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A IMAGEM RELIGIOSA NO BRASIL Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira (Original do texto publicado no Catiilogo da Mostra do Redescobrimento / Arte Barroca. Sio Paulo: Associagdo Brasil 500 anos/ Artes Visuais, 2000) A IMAGEM RELIGIOSA NA TRADICAO CRISTA E SEU EMPREGO NA ERA BARROCA ‘Ovlisov dev imagens’ sagradas’ como Suporte do culto'réligioso; oficial ou doméstico, é universal. Confeccionadas nas mais variadas formas e materiais e cumprindo fungdes diversificadas para atender todos os tipos de necessidade do ser humano, sua presenga é atestada em diferentes culturas desde épocas ricas distinguem trés categorias basicas de imagens: remotas. De um modo geral, as principais religides as representagdes de deuses e divindades que personificam 0 sagrado pela propria natureza, as de seres intermediarios, como anjos € génios, que dele participam de formas diversas, e as de homens ¢ mulheres excepcionais, propostos como modelos ow intercessores, como os bodhisattvas do budismo ¢ os santos cristios. ‘As comunidades cristis primitivas, inseridas no contexto cultural classico, rejeitaram inicialmente figuragBes antropomérticas de imagens sagradas, ¢ em particular as do Cristo feito Homem, para distingui-se das crengas pagis greco-romanas, cujos deuses eam assim representados. Foi somente a partir do Século 111 que comegaram a aparecer cenas biblicas nas catacumbas, estendidas as igrejas no século seguinte, com a oficializago da Religifo Crist’ em 313 pelo imperador Constantino. Desde entdo essas representagdes passam a incluir episédios do Novo Testamento e cenas da vida do Cristo ¢ da Virgem Maria, bem como dos primeiros santos da era crista. Os primeiros santos do cristianismo foram os mértires das grandes perseguigdes do Império Romano, cultuados de forma esponténea nos locais em que haviam sido supliciados e naqueles para onde haviam sido transladados os despojos de seus corpos, venerados como reliquias. Quando a nova religido saiu da clandestinidade, 0 culto dos santos estendeu-se A categoria dos chamados confessores, incluindo eremitas, religiosos e bispos que haviam dado “testemunho da fé” sem efusio de sangue. A “santidade” era estabelecida por reconhecimento técito dos figis ou por aclamagao, e ratificada pelo bispo da diocese, sem maiores formalidades. Esse sistema de canonizagto informal perdurou durante toda a Idade Média, dando origem a um grande nimero de santos ligados as tradigbes locais de diferentes regides da Europa, cuja realidade histérica frequentemente se mesclava com eventos fantasticos e inverossimeis, como os relatados St na Lenda dourada do dominican Jacques de Voragine, que teve grande influéncia na arte religiosa.' A pattir do século XII, com o fim de evitar abusos e limitar exageros e inexatiddes, 0 reconhecimento oficial dos santos para culto publico nas igrejas passa a ser de competéncia exclusiva dos papas, através dos processos de beatificagao e canonizagio, para que 0 candidato pudesse ser testado com bases seguras, tanto pelo exercicio em alto grau das virtudes teologais e cardinais? quanto pela realizagdo de milagres que Ts q pel ménias de grande solenidade ne atestassem sua relago com o sobrenatural. Ambos terminavam com cer Basilica de Sdo Pedro, em Roma, que atingiram extraordinério fausto na época barroca. Nas canonizagdes eram estabelecidas as linhas gerais da iconografia do novo santo, que definia os itando sua identificagdo nas representagdes artisticas. Além da auréola ou aspectos particulars, possibi nimbo comuns a todos 0s santos, atributos de uso geral, como a palma do mattirio, 0 livro € o lirio, permitiam seu reconhecimento dentro de uma classe, notadamente as dos mértires, confessores, doutores da igreja e virgens (para as mulheres), enquanto os atributos especificos revelavam sua individualidade. A multiplicagao de imagens em escultura, pintura, vitrais ¢ mosaicos nos locais do culto crist4o a0 longo da era medieval suscitou reagées iconoclastas, entre as quais a de maior gravidade foi a que sacudiu o 10s. A posi¢do oficial assumida pela Oriente cristo no século VIII em torno da questo dos fcones bizant Igreja no II Concilio de Nicéia, convocado em 787, foi, nessa e em outras ocasides semelhantes, de decisiva jidade do culto das imagens, baseada na tradi¢do herdada da era apostélica nos primérdios defesa da leg do Cristianismo. Essa legitimagio ancorava-se na tripla fungio que Ihes era reconhecida pelos tedlogos, “de reavivar a meméria dos fatos histéricos, estimular a imitagdo dos personagens representados permitir sua veneragdo”.? Cinco séculos mais tarde o tom era ainda o mesmo, conforme se vé na seguinte passagem de ‘Sao Boaventura: ‘As imagens nfo foram introduzidas na Igrsja sem causa razoivel, Ela derivam de trés causas: a incultura dos fe frouxidfo dos afetos e a impermanéncia da meméria. Elas foram inventadas em razAo da incultura {que no podendo ler o texto escrito utilizam as esculturas e pinturas como se fossem livros para térios de nossa fé, Da mesma forma, elas foram introduzidas em fungio da frouxidto dos 6 estimulada pelos gestos do Cristo recebidos por intermédio dos savidoe sejam provocados pela contemplacto dos olhos do corpo em sua presenga nas escultuas e pinturas, ina realidade o que se vé estimula mais os afetos do que 0 que se ouve ... Finalmente por causa da J que o que se ouve é mais facilmente esquecido do que o que se v8 ». Assim, ara que vendo-as nos lembremos das gragas simples, dos simples, se instruir nos afetos para que aqueles cuja devogto nfo Ji que Jmpermanéncia da meméria, por um dom divino, as imagens foram exeeutadas nas igreas p {ue recebemos e das obras Virtuosas dos santos. * Frei Boaventura escreveu este texto por volta de 1260, em um dos momentos de maior gléria da “tempo das catedrais géticas", chamadas de “biblias dos pobres” pela sua woria da arte crist®, 0 preocupaglo diditca de tudo ensinar através de representagbes visuais: a histéria do mundo desde a criagdo os dogmas da fé eristd, variedade das ciéncias, artes e oficios. a exemplaridade das vidas dos santos, a hierarquia das virtudes ¢ até mesmo a 5 Do gosto pelas sistematizagdes e conceituagdes, nesse século XIII ue viu o nascimento da Suma Teolégica de Santo Tomés de Aquino o desenvolvimento das universidades, resulta a distingdo das diferentes modalidades do culto rendido as imagens, retomada na época da Contra- Reforma: larria para as representagBes do Cristo e das Trés Pessoas da Santissima Trindade, hiperdulia para as de sua mae, a Virgem Maria, e dulia para os santos de um modo geral. A Reforma protestante de Lutero, no século XVI — com sua énfase no texto escrito da Biblia, em detrimento das representagdes visuais, € na justificagao pela graga divina, em detrimento da participagao ativa dos homens -, trouxe em seu bojo uma nova crise iconoclasta, de conseqiiéncias funestas para a arte religiosa nos paises que aderiram ao movimento, principalmente a Alemanha e a Inglaterra, onde ocorreram destruig6es sistematicas de imagens. Emile Male demonstrou, em um livro classico sobre o assunto, como @ arte religiosa comandada pela Igreja da Contra-Reforma constituiu em grande parte uma reaco as teses lade do culto as imagens na liturgia catélica e defendendo protestantes, reafirmando a legiti particularmente as representagdes das que haviam sido negadas de forma especifica, como a Virgem Maria, 0s santos, 0 papado, os Sacramentos e as obras de misericérdia.° lio de Trento, realizada nos dias 3 € 4 de dezembro de 1563, que os Foi na dltima sesso do Con: cardeais de Roma definiram as regras sobre o tema da “invocagio e veneragao das Santas Imagens”. No texto oficial do decreto so retomadas as teses do II Concilio de Nicéia, acompanhadas de algumas precisdes comandadas pelos novos tempos, como a énfase na necessidade de prédicas freqlientes, destinadas a esclarecer sua fungdo e evitar abusos e 0 controle dos bispos diocesanos, de cuja aprovagdo passam a depender as novas imagens a serem colocadas nas igrejas.” AS ESCULTURAS DEVOCIONAIS NA EPOCA BARROCA. ‘A reafirmagao enfitica da tradigfo do culto as imagens, assumida oficialmente pela Igreja da Contra- de uma nova era na arte religiosa nos paises cat6licos, marcada por uma série de Reforma, detonou 0 escritos tedricos sobre 0 tema ¢ uma extraordinéria produgdo de obras ao longo dos séculos XVII e XVIII, ngiu também as coldnias da América, Africa ¢ Asia, integradas ao universo cultural europeu pelas que grandes navegagdes. Reconhecidas como intermediéirias visuais mais eficazes do que os textos escritos, as imagens se multiplicam para atender & demanda da prética devocional, particularmente as representagdes da Virgem Maria, dos anjos ¢ dos santos, cuja fungo medianeira havia sido enfatizada em oposigdo as teses protestantes, Preconizado nos livros de piedade da época, a exemplo dos Exercicios Espirituais de Santo Inacio de do em norma de devogdo, estimulando em 1 o principio enfatizado por Loiola, o ideal de “identificagao com os santos” é ¢! conseqiléneia o naturalismo das imagens para maior apelo visual, conform Wemer Weisbach: yo terreno, se aproxima Dentro de las artes plisticas se acortan cada vez mas las distancias entre lo celest Jo divino a lo humano con toda clase de ingeniosidades,arificios y recursos naturalists y ilusionifas Pars que alas gentes de tipo medio les sea facil y eSmoda la posibilidad de dentificacion con lo Santo [-] Foram as representagSes escultéricas que traduziram de forma mais adequada este ideal de identificagdo, pela sua maior capacidade de sugestio de “figuragées vivas”, passiveis de serem percebidas ¢ tocadas em sua realidade corpérea tridimensional. Pelo fato de a acentuagao do realismo exigir naturalmente ‘© complemento da policromia, depreende-se que tenha sido a madeira, e nflo 0 marmore, © material por exceléncia da imaginaria devocional da época barroca. Entretanto, essa regra niio se aplica @ Italia, © particularmente & cidade de Roma, onde a tradigao clissica do emprego do marmore na estatuaria prevalecendo nos séculos XVII e XVIII, aliada a da utilizagao preferencial de pinturas para exposigo n continuou 10s retébulos. Apesar de seu inegavel apelo simbélico na expresso retérica do dogma cristéio, essas esculturas religiosas monumentalizadas pelo marmore, de poderoso efeito ornamental na complementacdo dos ambientes arquitet6nicos do barroco italiano, raramente suscitam priticas devocionais. A verdadeira patria da escultura devocional barroca foi a Espanha, territdrio de predilegao da Contra- Reforma catélica, que nele encontrou simultaneamente seus mais audaciosos defensores, na figura dos jesuitas e seus maiores misticos, personificados em Santa Teresa de Avila ¢ So Jodo da Cruz. Os principais centros produtores foram Valladolid, onde viveu ¢ atuou Gregorio Fernandez (1576-1636), e as cidades andaluzas de Sevilha e Granada, dos escultores Juan Martinez Montafés (1568-1649), Alonso Cano (1601-1667) ¢ Pedro de Mena (1628-1688). © estilo pessoal de Gregorio Femnéndez, de um realismo atormentado, principalmente nas representagdes de temas da Paixio do Cristo, exerceu enorme influéncia em outros artistas, que tomaram freqlentemente suas imagens como modelo, O mesmo se dev com Montaiiés, mais sdbrio e concentrado, icos de unido com Deus, mas de extraordindria intensidade nas representagdes de estados m particularmente sensiveis nos santos penitentes, como 0 So Jerénimo do Mosteiro de Santo Isidro do ‘Campo, Sua influéncia pode ser detectada na melhor produgao de Pedro de Mena, a exemplo da excepeional Madalena do Museu de Valladolid. Quanto a Alonso Cano, merecem especial referencia suas representagdes m e em particular a série de Imaculadas, que tem na graciosa imagem da sacristia da Catedral d da Virge Granada seu principal expoente. Comparativamente as espanholas, as esculturas devocionais portuguesas distinguem-se por uma maior sobriedade e serenidade, tidas egmo cargcter(sticas tipicamente lusitanas. Acrescente-se uma certa melancolia, sensivel até mesmpp pp obja ay uy) ¢seulig wapsplantado como Manuel Pereira (1588-1683), gue viveu a maior parte ge aun vine we figpamhe. Mais apetibades np siglo XVI, esses aspectos marcam tanto a produsio do artista beneditino frei Cipriano da Cruz (c. 1645-1716), da regido de Braga, no Norte do pais, quanto a dos escultores de Alcobaga, na regido de Lisboa. O século XVIII seré marcado por uma maior diversificagdo regional, na esteira das duas principais escolas de Lisboa ¢ do Porto, cuja produgao foi grandemente estimulada pelo aumento das exportagdes para a Colonia brasileira nesse periodo, A Igreja Catdlica, em todas as suas instncias administrativas, foi evidentemente a principal cliente da encomenda, No topo da pirdmide, 0 Soberano Pontifice, seguido pelos bispos, parocos e clérigos de um modo geral, juntamente com as ordens religiosas, que conheceram fecundo reflorescimento na época barroca. Em termos de volume e abrangéncia geogratica, foram aliés estas