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Revista Aproximação
Capa
Gustavo Amaral
Composta na tipografia Cooper Hewiit, sob licença SIL Open Font License v1.10
Imagem da capa: Single Miniature Excised from Boccaccio's Des Cleres et nobles femmes:
Queen Medusa and Her Court
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A Revista Aproximação é uma publicação acadêmica eletrônica especializada em
Filosofia. Seu objetivo principal é veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos
daUFRJ. Estamosabertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o
da pesquisa filosófica.
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Editora-chefe
Milena Monteiro Rodrigues
Conselho Editorial
Alexandre Costa, Alice Haddad, Andrea Cachel, Antonio Rufino, Antonio Saturnino Braga,
Carolina de Melo Bomfim Araújo, Carlos Eduardo Oliveira, Celso Martins Azar Filho, Cesar
Battisti, Cláudia Drucker, Clovis Brondani, Eduardo Brandão, Elizabeth Dias, Ethel Menezes
Rocha, Fernando José de Santoro Moreira, Flavio Williges,
Franklin Trein, Gilvan Fogel, Guilherme Castelo Branco, Helio Alexandre, José Claudio
Matos, Léo Peruzzo, Lethicia Ouro, Luiz Maurício Menezes, Marco Antonio Caron Ruffino,
Marcus Reis Pinheiro, Maria Clara Dias, Mariluze Ferreira, Mário Antônio de Lacerda
Guerreiro, Mário Carvalho, Marisa Muguruza, Miguel Attie,
Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Pedro
Pricladnitzky, Rafael Haddock Lobo, Rafael Mello Barbosa, Raquel Krempel, Raul
Landim Filho, Ricardo Jardim Andrade, Rodrigo Guerizoli, Rosalie Pereira, Ulysses
Pinheiro, Valdetonio Pereira de Alencar, Vera Cristina Bueno, Vilmar Debona, Wilson
John Pessoa Mendonça.
Contato: revistaaproximacao@gmail.com
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SUMÁRIO
Editorial...........................................................................................................06
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Genealogia filosófica ou o filosófo como médico da civilização: uma reflexão acerca das
relações de poder em Foucault e Rancière sob a luz da genealogia de Nietzsche...........207
Carlos Rocha
A filosofia moral de David Hume: uma resposta ao egoísmo moral pela perspectiva da
natureza humana..................................................................................................................256
Daniel Nascimento
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EDITORIAL
No artigo 005, o articulista Fellipe da Costa busca expressar que é a partir da obra de
Abdias do Nascimento: ―O Quilombismo‖ que surge, como pensamento crítico fundamental
para reivindicar filosoficamente, o agenciamento discursivo performático e altamente
‗violento‘ dos sujeitos negros, Fellipe procura mostrar como esse agenciamento está
estruturado no âmbito dos valores civilizacionais filosóficos afro-brasileiros, em meio a uma
disputa ideológica discursiva normativa. Já no artigo 006 de Fabiano Belloube, temos as
considerações filosóficas acerca de Yi Jing, o artigo tem por objetivo responder quais são os
pressupostos metafísicos contidos no tratado Yi Jing, tratado esse que exerceu influência
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conceitos cruciais para sua compreensão. No artigo 017, ―Ética da crença na era das fake
News‖, os autores abordam, possivelmente, um dos mais relevantes temas da atual esfera
política, a saber: o problema imposto pelas "fake news". Com uma análise não só política,
mas também epistemológica e ética com a ajuda fundamental da clássica controvérsia entre os
filósofos W.K. Clifford e William James e de textos contemporâneos de Quassim Cassam, os
autores constroem um artigo essencial para o conturbado momento político dos últimos anos
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Ao tratar da leitura da realidade, Nietzsche acredita haver um problema que é defendido por
diversos filósofos: a univocidade dos conceitos. Busco defender aqui a possibilidade de
chegar-se em conceitos unívocos. Também pretendo mostrar que Nietzsche, ao falar da
pluralidade de sentidos, não tratava de conceitos, mas de hipóteses.
Palavras-Chave: Nietzsche. Operações. Kant. Conceitos.
Abstract
When treating the reality understandment, Nietzsche believes in the existence of a problem
that is protected by many philosophers: the univocity of concepts. Here I try to defend the
possibility to find the univocity of concepts. Also I intend to show that Nietzsche, when
talking about the sense plurality, was not treating concepts, but hypothesis.
Keywords: Nietzsche. Operations. Kant. Concepts
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1. Nietzsche e o perspectivismo
Até onde vai o caráter perspectivo da existência? Possui ela de fato outro
caráter? Uma existência sem explicação, sem ―razão‖, não se torna
precisamente uma ―irrisão‖? E por outro lado, não é qualquer existência
essencialmente ―a interpretar‖? É isso que não podem decidir, como seria
necessário, as análises mais zelosas do intelecto, as mais pacientes e
minuciosas introspecções: porque o espírito do homem, no decurso dessas
análises, não pode deixar de se ver conforme a sua própria perspectiva e só
de acordo com ela. Só podemos ver com nossos olhos. (Gaia ciência, § 374
apud OS ABISMOS DA SUSPEITA: NIETZSCHE E O
PERSPECTIVISMO (2004) - PIMENTA - Pág. 216)
Numa tentativa de solução desse problema Nietzsche propõe o que chamamos
anteriormente de perspectivismo. Uma das ideias centrais da sua tese são as interpretações, as
quais são, diferente do usual, não o entender de um objeto, mas o dar sentido a ele. O sentido
que damos provém do que ele chama de vontade de poder. A vontade de poder é presente em
todos os seres, sejam eles vivos ou não, e é guiada segundo os nossos instinto e desejos.
Portanto, ela mostra-se como a responsável por criar as disputas para a imposição de uma
perspectiva e, assim, de um conhecimento único:
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1 Utilizo da palavra conceito para que seja mais clara a proposta, porém, deve-se ter em mente que não há
conceitos no perspectivismo.
2 Novamente, a noção de realidade é utilizada para clarificar. Nietzsche não compreende que há uma realidade
verdadeira que apresenta as coisas em si.
3 Entendo conceito individual, nesse caso, como um conceito existente apenas para o indivíduo.
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perspectiva é não apenas o que limita nosso campo de visão, mas sobretudo aquilo que o
torna possível‖ (OS ABISMOS DA SUSPEITA: NIETZSCHE E O PERSPECTIVISMO
(2004) - PIMENTA - Pág. 215).
Acredito que a proposta perspectivista é problemática, pois creio que, ao haver uma
pluralidade de interpretações, precisaríamos de algum método capaz de medir o valor de cada
interpretação, para assim assumirmos como valiosa ou meramente uma divagação. Porém, a
maneira que avaliaríamos seria perspectiva, criando uma dificuldade para se chegar em algum
tipo de conhecimento. Por isso, os conhecimentos seriam referentes às perspectivas, sendo,
então, irregulares e refutáveis. Sendo esse o caso, de nossos conhecimentos não serem
justificáveis, todas as regras que criamos para lidar com a natureza e a sociedade não terão
razões para existir (ou, ao menos, para serem acreditadas por uma maioria). Além disso,
segundo a afirmação de Silvia ―Se as perspectivas não encontram jamais um fundo que as
suporte, é porque o próprio mundo é destituído de fundamento.‖(OS ABISMOS DA
SUSPEITA: NIETZSCHE E O PERSPECTIVISMO (2004) - PIMENTA - Pág. 216), pode-se
concluir que a própria linguagem, que é componente do mundo, é posta em dúvida, gerando,
portanto, a possibilidade de justificativas de absurdos, como totalitarismos e ‗‘terra-
planismo‘‘. Por fim, coloca-se em uma posição desvantajosa a própria proposta perspectivista,
pois, apesar de ela não pretender utilizar de justificativas ―O que precisa ser demonstrado não
tem grande valor.‖ (Crepúsculo dos ídolos, ―O problema de Sócrates‖ , ― § 5. apud OS
ABISMOS DA SUSPEITA: NIETZSCHE E O PERSPECTIVISMO (2004) - PIMENTA -
Pág. 221), ela torna-se uma tese incapaz de dizer qualquer coisa, pois perspectiviza a própria
linguagem, tornando impossível não só justificar como também compreender o que o
perspectivismo pretende.
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é possível se conhecer um conceito fora delas. Proponho, portanto, para realizar meu objetivo,
que verifiquemos a existência dos conceitos, das hipóteses e, por fim, a maneira que
funcionam o que chamarei de operações, sendo uma delas o que compreendo como
interpretação. No mais, tentarei apresentar uma maneira de conhecermos os conceitos, para,
assim, mostrar que não é possível apenas obter crenças, mas também conhecimento.
Para Hermione saber que o objeto preto que ela está segurando é uma trufa, é
para ela (ou ao menos requer dela) o estado de estar em um certo estado
(talvez psicológico). Também requer a cooperação do resto do mundo, ao
menos na extensão que trata sobre a permissão do objeto que ela está
segurando ser uma trufa (PHILOSOPHY OF MATHEMATICS:
SELECTED READINGS (1983) - BENACERRAF - Pág. 412-413) -
Tradução nossa.
Seguindo o raciocínio de Benacerraf4, no caso da experiência, a forma que a pessoa está
mental-psicologicamente vai ser determinante para como se conhecer o que é uma trufa,
juntamente das possibilidades de essa trufa ser uma trufa e, também, juntamente do ambiente
em que se percebe a trufa. Todavia, da mesma maneira que há limitações que fazem da trufa
uma trufa, há também uma extensão para que ela seja entendida como algo que não uma trufa.
Se no mundo que eu vivo é possível arremessar, pisar e até derreter a trufa, então ela pode ser,
além de uma comida, um objeto de arremesso, uma sujeira no chão, um chocolate derretido,
além de outras coisas. Portanto é compreensível concluir que um conceito na experiência
parece ter sua definição variável5.
Porém, para mim, Benacerraf está na verdade tratando do que chamarei mais à frente
de ―hipótese‖. Ela tem o papel de gerar, no lugar de conhecimento, uma crença segundo a
nossa perspectiva. Apesar disso, não posso desconsiderar toda a sua proposta, pois ao
4 Utilizo da proposta de Benacerraf sem a pretensão de considerar a conclusão pretendida pelo autor.
5 Falaremos mais sobre as minúcias do conhecimento empírico no decorrer do texto.
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mencionar sobre a cooperação do resto do mundo, parece-me de fato que a forma que o resto
do mundo se ordena é parte importante para se definir um conceito. Como mencionado antes,
uma trufa só pode ser uma trufa se é possível que ela seja, tendo em vista todos os outros
objetos: caso algo X, que denominamos como sendo, em nome, diferente de uma trufa, mas
que ao vermos suas propriedades mostra ser exatamente igual a trufa, então a trufa é, na
verdade, X, ou X é, na verdade, uma trufa. Não só isso, como também as propriedades da
trufa são designadas segundo a mesma regra e, inclusive, são os fatores essenciais para dizer
que algo é uma trufa e não uma cadeira. Este movimento tende a continuar até que se chegue
à última propriedade compositora de um objeto, a qual será auto suficiente para se definir,
justamente por não haver mais nada que a antecede. Sendo assim, discordo da forma que
Benacerraf fala que todo esses movimentos são componentes de um conhecimento, pois na
verdade são componentes de uma perspectiva que gerará uma hipótese; concordo com ele
quanto à organização do exterior à trufa, pois creio ser necessária a cooperação do mundo
para que um objeto seja esse objeto e não outro.
Ao tratar sobre as alterações possíveis no sentido da trufa, devo afirmar que elas são,
na verdade, adições feitas no seu conceito. Façamos, inicialmente, uso de um exemplo no
campo matemático para que seja possível em seguida aplicá-lo no campo experiencial: ao
pegarmos uma operação matemática que diz ―1+1 = 2‖ e outra que diz ―½ = 0,5‖, nós temos o
mesmo número ―1‖ em diferentes aplicações, e imagino que ninguém negue isso. Voltemos
agora para a trufa: quando utilizamos o conceito ―trufa‖, o qual pode ser entendido como um
recipiente doce com recheio6 (minha definição talvez possa ser refutada por uma pessoa
especialista em trufas), existem aplicações variadas para ele. Ao pegarmos uma trufa, nós
podemos, como mencionei anteriormente, comê-la, arremessá-la, derrubá-la (e então sujar o
chão), além de diversas outras coisas. Façamos então uma comparação, utilizando exemplos
simples, dessas diferentes aplicações na experiência, em conjunto com as diferentes operações
matemáticas: o número 1 designa um conceito que, junto de uma operação de soma, vai
6 Apesar de no exemplo de Benacerraf estar sendo mencionado provavelmente um fungo que chamamos de
trufa, utilizarei o doce, pois não tenho conhecimento sobre o fungo.
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passar a ser demonstrado como o resultado e não mais como o conceito compositor da
operação (1)7. Da mesma forma: uma trufa designa um conceito que, junto da operação
experiencial (chamarei assim para diferenciar) disposta para um arremesso, vai ser
demonstrada como um objeto de arremesso, o qual é o resultado da operação, e não como o
conceito compositor da operação (trufa). É entendível que pessoas pensem que o resultado é
uma trufa e que trufas são objetos para se arremessar, pois vão utilizar de referência a sua
perspectiva para a ―conceitualizar‖. Contudo, esta perspectiva não é sobre a trufa, mas sobre o
resultado da operação que a trufa está inserida. Inclusive, em casos como ―comer a trufa‖,
também não se está experienciando o conceito, mas outra operação, a qual faz da trufa uma
comida. Portanto, após a realização de operação experiencial não se conhece o que é uma
trufa. O que ocorre de fato é a criação de uma hipótese, a qual tenderá a ser entendida como
trufa e não como um resultado posterior à ela.
7 Podem e, provavelmente, vão existir outros conceitos compositores, o mesmo dito para (1) vale para eles.
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Em casos como grande parte das operações empíricas8, não há como considerar o
resultado um conceito, pois não há como se fazer uma análise deste resultado, tendo em vista
que eles dependem do ambiente para serem constituído, o que cria uma gama de variações
para resultados aparentemente iguais. Podemos ver essas variações por meio da arte: uma
cadeira posta junto de uma mesa em uma casa, ou restaurante, é apenas uma cadeira, mas a
mesma cadeira posta em um ambiente artístico, como em uma galeria, e sendo dita como
artística, é uma cadeira artística. Nota-se, então, que se não houver algo ou alguém indicando
a cadeira como artística, mesmo na galeria, e alguém vê-la ali, essa pessoa pode a entender
como apenas uma cadeira. Então, fica claro que nesse caso ocorre uma adição de uma crença
(arte)9 em um conceito. Ao ocorrer isso, nós não temos propriedades suficientes que definem
o conceito como algo diferente de uma cadeira, assim sendo, não há necessidade de uma
cadeira em uma galeria (ou em qualquer outro lugar) ser uma obra de arte ao invés de apenas
uma cadeira.
8 Existem casos, como o que veremos mais em frente, que é possível gerar conhecimento por meio de operações
empíricas.
9 Não entendo arte como um conceito, pois ela é dependente da perspectiva humana.
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movimentos de necessidade, mas sim possibilidades: no momento que sou atingido por algo é
possível que seja uma pedra, mas também é possível que seja uma trufa, um pedaço de
plástico, etc.. Da mesma maneira: é possível enxergar essa cadeira como uma obra de arte,
mesmo com as mesmas características intrínsecas de uma cadeira normal. Não há conceito
sendo gerado dessa operação experiencial, apenas interpretações. Todavia, nesses mesmos
casos pode haver conceitos sendo utilizados, pois, como no caso da trufa, ela tem a
necessidade de corresponder ao que denominamos uma trufa, caso contrário ela não poderá
ser uma trufa, assim não podendo corresponder a qualquer variação que utilize deste conceito.
Além disso, é possível utilizar principalmente nas operações experienciais de conceitos para
se formar hipóteses.
Inicialmente, penso nas operações matemáticas de forma sintética a priori, como dito
por Kant ―Os juízos matemáticos são todos sintéticos‖ (Crítica da Razão Pura (2012) - KANT
- Pág. 53) e em seguida ―...proposições verdadeiramente matemáticas são sempre juízos a
priori…‖ (Idem). A matemática10 mostra-se, e devo concordar, como uma ciência exata, a
priori e sintética, pois não utiliza da experiência em momento algum para as suas atribuições.
Concordo que pode ser discutível esse ponto, pois as operações e os números podem ser, de
certa maneira, provindos de experiências com unidades de objetos que se acabaram por virar
abstrações na razão. Penso nessa possibilidade por conseguir visualizar, de certa maneira, o
reconhecimento, após diversas repetições, de que quando temos um conjunto de coisas iguais,
algo fora do mundo sensível faz com que aquelas coisas se somem. Contudo, se olharmos
mais a fundo, a noção de somar algo, multiplicar, etc., só aparenta poder (tanto para mim
quanto para Kant, elas devem) ter sido uma abstração que foi materializada, justamente por
ser impossível se experienciar qualquer uma dessas operações. Na verdade, o que se
experiência, no caso da soma, são dois ou mais objetos juntos e iguais 11. Nada me parece
adquirível dessa união, além de que há dois objetos iguais e alinhados. Em consequência
disso, assumir-se-á aqui que a matemática é a priori.
11 Não vejo necessidade de explicitar todos os casos. Creio que ficou claro apenas com a soma.
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experiência. Contudo, creio que uma realidade em que os únicos conhecimentos puros vêm da
razão, sem qualquer toque da experiência para prepará-la é, no mínimo, absurda. Kant,
seguindo a mesma linha de raciocínio, diz: ―No que diz respeito ao tempo, portanto, nenhum
conhecimento antecede em nós à experiência, e com esta começam todos.‖ (Crítica da Razão
Pura (2012) - KANT - Pág. 45). Além disso, ele também clarifica quanto à possibilidade de
outros conhecimentos, que não empíricos, surgirem da experiência: ―Ainda, porém, que todo
o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso surge ele apenas da
experiência.‖ (Crítica da Razão Pura (2012) - KANT - Pág. 45). Esta segunda citação é
interpretada por mim como a possibilidade de, por meio do início da nossa perspectiva, criar-
se conheceres. Utilizamos as nossas hipóteses empíricas para encontrar formas distintas de
pensar. São essas, portanto, as formas a priori, pois independem de bases empíricas para se
sustentarem, mas utilizam da influência delas, da mesma maneira que um aluno utiliza da
influência do professor para se aprender a como conhecer. Kant afirma sobre a função da
experiência de maneira semelhante: ―A experiência nos ensina, de fato, que algo é constituído
de tal e tal maneira, mas não que ele não poderia ser diferente.‖ (Crítica da Razão Pura
(2012) - KANT - Pág. 46). Logo, a importância da possibilidade de se ter conhecimentos
derivados da experiência está na importância deles para a existência dos conhecimentos a
priori.
12 Benacerraf fala sobre conhecer, mas no caso proposto creio ser mais viável a noção de ‗‘se crer‘‘.
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unicamente para uma crença com maior embasamento, mas de forma alguma é suficiente para
criar um conhecimento. Nas situações dependentes do ambiente não há forma de se obter
conhecimento, pois tratam, de fato, sobre interpretações. Ocorrem interpretações nestes casos
por serem eles dependentes de propriedades além das do objeto:
Logo, no caso citado acima, sobre a pedra, o ambiente gera uma insuficiência para o
movimento de se conhecer. Isso se dá por causa desses dois problemas principais: o que foi
atirado pode ter sido trazido de fora do ambiente avaliável 13; a possibilidade de algo
correspondente a um objeto que pertencia ao local não nos faz conhecer qual foi o objeto
arremessado, i.e, ao imaginar a possibilidade de terem sido atiradas pedras em mim, pois elas
eram as únicas coisas pequenas e arremessáveis no local em que a experiência da pedrada na
cabeça ocorreu, não significa que eu saiba o conceito de pedra, mas eu sei que algo
pertencente ao chão correspondia ao que é denominado uma pedra14. O primeiro problema
existe em virtude de tratarmos do mundo sensível, onde, até agora, parece quase sempre ser
possível criar contra-exemplos plausíveis, i.e, que não pareçam absurdos para a realidade que
vivemos; o segundo é um problema mais complexo, pois seria necessário, para se tentar
conhecer a necessidade do resultado de uma operação, o conhecimento do que a compõem.
Porém, ao se ter apenas o resultado, não se é capaz de se conhecer os componentes, gerando,
então, uma impossibilidade de conhecimento da necessidade do resultado. Portanto, o que o
segundo problema acaba por causar é a possibilidade de se estar lidando com um resultado
conhecível, mas apenas ter a capacidade de interpretá-lo por não haver o conhecimento prévio
necessário.
Vejo que, diferente do proposto por Benacerraf, quando tratamos de operações que
geram conhecimento, precisamos saber como foi composta toda ela para determinarmos a
necessidade de existência do resultado, mas não precisamos saber como se chegou a isso, pois
o conhecimento independe do ambiente. Um caso em que isso ocorre é em um dos princípios
físicos, citado por Kant, que afirma que, apesar de todas as mudanças do mundo corpóreo, a
quantidade de matéria permanece inalterada. A mudança é, e creio que todos concordem, algo
provindo da experiência, pois precisamos experienciar algo em dois estados diferentes para
sabermos que mudou. Além disso, a ideia de mudança é, para mim, o correspondente a uma
operação da experiência15, da mesma forma que ―mais‖ ou ―menos‖ na matemática, porque é
por meio dela que se muda um corpo. Já a matéria é um conceito, pois mesmo sendo algo
experienciável, demonstra (ao menos para mim) uma necessidade com as suas propriedades:
independentemente da nossa existência, a matéria seguirá sendo matéria e não há formas de
dizer o contrário desde que ela esteja com as mesmas propriedades que percebemos compor a
matéria. Ambas noções, junto da ideia de quantidade, que é provinda de uma operação
matemática, formam uma operação experiencial que é capaz de gerar um conceito.
Consequentemente, a operação criada é a soma de toda a matéria sendo aplicada a qualquer
mudança. Já o resultado é a impossibilidade de criar-se matéria ou, seguindo a menção
anterior, a ineficácia da mudança para se criar matéria.
15 Deve-se notar que ―operação da experiência‖ não é equivalente à uma operação experiencial, pois esta
pretendo igualar, como dito em seguida no texto, a operações de soma, divisão, etc..
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ou das operações, mas sim a ausência de mudança no sentido dos conceitos compositores das
operações independentemente da operação em que eles se encontram.
Precisa-se esclarecer, por fim, de que maneira podemos obter conceitos por meio da
experiência. Para isso, precisamos compreender a maneira que se conhece a necessidade das
propriedades de um conceito.
Logo, para se obter conhecimento pelo uso da experiência, precisa-se saber a operação
formadora da nossa hipótese, para, por meio da nossa razão, remover qualquer ideia de
utilidade dada para o conceito e, assim, chegarmos ao conceito sozinho. Ao fazer esses
movimentos, o conceito será unívoco por levar em consideração unicamente as propriedades
que compõem o objeto analisado, acabando, enfim, com a possibilidade de variação do seu
sentido.
Considerações finais
Enfim, a tese proposta por Nietzsche, das diversas interpretações 17, existe em razão,
principalmente, da sua crença de nós mesmos conceitualizarmos o que conhecemos, dando,
assim, a possibilidade de presenciarmos apenas o resultado de uma operação experiencial,
sem que tenhamos como designar o vínculo de necessidade existente entre a operação e o
resultado. Quando tratamos apenas da nossa experiência, a tendência é que, de fato, criemos
apenas perspectivas, o que nos impede de conhecer os conceitos. Correspondente a isso,
Wood afirma:
Por fim, ele não parece dar espaço para o conhecimento por tratar apenas de operações
experienciais, o que cria a tendência de, no geral, ocorrer a formação de hipóteses e crenças
ao invés de conceitos e conhecimentos. Acredito que este seja o erro principal da sua tese: o
abandono da possibilidade da razão como juíza das hipóteses empíricas e a análise de
conceitos por meio da sua utilidade individual, não das suas propriedades. Portanto, Nietzsche
engana-se ao tratar sobre os conceitos, pois, analisa unicamente os resultados das operações
experienciais e o nome dado a eles, o que, de fato, tende a levar à conclusão de que
interpretamos os objetos e não os conhecemos.
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Referências bibliográficas
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 4a Edição. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012.
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WOOD, Allen W. Kant. 1a Edição. 350 Main Street, Malden, MA 02148-5020, USA
108 Cowley Road, Oxford OX4 1JF, UK 550 Swanston Street, Carlton, Victoria 3053,
Australia: Blackwell Publishing Ltd, 2005.
Rômulo Brito
Resumo
O objetivo desse artigo é considerar a pretensão de reformulação político-educacional de
Platão em sua obra A República. Para tal, analisamos como, em sua polêmica em relação à
poesia, estabelece os pressupostos de uma nova discursividade com os quais fundamenta sua
empresa em um contexto de disputa política que lhe é anterior, e que supera, no curso de sua
reflexão, pelo estabelecimento do éthos de que pretende dotar sua pólis.
Palavras-chave: Democracia. Paideia. Platão. Pólis
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1. Introdução
Uma das formas de concebermos o pensamento de Platão é considerando-o como uma
resposta ao momento histórico em que vive18. Um dos aspectos dessa resposta é sua crítica ao
discurso mito-poético. Como em seu pensamento uma reflexão não está totalmente
desvinculada da outra, poderíamos dizer que essa crítica surge, por seu turno, como um
momento de sua análise mais abrangente de natureza sócio-política. Mesmo esta última
poderia ser subsumida em uma ainda mais fundamental investigação cujo escopo visaria
18
CHÂTELET (1973, p. 65) opud CHAUÍ (2002, p. 225).
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19
Na Carta VII Platão nos narra como sua decepção com a política, mais do que à questão do regime dominante,
referia-se aos fundamentos desta.
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20
Salvo em duas ocasiões nas quais o partido aristocrático toma o poder: em 411 a.C. e em 404 a.C.
21
A República (558 a-c).
22
É conhecida a história de como Sócrates começou a dedicar-se à filosofia após saber o que declarara a seu
respeito o oráculo de Delfos, e como passou a questionar seus concidadãos, principalmente aqueles que
carregavam fama de sábios. Cf. Platão. Coleção Os pensadores. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural,
2000. pp. 71-73.
23
Ibid. (p. 81); Fedro (249d).
24
Protágoras (352 b-c); XENOFONTE. Memoráveis (IV; 6, 2-6).
25
Ver a esse respeito Vargas, (1994, pp. 18-19).
26
As admoestações de Teógnis a Cirno constituem evidente exemplo dessa crítica que expressa, já no século VI
a.C. – mesma época das turbulências sociais enfrentadas pelo próprio Sólon –, a resistência com a qual a nobreza
tratava a questão do declínio de sua tradição frente às reivindicações cada vez mais intensas do demos. Também
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contrapartida, pareceria haver uma relação de mútua antipatia, uma vez que, por seu lado, a
democracia também poderia reivindicar razões para desconfiar de Sócrates, não só pelo fato
da suposta ligação deste e de alguns de seus frequentadores com o anterior governo
oligárquico28, como pelo real perigo que o exercício de Sócrates e sua demanda por saber
poderiam representar. Essa pretensão de pôr um especial saber governar e exercer o poder não
feriria os princípios da isegoria e da isonomia tão caros à democracia29?
É certo que a democracia, na medida em que se caracterizaria por uma pretensa
participação de todos no poder, não poderia aceitar nenhuma preeminência sobre a
assembleia, mesmo que seja a do saber30. Como nos diz Péricles, através de Tucídides, não há
no regime democrático – devido a um processo desde há muito gestado que culmina no novo
sentido de areté – desigualdade entre os cidadãos. Aristóteles também nos dá testemunho de
as obras de intelectuais do século V a.C. partilham desse sentimento em relação ao demos. Antígona de Sófocles
representa a contraposição entre os elementos da antiga tradição e os novos que emergem no mundo da pólis.
Aristófanes também pode ser visto como representante do conservadorismo que, à custa de Sócrates em As
nuvens, procura criticar as novidades próprias de tempos democráticos como a sofística.
27
E poder-se-ia dizer também que com o advento da pólis e o surgimento da esfera pública, portanto, à virtude
política importa bem mais a aptidão do homem para submeter-se à comunidade do que propriamente qualquer
distinção da qual se valha na esfera privada incluindo aí seu ofício. A esse respeito ver WERNER, J. Paideia – A
formação do homem grego. 5ª Edição. (Clássicos WMF). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p.
146; sobre a virtude política cf. ainda Platão, As Leis (643e).
28
Como Crítias e Antifonte, que inclusive foi condenado pelo golpe contra a democracia de 411, sem falar na
desastrosa figura de Alcibíades.
29
Ver Popper, (1974, pp. 135-137) para quem tratar a questão política a partir da pergunta ―Quem deve
governar?‖, como o fez Platão, é insuficiente, pois a possível resposta ―o melhor‖ ou ―o mais apto‖ implica não
só a dificuldade empírica de se encontrar os indubitavelmente melhores, tanto intelectual quanto moralmente,
como também a admissão implícita de que o poder político seja ou deva ser ilimitado, inquestionável pelo fato
mesmo da crença de se estar sob o melhor arbítrio. Entretanto, chegando à conclusão de que esse poder, exercido
por indivíduos de tal grau de excelência, é humanamente impossível, o autor propõe que Platão teria partido de
um princípio equivocado.
30
Cf. WOLFF, F. Sócrates. Coleção encanto radical. São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 82-89, segundo o qual o
processo de Sócrates foi uma reação anti-intelectualista.
