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© Umberto Ecoe Thomas A. Sebeok (orgs.) [LI a Lae O SIGNO DE TRES Dupin, Holmes, Peirce Ww, % Ss Ans we EDITORA PERSPECTIVA iy 4. Chaves do Mistério: Morelli, Freud e Sherlock Holmes: CarLo GinzpuRG Deus se esconde nos detathes. (G. Flaubert ¢ A. Warburg) Nas paginas que se seguem, tentarei mostrar como, no final do sécu- lo dezenove, um modelo epistemolégico (ou, se preferirem, um paradig- ma?) surge discretamente na esfera das ciéncias sociais. O cxame desse Paradigma ~ que ainda nao mereceu a devida atengdo e que tem sido utilizado sem nunca ter sido proclamado como uma teoria ~ talvez possa nos ajudar a ir além do estéril contraste entre “racionalismo” e “irracio- nalismo” 1. Entre 1874 © 1876, a revista de historia da arte alema Zeitschrift fiir bildende Kunst publicou uma série de artigos sobre pintura italiana. Levavam a assinatura de um desconhecide estudioso russo, Ivan Lermol- 1. © texto original italiano deste ensaio apa ni (ed), (Torino: Einaudi, 1979) pp. 59-106. O autor esper ‘cou em Crisi della ragione, de A. Gargn Publicar, proximamente, uma nove versio revisada e aumentada da obra. 2. Para o significado de “paradigma” ver Kuhn 1962. As especificagbes € distingoes sugeridas posteriormente pelo mesmo autor (Postscript 1969 in Kuhn 1974:174ss.) no se in cluem em sew parecer. 90 OSIGNO DE RI licff, ¢ tinham sido traduzidos por um alemao também desconhecido, um certo Johannes Schwarze. Os artigos propunham um novo método para uma atribuigdo correta das obras dos velhos mestres, 0 que provocou muitas discussdes ¢ controvérsias entre os arte-historiadores. Anos mais tarde, © autor revelou-se como sendo Giovanni Morelli, um italiano (ambos 0s pscudénimos haviam sido adaptados de sew préprio nome). © “método Morelii” € ainda hoje uma referéncia para 08 arte-historia dores?. Vamos estudar esse método. Diz Morelli que 05 museus estao reple~ to de pinturas erroneamente atribuidas — mesmo considerando que é muito dificil designar-ihes a autoria correta uma vez que muitas nado apresentam quaisquer assinaturas, ou estas foram recobertas por tinta ou, ainda, precariamente restauradas. Portanto, distinguir as cépias das originais (embora imprescindivel) 6 tarefa 4rdua. Para que isso possa ser feito, continua Morelli, nao deveriamos concentrar a atengio nas carac~ teristicas mais Sbvias da pintura, pois estas poderiam ser facilmente imi- tadas — por exemple, tomar-se as ecugiy olhos caracteristicamente voliados para os céus, ou, ent Gas mulheres de Leonards. As invés disso, dove’ iguras centrais de com os ic, OS MOS NOS cONnceniear nos detaihes menores, em especial aqueies que aprosentam menos signi- escola do Ancia no estite tipice de prépri unhas dos dedos, formate das maos ¢ dos pintor. i6bulos de oreiha, tificou 2 oreiha (ou outro detal Botticelli ¢ Cosm: qualquer) pece Pura tai como seria aconirads nos nas cépias. Entio, usando esse métode, ele co: de autorias err feria incipais gs casos foram espeiacuiares: o muscu de E 3. Sobre Moreiti ver primeiramente Wind 1963:52-31, ¢ as fonies que eic mencions Sobre a vida de Morelli ver Ginouthiac 1940; para uma reavaliagio de seu méteds ver Iheita 1973; Zerner 1978, Previtali 1978. Infelizmen: Morelit. Seria interessante analisar, alm: de seus escriios sob cacao cientifica anleno:, 5%. relacionsimento com on com © grande critico lierino itatiuno Frencesce de San: fica. (IMorelit propos U: 8 cadeita de Literatura Latians em Zarieve, ver 7 Sanctis 1938). Sobre o envolvimento politico de Morelli ver mengSes em Spini 1955. Acerca da ressondncia européia de seu trabalho ver correspondeéncia co a Marco Mingbetti, escrita em Basiléia, 0 22 de junno de 1882: °C velho Jacob Burckhardt, 8 quem visite! ontem & not te, fol extremamenic simpatic © insistin em Gear me fazendo companhia durante todo © women bi tempo em que ali permaneci. Ew tante original, tanto em seu comportamento quanto por suas idéias: voce uito dele. Ele fa © om especial dona Laura, gostariat acerca do livro de Lermolielf coma se o conhecesse de core colocou-me uma série de per guntas ~ 0 que me deixou bustante fisonje do, [rei enconted to logo mats, esta manha (Biblioteca Comunale di Bologaa, Archiginnasio, Carteggio Minghelti, XXIII, (54), CHAVES DO MISTERIO: MORELIT FREUD E SHERLOCK HOLMES 91 uma Vénus reclinada, classificada como sendo uma cépia feita por Sasso- ferrato de um trabalho perdido de Ticiano; Morelli identificou-a como um dos raros trabaihos definitivamente atribuide a Giorgione. Apesar desses resultados ~ ¢ talvez devido & seguranca arrogante com que 0s apresentou — 0 método de Morelli foi muito criticado. De- nominaram-no de mecAnico, ou cruamente positivista, ¢ caiu em desgra- ¢a*. Gmbora é quase provével que muitos dos que o rejeitaram injurio- samente o tenham empregado de modo discreto em suas préprias atri- buigdes). Devemos a recente renovagio do interesse por seu trabaiho ac arte-historiador Edgar Wind, que reconsiderou o métode como exemplo de uma abordagem bastante moderna da obra de arte, tendendo para a apreciagao do detalhe mais do que para © todo. Wind (1963:42-44)rela- ciona essa atitude ao cuito da espontancidade do génio, io cotrente nos circulos romanticos®. Isso, porém, por si sé nfo 6 convincents. Morelli nae estava manejando problemas ao nivel da estética (e quo, alids, foi usado contra ele), mas ao um nivel mais basico, préxime da Rlologia’. As implicagées de seu método incidem em outre ambi ricas, embora, como vimos, Wind tenha estado perto de alcazgé-la: ‘© mais . Os livres de Morelli parecem diferentes daque!: tro escritor sobre arte. Esto recheados de ilusiracé: thas, de cuidadosos registros Ge detalnes cara de qual de dedes quais um artisia se revela, do mesmo modo que wie evirnincs: pod Genunciade por uma impressao digital... quaigu da por Morell! comecs & galeria de arte assemeinar a um arquive poli Esta comparacéo ivi brilhantemente d fs toriador italiano, Enrico Castelnuovo (1968:782), que estabelecets uri paraiclo entre os métodos de classificago de Moreiii ¢ os atribuidos 9 Asthur Conan Doyle, poucos anos mais tarde, & sua criagtio fice esenvoivida por um arte 4. Le acordo com Longhi 1967:234, Morelii fo! “menos grandiose” gue ( “ainda que importante”, sugerindo de algun modo que suas “indicaches materiatisias” te param “sew método obscuro & instil do ponto de vista estético”. (Qua criticas come esta ver Contin! 1972:117}. Comparagées desfavoriveis com Cavaleaseiie ‘v- 18 & Fagiolo 1974:97,101 5. Croce (1946:15) crilicou em Morelli “a apreciagio sensuslista dos detathes fora de seus contextos”. ram sugeridas, por exemplo, por M. Fagiolo in Arge 6. Ver Longhi 1967:321: “Morelli ou carece enormemente de senso de qualidade ou, ializado...". Considers-o até enlic, perverteu-o sob o impulso de seu co pento esp. mesmo “inferior e deploravel”. 92 Ost INO DE TRES Sherlock Holmes". © especiatista em arte e © detetive podem muito bem snerecer uma compuragao, cada qual fazendo descobertas a partir de pis- tas, despercebidas por outras: © autor, casos relacionados a crime; 0 ou- tro, pinturas. Os exentplos da habilidade de Sherlock Holmes de inter- pretar pegadas, cinzas de cigarros © outros por menores s&o incontaveis ¢ muito bem conhecidos. Vamos, porém, nos deter em “A Caixa de Pa- pelao” (1892) para uma ilustragdo do achado de Castcinuovo: aqui, Sher- lock atua como se estivesse “morellizando”. Orethas ¢ maos por Botticelli, reproduzide de Pintores halianos, de Morelli, 1892. FRA FILIPPO FILIFPING SIGNORELLI.— BRAMANTINO MANTEGNA GIOVANNI BELT BONIFAZIO _WOTHICELLL Orcthas tipicas, reproduzida de Pintores Italianos. 7. Arnold Hauser (1959) estabelece uma comparacio detetivesco” de Freud ¢ os de Moret CHAVES DO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 93 © caso se inici orelhas a uma inocente senhora. E um bom exemplo do ¢specialista em servigo: com 0 envio de um pacote contendo duas diferentes (Sherlock) olhava com singular interesse o perfil da dama. Por um instante, foi possivel ler na expressdo astuta do detetive, tanto surpresa quanto contenta mento, embora quando a senhora se voltou para averiguar a causa de seu silén- cio, ele jf havia recuperado a impassibilidade habitual. Eu (Watson) pus-me a es- tudar, por minha vez, aqueles cabelos lisos © grisalhos, a touca graciosa, os pe- quenos brincos dourados € as feigdes screnas da mulher, sem, contudo, encontrar algo que justificasse a evidente excitagao de meu amigo. (CARD). Mais adiante, Sherlock explica a Watson (¢ ao leitor) 0 fluxo ilumi- nado de seus pensamentos: Como médico que €, Watson, deve saber que néo existe parte do corpo humano que varie tanto quanto uma oretha. Cada uma tem suas préprias carac- terfsticas e difere de todas as outras. Na Revista Antropoldgica do ano passado, vocé encontrara duas pequenas monografias que escrevi a esse respeito. Assim, examine com um othar de especialista as orethas contidas na caixa ¢ observ talhadamente suas peculiaridades anatémicas. Imagine, pois, minha surpress quando, ao olhar para a S com exatidéo Aquela orelha feminina que eu acabara de inspecionar. Tratava- de algo mais que uma simples coincidéncia, Ali estava o mesmo encurtamento da auricula, a mesma ampla curvatura do ISbulo superior, a mesma circunvolugéo da cartilagem interna. No que cra essencial, tratava-se da mesma orelha. Naturalmente, percebi, de imediato, a enorme importancia dessa obser- vacdo. Era evidente que a vitima tinha com ela uma relagao de parentesco, ¢ pro- vavelmente muito préxima... (CARD)®. ta. Cushing, constatei que sua orelha correspondia 3. Veremos em breve as implicagdes desse paralelismo?. Entremen- tes, vamos desfrutar de outra das provcitosas observagées de Wind. 8. CARD apareceu primeiramente em The Strand Magazine V (jan /jun. 1893). Ba- Fing-Gould (1967:208) nos informa que The Strand publicou alguns meses mais tarde um ar- variedades de oretha humana (Ears: a chapter on”, Strand Magazine tigo an VI, jul./dez. 1893). Para Baring-Gould, € prov: do 0 tratado antropol6gico de Sherlock sobre orelhas. Mas, ao artigo sobre “ore! assinado desta feita por Beckles Wilson (The Strand Magazine fel que © autor tenha sido Conan Doyle, pu- .