iltimas as principais responsdveis pela execugo de esculturas devocionais no século XVI, tanto as de origem medieval ~ como as beneditinas, carmelitas, franciscanas e dominicanas ~ quanto as novas ordens engendradas pela Contra-Reforma, notadamente a dos jesuitas. No século seguinte, com a diminuigdo progressiva do poder temporal da Igreja e a decadéncia das ordens, a supremacia da encomenda passa para o setor privado do mundo catélico, tendo em primeiro plano as associagSes leigas conhecidas pelos nomes de irmandades, confrarias e ordens terceiras, sob as mais variadas invocagdes de santos protetores. Proliferam em conseqiiéncia os novos santos e modalidades de culto & Virgem Maria, numa espécie de desagravo aos ataques protestantes, aumentando a demanda de imagens em todos os niveis, inclusive os oratérios domésticos. Determinada pela encomenda, a destinag3o das esculturas & fator determinante de suas caracteristicas, tanto no aspecto iconogrifico bisico, jé que a invocagdo da imagem deveria ser facilmente identificada, quanto em seus aspectos técnicos ¢ estilisticos. Quatro fungdes principais podem ser assinaladas ds esculturas devocionais da época barroca, definindo em conseqiiéncia tipologias diferenciadas: a exposigaio em retdbulos de igrejas ou capelas, 0 uso em procissbes e outros rituais catélicos a céu aberto, a participagio em conjuntos cenogrificos, notadamente vias-sactas © presépios, e a inclustio em oratérios do culto doméstico. ‘A imensa maioria das esculturas religiosas produzidas na época barroca destinava-se & exposigao em retébulos, tanto como enquadramento de pinturas sacras quanto como foco principal de atraglo, Observe-se que no primeiro caso € freqliente 0 uso do mérmore ou, em obras mais tardias, a pintura branca uniforme das imagens em madeira, o que reforca sua fungilo decorativa e diminui o apelo devocional, claramente atribuido 4s pinturas, como no _barroco italiano ou no rococé dos paises germénicos. AS principais caracteristicas das esculturas concebidas especificamente para retdbulos sfo, por um lado, sua expressividade dramética, tendo em vista o impacto visual a distancia, e, Por outro, sua adequacio formal e estilistica a0 conjunto do retébulo. Assim, no apogeu do barroco ibérico, retébulos integralmente dourados ¢ de complexa estrutura ornamental demandarfo esculturas de formas agitadas ¢ douramento abundante, aspectos esses que se suavizam no periodo rococé. A expressividade dramética das imagens passa simultaneamente pela mimica fisionémica e retorica gestual dos movimentos do corpo, cujos prineipios foram definidos por Bernini ao nivel escultorico e Tevados a extremos naturalistas pela escola andaluza espanhola, com os recursos adicionais da policromia Nesse caso o resultado final da obra dependera da colaboragao entre o escultor e 0 pintor, tomando-se uma espécie de género intermedisrio entre as duas artes. Duas técnicas principais foram usadas na policromia das imagens ibéricas, a “encamacao” a dleo | para as partes visiveis do corpo e 0 “estofamento” a témpera para os panejamentos € acessdrios de indumentéria. Em caso de douramento, 0 processo mais usual era 0 do sgrafitfo, que consiste n2 | ‘superposi¢do de uma camada de pintura colorida sobre o dourado prévio e sua retirada progressiva com um \da a colocagao de | | a sugestdo de vida do olhar, e de outros complementos naturalistas, como lagrimas | estilete, compondo desenhos omamentais de padronagem: A fase da policromia incluia olhos de vidro, essenci e gotas de sangue de resina. Na escultura hispanica foram também usuais as chamadas “telas encoladas”, ou tecidos encorpados com tintae presos com cola nas éreas de panejamento, A intengdo de dar as esculturas a aparéncia de “figuragdes vivas” atinge 0 ponto culminante nas | imagens processionais, destinadas a serem vistas de perto e sob angulos variados. Uma tipologia especifics | para esse fim, a chamada “imagem de vestir”, difundiu-se no mundo ibérico ¢ ibero-americano, conhecendo imensa popularidade até fins do século XIX. Cabeleiras naturais e roupagens verdadeiras, muitas vezes de grande suntuosidade, completavam a parte escultérica destas imagens, que tinham acabamento final apenas nas partes visiveis da cabega, brago e pernas, Nas pegas de maiores dimensdes 0 tronco era as vezes substituido por uma armagio de madeira em ripas, que oferecia a vantagem da diminuigo do peso para o transporte nas procissdes. 0s tipos iconograficos mais freqientes em imagens processionais foram os relacionados com as festividades da Semana Santa, notadamente o Cristo com a cruz as costas, que na Espanha era chamado de “Nazareno” e, em Portugal, “Senhor dos Passos”. Essas festividades relacionadas com o ciclo da Pascoa ineluiam também representagdes teatrais a céu aberto de episédios da Paixdo do Cristo, cujas origens remontam aos Mistérios medievais, Fonte tradicional de inspiragdo para os artistas, esses “quadros vivos” fixados em conjuntos escultéricos de imagens em tamanho natural foram um dos grandes temas da iconografia crist& do periodo barroco. Organizados em sé Podiam ter destinagao pracessignal,, gaapo wa Figpanha, gu gsganizer-se em pequenas capelas especialmente construidas para abrigé-los na topogrgfia usbana das cidades, como em Portugal. Em ambos os casos na seqiiéncia das estagdes da Via-Sacra, recebiam a denominagdo de “Passos”, termo derivado do antigo sistema de medigao em passos das distancias entre os diversos locais da Via-Sacra original, em Jerusalém. ‘Verses mais abrangentes do tema, podendo congregar dezenas de capelas, figuram no programa dos “sacros montes”, que conheceram grande popularidade no Norte da Italia e em Portugal. O Sacro Monte de Varallo, no Piemonte, chegou a ter 45 capelas, e 0 do Bom Jesus de Braga, em Portugal, cerca de 20, A segunda tipologia de grupamento cenogrifico de imagens, que também conheceu o periodo aureo na época barroca, foram os populares presépios, ligados as festividades do ciclo do Natal. Originalmente montados nas igrejas, estendem-se progressivamente aos edificios piiblicos e residéncias particulares, processo que acarreta a incorporago de novos personagens e cenas ao grupo basico formado pela Virgem, ‘Sao José e o Menino Jesus na tradicional manjedoura. O barro cozido policromado foi o material ideal para essas esculturas de escala reduzida, favorecendo a expressiio de realismo das imagens e cenas populares adicionais. Desenvolvida a partir dos presépios, a devogdo aos personagens da Sagrada Familia, apresentada pela Igreja como modelo da familia cristf, ransforma-se em um dos pontos centrais do devocionério catélico na esfera privada. Imagens de pequenas dimensdes de Sao José, da Virgem Maria e do Menino Jesus, assim como as dos avés maternos Sao Joaquim e Santana, difundem-se nas casas particulares, juntamente com 0 tradicional crucifixo, os santos padroeiros ¢ os indispensiveis & satisfagiio das necessidades humanas mais imediatas, a exemplo de Santa Barbara (proteciio contra intempéries), So Sebastido (peste ¢ doengas infecciosas), Santo Antonio (casamentos e objetos perdidos) © inimeros outros, dependendo das variagdes do imagindrio regional. Essa populagdo celeste encontrava lugar nas capelas privadas das residén: nobres, €, na auséni delas, nos “oratérios”, méveis de piedade de formas e dimensdes variadas, configurando pequenos retébulos, urnas envidragadas ou qualquer outro tipo de receptaculo, que acompanhavam a evolucdo estilistica do mobiliario civil do periodo. Com as imagens de oratério, sorte de microcosmos religioso, completa-se 0 ciclo da escultura devocional nos séculos XVII e XVIII, época de seu maior desenvolvimento na historia da arte crista ocidental, pela total integrago com a piedade das populagdes em todos os estratos sociais. eS ELEMENTOS DE ICONOGRAFIA E ESTILISTICA Embora as diretrizes do Concilio de Trento com relagdo a forma ¢ ao contetido das imagens tenham sido de ordem genérica, mencionando apenas diretamente “a rejeicdo de imagens lascivas, profanas ou portadoras de falsos dogmas e superstigdes”,? 0 controle da Igreja sobre a arte religiosa da Contra-Reforma foi sistematico ¢ eficaz. Foram rejeitadas as representagdes de nudez, os temas profanos ¢ os figurantes considerados “desnecessérios”, que haviam feito a delicia dos artistas do Renascimento e dos primeiros tempos do maneirismo. A polémica sobre os nus de Michelangelo na Capela Sixtina, que deram origem aos panejamentos de Daniel da Volterra que ainda hoje 14 estdo, é um sintoma dos novos tempos. A austeridade € a palavra de ordem, e os artistas sto exortados a tratar os temas religiosos com “elevagdo ¢ nobreza”, para que as imagens possam cumprir adequadamente sua fungo “de instruir 0 povo, confirmé-lo na fé cristae suscitar uma sensibilidade emotiva, favorvel as praticas devocionais” Entretanto, de acordo com sua postura tradicional, a Igreja Catdlica no definiu uma opgao estilistica precisa, insistindo apenas em normas gerais como as expostas acima e as decorrentes da Teoria do Decoro fixada pelos moralistas, segundo a qual as imagens deveriam expressar de forma “conveniente, honesta © conforme A natureza” 0 propésito que as gerou. A preocupagto basica dos artistas sera portanto a de insuflar um auténtico espirito religioso em suas obras, que justificasse seus fins ¢ garantisse sua utilidade para a Iegreja. ‘A. compreenso dos aspectos expressivos das imagens produzidas no ambito do movimento da Contra-Reforma pressupde em conseqiléncia uma indagagdo sobre o tipo de sensibilidade religiosa predominante no tempo hist6rico que as gerou e sua correlacdo com o estilo de época em vigor, das Ulimas das do século XVI ao final do XVIII, Observe-se entretanto que este estilo de época, identificado de déca warroco quando Werner Weisbach publicou seu livro essencial sobre 0 tema,"" hoje forma genérica com o bi em dia comporta recortes de dois esilos diferentes, o maneirismo e 0 roto, associados a contextos sécio- iturais especificos e delimitando em conseqiléncia trés periodos distintos. que se estende alé a terceira década do século XVII, correspondendo a0 final do cull No primeiro, maneirismo e primeira fase do barroco, prevalece o espirito austero e combativo da Igreja militante contra- ilegia a ascese como meio de alcancar a perfeigo moral, a reformista. O ideal de santidade do momento pt mistica contemplative da unido com Deus e a acti combativa e freqlentemente hersica a servigo da f€ cristh ‘As eanonizagées de novos santos se sucedem, a maioria nas categorias de martires, pregadores ¢ penitentes, eas cenas preferidas para a sua representago so as experiéncias misticas e visdes Descrita por Santa Teresa de Avila como “um naufrigio no oceano divino”, a experiéncia mistica foi ides de transe e desfalecimento, tornando-se lugar comum “o olhar "Como as traduzida na arte do século XVII por voltado para o céu, contemplando 0 que os homens niio podem ver", como observou Emile Male. ordens religiosas privilegiavam também esses momentos de éxtases misticos para a representagao de seus santos fundadores, compreende-se a insisténcia dos franciscanos no tema de S8o Francisco recebendo no corpo as chagas do Cristo (estigmatizagio) e a dos carmelitas na de Santa Teresa sendo transpassada pela seta do Amor Divino (transverberagaio) Até mesmo os jesuitas, que enfatizaram em primeiro lugar a eficdcia da ago missionaria, ndo deixaram de representar temas relativos as visbes de Santo Indcio e de seu mais importante santo pregador, Sao Francisco Xavier, apéstolo das missdes da India e do Japio. As missdes asidticas foram, alias, Juntamente com as da Africa e da América, um verdadeiro celeiro de santos martires, considerados os “novos herdis do Cristianismo”, e também na obtengdo deste mérito as ordens religiosas rivalizavam entre si. Se os jesuitas tinham seus 40 martires do Brasil (que na realidade foram massacrados ainda no mar por corsérios calvinistas), os franciscanos tinham seus 5 mértires de Marrocos € os 23 do Japa, os tltimos crucificados em Nagaséqui em 1598, juntamente com trés jesuitas, que curiosamente no figuram nas representacdes franciscanas do tema. se com a énfase entdo Quanto aos santos penitentes, seu papel na arte da Contra-Reforma relaciona. colocada pelos catélicos no sacramento da Confissdo, em oposigdo aos protestantes, que contestavam a ceficdcia dos sacramentos como meio de alcangar a salvagdo. O tema das lagrimas de Sdo Pedro, chorando de artependimento por ter negado o Cristo, torna-se freqUente, juntamente com 0 da grande pecadora dos Evangelhos, a popular Santa Maria Madalena. A importancia reconhecida ao sacramento da peniténcia gerou inclusive um santo especifico, Sao Jo%o Nepomuceno, morto pelo rei Venceslau da Boémia por ndo ter revelado 0 “segredo” da confissdo de sua esposa. Associada ao mesmo tema, a pritica da meditagao sobre a morte, preconizada nos Exercicios Popirituais de Santo Inacio de Loiola, divulga a moda da representago dos santos penitentes orando diante de uma caveira, ou com ela em uma das maos, no caso das esculturas. Os principais santos eanonizados na época da Contra-Reforma, entre outros Santo Indcio de Loiola, Sao Francisco Xavier, So Francisco de Borja e Sao Carlos Borromeu, foram representados nesta austera e sombria atitude. Mas nao deixa de ser ‘curioso ver também transformado em austero penitente fascinado pela morte um dos mais luminosos santos da época medieval, Sao Francisco de Assis, 0 poeta da natureza, que conversava com os astros € com os animais. A medida que avanca o século XVII e que a posiggo do catolicismo se consolida em face do protestantismo, a espiritualidade austera da Igreja miligante vai 20s poucos perdendo sua rigidez, ¢ novas formas de sensibilidade spligiosa ap delimpiaw. Rudelf Wittkower situs a década de 1630, no auge do pontificado de Urbano VIII (1623-44), como data-limite para o fim da severidade contra-reformista na arte religiosa,"? a qual passa a ser também reconhecida a fung3o de deleitar ¢ maravilhar, paralelamente 4 de edificar e instruir. E 0 inicio de uma nova era, marcada por uma maior tolerdncia € menor controle no campo artistico € pelos transbordamentos retéricos da Igreja tiunfante, que coincidem com a fase gloriosa do barroco europeu. Por outro lado, a fundago em 1622 do Colégio da Propaganda Fide, pars coordena¢io das atividades missionérias, constitui um importante marco na nova politica expansionista da Igreja Catdlica, visando ‘compensar o terreno perdido para os protestantes na Europa, pela irradiagdo universal do catolicismo nas “quatro partes do mundo”.'