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que não há nenhum poder sobre esses ―iguais‖ que constituem o demos que delibera em
assembleia31. Pareceres especialistas são certamente considerados, mas a última palavra nas
tomadas de decisão não caberá àquele que, por conta de um saber específico, se distingue em
relação aos outros, não caberá ao técnico enquanto técnico32. Essa noção de igualdade lhes
garante a liberdade de colocarem-se como fim a si mesmos enquanto partícipes do horizonte
político maior dos destinos da cidade. É preciso, portanto, não descurar, em dado contexto,
que o ―saber político‖, o que é necessário para participar da política, não é algo tal qual o
―saber fazer‖, o conhecimento próprio dos ofícios dos artesãos e dos técnicos33, mas que essa
igualdade de condições sob a qual funcionaria a democracia seria antes o produto de um
processo de constituição do éthos do indivíduo sob a educação que a própria cidade lhe
ministra e da qual dependerá sua coesão34, ou seja, a política tratar-se-ia de um compromisso
31
ARISTÓTELES, A constituição de Atenas, (XLI, 2). Em que pese, obviamente, o caráter restrito da cidadania
em Atenas, como o próprio Aristóteles nos conta.
32
Um famoso episódio que pode expressar o fato de que um parecer especialista não detém o poder na
assembleia, embora certamente possa ser usado como um argumento de autoridade, é o da incitação de
Alcibíades, na assembleia, à campanha contra Siracusa, o que era altamente desaconselhável por outros
especialistas, como Nícias. É razoável supor que Alcibíades tenha reivindicado sua experiência militar e
autoridade de estratego ao argumentar, porém, não é razoável supor que necessariamente elas decidiram, uma
vez que outros técnicos foram contrários, mas antes sua eloquência que convenceu a assembleia à qual, detentora
do poder efetivo, coube a última palavra. Tal episódio, desastroso para Atenas, terminou concorrendo para a
intensificação das críticas ao regime assemblear.
33
Assim sendo, poder-se-ia contra-argumentar Sócrates – admitindo-se que sua posição seja tão ingênua – pelo
fato de que nem todos se dedicam a todas as artes particulares, razão pela qual Sócrates está correto em procurar,
para pilotar um navio ou construir uma casa, o mais apto. No entanto, em âmbito político, todos os cidadãos
enquanto cidadãos estão obrigados a conhecerem os processos das decisões políticas, pelo que o ideal
democrático está, ao menos em teoria, autorizado a exigir que todos os cidadãos participem de tais decisões.
Entretanto, em que consiste essa cidadania, qual sua virtude? Esta parece ser a questão para Sócrates, a análise
sobre o que seria esse elemento necessário para tomar parte da vida política da cidade.
34
Ao falar dessa forma, obviamente não estamos nos referindo a uma oficial educação estatal formalmente
sistematizada, mas das necessárias instâncias educativas que emergem da vida em comunidade política.
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com a pólis advindo da consciência deste indivíduo a respeito do processo de formação de sua
cidadania (a humanidade por excelência), formação essa que Sólon já havia vislumbrado
como uma possibilidade contra a disnomia35, e que Platão também apresentará ao seu modo
frente à democracia.
Essa diferença entre a política como uma determinada distinção que se manifestaria
também como um saber, um tipo de conhecimento específico próprio a alguns, portanto, e
uma educação do espírito sob uma nova perspectiva da disposição do poder pertinente a todos
pode nos ser de alguma valia para compreendermos que sobre a primeira opção pode estar
amparada uma das críticas aristocráticas à democracia e que se refere à capacidade intelectual
36
do demos que, aparentemente, Sócrates também encampa . Parece ser sobre um saber de
determinado tipo, ou uma especificação em todo caso, que se fundamenta essa dificuldade
que a corrente opositora levanta contra um regime político democrático: o fato de que, o
processo político sendo estendido a um contingente maior – os cidadãos –, a formação deverá
também alcançá-los todos. Mas os homens – e isso repetirá também Platão (que afinal é um
aristocrata) – não são iguais37. Isto, aparentemente, faz retornarmos à crítica de Sócrates, pois
não sendo os homens iguais e expostos ao desenvolvimento de interesses vários, que
terminarão em ocupações de um dado tipo para uns e diversos para outros, isso implicará
politicamente em que uns se ocupem dos assuntos do governo enquanto outros são
governados.
Tais constatações fizeram com que a democracia fosse alvo de críticas mais
específicas em relação às suas instituições. Tucídides, embora admirador de Péricles, não
deixa de expor a fragilidade a respeito de tal regime quando, fazendo menção à agudez
política deste, expõe que afinal o sistema ateniense era uma democracia apenas ―no nome‖
(TUCÍDIDES, 1987, p. 126). Refere-se ao exercício dos demagogos (como o próprio
35
BARROS (1999, pp. 59-60) apud KIBRIT (2012, pp. 145-146).
36
Com a diferença de que não é ao demos, necessariamente, que Sócrates crítica, mas antes todo e qualquer um.
Suas restrições não têm por fundo uma oposição classista.
37
A República (369b-370b).
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Péricles) que se valem do fato de que graças à isonomia a massa da assembleia torna-se palco
propício para esses guias, e isso porque – sendo a isegoria outro princípio fundamental das
deliberações políticas – a palavra, tornando-se instrumento precípuo dos processos
assembleares, era objeto de cultivo por parte daqueles que tinham condições de, através de
treinamento e educação específica para tal, fazer dela uso em sua forma mais elevada e
eloquente – condições a que, obviamente, nem todos tinham acesso –, ou seja, todos podiam
falar, mas nem todos falavam.38 O próprio Péricles deveu a posição a que conseguiu chegar
na pólis democrática também às peculiaridades do regime assemblear.39 A partir disso, não
fica difícil acompanhar a natureza dos argumentos que acentuam a falta de autonomia do
demos por sua insuficiência intelectual. Qual o sentido da democracia? Por que permitir a
liberdade de expressão a todos na assembleia se o povo nada entende, sequer sobre o que é
bom para si mesmo?40
A respeito dessa tensão entre um restrito saber político e a constituição mesma do
éthos, talvez seja de algum interesse atentarmos para duas falas: uma de Péricles em sua
―oração fúnebre‖ e outra de Atena na peça ―As Eumênides‖ de Ésquilo. Ambas nos trazem a
importância que, para uma formação do espírito em contexto político, tem o estabelecimento
das leis e a livre sujeição a estas. Eis o que diz Péricles:
Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições
de nossos vizinhos [...] Seu nome, como tudo depende não de poucos,
mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos
38
No monólogo do personagem Diceópolis, na primeira cena de Os Acarnianos, Aristófanes nos traz valioso
testemunho a respeito desse fato ao apresentar o sentimento de alguém que querendo falar, mas não tendo o
domínio da usança argumentativa que em tal meio vige, excogita formas pelas quais demonstrará sua opinião tão
logo algum demagogo comece a defender posição contrária à sua.
39
Sobre como Péricles habilmente ascende à posição que veio ter em Atenas suplantando Címon, Cf.
CANFORA, L. O mundo de Atenas. Tradução Federico Carotti. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras,
2015, pp. 120-124.
40
Ibid. (p. 148, n. 10). É possível, todavia, encontrar essa atitude ao longo da produção intelectual do século V e
mesmo VI; nomes como Teógnis, Sófocles, Crítias, Antifonte manifestam essa aversão radicada também em
uma reação de classe.
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Todo esse apelo à lei tem o objetivo claro de expor a importância que esta tem, em
esfera política, como um elemento igualador e propiciador de uma experiência política
determinada. A isonomia é um dos fatores mais caros a esse contexto41, sobre o qual somente
poderia ter lugar a pretensão de uma educação comum de caráter distinto daquela destinada a
alguns por privilégios de sangue e mesmo da especializada própria dos ofícios.
41
Para mais detalhes de como a noção de igualdade pôde vir a se constituir em um importante elemento da
experiência da pólis, cf. VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego. Tradução de Ísis Borges B. Da
Fonseca. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Difel, 2010, pp. 64 et. seq.
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42
Górgias (515c-516d).
43
Sobre como a própria noção de igualdade é problematizada nesse cenário de rivalidade política, cf. Canfora,
(2015, pp. 157-162) e ainda Vernant, op. cit. (pp. 101-104).
44
A República (425a-427a).
45
De paideúo – educar (uma criança). Assim, paideia – educação, formação.
46
Cf. o diálogo entre Péricles e Alcibíades em Xenofonte. Memoráveis (I; 2, 42-46).
47
JAEGER, (2010, p. 336).
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sentido no novo universo da pólis, onde a noção de cidadão vem substituir a do nobre belo e
bom48.
48
Desta forma, não é necessário supor o regime democrático como móvel dessa mudança, embora tenha nele
culminado. O processo de formação da pólis, conhecendo certos estágios, expande para um contingente cada vez
maior os elementos da cultura e os compromissos do poder. Assim sendo, pôde desenvolver-se, devido à
conjuntura de certos fenômenos sociais e políticos como o pensamento dos sete sábios e a atuação dos
legisladores, a democracia em Atenas. A esse respeito cf. Vernant, (2010, Passim).
49
O episódio mais conhecido é a recusa, da parte de Sócrates, de acatar a ordem dos trinta tiranos de ir à
Salamina buscar um exilado.
50
Górgias (521d). Cf. também nota 16 acima.
51
Mênon (71 b-c, 72a-73c); Protágoras (361a-d).
52
A esse respeito, pode ser interessante a discussão de Jaeger, (2010, p. 654), onde expressa que o saber técnico
era o modelo de saber para Sócrates. Não temos o intuito de divergir nesse ponto. Apenas atentamos para o fato
da distinção dos objetos do conhecimento que acarretará, por sua vez, em consequências distintas do
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aos sofistas, denuncia sua pretensão de querer tratar o problema da virtude como uma questão
técnica, como se fosse possível ensiná-la transmitindo-a de fora como um pacote de ―saber
fazer‖ acabado que de modo algum terá o mesmo impacto sobre a consciência que uma
descoberta levada a cabo por um esforço intelectivo interior tem. Sócrates interessa-se pela
constituição do éthos, independentemente das imagens técnicas que usa. Estas têm o intuito
de reivindicar a ação racional53, mas na medida em que, em contexto político, refere-se ao
conhecimento da virtude, essa ação racional não advém de um saber especificado, do homem
enquanto carpinteiro, sapateiro, oleiro, piloto de navios, mas do homem enquanto homem,
enquanto único ser capaz de agir teleologicamente inclusive na esfera maior para este que é a
política, enquanto cidadão. Se nessa empresa apela para uma firme racionalização, é por conta
do rigor metodológico que uma diligente correção dos juízos lhe manifesta54.
conhecimento. A tekhné, sendo uma instância prática que realiza uma dýnamis, atualizaria na alma como em
outras áreas sua potência. A distinção feita por Aristóteles entre práxis e póiesis poderia nos auxiliar quanto ao
que tentamos expressar, na medida em que o resultado desta última é algo de exterior ao indivíduo enquanto o da
primeira, como a virtude, refere-se a ele próprio.
53
Cf. A República (488a-489a), passagem na qual Sócrates, ao criticar a democracia, expõe uma famosa imagem
referindo-se ao ofício do piloto. Não são raras na obra de Platão as alusões de Sócrates ao conhecimento técnico.
Não obstante a dificuldade em distinguir, na sua obra, Platão de seu mestre, um caminho a partir do qual
poderíamos vislumbrar, com algum escrúpulo, tal possibilidade é justamente recorrer a esse tipo de saber uma
vez que, desinteressando-se Sócrates pela cosmologia por entender que o conhecimento da phýsis cabia somente
aos deuses, acreditava ser o conhecimento técnico pertinente ao ser humano do que nos dá testemunho
Xenofonte nas Memoráveis (I; 1, 6-8). A respeito de como Sócrates tem no conhecimento técnico –
principalmente a medicina – um paradigma ver Jaeger, op. cit. (pp. 518-520). Um outro caminho é a
investigação conceitual de Sócrates que tem por objeto o universal, e, ao que parece, concerne ao método
empregado pelo próprio – e que provavelmente é um dos pontos de origem da Teoria da Formas – como nos diz
Aristóteles na Metafísica (M, 4, 1078b, 25-35). A respeito do conhecimento do universal em Sócrates ver Wolff,
(1982, pp. 62-81) e também Mondolfo, (1966, pp. 144-145). Sobre a dificuldade, porém, de distinguir Sócrates
na obra platônica, temos um interessante debate em PERINE, Marcelo. Platão não estava doente. 1ª Ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2014, onde o autor propõe que, por trás de seus personagens, teríamos na verdade um
possível posicionar-se de Platão.
54
ARISTÓTELES, Metafísica (M, 4, 1078b, 20-25).
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55
Cf. Jaeger, op. cit. (p.147).
56
O termo ―politeia‖ entendido como a constituição de uma cidade enquanto suas instituições legais desde a
função de governo e as atribuições de direito até ao caráter espiritual da comunidade.
57
A República (435d-e).
58
O tema da virtude – areté – é recorrente na história grega, e sua vinculação ao fenômeno educativo e, portanto,
ao ideal de um determinado tipo de homem desde há muito verificada; começando como prerrogativa da nobreza
e passando, através de uma mudança da própria noção, a um meio político. A respeito dessa evolução da areté,
ver Jaeger, (2010, pp. 246-250).
59
Cf. Havelock, (1996, Passim) para quem a discussão de A República gira em torno, na verdade, da questão
educacional. A esse respeito ver também Jaeger, op. cit. (p. 766.)
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levanta pelo menos dois tipos de crítica à democracia, que veremos depois serem estendidas à
poesia: uma de caráter moral e outra intelectual60. Na verdade, tais críticas se dirigem a toda e
qualquer forma de governo que, na sua opinião, não se exerça sobre as bases corretas61.
No livro VIII de A República, Platão traça um itinerário da degeneração dos caracteres
que se refere à degeneração dos governos. A questão política está – novamente o repetimos –
vinculada à questão moral, a crítica não é exatamente à democracia, ela é uma consequência.
É manifestação do caráter que vigora na cidade como o são também a timocracia, a oligarquia
e, finalmente, a tirania. É sob Péricles que veremos na democracia aquilo de que está falando
Platão. Em sua administração da coisa pública, Péricles não exerce o sentido do poder que é o
bem da cidade, o bem dos cidadãos, não os torna melhores, apenas os adula, ou seja, somente
perpetua a produção de caracteres deformados acarretando em uma degradação da própria
política62. Há uma razão para isso que nos remete ao segundo tipo de crítica. Péricles exerce a
política sem conhecimento. É evidente o que Platão procura expressar: sua crítica assenta
sobre um critério, o conhecimento. A democracia é ela mesma uma degeneração para Platão,
não por causa da democracia em si, mas pela sua incapacidade em satisfazer o critério por ele
estabelecido. Essa crítica, aliás, já era levantada pelo partido aristocrático – não há
conhecimento no demos. Porém, dada a amplitude de sua reflexão, Platão a estende para além
60
Quanto à crítica de caráter moral à poesia, modelar exemplo é a fala de Adimanto (364b-365a) no livro II de A
República a respeito do que a narrativa poética tem dito dos deuses. Ver ainda livro III (388a-389b). No que se
refere à crítica de caráter intelectual, esta decorre, de modo evidente, de uma notória falsidade do que é dito.
Ora, a verdade de um discurso é condição precípua para o seu valor de conhecimento.
61
Carta VII (325c-326b) onde Platão menciona que todas as póleis – e não apenas as democráticas – são mal
governadas. Platão é um pensador político antes que um mero antidemocrata. Suas críticas contra a democracia
podem ser vistas sob a ótica de que o regime democrático é um dentre os vários a serem analisados por um
pensador de sua estatura, além da circunstância óbvia de que é o regime que sua cidade, Atenas, lhe depara. Não
esqueçamos, porém, que mesmo uma cidade por ele admirada, como Esparta – que não é democrática –, terá
suas instituições criticadas em As Leis.
62
Górgias (503b-504e).
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da democracia, uma vez que esse é o teor de sua crítica a Péricles, e é também o teor das
reflexões do estrangeiro no Político (292a-d):
ESTRANGEIRO: E então? Alguma dessas constituições será exata se
definirmos simplesmente por estes termos: ―um, alguns, muitos – riqueza ou
pobreza – opressão ou liberdade – leis escritas ou ausência de leis‖?
SÓCRATES, O JOVEM: Nada o impede, realmente.
ESTRANGEIRO: Pensa melhor, atendendo a este ponto de vista.
SÓCRATES, O JOVEM: Qual?
ESTRANGEIRO: O que dissemos de início subsistirá ainda, ou já não
estamos mais de acordo?
SÓCRATES, O JOVEM: A que te referes?
ESTRANGEIRO: Que o governo real depende de uma ciência. Creio que o
dissemos.
SÓCRATES, O JOVEM: Sim [...]
ESTRANGEIRO: Ora, para sermos consequentes aos nossos princípios, não
nos apercebemos de que o caráter que deve servir para distinguir essas
constituições é a presença de uma ciência, e não a ―liberdade‖ ou a
―opressão‖, a ―pobreza‖ ou a ―riqueza‖, ―alguns‖ ou ―muitos‖?
SÓCRATES, O JOVEM: Nem se pode pretender de outra forma.
(PLATÃO, 1979)
Entramos em uma seara cara a Platão ao nomearmos o conhecimento. Dessa sua
crítica de cunho intelectual ao regime que, ao aventurar-se a atuar sem o conhecimento,
apenas dá vazão à outra instância própria do espírito, a saber, a dos desejos e apetites – e
destes, os mais baixos –, vamos dar diretamente em seu projeto educacional no qual a forma
mais elevada do conhecimento, a filosofia, é o estágio final. Isto de tal forma que sua célebre
afirmação acerca da necessidade do governo dos filósofos, longe de ser uma mera fórmula
manualesca, é antes a expressão da convicção de que da feliz conjuntura entre conhecimento
e exercício político se engendra a finalidade da cidade: a execução do Bem63. Esta está
condicionada a um organizado arranjo entre as estruturas sociais da cidade nas quais o Bem
se manifestará diversamente como virtudes próprias a cada uma.
A pólis deve ser virtuosa como virtuoso deve ser o indivíduo. A virtude liga o homem
e a cidade, pois o homem não é senão uma cidade em miniatura e a virtude que cabe a uma
como ao outro é a justiça, que Platão entende como saúde, como própria da natureza
63
A República (540a-b).
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humana64. E se vai buscá-la na cidade em escala maior para melhor apreciá-la, em escala
menor no homem, é porque deste emana para aquela. Mas a realização da justiça ocorre
concomitantemente à interação entre outras três principais virtudes: a temperança, a coragem
e a sabedoria65. Apesar da crença nos efeitos da educação sobre o espírito, Platão não parece
disposto a sustentar que o conhecimento mais alto caiba a todos. Eis porque a cuidadosa
seleção, que passa por uma definição da índole destes que poderão ter a robustez de caráter e
intelectual necessária para ascenderem aos estágios mais altos de sua formação, toma lugar
importante em sua empresa.66 Daí deriva seu mito das classes, a mais alta das quais, passando
por um processo árduo de preparação, deverá governar67. Aqui Platão parece ecoar antigos
preconceitos de classe. Como nosso intuito não é nos colocarmos como capazes de dizer o
que iria ou não no espírito do filósofo, temos de mencionar ao menos que essa superioridade
nada tem a ver com privilégios de sangue que perfazem classes fechadas, a nobreza de que
fala Platão é uma nobreza de índole na qual as classes não se encerram, o filho de uma classe
pode, eventualmente passar à outra. Ademais, podemos ter em mente que o tipo de vida frugal
e ascética que Platão prescreve à classe mais alta não constitui um privilégio no sentido que a
nobreza convencional de sangue entenderia.
Da admissão de uma reciprocidade entre a cidade e o indivíduo Platão poderá, muito
convenientemente, conformar às classes que a estruturam sua concepção tripartite da alma, a
qual se divide em uma parte desiderativa, outra irascível e, a superior, racional. Cada uma das
quais, como as classes do Estado, apresentará uma característica virtude. Como já dito, a
justiça, a saúde tanto do Estado quanto da alma, depende de uma correta ordenação entre
essas estruturas; o seu ocupar o lugar que lhe cabe, submetida ou liderando. À maior parte,
que na alma se liga ao desejo, corresponde na cidade ao povo e é responsável pela
64
A República (444d).
65
Cf. A República (427e-434d), onde Sócrates promove uma caça das virtudes cuja conjuntura constitui a cidade
justa.
66
A República (374e-376c).
67
A República (414d-415c).
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temperança; a parte irascível da alma, que corresponde na cidade aos que Platão denomina
guardiões,68 é responsável pela coragem. E finalmente sua parte racional, que sendo a
superior deverá liderar, correspondendo na cidade aos governantes, é responsável pela
sabedoria. Atentemos então, algum tanto, a esta última. Vejamos o cuidado que o filósofo
dispensa à parte mais alta dos homens que, pertencendo à camada mais alta da cidade, têm o
dever de governar.
68
A República (424c). Esses são os responsáveis por proteger a cidade não só no sentido militar, mas também no
de seu caráter e suas instituições. Devem zelar pela integridade da politeia. Deles sairão os governantes-
filósofos.
69
Conhecida passagem desta sua mudança de perspectiva temos em Fédon (99d-101d).
70
Menon (74b-75b).
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conhecer a essência de algo por meio das definições71. É sabido que o método de investigação
conceitual de Sócrates manifesta-se na clássica pergunta ―o que é...?‖; esta, por sua vez, exige
algo de bem específico, uma determinação tal que, afastando qualquer equívoco, enseje a
delimitação rigorosa de algo, sua forma. E isto de modo que esta não possa, sob qualquer
hipótese, ser aplicada senão àquele algo e somente a ele como sua essência. Platão apreende
essa intuição de Sócrates, a amplia e a leva adiante. A verdade, a inteligibilidade da forma é
da ordem da linguagem, não do mundo físico, portanto, mas da alma humana. Por isso, Platão
debruça-se sobre a investigação dessa ―forma‖ que era pressuposta pela pergunta socrática.
Porém, mais ainda, realmente aqui parece conversar não só com seu mestre, mas também com
Parmênides para quem a inteligibilidade do real radica-se na unidade do Ser. Todavia,
tomando partido de Sócrates, e complementando Parmênides, essa inteligibilidade não é
exclusividade do Ser senão de outras unidades inteligíveis ou formas que a linguagem
perfaz72. De outro lado, agora juntando-se ao pensador de Eleia – cuja identidade entre ser
pensar e dizer que postula é princípio ontológico fundamental – para ultrapassar Sócrates,
atribui a essas formas as características do Ser eleata. Por isso, reivindicará também a
realidade dessas unidades que é imprescindível para toda a novidade que propõe. Elas não
podem ser meros constructos intelectuais que se realizam simplesmente nas definições 73,
embora sejam da mesma natureza que a alma, o que possibilita a esta sua apreensão74; Platão
71
Devido a esse deslocamento do exterior para o interior mesmo os objetos investigados por Sócrates não são os
da natureza, do mundo físico dos pré-socráticos, mas elementos constituintes do caráter humano, de onde vem
sua preocupação ética.
72
A República (507b).
73
Parmênides (132b-c).
74
O tema da identidade de natureza entre essas duas instâncias, que Platão nos apresenta em (507c-509a) no
livro VI de A República sob a imagem da semelhança entre a visão e o objeto visível, vem acompanhando um
conjunto de argumentos que, ligando-se à sua teoria da reminiscência e, portanto, à imortalidade da alma, busca
sustentar a possibilidade do conhecimento. Cf. também o Mênon (81c-d; 86b-c). Sobre o fato de essas Formas
não virem da experiência estando em nossa alma, não como suas construções, mas como elementos inerentes a
essa, ver ainda o Fédon (74d-75d).
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lhes atribui um estatuto ontológico forte, elas são o real75. Daqui vem a crítica que Platão
sofre ao longo da história da filosofia acusado de ter promovido uma cisão metafísica da
realidade em sensível e inteligível76. Porém, tendo em vista a força persuasiva que essa nova
dimensão lhe depara, Platão não hesita em extrair, do rigor do exercício especulativo que ela
enseja, os critérios dos quais dotará sua paideia.
Mas quem detém o modelo educacional frente ao qual Platão lança sua empresa? Aqui
nos debruçamos sobre a peculiar e obstinada oposição de Platão à poesia. É esta que possui
desde antanho a prerrogativa pedagógica entre os gregos, sendo Homero e Hesíodo
considerados os ―professores da Grécia‖. A crítica aos poetas não era novidade. Xenófanes e
mesmo Heráclito já haviam se levantado contra a pretensão educativa atribuída a seus
antecessores, mas a investida de Platão os supera em muito pela grandeza do seu projeto
arquitetado sobre bases conscientemente distintas, uma vez que busca produzir, na cidade
justa, um tipo de homem eminentemente outro.
Segundo o entender de Platão, a poesia não tem atributos para que se arrogue esse
papel. Se a função da educação é formar o caráter segundo o ideal da areté, a ação educadora
da poesia é insuficiente, produzindo em vez um caráter deformado incapaz da dignidade
moral e intelectual que pleiteia ao homem justo. Mais certeza disso tem quando a compara
com os ditames teóricos baseados no rigor racional das Formas. Como dissemos
anteriormente, Platão critica a poesia tanto moral quanto intelectualmente. No diálogo Ion, já
afirmara que o poeta fala sem razão77. Por quê? Conquanto a questão no Ion seja um tanto
distinta, tentemos captar o cerne do que o filósofo nos diz. A poesia e a arte em geral são para
Platão um exercício de caráter mimético, ou seja, de imitação. Ora, segundo sua Teoria das
Formas, este nosso mundo sensível guarda o mesmo tipo de relação com o mundo inteligível
daquelas. A cisão ontológica proposta por Platão pelo estabelecimento das Formas reais e
inteligíveis supõe que o que nosso mundo tem de real só o tem enquanto se aproxima
75
A República (476c-d).
76
Da qual um dos primeiros expoentes é seu discípulo Aristóteles.
77
Ion (533a-534e).
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daquelas, imitando-as78. Assim sendo, o objeto produzido pela arte que imita o mundo
sensível, este mesmo já uma imitação, é o que de mais afastado há em relação ao real. Essa é
uma crítica contundente quanto ao caráter intelectual da arte. Além do mais, no caso da
poesia, não deixa de fazer observações sobre a forma da sua linguagem, sua léxis que não
parece concorrer para o aperfeiçoamento do caráter, antes desvirtuando-o79 e levando riscos
também para o pensamento.80 E isso porque a arte tem a particular característica de falar à
parte mais baixa de nossa alma81. Ora, se assim for, o que ela ocasiona é um prejuízo
cognitivo devido a um evidente estado de ignorância causado – graças à sua ação – pelo
impedimento de a parte mais elevada de nossa alma, aquela que deve governar, acessar as
Formas inteligíveis que lhes são de natureza assemelhada. Levando em conta que o contexto
em que se fala aqui é o da constituição da areté sob critérios racionais é muito importante,
além do mais, o cuidado com o discurso que se vai produzir sobre perfis geradores de valor,
como os dos deuses e dos heróis82. O que a poesia épica tem dito desde há muito sobre o
divino não condiz com a ideia que dele, seguindo os princípios de seu rigor racional, Platão
constitui. Se ela é capaz de dizer o falso por essa displicência de, querendo se passar por
narrativa histórica, não submeter seus relatos ao ferrenho crivo da razão, deve-se constatar
sua incompetência para a tarefa. Por isso, Platão produz uma série de mutilações nas obras
dos poetas visando não só a correção dos discursos como também a construção de perfis mais
austeros.
Considerações finais
Como foi dito, o combate de Platão à poesia aparece nesse quadro como um momento
de sua reflexão mais ampla de caráter político-educacional, pois sabe que falar de uma
78
A esse respeito ver o famoso mito da caverna no livro VII de A República.
79
A República (395a-396b).
80
A República (595b).
81
A República (603a-b).
82
A Republica (377d-383c).
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83
Críton (49c-50c).
84
Górgias (481c-d).
85
A República (509b).
86
A República (500b-501c).
87
A República (591c-592b).
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Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. A constituição de Atenas. Tradução, apresentação, notas e comentários
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VARGAS, M. Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Ômega, 1994.
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Resumo
No presente artigo procuraremos expor como os valores civilizacionais afro-brasileiros
podem surgir como possibilidade de agência em meio a uma disputa discursiva ideológica
normativa, a partir das análises sobre a célebre obra O Quilombismo de Abdias do
Nascimento, entendida como efeito de pensamento crítico fundamental para se reivindicar
filosoficamente o agenciamento discursivo dos sujeitos negros.
Palavras-chave: Análise do Discurso. Filosofia Política. Ideologia.
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1.Introdução
Partindo da premissa de que determinados discursos sofrem com o silenciamento, é que se
percebe as intencionalidades implícitas nas estruturas de produção discursiva. Em razão disso,
o presente artigo visa atender às urgências desse problema com a tentativa de se pensar a
possibilidade de uma construção discursiva agenciada para os sujeitos negros, entendendo os
negros afro-diaspóricos como agentes fundamentais do processo de transformação discursiva.
Tomaremos como base o pensamento crítico de Abdias do Nascimento em O Quilombismo
(2019), justamente por entendermos o caráter de atemporalidade e legado intelectual
inestimável desta obra no que tangencia compreender a sociedade brasileira e suas dimensões
sistêmicas de preconceito racial, como também, das possibilidades que surgem através do
pleno reconhecimento dos saberes africanos-diaspóricos como genuínos caminhos de
instrumentalização política agenciada.
De antemão, procuramos deixar evidente que nossa exposição não pretende explicar o que
fundamentalmente seria um discurso em seu sentido estrito e primordial por dois motivos, o
primeiro: porque existem compreensões diversas do que seria um discurso, é praticamente
impossível reunir todo um período acerca da história da linguagem num espaço reduzido para
exposições, segundo que: fugiria da nossa proposta, que é pensar objetivamente as dimensões
de assujeitamento e agenciamento a partir da discursividade. Sinalizamos, enfim, que as
referências utilizadas em nossa exposição dão suficientemente conta de contribuir e favorecer
esta investigação, sem deixar que o entendimento sobre os discursos seja negligenciado.