¢ outro sobre “mas Hl. 1893) €, aparentemente, se tratava do mesmo autor. No entanto, as piiginas ilus lustragOes do trabalho trando os possiveis formatos de orctha tembram irtesistivelmente as de Moreti, @ que confirma, pelo menos. 0 fato de essa idéia estar om civculacao por souela época 9. E bastante possivel que o paratelo seja mais do que uma coincidéncia, Um tio de Conan Doyle, Henry Doyle, pintor ¢ critic de arte, foi empassado Ditetor da Galeria de Arte de Dublin em 1869, Em 1887, Morelli encontrou-se com Henry Doyle ¢ esereveu sobre oa O SIGNO DE TRES Para alguns dos criticos de Morelli, parece estranho “que a personalidade se desvende onde justamente haja menor empenho pessoal”. Quanto a isso, porém, a moderna psicologia certamente daria suporte a Morelli: nossos gestos mais simples ¢ espontancos revelam nosso caréter de modo muito mais auténtico do que qualquer postura formal que componhamos cuidadosamente. (1963:40) “Nossos gestos mais simples ¢ esponténeos” — podemos aqui, sem qualquer hesitagdo, substituir 0 termo geral “moderna psicologia” pelo nome de Sigmund Freud. Os comentérios de Wind sobre Morelli atraf- ram até a atengéo de estudiosos (Hauser, 1959; ver também Spector 1969, Damish 1970 ¢ 1977, e Wolheim 1973) para uma negligenciada pa: sagem de um famoso ensaio de Freud “O Moisés de Michelangelo” (1914). No inicio da segunda segao, Freud escreve: Muito antes de eu ter a oportunidad de ouvir acerca da psicandlise, soube que um critico de arte russo, Ivan Lermolieff, havia provocado uma revolugéo nas galerias de arte da Europa ao questionar a autoria de varias pinturas, ensi- nando a distinguir com seguranga as c6pias dos originais e atsibuindo a outros artistas as obras cuja autoria anterior havia sido desacreditada. Chegou a esses resultados insistindo no fato de que a atencdo deveria sez desviada da impressé: geral e dos principais tragos da pintura pare repousar na signiticancia dos dete jos, em coisas como © desenho das unhas dos dedos, do 1bule de auréoias € outros elementos qu2 um capista de eeuia de forma ber caracteristicn. Fiquei vastante interessado ao saber au édico italiano de nome Morelli, falecido em 1894. A au imiiar, mas que todo artiste ¢ © pseuddnime russe ocullave. # id nd9 Ge averiguacdo encontra-se esireitaments relacionado 4 técnica da psicané Fambém esta 14 acosiumada @ conjecturas coi Ss secreias ov encobertas castir de (ragos menosprezados ou inadvertidas, do refuge, por assim de nossa observacdes (“auch diese ist gewohnt, aus gering geschilizten oder niche bes chteten Ziigen, aus dem Abhubdem ‘refuse’ ~ der Beobachtung, Geheimes Verborgenes zu erraten"). (n.d.: 222) ele a Sir Heney Haya 2 que voeé diz n cespeito de Galeria de Publ cutarmente, ainda mais que em Londres ee tive & grata oportunidade de ‘© extraordinazio Sr. Doyle, que causou-me # melhor impressio possivel... Céus! melhor a Doyle, que outras essous Voce encontraria normalmente como encarregadas das galerins ns Europa?” (British Museum, Add. Ms. 38965, Layard Papers, vol. XXXV c. 120v). E compre vado © conhecimenio de Doyle acerca do métode Morelli (embora este possa ter sido toma- 4o por um historiador da arte) através da edigdo de 1890 do Catslogo de Obras de Arte da Nationa! Gallery da (rlanda, editada por ele © que utiliza o manual de Kugler, 0 que foi evi dadosamente reelaborade por Layard em 1887 sob @ orientagio de Morelli, A primeira edighe traduzida para o inglés da obra de Morelli apareceu em 1883 (ver bibliogratia, Rich- ler 1960). A primeira historia de Sherlock (STUD) foi publicada em 1887. Isso permite « possi lade de que, através de seu tio, Conan Doyle estiveste familiarizada com 0 método CHAVES DO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 95 “O Moisés de Michelangelo” foi publicado primeiro anonimamente: Freud assumiu sua autoria apenas quando o incluiu em suas obras com- pletas. Muitos supuseram que 0 gosto de Morelli por esconder-se atrés de pseud6nimos teria afetado Freud de algum modo e houve mesmo al- gumas tentativas plausiveis de justificar essa coincidéncia (ver Kofman, 1975: 19, 27; Damish 1917: 70ss.; Wolheim 1973: 210). De qualquer mo- do, nao h4 dividas de que, sob a cobertura do anonimato, Freud decla- rou explicitamente, ainda que também de uma mancira velada, a consi- deravel influéncia que Morelli exerceu sobre ele muito antes da desco- berta da psicanilise (“lange bevor ich etwas von der Psychoanalyse héren konnte...”). Confinar essa influéncia apenas ao ensaio “O Moisés de Mi- chelangelo”, ou mesmo aos estudos vinculados a histéria da arte!®, como © fizeram alguns, € reduzir de modo impréprio a importancia do préprio comentério de Freud: “A meu ver, esse método de averiguagéo encon- tra-se estreitamente relacionado a técnica da ps De fato, essa passagem acima mencionada ‘assegura a Giovanni Morelli um lugar es- pecial na hist6ria da psicandlise. Estamos lidando aqui com um vinculo documentado € ndo apenas com uma conjectura como as muitas que se proclamam “antecedentes” ou “precursoras” de Freud. Além do mais, ‘como j4 dissemos, Freud tomou contato com os escritos de Morelli antes mesmo de se dedicar a psicandlise. Temos aqui um elemento que contri- buiu diretamente para a cristalizagdo da psicandlise ¢ nado apenas uma coincidéncia advertida posteriormente, apés suas descobertas (como se deu com a passagem do sonho de J. Popper “Lynkeus”, inserida nas edigdes posteriores de A Interpretagdo dos Sonhos (Freud))" 4, Antes de tentarmos entender 0 que Freud apreendeu de suas lei- turas de Morelli, devemos esclarecer as circunstancias precisas desse en- contro ~ ou melhor, segundo 0 préprio relato de Freud, de dois momen- tos distintos desse encontro: “Muito antes de ter a oportunidade de ouvir acerca da psicandlise, soube que um critico de arte russo, Ivan Lermo- lieff...”"; “Fiquei, entao, bastante interessado ao saber que 0 pscudénimo russo ocultava a identidade de um médico italiano de nome Morelli...”. A data da primeira noticia pode ser estabelecida apenas vagamente. Deve ter sido anterior a 1895 (quando Freud e Breuer publicaram seus Estudos sobre a Histeria) ou em 1896 (quando Freud utilizou pela pri- de Morelli. Mas, seja como for, tal suposigao nao é de todo relevante uma vex que os escri los de Morelli nao eram com certeza 0 Unico veiculo para essas idéias, 10. A nica excesao € propiciada pelo requintado ensaio de Spector, o qual, no enta ia de qualquer relacionamento real entre os métodos de Freud ¢ de Mo: to, exelui a exis relli (1969:82-83). LL. Dois ensaios posteriores de Freud acerea de suas retagbes com “Lynkeus” encon fram-se mencionados em A Interpretacdo dos Sonhos. 96 © SIGNO DE TRES meira vez © termo psicandlise; ver Robert 1966)), ou, ent&o, apés 1883, quando, em dezembro, Freud escreveu a sua noiva uma longa carta so- bre sua “descoberta da arte” durante visita ao Museu de Dresden. Antes disso, ele ndo havia demonstrado qualquer interesse em pintura. Escre- veu, na ocasido: “Abandonei meu filisteismo ¢ passei a admir4-la’"?, E dificil imaginar que antes disso Freud pudesse se ver atraido pelos escri- tos de um historiador de arte; desconhecido € perfeitamente plausivel, no entanto, que, apés essa carta, ele tenha comecado a lé-los — em espe- cial porque a primeira edig&o da coletanea de ensaios de Morelli (Ler- molieff 1880) continha aqueles estudos acerca dos velhos mestres italia- nos dos museus de Munique, Dresdem e Berlim. © segundo encontro de Freud com os escritos de Morelli pode ser datado com maior seguranga, embora ainda assim de modo presumido. © nome real de Ivan Lermolieff tornou-se pablico, pela primeira vez, no cabecalho da tradugao inglesa da colegdo, que saiu em 1883. As edigdes € tradugdes posteriores, a partir de 1891, quando faleceu Morelli, ostenta- vam tanto 0 nome quanto o pseudénimo (Morelli 1883). & possivel que, cedo ou tarde, Freud tenha visto um dos exemplares de qualquer dessas -tdigdes; porém, & mais provavel que ele tenha tomado conhecimento da real identidade de Lermolieff em setembro de 1898, folheando um volu- me em uma livraria de Mildo. Na biblioteca de Freud, que se encontra preservada em Londres, hd uma cépia do livro de Giovanni Morelli (I- van Lermolieff) Della pittura italiana. Studi storico critici — Le gallerie Borghese e Doria Pamphili in Roma, publicado em Milao em 1897, Uma nota na pagina de rosto indica sua aquisigao: Milo 14 de setembro (Trosman e Simmons 1973). A dnica visita de Freud a Miléo se deu no outono de 1898 (Jones 1953). Além do mais, por essa época, 0 livro de Morelli deve ter tido uma grande importancia para Freud. Ele havia es- tado trabalhando ha meses sobre os lapsos de meméria — pouco antes, na Dalmicia, ele havia tido a experiéncia (posteriormente analisada em A Psicopatologia do Cotidiano) de nao conseguir se lembrar do nome do pintor dos afrescos de Orvieto. Juntamente com aquele pintor, Signorel- i, Botticelli e Boltraffio, cujos nomes continuo trocando, encontram-se mencionados no livro de Morelli (Robert 1966; Morelli 1897: 88-89, 159) Mas que significado podem ter tido os livros de Morelli para Freud, ainda jovem, ainda distante da psicandlise? O préprio Freud nos respon- de: a proposigao de um método interpretativo, bascado na apreensao de detalhes marginais ¢ irrelevantes enquanto chaves reveladoras. Segundo 12, Ver Gombrich 1966. [2 curioso que aqui Gombrich nao faga nenhuma mengio do trecho de Freud sobre Mor DO MISTERIO: MORELLI, FREUD 8 SHERLOCK HOLMES 97 cay: esse método, mindicias em geral consideradas triviais ¢ sem importancia, “aquém da atengio”, fornecem a chave para as maiores conquistas de génio humano. A ironia desta passagem retirada do livro de Morelli deve ter deliciado Freud: Meus adversérios se comprazem em classificar-me como alguém que 1 compreende 0 conteddo espiritual de uma obra de arte, ¢ que, conseqiientemen- te, atribui particular importancia a minicias externas tais como a forma das méos, da orelha, ¢ até mesmo, horribile dictu (que espanto!), coisas tio toscas quanto as unhas do dedo. (Morelli 1897: 4), Morelli teria feito bom uso do dito virgiliano to caro a Freud, que © escolheu como epigrafe para A Interpretagdo dos Sonhos: Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo (Se ndo posso submeter as forcas dos Céus, entio, desencadearei as do Inferno)!3. Do ponto de vista de Mo. relli, esses detalhes sao reveladores porque, neles, a submissao do artista as tradigdes culturais cede passo a um trago puramente individual, os de- talhes sendo reproduzidos de certo modo “pela forca do habito, quase inconscientemente” (Morelli, 1897:71). Mais do que pela referencia ao sa €poca’* — 9 que surpreende aqui inconsciente ~ nada excepcional n € © modo como a esséncia mais intima da individualidade do artista é vinculada a elementos que extrapolam o controle consciente. 