> Os resultados obtidos, principalmente gragas @ decisive ay3o dos jesuitas, |justificam plenamente sentimento de otimismo triunfal do barroco religioso, taduzido na monumentalidade e opuléncia das igrejas e no fausto teatral das ceriménias liturgicas. ‘As imagens refletem esses aspectos dominantes na religiosidade do momento. O bronze dourado em Roma e a madeira policromada e dourada no mundo ibero-americano expressam nas esculturas religiosas © novo ideal de opuléncia, que domina 0 barroco italiano na segunda metade do século XVII ¢ 0 luso- brasileiro a partir da terceira década do XVIII. Da mesma forma, 0 propésito manifesto de propaganda, ditado pelo ideal de universalidade da lgreja triunfante, dard origem & uma categoria de imagens de tipo ret6rico, visando & persuasio, pela eloqiéncis do gesto ¢ da atitude. ‘A intensificagao da expressio fisiondmica e corporal é ent3o levada # extremos na escultura religiosa ‘Germain Bazin observou com acerto que as imagens parecem tomadas por uma espécie de descarga elétrica, aque thes contorce 0 corpo ¢ 2 cabera, projeta seus membros em todas as diregdes ¢ agita os panejamentos ‘como se estivessem sob a agdo de um vendaval.'* Os artistas buscam inspirag3o nas expressdes © gestualidade exagerada dos atores de teatro da época, partcvlarmente na chamads “técnica dos movimentos ‘contrivios”, de grande apelo visual, que teve em Bemini um refinado intérprete € na imagindria espanhola ‘em madeira policromada suas expressdes mais draméticas ¢ comoventes. Embora avessa em principio @ ‘exageros patéticos e melodramiticos, a imaginiris luso-brasileira também reflet -chamado periodo D. Joo V, quando prevaleceu # influéncia italiana no barroco potugués, entre 1720 ¢ 1760, aproximadamente. _ Em fins do século XVII um novo tipo de sensi lidade religiosa comeca a se delinear, comandado por taza com anscanet uma visio mais trangdila e suave do triunfo da Igreja, associada a um sentimento de confianga ilimitads na graa divina e na vitéria do Cat dogmitico, refletindo de algum modo o hedonismo otimista do século do Iluminismo, com sua fé ilimitada ismo. O cristianismo setecentista seré mais sensualista e menos fa razio € no progresso. A experiéncia mistica passa a ser vista como uma modalidade de “gozo contemplativo”, e as experiéncias religiosas de um modo geral privilegiam sentimentos de beatitude na unio com Deus. Esses novos aspectos irdo repercutir na imaginaria religiosa, associada ao rococé6, cuja eloquéncia gestual & substituida pelo sentido de elegincia, dando origem a atitudes mais suaves, nas quais 2 representacdo da graca adquire valor estético, como assinalou Weisbach.'* As expressdes dos rostos se suavizam, € a movimentagdo dos panejamentos adquire um certo decorativismo que por vezes chega 2 mascarar a estrutura do corpo. No rococé religioso da Europa Central e particularmente na Baviera, 3 influéncia francesa predominante dard origem a imagens de estudados gestos teatrais ¢ com um sentido de elegdncia algo mundano, como as do escultor Franz Ignaz Gunther. J nos paises ibéricos, de bases contra-reformistas mais fortes, a imaginaria mantém no século XVII! sua capacidade de expresstio espiritual, embora reduzindo as tensdes draméticas, tipicas do barroco. O espanhol Francisco Salzillo e 0 brasileiro Antonio Francisco Lisboa, 0 Aleijadinho, sio excelentes exemplos desse tipo de expresso do sentimento religioso, de espiritualidade mais discreta e concentrada mesmo nas representages mais pungentes do Cristo da Paixao. Notas "4 Lenda Dourada incluia originalmente 182 historias computadas por Jacques Voragine no ano de 1264. Esse numero cresceu, entretanto, nas edigdes posteriores, com episddios acrescentados por outros autores. 24s virtudes “teologais” — fé, esperanga e caridade — esto ligadas diretamente a Deus, ¢ as “cardinais” — prudéncia, justiga, fortaleza e temperanga — a0 relacionamento com 0s homens. ‘MENOZZI, Daniele. Les images. L'Eglise et les arts viswels. Paris, Les Editions du Cerf , 1991. p. 25. Idem, ib., p. 132 (trad. Myriam Ribeiro). Ver sobre o tema: MALE, Emile. L'Art religiewx du XIII siécle en France. Paris, Armand Colin, 1958. idem, L'Art religiewx de la fin du XVF siécle, du XVIP siécle et du XVIIF siécle. Etude sur iconographie aprés le ‘ile de Trente. Paris, Armand Colin, 1972. 1, Daniele. Op cit., pp. 189-92. ISBACH, Werner, El barroco, arte de la Contrarreforma, Madrid, Espasa-Calpe, 1948. p. 328. (Publ. orig, em Art religiewx de la fin du XVle siécle, du XVile sidcle et du XVlle siécle... cit, p. 193. ‘A, Femando & MORAN, José Miguel. El arte de la Iglesia. In £! barroco. Madrid, ISTMO, 1994. p. taza com anscanet we (© tema alegorico das “quatro partes do mundo” prestando homenagem a Igreja Cat6lica por intermédio das ordens teligiosas foi frequente no barroco eyropeu do século XVII e no luso-brasileiro do século XVIIL BAZIN, Germain, O Aleijadinho € a egayljwravoarroca no fpasil. Rio de Janeiro, Record, 1971. p. $1 WEISBACH, Wemer. Qp git. p. 304-10. AS OFICINAS CONVENTUAIS E A IMAGINARIA BRASILEIRA DO SECULO XVII Com 0s primeiros colonizadores aportaram no Brasil as primeiras imagens religiosas. Ndo poderia ter sido de outra forma, tendo-se em vista o profundo fervor religioso dos portugueses, cujas raizes medievais se confundem com a prépria nacionalidade do pais. A exploragdo da Terra de Santa Cruz fez-se sob a égide do Calendario Liturgico, cuja sucesso de santos cotidianos determinou a denominagio dos acidentes geograficos ao longo da costa, aninhando-se as povoagées incipientes invariavelmente em volta de uma capela dedicada ao santo padroeiro, ao Senhor Bom Jesus ou a Virgem Maria em diversificadas invocagées. Do primeiro século pouca coisa se conservou, tanto em fungio do estigio ainda incipiente do povoamento quanto pelas reposigdes posteriores de imagens mais antigas, danificadas pelo tempo pelo manuseio devocional, que a tradig&o do culto catélico determinava fossem enterradas em local sagrado, no recinto das igrejas. Entre as raras imagens quinhentistas que se conservaram, a mais famosa talvez seja a Nossa Senhora das Maravilhas, doada por dom Joao II] a recém-fundada cidade de Salvador pelos idos de 1550. Proveniente da antiga Sé, foi de especial devogao do padre AntOnio Vieira, e encontra-se atualmente exposta no Museu de Arte Sacra, juntamente com uma Nossa Senhora de Guadalupe um pouco mais tardia, ambas com ricos revestimentos de prata acrescentados no século XVII. Também de grande renome na tradigdo cat6lica brasileira foi a Nossa Senhora da Penha do Santuério de Vitéria do Espirito Santo, trazida de Lisboa em 1558 pelo fundador, frei Pedro Palacios, e atualmente descaracterizada por uma restauragao. ‘Nas primitivas fundagdes jesuitas do litoral é ainda possivel identificar uma ou outra imagem do século XVI, como 0 Crucificado do retébulo dos Santos Mértires do antigo Colégio de Salvador e os das antigas ‘aldeias de Reritiba e Porto Seguro. Na Matriz de Santana de Itanhaém, no litoral paulista, conserva-se também uma excepcional Nossa Senhora da Conceigtio em barro cozido, venerada desde meados do século & evidenciada pelo nome de Virgem de Anchieta, pelo qual XVI na regio, cuja ligagdio com a ordem jesuit popularmente conhecida. Essa imagem, de origem portuguesa como as demais citadas anteriormente, foi ologia de imagens da Virgem Maria indicada por Eduardo Etzel’ como cabega de série de uma desenvolvida em Sao Paulo no século XVII, apresentando solugdes semelhantes de postura, cabeleira solta nos ombros e base trabalhada em composigao ternaria de querubins. 43 Também do século XVI, mas ja executadas na Colénia, sdo as imagens da Virgem com 0 Menino ¢ = ‘Nossa Senhora da Concei¢do das matrizes de Itanhaém e Sao Vicente, tradicionalmente atribuidas 20 Portugués Joao Goncalo Fernandes, juntamente com um Santo Anténio de caracteristicas diferentes. da mesma Igreja de Sao Vicente. Datadas por dom Clemente de cerca de 1560," essas duas representacies da Virgem, de proporgées atarracadas, rostos roligos e panejamento colado 20 corpo. ja incorporam caracteristicas do tipo mameluco local, podendo talvez ser consideradas como as primeiras imagens autenticamente “nacionais” de nossa histéria. O século XVII consagrou o predominio das oficinas conventuais das ordens religiosas no campo dz imagindria sacra. Espalhados pela imensa costa brasileira, de Belém do Para a Sao Vicente, colégios = residéncias jesuitas, conventos franciscanos e carmelitas e mosteiros beneditinos constituem ento auténomos de produgo cultural, com o obj Cristianismo e manter ‘0 primordial de conquistar as populagSes indigenas p: a f€ dos colonos portugueses. Tendo-se em vista os padres iconogrificos e formais especificos de cada uma dessas ordens e 0 fato de possuirem elas seus proprios religiosos artistas, ¢ facil compreender o ar de familia e a relativa uniformidade estilistica que caracteriza as imagens des fundagdes de uma mesma ordem religiosa, mesmo separadas por grandes disténcias em pontos diferentes do territério brasileiro. Ainda mais quando se sabe terem sido freqiientes as viagens de religiosos obreiros © artistas para atenderem as necessidades das novas construgdes, como demonstrado pelo padre Serafim Leite no caso dos jesuitas e por dom Clemente da Silva-Nigra para os beneditinos. ' A julgar pelo nimero de pecas conservadas, 0 barro cozido parece ter sido 0 material de prediles3o dos escultores seiscentistas. Talvez pelo menor prego ¢ a maior facilidade de execugo, predominow ‘amplamente nas pegas importadas de Portugal nos primeiros tempos da colonizagZo, bem como nas na esfera das oficinas conventuais, com excesao dos jesuitas, cuja ativid: abrangente € retérico parece ter exigido desde 0 inicio imagens de grande poste. UALIDADE DAS IMAGENS BENEDITINAS minuciosas pesquisas de dom Clemente em arquivos da ordem beneditina revelaram part 2 rle no Brasil os nomes de trés monges escultores de alto nivel, com atuago nos mosteiros de laneiro e So Paulo: os ceramistas frei Agostinho da Piedade ¢ frei Agostinho de Jesus ¢ frei Domingos da Conceigao da Silva. taza com anscanet 4 De origem portuguesa, frei Agostinho da Piedade parece ter vindo para o Brasil ainda jovem, tendo professado no Mosteiro de Sdo Bento de Salvador, onde sua presenga é documentalmente atestada entre 1619 © 1661, ano de seu falecimento. A Jonga Meméria que Ihe foi dedicada por um cronista da ordem por volta de 1700 exalta as virtudes exercidas em alto grau pelo religioso, entre outras sua extrema humildade € © dom da orago contemplativa: diante daquela devotissima imagem (de Nossa Senhora) passava os dias € as noites e sabia que era perdido o tempo que ndo empregava no servico de Deus ¢ de sua Mae Santissima, ‘ou no exercicio da virtude. Entretanto, nenhuma mengio as atividades do escultor, 0 que € pelo menos estranho, sabendo-se que 0 segundo monge-ceramista, frei Agostinho de Jesus, recebeu elogiosas palavras nesse sentido em documento andlogo da ordem. Estas atividades foram identificadas por dom Clemente a partir da excepcional descoberta de quatro imagens assinadas ¢ datadas, fato inédito na arte colonial, ainda mais em se tratando de um escultor religioso, inserido na tradigao medieval do trabalho andnimo a servigo de Deus. A primeira destas imagens em seqiléncia cronologica é a imponente Nossa Senhora de Montesserrate, padroeira da ordem beneditina, datada de 1636 e que inclui 0 nome do encomendante, e a ultima, uma Santana Mestra de 1642, ambas do acervo do Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia. As ‘outras so 0 Menino Jesus do Mosteiro de Olinda, que inclui duas assinaturas e a sigla ornamentada de frei ‘Agostinho, e uma Santa Catarina, atualmente em colegdo particular de Salvador. Todas essas imagens teriam sido executadas num curto periodo de seis anos apenas, fato que pressupde obras anteriores, dado o extraordindrio apuro técnico e formal que as caracteriza. Compreende-se portanto que dom Clemente tenha situado também nesta fase a impressionante série de bustos-relicdrios, destinados 4 exposi¢o de reliquias de propriedade da ordem beneditina, série esta que inclui a bela imagem de Santa Ménica, hoje no Museu do IPHAN em Salvador. ‘Apés 1642 nfio ha mais registro de obras do monge-escultor, que teria abandonado sua arte, ““cumprindo ordem de seus superiores”, para administrar a fazenda beneditina de Itapoa e em seguida servir como capeldo da lgreja da Graca, em Salvador. Nao seria permitida a suposigo de essa ordem superior ter sido um género de punigdo por ter-se “envaidecido” assinando suas obras, como previsto no capitulo 57 da Regra de Sto Bento?