIX ¢ um retorno 4 tradigio: do fascismo planificado, recnoeritico € moderno, dos anos trinta; e do fascismo imperial, projetado em diresio a0 Mare Nostrum, ou, mais precisamente, em diregio 3s opgées politicas, ‘expansionista e colonial’. Na Alemanha, os famosos nus de Arno Breker recriaram a beleza helénica, representativa do homem viril como simbolo da pureza racial. ‘A estatuatia salazarista que povoou Feiras, Exposigées © Pragas com figuras mas- culinas ~ descobridores, desbravadores, missionétios, poetas, reis, navegadores, guerreiros, conquistadores figuras robustas, eretas, “massas quadrantes™! executada pela geracio de escultores postos a servigo pela encomenda oficial de Antonio Ferro, & frente do Sectetariado da Propaganda Nacional, criaram a ima- ‘gem monumental que servira & visualidade do nacional-historicismo da politica do Expirito do Estado Novo Portugués. No Estado Novo brasileiro, a monumentalidade néo chegou a ser significa va, se comparada is dimensées assumidas pela portuguesa, espanhola, cestadunidense, italiana, alema, entre outras. Contudo, © projeto do Ministério de Educagio ¢ Saide Piblica, do governo de Gertlio, analisado através das cartas do ministro Capanema, dos termos dos editais ¢ das encomendas, da cr alizada, das obras realizadas ou das maquetes, ensejou o simbolismo vei finguagem visual do encre-guerras. Considerando-se apenas o seu projeto escultério, percebe-se que artistas convidados ~ Celso Anténio, Adriana Janacépulus, Bruno Giorgi, Emesto de Fiori ~ tiveram formagio na Europa, entre as décadas de 20 ¢ 30. Foram alunos ou, pelo menos, sofreram « influéncia do “triptico” — Maillol, Despiau, Bourdelle ~ que assumiu “um papel supostamente clissico, onde se re- vviu 0 gosto tradicionalista francés”, na fase do “revivalismo do entre-guerras”>, 1 PABRIS, Annatetes~ Fnagmentes Urbane. Sto Pauloc Studio Nobel, 2000, p. 172. 2 MALVANO, Lauts - Bactowy« plies dellimmsgne. Torino: Bolla i, 1988. p14, SDUTTON, Kenneth R. The pefectible body. The wester ideal of male physial development. New York: Contnsum, 1995, p 207. “PORTELA, Arr = Fncice France » Zargucn. Lisboa: Imprenss Nacional - Casa da Moeda, sd pl “TERANCA, Jw Augusto - iniia de Arte Ocidew. 1780-1980, Lisbou: Livos Horizances, 1987, 1. 302-303, @ 0 epissdio do desacordo entre 0 escultor Celso Antonio e Gustavo Capanema ‘quanto & concepsio da escultura do Homer Brasileiro, a ser erigida no patio do ficio do Ministério - um bloco de granito, aproximadamente de 11 metros de altura, de um homem sentado sob um diminuto pedestal, é esclarecedor. A estétua, por re- comenclagio do ministro, deveria ser a de um homem “sentado num soo, nu, como © Penseur de Rodin, mas de aspecto que denotasse calma, dominio, afirmagio..”. Uma “concepgio grandiosa (..) qualquer coisa parecida com os colossos de Menon, em ‘Tebas, ou com as estétuas do templo de Amon, em Karnak”®, Quando Capanema rejeitou 0 projeto de Celso Antdnio, pois a maquete era a de um homem de “fei- Ges sertanejas, barrigudo pouco atlético””, a obra foi entregue a Brecheret, com a detcrminacio de que nio fizesse trabalho estlizado e nem decorative; que seguis- se 0 rumo dos grandes escultores contemporineos, Maillol, Despiau. O homem deveria ser figura sélida. “Nada de rapaz bonito. Um tipo moreno, de boa qualida- de, com o semblante denunciando a inteligéncia, a elevagéo, a coragem, a capaci- dade de eriar € realizar", ‘A estética do entre-guerras que serviu aos programas imagéticos oficiais curo- ppeus — nazista, fascista, estado-novista, mas também praticado pelos estados libe- ris ~ re-introduziu na arte a figura, a volumetria, a representagio, o tema, 2 simbologia, a monumentalidade, o construtivo, a forma ¢ a geometria, a relagio com 0 espaco, a hatmonia das proporgées, a integridade do corpo. Depois da declaragio da morte da arte pelo Movimento Dada, uma nova ordem cultural ¢ artistica tratou de fazer frente a certas peculiaridades das vanguardas ~ individua- lismo, materialismo, pluralidade ¢ originalidade -, vindo recolocar na obra de arte elementos que restabelecessem “a unidade incindivel entre técnica e representagso, entre forma ¢ contetido; unidade que caracteriza a obra-prima de natureza uni- versal ¢ eterna", Na Franga, para onde acorria a maioria dos artistas de varios paises, tedricos como Gleizes, Lhote e Léger defendiam a regeneragio da arte, definindo as regras téenicas ¢ morais da criagio artistica, contra a transgressio praticada pelas vanguardas. Léger, que foi o grande mestre de artistas brasileiros, dizia que ‘toda criagio objetiva humana depende de leis gcométricas absolutas”!?. A expressio retour a Vardre gana as paginas da Nowvelle Revue Francaise, a partit de 1919, voltada as manifestagées do novo espirito francés!!. Na Itélia, em Periplo dell'arte, publicado em 1928, Soffici criticow a pintura pura, a arte pela arte, liberta de qualquer preocupagio conteudistica ou verossimel, arte praticada pelas vanguar- das artisticas, e preconizou uma “forma de arte plena, completa, nossa, totalmen- te humana’, que “espelhasse concretamente a plenitude vital do novo tempo"? Idem, p. 225. Ch, LISSOVSICY, M. e MORAES DE SA, PE. - Colum da Edcagt A consouréo do Minstrio de Educa Sede. Rio de