5. Esbocamos aqui uma analogia entre os métodos de Morelli, de Sherlock ¢ de Freud. Mencionamos a conexao entre Morelli ¢ Sherlock, © entre Morelli e Freud. As semethangas especificas entre as atividades de Sherlock ¢ Freud foram apresentadas por Steven Marcus (1976:x-xi)'5 © Proprio Freud, por sinal, disse a um paciente (0 “Homem-Lobo”) de Seu interesse pelas estérias de Sherlock Holmes. Quando, no entanto, na Primavera de 1913, um seu colega (T. Reig) sugeriu-lhe um paralelo en- tre © método psicanalitico © método sherlockiano, Freud replicou ex Merpretada de vérias 13. A escotha, por Freud, do verso de Virgilio como mote foi manciras: ver Schoenau 1968:61-73. A inlerpretagio mais convincente foi sugerida por F Simon: o significado do mote € que © oculto, a parte invisivel ds realidade mio € menos sig. nificante que aquela visWel. Sobre as possiveis implicagées politicas do verso de Virgilio, 46 ulilizade por Lassale, ver 0 excelente ensaio de Schorske (1980:181-207, em particular 200-03), 14. Ver 0 obituario de Morelli escrito por Richter (Morelli 1897:xvi Par através do habito © “aquelas pistas especificas (descobertas por Morelli)... a8 quais o mestre deixa es quase inconscies 15. Ver ta uma novela injustamente bem sucedida na qual Sherlock « lemente. vém © apéndice bibliograticn ein The Seven Jercent Solution, de N. Meyer, Freud aparccem juntos como petsonagens 98 © SIGNODETRES pressando sua admiracao pela técnica de Morelli com ares de especialis- ta. Em qualquer dos trés casos, mintsculos detathes proporcionam a chave para uma realidade mais profunda, inacessivel por outros métodos. yisses detalhes podem ser sintomas para Froud, ou chaves de mistérios para Sherlock, ou caracteres distintivos de pintura para Morelli (Gardi- ner 1971:146; Reik 1949:24)?°. ‘Como explicariamos essa triplice analogia? H4 uma resposta Sbvia. Freud era médico, Morelli possuia graduagio em medicina ¢ Conan Doyle havia exercido a profissio médica antes de se estabelecer como escritor. Em todos os trés casos, podemos invocar 0 modelo de semistica médica, ou sintomatologia — a disciplina que permite 0 diagnéstico, mesmo quando a doenga nao pode ser diretamente observada, a partir de sintomas ou signos superficiais, quase sempre irrelevantes aos olhos do Icigo... até mesmo do Dr. Watson. (Casualmente, o par Sherlock- ‘Watson, 0 detetive olho-de-lince e 0 obtuso doutor, representa a cisdo de uma Gnica personalidade, a de um professor do jovem Conan Doyle, fa- moso aquele por sua habilidade em matéria de diagnéstico)'’. Mas nao se trata apenas de coincidéncias biogrdficas. No final do século XIX (mais precisamente na década 1870-1880), essa abordagem “semidtica”, paradigma ou modelo baseado na interpretagéo de pistas, conquistou crescente influéncia no campo das ciéncias humanas. Suas raizes, no en- tanto, eram muito mais antigas uw 1. Por mithares de anos, a humanidade viveu de caca. No curso de infindaveis perseguicées, os cag adores aprenderam a reconstituir a aparéncia e os movimentos de scus alvos esquives a partir de seus rastros — pegadas na terra Gmida, estalidos de galhos, estercos, penas € tufos de pélos, odores, marcas na lama, filetes de saliva. Aprende: am a cheirar, a observar, a dar sentido € contexto ao trago mais sutil. Aprenderam a rea- lizar maquinagSes complexas em atimos de segundo, em florestas cerra- das ou perigosas clareiras. Sucessivas geracées de cagadores ampliaram © passaram adiante ¢s- sa heranga de conhecimentos. Nao temos dela nenhuma evidéncia verbal 16, Para uma distingao entre sintomas ¢ signos € pistas ver Segre 1975:33, Sebeok 1976. 17, Ver Barig-Gould 1967:7 (“Two doctors and a detective: Sir Arthur Conan Doyle, John A. Watson MD, and Mr. Sherlock Holmes of Baker Street"), ¢, depois, as referéncias John Bell, 0 médico que inspirow a personagem de Sherlock. Ver também Doyle 1924:25-26, 74.75: CHAVES DO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 99. FRA FILIPPO LIFPI FILIFPINO ANTONIO POLLAIUOLO- BERNARDINO DECONTI GIOVANNI BELLINI COSIMOTURA BRAMANTINO _BOTTICELLL Mos tipicas, reproduzido de Pintores lalianos. que possa ser acrescida aos artefatos e pinturas encontradas nas caver- nas, mas podemos talvez nos apoiar nas lendas populares que, de certo modo, repercutem 0 eco — fantasiado ou distorcido — daquilo que aque- les remotos cagadores j4 sabiam. Trés irmaos (protagonizando uma hist6ria difundida no Oriente Médio entre os quirguizes, tartaros, judeus, turcos € outros povos; Vessclofsky 1886:308-309) encontraram um ho- mem que havia perdido seu camelo (as vezes aparece como sendo um cavalo). Imediatamente, eles 0 descrevem para o homem: 0 animal & branco, cego de um olho, ¢ carrega junto & sela duas bolsas: uma cheia de 6lco ¢ a outra de vinho. Teriam eles 0 visto? Nao, cles nao haviam encontrado © animal pela frente. De imediato, sdo acusados de roubo € levados a julgamento. F 0 momento de gléria para os irmaos: eles pron- tamente demonstram como haviam sido capazes de reconstituir a aparéncia do animal que nunca haviam visto a partir de tragos aparen- temente insignificantes Os trés irmaos, ainda que ndo sejam descritos como cacadores, s: claramente depositarios do tipo de conhecimento ostentado por cagado- res. Seu trago caracteristico é 0 de permitir saitar de fatos aparentemente, insignificantes, que podem ser observados, para uma realidade complexa, a qual, pelo menos diretamente, nao € dada A observagao. E esses fatos pelo observador de modo a proporcionar uma podem ser ordenados iva — em sua versdo mais simples: “alguém passou por 100 O SIGNO DE TRES aqui”. Talvez a prépria idéia de narrativa, em oposigao a encantamento, ‘ou exorcismo ou invocagao (Seppilli 1962), teve origem na comunidade de cacadores, da experiéncia adquirida em interpretar rastros. Obvia- mente, isto € especulagao, mas pode ser reforgado pelo modo com que, até hoje, a linguagem de deciframento de rastros encontra-se baseada em figuras de linguagem — a parte pelo todo, a causa pelo efeito — rela- cionando-se com 0 pélo narrativo da metonimia (como definida em um conhecido ensaio de Jakobson, em Jakobson e Halle 1956:55-87) e ex- cluindo, de modo estrito, o pélo alternativo da metéfora. O cagador pode ter sido 0 primeiro a “contar uma hist6ria” porque apenas cagadores sa- biam como interpretar uma seqUéncia coerente de eventos a partir de obscures (¢ quase imperceptiveis) sinais deixados pela presa. Essa “decifragio” ¢ “Ieitura” dos tracos animais € metaférica. Vale @ pena, porém, tentar entendé-Ias literariamente, como a destilagdo ver- bal de um processo histérico que conduz, embora através de um longo lapso de tempo, a invengao da escrita. O mesmo vinculo aparece sugeri- do na tradigao chinesa que explica as origens da escritura, e que teria si- do inventada por um alto oficial que observara as pegadas de um pissaro nas margens arenosas de um rio (Cazade e Thomas 1977)'*. Mesmo abandonando 0 campo do mito e da hipétese pelo da histéria documen- tada, hd, sem sombra de davidas, supreendentes analogias entre 0 mode- lo dos cagadores que viemos explorando ¢ 0 modelo implicito nos textos divinat6rios mesopotamicos, que datam, pelo menos, do ano 3000 A.C ottéro, 1974). Ambos requerem minucioso exame do real, ainda que corriqueiro, para desvendar os tragos dos eventos 0s quais 0 observador nao pode experenciar diretamente. De um lado, esterco, pegadas, pélos, penas; de outro, visceras de animais, manchas de Sleo na Agua, estrelas, movimentos involuntarios. E fato que © segundo grupo, ao contrario do primeiro, poderia ser ampliado indefinidamente, uma vez que os adivi nhos da Mesopotamia liam signos do futuro em mais ou menos qualquer coisa. A nossos olhos, porém, h4 uma outra diferenga que nos interessa mais: 0 fato de que a adivinhagdo aponta para o futuro, enquanto que a decifragao dos cagadores aponta para o passado, ainda que recente. No mais, em termos de entendimento, a abordagem em cada caso é ba similar, ¢ quanto aos estédios intelectuais — andlise, comparagao, classi ficagdo — sao idénticos, pelo menos teoricamente. De fato, idénticos apenas na teoria: os contextos sociais so ba: tante amente diferentes. Foi no- 18. Ver tumb m Etiemble (1973), onde ele argumenta, de mode convincente ainda que paradoxalmente, que os seres humanos aprendem primeiro a ler e depois a escrever Sobre esse assunto, para uma visio mais abrangente, ver Benjamim 1955, em especial o capi tule sobre CHAVES DO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 101 tado, em especial, que a invengdo da escrita deve ter exercido um Grande impacto na tradigdo adivinhatéria da Mesopotdmia (Bottéro 1974:154ss.). Os deuses mesopotimicos, 4 parte outras