* Justamente considerado como 0 maior imagindrio do século XVII em todo 0 Brasil,’ frei Agostinho lade teve discipulos e seguidores, como bem o demonstram varias imagens seiscentistas em barro sspiradas de seu estilo pessoal, entre outras a expressiva Madalena penitente do acervo do Museu de Salvador. taza com anscanet | | is Entre os discipulos formados com toda a probabilidade por frei Agostinho da Piedade situa-se o carioca frei Agostinho de Jesus, embora nfo se saiba exatamente a diferenga de idade entre os dois monges ceramistas, falecidos ambos no mesmo ano de 1661. Sua presenga ¢ documentalmente atestada no Mosteiro de Sao Bento da Bahia, onde professou os votos monacais, antes ¢ depois de uma viagem a Portugal para sua vel a influéncia do mestre portugués na ‘ordenagao sacerdotal, por volta de 1630. Entretanto, embora seja na obra dos dois Agostinhos. obra do monge carioca, hé diferengas estilisticas ponderdv Sobrias e austeras, até mesmo quando revestidas de oratos de gosto maneirista, como 2 Nossa Senhora de Montesserrate do Mosteiro de Sao Paulo, as imagens de frei Agostinho da Piedade caracterizam- se por um pronunciado arcaismo, de tradigdo ainda renascentista. Os corpos so estruturados em canones ‘geométricos depurados, e os rostos, de grande nobreza, refletem profunda espiritualidade ¢ paz interior ~ espiritualidade essa toda feita de introspego ¢ siléncio, como bem convém a um monge contemplativo, que tem no encontro com Deus pela oragdo seu objetivo maior. Ao hieratismo e siléncio introspectivo de frei Agostinho da Piedade opde-se a expressividade algo ingénua de frei Agostinho de Jesus, cujas imagens, j4 préximas do barroco, olham diretamente nos olhos do espectador, as vezes em atitude compassiva, como 0 excepcional Sdo Bernardo do Mosteiro de Sao Bento de Sao Paulo. Outras tém uma certa expresso brejeira, como o Sao Bento da antiga fazenda beneditina de Iguagu e as imagens da Virgem Maria brincando carinhosamente com 0 Menino Jesus no colo. Um universo ‘as separa da calma silenciosa das imagens de frei Agostinho da Piedade, com seu olhar perdido no infinito. ‘A maioria das imagens de frei Agostinho de Jesus foi produzida nas fundagdes beneditinas de S30 Paulo, ¢ algumas encontram-se ainda em seus locais de origem. Neste caso esto 0 ja mencionado Sio Bernardo, executado por volta de 1650 para o Mosteiro de Sao Paulo, juntamente com as imagens de San ‘Amaro, So Bento e Santa Escoléstica, estas iltimas infelizmente repintadas em 1920. Uma série de ima: provenientes da regio de Paraiba atesta também sua atividade no antigo mosteiro beneditino daquela cidade, entre outras a graciosa Nossa Senhora da Purificagao, do acervo do Museu de Arte Sacra de Sio Paulo, ¢ as duas Virgens do Rosario ou dos Prazeres, atualmente em colegao particular. Parece fora de duivida que as fundagées beneditinas de Sao Paulo ¢ Parnaiba funcionaram como centros irradiadores de uma escola seiscentista de imagens em barro cozido, conhecida como Imaginaria Bandeirante. A esses centros, que sofreram de forma mais direta a influéncia do estilo pessoal de frei - Agostinho de Jesus, somam-se, nas trés ultimas décadas do século XVII, os de Itu ¢ Sorocaba, com imagens caracteristicas um pouco diferentes, embora dentro do mesmo universo formal, cristalizado pelo ito da regiao nesses primeiros tempos.° Entretanto, paralelamente a essa cristalizagdo de formas 4e estilisticas € tipos iconograficos, a evolugdo por mais de um século em circuito fechado favoreceu inegavelmente a criatividade dos barristas de Silo Paulo, que introduziram precocemente na imaginéria religiosa brasileira valores expressivos ¢ estéticgs de cunbo margadamente regiong!, conferindo-Ihe uma originalidade prépria, aspecto que s6 se tornar século XVII, Frei Domingos da Conceigio da Silva, o terceiro escultor beneditino revelado pelas pesquisas de uma constante nas demais regides a partir de meados do dom Clemente, era de origem portuguesa, como frei Agostinho da Piedade, ¢ natural de Matozinhos, na periferia da cidade do Porto. Praticamente nada se conhece de sua obra anterior ao ano de 1669, quando se recolheu a0 Mosteiro de Sio Bento do Rio de Janeiro para trabalhar na parte escultrica das obras de reedificagdo em curso, sob a dirego do arquiteto frei Bernardo de Sao Bento. Ai deveria permanecer até a morte, em 1717, tendo tomado hibito em 1690, quando se liberou das obrigagdes do mundo, apés o casamento de sus filha. Mas jé bem antes participava da vida de clausura do mosteiro, sendo muito estimado dos monges por seus dotes intelectuais e espirituais. Quatro imagens documentalmente atribuidas a frei Domingos da Concei¢ao encontram-se ainda em seus locais de origem, na igreja conventual do Mosteiro do Rio de Janeiro. O conjunto da Virgem de Montesserrate ladeada pelos fundadores, Sdo Bento e Santa Escolisti mor, € 0 Cristo Crucificado situa-se no antigo coro dos monges. Todas estas imagens so de excepcional ocupa o lugar de honra no altar- qualidade e refletem, em verso barroca, o mesmo tipo de espiritualidade concentrada, préprio da ordem beneditina, que caracteriza as imagens de frei Agostinho da Piedade. Os corpos sto robustos, as proporgdes, atarracadas € © panejamento de pregas mitidas tratado com grande sensibilidade. No caso da imagem da Virgem com 0 Menino Jesus, menos afeta aos padrdes tradicionais da imaginaria beneditina, as formas do corpo em movimentagdo diagonal na cadeira transparecem claramente sob 0 panejamento, revelando dominio técnico do escultor. Os dois outros Crucificados com atribuigdo documental, idemtificados por dom Clemente nos mosteiros do Rio de Janeiro ¢ de Olinda, nao resistem, em termos estilisticos, & comparagdo com o vigoroso Crucificado do antigo coro dos monges. Parece tratar-se de obras mais tardias, bem como o Santo Amaro ‘mosteiro carioca para a povoagio do mesmo nome em fins do século XVIII. na morte de frei Domingos da Conceigdo encerra-se nto apenas o ciclo da imaginéria beneditina também uma modalidade de produgfo escultérica que poderia ser considerada como tipica 0 da produgio nacional do periodo. A série de santos bispos e papas, integrada & talha das Mosteiro do Rio de Janeiro, feita a partir de desenhos de sua autoria, tem fungao mais taza com anscanet It decorativa do que propriamente expressiva, e as outras imagens executadas pelo escultor leigo Simao da Cunha na mesma igreja ja ndo expressam tragos especificos da espi lalidade beneditina, refletindo Pardimetros estilisticos derivados de outras fontes, como sera visto posteriormente. AS POPULARES IMAGENS FRANCISCANAS E CARMELITAS Uma anilise, mesmo superficial, do cotidiano religioso das populagdes brasileiras na época colonial esbarra a todo momento na infalivel presenga dos “frades” franciscanos. Conventuais, observantes ou capuchinhos, eles estio por todo lado, exercendo as mais variadas atividades: recolhendo esmolas para diversos fins, inclusive para a propria subsisténcia, j4 que em principio, pelo voto de pobreza, nZo podiam possuir bens nem acumular capital fazendo visitas residenciais aos moradores, & mesa dos quais sentavam- se com frequiénci benzendo oratérios ¢ santos domésticos; catequizando e ensi ando as primeiras letras, sobretudo aos pobres das reas rurais; confessando; prestando assisténcia espiritual aos enfermos ¢ moribundos; atuando como capeldes em fortalezas e santas casas de misericérdia; acompanhando os condenados ao patibulo. E ainda missionérios, tedlogos e oradores sacros de renome, particularmente eficientes nas pregagdes de Semana Santa, tema de sua especialidade, por terem tido desde a Idade Média « responsabilidade da guarda dos “lugares santos” em Jerusalém Como se tudo isso nao bastasse, trata-se da ordem religiosa com maior ntimero de santos canonizados em suas fileiras, e entre esses alguns dos mais populares no imaginario cristo luso-brasileiro, como o fundador Sao Francisco, 0 onipresente Santo Anténio, Sao Benedito e Sao Gongalo Garcia. Os dois primeiros para a devogao dos brancos, o iiltimo para os pardos ¢ Sto Benedito para os “pretinhos”, que podiam contar ainda com o reforgo suplementar de um segundo franciscano negro, Santo Antonio de Catagerona, Observe-se que santos negros, como Santa Efigénia e S4o Elesbto, ambos origindrios da Abissinia também figuram no hagioldgico carmelita, cujo pereurso na Colonia seguiu de perto o dos franciscanos tanto nos aspectos missionérios quanto na integrag2o cotidiana com as populagdes urbanas, as quais davam todo tipo de assisténcia espiritual. Mas nenhuma devogo carmelita foi tdo popular quanto a do “escapulirio cou bentinho”, da Virgem do Carmo, que tem a faculdade de livrar os portadores do fogo do inferno, ainda que com graves culpas. Inicialmente estabelecidos no Nordeste, a partir da fundagao Convento de Olinda em 1585 os franciscanos expandiram-se rapidamente, acompanhando os pasos da colonizago. Sempre a pedido dos 13 colonos, desejosos de reconstituir no Brasil ambientes de vida parecidos com os que tinham em Portugal, construiam apraziveis conventos em locais privilegiados, geralmente doados pelas Cémaras, cujos belos claustros funcionavam como locais de convivio, acolhendo todas as camadas da populagdo. Uma série desses conventos, situados na faixa litorinea entre Salvador e Jodo Pessoa, segue padriio arquiteténico ¢ atistico unitério, constituindo uma verdadeira escola de construtores ligados @ ordem, juntamente com artistas entalhadores, escultores e pintores de oficinas conventuais locais. Infelizmente, os franciscanos ainda no tiveram historiadores da arte & altura da qualidade dos acervos sob sua guarda, permanecendo andnimas teressa aqui obras de altissimo nivel ainda hoje nos locais de origem, incluindo a imagindria sacra que no: diretamente: A partir de meados do século XVII dividem-se em duas provincias: a de Santo Ant6nio, com cerca de 13 conventos na regio norte/nordeste, e a de Nossa Senhora da Conceigtio, no Sudeste, com 8 conventos na faixa litorinea dos atuais Estados do Espirito Santo, Rio de Janeiro ¢ So Paulo. Em situagdo paralela, também os carmelitas jé tinham nessa época conventos espalhados por toda a regitio litordnea, de Belém do Pard a So Paulo, a partir das fundacdes pioneiras de Olinda, Salvador, Santos ¢ Rio de Janeiro. Apesar da auséncia de levantamentos gerais, exemplares em nimero suficiente espalhados em localidades diversas do pais provam que 0 barro cozido foi também o material preferido dos escultores franciscanos e carmelitas no século XVII. Familiares imagens de Sto Francisco € de Santo Anténio com o habito e cordio de trés nds da ordem franciscana conservam-se ainda em varios conventos, podendo-se reconhecer o primeiro pela barba e mios estigmatizadas cruzadas no peito, e 0 segundo por ser imberbe carregar 0 Menino Jesus no brago esquetdo. Uma iconografia também muito difundida foi a de Sao Francisco abragado ao Cristo Serdifico (com os trés pares de asas do serafim), que tem no sugestivo grupo do Museu de Arte Sacra de Sao Paulo um dos melhores exemplos conservados. ‘Ao que tudo indica uma escola de escultores ceramistas difundiu-se na segunda metade do século XVII a partir dos conventos franciscanos de Cabo Frio, Rio de Janeiro e Angra dos Reis, cujas imagens, refinadas e com um certo ar altaneiro, so bem conhecidas dos colecionadores. Entre elas dom Clemente identificou uma série que atribuiu a um escultor por ele denominado de Mestre de Angra a partir da imagem da Virgem da Conceigio do Convento de Sao Bernardino, de Angra dos Reis, atualmente conservada na matriz local. Além dessa imagem, atribui-the também as imagens-relicdrios de Santa Inés e Santa Apolénia dda Igreja da Ordem Terceira da Peniténcia de Sto Paulo e duas figuras de presépio da Matriz de Cabo Frio. Seria de fundamental importancia que essa pesquisa recebesse continuagao, para justificar outras atribuigdes « eventuais