Explicado melhor, nossa exposição se baseará da seguinte maneira: na primeira parte do
artigo, mostraremos os caminhos percorridos pela filosofia política no que tange a
constituição dos discursos e o assujeitamento ideológico, a partir das leituras de Michel
Foucault e Michel Pêcheux, a saber, como as tradições políticas ressignificaram os atos de
enunciação e seus sujeitos a partir de um entendimento político e ideológico sobre a
linguagem. Em seguida, direcionaremos a discussão para às opressões do capitalismo,
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O autor parte da premissa de que determinados discursos são temidos pela estrutura de
poder justamente pelo caráter divergente de seus conteúdos, na medida em que escapam dos
regimes significantes. Foucault atribui a esse ato o princípio de exclusão, ou seja, uma
restrição sobre o que pode ou não ser dito nas experiências da convivência social. Sobre a
violência discursiva, podemos perguntar: o que seria produzir um discurso violento? Existe
algum entendimento sobre a violência nos discursos? Quais seriam os limites éticos para
exercer uma discursividade considerada violenta? Quem exerce as posições de fala e escuta
nas relações de produção e recepção de discurso? Existe alguma estrutura normativa e
dominante que restrinja os discursos? O que Foucault pretende dizer com conceber uma
violência às coisas? Entende-se a violência neste contexto, não como um convite à violência
propriamente dita, mas se estabelecer condições relacionais diferenciada com a
discursividade, como ordenar as pluralidades discursivas, impor violentamente a
descontinuação dos ‗‘acasos‘‘ históricos, realizar as mudanças históricas no interior da
própria história e seus arquivos.
Bem, o princípio fundamental nas análises de Foucault sobre os discursos, e que se faz
pertinente para entender essa questão da violência, é o princípio de especificidade que explica
as diversas camadas que compõem os discursos e seus atravessamentos históricos. ‘‘Deve-se
conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes
impomos em todo caso‘‘ (FOUCAULT, Michel, 1996, p. 53). Neste princípio de
especificidade, o filósofo sugere que os sujeitos não atribuam aos discursos um caráter de
normalidade, como se os discursos dissessem apenas o que extraímos imediatamente deles, é
preciso, pois, exercer uma prática de desconfiança com os discursos, capturar a
intencionalidade histórica dos mesmos.
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em suas particularidades, pois leva em consideração não encaixar sujeitos mas as múltiplas
variáveis na totalidade do agenciamento performativo desterritorializado, é que
substancialmente se faz aumentarem as possibilidades de efetuações variáveis de sentidos, de
capacidades de performance de dizeres sobre outros dizeres, de prolongamento e
diferenciação dos discursos no decorrer dos acontecimentos históricos, enfim, a
discursividade agenciada se encerrando e fundindo em si mesma, é a intensidade da diferença.
O conceito de agência, extraído originalmente de uma interpretação dos autores sobre a
concepção maquínica de Franz Kafka, é encontrado nas principais obras da dupla de filósofos
franceses Deleuze e Guattari. Na literatura deleuziana propriamente, o agenciamento
maquínico passa a ser um conceito necessário para se pensar as transformações incorpóreas
de dadas sociedades e seus processos históricos, e faz parte de uma análise crítica direcionada
ao sistema capitalista e suas contradições, bem como à linguagem abstrata, redundante e
normativa. O agenciamento possui em totalidade um caráter de efetuação necessária e
variável e está ambientado sobre um plano de consistência imanente em que os indivíduos
extraem os atos de fala para enunciarem seus discursos diretamente – em última fase,
transformados em enunciados indiretos.
É evidente que as palavras de ordem, os agenciamentos coletivos ou regimes
de signos, não se confundem com a linguagem. Mas efetuam a condição
desta (sobrelinearidade da expressão); preenchem, em cada caso, esta
condição, de forma que, sem eles, a linguagem permaneceria como pura
virtualidade (caráter sobrelinear do discurso indireto). (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 25).
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ato de consistência política necessário, logo, a partir de uma agência negra desterritorializada
violenta é que se sucederão as transformações incorpóreas, pois ‗‘Cumpre aos negros atuais
manterem e ampliarem a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e de afirmação
da sua verdade‘‘ (NASCIMENTO, do Abdias, 2019, p. 290). No que tange o agenciamento
da comunidade negra brasileira, podemos afirmar que a luta antirracismo é uma luta legítima
historicamente e que, portanto, performar um agenciamento discursivo forneceria condições
de rompimento com o harmonioso consenso maquínico dominante brasileiro onde os
discursos dos negros ocupam um lugar histórico de subalternidade.
Essa obra, em contrapartida, oferece uma agência política baseada na experiência peculiar
da diáspora brasileira quilombola fundamentada por negros escravizados, a proposta de
quilombismo que se ressignifica para as gerações atuais. ‗‘A cristalização de nossos
conceitos, definições ou princípios deve exprimir a vivência de cultura e da práxis da
coletividade negra, deve incorporar nossa integridade de ser total, em nosso tempo histórico,
enriquecendo e aumentando nossa capacidade de luta‘‘. (NASCIMENTO, do Abdias, 2019,
p. 289). O ato de se aquilombar como propõe Abdias do Nascimento, pode ser compreendido
como um modelo de agenciamento que facilita os processos de emancipação dos negros sobre
as opressões da governança dominante, sendo possível capturar nos discursos de Abdias
caminhos para utilizá-los como instrumentos de movimentação política racial e re-
humanização de sujeitos, responsabilizando o sujeito negro e sua produção discursiva ao
tensionar o ‗‘habitual‘‘ lugar de ‗‘passividade‘‘ das construções discursivas negras frente aos
‗‘harmoniosos‘‘ consensos históricos, atualmente tão fragilizados e pressionados a mudarem
significativamente rumo a pluralidade ideológica.
Considerações Finais
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Fabiano Belloube
Resumo
O Yi Jing é um dos textos mais antigos a que se tem acesso, tendo exercido influência sobre
algumas das principais escolas de pensamento da China clássica, com destaque ao
confucionismo e o taoísmo. O presente artigo objetiva dar resposta à seguinte questão:
quais são os pressupostos metafísicos contidos no tratado? Utilizaremos, para tal finalidade,
comentários que abordem diretamente o texto sob uma perspectiva filosófica (notadamente
os de Wu Jyh Cherng, Zhu Xi e François Jullien), bem como nosso próprio esforço
interpretativo.
Palavras-chave: Dualidade. Metafísica. Yi Jing.
Abstract
The Yi Jing is one of the oldest known texts, having had influence over some of the major
schools of thought of China‘s classical period, with an emphasis on Confucianism and
Daoism. This article seeks to answer the following question: what are the metaphysical
assumptions underlying the Yi Jing? We resort, for that objective, to commentaries that
directly analyze the text-subject with a philosophical approach – such as Wu Jyh Cherng‘s,
Zhu Xi‘s and François Jullien‘s works – as well as our own explanatory effort.
Keywords: Duality. Metaphysics. Yi Jing.
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1.Introdução
Dentre os fatos culturais que imbuíram o espírito chinês em seus três milênios de
registro histórico, destaca-se excepcionalmente o Tratado das mutações (易經, Yi Jing).
Com origem estimada durante a regência Zhou, aproximadamente no século XII anterior à
era comum88, subsistiu até a contemporaneidade como fundo ideário a diversas, mesmo
conflitantes escolas de pensamento, constituindo à sabedoria chinesa um patrimônio
primacial89. Tal patrimônio refere-se à filosofia da mudança (易 yi) proposta pelo
manuscrito, a qual parece ser motivada pelo seguinte projeto: (1) parte-se da premissa de
que a mudança é constitutiva da realidade, ou mesmo idêntica a ela; (2) busca-se ordenar
os ―momentos‖ possíveis no fluxo de manifestações, de modo a se estabelecer sob que
formas simbólicas a mudança pode ser apreendida; (3) desta compreensão, faz-se possível
acessar, a partir do contexto presente, o direcionamento natural e necessário da
mudança, alinhando-se a ele e, desse modo, à realidade mesma. Nos parágrafos
seguintes, desenvolveremos esse projeto com vistas a compreender as raízes filosóficas
que o embasam. Embora cientes da insuficiência da via teórica para a compreensão direta
88
Razão pela qual teria sido originalmente chamado Zhou Yi. Acredita-se que textos análogos, precursores do
manuscrito a que temos acesso, tenham surgido nos períodos Xia (aprox. 2000 A.E.C.) e Yin (aprox. 1600
A.E.C.),respectivamente. Cf. Cheng, C.-Y. (2008).
89
Em especial, confucionistas e taoístas igualmente recorrem ao Yi Jing. Cf. Wilhelm, R. (1984) e Wu, J.-C.
& Souza, M. C. (2015), para traduções de um e outro viés.
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2.Desenvolvimento
90
Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado das mutações. Rio de Janeiro: Mauad X, pp. 28-29.
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manuscritos herméticos tais que, estudados por mais de 100 anos, permitir-lhe-iam
conhecer o princípio da dualidade e construir, a partir dele, oito trigramas que embasariam
o conjunto dos 64 hexagramas do tratado ( 卦 guà, i.e., símbolos do que chamamos
momentos possíveis no fluxo de manifestações). Elementar à doutrina do Yi Jing, diz-nos
o mito, é a generalização da duplicidade, donde todos os hexagramas serão constituídos
por uma combinação possível de linhas de um entre dois polos, yin ou yang.
693794
91
00, Decisão. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 51
92
63, Grande Imagem. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 452.
93
Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado das mutações. Rio de Janeiro: Mauad X, p. 51.
94
Ibidem, p. 452.
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No hexagrama Paz (泰 Tai)c, composto por três linhas yang sob três linhas yin,
temos um momento favorável de ―troca entre o céu e a terra‖95, pois a terra,
representada pela tríade yin, age de acordo com sua natureza passiva e se rebaixa ao
encontro do céu, o qual, simbolizado pela tríade yang, age de acordo com sua natureza
ativa e ascende ao encontro da terra, de modo que ambos os opostos unam-se
espontaneamente. Em contrapartida, o hexagrama inverso, em que as tríades yin e yang se
situam nas posições contrárias, receberá o nome Estagnação (否 Pi)d, conotando impasse
e limitação, já que o céu, agora acima, e a terra, agora embaixo, não mais se encontram: o
céu pode apenas seguir subindo, a terra descendo, de modo que a disjunção entre ambos
perpetue-se indefinidamente.96
97
109811
95
56, Grande Imagem. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 408.
96
Para os critérios de interpretação aqui utilizados, cf. Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado
das mutações. Não negamos a existência de outros recursos interpretativos, haja vista que, enquanto oráculo, o
Yi Ji sempre incorrerá a algum grau de subjetividade (cf. adiante). O critério do Mestre Wu Jy-Cherng
cumpre, aqui, papel ilustrativo do ―modo de se pensar‖ partilhado pelos intérpretes canônicos como Confúcio
e Rei Wen, bem como por comentadores consagrados como Zhu Xi.
97
Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado das mutações. Rio de Janeiro: Mauad X, p. 408.
98 11
Ibidem, 94.
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99
Zhu Xi (2002). Introduction to the study of the Classic of Changes. Provo: Global Scholarly Publications, p.
18.
100
Jullien, F. (2000). Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, p. 34.
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Tomemos como exemplo, mais uma vez, dois hexagramas contrários: Antes da
Conclusão (未濟 Weiji)e e Alcance da Conclusão (既濟 Jiji)f. No primeiro, cada linha
do hexagrama situa-se fora de retidão; no segundo, todas são consideradas retas102. Em se
tratando de dois momentos relativos ao fim de um processo, pareceria razoável atribuir ao
primeiro uma projeção desfavorável, já que todas as linhas surgem fora de retidão, e ao
segundo, em que todas as linhas encontram-se em retidão, uma projeção favorável. No
entanto, o Yi Jing propõe o oposto. Tendo-se em vista cada hexagrama é uma
manifestação de um fluxo constante, nenhuma conclusão poderia ser definitiva; o fim
101 14
Zhu Xi (2002). Introduction to the study of the Classic of Changes. Provo: Global Scholarly Publications, p.
57.
102
Dizem-se retas as linhas que, contadas de baixo para cima, são simultaneamente ímpares e yang, assim como
aquelas pares e yin. Está além de nosso propósito uma explanação profunda do conceito de retidão no Yi Jing;
atente-se, porém, ao fato de que ele não implica a hipóstase de uma posição ―verdadeira‖ e outra ―falsa‖ para cada
linha, como o nome pode sugerir. Trata-se, pelo contrário, de um entre vários instrumentos igualitariamente
considerados pelos quais a relação entre linhas pode ser avaliada.
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significa, pelo contrário, não mais que o limite entre um ciclo e outro. Assim sendo, a
projeção de uma conclusão ordenada, em que todas as linhas encontram-se no lugar, é
necessariamente a deterioração, uma vez que o que alcançou a perfeição pode apenas
regredir, ao passo que a projeção para uma conclusão desordenada, sem nenhuma linha
reta, é o progresso, já que não se pode imperfeiçoar o absolutamente imperfeito.
103
21, Decisão. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 182.
104
21, Grande Imagem. Ibid.
105
42, Grande Imagem. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 319.
106
Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado das mutações. Rio de Janeiro: Mauad X, p. 182.
107
Ibidem, p. 319.
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108
Cf. Confúcio. (2017). IX.4, p. 99.
109
Jullien, F. (2000). Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, pp. 34-35.
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110
13, Grande Imagem. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 130.
111
Zhu Xi (2002). Introduction to the study of the Classic of Change. Provo: Global Scholarly Publications, p.
42.
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mudança . Por sua vez, ambos os motivos dão margem a um terceiro, a saber: a não
separação de sujeito e objeto,a ser desenvolvida a seguir.
112
O enquadramento dos opostos será sempre relativo. Assim, um mesmo objeto avançado como ―yin‖ por um
oraculista pode receber um enfoque ―yang‖ por outro, que opera sob outra referência, sem que haja prejuízos à
interpretação.
113
Davis, S. (2012). The Classic of Changes in cultural context. Amherst: Cambria Press, p. 12.
114
Ibidem, p. 13.
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oito tríades tais que, concebidas como opostas umas às outras, são mais uma vez
conciliadas em 64 símbolos; símbolos esses que, no entanto, de modo algum representam
situações autossuficientes, não só sendo concebidos como relativos opostos uns dos outros
(Abrangência e Criativo, Paz e Estagnação, Antes da Conclusão e Alcance da Conclusão),
como referindo-se e aludindo a todos os demais, donde um momento sempre conterá a
tendência implícita à ciclicidade.
Ao mesmo tempo, uma vez que cada contexto clama por um modo distinto de
adequação, o domínio subjetivo parece cumprir um papel intermediário, haja vista que seu
destino é sempre a conformação com o processo em que está inserido e do qual não se
destaca, o que faz com que sua disjunção com o domínio objetivo termine por ser mitigada.
Simultaneamente: 1) o sujeito é compelido a reconhecer a impermanência da realidade
em si mesmo, já que todos os contextos são concebidos relativamente a ele próprio, o que,
por si só, mitiga a possibilidade de um sujeito idêntico a si mesmo ao longo do tempo na
perspectiva filosófica do Yi Jing; 2) e o próprio objetivo que o uso oracular do tratado
pressupõe115 – a conformação ao fluxo de manifestações – implicitamente nivela o
intérprete com todas as forças em jogo em uma dada situação, de modo que seja concebido
como uno com o processo (o qual, em última instância, ―não pensa em nada, não faz nada
[e] em tranquilidade, imóvel‖116).
115
Sobre a primazia do uso oracular do Yi Jing, cf. CHENG, C. -Y. The Yi-Jing and the yin-yan way of thinking.
Em B. Mou, The Routledge History of Chinese Philosophy. Abingdon: Routledge, 2008.
116
Cf. Zhu Xi (2002). The original meaning of the Yijing: commentary on the Scripture of Change.
Colúmbia:Columbia University Press.
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Considerações finais
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Resumo
O presente trabalho visa apresentar a solução dada por Santo Agostinho ao problema do mal,
aliado à aparente contraditoriedade entre a presciência de Deus e a liberdade humana. Para
isto, será útil como bibliografia principal do filósofo sua obra De libero arbitrio, um livro em
forma de diálogo onde o pensador esclarece suas posições acerca do livre-arbítrio e da
presciência divina.
Palavras-chave: Livre-arbítrio. Patrística. Santo Agostinho.
Abstract
The present work aims to present the solution given by Saint Augustine to the problem of
evil, combined with the apparent contradiction between the God‘s foreknowledge and human
freedom. For this, his work De libero arbitrio will be useful as the main bibliography of the
philosopher, a book in the form of a dialogue where the thinker clarifies his positions
regarding the free will and the divine foreknowledge.
Keywords: Free will. Patristic. Saint Augustine.
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pecado por suas próprias forças. Contra o pelagianismo, Agostinho precisará então debruçar-
se sobre a questão de como conciliar a soberania da graça e a liberdade humana. A defesa do
filósofo à doutrina da necessidade do auxílio divino para a salvação rendeu-lhe o título de
―Doutor da Graça‖, e seu ponto de vista influenciou principalmente teólogos escolásticos,
como também os da Reforma Protestante, como João Calvino.
É fato, porém, que é o problema do mal que ocupa lugar importante não só em De
libero arbitrio, mas também numa de suas mais conhecidas obras, as Confissões. Ali o santo
admite ter sido influenciado pelo maniqueísmo ao buscar a origem do mal de modo errôneo,
conforme diz117:
Buscava a origem do mal, mas buscava-a erroneamente. E, ainda mesmo
nessa indagação, não enxergava o mal que nela havia. Obrigava a passar,
ante o olhar do meu espírito, todas as criaturas, tudo o que nelas podemos
ver[...]. Dizia: ―Ele [Deus] é bom e, por conseguinte, criou boas coisas. E eis
como Ele as rodeia e as enche! Onde está, portanto, o mal? De onde e por
onde conseguiu penetrar?118
Agostinho, de fato, procurava o mal no mundo como algo que possuísse substância, de
maneira próxima àquela proposta pelos maniqueístas. Contudo, se de fato podemos crer na
bondade de Deus, como poderia ocorrer que Ele criasse substâncias más? A solução desse
problema dada pelo autor está relacionada ao que se entende por ―mal‖.
2. O que é o mal?
117
Para as citações do livro das Confissões, utilizo a tradução disponibilizada em AGOSTINHO, 1980. Quanto
às citações do diálogo O livre-arbítrio, faço uso da tradução presente em AGOSTINHO, 1995. Já o texto
original em latim que se segue nas notas de rodapé referentes a ambas as obras, é o presente na Opera Omnia de
Agostinho, disponível gratuitamente no site <http://www.augustinus.it/latino/index.htm> ; acesso em 07 de
agosto de 2020.
118
Confessionum VII, 5, 7: Et quaerebam, unde malum, et male quaerebam et in ipsa inquisitione mea non
videbam malum. Et constituebam in conspectu spiritus mei universam creaturam, quidquid ea cernere
possumus.[...] sed tamen bonus bona creavit; et ecce quomodo ambit atque implet ea: ubi ergo malum et unde et
qua huc irrepsit?
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O Hiponense em suas obras irá muitas vezes tratar do ―mal‖ segundo três aspectos
principais119, que outrora para ele eram confusos. O não entendimento desses distintos
significados de mal é a raiz do erro dos maniqueístas, que viam o mal como algo presente
substancialmente na realidade. O primeiro sentido de ―mal‖ é o metafísico-ontológico, o
modo com que a heresia de Maniqueu interpretava o mal no mundo. Nesta perspectiva, o mal
é substância, é dotado de ―ser‖, contendo assim uma existência real e concreta. Os hereges
julgavam que o mal estava relacionado à matéria120, e assim procuravam de todo modo
desvincular-se da mesma. Dessa forma, Agostinho viu-se influenciado a procurar desta
maneira o mal no mundo, mas chegou a compreender que não era assim que deveria
identificá-lo.
O segundo aspecto pelo qual o mal pode ser considerado é o moral, e é
principalmente nesse sentido que o filósofo discutirá as ações proporcionadas pelo livre-
arbítrio, culminando na ideia de que o mal moral, que é propriamente o pecado, é originado
pelo homem e não por Deus. Há então, por último, o mal físico, que é identificado como
consequência do mal moral cometido por Adão e Eva. O pecado original criou no ser humano
uma condição de fraqueza, por onde as doenças, as dores e a morte poderiam vir a existir,
algo diferente de antes da Queda.121
Assim, tendo distinguido essas três particularidades, pode-se compreender melhor a
solução dada por Santo Agostinho, a saber, de que o mal no mundo não existe de forma
ontológica, mas segundo uma escolha errônea do livre-arbítrio da vontade, caracterizando o
mal moral. É isto mesmo o que o autor diz nas Confissões:
Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma
perversão da vontade desviada da substância suprema–de Vós, ó Deus– e
119
Cf. AGOSTINHO, 1995, pp. 16-17.
120
AGOSTINHO, 1980, p. 87, nota de rodapé 2ª.
121
Cf. De libero arbitrio, III, 18, 51.
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122
Confessionum VII, 16,22 : Et quaesivi, quid esset iniquitas, et non inveni substantiam, sed a summa
substantia, te Deo, detortae in infima voluntatis perversitatem proicientis intima sua et tumescentis foras.
123
―Esta identificação do mal com o não ser foi retomada por alguns filósofos e teólogos cristãos – Clemente de
Alexandria em sua obra Stromata, Orígenes em De principiis e, principalmente, por Agostinho de Hipona que
afirma na sua obra, A Cidade de Deus, cap. XI, 22, ‗Nenhuma natureza, absolutamente falando, é um mal. Esse
nome não se dá senão à privação do bem‘.‖ (SILVA, 2016, p. 7)
124
Confessionum VII, 9,13.
125
Ibid. VII, 5,7.
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126
De libero arbitrio I,1,1: Non enim nullo auctore fieri posset. Si autem quaeris quisnam iste sit, dici non
potest: non enim unus aliquis est, sed quisque malus sui malefacti auctor est. Unde si dubitas, illud attende quod
supra dictum est, malefacta iustitia Dei vindicari. Non enim iuste vindicarentur, nisi fierent voluntate.
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O filósofo indica, porém, que também os seres humanos possuem paixões que os
outros animais não possuem, como o ―amor aos elogios e à glória‖127, mas que por esses
sentimentos o homem não deveria gloriar-se, já que essas e as outras paixões sempre se
revoltam contra a razão. Além disso, Agostinho afirma que é comum considerar sábio o
homem capaz de dominar cada uma de suas paixões, e não apenas dominar os outros seres.
E, constatando o fato de que um homem é tido por superior aos demais animais pelo
fato de ter razão, e é ainda superior aos demais de sua espécie na medida em que é capaz de
dominar a si mesmo, parece ser evidente que a razão detém superioridade sobre as paixões, a
ponto de seres humanos serem capazes de ir contra o que as paixões sugerem muitas vezes.
Se assim é, a razão da mente humana não é obrigada a seguir as paixões e, ainda que as
mesmas possam influenciá-la na tomada de decisões, não podem escravizá-la. O pensador
indaga Evódio:
Julgas que a paixão seja mais poderosa do que a mente, à qual sabemos que
por lei eterna foi-lhe dado o domínio sobre todas as paixões? Quanto a mim,
não o creio de modo algum, pois, caso o fosse, seria a negação daquela
ordem muito perfeita de que o mais forte mande no menos forte. Por isso, é
necessário, a meu entender, que a mente seja mais poderosa do que a paixão
e pelo fato mesmo será totalmente justo e correto que a mente a domine128.
Entendido isso, Agostinho e Evódio concluem que somente algo superior à mente
humana poderia ser capaz de subjugá-la, mas o que seria esse Ser capaz de superar a reta
razão, de modo que fizesse uma pessoa virtuosa escolher o pecado? A conclusão é óbvia para
Evódio e Agostinho: somente Deus seria capaz de tal feito. No entanto, seria contraditório
que Deus pudesse fazer tal coisa, já que se Ele é superior à razão virtuosa, não poderia obrigar
o homem a errar sem que Ele mesmo decaísse de seu estado.129
127
Ibid. I, 8,18.
128
Ibid. I,10,20: Putasne ista mente, cui regnum in libidines aeterna lege concessum esse cognoscimus,
potentiorem esse libidinem? ego enim nullo pacto puto. Neque enim esset ordinatissimum ut impotentiora
potentioribus imperarent. Quare necesse arbitror esse ut plus possit mens quam cupiditas, eo ipso quo cupiditati
recte iusteque dominatur.
129
Ibid. I,10,20 : Aug. - animus iustus, mensque ius proprium imperiumque custodiens, num potest aliam mentem
pari aequitate ac virtute regnantem, ex arce deicere, atque libidini subiugare? Ev. - Nullo modo; non solum
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Portanto, Santo Agostinho conclui seu raciocínio dizendo que se por um lado as
paixões não podem obrigar o ser humano a pecar, e que por outro muito menos ainda Deus o
faria, só resta admitir que é o próprio livre-arbítrio o responsável pela escolha do pecado.130
Deus, então, não poderá ser considerado o autor do pecado, uma vez que o pecado está
relacionado à radical opção da liberdade humana. No entanto, restam ainda muitas questões a
se fazer. Com efeito, existe uma grande pergunta no livro III, a saber: se Deus é onisciente,
tendo presciência de todas as coisas que estão acontecer, não seria o caso de dizer que todos
os pecados acontecem necessariamente? E se assim for, ainda podemos dizer que os seres
humanos possuem livre arbítrio?
4. A presciência de Deus contradiz o livre-arbítrio?131
propter eamdem in utraque excellentiam, sed etiam quod a iustitia prior decidet, fietque vitiosa mens, quae
aliam facere conabitur, eoque ipso erit infirmior. [Agostinho: O espírito justo, e a mente firme em seu direito
conservando seu domínio, poderá afastar-se de sua força e submeter à paixão outra mente que reina com igual
equidade e virtude? Evódio: De modo algum. Não somente porque a excelência é igual em uma e outra, mas
também, a primeira mente não poderia obrigar a outra a se tornar viciada, sem ela mesma decair de sua justiça e
tornar-se viciada, ficando por isso mesmo mais fraca.] Se, conforme o dito, um espírito virtuoso não é capaz de
tornar vicioso outro espírito virtuoso, sem antes se tornar vicioso, quanto mais Deus que é superior em virtude
aos demais espíritos. Como diz Agostinho, ―quaecumque illa natura sit, quam menti virtute pollenti fas est
excellere, iniustam esse nullo modo posse‖. (Ibid. I,11 a, 21b) [esse Ser, seja ele qual for, capaz de ultrapassar
em excelência a mente dotada de virtude, não poderia de modo algum ser um Ser injusto. Tampouco, ainda que
tivesse esse poder, ele não forçaria a mente a submeter-se às paixões].
130
Ibid. I,11 a, 21c: Nulla res alia mentem cupiditatis comitem faciat, quam propria voluntas et liberum
arbitrium. [Portanto, não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria
vontade e o livre-arbítrio].
131
Ibid. III, 2, 4: Ev. - Quae cum ita sint, ineffabiliter me movet, quomodo fieri possit ut et Deus praescius sit
omnium futurorum, et nos nulla necessitate peccemus. Quisquis enim dixerit aliter evenire posse aliquid quam
Deus ante praescivit, praescientiam Dei destruere insanissima impietate molitur[...]. Quomodo est igitur
voluntas libera ubi tam inevitabilis apparet necessitas? [Evódio: Assim sendo, sinto-me sumamente preocupado
com uma questão: como pode ser que, pelo fato de Deus conhecer antecipadamente todas as coisas futuras, não
venhamos nós a pecar, sem que isso seja necessariamente? De fato, afirmar que qualquer acontecimento possa se
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realizar sem que Deus o tenha previsto seria tentar destruir a presciência divina com desvairada impiedade. [...]
Como, pois, pode existir uma vontade livre onde é evidente uma necessidade tão inevitável?]
132
Ibid. III, 3,7 : Sicut autem voluntatem beatitudinis, cum esse coeperis beatus, non tibi aufert praescientia Dei,
quae hodieque de tua futura beatitudine certa est: sic etiam voluntas culpabilis, si qua in te futura est, non
propterea voluntas non erit, quoniam Deus eam futuram esse praescivit.
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133
Ibid. III, 3,8: Cum enim sit praescius voluntatis nostrae, cuius est praescius ipsa erit. Voluntas ergo erit, quia
voluntatis est praescius. Nec voluntas esse poterit, si in potestate non erit. Ergo et potestatis est praescius. Non
igitur per eius praescientiam mihi potestas adimitur, quae propterea mihi certior aderit, quia ille cuius
praescientia non fallitur, adfuturam mihi esse praescivit.
134
Ibid. III, 4,10.
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utiliza dela para explicar a Evódio. Explicando de modo magistral sobre a licitude da punição
dos pecados, o pensador diz:
Por que, pois, como justo juiz, não puniria ele [Deus] os atos que sua
presciência não forçou a cometer? Porque, assim como tu, ao lembrares os
acontecimentos passados, não os força a se realizarem, assim Deus, ao
prever os acontecimentos futuros, não os força. E assim, como tens
lembrança de certas coisas que fizeste, todavia não fizeste todas as coisas de
que te lembras, do mesmo modo Deus prevê tudo de que ele mesmo é o
autor, sem contudo ser o autor de tudo o que prevê135.
Com isso, Agostinho relaciona as nossas memórias com a presciência divina, de
maneira que tal como o fato de lembrarmos o que fizemos não é causa de tais coisas terem
acontecido, assim também o fato de Deus prever o que irá acontecer não é a razão para essas
ações ocorrerem. E ainda, tal como é possível lembrar-se de coisas que não foram causadas
por nós, também Deus prevê eventos dos quais Ele não é o autor.
Após tal questão, Agostinho faz uma grande catequese sobre a Providência Divina,
defendendo que o livre-arbítrio, ainda que podendo ser utilizado para o mal, é um bem.