Jneiv: MINCIPHAN: Fundaeao Geto VargasiCPDOC, 1996, 221. Sider, p. 231. FABRIS, Annateresa-“A “enttica do fantoche": Soff e a volta 8 ordem a Ii" Ins Anais. LV Congreso Besleiro de Hlstiria da Arte. Porto Alegre, 1991, p. 61-67, p. 61 TeKERN, Mari Licia Bast ~ A seodernidade pcruels Argentina ¢ Brail Acsso: dia 0410306. nivel em: ww cesnarthrhevistsvol O2/art7 hum) LOURENGO, Mati Cea Fang - Opie de moder, Sio Paulo: Huse USP, 1995, p. 4. IABRIS, Annateress-"A “estes do fantoche™, ob. city p. 61-67, Di 4 O modernismo brasileiro Os historiadores da arte brasileira jé demonstraram exaustivamente a relagio tensa entre 0 modernismo ¢ o nacionalismo: como a arte modernista tratou dos as- suntos nacionais para criar uma identidade nacional. A experimentagio artstica com as linguagens das vanguardas curopéias para representar valores nacionais, 0 folelore, as origens do homem brasileiro, a terra do Brasil, oscilaram entre aceitagao e rej io, nos niveis das tendéncias artisticas e correntes intelectuais. Ao Brasil antropo- figico que tanto valorizou as devoragées ¢ comilangas, Guilherme de Almeida, no pocma Rega, opds o espeticulo de um Brasil prudence e conciliador, por transfu- s8es ocidentais serenas, fil a0 seu propalado papel cvilizador, sem “embargo da con- iibuigéo berrante dos seus papagaios, macumbas € matos virgens”. esse artigo a intengio é deslocar a andlise da abordagem do tema do nacio- nalismo e enveredar para a abordagem da relagio entre 0 modernismo € a questio racial brasileira. Que estética foi chamada para representar 0 “homem brasileiro”, melhor dizendo, “o porvir do homem brasileiro”, numa relagio da arte com politica racial? Se o debate sobre a proposta cultural para a jovem Repablica ¢ a formagio do “novo homem” girava em torno do dilema entre a renovagio “americanista’ (pragmatismo, objetivismo, utlitarismo, racionalista), ¢ a restau- ragio “iberista” (tradigao humanista catélica), 0 debate estético foi o axial para qual convergiram todos os enunciados da modernizayio © da modernidade bras Ieira: embelezamento do povo, branqueamento, educagio, satide, trabalho, urba- nizagio, progresso, tecnologia, civilizasio. (O faturismo foi praticado para eriar imagens da velocidade, da verticalizagio, do urbanismo ¢ do maquinismo; 0 cubismo ¢ 0 expressionismo para falar da forga da expressio, do volume, da cor, da construgio do homem brasileiro; 0 surrealismo para falar do dircito 20 sonho, a0 mito, a0 inconsciente, da busca de nosso passado indio-afticano, na constructo de um mundo antropofagico. Na perspectiva cat6~ lica humanista, a eritica 4 arte de vanguarda € 0 retorno a0 passado cléssico, greco- romano, ¢ 4 tradieio, criou imagens de um mundo perdido. Pautou-se, entéo, pela busca da ordem, da limpeza e da pureza da vida rural, da perenidade ¢ da conti- nuidade da culcura ocidental, da regeneragio do passado, no registro da arte aca- démica, das linhas puras, da perspectiva da forma e do espago, da linearidade do tempo, da ordem da representacio, Contudo, a arte brasileira, no seu engajamento politico pela reforma regene- ragio do povo brasileiro nao podia oprar nem pelas propostas das vanguardas no que cla tinha de mais desestruturador € nem pela arte académica da corrente clissica, A estética que atendeu aos anscios da visualidade modernista brasileira foi aquela do chamado “retorno ordem”, sob os prinefpios de Lothe, Glezes ¢ Léger, mestres de vvirios artistas brasileiros. O movimento modernista no Brasil, segundo Mério de Andrade, depois do “periodo herdico”, iniciado com a exposigao da pintura de Anita Malfatti, em 1917, “anos [em que os modernistas foram] realmente puros ¢ "91V0, Leda ~“O principal do principe’. In: ALMEIDA, Guilherme de - A Rape Rio de Jair: José Olympio. 1972, p. 13. 45 livres, desinteressados”, a Semana da Arte Moderna (1922) abriu a fase do “espiti- to destruidor”. Mas, com 2 entrada de Getdlio em cena, em 1930, 0 modernismo brasileiro deu inicio a “uma fase mais calma, mais modesta e qui proletiria, por assim dizet, de construgio”. Mario esperava que a outras formas sociais imitassem 0 caminho das artes, atingindo esse estigio de “estabilizacéo de uma consciéneia criadora nacional", (0 historiador de arte, Tadeu Chiarelli, afirma que 0 modernismo brasileiro enveredou pela estética do “retorno 4 ordem, por the poss tempo o “resgate do homem brasileiro’, seqiiestrado da producio artistica que ‘© antecedeu, ¢ a inclusio do Brasil no circuito artistico internacional. Mario de Andrade, 0 lider incontestivel do modernismo pés 1930, nio podia accitar uma produgio artistica desprovida de uma relagio mais concreta com a realidade apa- rente € com um sentido moralizante ou “educativo" explicitos, recusando as ma- nifestagdes de vanguardas ocorridas no Brasil, como foi o caso de sua rejeigio a obra de Ismael Nery, artista que praticou uma arte metafisica, que se afastou do cubismo praticado por Léger, pendendo para Picasso. ¢ que teve em Chagall inspiragao para uma arte surrealista. A opgio por uma produgio que trafegou entre 0 protétipo do homem brasileiro (os painéis do Ministério, de Portinari), do homem ¢ da paisagem locais (a fase pau-brasil de Tarsila) c a fixagao mais préxima do realismo naturalista do homem