comparagdes entre os estilos beneditino e franciscano da imaginéria seiscentista em barro cozido, taza com anscanet rc A identificagao popular com as imagens franciscanas pode ser ilustrada por um fato relativamente recente, narrado por frei Basilio Rower,’ que tivemos oportunidade de comprovar. Os habitantes de Porto das Caixas, na regitio fluminense do convento arruinado de Sio Boaventura de Macacu, recolheram em Principios do século XX todas as agens do antigo convento e até os dias de hoje continuam a cultué-las, mantendo sempre limpa e omada com flores a capela local onde se encontram. A EPOPEIA MISSIONARIA JESUITICA E SUAS IMAGENS Ao contrério das ordens religiosas vistas até agora, cuja instalago no Brasil acompanha 0 ritmo do Povoamento, os jesuitas tinham um projeto definido de atividade missiona , que freqilentemente conflitava com os interesses imediatos do sistema colonizador portugués. No cerne desses conflitos estava a decidida defesa dos indios, cuja evangelizagao constituia a meta prioritéria da ordem no Brasil. Essencialmente missionério no ponto de partida, projeto jesuitico desdobrou-se em pedagégico-institucional na atividade complementar dos colégios para “ensino dos colonos” nos centros urbanos litoraneos, sem perder de vista o objetivo basico da catequese. Em ambas as frentes sua eficiéncia revelou-se muito superior a das outras Ordens, em virtude de uma organizagdo centralizada e disciplinada, aliada a métodos mais modemos ditados Por uma nova visio humanista, de abrangéncia planetéria, como convinha a era da grande aventura dos descobrimentos maritimos. Um dos segredos da eficiéncia jesuita foi a capacidade de adaptago 4 natureza, completamente diferente da européia, cujas condigdes as vezes chegavam a ser bastante adversas, Na América Latina, foram 95 tinicos a dominar as linguas nativas e a obter resultados positivos em exp. ncias de enquadramento da mio-de-obra indigena, experiéncias essas que no campo da imaginatia religiosa tiveram © ponto alto na chamada Escultura Missioneira dos Sete Povos das Misses, no Rio Grande do Sul O carater essencialmente didatico e freqilentemente retérico da imagindria jesuita vincula-se as atividades basicas da catequese ¢ ensino pedagdgico que caracterizam a ordem. A imagem jesuita ensina ‘apoiando a instrugiio catequética nos aldeamentos indigenas que constituiram a modalidade mais difundida de atividade missionéria na Coldnia brasileira. Mas também impressiona e convence, do alto dos monumentais retibulos que Ihe servem de suporte nas igrejas dos colégios dos grandes centros urbanos litoraneos. E por exceléncia a imagem da Contra-Reforma, que interpela, através de gestos elogiientes de ‘Pregarao, apresentando simbolos do dogma cristo, como a Cruz de Cristo ¢ 0 livro, atributos habituais dos ‘santos fundadores Inacio de Loiola e Francisco Xavier. ‘Segundo 0 autor do Santudrio Mariano, a ordem costumava encomendar em Lisboa as imagens de que tinha necessidade, por se obrarem naguela cidade com muita perfeigdo.* Norma nos primeiros tempos de atividade missiondria na Colénia, j4 nas primeiras décadas do século XVII as importagdes sto idas pela producto das oficinas locais, restringindo-se no século XVIII a casos gradualmente substi excepcionais, como o do monumental grupo do Calvério, encomendado para a nova igreja em construgao do Colégio do Morro do Castelo, no Rio de Janeiro. De origem portuguesa sfo certamente as imponentes imagens de Santo Indcio dos antigos colégios do Rio de Janeiro e Vitbria, com idéntica postura de apresentagdo eloqlente do livro e da cruz e panejamento eto com pregueado fino, movimentado pela disposicdo em diagonal do manto do lado direito. No mesmo caso poderiam estar as imagens de Sto Francisco Xavier e a primeira Virgem da Conceigdo dos retébulos do demolido Colégio do Morro do Castelo no Rio de Janeiro, atualmente conservados na Igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso. Entre as imagens mais antigas jé executadas no Brasil destacam-se 0 excepcional Sao Lourengo, do primitivo aldeamento de Sao Lourengo dos indios de Niterdi, e as imagens de Santo Inacio ¢ Séo Francisco Xavier, do aldeamento de Reritiba, no Espirito Santo, atual Anchieta. A primeira, considerada por Germain Bazin como uma das obras-primas da escultura seiscentista brasileira,” insere-se na tradigao erudita de cunho ‘ainda renascentista, como as obras de frei Agostinho da Piedade. As outras duas so mais primitivas, porém dotadas de grande sensibilidade e poder expressivo, principalmente 0 Sao Francisco Xavier, apresentado na atitude de entreabrir a batina na altura do peito, mostrando 0 coragdo inflamado de amor e zelo apostélico. A hipétese mais provavel € que essas trés imagens tenham sido executadas nas oficinas do Colégio do Rio de Janeiro, que no século XVII contou com escultores de renome, como o padre Jodo Correia, natural da Cidade do Porto, onde entrou para a Companhia de Jesus em 1643. Trés anos mais tarde jé se encontrava no Colégio do Rio de Janeiro, onde trabalhou como escultor e estatuario durante cerca de 30 anos, com alguns intervalos de tempo dedicados a obras similares no Colégio da Bahia. Entretanto, ainda esta para ser feito um estudo analitico deste e de outros escultores jesuitas, cuja pesquisa permanece ainda no mesmo estagio em que a deixaram os fundamentais levantamentos do padre Serafim Leite nos arquivos da ordem no Vaticano, 50 anos atrés.'° Os colégios de Sao Luis e Belém, que no século XVII pertenciam ao Estado do Maranhdo ¢ Grao Para, também contaram com oficinas de escultura, equivalentes as dos colégio da Bahia ¢ Rio de Janeiro. E provavel que tenha sido confeccionado no Colégio do Maranhao 0 belo par de imagens-relicérios de Santo Inacio e S4o Francisco Xavier procedentes de uma das igrejas rurais da companhia ¢ atualmente no acervo do Museu de Arte Sacra de Sto Luis. Nesta oficina trabalhou em fins do século XVII 0 entalhador portugues Manuel Mangos, autor do retébulo principal da antiga igreja do colégio e talvez de algumas de suas imagens originais, entre as quais 0 Sao Francisco Xavier que ainda se conserva em um dos altares laterais ¢ © impressionante Sao Franci Luis. 0 de Borja em tamanho natural, atualmente no Museu de Arte Sacra de Sao Do acervo original do Colégio de Santo Alexandre de Belém, recentemente transformado em museu. também se conserva um importante conjunto de esculturas. Entre estas, as imagens seiscentistas de Santo Inacio © Sao Francisco Xavier em tamanho natural poderiam ser as “imagens de vulto” executadas em 1699 Por um certo Manuel Jodo, sem diivida de origem portuguesa, que fez outras obras para a antiga igreja jesuita de Belém, como informa Serafim Leite. E provavel que este escultor trabalhasse nas oficinas do Colégio de Santo Alexandre, cujo florescimento maior data das trés primeiras décadas do século XVIII quando foi dirigido pelo jesuita austriaco Jofo Xavier Traer, que realizou a faganha de treinar escultores indios, como seu conterraneo Anténio Sepp von Rechegg nas missdes do Rio Grande do Sul. ‘S40 conhecidos os nomes de dois destes indios, Manuel Angelo ¢ Faustino, que colaboraram na obra dos piilpitos da lgreja de Sdo Francisco Xavier, excepcional no contexto da talha brasileira do periodo, com seus monumentais coroamentos povoados de anjos, similares aos do barroco austriaco. De comprovada autoria de “um indio entalhador” sao também os curiosos anjos tocheiros confeccionados para a capela-mor da igreja, que nao deixam de lembrar obras contemporaneas executadas no ambito das missdes do Sul.'! A ESCULTURA MISSIONEIRA DO RIO GRANDE DO SUL Realizado em Ambito relativamente restrito no Colégio do Pard, o treinamento de mfo-de-obra indigena para o trabalho da imaginaria religiosa alcangou escala de amplas proporgdes na chamada Escultura Missioneira, das Missdes dos Indios Guaranis, na regio Sul do continente americano. Seguindo o modelo hispanico das “redugdes”, ou povoados indigenas independentes, estas misses chegaram a incorporar 30 povoados, constituindo uma espécie de “Estado teocratico jesuitico”, em vasta area hoje desmembrada entre © Sul do Paraguai (8 redugdes), Norte da Argentina (15 redugdes) ¢ Sul do Brasil (7 redugdes). Originalmente integradas ao sistema colonial espanhol, as 7 redugdes brasileiras, situadas no oeste do Rio Grande do Sul, foram incorporadas ao territério nacional pelo Tratado de Madri no ano de 1750, em troca da Colénia do Sacramento, no atual Uruguai. Esta incorporagaio nao se fez sem dificuldades, pois 05 indios guaranis, enquadrados pelos jesuitas, s6 abandonaram as redugdes apés trés anos de luta armada, que Re redundaram em sua quase completa destruigao. Alcangaram nossos dias remanescentes arqueolégicos das antigas redugdes de Sto Nicolau, Sao Miguel, Sto Lourengo e Séo Jodo Batista, Os mais impressionantes sfo os da antiga redugo de Sao Miguel, que ocupam um vasto descampado gramado no centro do qual destaca-se a imponente ruina da igreja, com sua cenografica fachada barroca. No angulo direito da grande praca fronteira ao templo, um pequeno museu, edificado com material do préprio sitio arqueolégico, expde um acervo de pegas relacionadas as missdes, recolhidas no local e regides vizinhas. Nele se inclui um expressivo acervo de imagens missioneiras, @ maioria com mutilagdes € perda parcial ou total de policromia, em virtude das vicissitudes a que foram submetidas com o fim das miss6es jesuiticas na regio, Um inventario recente identificou aproximadamente 450 pegas de imaginéria missioneira em igrejas, museus ¢ colegdes particulares do Rio Grande do Sul.'? Levando-se em conta que este total inclui nimero significativo de imagens executadas por oficinas locais posteriormente ao periodo jesuitico, ¢ licito calcular ‘em cerca de 300 pegas 0 acervo remanescente de pegas executadas no dmbito das antigas misses no século XVIle primeira metade do XVIII, até a data da expulsdo da ordem jesuita do territ6rio brasileiro, em 1759. Do ponto de vista da andlise do estilo, ha diferengas nitidas entre as imagens do século XVII, ainda proximas do classicismo renascentista e inspiradas em protdtipos espanhdis, ¢ as do século XVIII barroco, que incorporam modelos de fontes italianas e germénicas e assinalam a emergéncia de valores plisticos ¢ simbélicos da propria cultura guarani Entre as raras imagens seiscentistas que alcangaram nossos dias, uma das mais interessantes € Nossa Senhora da Conceigfio do Museu Jilio de Castilhos de Porto Alegre, derivada de um prototipo espanhol criado por Gregorio Femindez, popularizado na regio das Missdes com 0 nome de Virgem Jesuitica, Rigidamente hierdtica ¢ frontal, tem panejamento reto e manto em forma de trapézio, com base formada por trés cabecinhas de querubins. Entretanto, @ fisionomia severa nada tem de européia aproximando-se curiosamente do tipo indigena local © jesuita italiano José Brasanelli ¢ 0 austriaco Antonio Sepp von Rechegg sto geralmente apontados como os principais agentes da difusBo de modelos do barroco italiano ¢ germénico nas oficinas das miss6es partir da dltima década do século XVII, que vieram somar-se aos do barroco hispi divulgados anteriormente por jes A José Brasanelli, considerado um dos melhores escultores jesuitas que trabalharam na regido, ¢ jtas espanhdis, documentalmente atribuida a retérica imagem de S8o Francisco de Borja, com quase 2 metros de altura, ‘tualmente conservada na matriz da cidade de Sto Borja, originada na redugdo do mesmo nome, Uma taza com anscanet dezena de outras imagens de sua autoria foi identificada em localidades diversas da antiga rea das missdes no Brasil, Argentina e Paraguai, entre as quais o expressivo Santo Estanislau Kostka do Museu das Missdes A atribuigo de esculturas ao padre Ant6nio Sepp, talento miiltiplo que atuou também nas areas da miisica, pintura e arquitetura, € ainda incerta, Tradicionalmente sto-lhe atribuidos um S80 Jo&o Batista Menino, sem divida esculpido para a reducdo de Sao Jodo Batista por ele fundada,"* e um Sao José com o Menino, hoje no Museu das Misses. De influéncia germénica evidente é ainda um Santo Isidoro Lavrador. também do acervo deste altimo museu, possivelmente inspirado em registros de santos das oficinas de Augsburgo. A imensa maioria das Esculturas Missioneiras conservadas foi entretanto confeccionada pelos Proprios indios guaranis a partir de modelos europeus em forma de desenhos ou gravuras. A enorme diversidade de modelos aportados nas oficinas das misses abrange, curiosamente, no apenas procedéncias geogréficas diferentes na Europa, mas épocas estilisticas anteriores, com resultados muitas vezes surpreendentes. No Museu das Missdes, por exemplo, paralelamente as imagens francamente barrocas como as citadas acima, hé esculturas de espirito gético, como a cabega Deus Pai com a inscrigao Ego sum renascentista, como o monumental Sao Louren¢o da antiga redug4o do mesmo nome, e até mesmo roménico. como 0 gorducho Santo Ant6nio com Menino Jesus no brago esquerdo. Segundo testemunho do proprio padre Sepp, os indios guaranis tinham “olhos de lince [...) para a imitagdo, Nao precisam absolutamente de mestre nenhum, nem de dirigente que thes indique e os esclareca sobre as regras das proporgdes. Se Ihes puseres nas mdos alguma figura ou desenho, verds dai a pouco ‘executada uma obra de arte, como na Europa ndo pode haver igual...’"