135
Ibid. III, 4,11: Cur ergo non vindicet iustus, quae fieri non cogit praescius? Sicut enim tu memoria tua non
cogis facta esse quae praeterierunt; sic Deus praescientia sua non cogit facienda quae futura sunt. Et sicut tu
quaedam quae fecisti meministi, nec tamen quae meministi omnia fecisti; ita Deus omnia quorum ipse auctor est
praescit, nec tamen omnium quae praescit, ipse auctor est.
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Pois tudo o que a razão apresenta, com verdade, como sendo melhor, saiba
que Deus o fez, sendo ele o autor de todos os bens.[...] Pode pois, conforme
isso, existir na natureza certas coisas que tua razão não consegue conceber.
Mas que algo concebido por tua razão, dotado de verdadeira ideia, não
exista, isso não é possível136.
É evidente que se pode traçar um paralelo entre essa tese agostiniana e aquela
manifestada por Sócrates no Fédon137, quando falava do que o motivava a buscar a doutrina
de Anaxágoras. Segundo a narrativa de Platão, Sócrates desejava saber o porquê das coisas
existirem e serem como são, e assim queria porque entendia que a Inteligência (νοῦρ) havia
disposto todas as coisas da melhor maneira.138
Isso poderia explicar o motivo de Agostinho considerar que as coisas pensadas como
melhores devem existir, tendo em vista a ordem presente em todas as criaturas divinas. É isto
que ele diz ao comentar sobre a beleza da terra, que podendo parecer inferior ao céu para
alguém, não deixa de ser digna de ser criada:
Com efeito, da parte mais fértil e aprazível da terra, até à mais árida e estéril,
passa-se por graus tão bem dispostos que não ousarias dizer que nenhuma
136
Ibid. III, 5,13 : Quidquid enim tibi vera ratione melius occurrerit, scias fecisse Deum tamquam bonorum
omnium conditorem. (...) Potest ergo esse aliquid in rerum natura, quod tua ratione non cogitas. Non esse autem
quod vera ratione cogitas, non potest.
137
Na nota seguinte, faço uso da tradução presente em PLATÃO, 1977. E também reproduzo o texto original
grego disponível gratuitamente em < https://geoffreysteadman.com/phaedo >; acesso em 07 de agosto de 2020.
138
Fédon 97 b 8–d 1: ἀλλ᾽ ἀκούζαρ μέν ποηε ἐκ βιβλίος ηινόρ, ὡρ ἔθη, Ἀναξαγόπος ἀναγιγνώζκονηορ, καὶ
λέγονηορ ὡρ ἄπα νοῦρ ἐζηιν ὁ διακοζμῶν ηε καὶ πάνηων αἴηιορ, ηαύηῃ δὴ ηῇ αἰηίᾳ ἥζθην ηε καὶ ἔδοξέ μοι ηπόπον
ηινὰ εὖ ἔσειν ηὸ ηὸν νοῦν εἶναι πάνηων αἴηιον, καὶ ἡγηζάμην, εἰ ηοῦθ᾽ οὕηωρ ἔσει, ηόν γε νοῦν κοζμοῦνηα πάνηα
κοζμεῖν καὶ ἕκαζηον ηιθέναι ηαύηῃ ὅπῃ ἂν βέληιζηα ἔσῃ· εἰ οὖν ηιρ βούλοιηο ηὴν αἰηίαν εὑπεῖν πεπὶ ἑκάζηος ὅπῃ
γίγνεηαι ἢ ἀπόλλςηαι ἢ ἔζηι, ηοῦηο δεῖν πεπὶ αὐηοῦ εὑπεῖν, ὅπῃ βέληιζηον αὐηῷ ἐζηιν. [Tendo ouvido alguém ler
num livro que dizia ser de Anaxágoras que o espírito era a causa e a regra de todos os seres, espantei-me.
Pareceu-me admirável que a inteligência fosse a causa de todas as coisas, porque pensava que a inteligência,
tendo ordenado todas as coisas, as havia disposto da melhor forma. Se alguém quer saber a causa de algo, o que
faz que nasça e que morra, deve procurar a melhor maneira que esse algo possa ser].
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dessas partes é má, a não ser comparada a outra melhor. E assim, sobes no
louvor, por todos os degraus.139
Dessa forma, compreende-se que também Agostinho vê o mundo de modo ordenado,
com todas as coisas constituídas de um bom modo, ainda que possam ser inferiores umas às
outras segundo a ordem de uma hierarquia rica e vasta. Mas a razão de Agostinho assim
pensar é que ele parece adaptar a tese platônica das Ideias para sua teologia. A explicação
dada por Agostinho para o fato de que a razão não pode conceber algo de melhor sem que
tenha sido criado por Deus está no fato de que ―a alma humana está em união natural com os
exemplares divinos, dos quais ela depende‖140.
A epistemologia agostiniana, portanto, confessa a chamada doutrina do
―exemplarismo‖, pela qual entende que a atividade racional está submetida à ação divina,
diante de uma ótica de participação. A ―união natural‖ de que fala Agostinho deixa evidente
seu platonismo em considerar que a razão só pode conceber aquilo que, de algum modo, está
presente no pensamento divino. O ser humano, criado ―à imagem e semelhança de Deus‖, tem
a capacidade de participar das Ideias divinas: estas são, por conseguinte, o perfeito Exemplar;
já os pensamentos humanos são as cópias.
Assim sendo, Agostinho convida Evódio e todos os seus leitores a refletirem que a
verdadeira excelência que almejam em seus pensamentos já está nas coisas criadas141.
E constata isso com o exemplo dos anjos. Com efeito, o filósofo identifica que muitos
afirmam que teria sido melhor que os seres humanos fossem criados com um livre-arbítrio tal
que só desejasse escolher o bem. Contra isso, Agostinho responde que Deus não forçou
ninguém a pecar, e que os anjos já incorporam essa ideia de perfeição na mente de seus
139
De libero arbitrio III,5,13: Namque a terra feracissima et amoenissima usque ad salsissimam et
infecundissimam, ita gradatim per medias pervenitur, ut nullam reprehendere audeas, nisi in comparatione
melioris; atque ita per omnes gradus laudis ascendas.
140
Ibid. III, 5,13 : Humana quippe anima naturaliter divinis ex quibus pendet connexa rationibus.
141
Ibid. III, 5,14: In eo plerique homines errant, quia meliora cum mente conspexerint, non in sedibus congruis
ea oculis quaerunt. [Constitui um erro comum à maioria dos homens, quando, ao conceber em seu espírito a
existência de realidades melhores, não as procura com os olhos corporais, em seus lugares próprios].
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objetores. Os anjos do Céu já estão na glória eterna e sua vontade livre sempre se direciona a
honrar a Deus, enquanto que os anjos caídos, isto é, os demônios, usam seu livre-arbítrio para
o erro sempre.
Por isso, o homem se encontra como que em um estado intermediário numa hierarquia
ordenada dos seres racionais. Diante do homem está a possibilidade de ascender ou descender
a um desses outros dois estados, fato que deve acontecer por ocasião do Juízo pós-morte. Em
todo o caso, porém, não se deve censurar a Deus por ter criado a humanidade com a
possibilidade de se afastar d‘Ele, pois esta opção é dada pelo livre-arbítrio humano. E assim,
ainda que o livre-arbítrio possibilite a existência do mal moral (ou seja, o pecado), continua
sendo um bem.
Para ilustrar esse pensamento, Agostinho faz no livro II142 uma simples comparação
para afirmar que o livre-arbítrio deve ser contado entre os bens. Para o autor, o livre-arbítrio é
metaforicamente como uma parte do corpo. As partes corporais possuem sua utilidade e sabe-
se que é natural que se possa considerar ―deficiente‖ aquele que não possui alguma delas.
Entretanto, pode-se dizer que muitas partes proporcionam a ocasião de ações más, tal como as
mãos podem dar origem a furtos e homicídios. Ainda assim, todas elas são um bem do qual
ninguém deveria ser privado.
Portanto, o livre-arbítrio é um bem, considerado como bem ―médio‖143, superior aos
corpos e inferior às virtudes, um bem que pode também ser usado para o bem ou para o mal,
pois permite realizar atos de amor a Deus e ao próximo e, por outro lado, permite que o ser
humano peque. Contudo, sem ele não se pode ser verdadeiramente bem-aventurado, pois a
142
Ibid. II,18,48.
143
Ibid. II, 19,50: Virtutes igitur quibus recte vivitur, magna bona sunt: species autem quorumlibet corporum,
sine quibus recte vivi potest, minima bona sunt: potentiae vero animi sine quibus recte vivi non potest, media
bona sunt. [Portanto, as virtudes pelas quais as pessoas vivem honestamente pertencem à categoria de grandes
bens. As diversas espécies de corpos sem os quais pode-se viver com honestidade, contam-se entre os bens
mínimos. E por sua vez, as forças do espíritos, sem as quais não se pode viver de modo honesto, são bens
médios].
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vida feliz é ―o que o espírito sente quando adere ao Bem imutável‖144. Destarte, o livre-
arbítrio surge como uma dádiva divina que permite ao homem participar cada vez mais da
bem-aventurança eterna em Deus. Para concluir, é útil que se faça um panorama geral acerca
do que foi dito, contextualizando as posições de Agostinho e comentando seu legado para a
história da filosofia.
Considerações Finais
Viu-se o modo pelo qual Santo Agostinho contrapôs-se aos maniqueístas ao entender
o mal como uma privação do bem, influenciado pelo neoplatonismo. Nesse sentido, os seres
humanos só podem ser considerados maus na medida em que se afastam do Sumo Bem,
voltando-se mais para os bens inferiores, buscando nestes o que deveriam encontrar apenas
Naquele. O pecado, portanto, corrompe o chamado íntimo da alma humana para a comunhão
completa com Deus. O mal, então, deverá ser encarado segundo a perspectiva da moralidade,
onde se vê que os homens detêm o poder de escolher fazer as coisas, de acordo com o livre-
arbítrio inerente à vontade.
Esse livre-arbítrio, propriedade dos seres humanos, dá a eles a autonomia necessária
para não serem subjugados pelas paixões. Embora Agostinho admita a realidade da
concupiscência, por onde a vontade humana tende a querer escolher o mal, o auxílio da graça
torna possível rejeitar o mal e também fazer bem.145 Por essa razão, seres humanos podem ser
devidamente julgados por seus atos, uma vez que têm a capacidade de evitar seus crimes.
Ademais, o livre-arbítrio não está em conflito com a presciência divina, uma vez que
esta presciência apenas vê com antecedência as más ações causadas pela vontade humana;
Deus, portanto, não é causa do pecado. E, ainda que se considere que a presciência não é
causa direta das más ações, sabe-se também que ela não imputa a Deus alguma culpa indireta
144
Ibid. II,19,52: Eaque ipsa vita beata, id est animi affectio inhaerentis incommutabili bono.
145
Ibid. II, 20,54.
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por Ele criar seres imperfeitos. Foi mostrado como a Providência Divina atua como
ordenadora do mundo, fazendo um paralelo ao νοῦρ de Anaxágoras entendido por Platão.
E ainda, o bispo de Hipona propôs uma epistemologia de cunho platônico, pela qual os
seres humanos só são capazes de conceber aquilo que está nos exemplares divinos, de modo
análogo às Ideias. Baseando-se nisso, Agostinho entendeu que não se pode conceber algo
melhor do que aquilo que já está no pensamento divino e que, portanto, tudo criado por Deus
não deve ser censurado. Por essa razão, o livre-arbítrio continua sendo um bem, ainda que
possa ser usado para fazer o mal.
Esta contribuição de Agostinho nesses temas influenciou de certo modo a filosofia
medieval que lhe sucedeu, sobretudo na Escolástica, onde o santo foi muitas vezes constituído
como autoridade em assuntos filosóficos e teológicos. A teoria do conhecimento trazida por
Agostinho pareceu trazer harmonia entre o platonismo e a teologia cristã. Pode-se dizer que
algo interessante em De libero arbitrio é trazer de modo prático para o âmbito do cristianismo
a dialética filosófica, através da qual Agostinho e Evódio chegam a muitas conclusões
relevantes.
O De libero arbitrio é para muitos uma obra desconhecida; no entanto, sua leitura é
necessária para perceber como tantas discussões ainda presentes hoje no imaginário popular e
acadêmico já foram tratadas séculos antes. Esta incrível obra de Agostinho mostra o que há de
mais incrível na vivência da filosofia: o diálogo que permite o parto do conhecimento
(maiêutica), algo que muitos ainda precisam entender, sobretudo nos tempos atuais.
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Referências bibliográficas
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J.O. Santos e A.A. de Pina. 2ª edição. São Paulo:
Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores)
__________. O livre-arbítrio. Trad. N.A. de Oliveira. 1ª edição. São Paulo: Paulus, 1995.
(Coleção Patrística)
__________. Plato’s Phaedo Greek Text with Facing Vocabulary and Commentary.
Editado por Geoffrey Steadman. Disponível em < https://geoffreysteadman.com/phaedo/ >
Acesso em 07 de agosto de 2020.
SILVA, F.V. O problema do mal no livro VII das Confissões de Santo Agostinho.
Dissertação (Mestrado em Ciência das Religiões ) – Programa de Pós–Graduação em Ciência
das Religiões, Centro de Educação, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa: UFPB, pp.
7; 66-67, 2016.
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André Dock
Resumo
1. Introdução
146
Este artigo é uma adaptação de parte de projeto de pesquisa monográfica para a conclusão do curso de
graduação em Direito na Estácio de Sá.
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Direito com a chamada ―forma mercadoria‖. Essas tarefas serão feitas pelas análises do
filósofo húngaro Gyorgy Lukács e do jurista russo Evgeni Pachukanis.
Logo, o estudo pretende responder por que essa noção em sua forma moderna seria
ainda pouco eficaz em capturar o sentido da Ética - como considerada por Lukács - e em
desvencilhar o Direito de um persistente ponto de vista individualista; esse que seria um vício
metodológico das filosofias originadas no seio da sociabilidade mercantil, refletindo as ideias
da classe dominante. Essas respostas então deverão ser complementadas pelo esforço crítico
de Pachukanis ao Direito burguês, com sua análise da forma mercadoria e seu embate jurídico
interno no contexto da incipiente União Soviética. O verdadeiro desafio aqui, portanto, será o
de encontrar um tratamento alternativo da principiologia jurídica que, autoconsciente e crítica
de suas raízes materiais e teóricas, seja capaz de orientar a uma outra sociabilidade que supere
seus próprios limites - tendo, no horizonte, a superação em última instância da necessidade do
próprio Direito.
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críticos e reorientados do indivíduo para o coletivo, dessa maneira, poderão ser mais bem
situados no atual problema prático da radical defesa dos direitos sociais e do combate às
desigualdades, como ferramentas úteis e de mais elevada relevância social.
2. Desenvolvimento
2.1 Sobre o Neoconstitucionalismo e a Dignidade Humana em Kant
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Esta expressão, dignidade humana, usada por Kant, tornou-se desde então o
lenga-lenga de todos os moralistas perplexos e cabeças-ocas, que escondem
por trás dessa imponente expressão a sua incapacidade de estabelecer
alguma base real para a moral, ou de uma que faça algum sentido. Eles
contam astuciosamente com o fato de que seus leitores vão ficar contentes de
se verem investidos nesta dignidade, e por isso se darão por satisfeitos.
(SCHOPENHAUER, 1965, p. 100)
A influência do pensamento kantiano na filosofia alemã e ocidental como um todo é,
de todo modo, inquestionável, sendo celebrado como auge do pensamento moderno e tendo
se cristalizado na mais alta forma do idealismo alemão nas obras de Friedrich Hegel. Apesar
disso, as inquietações políticas da Europa continuadas no século XIX com a ascensão da
burguesia pavimentaram o espaço para uma inversão radical dos ensinamentos de Hegel,
iniciada por um de seus mais proeminentes alunos, o jovem Ludwig Feuerbach. Proponente
inicial do materialismo dialético em oposição ao idealismo hegeliano, se tornaria grande
influenciador da filosofia, sociologia e economia política de Karl Marx – ainda que de
maneira tão crítica quanto inspirada. Com essa relação conflituosa de parentesco da filosofia
de Marx com a de Kant, explicita-se o escopo e natureza das transformações do pensamento
social alemão e ocidental no século que os separa e nos últimos três até hoje.
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Deve-se perceber aqui que, ao contrário do que faz parecer, universalizar o ponto de
vista da individualidade isolada não o subordina aos interesses gerais, mas simplesmente o
modera como norma social. O ponto de vista individual toma papel ativo na determinação dos
interesses sociais possíveis e apenas deixa de valer na hipótese de que em última análise se
vire contra si mesmo - valendo enquanto não se instaure o caos social para a classe
dominante. Pela mesma razão, particularizar o ponto de vista da totalidade também não o
subordina aos interesses individuais e o confere o papel ativo na determinação dos interesses
sociais possíveis, de tal maneira que se aplica até o limite prático da impossibilidade de sua
concretização cotidiana. Verifica-se, contudo, que o mero fato de ambos os casos apontarem
ao que se pretende que seja uma harmonização do individual e do social não incorre na
redundância ou equivalência das duas perspectivas éticas. Há uma diferença significativa na
forma de harmonização e consequentemente no horizonte a que aspiram.
Por extensão a esse ponto, poderia ser arguido que o ponto de vista da individualidade
isolada não se sustenta, por não atender ao próprio imperativo categórico. Afinal, verifica-se
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que tal ponto de vista, alçado ao patamar de lei universal, leva à naturalização de um domínio
de classes não percebido na formulação do imperativo categórico. Logo, pelo conflito de
interesses estrutural da individualidade contra a generalidade, não se poderia exigir do
indivíduo que adotasse o ponto de vista da individualidade isolada, pois tal ponto de vista não
cumpriria ao preceito de não se sobrepor em qualquer hipótese à humanidade e, portanto, não
podendo ser desejado como lei universal. Por outro lado, o ponto de vista da totalidade
particularizado não poderia sofrer com a incoerência do conflito de classes, pois já parte da
dimensão mais geral dos interesses sociais antes de representá-los em níveis menos gerais. O
ponto de vista da totalidade se coloca, para o indivíduo, como um convite à vida engajada e
responsável, contrário à vida individualista e indiferente, e, para a sociedade, como sua única
posição coerente.
Sobre essas duas dimensões percebidas por Lukács, Lessa ainda frisa que seus
elementos se fazem presentes de toda maneira em qualquer relação social, por determinarem
exatamente a mínima e a máxima extensão possível dos interesses pelos quais tais relações
sociais são praticadas:
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processualidade social (LESSA, 2015, p. 12-13). A partir dessa dupla dimensão, Lessa
também é capaz de relacionar as determinações objetivas da Ética com as determinações
históricas da moralidade - ou seja, de entender como a dinâmica antinômica entre as duas
dimensões se traduzirá em valores morais determinados por sua época e contexto social:
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de seus alicerces kantianos. Seguindo o objetivo dessa pesquisa, portanto, a análise do método
marxista em questão terá foco sobre a crítica feita a tal característica, excepcionalmente
exposta pelo filósofo István Mészáros, o qual foi proeminente aluno do próprio Lukács.
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de deturpar as relações estruturais objetivas de seus conflitos. Esse seria o segundo elemento
específico do ponto de vista da individualidade isolada:
Com isso, torna-se clara uma crítica relacionável à segunda característica do princípio
da dignidade da pessoa humana que Sarmento identifica, o foco na pessoa concreta (ou no
indivíduo abstrato). Mészáros denota que o indivíduo é inflado e alçado ao patamar da
universalidade sem o entendimento da luta de classes. O foco no gênero humano desponta
como muito mais apropriado ao profundo entendimento das mazelas sociais. Vistas essas
limitações e vícios metodológicos, de efeitos ideológicos, do ponto de vista da
individualidade isolada, especialmente nas tradições filosóficas de raízes pré-marxianas, com
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ápice em Kant, é então possível passar à análise das contribuições de Evgeni Pachukanis à
teoria geral do Direito de maneira mais enriquecedora.
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Visto essa sua motivação, compreende-se melhor o que esse pensador se propõe a
demonstrar quando denuncia que a própria forma jurídica do Direito guarda uma íntima
conexão com a forma mercadoria. Destoando do que se chamaria de marxismo ortodoxo de
seus pares, ele procura sintetizar da seguinte maneira tal relação, bem como as razões pelo
domínio de classe no capitalismo se dar pelo Estado e pelo Direito:
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o resultado ideal da forma mercadoria. Diz-se que tal autoridade é camuflada, pois
Pachukanis percebe tal superestrutura política como tendo efeitos não-declarados de
ocultação de sua verdadeira natureza de dominação de classe, que seriam exteriores a sua
delimitação jurídico-legal:
A maneira pela qual Pachukanis pretende guiar uma superação dos elementos
econômicos capitalistas na lei soviética revela suas nuances mais centrais principalmente no
contexto do compilamento de um primeiro Código Civil e da apresentação da Nova Política
Econômica (NPE) por Lenin após a guerra civil contra as forças tsaristas - quando se fazia
urgentemente necessário desenvolver algum tipo de concepção geral de lei para o novo
Estado soviético. Contra a noção jurídica que chamou de ―propriedade privada convertida em
função social‖, que sai vitoriosa desse período, Pachukanis denuncia os elementos de lei
burguesa voltados exclusivamente ao desenvolvimento das forças de produção em todas as
instâncias e que teriam perdurado irrefletidamente mesmo para além da morte de Lenin, o que
teria exercido forte influência regressiva à ideologia burguesa legal:
147
Metáfora utilizada por Marx ao tratar da necessidade da violência na transição do feudalismo para o
capitalismo, particularmente através do uso do Estado. Generalizando tal necessidade, diz que ―a violência é a
parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência
econômica‖. Nota-se a ressalva ―que está prenhe de uma sociedade nova‖, que já informa em que contexto há
algum papel para a força da violência; isto é, quando corresponder inevitavelmente às necessidades econômicas
e se justificar por elas, não sendo possível supor que qualquer violência em qualquer momento ative processos
revolucionários, como se dar à luz dependesse singularmente de força.
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Como vimos, a mais atual e proeminente perspectiva para essa tarefa, mesmo que não
desenvolvida especificamente para tal e ainda incipiente, parece ser a da Ética lukacsiana. É
por Pachukanis entender a ―lei burguesa sem burguesia‖ como necessária subversão da
mesma pela perspectiva de vitória sobre os elementos capitalistas da economia e por Lukács
enxergar o ponto de vista da individualidade isolada como a especificidade distintiva da
ciência burguesa que essa síntese se faz impositiva e inescapável.
É a partir dessa síntese e apenas a partir dela que se faz então possível teorizar uma
contribuição apropriada ao tema da dignidade humana, na forma do que poderia ser chamado
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Para estar mais de acordo tanto com uma Ética de superação da antinomia entre
individualidade e generalidade quanto com um Direito comprometido com a perspectiva de
vitória dos elementos econômicos socialistas sobre os capitalistas como seu critério supremo,
tal princípio deve ir para além dessas e atingir, como vimos, as características - tomadas
sempre em conjunto - de historicização, foco no gênero humano e forma de preceito ético-
prático; esse último com uma dimensão jurídica, assim como a forma de norma jurídica
anterior teria dimensões extrajurídicas.
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portanto, que as noções de autonomia ou igualdade atingidas depois de incorporadas não são
necessariamente as mesmas que as anteriores. Impõem-se assim, visto que procurar garantir
esses elementos de forma isolada, que não pelas suas condições sociais de possibilidade,
demonstra-se, afinal, uma procura falsa, vazia ou pela metade, incapaz de quebrar barreiras
econômicas, culturais, de cor, de gênero e de classe. Esse efeito de incorporação pela
subversão ocorre fundamentalmente por não ser possível conceber a generalidade sem
pressupor a individualidade, muito apesar de ser ideologicamente possível partir de uma
concepção de indivíduo que escanteia ou escamoteia sua necessária relação dialética com a
generalidade.
Verifica-se assim que tal subversão, não concebe um sujeito de direito dotado ele
próprio de um rol de valores anistóricos e individuais por força jurídica, mas concebe antes
um coletivo de direito situado historicamente e a partir do qual se desdobra a particularização
ao indivíduo, por força ética. Guia-se, assim, pela máxima de Marx: ―de cada qual, segundo
sua capacidade; a cada qual segundo suas necessidades‖, para além do ―estreito horizonte do
direito burguês‖ (MARX, 2012, p. 33).
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Considerações finais
A presente pesquisa se ocupou de situar onde a humanidade se encontra em sua
história - e quais encruzilhadas se projetam para ela. Para essa investigação, o referencial
teórico utilizado foi o da tradição filosófica posta por Karl Marx, expoente maior do
pensamento crítico social contemporâneo. O tema da dignidade humana e seu
desenvolvimento histórico até o neoconstitucionalismo assumiram a centralidade nesse
estudo. Foi percebido que, muito apesar da força moral do princípio da dignidade da pessoa
humana que orienta a teoria jurídica hegemônica, sua evocação é frequentemente vaga,
contraditória, não-neutra, logo, largamente inefetiva. O estudo identificou que as raízes da
noção moderna de dignidade humana se concentram em Immanuel Kant. Notou-se que
relevantes acontecimentos históricos entre o tempo das perspectivas paradigmáticas desses
dois pensadores se fizeram, em grande parte, de efeito prático nulo para a teoria jurídica
hegemônica. E que, além disso, o próprio Direito burguês se situa como uma apropriação
acrítica de um entendimento jurídico ainda anterior, herdado do Absolutismo e adaptado para
propósitos burgueses. Logo, o estudo concentrou-se em analisar a crítica marxista às
especificidades e limites metodológicos da perspectiva filosófica kantiana, que poderiam
encontrar tentáculos na atual teoria jurídica.
Foi visto então que tais limites metodológicos também comprometem gravemente a
teoria ética do mesmo paradigma kantiano. Foram apontados vícios de uma perspectiva
anistórica e individualista da ética. Depois de inicialmente afastada da discussão jurídica por
pretensões objetivantes do Direito, tal teoria seria ainda resgatada mundialmente no
ordenamento jurídico após os horrores da Segunda Guerra Mundial, com ápice no
neoconstitucionalismo. Percebeu-se que, no tema da dignidade humana, demandava-se uma
alternativa crítica a essa teoria e tradição jurídica. Para essa tarefa, foi utilizado como norte
principiológico o entendimento da ética historicizada de Gyorgy Lukács, que se destaca
especialmente pela superação do chamado ponto de vista da individualidade isolada e de seus
efeitos ideológicos.
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Referências bibliográficas
MASCARO, A, L. Direitos humanos: uma crítica marxista. São Paulo: Lua Nova, n. 101,
ago. 2017.
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PACHUKANIS, E. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Sílvio Donizete Chagas. São
Paulo: Acadêmica, 1988.
PASHUKANIS, E. Selected writings on marxism and law. Eds. P. Beirne & R. Sharlet.
London & New York, 1980.
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Amanda Laporte
Resumo
O presente artigo tem como objetivo debater a excessiva representação midiática do sistema
prisional feminino em plataformas de streamings e a sua influência na naturalização do
encarceramento em massa de mulheres. Para isso, serão analisados os reforços dos
estereótipos criminais empregados de forma superficial, e a insistência em usar a prisão como
instituição fundamental para a existência de um corpo social seguro. Por uma perspectiva
filosófica, serão usados como base de análise os filósofos Michel Foucault e Angela Davis.
Ademais, apresento uma reflexão sobre a questão dentro do contexto brasileiro com o auxílio
da antropóloga Juliana Borges.
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1. Introdução
Atualmente, o Brasil é o quarto país que mais encarcera mulheres no mundo. Este é
um número que aumenta progressivamente frente ao aumento de endurecimento de leis
relacionadas ao tráfico de drogas, problema que poderia ser considerado de saúde pública. São
diversos os motivos para que os números de mulheres presas sejam tão altos no país,
incluindo até mesmo assuntos burocráticos, como a questão de presas provisórias, ou seja,
sem condenação. A falta de acesso rápido a um julgamento submete as pessoas a um sistema
precário antes mesmo de uma sentença, ferindo o princípio de inocência, garantido por lei.
Assim sendo, pessoas que poderiam ter seus crimes resolvidos com serviço comunitário, por
exemplo, têm sua existência legitimada dentro de um sistema punitivo que muitas vezes não
deveria ser o seu destino, como é o caso do regime fechado.
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que de forma consciente ou não, induz a sociedade a naturalizar cada vez mais este sistema
vigente de punição. Isso nos leva a evitar um debate necessário sobre o questionamento de sua
real funcionalidade, uma vez que o encarceramento em massa se torna expressivo sob a
alegação de uma suposta segurança, enquanto a sensação de um ambiente seguro é cada vez
mais inexistente.
Para melhor compreender o surgimento deste sistema e pensar sobre sua permanência
utópica, que tenta dissimular ao máximo sua obsolência, será apresentada uma breve análise
das perspectivas dos filósofos Michel Foucault e Angela Davis acerca do tema, além de uma
reflexão sobre o contexto brasileiro, com ajuda de Juliana Borges.
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Esta forma de exercer o poder – por meio da tortura do corpo do condenado – aos
poucos foi se tornando excessiva e cruel, já que os suplícios representavam um espetáculo
onde o físico era exposto ao seu limite, membros eram arrancados, queimados, abatidos,
impondo à sociedade uma experiência vívida na qual o sujeito agonizava. O soberano obtinha
justiça sobre aquele que quebrou suas regras e propagava na população o medo de cometer o
crime. Entretanto, com o passar do tempo, a presença constante desse mecanismo de
perversidade não causava mais medo na população, mas sim uma empatia com o sujeito
condenado:
[...] ficou a suspeita de que tal rito que dava um ―fecho‖ ao crime mantinha
com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em
selvageria, acostumando os espectadores a uma feracidade de que todos
queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a frequência dos crimes, fazendo o
carrasco se parecer com os criminosos, os juízes aos assassinos, invertendo
no último momento os papéis, fazendo o supliciado um objeto de piedade
(FOUCAULT, 2004, p. 13).