brasileiro (Mestigo, de Portinari: Ciganos, de Di Cavalcanti) possui varias raz6es que a justificam e varias impli- cages que dela broram!, Um parénteses A imagem do Brasil, herdada do século XIX, era surpreendentemente assus- tadora. Nio sio poucos os exemplos que nos falam de um “espetaculo racial bra- sileico"'S, a “bela amostragem de barbirie, de ilusionismo barroco”, que causara imal estar a Ferdinand Diniz'’. O Brasil era tido como um pais degenerado, eujo povo de feicio estranha, “da qual s6 pode fazer idéia quem observou as diversas ragas na sua promiscuidade”. A procissio dos festejos de Nosso Senhor do Bonfim, aos olhos de Spix ¢ Martius, forma um “luxuoso préstito”, com “gente de todas as cores”, ¢ padres cercados pelo “barulho selvagem de negros cxalta- dos” pelo “tumulto de mulatos geis”. Povo degencrado © uma natureza repre- sentada pela estérica do pitoresco e do sublime, cuja beleza exuberante ¢ amedrontadora!®, 3M ANDRADE, Micio de - Aspects de inrarue brasileina. Sio Pau: Martins, 1972, p. 231-255. CHUARELLL, Taken - Pann no ea. A erica de ate de Mave de Anda, Flan: Less Comemporins, 2007, p. 241-242. Cl SCHWARCZ, Lilia Movie -O apedeal das rapes. Cenias, asougses e Questo Racal no Bail - 1870-1030. Sto Pavlo: Cla das Letae, 1993, p. 189. VCE LIMA, Luis Costs -O Controle do Imagini, Sao Paulo: Brasilien, 1984, p. 132. ™ Apud. LISBOA, Karen Macknow -A Nova Asénsde de Spixe Martin, Narurca¢ ciilicgao na Viagem pelo Brasil (1817-1820). Si Paulo: Hucite, 1997, p. 136-137, 46 Cras, poitanto, uma nova feigio, regenera, civilizar, modernizar, embelezas, branguear, alcangar um estalo racial, eram tarefas que atormentaram intelectuais, politicos, cducadores, religiosos, juristas, artistas, jornalistas, antropdlogos, médicos, psieslogos, da jovem Repiblica brasileira. O Brasil era um tipo éenico em formagi (© discurso da cugenia, como arte e como ciéneia, prometia climinar todas as degraciosidades. °O homem capaz de talhat no mérmore 2 Venus, € capaz tam- bém de moldar plasticamente toda a humanidade. (.) Cada um de nés poder transformar-se em Policleto, Miron, Fidias, poderé criar tipos com vida, como Deryphoro, aquele belo efebo da estatuétia, © mais antigo tipo da arte grega, considerado a representagio mais acabada da beleza e da energia humanas.” afi mava De. Kehl”?, Arthur de Vascocellos, 20 prescrever “a temperanca da mesa”, fazia teferéncia 20 Apolo de Belvedere, a0 mesmo tempo um modelo de beleza ¢ lum marco admirivel para as fronteiras da saide™®. O edueador Fernando de Azevedo defen ica de exereicios para as mulheres aleangarem a “beleza da Afiodite de Milo”, Hernani de Iraj, médico, artista plistico e eritico de arte, condenava os pintores que representaram o corpo humano deformado, quadros de “aleijées de plistica humana’, tentando convencer o Icitor de quc a reproducio artistica do corpo, dentro do “cinone clissco”, esté imbrieada com a configura- «io ideal da raga. Por isto © mundo grego teria produzido os grandes esculeores da plistica humana: Fideas e Miron, Doriforo, Agoracrito e Alcameno”. A arte ~ segundo esse artista médieo ~ deveria estar a servigo da medicina para a constru- a0 estética do corpo e criar um estado brasilico. © modelo de beleza que definia os estereétipos nacionais na Alemanha, na Inglaterra ou nos Estados Unidos era 0 padrio almejado. A beleza corporal, a5- sociada & beleza da raga, como politica da estética, constou dos programas esta- tais, em todo mundo ocidental, seja no narlsmo ou fascismo, nas ditaduras de todos os matizes estadonovistas, ou nas democracias liberais, a despeito de peculiaridades proprias dos projets estilos, tépicos, dicgdes © metodologias de cada nagio, Na Alemanha, os famosos nus de Arno: Breker reeriam a beleza hielénica, represencativa do homem viril como simbolo da pureza racial.(Dutton, 1995: 207) No filme "Os Deuses do Estédio", 1938, sobre as Olimpiadas de Berlim, Leni Riefenstahl associa estétuas da Antiguidade Classica a0 atleta modelo. © projeto fascista foi uim projero estético. Uma verdadeira “politica da beleza” como designou Gabriele D’Anunzio, um dos primeitos artistas a servigo do fascismo italiano, no 56 a nomeé-la, mas também a praticé-la’ ' KEHL, Renato -A Cure de Fealdade. Rio de Jancivo: Livaria Francisco Alves, 1932. p. 202 28 VASCONCELOS, Arthur - "Concrtor pathogenicos da oberidade” (0). In: Archiv Bralirar de Medicina, Ousubeol1932, p. 317 PAZEVEDO, Fernando de - Da educere fice. Sto Paulo: Melhoramenton, afd, p. 80. A primel- 1 ediggo & de 1916 ¢ segunda, de 1920. SPIRAJA, Hernani de = Sexv« Beleea, 4 cd. Rio de Jancvo: Pongeti, 1958, p19. 