* Entretanto, ao contrério do que se poderia supor, as obras produzidas por este talento imitativo dos guaranis no constituem cépias das européias, mas obras altamente originais, podendo a primeira vista ser identificadas por algumas caracteristicas inconfundiveis ~ entre elas, um certo esquematismo que elimina os detalhes, tendendo aos movimentos amplos ¢ a essencialidade da forma compacta, uma intensa forca ‘emocional, feita de concentragdo e de siléncio, uma grandeza altiva, que transcende a aparéncia as vezes ‘a € os movimentos incertos das esculturas -, caracteristicas estas incorporadas pela identidade nativa dos guaranis aos modelos europeus transplantados, em um dos casos mais singulares de fusdo cultural da histéria da arte ocidental. Notas ‘ETZEL, Eduardo, Arte sacra bergo da arte brasileira, S40 Paulo, Melhoramentos, 1984. p. 86, 2H SSILVA-NIGRA, O.$.B,, dom Clemente da, Escultura colonial no Brasil. In ARAUJO, Emanoel. Catélogo da ‘exposigao: O universo magico do barroco brasileiro, So Paulo, Fiesp, 1998. p. 102. Idem. Os dois escultores frei Agostinho da Piedade - frei Agostinho de Jesus e o arquiteto frei Macairio de Sao Jodo. Bahia, Universidade Federal da Bahia, 1971. p. 17. “Se hover no mosteiro monges capazes de exercer uma arte, trabalhardo nela com toda a humildade e reveréncia se 0 abade ordenar. Se algum deles se envaidecer pelo que sabe fazer, ou pelo fato de trazer vantagens para 0 ‘mosteiro, ser retirado do trabalho que exerce, e nunca mais a ele voltard, a ndo ser que se humithe ou que 0 abade the dé ordem para exercé-lo novamente.” Cap. 57 da Regra de Sao Bento. In PAIXAO, 0.S.B., dom Greg6rio, Sao Bento. Um mestre para 0 nosso tempo. Salvador, Sao Bento, 1996. p. 68 SILVA-NIGRA, 0.S.B., dom Clemente da. Escultura colonial... cit, p. 104 “Cf, ETZEL, Eduardo. Op. cit. p. 88 ROWER, O.F-M., frei Basilio, Paginas da histdria franciscana no Brasil, Rio de Janeiro, Vozes, 1941. p. 226. "SANTA MARIA, frei Agostinho de, Santuério Mariano e histéria das imagens milagrosas de Nossa Senhora, e das milagrosamente aparecidas, em graca dos pregadores & devotos da mesma Senhora. Lisboa, Officina de Antonio Pedrozo Galram. 1707 a 1723. IX eX *BAZIN, Germain, Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Sto Paulo, Record, 1971. p. 50. ““LEITE, padre Serafim. Histéria da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa/Rio de Janeiro, Portugalia/Civilizagao Brasileira, 1938-45. 6 v. "Idem. © Colégio de Santo Alexandre e a Igreja de Sto Francisco Xavier, de Belém do Grio-Pard. Revista do ‘SPHAN, Rio de Janeiro, MEC, 6:201-40, 1942 "VIEIRA, Mabel Leal. Inventario da imagindria missioneira, Canoas, La Salle, 1993. "SEPP, S.J., padre Ant6nio, Viagem as missdes jesuiticas ¢ trabalhos apostélicos. Belo Horizonte/S8o Paulo, Itatiaia’ Edusp, 1980. pp. 224-5. Idem. Op cit, pp. 245-6. AS ESCOLAS REGIONAIS DO SECULO XVIII Se o século XVII consagrou o predominio das oficinas conventuais na produgdo das imagens brasileiras, uma série de fatores determinaraio no XVIII a ascensto dos artistas leigos de todos os setores ligados a encomenda e a execugio de imagindria religiosa, acentuando as diferengas regionais que levariam & io nacional. caracterizagdio de escolas auténomas em pontos diversos do territ Os principais foram a diversificagdo dos ciclos econémicos, a partir da localizagdo de jazidas ‘auriferas em Minas Gerais, € 0s conflitos entre os poderes religioso civil, que culminou na dramética expulsfo dos jesuitas no ano de 1759 ¢ abriu caminho a decadéncia geral das demais ordens religiosas, A promogao das atividades ligadas ao culto catélico, inclusive a encomenda de imagens religiosas, passa entdo progressivamente para as associagdes religiosas, conhecidas pelo nome de conftarias, irmandades ¢ ordens terceiras, que aleangam notavel desenvolvimento em todas as regides da Colénia, tendo tido suas expressdes mais caracteristicas na regio de Minas Gerais, que no conheceu fundagdes conventuais, por proibigao expressa do governo portugues.’ Como todas essas associagdes tinham seus préprios santos padroeiros, compreende-se 0 25 extraordindrio aumento ¢ diversificagdo da demanda de imagens religiosas no século XVIII, destinadas 20 rovimento dos altares das novas igrejas construidas por segmentos diversos da sociedade, dos opulentos irmiios terceiros do Carmo e Sao Francisco de Assis as modestas irmandades de pardos e negros escravos. No setor da mdo-de-obra, alcangam pleno desenvolvimento neste periodo as varias categorias de ‘mecdnicos”, entre as quais as que reuniam os pintores e entalhadores, que passam 2 constituir uma Classe especial, assimilada dos profissionais liberais, pela qualificago antistica reconhecida em seu tipo de trabalho. Os escultores e “imaginérios” pertenciam a categoria dos entalhadores, fato que se justifica quando se tem em vista que freqlentemente os executores dos retébulos confeccionavam também as imagens que os integravam. Embora a distingao nao fosse rigida, no século XVIII 0 termo imaginario tem maior aplicac30 no campo da escultura de imagens de madeira, enquanto escultor referia-se de preferéncia 20 trabalho na pe: € nos metais. Jé 0 termo estatuério, que figura ocasionalmente na documentaclo de época, implica ualificagao de exceléncia para o escultor, como no caso de Francisco Xavier de Brito, chamado de “mesire estatudrio” pelo vereador de Mariana, Joaquim José da Silva.’ Finalmente, ha ainda o popular termo de fazer santos” ‘Santeiro, encontrado ocasionalmente na documentagdo setecentista indicando o “ofi designacdo esta que prevaleceu no século XIX. Entre os entalhadores ¢ imagindrios eram numerosos os mulatos e, em menor grau, 0s negros forros ou Tibertos, que no entanto raramente conseguiam atingir 2 qualificagdo de “mestre”, no tradicional sistema de trabalho das oficinas colori mérito de artistas excepcionais oriundos de camadas sociais inferiores e que lograram alcancar ess2 herdeiro do sistema corporativo medieval. © que aumenta ainda mais o disting40, como Valentim de Fonseca e Silva, no Rio de Janeiro, ¢ Anténio Francisco Lisboa, em Minas Gerais. Os principais centros produtores de imaginéria religiosa setecentista foram a Bahia, Minas Gerais. Pernambuco, Rio de Janeiro e Maranhao, onde se formaram escolas regionais, com caracteristicas técnicas ¢ mais especificas. Entretanto, apenas a Bahia e Minas Gerais j4 contam com estudos mais detalhados, ainda incipientes os conhecimentos atuais sobre a imaginéria das demais éreas, E importante lembrar ‘regides mencionadas foram também no século XVIII as que concentraram 0 poder politico ¢ 20 da Colénia, e, conseqiientemente, as de maior desenvolvimento cultural e artistico no periodo. Ivador, que conservou os privilégios de centro do poder politico ¢ administrative até ia_da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, foi um dos mais importantes pélos do barroco yambuco, que teve sua economia revigorada com a criagdo, pelo marqués de Pombal, de uma taza com anscanet 26 companhia geral do comércio para a regitio, desenvolveu uma modalidade propria do rococé religioso, com manifestagdes abrangentes no campo da arquitetura, da talha ¢ da pintura, Minas Gerais, que gragas as exploragdes auriferas tornou-se na segunda metade do século o principal centro econémico € cultural do pais, desenvolveu a mais requintada versio colonial do rococé religioso. O Rio de Janeiro, porto escoadouro do comércio com a capitania das Minas e capital dos vice-reis a partir de 1763, adaptou uma original sintese dos estilos rococd e “pombalino”. E finalmente a regido do Maranhfo e Grdo-Pard, diretamente subordinada a Lisboa até 1775 e servida por uma segunda companhia de comércio pombalina. As capitais S4o Luis ¢ Belém também alcangaram grande prosperidade na segunda metade do setecentos, cujo reflexo mais interessante foram as construgdes do arquiteto italiano Antonio Landi na ultima cidade. A ESCOLA BAIANA E MANOEL INACIO DA COSTA Entre as escolas brasileiras de imaginaria religiosa, a Bahia € a mais abrangente, e sua produgao a mais extensiva. Nao poderia ser de outra forma, tratando-se do mais antigo € principal centro da administragao religiosa na Colénia e sede do primeiro bispado, instituido em 1554. Com a criagdo dos demais bispados (Pernambuco, Maranhao e Rio de Janeiro na segunda metade do século XVII ¢ Minas Gerais, Paré ¢ S40 Paulo no século XVIII), 0 de Salvador foi elevado a categoria de arquidiocese, com jurisdigao sobre os demais, tendo sediado em 1707 0 sinodo de bispos que elaborou as Constituicdes Primeiras do Arcebispado da Bahia, convocado pelo quinto arcebispo, dom Sebastido Monteiro da Vide. Neste importante documento, que regulou o funcionamento da Igreja Catélica no Brasil até o fim de era colonial, figuram diretrizes especificas relacionadas as “imagens sagradas” veneradas nas igrejas inclusive a indieagdo de locais precisos para a colocasio dos diversos tipos de imagens e procedimentos @ serem tomados no caso das imagens “envelhecidas” ou consideradas improprias para o culto pelos bispos visitadores.” A dignidade de principal centro religioso do pais rendeu a Salvador, entre outros beneficios, ume situagdo de proeminéncia na produgio e comércio de artigos religiosos, entre os quais as imagens sacras ocupam lugar de destaque. A presenga constante de imagens baianas em igrejas ¢ colegdes particulares de diversas regides, de norte a sul do pais, comprova a extensio desse comércio, que eriou raizes no século XVIII e atravessou todo o XIX, chegando ais primeiras décadas do século XX, quando foi suplantado pela industria das imagens de gesso. Visitando em 1839 a Cidade Baixa de Salvador, o pastor Daniel Kidder surpreendeu-se com a quantidade de fabricas de imagens que ali havia, expondo santos, erucifixos ¢ objetos ar litirgicos em profusdo.* fator da produgao em série para venda a outras regiées deixou marcas determinantes na imaginaria baiana de pequeno e médio porte, levando notadamente a repetigao de formulas e solugdes, com consequiente perda de expressividade ¢ requinte técnico. Entretanto, durante todo o século XVIII e primeiras décadas do XIX, as oficinas de Salvador mantiveram um excelente nivel de qualidade na tradugao das caracteristicas basicas de suas imagens, que condicionaram sua aceitago no mercado interno. As mais constantes so 0 refinamento dos gestos ¢ atitudes, a movimentagao erudita dos panejamentos e a policromia de cores vivas com douramento vibrante, de efeito vistoso e atraente Acrescente-se ainda a dramaticidade retérica das imagens do Crucificado ¢ dos Cristos da Paixdo ¢ a suavidade algo ingénua do rosto das imagens femininas, especialmente nas representagdes da Virgem Maria Nos panejamentos as folhas de ouro sao geralmente aplicadas em superficies regulares, que aparecem “em reserva”, configurando grandes flordes nas superficies de coloragaio uniforme, realgados por pungdes de desenho variado. As policromias mais elaboradas incluiam ainda @ pintura de motivos ornamentais sobre esses flordes dourados, com novos perfis floreados ¢ delicados arranjos de flores. Marieta Alves relaciona em seu Diciondrio de Artistas e Artifices na Bahia® cerca de vinte escultores em atividade em Salvador no século XVIII e outros tantos no século XIX, acompanhados de dados de fontes primarias localizados em arquivos religiosos e civis. E uma pena que este laborioso trabalho nao tenha tido continuidade e que permanega inédita uma segunda obra do género, 0 Diciondrio de Artistas Bahianos de Judith Martins, cujos originais datilografados se conservam no Arquivo Central do IPHAN, no Rio de Janeiro Juntamente com as duas obras citadas, ¢ de consulta obrigatéria o texto do antigo professor do Liceu de Artes e Oficios da Bahia, Manuel Raymundo Querino, publicado em 1909,° referéncia basica para as atribuigdes sem documentag%o histérica, Baseadas na tradi¢ao oral, recolhidas num momento em que a jigiosa em Salvador ainda se mantinha viva, estas atribuigdes devem entretanto ser submetidas 20 crivo da andlise e critica hist6rica, determinadas pela evolugao atual dos estudos de historia da arte Entre os escultores ativos no século XVIII em Salvador sobressaem os nomes de Félix Pereira Guimaries e de Francisco das Chagas, alcunhado “o Cabra’, artista de fama lendaria, em torno do qual se fundem real Chagas e a persistente conservagilo de seu nome na tradigao oral em Salvador tém seguramente algo a ver lade e fantasia.” Observamos em publicacdo anterior que parte da fama de Francisco das ‘com sentimentos nativistas ligados 4 sua condigio de mulato, como ocorreu com o Aleijadinho em Minas Gerais e Mestre Valentim no Rio de Janeiro.