prerrogativas di- vinas, tinham 0 poder de se comunicar com seus adoradores através de mensagens escritas — nas estrelas, nos corpos humanos, em qualquer lu- gar ~ © cuja decifragio era tarefa dos adivinhos. (Era essa a idéia que, a0 longo de milhares de anos, configurou a imagem de “‘o livro da natu. reza”). A identificagio e a adivinhagdo pelo ato de decifrar caracteres escritos por meios divinos foram reforgadas na vida real com o cardter pictogrfico, “cuneiforme”, da escrita primitiva; também esta, como a adivinhagao, expressa uma coisa através de outra (Bottéro 1974:157)! Assim também as pegadas representam um animal real que acabou de passar. Comparando com a realidade da pegada, 0 pictograma ja re- Presenta um enorme avango em diregdo a abstracdo intelectual. No en- tanto, a capacidade de pensamento abstrato implicada na introdugio do Pictograma €, por sua vez, ainda pequena, se considerarmos a capacidade que seria necesséria para realizar a transico para a escrita fonética. De fato, elementos pictogréficos e fonéticos sobreviveram conjuntamente na escrita cuneiforme na mesma medida em que, na literatura dos adivinhos mesopotamicos, a gradual intensificagdo da tendéncia a generalizagao, a partir de seus fatos basicos, nao anula a tendéncia de inferir a causa do efeito™. Isso explica também por qué a linguagem adivinhatéria meso- potamica encontrava-se infiltrada de termos técnicos retirados dos ¢6 B08 das leis, bem como a presenga, em seus textos, de fragmentos rela~ cionados com 0 estudo da fisiognomonia ¢ da semiética médica (Bottéro 1974:191-92). Eis que apés uma longa volta retornamos a semistica médica. Nés a encontramos em uma comptexa constelagio de disciplinas (c, natural- mente, termos anacrénicos) com um cardter comum. Fi tentador disti guir entre “pscudociéncias”, como adivinhagao e fisiognomonia, ¢ “cién- a, © explicar essa bizarra contigiiidade cias”, como legislagio © medi 19. Sobre as relagSes entre escrita © adivinhagao na China, ver Grenet 1963, em espe cial 33-38, 20. Refere-se ao tipo de distinguindo-a da simples indugéo. Bottéro, por outro lado, dé destaque aos elementos de. dutivos na adivinhagio mesopotimica (1974:89). Essa definigio simplifica em demasia (no limite da distorcio) a complicada trajetsria que o proprio Boltéra tio bem recoustituiu. A simplificagao parece resultar de uma definicao estreita © sectaria de “ciéncia”, de certo mo. feréacia que Pierce defi como presuntiva ou “abdutiva”, 0 desmentida por sua significante analogia entre adivinhacio © medicina, uma disciplina com um caréter quase nada dedutivo. © paraielo aqui sugerido entre as duas tendéncine din adivinhagto mesopolamica € 0 caréter misto da escrita cuneiforme emerge de migumas das observagies de Bottéro, 102 © SIGNO DE TRES pela grande distancia, em termos de tempo e espago, que nos separam da sociedade que viemos analisando. Essa, porém, seria uma explanagao su- perficial. Havia um campo real comum entre essas forma de conheci- mento da Mesopotamia (se excluirmos a adivinhagio através da inspi ragio, a qual ocorria por meio de possessdo extatica) (Bottéro 1974:890 uma abordagem envolvendo anélise de casos particulares, construida apenas através de tragos, sintomas, alusdes. Assim, os textos legais me- sopotémicos nao apenas arrolavam leis ¢ obrigagées, mas incluiam um conjunto de casos reais (Bottéro 1974:172). Em resumo, podemos falar em um paradigma sintomatico ou adivinhatério que poderia ser orienta- do em direcdo ao passado, ao presente ou ao futuro, dependendo da forma de conhecimento invocada. Em diregdo ao futuro: trata-se de adi vinhago propriamente dita; em direg4o ao passado, presente e futuro: trata-se da ciéncia médica dos sintomas, com seu carter duplo — 0 diagnéstico explicando passado e presente, e 0 prognéstico sugerindo o possivel futuro —; ¢ em diregdo ao passado: trata-se de jurisprudéncia ou conhecimento legal. Mas, a espreita por detras desse modelo sintomitico ou adivinhatério podemos perceber uma atitude, talvez a mais antiga da hist6ria intelectual da raga humana: o cagador rastejando no lodo, exa- minando o rastro de sua presa. 2. © que dissemos até aqui seria suficiente para explicar porque um texto adivinhatério mesopotamico poderia incluir como diagnosticar de um antigo ferimento na cabega a partic de um estrabismo bilateral (Bottéro 1974:192); ou, mais generalizadamente, como 14 teria emergido historicamente um conjunto de disciplinas, todas elas dependentes da decifragdo de variados tipos de signos, de sintomas a escrita. Passando para as civilizagdes da Grécia Antiga, vamos descobrir que esse grupo de disciplinas sofre uma mudanga consider4vel, com o incremento de novas linhas de estudo, como a histéria e a filologia e, com a independéncia novamente adquirida (tanto em termos de contexto social quanto de abordagem teérica), de velhas disciplinas, como a medicina. O corpo, a fala e a histéria encontram-se, pela primeira vez, como objetos de uma investigagao desapaixonada, que, por principio, exclui a possibilidade de intervencdo divina. Este cambio decisivo caracteriza a cultura das metré- poles gregas, da qual somos naturalmente os herdeiros. Nao é tao Sbvio, no entanto, que uma importante parte dessa mudanga tenha sido prota gonizada por um modelo que pode ser considerado como tendo por base © é claramente 0 caso da medicina de Hipécra- sintomas ou chaves*! 21, Ver Diller 1932:14-42, em especial 205s, Sua oposigio entre as obordagens anals. gica © semidtica deve ser corrigida, ia'expretando a Gltima como um “uso empirica” da ana: logia: ver Melandri 1968:25ss. De acordo com Vernant 1978:19, “0 progresso politico, isté. CHAVES DO MISTERIO; MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 103 tes, a qual desvendava seus métodos pela anélise do conceito central do sintoma (sémefon). Os discipulos de Hipécrates argumentavam que so- mente pela observagdo ¢ registro cuidadosos de cada sintoma seria possivel estabelecer as “histérias” precisas de cada doenga, mesmo ‘quando a doenca, enquanto uma entidade, permanecesse inatingivel. Es- sa insisténcia na natureza circunstancial da medicina quase certamente proviria da distingdo (exposta pelo médico pitagérico Alcméon) entre a imediatez ¢ a infalibilidade do conhecimento divino, de um lado, e a na- tureza proviséria e conjectural do conhecimento humano, de outro. Se a realidade nao era diretamente cognoscivel, entdo, implicitamente, o pa- radigma conjectural que estivemos descrevendo era legitimo. De fato, de acordo com os gregos, diversas esferas de atividade estavam nele apoia- das. Médicos, historiadores, politicos, oleiros, cagadores, marinheiros, pescadores ¢ mulheres em geral cram considerados, entre outros, como inscritos nessa vasta 4rea do conhecimento conjectural”. Esse territério (significativamente, dominio da deusa Metis, primeira mulher de Jove, que representava a adivinhagao por meio da 4gua) estava demarcado por termos tais como “conjectura”, ‘“‘julgar pelos signos” (tekmor, tekmatres- thai). Esse paradigma semi6tico, porém, continuou a ser meramente im- plicito; foi inteiramente obscurecido pela teoria do conhecimento de Platao, que foi sustentado em circulos mais influentes ¢ teve maior prestigio™. 3. Partes dos escritos hipocraticos ostentavam, no geral, um tom de~ fensivo, sugerindo que mesmo no século V A.C. a falibilidade dos médi- cos j4 se encontrava sob ataque (Vegetti 1965:143-44). O fato de que es- se embate ainda persistia deve-se, talvez, a que as relagées entre doutor rico, médico, filos6fico e cientifico implica uma ruptura com uma atitude baseada na adivi hago”. Nesta passagem, Vernant parece identifi da; mas, ver p. UL sobre a \r adivinhagéo com adivinhagio inspi Juldade de explicar a coexisténcia, mesmo na Grécia, de ambas as divinacdes, » inspirada © a analitica. Uma depreciagio implicita da sintomatologia de Hipécrates encontra-se sugerida na p. 24 (ver, de qualquer modo, Melandri 1968:251, € so- bretudo Vernant e Détienne 1978), 22, Ver Vegetti 1965:22-23. O fragmento de Aleméon enconte naro Cardini 1958, T:1460s. se editado em ‘Timpa: 23. Acerca disso tudo, ver o rico estudo de Déticane € Vernant (1978). Na edigio ori ginal francesa, as caracteristicas divinal6rias de Metis estio expostas (1043s), mas, com re: feréncia as conexdes entre os varios tipos de conhecimento aqui naga, ver também p. 145-49 (mat wrrolados, bem como divi- \ciros) e p. 270ss.; sobre medicina, ver a partir de p. 297: sobre as relagées entre os seguidores de Hipécrates © Tucidides, ver Vergetti € Diller 1932:22-23. Os elos entre medicina € historiografia podem ser explorados no sentido inverso: ver os estudos sobre “autépsia” registrados por Momigliano (1975:45). A presenga da mu- ther no dominio de Metis encontra-se explorada em Détienne © Vernant 1978, edigao fran- cesa: 20 € 267, ¢ serd onfocada na versio final deste trabalho, 104 © SIGNO DE TRES € paciente (especialmente a incapacidade deste dltimo de checar ou con- trolar as habilidades do primeiro) nao sofreram, em certos aspectos, ne- nhuma alteragao desde os tempos de Hipécrates. O que, sim, mudou nestes iiltimos dois mil ¢ quinhentos anos foi 0 modo como esse debate Passou a ser conduzido, concomitantemente com mudangas em conceitos como “rigor” e “ciéncia”. Aqui, obviamente, a virada se deve a emergén- cia de um novo paradigma cientifico, baseado (e a cla sobrevivendo) na fisica galileana. Mesmo qué a fisica moderna relute em se auto-definir como galileana (ainda que no rejeitando Galileu), € inegével que a im- portancia de Galileu para a ciéncia em geral, tanto do ponto de vista epistemolégico quanto simbélico, permanece inatacdvel (Feyerabend 1971:105ss., € 1975; Rossi 1977:149-50). Agora torna-se claro que nenhuma dessas disciplinas — nem mesmo @ medicina — as quais descrevemos como conjecturais poderia adequar- Se aos critérios de inferéncia cientifica essenciais 4 