Após a inversão de papéis apontada na análise de Foucault, foi sinalizado que os suplícios não
estavam funcionando como eram necessários para a sociedade, pois suas ações eram de uma
intensa perversidade. Desta forma, surge a necessidade de reformar o modelo punitivista
vigente. Assim, o cárcere – que antes era usado para garantir que o condenado não fugisse de
seu destino impiedoso – deixa de ser apenas um meio para assegurar a punição e torna-se a
finalidade. O encarceramento físico do sujeito passa a ter como função uma humanização da
pena, direcionando a punição à alma e não mais ao corpo.
Aprofundando um pouco mais em sua obra, Foucault expressa sua análise sobre uma
sociedade que vai mudando e se tornando cada vez mais disciplinada, que busca ao extremo
docilizar os corpos e toná-los úteis para acompanhar o modelo econômico crescente no tempo.
Para isto, ela cria todo um aparato de instituições disciplinares onde o sujeito vai estar sob
vigilância constante, moldando suas ações nos mínimos detalhes.
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148
Panóptico.Disponível em
<http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20disciplinar/Panóptico.htm>. Acesso
em 9 ago. 2020.
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moderno, que via o corpo físico como fonte oriunda para chegar à mente, para assim, obter
controle e poder. O exercício deste poder no mundo atual está atuando diretamente por meio
da internet. O cyber poder, como é conhecido, é a principal forma de executar poder e
controle, produzindo verdades e representações que influenciam a mente e as ações dos
sujeitos que compõem o corpo social.
Em seu livro Estarão as Prisões Obsoletas? Angela Davis explica que segundo a crítica
cultural Gina Dent, a mídia teve um grande impacto na construção da normalização do espaço
prisional como uma instituição comum, que nasceu junto à construção de mundo e que não
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pode mais ser abolida. A autora explicita este argumento na seguinte passagem que faz
referência a Gina Dent:
O papel da TV e do jornal consolidaram esse local como único capaz para expurgar o
mal da sociedade. Além disso, a mídia criou e alimentou a existência de um perfil criminoso,
um perfil que representa perigo para a comunidade. Os jornais noticiavam homicídios e
roubos de forma massiva, mesmo quando os números estavam abaixando sem precedentes,
enquanto as construções de prisões eram feitas sem serem questionadas, tudo em nome de
uma segurança que buscava proteger a propriedade privada, em especial de pessoas brancas.
Essas produções de notícias recorrentes, juntamente com um perfil criminoso por trás,
implicaram em ações que parecem não terem escapatória. Angela Davis deixa explicita as
consequências dessas ações na passagem:
Assim como nos EUA, no Brasil vem sendo construída uma naturalização do encarceramento
feminino. Apesar de a história das prisões femininas no Brasil ser bem mais recente quando
comparada com a de outros países, inclusive suas irmãs da América Latina. A primeira prisão
construída para receber as mulheres desviantes – consideradas criminosas – teve sua origem
no Rio de Janeiro em 1941. São Paulo e Rio Grande do Sul só adaptaram prisões que já
existiam para separar um local exclusivo a essas mulheres.
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Nos dias de hoje, mesmo diante de um sistema recente, os brasileiros vivem dentro
de uma construção social imaginária da prisão, como se pudessem compreender e vivenciar o
que acontece dentro das prisões femininas. Essa é uma consequência que está atrelada ao
aumento de produções midiáticas em plataformas de streamings sobre o sistema punitivista e
gênero feminino, pois eles não apenas reproduzem uma realidade, como também têm o poder
de criar e dissimular a mesma.
Desse modo, a mulher presa é duplamente punida no sistema prisional brasileiro. A primeira
vez ocorre quando a pena decidida pelo Estado é realizada e a mesma é inserida em um
sistema precário que não está apto a lidar com as necessidades naturais do físico feminino; e
uma segunda vez, pelo abandono social, seja familiar ou no processo de ser reinserida na
sociedade, onde elas são vistas como delinquentes natas e muitas vezes sendo muito mais
julgadas do que homens que também foram presos e até mesmo que cometeram o mesmo
crime.
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No artigo 28 da Lei n o 13.343/2006, está descrito que o juiz terá sua decisão
determinada se a droga estava destinada a consumo pessoal ou para o tráfico
a partir da natureza, da quantidade de substância, do local, das condições em
que a ação de apreensão foi desenvolvida, das circunstâncias sociais e
pessoais, bem como da conduta e dos antecedentes da pessoa analisada
(BORGES, 2019, p. 102).
Na atual política de drogas, quem define se a quantidade que a acusada está portando no
momento da prisão equivale ao tráfico ou consumo, é unicamente o policial que vai estar
presente. As circunstâncias que vão definir se você é uma traficante ou usuária, são a cor da
149
Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/brasil-e-o-4o-pais-com-mais-mulheres-presas-no-mundo>
Acesso em 2 ago. 2020.
150
Exemplo de reportagem Disponível em: <https://observatoriodeourofino.com.br/noticia/mulher-e-presa-por-
trafico-de-drogas-em-bar /> Acesso em 2 ago. 2020.
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pele e seu CEP. A maior parte dessas mulheres é pega com uma quantidade pequena de
drogas porque são apenas considerada ―mulas‖ para o tráfico. Elas, em sua maioria, não
representam importância dentro desse meio. Juliana Borges explica melhor essa realidade na
seguinte passagem:
A lei não tem uma visão sistêmica e totalizante sobre tráfico de drogas,
muito menos tem como objetivo desmantelar, de fato, essa economia ao
focar em pequenos traficantes, contingente em que as mulheres têm
predominância. Se pensarmos o tráfico como uma indústria, a estrutura
espelha a do mercado formal de trabalho. Em outras palavras, cabe às
mulheres posições mais vulneráveis e precarizadas, e com mais diferenças se
adicionarmos o quesito cor. Além disso, diversos são os estudos que
demonstram que várias prisões de mulheres são realizadas em operações 66
nas quais o foco eram os parceiros ou familiares dessas mulheres, que
acabam sendo detidas por associação ao tráfico (BORGES, 2019, p. 103).
plataforma de streamings, Globo Play, onde possibilita o acesso a novelas e jornais, além de
séries, filmes e documentários. Seu visual foi construído para não parecer uma criminosa nata.
Dessa forma, ela aparece de cabelos longos, loiros, blusa branca, sem maquiagem e com um
terço na mão enquanto faz a entrevista.
Dessa forma, é reprimido todo poder que ela entoava antes do crime. Cria-se o
discurso familiar de boa mãe que não podia abandonar sua filha e, por isso, deixou Miguel
sozinho no elevador. Portanto, esse discurso é construído tentando, assim, trazer mais empatia
com ela do que com Miguel e sua mãe – Mirtes Renata de Souza Santana, que apesar de
representar a maior parte do Brasil, como classe trabalhadora, isto é: mãe, negra e doméstica;
foi pouco representada como uma vítima real.
Dentro da ficção, o mercado em torno do cárcere feminino está cada vez mais
presente. É extremamente difícil não visualizar dentro dos programas midiáticos151 uma
menção ao sistema prisional ou uma história voltada para esse tema. Apesar de localizadas tão
longe dos centros urbanos, as prisões femininas estão mais presentes do que nunca no
imaginário social, seja através de novelas, séries, filmes ou jornais que estão se tornando
presentes em plataformas como Globo Play .
151
Séries disponíveis em streamings como: How to Get away with Murder, Grey‘s Anatomy, Prisão de
Mulheres, Irmãs de Cela; documentários como Garotas no Cárcere; novelas como Avenida Brasil, Totalmente
Demais, além de filmes e minisséries.
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Entretanto, é necessário ressaltar que muitos produtores dessa área utilizam-se desse
padrão para inserir um cavalo de Tróia no público, apresentando mais profundamente os
problemas que alimentam a existência destas prisões femininas e como a sua influência em
punição ultrapassa os muros, afetando diretamente suas famílias. Desta forma, por mais que o
autor caracterize esse padrão mocinha como protagonista, com o passar das temporadas ou do
desenvolvimento da série, ele aprofunda em personagens que antes não eram tão humanizados
dentro desse espaço.
É como a série original da Netflix, Orange is the New Black, criada em 2013, cada
temporada contendo 13 episódios, sendo renovada para a sétima e última temporada ainda na
terceira, devido ao sucesso no grande público dentro e fora do seu país de origem, os Estados
Unidos. A série tem um total de 91 episódios com média de 60 minutos cada, tendo seu final
no ano de 2019. A produção é definida com o gênero de comédia e drama, explorando de
forma humorística o drama que é vivenciar a realidade prisional todos os dias.
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jogada na cova das leoas, mas que com o tempo, mostram-se gatinhas, pessoas que foram
extremamente desumanizadas na sociedade e refletem essa produção subjetiva na prisão.
A produção também relata o tratamento diferenciado que Piper Chapmam tem por
ser vista como um ser humano que cometeu um erro, não como uma criminosa nata das quais
a prisão está lotada – papel que a mídia insiste em reforçar e utilizar-se. Criminosas essas que
tem um perfil muito bem caracterizado pela mídia e localidade onde o tema é ambientado. No
caso de Orange is the New Black , que é nos Estados Unidos, as criminosas são retratadas
como más, cruéis e naturalizadas nesse ambiente punitivo. Assim, frequentemente são
representadas por um corpo negro, latino, pobre e atravessado por diversas violências, onde a
série vai explorar quando convém ou quando tem tempo de tela para isso.
Além de Piper, que busca se adaptar nesse novo ambiente, temos acesso – ainda na
primeira temporada – à personagem de Tasha Jefferson, mulher negra e gorda. Em sua
primeira cena, Tasha Jefferson, contracenando com a principal, repara em seus peitos e a trata
com ignorância, primeira cena de impacto tanto do trailer quanto do primeiro episódio,
reforçando o estereótipo de quem é naturalizado nesse local. Em capítulos seguintes, Tasha
consegue seu direito à liberdade condicional, porém revela às amigas que não se sente segura,
pois não sabe fazer nada no mundo livre, afinal, cresceu em várias instituições do Estado e a
prisão não executou a tarefa de ressocialização – como a sociedade insiste em acreditar. Antes
do fim da primeira temporada, ela regressa à prisão de onde trabalhava na biblioteca e lá
explica a sua amiga Poussey que:
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Sabe o que não te falam quando você sai? Que vão ficar na sua cola como a
KGB. Toque de recolher, mijar num pote quando mandarem. Fazer três
entrevistas de emprego para vagas que não vai conseguir. O agente da
condicional ligando a cada minuto. Aqui pelo menos você tem comida... A
coisa não é bem assim. O salário mínimo é uma piada. Eu trabalhava no
pizza hut e eu ainda devia US$ 900 para a prisão em taxas. Eu não tenho
lugar pra ficar! Eu dormia no chão da minha prima de segundo grau igual um
cachorro. E lá moram seis pessoas em dois cômodos. Uma vadia roubou meu
pagamento. Eu peguei piolho. Todos os meus conhecidos estão pobres, ou
presos, ou mortos. Ninguém me perguntava como foi meu dia. Eu fiquei
doente da cabeça, sabe? (T1E12 46:23).
Discursos como esse de Tasha, mesmo que inseridos em um contexto ficcional, refletem no
mundo real, a prisão como resposta aos problemas sociais. Além do caso da mesma, a série
passa por assuntos complexos como: mãe e filha que acabam na mesma prisão, maternidade
no cárcere, greves pacíficas para se livrar da violência policial e até mesmo a morte de uma
detenta nas mesmas circunstâncias vistas na realidade.
Além de Orange is the New Black, diversas séries têm sido ambientadas dentro do
tema prisão de mulheres como, Vis a Vis, série da TV espanhola que se tornou um fenômeno
em outros países ao entrar no catálogo da Netflix . Vis a Vis se passa em outro país, entretanto
a receita é a mesma a ser seguida: a protagonista é uma branca, loira, magra, de família
considerada bem construída e afirma ter sido enganada pelo namorado. As séries têm suas
diferenças, mas ambas não deixam de criar no imaginário do consumidor a falsa noção de que
a prisão é funcional e é o único caminho. Assim sendo, o público compreende essa instituição
como necessária para a sociedade conseguir se livrar de todo mal, reforçando estereótipos
desse espaço.
A lista de séries que ambientam esse tema em algum momento de sua história é
grande: Sense 8, How To Get Away With Murder, Grey‘s Anatomy, entre outras. Para além das
questões ficcionais, os documentários sobre o cárcere têm ganhado cada vez mais espaço nos
streamings, incluindo sobre o sistema prisional feminino. Segundo Lucas Braga, do site
Tecnoblog, o Brasil é o sexto país que mais consome essa tecnologia e seu material,
ultrapassando qualquer operadora de TV paga no país.
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Existe ainda outro meio de acesso mais comum ao audiovisual no Brasil, os canais de
TV aberta que possuem um grande acesso no país, em lugares em que a internet não chegou.
Esses canais produzem novelas e histórias em seus jornais que reafirmam a existência da
prisão como local necessário para pagar pelos crimes cometidos. Essas grandes empresas
televisivas exploram esse lugar de maneira genérica, ensinando o povo a temer esse ambiente,
e não a pensar sobre sua existência e expansão, mesmo ele sendo uma das instituições que
mais crescem no país.
152
Jornalistas Livres em https://jornalistaslivres.org/. Entrevista disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=e3tAj6JhJxI&t=821s>. Acesso em 09 de ago. 2020.
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encarar as mulheres que foram punidas publicamente pelo estado por seu
mau comportamento como significativamente mais anormais e muito mais
ameaçadoras para a sociedade do que suas numerosas contrapartes
masculinas. (2018, p. 71).
A vista disso, dentro da mídia, a exploração do tema cárcere feminino é utilizado de forma
superficial e cruel, reforçando a desumanização das pessoas reais que estão submetidas a esse
sistema e que têm uma vida depois dele. As condições subumanas nas quais essas mulheres
são colocadas na vida real, poucas vezes são refletidas na produção midiática, negando o
impacto que essas ações têm na sociedade.
Considerações Finais
Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, caminha no pensamento sobre uma
sociedade disciplinar e o nascimento de um sistema prisional, que um dia serviu de modelo
para a sociedade. Além de explorar sua funcionalidade, o autor demonstra modelos de atuação
no que cerne ao tema exercício de poder, implicando em um debate que até os dias atuais se
faz necessário, como o avanço e a permanência de ações onde o objetivo principal é buscar
meios de se consolidar o controle sobre a mente e os corpos.
A partir da perspectiva que Angela Davis trabalha em sua obra Estarão as Prisões
Obsoletas? essa forma de punir foi construída e fundamentada no racismo, além de ser uma
instituição que perpetua a violência contra a mulher. Através da apresentação da crítica
cultural Gina Dent, podemos compreender o papel da mídia para fortalecer esse espaço e
torná-lo o único possível para uma sociedade segura, mesmo quando os índices de
criminalidade diminuem, além disso, trabalhando para reforçar um perfil do criminoso
perverso, que não corresponde com a realidade.
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filmes e novelas por parte dos streamings e TVs abertas que reforçam a narrativa da
necessidade e naturalização desse espaço e do gênero feminino.
Desta forma, o perigo que acompanha a massificação midiática desse tema nas
plataformas de streamings reflete no mundo contemporâneo, que nunca antes encarcerou
tantas mulheres assim. Criando no inconsciente do telespectador a falsa noção de proximidade
com a realidade prisional feminina, seus demônios, suas necessidades, suas condições e a
razão universal para entrar nesse sistema: escolha.
Por fim, é possível apontar que esse avanço midiático nas plataformas de streamings,
em sua maioria, reforça a narrativa de corpos não reais, de mulheres não reais, crimes não
reais e mesmo assim causam impacto real no corpo social. Esses discursos que ganham
alcance sem precedentes diante de um alto consumismo sobre o sistema prisional, unidos
reafirmam a ideia de que a instituição é eficaz e fundamental. Perpetuando uma falsa
eficiência de um sistema que está obsoleto, e apenas funciona para alimentar o bolso de quem
já detém milhões a custos de vidas, famílias e espaços que poderiam existir em plenitude sem
essa forma de morte social presente.
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Referências bibliográficas
ANGOTTI, B. Entre as Leis da Ciência, do Estado e de Deus . São Paulo: IBCCRIM, 2012.
BRAGA, Lucas. Netflix atinge 10 milhões de assinantes no Brasil é maior que Claro, Sky,
Oi e Vivo. Tecnoblog, 2019. Disponível em: <https://tecnoblog.net/308893/netflix-10-
milhoes-assinantes-brasil-maior-que-tv-paga/>. Acesso em: 28 de jul. de 2020.
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Resumo
1.Introdução
Nos últimos anos a Filosofia tem se tornado cada vez mais evocada nos contextos
sociopolíticos brasileiros. Seja para ser afirmada ou negada, rechaçada ou enaltecida. Com
isso, podemos perguntar: como se deu esse processo? Como ela foi parar na pólis[1]? E na
pólis brasileira? Foi certamente pela popularização da Filosofia, que se torna cada vez mais
presente em todos os âmbitos sociais.
Decerto as redes sociais ajudaram nisso, sendo plataformas vastas que possibilitam
que diferentes grupos se reúnam. Não demora para diversas subculturas virtuais se formarem
pelo interesse de cada indivíduo, como militância política, consumo artístico, divulgação de
saberes, entre muitas outras. Mas há também as páginas e grupos em que o foco não é o
conhecimento, nem o engajamento, mas sim a troca prazerosa, o lazer, o meme[2], o risível,
algo bem próprio da sociabilidade. O curioso é quando alguns desses grupos aparentemente
diferentes, se unem. E na cultura brasileira, recentemente apareceu um movimento que une
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âmbitos supostamente distantes entre si, o risível e o conhecimento. Não é novidade o poder
da internet para disseminar conteúdos, pois diversos temas ganham as redes a cada semana,
trazendo um novo tema de discussão. A novidade da vez é que, por vezes, esses temas são
relativos e pertencentes às ciências sociais. Até certo tempo atrás, apenas os acadêmicos
fechados em seus departamentos podiam produzir e responder tais demandas, mas hoje a
exclusividade parece ter diminuído. Em meados de 2020, tivemos um caso de popularização
filosófica que demonstra bem como a educação está transcendendo os muros da academia e se
voltando a sociedade.
A análise pretende mostrar quais são as consequências que estão envoltas na educação
filosófica no século XXI e a popularização inerente a esta, já que ―qualquer ação educativa
acaba sempre recaindo na questão da cultura e da comunicação‖ (GERMANO; KULESZA,
2007, p. 15). Antes, porém, faz-se necessário esclarecer o que tomaremos por educação aqui.
Nossa definição de educação será baseada na educação dialógica, definida por Paulo Freire
durante toda a sua vida e obra. Tendo como tarefa essencial o diálogo, essa metodologia visa
a prática educacional enquanto forma de libertação, e essa só ocorre quando há diálogo entre
os humanos, que tem conhecimentos variados, e que não podem ser classificados em melhor
ou pior, pessoa mais ou menos sábia. O aprendizado só ocorre quando há uma evolução do
diálogo para uma conscientização da sua situação no mundo que, por fim dá vazão a
liberdade, na qual educador e educando aprendem e se libertam juntos. Nesse conceito, como
afirma Freire (1996, p. 17): ―Não há inteligibilidade que não seja comunicação e
intercomunicação e que não se funde na dialogicidade‖, ou seja, o conhecimento só se forma
a partir do diálogo entre o professor e o educando. Assim, o professor não pode se arrogar
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achando que sabe de tudo e centralizar a aula em si, tornando os alunos como meros seres
passivos, que apenas escutam e reproduzem o que o tutor acabou de falar.
Interessante notar como eles afirmam que o termo tem ―uma forte penetração em
países latino-americanos e caribenhos‖ (GERMANO; KULESZA, 2007, p. 18), locais
historicamente marcados pelo colonialismo e o subdesenvolvimento. Quanto a isso, vale
reforçar que há
Não podemos contribuir com a invasão e dominação cultural dos ―invasores‖, como
nos aconselha Paulo Freire (1987, p. 87), pois convencidos de uma suposta ―inferioridade
intrínseca‖, os invadidos, à medida que ―vão reconhecendo-se inferiores, necessariamente
irão reconhecendo a superioridade dos invasores‖. Ilustrativo dessa situação é relembrar a
crônica de Nelson Rodrigues (1993, p. 61-63) sobre o complexo de vira-latas brasileiro, em
que o define como ―a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face
do resto do mundo. Isto em todos os setores‖ (RODRIGUES, 1993, p. 61). Especulando sobre
o assunto, Jessé Souza (2018, p. 24) escreve que: ―Hoje em dia, pela ação da repetição diária
na imprensa, venal e vendida desde sempre, nas escolas e nas universidades, essa
autoconcepção vira-lata se tornou uma espécie de ‗segunda pele‘ de todo brasileiro‖, o que
acentua o impacto que tem uma divulgação errônea. Sobre a quase ―vergonha de si‖,
lembremos que Freire (1998, p. 49) destaca em outro contexto que é ―importante brigarmos
contra as tradições coloniais que nos acompanham‖. Após alertarmos sobre isso, podemos
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O propósito almejado aqui é produzir reflexões que nos faz pensar e nos leva a agir[7].
Mas é preciso ressaltar que há poucos artigos sobre o fenômeno, portanto, o assunto necessita
de mais estudos, pois ―no que tange propriamente à popularização da filosofia, poucos
autores detiveram-se na questão‖ (OLIVEIRA; AQUINO, 2015, p. 66). Mas isso só flui a
curiosidade para uma pergunta: Que caminho percorremos da ágora[8] para o agora?
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encontrados nos Diálogos de Platão‖ (DURANT, 2000 apud SANCHES, 2011, p. 126). E de
fato, logo ao pensar a aproximação da filosofia com o povo necessariamente somos levados a
Sócrates e sua maiêutica[9], que era praticada nas praças públicas. E ali, em meio ao convívio
de todos os cidadãos, ―nos dá a ideia de filosofia como algo profundamente colado à
existência humana cotidiana‖ (DALBOSCO, 2009, p. 55). Claudio Dalbosco (2009, p. 51)
ressalta que, para alguns, ―a praça não passa do lugar do vulgo e do comum; o lugar da
vagabundagem, no qual pessoas desocupadas se encontram para matar o tempo‖. Por outro
lado, para outras é lugar do livre mercado de ideias, e nas palavras de Dalbosco:
das práticas filosóficas que saíram das ruas e ficaram somente com os clérigos, desse modo,
detiveram o saber e, consequentemente, sua difusão. O interesse por qualquer tipo de difusão
―não foi prioridade da Igreja, pelo menos até a reforma protestante‖ (GERMANO;
KULESZA, 2007, p. 11). Não havia interesse em uma educação filosófica, muito menos em
uma alfabetização básica. Nesse sentido, há um distanciamento e até mesmo uma elitização
da disciplina, que se torna inacessível ao grande público.
Mais à frente, no início da época moderna, temos o exemplo de Hobbes que atendendo
às necessidades sociais, publicou suas obras em língua comum de seu povo (inglês) e não na
língua habitual do conhecimento (o latim), para que servissem para influenciar a opinião
pública a respeito da monarquia. Segundo confirma Angela Scaramal (2010, p. 2), sua obra é
―influenciada pelos problemas contemporâneos da Inglaterra‖.
Já na época do iluminismo ou, como chama Roger-Pol Droit (2012, p. 196) nos
―Séculos das Luzes, convencionou-se chamar filósofos os propagadores de ideias‖. Dentro
desse contexto, é impossível não evocar o maior propagador das ideias científicas, o
idealizador e editor da enciclopédia, Denis Diderot. Em sua concepção, ―a enciclopédia
serviria como uma máquina de guerra contra os dogmas, como uma ferramenta
incomparável de educação intelectual e científica‖ (DROIT, 2012, p. 197). Sua ideia de
popularização da filosofia é revolucionária pois a ―aberta circulação dos conhecimentos foi,
na época, uma grande novidade [...]. A transmissão era em geral, restrita‖ (DROIT, 2012, p.
197-198). Como se sabe, a ideia de progresso do iluminismo estava ligada plenamente com a
ilustração e a autonomia individual e coletiva, e somente com ações de difusão que esse
progresso ―deixava de ser apenas uma ideia, uma concepção geral e vaga‖ (DROIT, 2012, p.
198). Segundo Droit (2012, p. 199), em Diderot se encontra a ideia e a prática de tornar a
filosofia acessível a todos, e, sendo acessível, a intenção era que o povo ―se transformasse
pela prática da reflexão filosófica‖. Mas ele alerta que essa intenção já vinha emergindo ao
longo do século XVIII, principalmente na Alemanha[10]. É curiosa e pertinente a
caracterização que Pol Droit (2012) faz de Diderot como um atraente encantador que é
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eloquente e encanta os ouvintes. O curioso é notar como ele contrapõe essa figura
encantadora ao professor, como vemos em:
Pelo que podemos deduzir da citação, o professor teria naturalmente algo de chato, de
desencantador, de repulsivo e tedioso. Algo que se fixa à imagem do professor no período
atual, mesmo com a troca de instituição que retém o filosofar, já que a Igreja é substituída
pelas Universidades na modernidade. Assim, fica fácil de entender como, na
contemporaneidade, o professor da instituição formal e obrigatória passa a ser visto como
chato e tedioso, enquanto o comunicador que aparece ocasionalmente nas informalidades
digitais é espetacular. Essa é uma disputa desleal por conta dos meios diferentes que se
apresentam, e não podemos equipará-las e esperar resultados válidos. Mas voltemos à
popularização que, a partir da contemporaneidade, surge algo novo: o envolvimento do
mercado modifica o processo com novos funcionamentos.
O famoso Café Filosófico, como nos diz Maria Neves (2017, p.3) surge na ―França
em 1992, iniciativa do filósofo Marc Sautet‖, autor do livro Um Café para Sócrates,
publicado em 1995. Ainda segundo Neves (2017, p. 3), ―o Café Filosófico segue os passos de
Sócrates‖ pois questiona, perturba e desorienta os que estão presentes lá, mas é claro ―que
isto não o tornou popular… Quando estamos convencidos de que sabemos, não é lá muito
agradável que alguém nos venha mostrar que, afinal, não sabemos‖. Mesmo assim, Neves
afirma que esse método
A ação de tirar a filosofia da Academia constitui a maior parte dos novos processos
contemporâneos de difusão filosófica e, como argui Tatiana Sanches (2011, p. 126), esses
processos lidam diretamente com ―uma real massificação [envolvendo o] mercado‖, e só
―começou a acontecer, no Brasil e no mundo, a partir da década de 1990‖. Assim, o
fenômeno que se inicia com Sócrates se renova e ganha novas mecânicas na atualidade. Este
novo funcionamento é o que, de fato, estará em foco neste trabalho. Buscamos mostrar quais
os perigos e os acertos quando o mercado e a mídia influenciam a popularização da filosofia
e, até mesmo o fazer e ensinar a filosofar no atual momento histórico.
diferente, mesmo agora que filosofia é ―um nome mercadologicamente poderoso‖ (LUZ,
2020). O curioso nesse processo de notoriedade social do filósofo, da filósofa e da filosofia é
que ele surge de uma demanda externa aos departamentos filosóficos. Béziau (2000, p. 15)
afirma que existe um ―insucesso absoluto da filosofia universitária para tocar o grande
público. A filosofia universitária, [...] permanece intragável para o homem ordinário. Ela
não corresponde à espera do público, à sede filosófica do povo‖. Isso solicita dos intelectuais
acadêmicos um novo posicionamento diante da sociedade. E por que não inovar e investir
nesse processo popular?
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para nós, acadêmicos, pois se pudermos fazer algo com qualidade, por que deixarmos para
outros fazerem? Ou melhor, por que não fazer?
E no Brasil, o fenômeno é observado também por Safatle (2006, p. 7): ―um dos
fenômenos mais pitorescos na vida cultural do Brasil dos últimos anos: o crescente interesse
pela filosofia‖. A popularização no Brasil, segundo Oliveira e Aquino (2015, p. 72), foi
sempre sondada pelo viés da questão mercadológica ou pela utilidade de tal divulgação, e a
conclusão feita pelos acadêmicos foi ―ajuizadora na maioria das vezes: ora a popularização
é repreensível [...], ora ela é legítima‖. Além disso, eles observam que alguns autores
brasileiros embarcam na onda de popularização, principalmente os autores Eduardo Giannetti,
Luis Pondé, Clóvis de Barros Filho, Vladimir Safatle, Marcia Tiburi e Sérgio Cortella que se
utilizam de diferentes meios para chegar ao público. Os mais diversos meios também são
examinados por Oliveira e Aquino (2015), que inspecionam coleções de livros, diversas
revistas de grande circulação, colunas em jornais assinadas por filósofos e participações em
rádio e TV, que fazem o mesmo papel divulgador. Tal demarcação do fenômeno é
imprescindível para o entendimento de como ele funciona aqui no Brasil. Os autores Aquino
e Oliveira concluem que:
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As problemáticas de tal atitude serão abordadas mais à frente. Por hora, pensemos no
passado nacional. Qualquer processo de divulgação científica e popularização no Brasil se
torna particularmente complicado, sobretudo, por nosso passado colonial:
No cenário brasileiro dos séculos XVI, XVII e XVIII, enquanto o país ainda
era uma colônia portuguesa de exploração, as atividades científicas e mesmo
de difusão das novas ideias modernas eram praticamente inexistentes. [...] e
início do século XIX, brasileiros que conheciam Portugal, França e outros
países da Europa, começaram a difundir, muito timidamente algumas ideias
da ciência moderna no Brasil. (GERMANO; KULESZA, 2007, p. 10).