2 MOSSE, George ~ “Estetica fscsta e sociedade. Algumas consideragdes". In: MOSSE, G., BRAUN, Ee BEM-GHIAT, Rd ates do faci, Trl. Carlos Queits. Lisboa: EdigiesJoso Si da Conta, 1999, p. 3-12, p. a O debate estético A estética é por exceléncia 0 campo teérico, sob 0 qual as problemiticas da ‘Modernidade podem ser abordadas. Winckelmann, Lessing, Burke ¢ Baumgartem criaram a disciplina da estética para formular principios universais de classificagao «¢ julgamento da beleza. Friedrich von Schiller, nas Cartas sobre a educagao estética do homem, define como funcio da arte a educacéo pela beleza, que permite aceder a0 Estado estético gracas a0 dominio racional das pulsoes, condigio para chegar a0 Estado politico. O sujeito auténomo, capaz de agir livremente de acordo com os paramettos das Luzes no & outro senéo 0 sujeito de juizo esté- tico kantiano. ‘Norbert Elias € Peter Gay, entre outros historiadores, tm mostrado que a subjetividade moderna é 0 corolirio da eriagéo de um corpo capaz de, 20 mesmo ‘tempo, controlar suas emogées, sua sexualidade, dominar os seus gestos, conter a violéncia, interiorizar as normas, ter © governo de si. Como analisa também Terry Eagleton, a estética moderna, como cigncia da subjetividade ¢ do sensivel, desen- volveu-se, pari passt, com a civilizagéo ocidental, para responder as probleméticas colocadas na ordem do corpo, da classe, do sexo e da nacio, A experiéncia esté- tica define, portanto, uma meta-politica, isto é 0 projeto moderno de mudar as tradicionais formas de vida, encarnando no corpo do cidadio a lei do auto-governo, para atingic a harmonizagao do gosto, das aticudes. dos habitos, do comportamento, da imaginagio, enfim, de toda a nossa parte sensorial, realizando a coesio social, minimizando assim 2 necessidade da cocrgio externa. Mas € também 0 mesmo sujeito, © homo aestheticus®, livre, auténomo, moderno, que compreende 0 regime politico democratico, no qual grupos € fac- ces em debate eriam o dissenso proprio do regime estético das artes. Para Jacques Ranciére, na democracia, a arte produz facgées ou dissensos. A arte faz politica rio porque trabalhou pela estetizacio dos Estados toralitirios. Nem porque hi estetizagio das mercadorias na cra de consumo de massa. A arte € politica no scio de sua propria politica. Ao ocupar recortes do espaco sensivel comum, redistribui relagbes entre 0 ativo € 0 passivo, os que governam e 0 povo, os que tém 0 diteito de falar © 0 “comum”. A arte produz, assim, formas de re-configuracio da experiéncia que sio o terreno sobre o qual podem se elaborar formas de subjetivacio politicas que, por sua ver, re-configuram a experiéncia comum ¢ suscitam novos dissensos antisticos?®, Dissensos préprios da democracia, o contrério dos consensos proprios dos regimes autoritérios que investem na homogeneizacio visual para a nagio, das sociedades mididticas contempordneas que deixam pouco espaco para o heterogénco sobrevi- ver, transformando-o em mercadoria na sociedade do consumo de massa. XBAGLETON, Teery - A sdologia da edice. Trad. Mauto $4 Rego Cost. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p17 2 BERRY, Luc - Home aexhevica. A inenpdo do goo na one democnidca. Trad. liana Ma Melo Sou, Si0 Paulo: Ensaio, 1996 SSRANCIERE, Jaques ~ Palit de arte. Seminielo. 172 19 de abil de 2005, SESC-Belenzinho, ‘Sto Paulo/Brasil Ver também O deenrendiment Editors 34, 1996); Poleicas de exrta (Editors 34, 1995): A parte do vento eden ¢ pollen (Ex0 Experimenta; Editora 34. 2005.) 48 Com a implantagéo da Reptiblica brasileira, abriu-se o debate sobre a formacso do Brasil moderno. A intelligentsia, artistas, ensaistas, politicos, liveratos, assimila- ram correntes do pensimento europeu, no que tange as teorias ¢ concepgses estéti- cas. Obras ¢ revistas literarias, ensaios e tratados de antropologia, sociologia, medi- ina e educasio defenderam, como principio, a tese de que a arte teria a funsio de cembelezar a vida e, como hipétese, funcionar como modelo ideal, ao ensinar a be- leza 20 mundo, Médicos, educadores, antropélogos, imputaram a si a missio de regenerar, reformar, educa, embelezar, 0 povo brasileiro. As artes foram chamadas a colaborar com a politica de perfectibilidade racial. Como aplicagio consciente de sum conhecimenco especalizado, a arte esté para a esética, assim como a medicina antropolégica, como um conhecimento cientifico, esti para a fisiologia, a antropometria ¢ a morfologia do humano??. No modernismo brasileiro, antes de 1930, os escrtores coexistiam na suas dispu- tas ideolégicas: os passadistas mantinham o espirito do século XIX: modernas e inde- pendentes colocavam-se numa posi¢zo descompromissada em relagio a0 modernismo, Monteiro Lobato, por exemplo; os madernistas, por sua ver, distribulam-se em cor- rentes, tais como: dinamista, primitivisa, nacionalisa e espiritualista®, Primitivismo fj palavra de ordem que perpassou varias correntes com diferentes semanticas. Para Oswald de Andrade, primitivismo na poesia pau--brasil (1924) era fazer a mediagio ‘entre fontes originais e tdenicas atisticas das vanguardas européias; para © grupo Tér~ 1a Raxa, alertat para os perigos da imigracio e valorizar 0 nacional; na antropofagia de Oswald de Andrade (1928), deglutir a experimentagio vanguardist, aclimatando- 1 localmente. No ufanismo patriético do grupo Anta, Plinio Salgado marchou em ditesio 20 ultra-nacionalismo ¢ & busce das raizes nacionais, Segundo correntes cat6- licas, a questio era a retomada de tragos universalizantes © monistas™. Os modernistas dos anos de 1920 estabeleceram relagées fortes com o futu rismo, 0 cubismo, 0 expressionismo. FE, embora a relagio com 0 dadaismo ¢ 0 surrealismo fosse menor, houve adesées, aproximagées ¢ experimentagoes. Oswald de Andrade, Pagu, Tarsila, Raul Bopp. Flivio de Carvalho, Ismael Nery. Anibal M. Machado, Murilo Mendes, Mario Pedrosa, Cicero