abordagem de Gali- leu. Elas estavam, acima de tudo, relacionadas com o qualitativo, com a singularidade, com 0 caso ou a situago ou 0 documento enquanto indi- vidualidade, © que significa que sempre haveria um elemento de acaso €m seus resultados: necessitamos apenas pensar na importancia da con- jectura (termo cuja origem latina repousa em adivinhagao)™ para a me- dicina ou para a filologia, sem falar das praticas adivinhat6rias. A ciéncia galileana era completamente diferente; poderia ter adotado 0 dito es- coldstico individuum est ineffabile (nada podemos dizer acerca do indivi- duo). O fato de utilizar a matemitica ¢ 0 método experimental implicou a necessidade de mensurar ¢ repetir os fendmenos, enquanto que uma abordagem individualizada teria invibializado estes dltimos procedimen- ‘0s € permitido o primeiro apenas em parte. Isso tudo explica porque os historiadores nunca conseguiram desenvolver um método galileano. No século XVIII, ao contrério, © novo impulso de métodos arqueolégicos entre os historiadores indicou indirctamente as origens remotas e por longo tempo ocultas da hist6ria no modelo conjectural. Esse fato acerca de suas fontes ndo pode ser camuflado, apesar de seus vinculos bastante estreitos com as ciéncias sociais. A histéria sempre se constituiu em uma 24. © coniector era um profeta ou adivinho sacerdotal. Aqui ¢ em outeas passagens, eu me apoio em Timpanaro 1976, embora, por assim dizer, eu o vire do avesso. Em resumo: lo eu ‘Timpanaro pensa que a psicandlise € muito préxin estou sugerindo que néo apenas a psicanilise mas a maioria das chamadas cigne da magia para ser accila, enqu human ou sociais tem raiz em uma abordagem divinatéria para 4 construgho do conhecimento (ver © deste artigo), A tendéncia individualizante da migica ¢ 0 cardter individual ina € da filologia esto apontados por Timpanaro em The Freu- 2 Gtima par zante das cigncias dam dian Slip. CHAVES DO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 105 ciéncia de tipo particular, fundada irremediavelmente no concreto. Os historiadores nJo podem evitar as referéncias ao passado (explicita ou implicitamente) a0 comparar séries de fendmenos; suas estratégias de descoberta, porém, bem como seus cédigos expressivos, referem-se parti- cularmente a casos particulares, sejam individuos, ou grupos sociais ou sociedades como um todo. Nesse sentido, a hist6ria € como a medicina, que usa as classificages de doengas para analisar a enfermidade espect. ica de um determinado paciente. E como © médico, 0 conhecimento do historiador € indireto, baseado em signos e fragmentos de evidéncias, conjectural. No entanto, © contraste que sugeri € uma hiper-simplificagio. H4 uma entre as disciplinas “conjecturais” — a filologia ¢, em particular, a critica de texto — que se desenvolveu, pelo menos em alguns sentidos, de modo atfpico. Seus objetos foram definidos ao longo de um processo de redugdo dréstica que isolou aquilo considerado relevante. Esse cambio no interior da disciplina resultou de dois fatores significativos: a invengao Primeiro da escrita ¢, depois, da impressdo. Sabemos que a critica de tex- to evoluiu a partir do primeiro, com o registro dos poemas homéricos, ¢ sc desenvolveu ainda mais apés 0 segundo, quando os estudiosos huma- nistas produziram, diligentemente, as primeiras edicdes impressas dos classicos%. A principio, os elementos relacionados com voz e gesto foram descartados como redundantes; posteriormente, as caracteristicas da es- ds pintues Pelando de um modo geral, uma das tendsnci ie 90 alastas da ches fe rte inca (8 * GI plos” séo um exemple odie orem. que confirma 4 rmiportineia a irreprodutibilidade (performances, ado de obras, mss sue mokses de “bexdy art" om “land an), 36, Tudo isso se npcin, & evitente, em Reajamin (1969), que. no entanto, discute ape- nas obras de arte figuralinvas. O enrates uni fo desias — com expec insisténcia na pintura = opse-se & reprodunbitidade dos tex (Devo esta referéncia a Res iste “talseando” seus prépiios trabs 2 is ios em Gilson 1958:93 €, em especial, 95-96, Mas, Gilson trata essa questao como uma diferenca Lane como o do pintor De Chirico to Ture: Wo sugenir, Ua: demonste:: como 4 & fe Gnice de wma dads di ot ots tore a ps de Indo a idéia da individualidade bioI6- enga de hoje no cariter absoluta, pica de proprio artist CHAVES DO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 109 A diferenga de status entre a cépia da pintura e a da literatura expli- ca porque Mancini nao langou mao das técnicas de critica de texto a0 desenvolver seus métodos de pericia, embora ele estivesse estabelecendo uma analogia entre o ato de pintar € ato de escrever (ver uma notagao de Salerno em Mancini 1956-57, II2xxiv, n. 55). Justamente porque come- <4 com essa analogia, ele teve de buscar auxilio em outras disciplinas, as quais ainda estavam em formagao. © primeiro problema de Mancini refere-se A datagdo das pinturas. Para discerni-las, diz cle, € necessdrio se adquirir “uma certa experiéncia em reconhecer a pintura de determinado periodo, como o fazem os anti- quarios ¢ bibliotecdrios com relagao aos textos, de modo que eles podem afirmar a época em que alguma coisa foi escrita” (Mancini 1956-57, 1:134)"”. A alus3o ao reconhecimento de textos quase com certeza se re- fere aos métodos elaborados nesses mesmos anos por Leone Allaci, bi- bliotecdrio no Vaticano ¢ respons4vel pela datagdo de manuscritos gre- Bos € latinos — métodos esses que foram recuperados e desenvolvidos meio século mais tarde por Mabillon, o fundador da palcografia®. Entre- tanto, continua Mancini, “a parte as caracteristicas comuns da €poca, hd as caracterfsticas particulares do individuo”, na mesma medida em que “vemos' que os escritores possuem tragos distintivos”. Portanto, a analo- gia entre a escritura e a pintura se dé, primeiramente, ao nivel geral (o Periodo) ¢ se renova, entdo, na outra ponta da escala (0 individuo). Por esse pardmetro, 0 método protopaleografico de um Allaci no poderia funcionar. Havia por esses anos, porém, uma tentativa solitéria de apli- 37. Ao final da citagio, eu substitui “pidura’ por “seriura™, “escrito”, co- mo requeria 0 contexto, 38. Aqui esto as razées pelas quais sugeri Allaci. Em outra passagem, como mencio- nada aqui, Mancini se refere a “bibliotecarios, em particular no Vaticano”, capazes de datar manuscritos antigos, tanto gregos quanto latinos (1956-57, 1:106). Nenhuma destas passagens figura aa versio reduzida, conhecida como Discorso sulla pittura, que Mancini coneluiy an- tes de 13 de navembro de 1619 (ibid.:x0x; texto do Discorso, 29188.; 4 parte sobre “reconhe- cimento” de pinturas 327-30). Allaci foi nomeado como “escri de 1619 (Odier 1973:129); estudos recentes sobre Allaci estio arrolados em 128-31). Roma, por essa época, no havia ninguém, exceto Allaci, espes 0s € latinos como descreve Mancini. Sobre & importancin das idéins de Allaci acerca da pa no Vaticano em meados izadlo em manuscritos gre- leogratia ver Casamassima 1964:532, que também menciona o vinculo Allaci-Mabillon, em bora piometa maiores referencias em uma continuago que nunca apareceu. Na colegho de cartas de Allaci na Biblioteca do Vaticano née consta nenhuma indicagio de contato com Mancini, mas eles pertenciam, sem nenhume diivida, 20 mesmo cireulo intelectual, come demonstrar as respectivas amizades com G. V. Rossi (ver Pintard 1943). Quanto A amizate de Allaci com Matfeo Barberini, antes que este se tornasse papa (Urbano VIII, de quem At Inci se tornou bibtiotecério), ver Merenti 1982-26, n.1. Mancini, como j& mencior principal médico de Urbano, 110 © SIGNO DE TRES cagdo da andlise & manuscritura pessoal com vistas a novos 1. -pésitos. Mancini, com sua competéncia de médico, mencionando Hipécrates, afirmava que era possivel recuar dos “fatos” para as “impressées” da al- ma, as quais derivavam dos “tragos” caracteristicos dos corpos dos in- dividuos. Por essa razdo, alguns refinados intelectos da época haviam produzido textos afirmando que era possivel revelar 0 intelecto ¢ a men- te de alguém por meio de seu modo pessoal de escrever € de seus ma- nuscritos. Um desses “refinados intelectos” foi, com toda probabilidade, Camillo Baldi, um médico de Bolonha, que incluiu em seu Trattato come da una lettera missiva si conoscano la natura e qualita dello scrittore (Tra- tado sobre como, a partir de uma carta, podemos conhecer a natureza ¢ a qualidade do escritor) um capitulo que ¢, provavelmente, o primeiro ensaio europeu de grafologia. Tem por titulo o capitulo de abertura: “Que significados podemos ler na forma das letras” (nella figura del ca- ratere). O termo aqui empregado para letra & “caractere”, significando a forma da letra como & desenhada por uma caneta no papel (ibid.:107; Baldi 1622:17-18ss.)”. Apesar de suas palavras de louvor, Mancini nao estava interessado _nos esforgos empreendido por essa grafologia nco-nata no sentido de re- ‘constituir as personalidades dos escritores estabelecendo res” (no sentido psicolégico) a partir de seus “ eus “‘caracte- ‘caracteres” (a forma de suas letras). (Novamente as origens do duplo sentido se remetem a um 39. Sobre Baldi, que escreveu também alguns tratados de fisiognomonia ¢ adivi- nhacéo, ver Tronti 1963, que termina citando, com aprovagio, © desdenhoso comentério de Motéri: on peut bien le mettre dans le catalogue de ceux qui ont écrit sur des sujets de néant”. (Podermos muito bem, inclui-lo no rol daqueles que escreveram acerca de nada (N. do T-)) Emm seu Discorso sulla pittura, escrito antes de 13 de novembro de 1619 (ver nota 38), Man- cini disse; “as caracteristicas individuais da manuscritura tém sido estudadas por um nobre espirito. Em um pequeno livrinho muito lido ultimamente, ele tentou demonstrar ¢ analisar as causas dessas caracteristicas, vinculando os modos de escrever A compleixto e hébitos do escritor: um livro raro © requintado, ainda que demasiado curto” 1956-57:306-07. (Eu substi- tui “astratta” (abstrato) por “astresta” (curto) com base no ms. 1698 (60) da Biblioteca da Universidade de Bologna, ¢. 