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brincadeira, ―no momento de pensar não admitimos piada. Queremos a coisa séria. Frases na
ordem inversa, palavras raras, citações latinas‖, ou seja, mergulhamos ―num escafandro
greco-romano‖ (GOMES, 1994, p. 6). E mergulhando nesse delírio greco-romano ou
europeu-estadunidense, ―o brasileiro foge de sua identidade‖, e então no nosso pensamento
oficial-acadêmico ―não se encontra qualquer sinal de uma atitude que assuma o Brasil e
pretenda pensá-lo em nossos termos‖ (GOMES, 1994, p. 7).
Diante disso, Gomes analisa o valor que damos à seriedade, já que como vimos, o
pensar não é brincadeira. Ele diferencia o ser sério do levar algo a sério. A diferença estaria
na potência transgressora de regras quando se leva algo a sério, lá estaria ―o germe
revolucionário indispensável‖ (GOMES, 1994, p. 11), que é diferente de quando se
internaliza as regras e não ―sai da linha‖ para cumprir o que se propõe. Nesse sentido, de
acordo com Gomes (1994, p. 11), a atividade filosófica tem que ser levada a sério e, por isso,
é uma atividade essencialmente marginal, que transgride as regras vigentes. Mas o problema
surge porque no Brasil faríamos uma ritualização do fazer filosófico e também do que é
considerado sério, não levando em conta o que é dito, mas somente a forma pela qual é dito.
Nas palavras do autor,
continuarmos com esse tipo de prática, nada poderemos ―dizer de importante, que importe‖.
O filósofo Gomes (1994, p.40) atribui esse desligamento da realidade inerente de nossa
prática filosófica a um ―medo de assumir nossa posição‖ enquanto brasileiros. E ainda se
inflama e diz que: ―Urge ser o que somos - descobrir-se no Brasil, na América Latina. Sem
um ‗outro‘ ao qual possamos nos agarrar‖.[14] (GOMES, 1994, p. 110).
Dessa maneira, a filosofia brasileira é séria a partir do momento em que assume o que
é. Se conscientizando criticamente de onde está, quem é sua população, quais são os
problemas que enfrentamos em nossas escolas e outras perguntas básicas, demarcaríamos o
que somos, e só assim conseguiríamos falar algo de importante que importe. Levando em
conta as respostas que nos conscientizam, podemos fazer uma filosofia séria, nos levando a
sério, ouvindo nossos filósofos. Dialogar com a multidão equiparados com ela, fazendo
filosofia séria como a já existente no país, mas que é desconhecida pela maioria dos filósofos
e filósofas nacionais.
Porém, por outro lado, Ronie Silveira (2016, p. 262) garante que o isolamento social
entre a filosofia e o contexto brasileiro é justamente a filosofia sendo brasileira. Na mesma
página ele argumenta que ―não apenas há uma filosofia brasileira, como faz parte do seu
exercício negar-se a se tornar brasileira. [...] Ela é brasileira justamente por estar de costas
para o Brasil e por não possuir a disposição de voltar seus olhos para o lado de cá‖. Então, a
atitude de envergonhados, virar de costas para o Brasil e querer estudar e comentar textos
apenas de filósofos europeus e fazer isso hermeticamente fechados, fora de risco de
contaminação com o resto da cultura brasileira é aquilo que define as filósofas e os filósofos
nacionais. Isso acontece porque aqui, na Terra dos papagaios[15] a filosofia funciona dentro
de uma estufa, como demonstra hegemonicamente a produção nacional, ―é possível viver
dentro desse isolamento cultural, estudar filosofia e exercer a profissão de filósofo durante
anos, sem fazer referência a nenhuma situação nacional ou sem refletir sobre algo que seja
específico do país‖ (SILVEIRA, 2016, p. 262). Então, o filosofar no Brasil é (ou era) como
uma estufa, que desinfeta qualquer vestígio nacional, se esterilizando do ―vírus brasis‖[16].
Mas essa prática também esteriliza as potências de transformação que seus atos e
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pensamentos podiam trazer pro país. Os recentes ataques a filosofia[17] são demonstrações de
como uma parte da população não vê utilidade nela, não vendo uma justificativa de sua
obrigatoriedade no ensino médio. E qual resposta foi dada ao povo? Será dada alguma? A ralé
e a plebe conseguiriam entender o discurso de um filósofo/filósofa?
Como Silveira (2016, p. 264) enuncia ―Uma das mais perversas justificativas para
essa situação de isolamento é a de que o diálogo com o restante da cultura inevitavelmente
implicaria em algum tipo de rebaixamento da posição do filósofo‖. A filosofia na boca do
povo certamente causaria um rebaixamento dela, segundo essa lógica. Mas antes, levaria o
filósofo e a filosofia que nega a pensar seu contexto a uma crise identitária existencial. Poderá
existir o filósofo brasileiro que se assume enquanto tal? Ou isso é ser rebaixado a filósofo de
botequim? Filosofia de botequim é um termo comum de se ouvir no país, tanto que virou
título de um DVD de divulgação filosófica, como aponta Sanches (2011, p. 127). Mas apesar
do valor pejorativo que carrega, será que é tão ruim quanto parece? Por quase não pensarmos
em nossos termos, acabamos não investigando coisas de nosso cotidiano. Mas Francisco
Romanelli (2018) demonstra que a filosofia de botequim pode ser muito proveitosa para o
pensar. E como complementa Gomes (1994, p. 110), ―do ponto de vista de um pensar
brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos ensinar do que o senhor Immanuel Kant, uma vez que a
Filosofia, como o samba, não se aprende no colégio‖. Assim, ao pensarmos numa
popularização filosófica no Brasil, devemos levar em conta o que é e como é feita a filosofia
em solo nacional. Não deixando escapar também a questão de qual conteúdo estamos
divulgando/popularizando e, principalmente, como estamos fazendo isso.
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entender é algo problemático. Essas são algumas facetas de um problema legítimo que merece
nossa atenção e se assemelha com a preocupação com a aprendizagem do ouvinte e do
educando como foi na inquietação que atingiu os professores quando a filosofia se tornou
matéria obrigatória para o ensino médio. A implementação da filosofia no ensino médio como
componente curricular obrigatório, segundo Gontijo e Hahn (2017), alçava a divulgação
filosófica como política pública de Estado. E essa estadia da filosofia na educação básica
levantou muitos tópicos, entre eles o método de fazer a aproximação dos jovens com a
filosofia. Mas também revigora uma longa controvérsia, como podemos ver em:
Um dos temas mais discutidos nesse tópico de educação com jovens é que a
―tradução‖ feita para os alunos entenderem seria uma traição ao conteúdo que se pretendia
ensinar. E nesse sentido, a popularização perderia o rigor e deturparia o conceito. É a mesma
aflição preocupando a filosofia desde o ingressar nas escolas até a atual dominação das redes
sociais. Mas sendo essa tese de tradução-traição verdadeira ou não, é certo e inegável que
após alguns anos há excelentes trabalhos de atuação no ensino médio e os resultados obtidos
se mostram satisfatórios, se não dignos. E isso se mantém mesmo com as conclusões de Julio
Gonçalves (2015, p. 95) que, ao analisar as atuações no ensino médio e a formação do
professor filósofo, afirma que o ensino é uma temática pouco explorada em alguns cursos de
filosofia, e alguns formandos nem ―se prepararam para ser professores‖.
Mas por outro lado, seu trabalho também indica outros problemas que devem ser
combatidos na prática da popularização: a existência de cursos que forma o estudante como
um ―discípulo reprodutor do conhecimento de seu ‗mestre‘ e, portanto, fora da realidade na
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a falta ―de filósofos num país de dimensões continentais e quinhentos anos de existência já
basta para fazer dele uma anomalia [...] assustadora, provavelmente sem similar na história
universal‖ (Carvalho, 2018, p. 407 apud ROSA; REZENDE; MARTINS, 2018, p. 179). Esse
caso demonstra que nem só o grande público está suspeito de sofrer da invasão cultural, que
ainda se mantém vigente.
Mesmo com todas essas problemáticas que nos fariam perder muito, também há muito
o que ganhar, que estamos a descobrir. A popularização da filosofia no Brasil faria ela se
misturar com o povo, tocando no ambiente brasileiro e finalmente pensando este. Após a crise
identitária de finalmente se encontrar e se olhar no espelho, o que poderá surgir? Vale afirmar
que grande parte dessa popularização ocorreria por meio da internet, da mídia, os meios de
comunicação em geral, que são frequentemente evitados pelos filósofos. Mas nem só coisas
ruins derivam da difusão, os Funkeiros Cults explodiram no Instagram e no Youtube. O
youtuber Audino Vilão conta com mais de trezentas e cinquenta mil visualizações, e cento e
vinte mil inscritos em seu canal, demonstrando a potência dos meios tecnológicos para a
educação informal. Estes mesmos meios digitais, os quais nós professores fomos forçados a
aderir por conta da pandemia de 2020, mas que urgem serem melhor explorados e
pesquisados.
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Essa situação pode ser exemplificada com o caso dos historiadores. Conforme aponta
o estudo de Juliana Ogassawara e Viviane Borges (2019, p. 51) é minimamente conhecida ―a
querela de historiadores versus jornalistas‖, com recentes episódios ganhando as redes
sociais[26]. De acordo com o exposto no artigo delas, no contexto brasileiro a mídia e as
redes sociais, ou seja, os lugares públicos são geralmente ocupados por divulgadores sem
formação na área a qual se dedicam a difundir, isso ocorre principalmente quando o assunto é
sobre história geral e brasileira. Alguns exemplos disso são: Eduardo Bueno, Leandro
Narloch e Felipe Castanhari, que produzem conteúdos midiáticos e livros sobre História, mas
não tem formação específica no campo. Isso, em si, não é um problema[27], quanto mais
autores divulgando, melhor. Mas as consequências dessa ocupação é que frequentemente
esses autores cometem erros conceituais que seriam evitados se fossem especializados.
Ao analisar as obras desses divulgadores, as autoras afirmam que ―fica claro que os
usos do passado se inserem em uma construção de sentidos conflituosa, permeada por
disputas‖ (OGASSAWARA; BORGES, 2019, p. 49), ou seja, o passado é o que é disputado
no espaço público do historiador. E na filosofia? Como enfatizam os foucaultianos:
Por um lado, a citação nos traz novamente a questão de a filosofia ser requisitada para
temas práticos, como de que maneira viver bem, como ser feliz e coisas assim. E com uma
explicação rápida e resposta fácil, o filósofo estaria fatalmente inclinado aos erros já
elencados.
Mas por outro lado, também ressalta que filósofo em espaço público está na disputa do
presente, influenciando a interpretação deste. Podemos supor que outras humanidades estão
na disputa da interpretação de outros âmbitos sociais, bem como o passado com a História,
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que é muito requisitado, já que o passado está em disputa constante. Assim, da mesma forma
que o historiador disputa o passado, o filósofo é um dos que disputa o presente, e essas
disputas só ocorrem por demanda popular, já que se dão em espaço público e não na
academia elitizada.
Há uma ideia comum entre a maioria dos cientistas de que, para popularizar a
disciplina, teríamos que inevitavelmente deturpar os conteúdos. Como vemos no estudo de
Ogassawara e Borges (2019, p. 38), seria preciso ―aceitar alguns arranjos com a verdade‖ a
fim de conquistar um público maior, o que acaba ocasionando um receio nos intelectuais de
ocuparem as grandes mídias. O receio pode ser sintetizado no dilema exposto por Ogassawara
e Borges (2019, p. 53, grifo nosso): ―conceder entrevistas a uma produção de qualidade
questionável, mas que é capaz de atingir milhões, ou recusar participações por desavenças
ideológicas? Ocupar a mídia mainstream, ou ignorá-la?‖ Esse pudor tem uma
consequência terrível: a ocupação se dá por pessoas sem qualificação e sem o pudor que,
justamente por não dominarem tanto o assunto tratado, não enxergam as possíveis
consequências maléficas de suas falas erradas. Devemos fugir da ―mera simplificação, há
diferenças sensíveis entre a simplificação didática da linguagem e a distorção de fatos para
privilegiar argumentos frágeis e até falsos‖ (OGASSAWARA; BORGES, 2019, p. 54). Não
podemos aceitar a deturpação do conteúdo em nome de um falso didatismo, muito menos por
motivos ideológicos ou conjecturais.
A especificidade filosófica nos ajuda a tomar cuidado com o ambiente público por sua
própria natureza, já que se baseia em respostas nunca suficientes. Então, a cada nova aparição
é um momento para o intelectual público reavivar e explicitar a marca e a excelência de nossa
disciplina. Assim, estendendo o convite que as autoras fazem aos historiadores, para os
filósofos e demais cientistas sociais, enfatizamos que devemos sim tornar esses espaços
nossos também.
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Considerações finais
Como esperamos ter ficado claro ao longo desse artigo, apesar das imensas
dificuldades que podem abater o filósofo durante a popularização, podemos e devemos
investir nessa prática pois é relevante ao trabalho filosófico e educacional e, querendo ou não,
já está sendo feita (por outros). Então, seria desejável que fizéssemos bem. A metodologia é o
que merece atenção, o método de fazer a popularização deve ser a prioridade ao pensar a
difusão. Tentamos aqui, fazer uma análise conjuntural de um fenômeno na sociedade
brasileira e de como a filosofia tem lidado com ele e como pode lidar. Tentamos contribuir
para uma metodologia de popularização que, dentro de seu discurso, demonstre também os
problemas de sua teoria, não só os seus aspectos coerentes. Pois assim resolveriam-se ou
diminuiriam-se as inúmeras consequências do método usado até então, que somente apresenta
os pontos coerentes. Mas esse mesmo método valioso apresenta um problema logo quando
confrontado com os clássicos formatos mercadológicos reduzidos, que compõem a maior
parte dos meios de propagação da divulgação filosófica da grande mídia institucionalizada,
mas que se mantém útil em meios cibernéticos.
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Por fim, reiteramos que a ―questão de um pensamento brasileiro deverá brotar de uma
realidade brasileira‖ e fazer isso inventando ―seus temas, ritmo, linguagem‖ (GOMES, 1994,
p. 8). Isso é necessário e já foi feito diversas vezes em nossa história, mesmo que siga
desconhecida. Talvez por ser uma filosofia que se assumiu enquanto ―marginal‖ e continuou
fora do padrão de seriedade da universidade. Mas é ―evidente que a Filosofia brasileira só
existirá a partir do momento que vier a ser, como a piada, uma investigação do avesso da
seriedade vigente‖ (GOMES, 1994, p. 13), levando isso em consideração, não é sem razão
que um dos fenômenos mais específicos e acurados de popularização (educação filosófica) a
surgir na cultura brasileira nasce de uma prática risível, um meme. Os funkeiros cults fazem
piada com os conhecimentos herméticos acadêmicos, criando um riso e também uma
democratização dos conhecimentos. Ao se debruçar sobre a popularização, Diderot clama:
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[22] Entendendo conhecimento aqui enquanto informações mediadas de alguma maneira por
um educador. Não apenas as informações soltas na rede.
[23] Segundo Andreza Delgado (2020, online) a expressão é ―empregada para se referir a
quem costuma ter um papo que, reflexivo, estraga o momento...‖
[24] Que ou quem, ostentando qualidades que não possui, procura auferir prestígio e lucros
pela exploração da credulidade alheia; um impostor, trapaceiro.
[25] Se referia a Vélez Rodríguez e seu posterior substituto Abraham Weintraub.
[26] Relatos sobre um acontecido recente dessa disputa pode ser encontrado em: YAO,
Rodrigo. Castanhari é cancelado após anúncio de sua série na Netflix, responde e revolta a
web. UOL, Observatório de Séries. Disponível em:
<https://observatoriodeseries.uol.com.br/netflix/castanhari-e-cancelado-apos-anuncio-de-sua-
serie-na-netflix-responde-e-revolta-a-web>. Acesso em: 23/07/20.
[27] Eles não querem criar historiadores, só entreter e divulgar. O problema surge quando
divulgam conteúdos errôneos ou sem comprovação científica para o povo, que pode passar a
crer em mentiras.
Referências Bibliográficas
ALVES, Luiz, R. Educar, um ato radical de comunicação: Para pensar Paulo Freire e a
sociedade em mudança. Unisinos. Revista Fronteiras, estudos midiáticos, VIII (2):
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Larissa Broedel
Resumo
O presente artigo tem como objetivo elucidar o conceito humiano de causalidade, tal como
é apresentado na Investigação Sobre o Entendimento Humano; por conseguinte, o trabalho
analisa sobretudo o percurso argumentativo da seção VII desse livro, composto por três
hipóteses para a origem da representação de conexão necessária entre causa e efeito e, por
fim,pela exposição da original tese de Hume.
Palavras-chave: Associação. Causalidade. Ideia. Impressão.
Abstract
The following article aims to elucidate the Humean concept of causality as it is presented in
the Enquiry Concerning Human Understanding; therefore, the work analyzes mainly the
argumentative path of section VII of this book, which contains three hypotheses for the
origin of the idea of necessary connection between cause and effect and, finally, the
exposition of Hume's original thesis.
Keywords: Association. Causality. Idea. Impression.
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1. Introdução
153
HUME, D. Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 1960. Editor Sir L. A. Selby-Bigge;
cf. tb. HUME, D. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Editora UNESP, 2009
154
HUME, D. Enquiries concerning Human Understanding and concerning the Principles of Morals
(editado por P.H. Nidditch). Oxford, 1975; cf. tb. HUME, D. Investigações sobre o Entendimento Humano e
sobre os Princípios da Moral. São Paulo: Editora UNESP, 2003
155
Passarei a me referir ao Tratado da Natureza Humana com a expressão Tratado
156
Passo a me referir à Investigação sobre o Entendimento Humano com a expressão Investigação.
157
Essa é a opinião, por exemplo, de Jens Kulenkampff. Cf. KULENKAMPFF, J. Einleitung. In:
KULENKAMPFF, J. (org.). David Hume - Eine Untersuchung über den menschlichen Verstand (Klassiker
Auslegen). Berlin: Akademie Verlag, 1997. Agradeço ao orientador do meu trabalho de conclusão de curso, o
prof. Renato Valois (UFRRJ), pelo acesso ao conteúdo dos artigos em alemão citados aqui, bem como às
discussões acerca dos mesmos.
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2. Desenvolvimento
158
HUME, 2009, p. 1/25. As citações das páginas do Tratado serão datadas da edição brasileira, 2009, enquanto
a paginação será feita sempre com a forma ―x/y‖, onde ―x‖ referir-se-á à página da edição de Oxford e ―y‖ à
página da edição brasileira.
159
―Our outward or inward sentiment.‖ Cf. HUME, 2003, p. 19/35. As citações das páginas da Investigação
serão datadas da edição brasileira, 2003, enquanto a paginação será feita sempre com a forma ―x/y‖, onde ―x‖
referir-se-á à página da edição de Oxford e ―y‖ à página da edição brasileira.
160
HUME, 2009, p. 2/25-26.
161
HUME, 2009, p. 7/32.
162
HUME, 2009, p. 8/32. Relativamente à difícil distinção entre impressões e ideias, o trabalho de Heidrun Hesse
é bastante esclarecedor. Em grande parte, as observações a seguir acompanham sua interpretação: Cf. HESSE,
H. Eindrücke und Ideen. Die Funktion der Wahrnehmung (Abschnitt II und III). In: Klassiker Auslegen – Eine
Untersuchung über den menschlichen Verstand. Berlin: Akademie Verlag, 1997.
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Por conseguinte, a vivência expressa pela observação do nascer do sol gera uma
impressão, enquanto sua recordação depende da produção de uma ideia. Ou então, quando
provamos uma fruta amarga, ou o momento vivido do ato de provar uma maçã; em todos
esses momentos as percepções geradas serão impressões. Em momentos futuros, quando for
evocadaa memória do que aconteceu, ou quando se pensar sobre o que houve, recorreremos
às ideias.
A diferença entre impressões e ideias não é difícil de ser notada, pois são percepções
distintas em graus de vividez e força. Uma ideia nunca será tão viva e nunca terá suas cores
tão fortes quanto uma impressão. Por mais que a lembrança contenha muitos detalhes ou
muita vividez, as ideias não alcançam a força das impressões. A experiência de viver uma
situação é muito mais viva que a de recordá-la. Numa palavra, Hume considera que as
percepções de ideias, quando comparadas às percepções de impressões, parecem pálidas; e
que somente devido à loucura ou a alguma outra doença seria possível confundi-las166. Sob
esta perspectiva, as ideias são assimiláveis aos pensamentos, assim como as impressões às
sensações.
163
HUME, 2009, p. 9/32-33.
164
HUME, 2003, p. 26/54.
165
HUME, 2009, p. 9/32-33.
166
HUME, 2009, 2/25-26; HUME, 2003, 17/33-34.
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167
HUME, 2009, livro 1, parte 1.
168
HUME, 2009, p. 7/32.
169
HUME, 2009, livro 1, parte 1.
170
HUME, 2009, p. 9/32-33.
171
HUME, 2003, p. 17/33-34.
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poderá certamente explicar conexões que não haviam sido oralizadas. Independentemente
da língua que se examina, os princípios de associação de ideias poderão ser discernidos.
De acordo com Hume, existem três maneiras pelas quais uma ideia pode ser
associada a outra: a primeira é através do princípio da semelhança, a segunda através do
princípio da contiguidade e a última consiste no tema deste trabalho, a saber, por intermédio
do princípio da causalidade174. A associação por meio da semelhança é realizada
precisamente por meio da similitude eventualmente exibida pelas ideias entre si; portanto,
172
HUME, 2003, p. 45/77-78; 26/53-54; 46/78-79.
173
HUME, 2009, livro 1, parte 1
174
HUME, 2003, seção II.
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175
Meu estudo nesta parte do artigo é essencialmente uma paráfrase da interpretação de Bertram Kienzle, com a
qual concordo. O excelente estudo de Martin Bell também influenciou bastante a redação desta etapa do artigo. Cf.
KIENZLE, B. Von der Vorstellung der notwendigen Verknüpfung. In: Klassiker Auslegen – Eine
Untersuchung über den menschlichen Verstand. Berlin: Akademie Verlag, 1997. Cf. tb. BELL, M. Hume on
Causation. In: The Cambridge Companion to Hume. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
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176
É claro que, rigorosamente, percepções sensíveis são constituídas não apenas por qualidades secundárias, mas
também por qualidades primárias, independentes dos cinco sentidos e de nossa posição no espaço. Por
conseguinte, caracterizo como estritamente sensorial apenas a parte ―material‖ da representação sensível, esta
sim variável e dependente das sensações e da posição espaciotemporal do sujeito. De todo modo, a origem das
percepções é um ponto controverso na teoria de Hume. Assim, levando em consideração que o filósofo foi leitor
de Berkeley, clássico defensor de uma doutrina imaterialista, é relevante a questão sobre a admissibilidade de
intuições intelectuais na filosofia do conhecimento humiana. Pois, em última análise, o imaterialismo classifica
tudo que pode ser discernido mentalmente como ―sensível‖, sejam qualidades primárias, sejam qualidades
secundárias. Ora, visto que sem dúvida Hume não tem uma teoria causal da percepção (cf. notas 8, 9 e 10) e
muito menos uma reflexão sobre a existência de um substrato não-sensível da realidade (e distinto da mente),
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por assim dizer, qualquer sensação de ligação capaz de conectar ocorrências externas
causalmente. Assim, o máximo que impressões externas podem fornecer é a constatação ou
o reconhecimento do fato de que uma ocorrência pensada como efeito sucede outra,
representada ou classificada como sua causa. De tal modo que a ideia simples de
representação necessária não poderia ser derivada da mera contemplação de objetos
externos. É preciso, contudo, ressaltar que o argumento não consiste simplesmente na
afirmação de que não há uma impressão correspondente à representação de conexão
necessária; seu aspecto sutil, de acordo com as bases da doutrina humiana, é a
refutação da pressuposição de que aquela representação poderia resultar da cópia de
umaimpressão externa.
inevitavelmente seu sistema deixa em aberto a possibilidade de que, ao fim e ao cabo, nossas representações
sejam meros produtos do intelecto puro. Contudo, não desenvolverei essa dificuldade aqui
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reflexão‖177. Trata-se de um tipo de ideia que teria origem na reflexão acerca de processos
intrinsecamente mentais, isto é, através da mera introspecção relativamente às operações do
espírito.
Premissa 1 (P1) - Premissa relativa à origem mental das ideias de reflexão: se a ideia de
conexãonecessária é uma ideia de reflexão, ela deve provir da mente;
177
HUME, 2003, seção II e III.
178
HUME, 2003, p. 64/100-101
179
Reproduzo aqui integralmente a reconstrução de Kienzle. KIENZLE, 1997, p. 121.
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Premissa 2 (P2) - Premissa que relaciona a hipotética origem mental da ideia de conexão
necessária a uma espécie de conhecimento a priori: se a ideia de conexão necessária provém
damente, devemos ter um conhecimento a priori da relação causa-efeito;
Premissa 3 (P3) - Premissa que expressa a tese fundamental empirista: todo o conhecimento
que temos acerca de relações causais deve provir da experiência180.
A última crítica de Hume, por assim dizer, quanto a possíveis candidatos à fonte da
ideia de conexão necessária também se refere a uma espécie de ato da vontade181.
Trata-se aqui
180
Em sentido estrito, como expliquei acima.
181
HUME, 2003, seção VII.
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O trecho acima conclui a refutação das três hipóteses para ―candidatos‖ 185 a fontes
da representação de conexão necessária. Além disso, a passagem abre espaço para a
apresentação e desenvolvimento de uma original teoria causal. Indica Hume mais adiante:
―Mas, quando muitos casos uniformes se apresentam, e o mesmo objeto é seguido sempre
pelo mesmo resultado, a noção de causa e de conexão começa a surgir à nossa
consideração‖186.
184
HUME, 2003, p. 73/112, grifo do autor.
185
Em princípio, poder-se-ia defender a possibilidade de uma quarta hipótese: o intelecto puro (ou a ―razão
pura‖). Relativamente a essa consideração, sublinho que meu artigo procura ater-se essencialmente à análise do
percurso argumentativo estruturado na seção VII da Investigação. São recusadas aí apenas as hipóteses
apontadas acima para o fundamento da ideia de conexão necessária; numa palavra, a possibilidade da opção
razão pura não está entre as três discriminadas pelo autor. Creio que a desconsideração de Hume ocorreu
simplesmente porque impressões são consideradas por ele as únicas fontes para as ideias; a questão sobre a
causa das próprias impressões é de fato um problema para a teoria humiana, mas suponho que a nota 24 é
suficientemente esclarecedora a respeito.
186
Cf. HUME, 2003, p. 78/117.
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187
Não confundir com o processo de associação de ideias, descrito na seção III da Investigação, que tem
significado e função completamente distintos.
188
O termo receptor sensorial é aqui tomado de empréstimo da biologia, mais precisamente da neurociência, e
refere-se de modo genérico à parte ou à estrutura de um sistema sensorial que reconhece estímulos dados no
ambiente interno ou externo de um organismo – mais precisamente, no caso do homem, a expressão diria
respeito a elementos fisiológicos (corporais) com a função de reconhecer estímulos dados aos sentidos interno e
externo. Os receptores localizam-se nos órgãos dos sentidos e resumem-se a terminais nervosos capazes de
receber estímulos e transformá-los em impulsos nervosos. Cf. Gerd Willwacher: Fähigkeiten eines assoziativen
Speichersystems im Vergleich zu Gehirnfunktionen, In: Biological Cybernetics 24 (1976), p. 181-198. Apud
KIENZLE, 1997, p. 127.
189
HUME, 2003, seção VII.
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Uma questão essencial que deve ser posta neste momento é a seguinte: impressões
de pares de ocorrências podem ser indiscutivelmente semelhantes a outras impressões de
pares? Ora, Hume afirma que: ―[…] quando muitos casos uniformes se apresentam, e o
mesmo objeto é seguido sempre pelo mesmo resultado, a noção de causa e de conexão
começa a surgir à nossa consideração‖190. A citação sugere que a obtenção da buscada
origem da ideia de conexão necessária pressupõe a disponibilidade de várias impressões de
pares de ocorrências sucessivose semelhantes. Portanto, essa constatação parece excluir que a
―mesmidade‖ (isto é, a identidade referida) possa ser assimilada à identidade numérica191,
mas sim tão somente à identidade qualitativa. Reforçam essa interpretação duas outras
passagens em que Hume refere-se a eventos da mesma ―espécie‖: ―Mas, quando uma
espécie particular de acontecimento esteve sempre, em todos os casos, conjugada a uma
outra [...]‖192 e ―É apenas quando duas espécies de objetos se mostram constantemente
conjugadas que podemos inferir uma da outra‖193.
De fato, Hume tem de contar em sua argumentação com certo grau de variação nas
impressões de pares semelhantes. Por exemplo, duas impressões semelhantes sempre serão
interpretadas por padrões de estímulos que se diferenciam através de certos desvios
relativos à distribuição dos receptores sensibilizados – que podem se dar não apenas devido
a características fisiológicas particulares do observador, mas também por fatores como
sua posição no tempo e no espaço. Contudo, isso é apenas parte do problema, avaliado
190
HUME, 2003, p. 78/117, grifo nosso
191
Pelo denominado princípio dos indiscerníveis, cuja formulação original remete à filosofia antiga, dois objetos
(ou essências) são idênticos em sentido estrito, forte, se puderem ser considerados indiscerníveis. Trata-se neste
caso do que costuma-se chamar de identidade numérica. Diferentemente, a identidade meramente qualitativa
refere-se àquela propriedade que caracteriza meramente objetos pertencentes a uma classe de coisas semelhantes
classificadas por meio de um conceito. Assim, o conceito de mesa serve para classificar o conjunto das mesas
particulares etc. Cf. Identidade. In: TUGENDHAT. E. Propedêutica Lógico-semântica. Petrópolis: Vozes, 1997,
p. 131.
192
HUME, 2003, p. 74/113.