Dias, sio citados por histo- riadores da arte brasileira como aqucles que foram tocados pelos principios do surtealismo ¢ praticaram, embora sem 2 configuragao de um grupo, uma arte ¢ tuma literatura surrealstas ‘A Revista Estética (Rio de Janciro, 1924-1925) teve como programa a defesa do surrealismo®®. Se o artigo de abertura, feito por Graga Aranha, defendia um objetivismo mecinico, Sérgio Buarque proclamou em suas paginas 0 aproveitamento do inconsciente, o “direito ao sonho”, numa alusio a sua aproximagio com o surrealismo € 3 aplicagéo da psicandlise freudiana nas artes: “.. em nome da reali- dade temos de procurar o paraiso nas regiées ainda inexploradas [..] S6 2 noite en- ® Sobre aca ente cnc ae epic ma formas do Bri modemo, ser FLORES, Mars eran Ramos -Tenlogi nce de ncn. Ciencia earte na palit da bls. ChapecsSC: Argos, 2007. " CASTELLO, Jose Aderaldo A litensure breveie. Vol. Sao Pablo: Eds, 1999, p70. HELENA, Lucia - Maderisno Braieiree Vengearda. Sho Paulo: Editora Atica, 1986.p. 10-14. CF. LEONEL, Marin Célin de Moraes ~ “Bic” « modersioo. Sao Paulo! Bras: Hucitec! INL, Fundagio Nacional Pré-Meméuia, 1984 49 xergamos claro.” E reporta-se a Marcel Proust, em seu “trecho admirivel”: *... no instante mesmo que a raza nos abandona, os olhos se cerram ¢ antes de se conhe- cer néo s6 0 inefivel, mas o invisivel, a gente adormece” . No mesmo ntimero, aparece um artigo de A.C. Couto de Barros rejeitando os pressupostos defendidos por Soffici que “quer incroduzit a arte hermi onipo- tente”, Ora, diz o autor: “Enganas-te, Soffici. Ela [a arte] sabe transformar todas as energias, mesmo as mais abstratas, as mais refinadas, as quase imperceptiveis.”? Contra a ordem, a Ici ¢ 0 plano de simetria, Couto de Barros defendia 0 comple- x0, 0 mulkiforme, 0 pluralismo. A evista de Antropofagia (Sio Paulo, 1928-1929) acolheu Benjamin Péret, surrealista full-time que morou no Brasil entre 1929-1931 ¢ fez pesquisas sobre cultura afro-india. A Antropofagia “nao tem orientagio ov pensamento de espécie alguma: s6 tem estmago.”®> Conforme analisa Licia Helena, a Revista de Antro- pofagia & 0 vermometto dos impasses do modernismo brasileiro: como enlagar © “direito permanente & estética” com 0 peso da tradigio? Quais as fronteiras entre © regional, 0 nacional ¢ o universal? Como distinguir 0 nacional de. sua “idealizagio"? Como se definir a embaragada nogio de “brasilidade”? E, em face desse projeto, que aliangas fazer, quais rechacar, e por qué? A antropofagia faz, diante desse quadro, uma opgio bem nitida. A de explicitar ~ dura, irénica e agtessivamente ~ as contradigées, das quais nenhum geupo esteve isento™ Manifestos ¢ revistas que permicem aos participantes encontrarem-se num pro- testo, revestem-se de duplo aspecto, diz Si Como se formam os grupos? Quais as correntes idcolégicas, as polémicas, os abalos ¢ estremecimentos que ncia nacional? Uma revista, por sua ver, é um observatério legiado de sociabilidades ¢ microcosmos intelectuais, lugar precioso para a 1¢ do movimento das idéias, pelas fidelidades que arrebatam, influéncias que exercem, exclusGes ¢ posigées tomadas, debates suscitados ¢ cisées advindas". No Brasil, no contexto que estamos analisando, os grupos ¢ tendéncias usa- ram esse veleulo préprio da época, a revista (embora algumas nao ultrapassassem © terceiro niimero € em muitas os colaboradores transitassem por entre clas). Na década de 1920, a arte fet politica, voltando aqui a lembrar Jacques Ranciére, 20 falar do rogime estético da arte. As diversas revstas que circularam no perfodo nos possibilitam perceber 0 “lugar proprio” onde os grupos expressavam, debatiam dofendiam ideias, através da critica de arte, tradug6es de autores estrangciros, rese- thas de obras, entrevistas ¢respectivos manifestos ~ “pau-brasil”,“antropolaga’,“ver- SHOLLANDA, Sagjo Buargue de -"Respaiva™.In: Fer. Avo I, Volume I Jn. Fe. 1925. p. 272277 2 BARROS, A.C. Couto Sofie - Fei, ob. cit, 252-255. 3 Revista de Aniopefgie, p. 8. Ano I, nero T, aio de 1928, DCHELENA, Lacia = ob. cle, p63. © SIRINELLI, Jean-Frangoit» “Os ineclectuaie, In: REMOND, René - Por nae bitrie politi Rio de Janeiro: Edcors dx UFRJ/Ediconn ds FGV, 1996, p. 251-270. p- 249. % tim Sto Paulo: Klaxon (mai, 1922 - jan. 1923), Ter Rova € Ones Teas (1926), Nevisina (192311925), Revita de Antrpofagie (oa. 1928 - fe. 1929, 1° "dentin"; mat ago, 1929, 2° “dem Ugo’). No Rio de Janeto, alm de Buca, civemos Fest ago.1927 ~ jan. 1929 T° fase; 1934-1935 Dias), — Bm Minas Gerais 4 Revie (ul 1925 ~ jan. 1926), Verde (set, 1927 ~ jan, 1928) 50 de-amarclismo", “catélico", “dinamismo”, “festa”, “verde”, “terra roxa ¢ outras terras". (Os escritores-artistas configuravam agrupamentos de subjetividades e davam publici- dade 20s desentendimentos e dissensos no projeto da “jovem” nagio. © Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, remete a nacionalizagéo da arte, onde a matéria prima arcistica br se encontra na poesia primitiva ¢ selvagem:’, No Manifesto Ansropéfigo (1928), Oswald define a “Lei do antropéfago”, a apropriagio da cultura estrangeira: “Sé me interessa © que rngo é meu” (..] © cinema americano informars’™", O Manifesto Nhegacu (1929) verde amarelo (ou da escola da anta), assinado por Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Plinio Salgado, exalta © nacionalismo, a {€ nas instituigSes conservado- ras, as expresses histéricas do povo, “a alma da nossa gente”? Festa (1927), humanista, espiritualista ¢ universalista, numa alianga entte religiéo e politica, proclama a arte como anunciagéo do futuro, re-iniciagio da esperanga, a promessa do esplendor™. © manifesto do grupo Verde (1927), de Minas Gerais, declara-se “objetivistas’, “nao damos @ maior importancia para a ctitica’™!. O Manifesto Leite Griélo (1929) publicado em Belo Horizonte, fax a defesa da negrivude”? Em Sio Paulo, além da Ancropofagia, a revista Klaxon, com a contribuigio dentre outros, de Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Mario de Andrade, Rubens de Morais, Oswald de Andrade, Sergio Millict ¢ Manuel Bandeira, além da colaboragio de csc uma concepgio estética que anun- ciava 0 moderno, 0 século XX, pedindo passagem para o atval. (klaxon era o termo cempregado para designar a buzina externa dos automéveis). Terra Roxa ¢ Outras Terras, que contou com a colaboragio de Mario de Andrade ¢ Rubens Borba, enfatizou a busca do cardter brasileiro, no registro de manifestagées foleléricas, no relaco de festas da zona rural ¢ de viagens pelo interior € por outros Estados. A revista Novissima, ditigida por Cassiano Ricardo ¢ Francisco Pati, com Plinio Sal- gado ¢ Menotti Del Piechia como colaboradores, na linha do verdeamarelismo, faz © culto i Beleza nos destinos da pitria’®. No Rio de Janeiro, além de stética Festa, aparccem América Brasileira, 1922, dirigida por Elysio de Carvalho, no contex- to das comemoragées do Centenario da Independéncia ¢ Terni de Sol ~ Revista de Arte « Pensamento, 1924, dirigida por Tasso da Silveira e Alvaro Pinto, Em Minas Gerais, sem a irreveréncia da revista Verde, A Revista, sob a diregio de Martins de Almeida Carlos Drummond de Andrade, tinha como fim solidificar as tradigoes. Se todas essas revistas, além de outras que deixamos de citar, riveram vida quase cefémera, néo ultrapassando o clima da sua prépria ressonancia no movimento da década revolucionésia de 1920 (muitas nio foram além do terceiro nimero), chama- nos a atengio a Revista do Brasil ¢ a revista A Ordem, pela duragéo que aleangaram, ores estrangeitos, ( MANDRADE, Oswald de - Manis da Posie Pen-Brasil. Sio Paulo: Correia da Maka, em 18 de matgo de 1924 “Widem, Manifze Anropsfagn. Ine Revista de Antrepofga. Sto Paulo, | de malo de 1928, 0 1 » Manifeto do verde-amarelismo, la: Joreal Corce Paufionn, edigh de 17 de maio de 1929. Manifesto Reviste Foe: Rio de Jancco, | de agosto de 1927, 0.71, p. 1 Revista Verde de Categuens. Minas Gerais, yetembro de 1927, n° 1 CE HELENA, Lucia ob. ct, p80 dem, p. 5263, 31 varando a fronteira, enggjadas no projeto de reforma do povo brasileiro « restaura- cio da eradigéo A Revita do Brasil (que tove inicio em 1916 e, com diferentes fases ¢ algumas inter- rupgoes, perdurou até a década de 1990) a principio nao Foi um drgio representativo de um grupo literério ou artistico especifico. No contexto que se seguiu & Semana de 22, a tensio entre os modernistas ¢ os passadistas explodiu em suas paginas. Sob iregio de Monteiro Lobato, na sua primeira fase, teve uma atitude claramente regeneradora da nagio, “..quet lutar contra os males, os maus hébitos, © mau ensi- no, as mis organizayées, 0 parasitism, os vicios ..quer levar todo o Brasil a0 traba- Iho, & confianga em si mesmo, o balango de suas virtudes ¢ das suas misérias, & lenta ¢ enérgica terapéutica do seu organismo gigante mas docnte...¥, A intelectualidade presente no petiédico, gerada e nutrida em teorias deterministas, fossem elas de cu- ‘oho racial, climético ou cultural, invariavelmente terminava por reafirmar impermeabilidade de uma nagio tropical ¢ mestiga 3 cvilzagéo, preocupada com 2 nogio de perfectbilidade do brasileiro ¢ pela busca de um tipo nacional caracteritico”. ‘A revista A Ordem (1921-1945), fundada pelo cavdlico Jackson de Figueiredo, representou © movimento, juntamente com a eriagio do Centro Dom Vital, de “reagio catdlica", de aproximagio com o Estado, € revitalizagio do tomismo no campo das idéias. Em 1922, os membros do Centro Dom Vital e'do grupo A Festa se opu- seram i concepgio do modernismo da Semana de Arte Moderna. Segundo eles, 0 ‘modernismo deveria estar ligado 2 “autenticidade e tradigio”, nogdes essas que esta- vam ausentes do movimento devido & orientagio dada 20 evento pelos “esquerdis- tas", Com a morte de Jackson de Figueiredo, em 1928, assumiu a diregio da revista, Alecu do Amoroso Lima, figura de proa na critica as linguagens artisticas de van- guarda, Até a criagéo da Pontificia Universidade Catélica do Rio de Janeiro, em 1941, © Centro Dom Vital foi o principal lugar de reuniso dos intclectuais cadlicos bra- sileiros. Segundo Margaret Todaro, tanto 0 Centro Dom Vital quanto a revista A ‘Ordem se caracterizavam por uma preocupacéo com causas politicas conservadoras, empenhados na “luta pelo espirito contra a matéria, pela liberdade contra 0 despo- tismo, pelo fascismo contra © comunismo”. O Centro declarava que 0 fascismo era © aliado natural do catolicismo contra 0 socialismo ¢ 0 marxismo®, O retorno a ordem. As mudangas de rumo a partir de 1930, com a implementagéo da polit nacionalista do governo de Gevilio Vargas; com a intensa atividade dos intclecruais catélicos ¢ sua estética humanista, espiritualizante; com 2 adesio de artistas € intelectuais modernistas a0 integralismo e seu auroritarismo ¢ irracionalismo; com a retirada de grupos mais vanguardistas para engajar-se nas fileiras do PCB, a exem- plo de Oswald de Andrade: 0 modernismo brasileiro foi abandonando a sua LUCA, Tania Regina de A Reva do Brasil. Um diagustico pare a (Nap. Sto Paulo: Ed. da UNESP, 1999, p17 dem, p31 “KORNIS, Monica - Couro Dom Viel, Fundagso Getilio Vargas!CPDOC. 