* 28 Na realidade, praticamente nada se sabe sobre a vida deste escultor além do nome e apelido. A unica informago documental é 0 contrato em 1758 com a Ordem Terceira do Carmo de Salvador para a confec¢ao de trés imagens de Passos da Paixdo do Cristo, que nunca puderam ser identificadas com precisao, sendo permitida a hipotese de seu desaparecimento no incéndio que arrasou a igreja em 1788. Todas as demais atribuigdes so hipotéticas, j4 que as caracteristicas pessoais de seu estilo permanecem desconhecidas por falta de pelo menos uma atribuigdo com base histérica segura Quanto a Félix Pereira Guimaraes, nascido em Salvador por volta de 1736, onde também morreu, em 1809, ¢ que pertenceu a uma familia de renomados artistas baianos,” tudo leva a crer que tenha sido o escultor de maior destaque em Salvador na segunda metade do século XVIII. Entre as obras que Ihe foram atribuidas documentalmente por Marieta Alves figuram as imagens de So Jo’o ¢ Maria Madalena, executadas em 1777-78 para a Ordem Terceira do Carmo, o Sdo Pedro esculpido em 1785 para o altar-mor da igreja do mesmo nome e a padroeira da Igreja de Nossa Senhora da Satide e Gléria, datada de 1791 Manuel Querino atribui-Ihe ainda outras obras, notadamente a imagem da padroeira da Matriz de Santana, que, como 0 So Pedro mencionado acima, ainda se conserva no local de origem. Essas duas imagens fornecem um seguro ponto de partida para a andlise do estilo pessoal do escultor, revelando a influéncia exercida em Manoel Inacio da Costa, tido como seu discipulo.'° Conseqiientemente, imagens apontadas como sendo de autoria de Manoel Inacio da Costa e que nao coincide com o seu periodo de atividade, como a Nossa Senhora da Conceigao, 0 Santo Antonio ¢ o So Domingos, entronizados entre 1779 e 1780 nos altares laterais da Igreja de Sao Francisco de Assis, poderiam ser na realidade de Félix Pereira Guimardes.'' Observe-se que em todas essas imagens chamam a atengio a suavidade das express6es fisiondmicas, com um qué de maneirismo adocicado, o requinte do panejamento, que cai em pregas naturais, e a gestualidade refinada, caracteristicas basicas da escola baiana de imaginaria, ‘como notamos acima. Na segunda metade do século XVIII esses aspectos so tratados com grande sensibilidade, com panejamentos fartos e movimentados, que no século XIX tém tratamento mais ‘esquemético e vertical. Na geragio seguinte 0 nome mais importante foi sem diivida Manoel Insicio da Costa, que nasceu ‘em Salvador por volta de 1763 e morreu em 1857, com mais de 90 anos. Seu periodo de atividade profissional abrange portanto as duas décadas finais do século XVIII e toda a primeira metade do XIX. Na extensa relagao de obras que the so atribuidas, poucas tém documentag’o comprovante, entre as quais se situa 0 belo Senhor do Bom Caminho (Cristo Crucificado) da Igreja do Pilar de Salvador, executado em 1834. 29 ‘A comparago do Senhor do Bom Caminho com os dois Cristos da Paixio do Museu de Arte Sacra comprova a atribuigdo dos iltimos, estabelecida por dom Clemente da Silva-Nigra a partir de caracteristicas especificas do estilo pessoal de Manoel Inicio da Costa. As mais evidentes so 0 tratamento vigoroso da ‘com esquematizagdes ao nivel dos ombros de largura excessiva € do abdomen contraido, « anatomit morfologia angulosa do rosto com expressiio de softimento intenso ¢ interiorizado € 0 perizonium de drapeado abundante, com tragado sinuoso e nervoso das pregas.'? ido ao artista por Manuel Querino, a No conjunto de Passos da Ordem Terceira do Carmo, at forga concentrada dos Cristos da Igreja do Pilar e do Museu de Arte Sacra se dilui em um modelado mais liso dos corpos € na expresso suave das fisionomias. A justificagdo dessas mudangas por uma suposta influéncia do neoclassicismo na tiltima fase do estilo de Manoel Indcio deve ser vista com reserva, jé que 0 Crucificado do Pilar, de caracteristicas opostas, data de 1834, quando o artista jé tinha mais de 70 anos.13 Embora a atribuigdo dos Passos do Carmo a Manoel Inécio continue levantando problemas, 0 que pode ser facilmente observado € que o artista que os esculpiu foi também 0 autor do famoso Cristo Morto dos Santos ¢ possivelmente também do Crucificado do altar-mor, como uma simples exposto na antiga Sa ‘comparago revela a primeira vista. Tomando-se especialmente as imagens desnudas do Cristo Flagelado e do Ecce Homo (Jesus diante se que apresentam a mesma complexdo alongada, 0 mesmo tipo de modelado liso do térax ¢ de Pilatos), v membros, @ mesma suavidade na expressio fisiondmica e perizonium pr direcionamento no caimento das pregas ¢ até a repetigaio de detalhes como a borda de tecido que atravessa na ‘icamente idéntico, com o mesmo frente a dupla corda de sustentagio. A diferenga na aparéncia atual das trés imagens ¢ mera fungio da policromia, que dramatiza a figura do Cristo Morto com uma encamacdo avermelhada, acentuando as chagas ‘das mios € pés, atualmente quase negros pelos contatos de mios dos figis ao longo dos anos, pratica devocional comum nesse tipo de imagem ‘Abrimos aqui um paréntese para uma breve avaliagdo de duas magnificas esculturas, sem divida as mais draméticas de quantas se conservam atualmente nas igrejas de Salvador, cuja atribuigdo constitui um dos problemas centrais do estudo da escultura religiosa na Bahia. Trata-se da imagem de Sao Pedro de ‘Aledntara, colocado entre 1790 e 1793 no segundo altar da direita da Igreja de Sto Francisco de Assis. ¢ do localizada até agora qualquer documentagao. Cristo da Coluna do Convento do Carmo, sobre o qual ndo Atribufdas ora a Manoel Indcio da Costa, ora a Francisco das Chagas, estas obras excepcionsis ‘continuam desafiando qualquer andlise, por fugirem inteiramente aos padrées normais da escultura baiana do século XVIII. Seu dramatismo exacerbado, mais proximo da tradigdio da imaginéria hispanica do que da 30 luso-brasileira, leva a extremos a expresso do ascetismo na fisionomia macerada ¢ maos descarnadas de Sio Pedro de Alcantara, e encurva o dorso do Cristo Flagelado sob a violéncia dos agoites, convulsionando pateticamente seus tragos fisiondmicos. A hipétese mais logica € que se trate de imagens importadas, mas a questéo permanece em suspenso até que estudos técnicos ¢ estilisticos mais aprofundados venham resolver definitivamente a questa Voltando a Manoel Inécio da Costa, é importante lembrar que parte de suas obras identificadas pertence a um universo diferente do barroquismo draméitico dos Cristos do Museu de Arte Sacra enfatizando, ao contrério, aspectos mais suaves e graciosos, proximos do gosto rococd. Nesse caso situam-se imagens de dimensdes menores, como o grupo do Cristo Ressuscitado e da Madalena no mesmo muscu ¢ as imagens femininas de um modo geral, notadamente as santas penitentes Madalena e Maria Egipciaca ¢ a ‘Nossa Senhora da Satide e Gloria, da igreja de mesmo nome.'* ‘A destinagiio devocional de caréter privado, em conventos, sacristias ou residéncias particulares, explica em parte essa diferenca. Entretanto, com relagdo as imagens femininas, trata-se, como assinalamos acima, de uma caracteristica geral da imagindria baiana, acentuada a partir da segunda metade do setecentos, por influéncia do rococé, que mantém os rostos femininos em doce impassibilidade, até mesmo em detrimento da verossimilhanga iconogréfica, no caso das imagens da Virgem das Dores ou da Piedade, associadas a0 ciclo da Paixao. E curioso observar que nao é Manoel Inacio da Costa, e sim um contemporaneo seu, 0 mulato Bento Sabino dos Reis, que o texto de Manuel Querino indica como “chefe da escola de escultura de seu tempo”, incluindo entre seus di scipulos Domingos Pereira Baido, autor de um grande numero de imagens ‘espalhadas em igrejas de Salvador do interior do Estado.'* Esses escultores ¢ outros da escola baiana, cujos nomes figuram no referido texto, encontram-se ainda por estudar, bem como uma série de imagindrios ainda ‘andnimos, autores de pegas de excelente qualidade ainda conservadas em seus locais de origem, como os inyentérios do IPHAN vém revelando nos Ultimos anos.'° Um desses imagindrios andnimos deixou nas igrejas da antiga capitania de Sergipe del Rei culturalmente integrada & Bahia, um conjunto de imagens refinadas, que levam a um maximo de requinte rocoeé as caracteristicas basicas da imagindria baiana, O conjunto mais expressivo de obras desse escultor, ‘que chamamos provisoriamente de Mestre de Sergipe, encontra-se na cidade de Sao Crist6vao, onde varias ‘delas foram recolhidas ao Museu de Arte Sacra, instalado nas dependéncias da Ordem Terceira do Convento de So Francisco de Assi . Todas sao representagdes da Virgem Maria e de Santo Antonio, mas uma anélise ‘mais apurada talyez chegasse também A atribuigto dos dois Passos (Senhor Atado e Senhor da Pedra Fria) da Pardquia Santo Amaro das Brotas, no acervo do mesmo museu. As representagdes de Santo Anténio, e particularmente 0 procedente de Santo Amaro das Brotas, parecem diretamente inspiradas na imagem de propriedade da propria ordem terceira, indicada pelo cat: do museu como sendo de origem portuguesa.'” Nas imagens da Virgem, cuja pega de maior qualidade ¢ excepcional Nossa Senhora do Amparo da igreja da mesma invocacéo em Sao Cristévao 18, chamam 2 tengo os panejamentos fartos e com caimento natural das pregas, a extrema suavidade das feicdes, uuma nota de melancolia introspectiva, ¢ a tipica disposicao das cabecinhas de querubins da base, em seqiléncia longitudinal e com forte projegao lateral, A ESCOLA MINEIRA E © ALEIJADINHO. Se as imagens baianas atém-se de um modo geral a modelos padronizados, na imaginaria mi que no conheceu produc&o em série para comercializagao, reina, a0 contrério, ampla diversifica sténcias separavam dos portos litoréneos, e a multiplicagao 4 isolamento da regi equenos niicleos urbanos, fruto das incessantes prospegdes de novas jazidas auriferas e do desenvolvimento , que enormes do comércio, explicam em parte 0 fenémeno. Nos arraiais € vilas mineradores forma-se um artesan: incipiente para produc&o de artigos de necessidade imediata, que o desenvolvimento das vilas es rapidamente em categorias profissionais, incorporando um numero crescente de oficiais, organizados em diferentes categorias profissionai Entre esses artigos de primeira necessidade situavam-se as imagens religiosas, pelo tipo pecu religiosidade dos antigos habitantes de Minas Gerais, de caracteristicas marcadamente populares. Obse que, a0 contrério das regides litoraneas, onde o catolicismo foi implantado por pregadores e missionér ‘ordens religiosas, em Minas ele arribou naturalmente, como uma rotina da vida cotidiana dos prop povoadores.'? Conseqilentemente, lembrando ainda que a precariedade dos meios de comunicas: dificultava 0 fluxo de importagdes em larga escala de imagens portuguesas, a maioria das vilas ¢ até me- arraiais de uma certa importéncia desenvolveram produgio prépria, comandada por santeiros locais 9 atendiam as necessidades imediatas da demanda. Estes condicionamentos especificos estio na base da extraordinaria diversidade da imagin mineira, na qual o elemento surpresa é sempre uma caracteristica marcante. Outros aspectos que 2 identificam comparativamente & de outras regides brasileiras so a originalidade das pecas. ¢ apresentam aspectos repetitivos, 0 carter ndo-académico, fruto do autodidatismo de seus autor 32 invent idade das solugdes pldsticas adotadas, em parte para compensar a falta de modelos ou informagdes precisas. As imagens mineiras sio geralmente mais sébrias que as dos centros litordneos, e sua policromia € douramento mais diseretos, com certa uniformidade nas cores € economia no uso de oratos das padronagens. Nas feigdes transparece com freqliéncia uma certa ingenuidade, e os panejamentos nem sempre tém caimento Idgico, apesar da movimentagao barroca. Embora sejam conhecidos os nomes de pelo menos quinze imagindrios e santeiros do periodo 2» colonial em Minas Gerais,” a avassaladora fama do Aleijadinho, sobre 0 qual tradicionalmente se concentraram os estudos da escultura da regitio, eclipsou a de todos os demais. Nem mesmo Francisco Xavier de Brito, cuja influéncia foi determinante na formagdo dos escultores mineiros da segunda metade do século XVIII, teve sua obra levantada e analisada de forma exaustiva.”