34 £. A identificagao com Baldi sugerida acima apresenta duas Gificuldades: (1) @ primeira edigSo impresta do Trattado de Baldi apareceu em Capri, em 1622, (conseqiientemente, em 1619, ou préximo dessa data, cle néo poderia ser “muito i do”), (2) em seu Discorso, Mancini fala de um “nobre espirito"; em seu Considerazioni, de “juizo Sgil”. Ambas as dificuldades, no entanto, desaparecem quando lemos a adverténcia do editor na primeira edigdo do Trattado de Baldi: “O autor deste pequeoo tratado nio de- sejava publicé-lo; como, porém, um escrivio imprimiu-o sob sua autoria, juntamente com muitas cartas € escritos de virios autores, decidi que seria hovesto revelar a verdade, reesta belecendo # verdadeira autoria”. Mancini, portanto, viu primeiro 0 “pequeno livrinho” pu blicada pelo “escrivio” (nio fui capar de identificd-lo) e, depois, o Trastado de Baldi qual, de todo modo, circulou numa versio manuscrits, ligeiramente diferente da impressa (ver Biblioteca Classense, Ravena, ms. 142, que inclui também outros escritos de Baldi). CHAVES DO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 111 contexto disciplinar originalmente compartilhado). No entanto, ele esta- va perplexo com a hipétese preliminar sobre a qual se achava assentada a nova disciplina, ou seja, a variedade das diferentes manuscrituras ¢ a impossibilidade, portanto, de serem imitadas. Pela identificagdo, na pin- tura, de elementos igualmente impossiveis de serem imitados, cle pode- ria alcancar seu objetivo de distinguir os originais dos falsos, a mao do mestre das de um copista ou discipulo. Dai advém seu conselho de che- car cada pintura para constatar: ‘onde a mao resoluta do mestre pode ser detectada, em especial naquilo que exigiria grande esforgo de imitacdo como nos cabelos, barbas ou olhos. Cachos ¢ ‘ondas de cabelo, se forem perfeitamente reproduzidas, pareceréo por demais elaboradas, ¢ se o copista falhar em bem capté-las, carecerao do traco perfeito da versio do mestre. Essas partes da pintura $40 como os tracos da pena ¢ os flo- reios do texto manunscrito, que precisam do toque certo € resoluto do mestre. 0 mesmo cuidado deve ser tomado com relagéo a tragos particularmente arrojados ‘ou brilhantes, os quais o mestre pincela com uma seguranga que nao pode ser imitada; por exemplo, nas pregas € cintilagées das cortinas que tém mais a ver com a ousadia da imaginacéo do mestre do que com o modo como elas pende- riam na realidade. (Mancini 1956-57:134). Aqui, portanto, o paralelo entre pintura € escritura, que Mancini ja havia estabelecido em vrios contextos, apresenta um novo viés, o qual jé havia sido anteriormente sugerido em um trabalho do arquiteto Filarete (ver secao 6, abaixo), ¢ com o qual Mancini parece nao ter tido contato (Averlino 1972, 1:28)". A analogia encontra-se reforgada pelo uso de termos técnicos, comuns em tratados contemporancos sobre escrita, tais como “firmeza”, “tragado”, “floreios”"'. Também a competigad pela agi- lidade tem a mesma origem: com as novas necessidades burocrdticas, uma méo capaz de uma elegante escritura cursiva deveria ser também répida, se quisesse ter éxito no mercado de copistas*?. m geral, a énfase 40. Ver, no geral, p. 25-28, A passagem encontra-se referida como pressagiando “o método Morelli” in Schlosser 1926, 11.4 41. Ver por exemplo Scalzini (1585:20): “quem esté acostumado a escrever dese je! i _apds breve espago de tempo perde a agilidade ¢ @ firmeza natural de sua miio...”; (1622:84): “.. no se deve acreditar nesses tracados, que eles afirmam em seus trabalhos se- Fem feitos com um simples trago de cancta ¢ muitos Goreios..." e assim por diante. 42. CE Scalzini (1585:77-78): “Se esses colegas que escrevem mansamente, com suas finhas © seus vernizes, fossem teabalhar para algum principe ou lorde, que necessitasse (co- rao ocorre) de 40 o€ 50 longas cartas em quatro horas, quanto tempo ado levariam, por sua grasa, para um trabalho como esse?” (o alvo deste comentirio polémico € fornecido por at guns “convencidos mestres andnimos”, acusados de ensi Jenta e elaborada cancelie- 112. O SIGNO DE TRES que Mancini colocava nos aspectos decorativos € uma evidéncia da cui- dadosa atengao para com as caracterfsticas dos modelos de escrita ma- nual que prevaleciam na Itdlia no fim do século XVI € comego do XVII (Casamassina 1966:75-76). A observagio de como as letras eram forma- das conduziu-o & conclusdo de que 0 toque do mestre poderia ser identi- ficado com maior confianga nas partes da pintura que (1) eram agilmen- te executadas € (2) tendiam a nao ser uma representagao muito fiel da coisa real (detathes de cabelo, drapeados cujas dobras tinham “mais a ver com a ousadia da imaginagao do mestre do que com 0 modo como elas penderiam na realidade”). 5. “Caracteres” (caratteri). O mesmo termo aparece por volta de 1620, com sentido tanto literal quanto analégico, nos escritos do funda- dor da fisica moderna, por um lado, e, dos criadores respectivos da pa- Jeografia, grafologia ¢ pericia, por outro. Naturalmente, é apenas me- taf6rica a relagdo que vincula os “caracteres” insubstanciais que Galitcu, com os olhos do intelecto®, viu no livro da natureza, e aqueles os quais Allacci, Baldi ou Mancini decifraram em papéis, ou pergaminhos ou tclas reais. O uso de termos idénticos, porém, torna mais surpreendente o fato de as disciplinas aqui agrupadas serem tao diversas. Também o valor cientifico delas (no sentido galileano) varia, afastando-se rapidamente dos “aspectos universais” da geometria, passando pelos “aspectos co muns de um periodo” detectados em um escrito, até os “aspectos especi- ficos individuais” de um estilo pictoral ou mesmo de um manuscrito © nivel decrescente de conteddo cientifico reforga o argumento de que a dificuldade real de aplicag’o do modelo galileano reside no grau de relagdo da disciplina com o individuo. A medida que os aspectos se encontram centrados mais € mais no individuo, mais dificil se torna a construgéo de um corpo de conhecimento rigorosamente cientifico. Na- turalmente, a decisdo de ignorar aspectos individuais nao poderia por si mesma garantir que os métodos da matemitica € da fisica, indispensdveis & adogdo do modelo galileano, fossem de fato aplicados; embora, por ou- tro lado, nao poderia exclui-los de todo. 6. Com relagio a este ponto, portanto, ha duas abordagens possi- veis: sacrificar a compreensao do elemento individual de modo a alcan- gar um padrao de generalizacao m: ‘ou menos rigoroso © mais ou me- nos matemitico, ou tentar desenvolver, ainda que experimentalmente, um modelo alternative, baseado em uma compreensao do individual que fosse cientifica (nao obstante deva ser de algum modo claborado). A primeira abordagem foi aplicada pelas ciéncias naturais ¢ sé muito mais 43. "_. este grande livro, que a Natureza deixa aberto acessivel a todo mundo, tem olhos na fronte assim como no cérebro” (cilado e discutida em Raimondi 1974:23-24). CHA VES bO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 1:3 xarde pelas assim chamadas ciéncias humanas ou sociais. O motivo € 5b- A probabilidade de suprimir os aspectos individuais est4 diretamente relacionada com a distancia emocional do observador. Filarete, em uma passagem de seu Trattato di architettura (Tratado de Arquitetura, século XV), apés argumentar que € impossivel se construir dois edificios abso~ lutamente idénticos, uma vez que, apesar da primeira impressao, sempre haverd diferengas de detathes (do mesmo modo que “as fugas dos térta- Parecem € que todos os etiopes s4o negros, mas se voce ros sempre observar inais cuidadesamente, so todos diferentes ao mesmo tempo que semethantes”}, ele acaba por admitir que “hd algumas criaturas que so 140 semelhantes quanto as moscas, formigas, minhocas, sapos e tan- tos peixes, que nda se pede distingui-los entre si” (Averlino 1972:26-27). Portanto, para um arquiteto europeu, as sutis diferengas entre dois ediff cios (europeus) cram importantes, aquelas entre 0s rostos de t4rtaros ou etfopes ndo eram, e uquelas entre duas minhocas ou duas formigas sim- plesmente nao existiam. Um arquiteto tartaro, um etiope especialista em arquitetura ou uma formiga teriam classificado as coisas de modo diver- so. O conhecimento baseado no estabelecimento de distingdes individua- lizantes € sempre antropocéntrico, etnocéntrico € sujeito a outras in- fluéncias especificas. Naturalmente, mesmo animais ou minerais ou plan- tas podem ser examinados em suas propriedades individuais, como, por exemplo, no contexto da adivinhagdo“, especialmente em casos que apresentam anormalidades. (Como é ampiamente conhecido, a teratolo- gia era uma parte importante da divinagdo). Nas primeiras décadas do século XVII, porém, a influéncia do modelo galileano (mesmo quando indireta) levaria ao estudo do tipico mais do que do excepcional, a com- preensao geral do funcionamento da natureza mais do que a divinagao. Em abril de 1625, um bezerro com duas cabegas nasceu nas cercanias de Roma. Esse fato atraiu a atengdo dos naturalistas da Academia Lincei ¢ foi objeto de discussdo nas dependéncias dos jardins do Vaticano por um grupo que incluia Giovanni Faber, secretario da Academia, e Giovanni Ciampoli (ambos, como j4 advertimos, amigos de Galileu), Mancini, 0 Cardeal Agostinho Vegio e o Papa Urbano VIII. A primeira questao era se 0 bezerro de duas cabegas deveria ser contado como dois ou como um Yinico animal. Para os médicos, o trago distingiidor do individuo era o cérebro; para os seguidores de Aristételes 0 coragdo (Lynceo 1651:599 ss.)