05 de mio de 2008 Disponivel em chet://www 52 potencialidade criativa da década de 1920 e abragando a estétca do “chamado & ordem’, entrando naquela fase “construtivista’, defendida por Mario de Andrade, citado acima, O que passou a preponderar no Estado Novo brasileiro, néo foi entéo a busca das raizes vitais do povo, como queriam os jovens intelectuais-artstas da década de 1920, ¢ sim a tentativa de fazer do catolicismo tradicional ¢ do eulto dos simbolos ¢ lideres da patria a base mitica do estado forte, na tentativa da eria~ so de uma visualidade homogénea, de um consenso idcol6gico"”. Dai, a rejeicao €.a condenagio do surrealismo no Brasil. Para ilustrar essa condenacio, basta citar © caso de Benjamin Péret, expulso do Brasil em dezembro de 1931, por Decreto assinado por Geetlio Vargas ¢ Oswaldo Aranha, por ter sido considerado, “con- forme foi apurado pela policia desta capital, se tem constituido elemento nocivo A tranqiiilidade pablica e 4 ordem social” A cestética que éerviu ao programa visual, pés-1930, como de resto se praticava no contexto mundial nesse periodo de nacionalismos xen6fobos, foi a estética do chamado “retorno & ordem’, por re-figuar © corpo fragmentado, descorporizado, plas vanguardas. No Brasil, a creng2 no advento do “homem novo”, representado ‘numa linguagem simbélica na qual 0 corpo jovem, garboso ¢ atlético, seria 0 bindmio da nacio jovem; o trabalhador, num corpo vigoroso ¢ monumental, binémio da nagio industrial ¢ moderna; a mie, num corpo saudavel, forte ¢ belo, © bindmio da propria patra ‘Ao analisar 0 método pelo qual Mirio de Andrade, o lider incontestével do modernismo brasileiro, fazia sua defesa da vertente estética do retorno & ordem, rejeitando qualquer manifestagio de vanguarda que rompesse com a nocio de representagio da obra de arte, Tadeu Chiarelli, conclui que seus conceitor no campo da teoria ¢ da histéria da arte repousavam em grande medida nas teorias do filésofo ¢ historiador francés Hippolyte Taine, que vinculou 8 arte o estado geral da civilizacio, a arte como fungéo natural no homem, exercida por uma faculdade mestra dominada pelos facores raga, momento histérico e meio. Mario, diz 0 historiador, excluiu qualquer possibilidade dos artistas modernistas enveredarem para a nio-representagio; agin contra a abstragio, 0 que s6 se fez presente no Brasil, apés sua morte. ( posicionamento de Mirio de Andrade em relaeio & pintura de Anita Malfatti foi exemplar, diz Tadeu Chiarelli, Embora Mério defendesse a artista por razées afetivas © em “que pese o declinio paulatino d2 qualidade da produgio de Malfacti aps 0s anos 20°, o critico nunca reconheceu 2 obra dela, por ter optado “por um retorno & ordem particular”. Lasar Segall também nao se enquadrava nos propdsi- tos de Mario. Tarsila do Amaral, praticamente, saiu de cena apés o inicio dos anos de 1930. A produsao de Di Cavalcanti interessou a Mario por representar uma “arte ‘moderna e brasileira, preocupada com a captagio da paisagem humana do pais”, mas © SCHWARTZMAN, Simon ~ Tempos de Capanema. Rio de Jancco: Pare Tera: Sto Paulo: USP. 1984, p80. “i Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1931, 110° ano da Independéncia « 43° da Repiblis. (As.) Genilio Vargas, Oswaldo Arana ‘OCHIARELLI ob, ci, p. 243. 3 foi por um breve periodo, Na verdade, conclui Chiarelli, foi na obra de Portinari que Mario de Andrade encontrou o grande instrumento para sanar a lacuna que a arte realista-naturalista do século XIX nao conseguira preencher™®, A construcio do cdificio do Ministério de Educagio © Satide, designado por Capanema como 0 Ministério do Homem, marcou a “parceria entte governo € artis- tas", Composto “numa harmonia de sentidos”, integrando arquitecura, escultura € pintura, expoente da politica imagética do Estado Novo, 0 Ministério destina- vva-se a “preparar, compor ¢ aperfeigoar o homem do Brasil”, Um programa de decoragao escultéria envolveu virios artistas: Celso Anténio, Adriana Janacépulus, Bruno Giorgi, Ernesto de Fiori, todos formados nas escolas do “retorno & ordem” de Lothe, Lager ¢ Gleizes, todos foram alunos de Maioll, Depiau ou Bourdelle. A Portinari coube os murais dos ciclos econdmicos para o Ministério. Portinari rndo freqiientara cursos em Paris, quando li esteve, entre 1929 ¢ 1931, para onde acorriam os artistas brasileiros. Mas estudara os pintores primitivos ¢ renascentistas italianos no Museu de Louvre e convivera em meio a retomada da tradigao classica, absorvendo assim a construgio. da forma”. Celso Anténio fora aluno de Bourdelle (esse fora assistente de Rodin por virios ‘anos, até romper com o mestre ¢ ingressar