193
HUME, 2003, p. 148/201, grifo do autor
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Por ora, retomemos o procedimento de produção de uma cópia. Ela deve derivar,
em princípio, da experiência de diversas impressões de pares semelhantes de ocorrências. É
importante sublinhar que a cópia obtida conterá, tanto no primeiro como no segundo
membro, conjuntos de pontos representados com maior ou menor frequência, frequência
que corresponderá precisamente àquela com que nossos receptores forem estimulados pelas
impressões dos pares. O aspecto da discussão que deve ser retido é a peculiaridade da
cópia: ela diferenciar-se-á inevitavelmente de todas as impressões particulares de pares. Em
outras palavras, a cópia conterá um padrão de distribuição de pontos em sua constituição
que não poderá ser assimilado totalmente ao padrão de pontos de nenhuma impressão
particular. Na terminologia biológica que adotamos, isto equivale a dizer que a cópia
expressa o padrão de distribuição de pontos quando todos os receptores sensoriais são
estimulados. Isto, é claro, nãoocorre necessariamente em cada impressão particular formada
ao longo da sequência.
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194
HUME, 2003, p. 76/115, grifo do autor.
195
HUME, 2003, p. 78/117, grifo do autor.
196
HUME, 2003, p. 75/113-114, grifo do autor.
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Considerações finais
A título de uma conclusão, gostaria apenas de indicar alguns problemas, que não
serão desenvolvidos no presente trabalho197. Refiro-me a determinadas dificuldades da
doutrina de Hume sobre o princípio da causalidade. A primeira delas concerne à própria
natureza da conexão habitual: o texto não deixa claro se essa expressão referir-se-ia a uma
impressão (ou sentimento) que corresponderia à ideia de conexão necessária. E também não
deixa claro como alternativa se, apenas por ocasião da conexão habitual seria produzido um
sentimento, ele próprio constitutivo da origem da ideia em questão. A segunda diz respeito
a uma hipotética contradição, subjacente ao método de associação em série: por qual
motivo deve-se aplicar o procedimento de obtenção da ideia de ligação constante a
impressões formadas a partir de diversos pares de ocorrências sucessivas e semelhantes?
Ora, privilegiar tais impressões no processo de produção da cópia parece já pressupor a
ideia de ligação constante como critério de escolha daquelas. Enfim, se esta crítica faz
sentido, haveria uma espécie de círculo lógicono princípio do próprio procedimento.
197
Sugiro, entretanto, a leitura dos artigos citados na nota 23, que aduzem algumas possibilidades para o
tratamento dessas dificuldades.
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Untersuchung über den menschlichen Verstand (Klassiker Auslegen). Berlin: Akademie
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1. Introdução
Imagine que um indivíduo qualquer, vamos chamá-lo de João, receba uma mensagem
via um aplicativo qualquer, com o seguinte conteúdo: ―foi encontrada a cura para o autismo e
se chama MMS198, este consiste em ser um óleo mineral que cura diversas doenças. Existem
muitos métodos de aplicação deste óleo, caso a criança com autismo não aceite via oral (o que
é comum), é possível fazer a administração via retal o que de fato os médicos indicam como
sendo o mais efetivo‖. Continuando nossa situação hipotética, João fica extremamente
animado com essa mensagem, pois tem um filho autista, ele começa, então, a pesquisar sobre
o MMS e descobre onde comprar, quanto deve ser administrado e até mesmo alguns médicos
indicando o uso do produto. João passa a utilizar o MMS em seu filho, este desenvolve uma
198
Para mais informações indico este breve artigo no site do Dr. Drauzio Varella:
https://drauziovarella.uol.com.br/pediatria/mms-a-perigosa-solucao-que-promete-a-cura-de-doencas/ e
também este vídeo do mesmo: https://www.youtube.com/watch?v=yrVvrSjHE58 [Advertência: produto
milagroso é fake news |Coluna #114]
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Terminado nosso exemplo, algumas questões cabem ser feitas aqui: João pode alegar
que foi enganado? João tem alguma culpa por ter feito o que fez, mesmo acreditando que isso
seria o melhor para seu filho? Podemos culpar o indivíduo que enviou esta mensagem para
João? João de fato cometeu algum mal moral mesmo tendo uma boa intenção? João de fato
investigou sua crença ou apenas procurou confirmá-la? Para nos ajudar a responder essas
perguntas vamos trabalhar com o texto ―A Ética da Crença‖, uma importante obra
epistemológica, escrita pelo filósofo britânico W.K Clifford. E, sim, João e quem enviou a
mensagem para ele é culpado, mas não só isso, na visão de Clifford, ele cometeu o maior
acinte contra a humanidade, i.e., a crença não justificada, a credulidade e a bobagem.
É razoável dizer que João estava desejando o melhor para seu filho, mesmo que o
resultado tenha sido negativo para este. Podemos pensar: caso nada tenha acontecido com o
menino, ou ainda se ele tivesse de fato se ―curado‖ do autismo, João deixa de ser responsável
por sua atitude? A resposta claramente é não, pois o pai do menino não colocou sua crença
sob investigação, apenas buscou confirmá-la e, para Clifford, mesmo que uma certa ação
decorrida de uma crença não cause nada ou cause algum bem, esse bem nunca é superior ao
mal da credulidade, sobre isso afirma: ―É sempre incorreto, em todo o lado, para qualquer
pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.‖(CLIFFORD, 2010, p.
108). Isso porque o autor entende que uma ação sempre decorre de uma crença, sendo o
contrário falso:
Tão pouco é uma crença aquilo que não influencia de modo algum as ações
de quem o sustenta. Quem verdadeiramente acredita naquilo que o encoraja
a realizar uma ação, contemplou já a ação com um desejo intenso, já a
realizou no seu coração. (CLIFFORD, 2010, p. 103)
Portanto, o problema central é que a crença sem evidências sempre coloca terceiros em
risco, tendo em vista que essa sempre está envolvida em uma ação. Para além disso, por mais
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individual que seja crer, nunca é particular apenas a um homem, mas sempre ao coletivo, pois
uma crença aceita sem indícios é como um pecado contra a humanidade, porque cada homem
possui um dever em precaver que a sociedade seja tomada por falsas crenças. Parece que
Clifford entende a crença como algo fundador da sociedade, algo que permite que nós nos
desenvolvamos no público e no privado, isso fica evidente na seguinte passagem:
Claro que o caso de João é deveras grave e merece um cuidado redobrado, mas
podemos pensar em casos em que uma crença não afeta negativamente um indivíduo. Por
exemplo, acreditar que homeopatia funciona, que a Terra é plana, ou que alguém se comporta
de uma determinada maneira porque tem um signo tal com um ascendente tal em uma lua tal,
não parece trazer nenhum malefício direto para si ou para coletivo. Seria vil crer sem
evidências nesses casos? Mesmo que essas crenças não exerçam nenhum afronte direto, elas
podem fomentar outros problemas tão graves quanto, a saber, a credulidade que por sua vez
acarreta uma adversidade ainda pior: a bobagem. Isso ocorre pois ―sempre que nos
permitimos acreditar por razões indignas, enfraquecemos os nossos poderes de autocontrole,
de dúvida, de avaliação imparcial e honesta de indícios‖ (CLIFFORD, 2010, p. 106), a partir
disso temos um efeito epidêmico na sociedade:
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Superficialmente falando, isso parece ser verdade, por exemplo, para aceitar que a
Terra é plana, tenho que aceitar que a gravidade não é tal como os cientistas dizem que ela é,
que o sol não é tal como usualmente acreditamos que ele seja, e que existe um conluio
internacional entre cientistas, políticos, governos, instituições que pretendem esconder essa
verdade dos pobres cidadãos e também que existe uma borda de gelo que circunda toda a
planície. Fora isso, não é difícil encontrar indivíduos que interseccionam crenças
conspiratórias ou falsas. Portanto, uma crença pode, ou causar um mal direto (uma ação) ou
um indireto (um fomento para a credulidade), João parece ter cometido o primeiro mal,
enquanto o indivíduo que o enviou a mensagem parece ter cometido o segundo mal. De
qualquer forma, a partir do momento em que o estado da bobagem é vigente e que a
investigação séria e criteriosa é esquecida, o passo seguinte é o colapso social.
Alguém entrando em contato pela primeira vez com as ideias de Clifford poderia
pensar que temos que adotar uma postura ultra cética e investigar toda crença a todo
momento. Se esse fosse o caso, viver em sociedade seria impossível, aceitamos crenças a todo
o momento, quando faço uma compra, acredito que o vendedor está me cobrando um preço
justo, que a conta em que está o meu dinheiro para fazer o pagamento não é surrupiada pelo
banco, que em uma eleição o meu voto é computado, que em um julgamento o juiz é
imparcial e assim por diante. Logo, é necessário aceitar que o testemunho da autoridade
(banco, Estado, instituições, mercado, universidade, professores, etc.) é válido. Todavia,
segundo Clifford, um testemunho legítimo e passível de crença deve cumprir dois requisitos
básicos: a veracidade e a competência.
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somente seres quadridimensionais têm a capacidade de apreender o formato da Terra tal como
ele é, não tenho motivos para crer nisso, tendo em vista que é impossível para a humanidade
investigar esse tipo de tese.
Um interlocutor poderia dizer que a investigação que João fez e o testemunho dos
indivíduos que coletou obedecem, de certa forma, aos dois requisitos, no sentido de que o uso
do MMS é verificável pelo homem e que talvez até alguns médicos indiquem esse tipo de
produto, mas ―[…] nenhuma crença é real a menos que oriente minhas ações, e essas
mesmas ações fornecem um teste de sua verdade.‖ (CLIFFORD, 2010, p. 116). Portanto, ela
não obedece nem um nem outro, pois um conhecimento básico sobre o que de fato é o MMS
(que é praticamente água sanitária), em conjunto com um conhecimento pueril de biologia
deixa claro que não é o caso que esse óleo pode curar qualquer coisa. Além disso, certamente
199
Para saber sobre o que se trata, indico: http://www.if.ufrgs.br/fis02001/aulas/aulafordif.htm
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esse médico não colocou sua crença sob verificação, nem ao menos procurou refutar seus
pares que já descartaram a possibilidade milagrosa do produto. Não podemos chamar o que
João fez de investigação —i.e, ele apenas procurar confirmar sua falsa crença— nem
podemos dizer que o médico que indicou o MMS obedece aos dois requisitos do testemunho:
todo indivíduo que advoga em prol dessa causa é em todo caso desonesto.
Até aqui, investigamos uma certa postura do indivíduo para a crença, o dever da
investigação e a credulidade como uma espécie de tentação que deve ser negada a todo custo,
sob a pena de danar toda a humanidade ―O que pensar daquele que, por causa de um fruto
doce corresse deliberadamente o risco de trazer uma epidemia à sua família e aos seus
vizinhos?‖ (CLIFFORD, 2010, p. 106). Nesta seção, vamos investigar dois vícios epistêmicos
que são complementares ao que foi exposto na seção anterior, a saber, o descaso epistêmico e
a malevolência epistêmica200. O primeiro também revela uma certa postura do indivíduo, mas
clarifica algo que parece ser anterior à credulidade ou à própria crença, que é simplesmente
não se importar com a verdade ou a falsidade desta; o segundo traz luz a algo que Clifford não
considerou: quando há um interesse em impor falsas crenças ou ao menos dificultar conhecer
a verdade de algo, isto é, um interesse deliberado de um agente do conhecimento em erodir o
conhecimento de outrem. Ao que nos parece, as proposições desses autores, embora apartados
pelo tempo, são complementares. Cassam, parece responder a um anseio mais moderno,
porém, de forma alguma Clifford está desatualizado.
200
Optei pela tradução em Português europeu de Desidério Murcho.
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Uma crítica que pode ser feita, em relação ao indivíduo cometer um mal moral nesse
caso, é a seguinte: como é uma postura afetiva em relação a verdade, pode se dizer que o
descaso é um reflexo daquilo que nos importa e, via de regra, não é necessariamente uma
questão de escolha racional se importar com algo. No entanto, se podemos aprender virtudes,
também podemos tentar escapar de nossos vícios. Além disso, o descaso epistêmico não é
uma postura frente a casos particulares e, sim, a investigação ou ao conhecimento em geral,
dessa forma ainda podemos dizer —à luz de Clifford—, que o indivíduo que é indiferente a
verdade comete um mal moral.
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Quassim Cassam, em uma palestra recente no Tedx, usa um exemplo didático para
compreendermos melhor a malevolência, exemplo esse que vamos atualizar para nossa
realidade. Imagine que você mora no bairro Rubem Berta em Porto alegre, você tem motivos
para sair de casa e trancar as portas e janelas. E de fato, você se certifica de fazer isso todo
dia, mas por algum motivo um vizinho diz que você não fez isso hoje, que ele viu você saindo
de casa, sem fechar as portas e janelas. A partir disso ele passa a lembrar de raras ocasiões
que você de fato não as fechou. Contudo, você fechou as portas e janelas, você tem a
confiança e o direito de acreditar nisso, mas por um motivo qualquer esse vizinho está
tentando minar a confiança que você tem na sua crença, ele sistematicamente faz você duvidar
de si e planta a dúvida no seu coração. Cassam argumenta que teorias conspiratórias e fake
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news funcionam desse mesmo modo, erodindo a confiança que podemos ter em nossa crença
e plantar dúvidas sobre as certezas de como o mundo funciona, mesmo as mais fundamentais
como nos mostra a recente conferência de terraplanistas que concluiu sobre a não existência
da gravidade201.
O que Bolsonaro está tentando fazer ao criticar os dados do INPE, é justamente isso,
acabar com a confiança em dados estatísticos confiáveis e revisados em prol de um interesse
econômico escuso.
Agora nós podemos nos perguntar novamente, João realmente cometeu um mal moral
ao acreditar no MMS? Obviamente os médicos que indicam este produto e as pessoas que o
vendem são malévolas epistemicamente. João poderia argumentar que foi tolhido de sua
confiança e que por isso agiu daquele modo? Parece que há pelo menos um caso em que João
pode advogar em favor de sua inocência. Caso esses indivíduos que vendem o MMS se
aproximassem de João e o bombardeassem com informações sobre este produto e João não
possuísse nenhuma maneira de investigar, ou mesmo duvidar da veracidade dos efeitos deste
óleo, então poderíamos dizer que João realmente foi enganado e que não cometeu um mal
necessariamente, mas dificilmente é o caso em que não temos nenhum meio de investigar
algo, seja pela internet, confiando no testemunho de outra pessoa, ou pela própria experiência
empírica. Todavia, ainda podemos dizer que se não se tem os meios para investigar a
veracidade de algo, tampouco deve-se acreditar nesse algo. Há, no entanto, quem se oponha à
tese segundo a qual ―é sempre errado, em toda parte, e para qualquer pessoa, acreditar em
qualquer coisa com base em evidências insuficientes‖ e é isso que veremos com a tese
fideísta de William James.
3. James e o fideísmo
201
https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,convencao-de-terraplanistas-define-que-gravidade-nao-
existe,70002291629
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William James em seu artigo ―A vontade de crer‖ têm um intuito um pouco mais
modesto do que o de Clifford. Enquanto seu adversário busca oferecer uma regra geral pela
qual as crenças devem ser regidas, James busca mostrar que o escopo das crenças legítimas é
maior do que o que fora defendido por Clifford. Desse modo, a argumentação é começada
buscando tornar claro que algumas crenças têm apelo a nós, i.e, são, para nós, passíveis de
serem acreditadas, enquanto que outras não. Para tanto, James nos dá como exemplo a
chamada aposta de Pascal:
Agora imagine que algum turco aborde um argentino fazendo tal proposta, a saber, a
proposta de receber a graça eterna e tudo o que há de melhor no pós-vida, a fim de que o
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argentino acredite, por exemplo, no deus Mahdi202. Nesse caso, o argentino, se não houvesse
alguma ascendência turca em sua família, muito provavelmente não sentiria qualquer apelo
pela ideia de crer em Mahdi, uma vez que a hipótese da redenção pelo Deus pregado pelo
islamismo é, para ele, uma hipótese morta, isto é, não há nele nenhuma tendência a agir com
base nela. Assim, se é o caso que a vividez de uma hipótese depende do pensador individual,
então, a discussão sobre manter uma crença por nossa própria vontade parecerá simplesmente
tola203, uma vez que estamos constantemente determinados por uma série de fatores
(psicológicos, sociais, etc) que delimitam quais as crenças que nos serão vivas, de tal sorte
que nos será impossível descobrir por nossa vontade, quais hipóteses são relevantes.
O exemplo dado poderia nos levar a concluir que Clifford estava correto ao concluir
que ―é sempre errado, em toda parte, e para qualquer pessoa, acreditar em qualquer coisa
com base em evidências insuficientes‖ pois, se buscássemos evidências para as crenças que
mantemos, reduziríamos o risco de nos deixar levar por coisas tais como nossas contingências
psicológicas e sociais. Por exemplo, se nos puséssemos a investigar se há algum Deus, ou
ainda, se há algum, qual Deus é mais digno de ser crido, nos distanciaríamos destes vieses
(i.e, das contingências psicológicas e sociais) que por vezes envenenam as nossas crenças.
Desse modo, seria bastante razoável concordar com Clifford e comprar a ideia segundo a qual
nenhuma crença pode ser correta a menos que passe por uma investigação fria que busque
evidências para a sustentação daquela crença. Não obstante, diz James, há certas crenças que
todos nós mantemos e diversas ações que realizamos sem que tenhamos justificação para
tanto.
202
―Na escatologia islâmica, o mahdi (em árabe, ―aquele que é guiado por Deus‖) é o libertador
messiânico que virá no fim dos tempos para restabelecer a justiça e a equidade no mundo, restaurar a verdadeira
religião e a pureza dos costumes e anunciar uma breve idade de ouro, que durará entre sete e nove antes antes do
fim do mundo‖ 2001, p.9.
203
IDEM. p.16.
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está devidamente justificado —tal como exigiria Clifford— a declarar-se para ela, ainda seria
lícito que ele assim o fizesse, uma vez que o fato de que a pessoa para a qual o homem se
declarou ter sido conquistada, depende que esse homem tenha fé no êxito de sua investida.
Poderíamos pensar também em outro exemplo que torna um pouco mais clara a ideia segundo
a qual certos fatos dependem da fé para se concretizarem. O exemplo pode ser encontrado em
um filme lançado em 2019: ―It – Capítulo Dois‖, baseado no romance de Stephen King, onde
em um dado momento da trama os personagens precisam derrotar o monstro Pennywise e,
depois de grande dificuldade, um deles arranja uma lança, enquanto isso, seu companheiro
exclama que a lança encontrada é capaz de matar monstros, mas apenas sob a condição de que
se acredite que a lança mate monstros. Assim, neste caso, a morte de Pennywise pela lança
que foi encontrada depende, em última instância, que o indivíduo que vai manuseá-la acredite
que ela seja capaz de matar monstros.
Nesse momento, já nos é pertinente enunciar a tese fideísta de James, ela é como se
segue:
Nossa natureza passional não só pode, como deve, licitamente decidir-se por
uma opção entre proposições sempre que esta for uma opção genuína que
não possa, por sua natureza, ser decidida sobre bases intelectuais; pois dizer,
nessas circunstâncias: ‗não decida, deixe a questão em aberto‘ é, por si só,
uma decisão passional —assim como decidir sim ou não— e acompanha-se
do mesmo risco de perder a verdade.204
Antes de discuti-la, é preciso elucidar o que significa ser uma opção genuína. Assim,
pode-se dizer que uma opção é genuína sempre que ela é i) viva, ii) forçosa e iii) tentadora.
Uma hipótese é viva sempre que ela corresponde a uma possibilidade real para a pessoa a
quem ela é proposta. Como vimos no caso do homem que é exposto à proposta de crer no
Deus Mahdi, existem uma série de fatores que interferem na vivacidade das hipóteses as
quais ele é exposto, certamente algumas delas são o seu contexto cultural e familiar, sua
disposição psicológica e suas preferências, de tal modo que, como ficou evidente no começo
204
JAMES, 2001, p.22.
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Passando para o critério seguinte, a exigência de (ii) consiste em requerer que a opção
seja do tipo exaustivo, i.e, quando não há qualquer outra opção para além das oferecidas, tal
como vimos na exposição da primeira premissa da aposta de Pascal: ―é necessário que você
escolha entre acreditar ou não na existência de Deus‖, dito de outro modo, não há uma
terceira opção para além de ―acreditar‖ e ―não acreditar‖ na existência de Deus, dado que
―acreditar‖ e ―não acreditar‖ são termos contraditórios, portanto, é necessário que se escolha
uma e somente uma das opções. E, por último, o critério segundo o qual a opção precisa ser
tentadora: uma opção é tentadora sempre que o que ela representa tem alguma relevância, e
esta relevância não é relativa. Por exemplo, se lhes oferecerem uma passagem para visitar o
planeta marte, trata-se evidentemente de uma opção tentadora.
James defende que quando estamos diante de uma opção genuína em que o uso da
razão não é capaz de decidir o que é melhor a ser feito, estamos autorizados a agir de acordo
com nossa vontade. Há uma distinção operando de modo tácito no trecho, entre aqueles
assuntos que podem ser resolvidos sobre bases intelectuais —i.e por meio da razão— e
aqueles que não podem. Ora, ser insondável pelas vias intelectuais é uma condição necessária
para que a vontade seja determinante numa certa decisão, desse modo, é imprescindível, para
James, que existam decisões cuja razão sozinha seja incapaz de tomar. Desta maneira, James
tem em mira a fé religiosa, esta que para ele, é absolutamente legítima, muito embora Clifford
não assim a considere, uma vez que não se tem evidências que justifiquem —de maneira
sólida e segundo os frios critérios cliffordianos— a crença em Deus, donde surge o
desconforto de James com a tese de Clifford, i.e, do fato de as crenças religiosas, embora
lícitas, não passem pelo critério que fora proposto. No entanto, apesar de tomar a fé religiosa
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como legítima e um assunto sobre o qual a razão não tem poder decisivo, James acaba por não
mostrar razões pelas quais isso deve ser o caso. Quanto ao trecho: ―não decida, deixe a
questão em aberto‘ é, por si só, uma decisão passional —assim como decidir sim ou não—
‖205
É assumido que suspender o juízo em alguns tipos de decisões é uma reação passional
daqueles que têm um profundo medo de se enganarem. James os compara com ―um general
informando seus soldados que é melhor manter-se para sempre fora de batalha do que se
arriscar a um único ferimento‖206; para James, não há nada de tão perigoso no engano que a
possibilidade de ganhar a verdade não se sobressaia —aqui, certamente fazendo uma
referência à aposta de pascal— e, por fim, no que se segue imediatamente, é enfatizado o
caráter contingente de algumas decisões quanto à verdade. Por exemplo, um agnóstico
cliffordiano, ao restringir-se à suspensão de juízo em assuntos religiosos por não haver
evidências suficientes para a crença em Deus, está numa situação bastante razoável se o que
ele pretende é evitar o engano, isto é, evitar uma crença falsa. Porém, supondo que a religião
seja, como acredita James, um assunto sobre o qual a razão é insuficiente para lidar e que o
critério oferecido por Clifford é inteiramente tributário do uso da razão, é impossível para
aquele agnóstico ter uma experiência religiosa.
Considerações Finais
205
IDEM.
206
IBID. p. 32-33
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agente com disposição moral viciosa. E por fim, vimos como os restritivos critérios
cliffordianos limitam certos aspectos próprios da vida humana, e tomamos como exemplo
disso, a experiência religiosa. Ademais, é digno de nota que embora esses autores tivessem se
enganado quanto à mais correta caracterização dos critérios que eles defendem, o maior valor
de seus trabalhos —assim como o deste trabalho— estaria em mostrar, ao leitor
comprometido em agir corretamente, algumas situações em que a reflexão sobre as crenças é
exigida; não obstante, parece que teorias éticas não podem vislumbrar mais do que isso.
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Referências bibliográficas
CLIFFORD, William. A ética da crença. In: MURCHO, Desidério (ed.). A ética da crença.
Lisboa: Editora Bizâncio, 2010. p. 97—136.
HOLLINGER, D.A. James, Clifford and the scientific conscience. In: PUTNAM, Ruth Anna
(ed.). The Cambridge companion to William James. Cambridge: Cambridge University Press,
2005. cap. 4, p. 69-83. E-book(398 p.).
JAMES, William. A vontade de crer. Edições Loyola, 2001. 50p. ISBN 85-15-02252-4.
PARAGUASSU, Lisandra. Bolsonaro vê 'psicose ambiental' e diz que Inpe divulga dados
'mentirosos' sobre desmatamento. Extra. Rio de Janeiro, 19 jul, 2019.Disponível
em:<https://extra.globo.com/noticias/brasil/bolsonaro-ve-psicose-ambiental-diz-que-inpe-
divulga-dados-mentirosos-sobre-desmatamento-23819131.html>. Acesso em: 29 jul, 2019.
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Resumo
Este artigo tem a intenção de estabelecer um paralelo entre as relações de poder nas obras A
Verdade e as Formas Jurídicas de Michel Foucault e O Mestre Ignorante: cinco lições sobre
a emancipação intelectual de Jaques Rancière. Para tanto, o artigo usará como base para
estabelecer esse paralelo a genealogia Nietzschiana. A proposta deste artigo é apresentar a
tese do filósofo genealogista como o médico da civilização, pois o genealogista examina
sociedade e lhe dá seu diagnóstico. Nietzsche foi o primeiro a diagnosticar a sociedade de
forma genealógica através de sua tese de uma moral nobre e uma escrava e mostraremos aqui
como ele abriu o caminho para filósofos como Foucault e Rancière realizarem seus próprios
diagnósticos, pois onde houver controle sobre os corpos ou o embrutecimento das
inteligências, haverá relações de poder para serem diagnosticadas.
Abstract
This article intends to establish a parallel between the power relations in the works ―Legal
Truths and Juridical Forms‖ by Michel Foucault and ―The Ignorant Schoolmaster: five
lessons in intellectual emancipation‖ by Jaques Rancière. To this end, the artical will use
Nietzschean genealogy as a basis for establishing this parallel. The purpose of this article is
to present the thesis of the genealogist philosopher as the doctor of civilization, since the
genealogist examines society and gives it its diagnosis. Nietzsche was the first to diagnose
society in a genealogical way through his thesis of a noble and a slave morals and we will
show here how he opened the way for philosophers like Foucault and Rancière to make their
own diagnoses, because wherever there is control over the bodies or wherever the
intelligences are hardened, there will be power relations to be diagnosed.
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207
NIETZSCHE, Genealogia da Moral: Uma polêmica. São Paulo. Edições Loyola, 1998, p. 19
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páthos que os nobres, em seu pedestal, ou como coloca o filósofo, em sua ―estirpe
senhorial‖208 deram origem aos valores morais e aos conceitos de ―bom‖ e ―ruim‖.
Como observam Eizirik e Trevisan209as palavras ―esquecimento‖ e
―utilidade‖ estão enraizadas nos conceitos de ―bom‖ e ―ruim‖. Segundo os autores, Nietzsche
aponta que a utilidade está na raiz da constituição do ―bom‖, ou seja, o útil se liga ao bom
como se essa ligação fosse verdadeira em si e a contribuição de Nietzsche mostra como essa
teoria é simplista e não abrange a profundidade do assunto. Os autores apontam que,
etimologicamente, ―bom‖ vem do ―nobre‖, ―aristocrático‖ sendo paralelo àquilo que é
―plebeu‖, ―comum‖, ―baixo‖ que, por sua vez, irá se transmutar no ―ruim‖. Diante dessa
teoria simplista e pobre, Nietzsche usa sua genealogia como um martelo nos valores morais
afim de causar uma transvaloração entre o ―bom‖ e o ―ruim‖ entre uma moral ―nobre‖ e uma
―escrava‖. Quanto a essa transvaloração buscada por Nietzsche vejamos a seguinte passagem
da Genealogia da Moral:
A rebelião escrava começa quando o próprio ressentimento se torna criador e
gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira
reação, a dos atos, e que por apenas uma vingança imaginária obtém
reparação. Enquanto a triunfante moral nobre nasce de um triunfante Sim a
si mesma, já de início, a moral escrava diz Não a um ―fora‖, um ―outro‖, um
―não-eu‖ – e esse Não é seu ato criador. Essa intenção do olhar que
estabelece valores _ esse necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se
para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer,
para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua
ação é no fundo reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele
age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si
mesmo com ainda júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o ―baixo‖,
―comum‖, ―ruim‖, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em
relação ao conceito básico e positivo, inteiramente perpassado de vida e
paixão, ―nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes!‖ (NIETZSCHE,
1998, pp. 28-29)
Como podemos ver na passagem acima, Nietzsche, com sua filosofia do
martelo, chega à gênese do que classificou como a moral nobre e a moral escrava, sendo que
208
NIETZSCHE, Genealogia da Moral: Uma polêmica, São Paulo. Edições Loyola, 1998, p. 19
209209
EIRIZIK e TREVISAN, Da Genealogia da Moral à Moral do Ressentimento: a crueldade dos bons
costumes, In: Psicologia, Ciência e Profissão. Vol.26, n.3, pp.360-367, 2006. p. 3.
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a moral nobre é aquela que a escrava considera como inferior, pois a moral escrava, que se
coloca como aquilo que é ―bom‖, na verdade tem medo de dizer ―Sim a si mesma‖, ou seja, a
moral escrava, em sua ilusão de nobreza, tem medo de ser livre, tem medo de agir, pois sua
ação é uma reação. Aqui o filósofo chega a um conceito muito importante de sua análise: o
ressentimento. O ressentimento para Nietzsche, como aponta Reale e Antisere210, está na base
da moral dos escravos, que se travestem de ―valores morais‖ para velar seu ódio e desprezo
por tudo aquilo que é belo, feliz e livre, ou seja, o ressentimento é o que define a moral
escrava, pois o ressentido é aquele que não tem a coragem de dizer Sim a si mesmo. Com sua
genealogia, Nietzsche faz uma verdadeira transvaloração, mostrando que aquilo que se
apresentava como puro, casto e ordeiro é, na verdade, feio, podre e caótico e que busca impor
sua vontade sórdida sobre tudo aquilo que é belo, livre e verdadeiramente nobre. Como
lembra Juan Salabert,211 o senhor instaura, ao passo que o escravo deforma, o escravo nega a
interpretação do senhor por ser um reflexo de si mesmo e, ao negar aquilo que é
verdadeiramente nobre, o escravo nega a existência do senhor e dos valores que ele carrega.