*5. Como Mancini era 0 Gnico médico presente, podemos concluir que 44. Ver Bottéro 1974:101, embora ele de minerais e vegetais ¢, mesmo, de certo modo, de animais, A presumivel “pobreza formal fibua © uso menos freqiiente, na adiviahacéo, destes mais do que a uma abordagem simplesmente antropocéntrica 45, Estes trechos séo parte de um capitulo de Giovanni Faber, 0 que nio fica claro 114 O SIGNO DE TRES © relat6rio de Faber sobre a opiniaio dos médicos fazia eco As contri buigdes de Mancini. Apesar de seus interesses astrolégicos’, Mancini avaliou 0 caréter especifico do nascimento do monstro nao com 0 objeti- vo de revelar o futuro, mas com a intengio de chegar a uma definigao mais acurada de um individuo normal que, enquanto membro de uma espécie, podia ser considerado perfeitamente reproduzivel. Mancini teria examinado a anatomia do bezerro de duas cabegas com a mesma cuida- dosa atengao que ele habitualmente dedicava as pinturas. Neste ponto, porém, deve cessar a analogia com o perito. De algum modo, uma figura como Mancini representa 0 ponto de contato entre a abordagem divi- natéria (nas atividades dele como diagnosticador ¢ perito) © 0 modelo generalizante (como anatomista ¢ naturalista). Mas, ele também conden- sa as diferengas entre eles. Ao contrério do que pode parecer, a disse- cagdo do bezerro, tao precisamente descrita por Faber, com as delicadas incisdes feitas de modo a revelar os Srgdos internos da criatura (Lynceo 1651:600-27)", foi feita com o objetivo de estabelecer ndo o “cardter” peculiar daquele animal especifico, mas o “cardter comum” (voltando-se da histéria para a hist6ria natural) da espécie como um todo. Foi uma continuagao e um refinamento da tradigao da histéria natural fundada por Aristételes. A vido, simbolizada pelo olho vigilante do lince no em- blema da Academia Lincei de Frederico Cesi, era érgao vital dessas dis- ciplinas, nas quais nao estava permitido 0 olho extrasensorial da ma- temiatica®*. 7. Essas disciplinas aparentemente incluiam as ciéncias humanas ou sociais (como as definiriamos hoje). Isso seria 0 esperado, ainda que fos- se por seu insistente antropocentrismo, 0 qual j4 ilustramos com a ci: tagio grafica de Filarete. Houve, porém, tentativas de aplicagio do mé- todo matematico, mesmo para o estudo dos fendmenos humanos (ver, , “Regras de Craig” 1964). Nao € surpreendente que a primeira € a mais bem sucedida se referisse a aritmética pol ica € tomasse como seus pela informasao do titulo. Ha uma excelente ar lise desse livro, destacando-Ihe @ importan. ‘cia, em Raimondi (1974:25ss). 46, Mancini (1956-1957, 1:107) se refere a um texto de Francesco Giuntino sobre © horoscopo de Diirer. (O editor de porém, Giuniino 1573:265v,) 47. Foi o Papa Urbano em pessoa quem insistiu para que & blicado (Lyneco 165 Vina 1976:139-144. 48, Ver o interessante ensaio de Raimondi (1974), ainda que, de acordo com Wh head, ele tenda a desprezar a oposi “onsiderazioni (1:60, n. 483, no identifica © texto: ver, nto ifusteado fosse pu 599), Sobre o inferesse desse grupo em pinturas de paisagens ver Ca 0 entre os dois paradigmas, 0 abstrato-matematico © 0 eoncreto-deseritivo, Acerca 2 contraste entre a ciéncia classica ¢ a bacor 1975. an ver Kuba CHAVES DO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 115 objetos aquilo de mais predeterminado ~ biologicamente falando ~ das atividades humanas: nascimento, procriagéo © morte. Este foco drasti- camente exclusive permitia a investigagéo rigorosa e, ao mesmo tempo, satisfazia os objetivos militares ou fiscais dos estados absolutistas, cujos interesses, dados os limites de suas operagées, eram integralmente numéricos. Mas, se 0s patronos da nova ciéncia, a estatistica, nao esta- vam interessados nos fatores qualitativos em oposic4o aos quantitativos, ‘0 significava que isso estivesse totalmente fora do universo daquilo que temos chamado de disciplinas conjunturais. Calculos concernentes & probabilidade (como no titulo do classico de Bernoulli A Arte da Conjec- tura (Ars Conjectandi, 1713, péstuma) tentaram dar uma formulagao ma- tematica rigorosa aos mesmos problemas que haviam sido abordados de mancira totalmente diferente pela divinagao”. Contudo, o grupo de ciéncias humanas permaneceu firmemente an- corado no fator qualitativo, inda que com desconforto, especialmente no caso da medicina. Embora tenha havido progressos, scus métodos ainda permanecem incertos € seus resultados imprevisiveis. Textos ta como Um Ensaio sobre a Exatiddo da Medicina, do idedlogo francés Ca- banis, que apareceu por volta do final do século XVIII (Cabanis 1823), admitiam essa falta de rigor, ao mesmo tempo que insistiam em que a medicina, contudo, era cientifica a seu préprio modo. Parece haver duas razées basicas para a auséncia de exatidao na medicina. Em primeiro lu- gar, as descrigdes de enfermidades especificas, adequadas em sua cl ficagdo teérica, n 0 se mostravam necessariamente adequadas na pratica, uma vez que a doenga poderi se manifestar diferentemente em cada pa. cicnte. Em segundo lugar, 0 conhecimento de uma doenga sempre per maneceu indireto ou conjectural. Os segredos do corpo vivo sempre esti- veram, por definigao, fora de alcance. Uma vez morto, obviamente, po- deria ser dissecado, mas como fazer a transigao do cadaver, irreversivel- mente transformado pela morte, para as caracteristicas do individuo vi- vo? (Foucault 1973 ¢ 1977b:192-193)? O reconhecimento dessa dupla di- ficuldade implica inevitavelmente a admissio de que mesmo a eficacia dos procedimentos médicos ndo poderia ser provada. Por ditimo, 0 rigor distintivo das ciéncias naturz is jamais poderia ser obtido na medicina de- vido & incapacidade desta de quantificar (exceto quanto a aspectos pu- ramente auxiliares). A incapacidade de quantificar resulta da impossibi- lidade de eliminar 0 qualitativo, o individual, ¢ a impossibilidade de e! mina (0 do individual, por sua vez, resulta do fato de 0 olho humano ser muito mais sensivel as diferengas, mesmos as mais sutis, entre seres hu- 49. Sobre essa matéria, aqui apenas esbocada, ver 0 excelente livro de Hacking (1975). 1978. Também vale n pena ver Ferrian ne © SIGNO DETRES manos do que entre pedras ou folhas. As discussdes sobre a “inexatidao” da medicina promoveu as primitivas formulagdes daquilo que viria a ser 0 problema epistemolégico central nas ciéncias humanas. 8. Nas entrelinhas do livro de Cabanis transparece uma impaciéncia que & compreensivel. Apesar das objegdes mais ou menos justificadas que podem ser fcitas a seu método, a medicina permanece sendo uma ciéncia com total reconhecimento social. Mas nem todas as disciplinas conjecturais se dio to bem nesse periodo. Algumas, como a pericia, de origem bastante recente, ostentam uma posigdo ambigua, nos limites das disciplinas reconhecidas. Outras, mais comprometidas com a pratica co- tidiana, foram mantidas de fora. A habilidade de predizer a doenga de um cavalo a partir do estado de scus cascos, uma tempestade iminente a partir de uma alteragdo do vento ou intengdes hostis a partir de uma ex- pressdo sombria no rosto de aiguém ndo poderia, com certeza, ser aprendida em tratados sobre cuidados com cavalos, ou sobre 0 tempo ou sobre psicologia. Em cada um dos casos, esse tipo de conhecimento seria mais profundo do que qualquer documento escrito sobre o assunto; foi aprendido nao nos livros mas de ouvir, de fazer ou de observar; sua na- tureza sutil muito dificilmente poderia encontrar uma expressao formal nem mesmo poderia ser reduzido a palavras: trata-se da heranga — em parte comum, em parte diferenciada — de homens € mulheres de qual- quer classe. Um fio consistente conecta entre si esses modos de conhe- cimento: todos nascem da experiéncia, do concreto ¢ do individual. Essa qualidade concreta era tanto a forga quanto o limite desse Lipo de co- necimento; ele nao poderia fazer uso da ferramenta, terrivel ¢ podero- , da abstragdo (ver também Ginzburg 1980). De tempos em tempos, foram feitas tentativas de registrar algo des- se saber, enraizado, localmente, mas sem origem, ou registro ou historia conhecidos®, de modo a encerré-lo na camisa-de-forcga da precisio ter- minolégica. Isso, em geral, acabou por constrangé-lo © empobrecé-lo. Basta apenas pensar no abismo que separa os rigidos e esquematicos tr tados de fisiognomonia da pratica perceptiva e flexivel de um amante, ou de um tratador de cavalos ou de um jogador de cartas. Talvez tenha sido apenas na medicina que a codificagao ¢ 0 registro do saber conjectural produziu um enriquecimento real, embora a histéria da re medicina offi lagio entre a i ¢ a popular ainda esteja para ser escrita. Ao longo do século XVIII, a situacdo mudou. Por meio de uma verdadcira ofeasiva cultural, a burguesia se apropriou cada vez. mais do saber tradicional dos 50. Aqui retamo, embora com sentido bastante diverso, alguns pontos ja considerados por Foucault (1977b:167-169) CHAVES DO MISTERI MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLME: artesdos € camponeses, saber esse, em parte, conjectural. A burgucsia organizou-o e registrou-o, a0 mesmo tempo que intensificou 0 processo massivo de invasdo cultural que j4 se havia iniciado, embora sob diferen- tes formas e com diferentes contetidos, durante a Contra Reforma. O simbolo eo instrumento decisivo dessa ofensiva foi, naturalmente, a En- cyclopédie francesa. Mas, deveriamos também analisar esses pequenos porém reveladores incidentes do mesmo modo que um Winckelmann, provavelmente at6nito, ouviu de um andnimo pedreiro romano que a pequena e misteriosa pedra nao identificada, escondida na mao de uma estétua descoberta em Porto d’Anzio, era “‘a tampa ou a rolha de uma saena garrafa”’ A colegao sistemética de tais “pequenos achados”, como os chamou Winckelmann™, foi a base de novas formulagdes de conhecimento arcai- co durante os séculos XVIII ¢ XIX, da culinéria a hidrologia ¢ a ciéncia veterindria. Para um crescente ndmero de leitores, 0 acesso a experi cia especifica se fez cada vez mais através das paginas dos livros. A novela forneccu & burguesia um substituto, ainda que em nivel diferente, para 0 ritos iniciatérios, ou seja, para 0 acesso a experiéncia real como um todo®, E, mais ainda, foi gragas aos trabathos de ficcio que o paradigma conjectural teve um novo ¢ inesperado sucesso nesse periodo. 