num estilo bem comportado™), escultor {que trabalhou em virias encomendas oficiais, de grande projecio, especialmente nna América Latina. As obras de Censo Antonio para o Ministério de Educacio de Satide Pablica ~ a Mie, para o salio de exposigées, hoje exposta na praia de Botafogo: Moga reclinada, para 0 terrago do ministro: e Moga ajoelbada, para 0 oitavo andar, apresentam uma carga emocional dos gestos expressionistas, a volu- metria adquirida do cubismo, alguns tragos do simbolismo, alguma estilizagao do art déco, mas tudo nos limites realistas da representagio da figura humana, sob a re-estruturacéo da obra, nas formas geométricas, na integridade das partes, no ‘equilibrio entre espago, volume ¢ contornos. ‘Adriana Janac6pulus, que eseulpira Mulher sentada, em granito, para 0 tert2¢0 do Edificio, uma escultura hietatica, de linkas puras, sem artificios decorativos, tum corpo integro na sua sercnidade ¢ equilibrio, formara-se em Paris, influenci- ada por Charles Despiau. Este fora, nos anos 20 ¢ 30, um “fendmeno na Fran- «2°, tendo suas obras reverenciadas pelo mundo, mas no final da vida viveu no ostracismo devido a amizade que tinha com o escultor nazi-aleméo Arno Breker. Despiau chegara 2 organizar uma exposicéo das obras de Breker na Paris ocupada, em 194295, Idem, p. 257-261 FABRIS, Annaterea - Fuagmentes Urbane. ob. cit p195-169. °° Exposigio de motivas de Capancina a Getilio Vargas. 14/6/1937. Apud, LISSOVSKY, M.¢ MORAES DE SA, PF. ob. eit, p. 225 SIKERN, ob. cit HCE Caudloge. Antoine Bourdlle | Caradoria de Véronique Gautherin, Séo Pro: Pinacotecs do Estado, 1998. SZANINE, Walter (Ong) - Hieria gna de art no Brasil. Npesencag de Wer Moti Salles, ‘Sto Paulo: Instituto Waleher Mati Salles: Fundagso Djalma Gulmardes, 1983, p. 609, 54 Bruno Giorgi executou Monumento da juventude brasileira, para o jardim, obra reveladora de harmonia, calma ¢ proporgdes resolutas, atendendo & recomendacéo de Mario de Andrade, tivera formagéo junto a Maillol, “este, nada revolucionatio nas artes"®?, Moga de pé, também de Bruno Giorgi, em terracota, para a entrada privativa do Ministro, elogiado pela critica, jé que o escultor soubera extrair pro- veito dos nitidos blocos maiolescos. Giorgi fazia da figura feminina jovem 0 con- texto de contetido/forma por exceléncia de seus ideais que, sem um desprendi: mento das condigées objetivas, voltava-se para um mundo de afitmagio de valores transcendentes. Corpos que encantavam pela sua pureza, implicita a nogio do monumental atingida por solugées plisticas equilibradas entre a estaticidade do volume ~ exaltado no engrossamento de pernas ¢ bracos ~ e 0 movimento ritmico dos gestos%! Emnesto de Fiori, por intermédio de Portinari realizou varias maquetes, que néo chegaram a se coneretizar — entre as quais O brasileiro, Figura femi- nin veclinuala, Als cn reponse, Adolescente © Mater aidade, De Fiori comecara seus estudos em Munique. Mais tarde, em Paris, tomado de desespero ante a \inexplieével perfeigio da obra de Cézanne, decidiu “abandonar a pincura; meses mais tarde re-encetou a carreira artistica, dessa vez como escultor. Tinha entéo 27 anos ¢ trabalhava sob a influéncia de Maillol e Degas. Em 1914, achava-se em Berlim, onde seu prestigio depois da I Guerra crescia a pono de se tornar em breve um dos melhores escultores vos da Europa, Pelo seu atelié berlinense desfilaram personalidades como Greta Garbo © 0 proprio Hindenburg. Com a ascensio de Hitler, em 1934, |De Fiori resolveu abandonar a Alemanha, dirigindo- se ao Brasil”, Em conclusio, a visualidade requerida para a for- magio do povo brasileiro da jovem repiblica nio podia assimilar que as vanguardas européias tinham de mais destruidor. A estética que serviu & representagio do futuro homem brasileiro voltou-se A Tinguagem plistica do novo realismo ¢ do novo lassiclsmo, © que nao significa que eliminasse clementos rerortcos do Expressionismo, do Cubismo ¢ até do Simbolismo. Se 0 Expressionismo desapare~ cera como movimento nos anos 20, permanecera como conceito estético-artistico @ 5 Carta de Miro de Andrade i Capsnema. 19/8/1943, Apud. LISSOVSKY, M. e MORAES DE. SA, 2 B= ob cit. p 300, Idem, 307 8 ZANINI, Wlor- 0b. cit, p- 610 ARTE no Brasil. So Paulo: Abell Calacal, 1979, p. 797 3 indicar, fundamentalmente, aversio ao fixo, 20 estitico, ao estivel e ao convencio- nal. A carga emocional dos gestos expressionistas, ainda que implicasse na defor- -magio de aspectos geométrico ¢ plistico, possibilicava expressar a forsa dos corpos, nna ordem estitica e perene da pedra, projetada para o futuro. Mesmo em Portugal, cuje indumentéria fora farcamente utiizada como simbolo da procza da histéria portuguesa que se quis natrar ~ a expansio, a conquista, @ cristianizagio, 2agio — nio encobrira @ projegio do autodominio dos corpos numa atitude vit miisculos, dos peitos ¢ das cochas, por sob a roupa, ou das pernas ¢ dos bracos desnudos. A solugio plistica, para plasmar na escultura o ideal da raga, num figu- rativo “retorno & ordem”, na estética de virtude construtiva realista, con elementos do expressionismo modemista que possibilitavam, na ordem estdtica € erene, um movimento dos corpos, a sua expansio dinamica. 56

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