! Natural da regido de Lisboa, Francisco Xavier de Brito migrou para o Brasil anteriormente a ano de 1735, quando seu nome aparece pela primeira vez no contrato da obra de talha da Igreja da Peniténcia do Rio de Janeiro, com a qualificacdo de “mestre escultor”. Em 1741 ja se encontrava em Ouro Preto, onde permaneceu até 0 seu falecimento, em 1751, deixando entre outras obras importantes a excepcional talha da capela-mor da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, que integra uma série de esculturas de grande porte, As de maior impacto visual sto as do grupo da Santissima Trindade do coroamento do retabulo, que serviram de inspiragdo 20 Aleijadinho para composigo andloga na Igreja de Sdo Francisco de Assis. Embora sua obra de imaginéria independente ainda no tenha sido cadastrada, ha atribuigdes que a comparago com as esculturas documentadas do retébulo do Pilar justifica & primeira vista, como no caso da expressiva Madalena do Museu de Arte Sacra de Sto Paulo, de notavel semelhanga com 0s anjos adoradores dos nichos laterais do mencionado retabulo. E uma pena que nao tenham sido localizadas até hoje as outras imagens do conjunto do Calvario, no qual a atitude dramatica € gestualidade eloquiente desta Madalena encontrariam plena significagao formal e iconografica, Outras igdes a Xavier de Brito sdo menos evidentes, necessitando uma andlise comparativa mais detalhada para sua justificagao. Entre estas esto a Virgem coroada por dois anjinhos do Museu ‘Arquidiocesano de Mariana, a Nossa Senhora do Rosirio da Capela do Padre Faria de Ouro Preto e varias ‘outras imagens de colegdes particulares de Sao Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. jadinho, nasceu em Vila Rica por volta de 1738 ¢ morreu na Ant6nio Francisco Lisboa, 0 Al ‘mesma cidade em 1814, tendo se ausentado uma iinica vez da capitania de Minas Gerais para uma viagem ao Rio de Janeiro, Sua formagao artistica, de cunho inteiramente regional, foi feita nas oficinas locais de artistas ‘portugueses emigrados nas primeiras décadas do século, inclusive na do préprio pai, Manoel Francisco taza com anscanet 33 Lisboa, arquiteto de grande renome na época. | No campo da escultura religiosa em madeira policromada, sua obra de maior significacao é o excepeional conjunto dos Sete Passos da Paixdo do Santuério de Congonhas, com 64 imagens em tamanho natural compondo 0s grupos da Ceia, Horto, Prisdo, Flagelagdo, Coroagdo de Espinhos, Caminho do Calvario € Crucificacdo. Executadas entre 1796 e 1799 com o auxilio de uma série de “oficiais” colaboradores, as imagens dos Passos sao representativas da dltima fase de sua producdo, com os panejamentos esculpidos em largos planos cortados por arestas vivas e cabelos € barbas de deliberado efeito ‘omamental, com madeixas superpostas em sinuosidades marcadas. Nas fisionomias, os tragos habituais de seu estilo pessoal, presentes inclusive nas pegas secundarias | executadas por colaboradores: bigodes nascendo diretamente das narinas, desenho peculiar dos olhos, com acentuagdo dos lacrimais, sobrancelhas altas em linha continua com o nariz, labios entreabertos de desenho fisiondmica, inspirada em sinuoso e arcada superior dos dentes aparente. £ curioso notar que esta tipolos gravuras germanicas,” nada tem a ver com o tradicional protétipo portugués ou com 0 facies da populacio mestica local, ao contrario do que seria de esperar.” As expressdes tém poderoso efeito emocional abrangendo gama variada de sentimentos, das sublimes feigdes do Cristo, onde o sofrimento aflora de forma contida e espiritualizada, as grotescas caricaturas dos soldados romanos, segundo a tradigao medieval de identificagfo do bem a beleza ideal e do mal a fealdade deformadora. ‘Além dos Passos de Congonhas, apenas os santos carmelitas So Simao Stock e Sao Joao da Cruz da ‘Ordem Terceira do Carmo de Sabard e a imagem articulada de Sdo Jorge, que safa nas procissdes de Corpus Christi da antiga Camara Municipal, t8m documentasao histérica comprovante, As demais sto atribuigdes aseadas nas caracteristicas de seu estilo, a maioria estabelecida por antigos técnicos do IPHAN ¢ referendada no Catalogue raisonné do livro de Germain Bazin publicado em 1963. Entre as atribuigdes mais recentes que no constam do referido catélogo, chamamos a atengo para ‘duas obras excepcionais: a Santana Mestra da Capela da Terra Santa de Sabaré, atvalmente em depésito 00 Museu do Ouro, ea Nossa Senhora das Mercés, recentemente integrada ao acervo da Igreja do Pilar de Ouro 0. A primeira, provavelmente contemporanea das imagens dos santos carmelitas executadas em 1777-78, ‘obra requintada, cujo apuro técnico ¢ realgado por suntuosa policromia, tipica da regido de Sabar ento integral dos panejamentos e delicados lavores de esgrafiados e pastiglios.** As fisionomias ‘e da Virgem Menina tém tratamento realista, como as de Sao Simao Stock e Sao Jodo da Cruz, ¢ jentos caem de forma natural, nao apresentando ainda as estilizagdes caracteristicas da fase de taza com anscanet ‘Quanto & imagem de Nossa Senhora das Mereés, tudo leva a crer que se trate de obra imediatamente anterior aos primeiros sintomas da doenga, aparecidos por volta dos 40 anos do artista e de repercussdes decisivas na evolugdo posterior de seu estilo. O espirito jovial e algo ingénuo desta imagem € 0 mesmo de uma das poucas obras documentadas do mesmo periodo, o anjo portador de flores da abébada da capela-mor da Igreja de Sao Francisco de Ouro Preto, datado de 1772. O principal problema das atribuigdes de imagens avulsas ¢ a separagdo entre a obra pessoal do artista € a de seus discipulos e seguidores, Neste caso, 0 critério de qualidade da pega deve ter peso equivalente a0 das caracteristicas estilisticas, uma vez que intimeras pegas tidas atualmente como de sua autoria sio na realidade obras dos oficiais com os quais trabalhava habitualmente ou de seguidores mais tardios. Por outro lado, 0 fascinio exercido pelo Aleijadinho nos escultores de sua geragdo ¢ no desenvolvimento posterior da imagindria mineira foi um fendmeno de proporgdes to amplas que pode ser tomado como uma espécie de divisor de aguas que delimita duas grandes correntes estilisticas: a que se situa em sua esfera de influéncia ¢ a dos independentes. ‘Além dos discipulos € seguidores imediatos que copiavam fielmente os tragos de sua caligrafia, incluem-se na primeira corrente escultores de estilo préprio ¢ definido, mas que acusam um certo “ar de familia” com as obras do Aleijadinho, sem apresentar entretanto tragos marcantes de seu estilo pessoal. O caso mais curioso é 0 do seu meio irmao, o padre Félix Antdnio Lisboa, nascido em Ouro Preto em 1755 € falecido em 1838 que Rodrigo Ferreira Bretas informa “ter praticado a estatuéria sob as vistas do ‘Aleijadinho, que dele dizia que sé podia esculpir “carrancas, e munca imagens”. As imagens documentadas de Sao Pedro e Sao Paulo, descobertas ha alguns anos na Igreja do Bom Jesus de Pirapetinga,2” revelam com efeito uma técnica escultérica rude, com panejamentos caindo de forma desarticulada e dura, compensada até certo ponto pela expressividade dos gestos ¢ das fisionomias “Trés “mestres” com obra identificada, mas cujos nomes permanecem desconhecidos, situam-se também na esfera de influéncia do Aleijadinho, embora nto paregam ter pertencido ao seu circulo imediato. tis conhecido é 0 Mestre de Piranga, assim chamado pelo fato de algumas das pegas que the foram a0 sul de Ouro Preto. Os aspectos de rudeza Om ‘atribuidas serem provenientes da regitio do Vale do Rio Piranga, escult6rica que assinalamos na obra do Padre Félix sto ainda mais acentuados: ombros exageradamente panejamentos talhados de forma suméria em suleos profundos € movimentos eirculares nas mangas € Nos rostos chamam a atengao os olhos grandes ¢ esbugalhados, que valem como uma porte que Ihe so atribuidas,”* uma das mais fortes ¢ a largos, na altura dos joelhos. ‘assinatura do autor. Entre as boas pegas de grande Nossa Senhora da Conceido do Museu Mineiro de Belo Horizonte, infelizmente despojada da policromia 35 original, No excelente acervo de imagens do Museu Mineiro de Belo Horizonte, em sua maioria procedentes de uma colegao particular comprada pelo governo do Estado de Minas Gerais,”” encontram-se trés imagens Provenientes de uma capela rural da regio de Bardo de Cocais que foram tomadas como ponto de partida para a identi icaglio de um mestre dessa regio, em cujas igrejas ¢ capelas de origem encontram-se ainda ‘outras imagens de sua autoria. A mais interessante € 0 Sto José de Botas, de olhar distante € feigdes de grande suavidade, com 0 Menino Jesus tranquilamente adormecido no brago esquerdo. O terceiro escultor da esfera de influéncia do Aleijadinho e sem davida o de maior originalidade ¢ qualidade € 0 Mestre de Sabar4, identificado em 1986 pela equipe de inventirios do IPHAN.” Varias de suas imagens ainda se encontram na Igreja de Sao Francisco dessa cidade, entre as quais a padrocira Nossa Senhora dos Anjos, 0 orago Séo Francisco e um Senhor Morto extremamente expressivo. Ao que tudo indica, nfo foi conservada a documentaglo da Irmandade de Pardos do Cordio de Sao Francisco, responsive pela construgdo da igreja primitiva nas duas décadas finais do século XVIII, periodo que pode ser tomado como referéncia inicial para a datacdo das imagens. ‘No acervo do Museu Mineiro hé uma bela imagem de Nossa Senhora da Soledade de autoria desse escultor, que tem ainda obras em outras igrejas de Sabaré, algumas das quais foram recolhidas ao museu organizado nas dependéncias da Igreja do Rosério. Entre as caracteristicas que identificam seu estilo pessoal, além do referido “ar de familia” com as imagens do Aleijadinho, podem ser citados os olhos com pesada palpebra superior, 0 recorte tipico dos labios, unidos ao nariz por um acentuado sulco mediano, ¢ um peculiar desenho de orelha com ampla cavidade longitudinal Quanto aos escultores independentes, seus mentores, ao que tudo indica, foram os artistas portugueses, cuja presenca é documentalmente atestada em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII € principios do XIX, embora tenham sido mais numerosos nas cinco décadas anteriores, que assinalam o periodo aiireo do rendimento das minas de ouro O de maior projecdo foi Francisco Vieira Servas, nascido em 1720 na localidade de Servas, do Concelho (sic) de ‘seu nome jé figura entre os oficiais responsaveis pela obra de talha da Matriz de Nossa Senhora da ira, no Arcebispado de Braga. Emigrou para o Brasil ainda muito jovem, pois em 1753 Conceigiio de Catas Altas.”' Exato contempordneo do Aleijadinho, com ele concorreu em obras importantes, como a talha da Igreja do Carmo de Sabard, tendo os dois artistas falecido em idade avangada, com apenas ‘trés anos de intervalo. ‘Sua obra de imaginaria independente inclui um excelente conjunto de esculturas da Igreja de Nossa Senhora do Rosério de Mariana, cuja talha é também de sua autoria, notadamente a imagem da padroeira do altar-mor e uma expressiva Santa Efigénia negra do retébulo da esquerda. Em ambas as caracteristicas basicas de seu estilo aparecem, com grande evidéncia: corpos esbeltos e alongados; panejamento vertical das tunicas em contraste com as fortes diagonais nos mantos; olhos grandes ¢ de expresso ingénua; nariz reto com acentuada depressao na jungiio com os supercilios; e labio superior proeminente. A Vieira Servas revém provavelmente o mérito de ter popularizado em Minas Gerais 0 tema dos anjos tocheiros, tipicos da iconografia religiosa da regio Norte de Portugal, que aliam a fungdo decorativa de complementagto dos conjuntos de talha as de portadores de tachas e guardides do espago sagrado da capela-mor. Nesta corrente independente pode ser também incluido o entalhador Manoel Dias de Assis e Sousa, de qualidade nitidamente inferior & de Vieira Servas, autor de cinco imagens de madeira para a Igreja de Nossa Senhora do Rosario de Ouro Preto, que ainda se encontram no local, e provavelmente de outras nas igrejas de So Francisco de Mariana e Bom Jesus de Pirapetinga.”* Datadas do periodo entre 1800 e 1801, as imagens de Santa Efigénia, Santo Elesbao ¢ Santa Catarina de Siena, da citada igreja de Ouro Preto, podem ser tomadas como referéncia para a anélise de seu estilo algo estereotipado, embora de razoavel dominio técnico. As proporgdes so alongadas, os panejamentos retos caem em pregas mitidas ¢ as feigdes so delicadas e de expresso ausente, reproduzindo a facies portuguesa, algo deslocada no caso das representagdes de santos negros. Esta breve sintese no esgota a variedade de informages recentemente incorporadas ao tema da imagindria mineira pelo Inventério do IPHAN. Além de outros “mestres” anénimos com obra identificada, como o das requintadas imagens da Capela de S40 Jo4o Evangelista de Tiradentes, nomes que eram conhecidos apenas por referéncias documentais, como os de Garcia de Sousa e Vicente Fernandes Pinto, em Mariana, Anténio da Costa Santeiro, em Tiradentes, ¢ Valentim Correia Paes, em Sao Joao del Rei, ja comegam a ter obra atribuida com alguma seguranga. Nesta ultima cidade um escultor de renome, Joaquim éculo XIX a Francisco de Assis Pereira, nascido em 1813 ¢ falecido em 1893, prolongou até fins do s tradigdo da imaginéria sacra mineira, de influéncia barroca, desaparecida no século XX com a introdugdo do neogotico na arte religiosa e a voga das imagens de gesso industrializadas. © caso de Joaquim Francisco de Assis Pereira, cuja obra comega agora a ser levantada, pode ser posto em correlagdo com o do escultor goiano José Joaquim da Veiga Valle, seu contemporiineo célebre, nascido em 1806 na antiga Meia Ponte, atual Pirendpolis, e falecido na cidade de Goids em 1874 Prova elogliente da vitalidade da imagindria religiosa de tradigao barroca no Brasil oitocentista, suas

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