9. Vinculada a essa origem hipotética do conjectural no seio de re- motos cacadores, jf mencionamos a histéria dos trés irmaos que, inter- pretando uma série de rastros, reconstituiram a aparéncia de um animal que nunca haviam visto. Essa histéria apareceu pela primeira vez em uma coletanea de Sercambi (Cerulli 1975)°. Em seguida, reapareceu na abertura de uma colecdo ainda mais extensa de histérias, apresentada como tradugées italianas do pers: por um arménio chamado Christo- pher, vindo para Veneza em meados do século XVI, sob 0 titulo Peregri- naggio di tre giovani figliuoli del re di Serendippo (Peregrinacées dos irés jovens filhos do rei de Serendippo). Este livro mereceu indmeras edi tradugdes — primeiro na Alemanha; depois, acompanhando o gosto do século XVIII pelas coisas orientais, em edigécs nas principais linguas cu- 51. Ver Winckelmann 1954, 11:316 (carta de 30 de abi Roma) © nots na p. 498. Os “pequenos achados” sao E34 de 1763 4G. 1, Bianconi, em ncionados em Winckelmann 1952, 52, Isto vale ndo apenas para romances sobre a formagio € o desenvolvimento do per sonagem ("‘Bildungsromanen”). Desse ponto de vista o romance & « sucessora efetiva da (4 ‘ula. Ver Propp 1946, 53. Sobre Sercambi ver pp. 347ss. Q artigo de Cerulli acerca das origens e difusto das Peregrinacées deve ser completado com aquito que se conhece das origens orientais da est6~ ria € seus efeitos indirctos posteriores (por meio de Zadig) nas estérias de detetive 118, © SIGNO DE TRES ropéias¥.O sucesso da histéria dos filhos do rei Serendippo levou Ho- racio Walpole a cunhar, em 1745, © termo “serendipicidade”, significan- do com cle a possibilidade de se realizar ditosas ¢ inesperadas descober- tas, favorecidas “pelo acaso € pela sagacidade” (Hecksher 1974:130-11)°. , Voltaire, no terceiro capitulo de Zadig, retrabalhou 0 primeiro volume de Peregrinagdes, que ele havia lido na tradugdo france- sa. Em sua versdo, 0 camelo da histéria original € substituido por uma cadela ¢ um cavalo, os quais Zadig € capaz de descrever em detalhes de- cifrando-Ihes os rastros. Acusado de ladrao e levado imediatamente inte dos juizes, Zadig prova sua inocéncia relatando 0 processo mental Alguns anos ant que o habilitou a descrever os animais sem nunca té-los visto antes: Vi na areia os rastros de uma animal e conclui, sem dificuldade, tratar-se de um pe ho. As marcas estriadas que ficaram impressas nos monticu- Jos de arcia, entre as pegadas, me indicaram que se tratava de uma fémea com as tetas penduradas e que, portanto, acabara de dar nascimento a uma ninhada.. weno chozil Nestas linha , € nas que se seguiram, repousa o embrido das hist- rias de detetive. Elas inspiram diretamente Poe e Gaboriau e talvez, in- diretamente, Conan Doyle. © extraordindrio sucesso das hist6rias de detetive é por todos reco- nhecido © pretendemos retomar alguns dos motives desse éxito. Por ora, vale a pena frisar que elas estdo fundadas em um modelo cognitive que 6, a0 mesmo tempo, muito antigo € muito novo. Ja apresentamos suas ratzes remotas. Quanto a s us elementos modernos, devemos mencionar © clogio de Curvier, em 1834, acerca dos métodos e sucé ciéncia da paleontologia: os da nova Hoje em dia, quem vé a marca impressa de um asco bipartido pode con- cluir que 0 animal que a deixou foi um ruminante, ¢ essa conclusao é tao certeira quanto qualquer outra referente a fisica ou ética. Esse simples rastro, por ou- tro lado, informa 0 observador acerca do tipo de dentadura, 0 tipo de queixada, a 54. Cerulli menciona tradugées para 0 alemio, o francés, 0 inglés (do francés) e 0 di- namarqués (de alemio). Essa lista deve ter sido confrontada ¢ talvez ampliada em um liveo que nao tive a oportunidade de ver (Reme dugées. (Ver Heckscher 1974:131, n_ 46). 1965) cujas pp. 184.90 relacionam edigies € tra 55. Isto representa um desenvolvimento da idéia apresentada em Heckscher 1967:245, 1h. 11, Esses dots artigos de Heckscher s4o extremamente ricos em idéias © referéneias; exa minam as origens do método de Aby Warburg de um ponto de vista que se aproxima do meu, neste ensaio. Para uma versio futura, pretendo seguir a trilha leibniziana sugerida por Heckscher. 56. Ver lagbes ent geval, Messac 1929 (exc lente, embora jé um pouco ultrapassado). Sobre Zadig © as Peregrinagées ver pp. 175s. € também pp. 213-12. CHAVES DO MISTERIO: MORELLI, FREUD E SHERLOCK HOLMES 119 anca, 0 lombo ¢ a pelve do animal que © deixou: € uma evidéncia mais segura do que todas as pistas de Zadig (Messac 1929:34-35). Talvez. mais segura, mas, por certo, de semethante natureza. O no- me de Zadig teve tal permanéncia que, em 1880, Thomas Huxley, em uma série de conferéncias destinadas a divulgar as descobertas de Dar- win, definiu como “método Zadig” 0 procedimento comum & histéria, arqueologia, geologia, astronomia fisica ¢ paleontologia: ou seja, a for- mulacéo de prognésticos retrospectivos. Aquelas disciplinas, sendo pro- fundamente comprometidas com 0 desenvolvimento histérico, dificil- mente podcriam evitar 0 retrocesso ao modelo conjectural ou divinatério (Huxley, inclusive, fez referéncia explicita A divinagéo dirccionada para 0 passado)”, colocando de lado o paradigma galileano. Quando as causas Jo podem ser repetidas, nao ha alternativa que inferi-las de seus efei tos. m1 1. Esta investigagao pode ser comparada ao ato de seguir os fios em um tear. Chegamos ao ponto no qual cles podem ser observados com- pondo um todo, um tecido homogénco ¢ estreitamente urdido. Para che- car a cocréncia do padrao, percorremos com o olhar as diferentes linhas. Verticalmente, isso nos fornece a seqiiéncia Serendippo ~ Zadig ~- Poe — Gaboriau — Conan Doyle. Ho: ta pelo critico literario Dubos, no comego do século XVIII, ~ obede- zontalmente, temos a justaposigao fei cendo a uma ordem de confiabilidade decrescente —, da medicina, da pericia ¢ da identificagao através de manuscrito (Dubos 1729, 11:362-35 parcialmente mencionado em Zerner 1978:215n.). Por fim, diagonalmen- te, temos a passagem de um contexto hist6rico a outro, as costas do dete- tive-heréi de Gabor um “territério desconhecido, coberto de neve”, marcado por rastros de , Monsieur Lecog, que percorreu sem di nso criminosos, semelhante a “uma vasta pagina branca na qual as pessoas 9 86 pegadas e vestigios de movimen- por quem procuramos deixaram n: to como tamb: m as marcas de scus mais intimos pensamentos, as espe~ 57. Ver Huxley 1881:128-148, (Esta foi uma conferéncia proferida no ano anterior. Voltei minha atengéo para isto a partir de uma referéncia encontrada em Messac 1929). Na p. 132, Huxley afirma que “mesmo tomando a ‘adivinhagio’ em seu sentido estrito, € Sbvio ide que a esséncia da operacso profética nao re n suas relagées relrospectivas ou futurist cas com 0 curso do tempo, mas no fato de que se trata de uma apreensio daquilo que st caliza fora da esfera do conhecimento do profeta, medi 0; a visio daquilo que, para o sentido natural invisivel”. Ver também Gombrich 1969:35ss. 120 © SIGNO DETRES rangas ¢ temores pelos quais so impulsionados” (Gaboriau 1877, £44)™. Sobressacm-se os autores de tratados sobre fisiognomonia, os videntes babildnicos tentando ler as mensagens escritas nos céus ¢ terras € os ca- adores neoliticos. © tecido € © paradigma com o qual fizemos a sintese dessa retros- pectiva, retirada de varios contextos: da caga, da divinacio, conjectural ou semidtico. Estes ndo sdo, obviamente, sinénimos, mas descrigdes al- ternativas as quais, sem embargo, remetem retrospectivamente a um modelo epistemolégico comum, elaborado para um certo niimero de dis- iplinas, elas préprias frequentemente interligadas por métodos tomados por empréstimo ou palavras-chave. Agora, entre os séculos XVIII e XIX, ‘com © surgimento das “ciéncias humanas”, a constelacdo de disciplinas conjecturais mudou profundamente: apareceram novas estrelas que (co- ‘mo a frenologia)® logo se apagaram ou que (como a paleontologia) vi- riam a adquirir grande brilho; foi, no entanto, a medicina que confirmou seu elevado estatuto social e cientifico. Passou a ser ponto de referéncia, explicito ou por via indireta, de todas as ciéncias humanas. Mas, qual rea da medicina? Por volta de meados do século XVIII, duas alternati- vas tornaram-se visiveis: 0 modelo anatémico e o semidtico. A metéfora da “anatomia da sociedade civil”, empregado por Marx em um texto cri- tico®, expressa a aspiragao a um sistema de conhecimento (em uma épo- ca na qual o dltimo grande sistema filoséfico — © hegeliano ~ j4 se havia desintegrado). Em que pese o grande sucesso do marxismo, porém, as ciéncias humanas acabaram, mais e mais, aceitando (com uma grande excegdo & qual nos referiremos) © paradigma conjectural da semiética, E aqui retornamos A Triade Morelli ~ Freud ~ Conan Doyie, por onde comegamos. 2. Até o momento, temos utili ado © termo paradigma conjectural (c suas variagdes) de modo bastante amplo. Agora, vamos esmiugé-lo em partes. Uma coisa é analisar pegadas, estrelas, fezes (animais ou huma- nas), catarros, cérneas, pulsagées, campos recobertos de neve ou cinzas cafdai de cigarros ; outra, analisar escrita ou pintura ou discurso. A dis- tingdo entre natureza (viva ou inanimada) ¢ cultura é fundamental, por 58. Na p. 25, # “teoria vigorosa” ive Gévrol, que pode ver ¢, portanto, se arrisea a no ver nada, do jovem Lecog 6 contraposta 4 “pritica veiustie” «to 0 de “campeao da po ivista” (p. 20), que se detém diante 59. Sobre 0 duradouro apoio popular a frenologia na Inglaterra (quando a ciéneia oficial a desprezava) ver Giustino 1975), 60. “Minha pesquisa chega & concluso... que a anatomi a” (Marg, Preficio 1859 de Para a eritica da Eco da sociedade civil deve ser pensada em (ermos de Economia Pol namie Politica).

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