Em sua reação, o escravo tenta limitar a ação do senhor, negando, em seu ressentimento, a
liberdade da moral nobre. Salabert aponta que212 ―mau‖ abrange o conjunto das virtudes
nobres como, por exemplo, a luta, força e atividade, pois estas virtudes estão ausentes no
escravo. O autor continua observando que, segundo Nietzsche, esta inversão de valores se deu
quando casta sacerdotal impôs sua vingança via cristianismo, através de uma moral de reação
210
REALE, ANTISERE, História da Filosofia, vol. 6, De Nietzsche à Escola de Frankfurt. Trad. Ivo
Storniolo. São Paulo. Paulus, 2005. P. 10.
211211
SALABERT, J. M. A moral do nobre e a do escravo como formas arquetípicas de interpretação em
Nietzsche. In; Enunciação: Revista de Filosofia da UFRRJ, Seropédica, vol. 1 n. 1, pp. 101-107. 2016.
Disponível em http://www.editorappgfilufrrj.org/enunciacao/index.php/revista/article/viewFile/21/24. Acesso
em 2020. p. 104.
212
SALABERT, J. M. A moral do nobre e a do escravo como formas arquetípicas de interpretação em
Nietzsche. In; Enunciação: Revista de Filosofia da UFRRJ, Seropédica, vol. 1 n. 1, pp. 101-107. 2016.
Disponível em http://www.editorappgfilufrrj.org/enunciacao/index.php/revista/article/viewFile/21/24. Acesso
em 2020. p. 105.
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que coloca a vida em função do negativo, como podemos ver na seguinte passagem Mauro
Sousa:
Essa história da vingança sacerdotal perdurou via cristianismo e, após dois
mil anos, continua imperando. É uma moral que estabeleceu, uma moral
religiosa. O ressentimento tornou-se criador e gerou o oposto. É uma moral
de reação, de reação como a própria vida como vigorosa. É uma moral
pálida, mas que se fortalece como vampira da vida e colocando a vida em
função de tudo o que é negativo, um negativo que essa moral criou. (...)
(SOUSA, 2014, p. 36)
Como vemos nas palavras de Sousa, a classe sacerdotal, através do
cristianismo cria uma moral religiosa que trai os valores da nobreza guerreira em prol de um
ressentimento que não alcança a pureza e a coragem de dizer o Sim a si mesma. Mas por que
o ressentimento? Por que a moral escrava tenta rebaixar os valores da moral nobre? A
resposta é simples, para tentar estabelecer seu poder. O ressentimento da moral escrava leva à
uma tentativa de estabelecer seu poder sobre a moral dos senhores, para controlar aquilo que a
moral escrava odeia, ou seja, a liberdade, a força e a ação. A dicotomia senhor e escravo na
genealogia Nietzschiana mostra uma clara relação de poder onde uma classe que, travestida
de pura e bela, tenta, a todo o custo, controlar e oprimir aquilo que é realmente belo e livre.
No entanto, embora o ressentimento possa ofuscar, a moral nobre, aquilo que é de fato forte,
ativo, belo e livre nunca poderá ser controlado pelo feio, covarde e ressentido.
Portanto, Nietzsche, em sua investigação da emergência dos valores morais,
chega à conclusão da existência de uma moral nobre forte, ativa, bela e livre capaz de dizer
Sim a si mesma, ao contrário da moral escrava que escondida detrás de uma máscara de
nobreza esconde seu ressentimento e seu ódio por tudo que é belo e bom. Mas, além disso, em
sua investigação genealógica, o filósofo descobriu uma verdadeira relação de poder na qual a
moral escrava, por meio de seu ressentimento, tenta ofuscar e rebaixar os verdadeiros
senhores, afim de impor a mediocridade de moral escrava sobre a beleza da moral nobre, mas
assim como a filosofia de Nietzsche é um martelo que bate com força, a beleza da moral
nobre também golpeia com a mesma força a moral escrava que, por mais que tente, nunca irá
ofuscar aquilo que é belo e bom.
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213
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 27.
214
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. pp. 8-9.
215
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 14.
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determinado lugar inventaram o conhecimento. Uma das evidências observadas por Foucault
acerca do conhecimento ser uma invenção está na poesia216, mostrando que, para Nietzsche,
não há origem na poesia, pelo contrário ela foi inventada no momento que alguém teve a ideia
de usar propriedades rítmicas ou musicais da linguagem para falar. Mas, por que Foucault
levanta a questão da invenção em Nietzsche? Qual a relevância da poesia ter sido uma
invenção? Ora, Foucault levanta a questão da invenção em Nietzsche para mostrar que
Erfindung nasce de uma relação de poder. Dizer que a poesia foi inventada é afirmar que ela
nasce através de obscuras relações de poder que, para Nietzsche, é, por um lado uma ruptura e
por outro algo que possui um começo mesquinho. Vejamos as palavras de Foucault acerca da
concepção nietzschiana do conhecimento como invenção:
O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer
que não tem origem. É dizer de maneira mais precisa que, por mais
paradoxal que seja, que o conhecimento não está em absoluto inscrito na
natureza humana, no apetite humano, no instinto humano, algo como um
germe do conhecimento. (FOUCAULT, 2000, p. 16)
Como vemos nas palavras de Foucault217, para Nietzsche, o conhecimento
não está inscrito na natureza humana, isto é, ele não tem origem, o que significa que foi
inventado. Foucault lembra que, para Nietzsche, o conhecimento tem relação com os
instintos, mas não esta presente neles, muito menos ser um instinto, já que o conhecimento é
o resultado de um jogo, ou seja, ele é o efeito dos instintos que estão em confronto entre si,
ele é ―uma centelha entre duas espadas‖218. Mas o que significa dizer que o conhecimento é o
resultado de um embate? Significa que o conhecimento é o resultado de uma relação de
poder. É nessa medida que Foucault se aproxima de Nietzsche, em especial de sua
genealogia, para mostrar que o conhecimento não tem origem, que ele é Erfindung e não
216
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 15.
217
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 16-17.
218
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 17.
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219
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 22.
220
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 27.
221
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 24.
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que o melhor exemplo de uma relação de poder na obra de Foucault está no Panopticon e no
sequestro dos corpos promovido pelo panoptismo.
Em sua pesquisa acerca das relações entre saber e poder, Michel Foucault
chega ao que ele denominou de sociedades disciplinares. O filósofo divide sua pesquisa em
três princípios fundamentais:222 O primeiro princípio é o que qualifica o crime no sentido
penal, o crime deixa de ser algo ligado à moral ou religião e passa a ser uma ruptura com a
lei, o que significa que para existir infração, antes é preciso que exista uma lei; o segundo
princípio rege que a lei penal tem que ser útil para a sociedade; o terceiro princípio, como
coloca Foucault, deriva dos dois primeiros e define o crime como ―um dano social‖, o seja,
algo que fere a paz social. Nasce, assim, como aponta o filósofo a figura do criminoso 223 e
com ele a primeira instituição pedagógica, isto é, a prisão. Foucault observa que o criminoso é
―o inimigo social‖224 é aquele que, através de sua contravenção rompe a estabilidade social,
devendo a lei reparar esse dano. Foucault mostra225 como a prisão não se enquadra no projeto
teórico da reforma da penalidade do séc. XVIII, pois ela não busca o que é socialmente útil,
mas sim adequar-se ao indivíduo, ou seja, busca o total controle comportamental.
Com o advento da prisão como instituição pedagógica, surge a noção de
periculosidade226 onde o indivíduo é concebido, não por seus atos, mas por sua virtualidade.
Virtualidade significa simulação, isto é, uma ilusão que se sabe que é uma ilusão, o que
significa que na instituição da prisão o controle é exercido sobre o comportamento do
222
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 80-81.
223
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 81-82
224
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 81.
225
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 84.
226
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 85.
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indivíduo, visando prever e conter aquilo que ele pode vir a cometer. Assim, como é apontado
227
por Foucault, o controle passa a ser exercido pela divisão dos três poderes formulados por
Montesquieu: judiciário, executivo e legislativo e por vários outros ―poderes laterais‖ que
estão à margem da justiça como a polícia, instituições pedagógicas, a escola, o hospital etc.
Estes ―poderes laterais‖ são as instituições pedagógicas que vão exercer o controle sobre o
comportamento dos indivíduos a nível de suas virtualidades. Essa é, como expõe Foucault, a
idade da ortopedia social, ou melhor, a idade do controle social, onde o indivíduo é adequado
às regras do pacto social. Esta é a sociedade que tem, como seu símbolo máximo, o
Panopticon.
Quanto ao Panopticon diz Foucault:
Uma forma de arquitetura que permite um tipo de poder do espírito sobre o
espírito; é uma espécie de instituição que vale para escolas, hospitais,
prisões, casas de correção, hospícios, fábricas, etc. (...) O Panopticon é a
utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade
que atualmente conhecemos _ utopia que efetivamente se realizou. (...)
vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo. (FOUCAULT, 2000,
p. 87)
Como podemos perceber nas palavras do filósofo, nós vivemos na
sociedade onde reina o panoptismo, O Panopticon é uma estrutura que estabelece relações de
poder, onde o indivíduo vira um objeto de observação. Na idade do Panopticon o controle é
exercido sobre o corpo do indivíduo, o que significa que o controle é exercido sobre tudo
aquilo que remete ao corpo, ou seja, o trabalho, a saúde, o lazer, etc., é a era onde o controle
sobre os corpos é exercido desde o nascimento, pois a família é a instituição disciplinar por
excelência. No panoptismo, os corpos estão em um processo de normalização constante, onde
o corpo é domesticado para a produção. Essa normalização constante faz com que o controle
se torne um objeto de desejo e quando o corpo deseja o controle significa que já está
totalmente rendido. Esta é a era do exame,228 isto é, da vigilância constante. Diferente do
227
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 85-86.
228
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. pp. 87-88.
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inquérito que, na prática jurídica se procurava saber o ocorrido, no exame se busca a quem
vigiar, uma vigilância sobre os indivíduos e seus corpos exercida por alguém que tem poder
sobre eles. É na era do panoptismo marcada pelo exame que as formas de saber-poder
permitirão o nascimento das chamadas ciências humanas, ou seja, a Psicologia, a Sociologia,
etc. As ciências humanas e sociais nasceram da observação dos corpos e, por sua vez,
contribuem para essa observação tendo o corpo como objeto de estudo e pesquisa.
Um bom exemplo de instituição do panoptismo, como lembra Sérgio
Ricardo Oliveira,229 é a escola, ou melhor, a escola-de-inspeção, onde o aluno é
sistematicamente vigiado pelo professor, pelos pais, colegas e até por si mesmo. Tal
instituição, como aponta Oliveira, tem o castigo como uma forma de penalização por desvios,
aqueles alunos que alcançam boas notas são considerados aptos pela instituição, ao passo que
aqueles que não atinjam as metas estabelecidas pela instituição seriam elegíveis para a
humilhação e ao rebaixamento. Oliveira ainda lembra que230 a inspeção panopticista prevê a
participação regulativa, não somente do aluno, mas de todos envolvidos no processo
panóptico como a turmas, os inspetores, pedagogos, supervisores educacionais, diretores, ou
seja, todos os envolvidos têm, cada um a seu nível, seus corpos sequestrados e controlados em
uma relação de poder. Aqui podemos estabelecer uma clara relação entre o panoptismo e a
genealogia nietzschiana, pois assim como a moral escrava, em Nietzsche busca, através do
ressentimento negar a liberdade da moral nobre por ser incapaz de dizer Sim a si mesma, o
229
OLIVEIRA, S. R. O panóptico escolar, ou o tempo disciplinar: Elementos para uma microfísica das
relações fetichistas educacionais. In: e-Mosaicos – Revista Multidisciplinar de Ensino, Pesquisa, Extensão e
Cultura do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ), Rio de Janeiro, v.5, n.9, pp. 62-
73, ISSN 2316-9303, 2016. Disponível em <http://e-publicacoes.uerj.br/index.php/e-
mosaicos/article/download/24820/17756. acesso em 2020. P. 71.
230
OLIVEIRA, S. R. O panóptico escolar, ou o tempo disciplinar: Elementos para uma microfísica das
relações fetichistas educacionais. In: e-Mosaicos – Revista Multidisciplinar de Ensino, Pesquisa, Extensão e
Cultura do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ), Rio de Janeiro, v.5, n.9, pp. 62-
73, ISSN 2316-9303, 2016. Disponível em <http://e-publicacoes.uerj.br/index.php/e-
mosaicos/article/download/24820/17756. Acesso em 2020. P. 71.
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Panopticon, em Foucault com o sequestro dos corpos busca o controle sobre estes privando-
os de sua liberdade. Relacionar a genealogia nietzschiana e o pansoptismo foucaultiano é
mostrar como a moral escrava e o panoptismo são, cada um a seu modo, uma ferramenta de
controle sobre os corpos, uma ferramenta que busca ofuscar tudo aquilo que é livre e belo.
Assim, o sequestro dos corpos é o papel desempenhado pelas instituições
pedagógicas dentro das sociedades disciplinares, pois como aponta Foucault,231 a existência
dos indivíduos se encontra controlada por estas instituições que visam, acima de tudo, o
controle sobre os corpos, sua normalização, sua docilidade, sua adequação ao pacto social.
231
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 119.
232
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.19.
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valoração da explicação como função do mestre, Rancière traz a figura de Joseph Jacotot 233 a
quem, como coloca o autor, teve uma súbita iluminação em seu espírito acerca da cega
evidência de todo o sistema de ensino, ou seja, a necessidade das explicações.
Mas qual o motivo dessa cega necessidade pela explicação? Vamos
responder a essa pergunta a partir da seguinte passagem de Rancière:
Essa lógica não deixa, entretanto, de comportar certa obscuridade. Eis, por
exemplo, o livro nas mãos do aluno. Esse livro é composto de um conjunto
de raciocínios destinados a fazer o aluno a compreender a matéria. Mas, eis
o que, agora, o mestre toma a palavra para explicar o livro. Ele faz um
conjunto de raciocínios para explicar o conjunto de raciocínios em que o
livro se constitui. Mas, porque teria o livro necessidade de tal assistência?
Ao invés de pagar um explicador, o pai de família não poderia,
simplesmente dar o livro, a seu filho, não poderia este, compreender,
diretamente, os raciocínios do livro? E, caso não o fizesse, por que, então,
compreenderia melhor os raciocínios que lhe explicarão aquilo que não
compreendeu? Teriam esses últimos uma natureza diferente? E não seria
necessário, nesse, caso, explicar ainda, a forma de compreendê-los?
(RANCIÈRE, 2007, p.21)
Nesta passagem, Rancière questiona qual a importância do explicador. Por
que o sistema de ensino da tanta importância ao explicador? Ora, não poderia um pai, como
aponta Rancière, comprar um livro, ao invés de contratar o explicador? O que faz do
explicador superior ao livro? Rancière observa234 que o explicador é o único juiz do ponto de
vista em que a explicação está, ela própria, explicada. Como assim? Qual a garantia que o
aluno compreendeu o conteúdo do livro? Quem poderia assegurar a compreensão do aluno
acerca do material? O pai de família? Como poderia o pai garantir a compreensão do material
pelo filho, se, muito provavelmente, nem o próprio pai compreende? É nesse aspecto, como
aponta Rancière, que o explicador supera o pai de família, pois ele, detém a arte da
233
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.20.
234
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.21.
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―distância‖235, ou seja, ele sabe reconhecer a distância entre a matéria que precisa ser ensinada
e o indivíduo que ele precisa instruir, ele detém o poder entre o aprendizado e a compreensão,
abolindo e impondo, com seu poder, a distância entre a matéria e o aluno. Na lógica do
explicador, sua explicação oral é superior, pois ela é indispensável para ruminar a explicação
escrita do livro. Porém, Rancière aponta para a falácia da posição superior do explicador
quanto ao aluno, pois uma criança é dotada de inteligência, tanto que aprendeu a falar
sozinha, sem que ninguém precisasse lhe explicar o funcionamento da língua. Assim, não
poderia a criança continuar utilizando-se de sua inteligência? Por que diante do explicador a
autonomia intelectual do aluno se torna obsoleta? A resposta para estas questões está no véu
da compreensão. Compreender, como coloca Rancière, é o que a criança não alcança sem a
explicação, explicação essa que, como observa o autor,236 se aperfeiçoa para melhor explicar,
porém sem verificar esse aperfeiçoamento de forma correspondente a dita compreensão.
Diante desse quadro, Rancière invocando a figura de Joseph Jacotot, chegou
à seguinte conclusão: ―é preciso inverter a lógica do sistema educador‖237, o autor mostra que
a explicação é o mito da pedagogia, ela não é uma necessidade, pois o dito ―incapaz‖ não tem
necessidade do explicador e sim este tem necessidade daquele, pois sem o ―incapaz‖ a função
do explicador perde seu sentido. Inverter a lógica do sistema educador não significa a
destruição do princípio pedagógico, mas reinventá-lo. Como lembra Rancière,238 o mito
pedagógico divide a inteligência em duas: uma inferior e uma superior, a primeira é a
simples, das criancinhas, já a segunda é a razão que parte do simples para o complexo. Essa
divisão é o que permite ao mestre levar seu conhecimento para o aluno e verificar se houve
235
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp. 21-22.
236
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.23.
237
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.23.
238
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.24
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compreensão por parte do aluno. Esse é para Rancière o princípio da explicação, ou melhor,
esse é para Jacotot o princípio do embrutecimento. A mudança no sistema pedagógico, visa
não a destruição da escola, mas a substituição do embrutecimento para emancipação onde a
inteligência obedece a si mesma.239
Tendo analisado a função do mestre explicador e a necessidade de repensar
o princípio pedagógico, o que dizer da suposição das sociedades republicanas e progressistas
de que a educação suprimiria as diferenças sociais fortaleceria a democracia? Supor a
igualdade como meta é garantia de não alcançar a igualdade, pois uma educação
supostamente igualitária tem por princípio a desigualdade. Colocar a escola como um
instrumento para aparar as desigualdades sociais, resulta em um paradoxo, pois é tentar abolir
a escola de algo do qual ela é fundadora. Como podemos ver na seguinte passagem:
(...) A pedagogia tradicional da transmissão neutra a saber, tanto quanto as
pedagogias modernistas do saber, quanto as pedagogias do saber adaptado
ao estado da sociedade mantêm-se de um mesmo lado, em relação à
alternativa colocada por Jacotot. Todas as duas tomam a igualdade como
objetiva, isto é, elas tomam a desigualdade como ponto de partida.
(RANCIÈRE, 2007, P. 14)
Rancière mostra240 que é atribuído a escola um poder fantasmático de
reduzir as desigualdades sociais, porém ela falha miseravelmente, pois a sociedade, como
aponta Rancière, se representa como uma grande escola que tem seus bárbaros para civilizar e
seus maus alunos para recuperar, porém como coloca o autor,241 a verdadeira tarefa desse
investimento pedagógico é a legitimação de uma oligarquia onde o governo é submetido a
autoridade dos ―melhores da turma‖ e uma oligarquia dos melhores não pode fortalecer a
democracia ou a igualdade, muito pelo contrário, apenas fez da escola a fundadora da
desigualdade. Por isso, Rancière propõe reinventar as relações pedagógicas que, como já
239
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp.32-33.
240
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo
Horizonte. Autêntica, 2007. pp.14-15.
241
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.15.
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vimos, não significa destruir a escola, mas repensá-la em um modelo emancipador. Para que
isso acontecesse, Rancière mostra que Jacotot visava colocar a igualdade longe do alcance
dos pedagogos do progresso e das mediocridades liberais, pois para Jacotot a igualdade era,
ao mesmo tempo, fundamental e ausente, atual e intempestiva. Ela depende dos indivíduos
que tem a coragem de verifica-la, de inventar suas formas de maneira individual e coletiva. A
igualdade só é possível pela emancipação, pois só através da emancipação é possível
reconhecer a igualdade das inteligências. E só há um modo do professor reconhecer a
igualdade entre sua inteligência e a de seus alunos, pelo reconhecimento de sua maior virtude:
a sua própria ignorância.
Como bem colocam Bretas e Cruz242, existem três sentidos para ignorância
em Rancière. O primeiro sentido da virtude da ignorância é ensinar aquilo que se
desconhece. As autoras lembram que Jacotot se viu obrigado a deixar de lado seu
conhecimento, pois diante da situação em que se encontrava, de nada lhe servia. Em sua
experiência com seus alunos, Jacotot percebeu que sua ignorância era uma virtude, melhor, a
maior virtude de um professor, pois a através dela o professor pode reconhecer a igualdade
entre as inteligências e, assim, participar do processo pedagógico com seus alunos como
iguais em um nível intelectual. O segundo sentido da ignorância, como apontado pelas
243
autoras, está em ensinar sem transmitir conhecimento. Mas, como o professor pode
ensinar sem transmitir conhecimento? Como mostram as autoras,244 o mestre ignorante,
através da lógica emancipadora, se apresenta como uma vontade que revela ao ignorante
aquilo que ele já possui, isto é, a capacidade de aprendizado que é inerente a todas as pessoas.
Ao se colocar como uma vontade emancipadora, o mestre ignorante transcende as limitações
242
BRETAS, CRUZ. O Mestre e Aprendiz como iguais: a potência da vontade e da inteligência Humana
em Rancière. In: Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 63, 2015. p.216.
243
BRETAS, CRUZ. O Mestre e Aprendiz como iguais: a potência da vontade e da inteligência Humana
em Rancière. In: Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 63, pp. 210-232, 2015. pp.217-218.
244
BRETAS, CRUZ. O Mestre e Aprendiz como iguais: a potência da vontade e da inteligência Humana
em Rancière. In: Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 63, pp. 210-232, 2015. p.217.
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do processo explicativo e se coloca como igual aos seus alunos estimulando a capacidade de
aprendizado que estes sempre tiveram e que, através da emancipação, podem gozar, junto ao
mestre, o prazer do aprendizado de forma igualitária. O terceiro e último sentido da virtude, é
ignorar a desigualdade,245 para isso, o mestre ignorante rejeita a lógica pedagógica da
explicação e se entrega totalmente para a ignorância emancipadora, se relacionando com o
aluno reconhecendo este como indivíduo, ou seja, como seu semelhante, um semelhante o
qual o mestre não deve explicar nem fazer compreender, mas sim participar do processo de
aprendizagem de forma igualitária e emancipadora. Ao reconhecer em si os três sentidos da
ignorância, o professor deixa de ser um agente do embrutecimento para se tornar um arauto
da emancipação.
Em O Mestre Ignorante, Rancière nos mostra que, para Jacotot246, o mito
pedagógico divide a inteligência em duas: uma inferior e uma superior. A primeira remete, as
mentes simples, das criancinhas e dos homens do povo; já a segunda é que parte do simples
para o complexo, da parte para o todo. Este é o princípio da explicação, ou melhor, o
princípio do embrutecimento.
Como aponta Rancière, o embrutecedor não é um velho que enche a cabeça
de seus alunos de conhecimentos indigestos, pelo contrário ele é esclarecido, culto e de boa-
fé. É aquele que mostra quão distante está o seu saber da ignorância dos ignorantes. É aquele
que está preocupado com a compreensão do aluno. Mas o que é compreender? Compreender
significa que o indivíduo nada compreenderá, a menos que lhe seja explicado, ou seja, a
compreensão é o veículo do princípio da explicação, por isso para Rancière e para Jacotot ela
é a causadora de todo o mal e um avanço do embrutecimento. Se olharmos atentamente para o
mestre embrutecedor, a quem ele nos lembra? Quem, na história da filosofia, é culto,
esclarecido e preocupado com a compreensão de seus interlocutores? Ora, este mestre culto e
245
BRETAS, CRUZ. O Mestre e Aprendiz como iguais: a potência da vontade e da inteligência Humana
em Rancière. In: Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 63, pp. 210-232, 2015. p.218.
246
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp. 24-25.
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de boa fé que busca parir a compreensão de seus interlocutores não é outro, senão, o próprio
Sócrates. Sócrates é o modelo do mestre embrutecedor e seu método nada mais que um
embrutecimento sofisticado. Vejamos as palavras de Rancière a respeito de Sócrates:
O socratismo é, assim, uma forma aperfeiçoada do embrutecimento. Como todo o
mestre sábio, Sócrates interroga para instruir. Ora, quem quer emancipar o homem
deve interroga-lo à maneira dos homens e não à maneira dos sábios, para instruir-
se a si próprio e não para instruir um outro. (RANCIÈRE, 2007, P. 52)
Nas palavras de Rancière vemos que o verdadeiro mestre é aquele que
interroga, não à maneira dos sábios, mas à maneira dos homens, instruindo a si próprio.
Sócrates, ao contrário, como sábio que era ao aplicar sua maiêutica ao seu interlocutor se
preocupava em fazê-lo compreender suas questões e, como já vimos, a compreensão é a
causadora de todo mal, a fonte do princípio da explicação. Sócrates, como bom explicador,
conhecia as respostas para suas perguntas, o que fazia parecer que seu método era infalível e,
assim, orientava naturalmente seu interlocutor247. Como observa Rancière o segredo dos
―sábios‖ mestres está em guiar discretamente a inteligência dos alunos, fazendo-a trabalhar
sem abandoná-la a si mesma, ou seja, sem emancipa-la. Aí está a distância entre o método
socrático e o método de Jacotot, pois, como observa Rancière,248 através de suas
interrogações, Sócrates leva o escravo do diálogo Mênon a reconhecer as verdades
matemáticas que já estão nele, se trata de um caminho para o saber, mas não o da
emancipação, pois Sócrates guia o escravo constantemente preocupado com a compreensão
por parte deste, não permitindo que ele caminhe sozinho, não permitindo que ele se emancipe,
ou seja, Sócrates como todo o bom explicador precisa do incapaz para garantir sua posição de
―sábio‖. É como Rancière diz: ―Sócrates interroga um escravo que está destinado a
permanecer como tal‖.249 Na figura de Sócrates, podemos estabelecer um paralelo entre
247
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007 p.51.
248
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.52.
249
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual, Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.52.
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Nietzsche e Rancière, pois como lembram Reale e Antisere250 para Nietzsche, Sócrates foi um
erro, um equívoco, pois ele representa a racionalidade a qualquer custo, sem instintos, pelo
contrário, em contraste com os instintos. Assim, Sócrates é o exemplo da moral escrava, pois
ao se preocupar em fazer com que suas questões sejam compreendidas, o filósofo grego
cerceia a liberdade de seu interlocutor, estabelecendo uma clara relação de poder na qual a
moral escrava, na figura de Sócrates, impõe sua dominância negando ao interlocutor a
possibilidade de reconhecer sua nobreza. Ao passo que o Sócrates de Rancière, também
estabelece seu poder sobre o interlocutor ao embrutece-lo por intermédio da explicação, sem
deixar qualquer brecha para a emancipação de sua inteligência. Na figura de Sócrates vemos,
ao mesmo tempo, um símbolo da moral escrava de Nietzsche e o exemplo, por excelência, do
mestre embrutecedor de Rancière. Para ambos os filósofos, Sócrates é um agente da
dominação que, por um lado impede que seu interlocutor seja livre e diga Sim a si mesmo e
por outro impede sua emancipação ao não reconhecê-lo como indivíduo negando a igualdade
das inteligências.
A emancipação de Jacotot consiste em uma inteligência que obedece a si
251
mesma. Onde todo o homem simples, do povo possa medir sua capacidade intelectual e
usufruir livremente de seu uso e garantir sua dignidade. Aquele que ensina sem emancipar
está fadando seu aluno ao embrutecimento, condenando-o à escravidão da compreensão. O
que podemos concluir dos métodos de Sócrates e de Jacotot? Podemos concluir que Sócrates
é o início de um erro, que fora antes apontado por Nietzsche, um explicador que depende do
incapaz para garantir sua posição de sábio, embrutecendo seu aluno. Ao passo que, o bom
professor é o ignorante. O mestre ignorante não está preocupado com o compreender, mas
sim com o buscar, ele irá verificar o que o aluno buscou, julgando se ele estava atento,
exigindo de seu aluno que estude com atenção, respeitando a autonomia de sua inteligência,
250
REALE, ANTISERI. História da Filosofia, v. 6: de Nietzsche à escola de Frankfurt. Trad. Ivo Storniolo.
São Paulo. Paulus, 2005. pp. 6-7.
251
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.32.
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pois não há hierarquia na ignorância e tudo o que um ignorante pode todo os ignorantes
podem.252
O mestre ignorante é aquele que incentiva a busca, incentiva que seu aluno
pesquise continuamente para que ele sempre encontre algo, mesmo que não seja o que estava
buscando, mas que continue procurando por coisas novas, em uma contínua vigilância. O
mestre ignorante é aquele que mantém o aluno em contínua busca, percorrendo o caminho, de
forma solitária, independente e incessante253. Quanto ao mestre ignorante e o ensino
emancipador vejamos as seguintes palavras de Rancière:
As coisas estavam portanto muito claras: não se tratava aí de um método para
instruir um povo, mas da graça a ser anunciada aos pobres: eles podiam tudo que
pode um homem. Bastava anunciar. Jacotot decidiu consagrar-se a isso. Ele
proclamou que se pode ensinar o que se ignora e que um pai de família pobre e
ignorante é capaz de ser emancipado, de fazer a educação de seus filhos sem
recorrer a qualquer explicador. E indicou o meio de se realizar esse Ensino
Universal: aprender qualquer coisa e a isso relacionar a todo o resto segundo o
princípio de que todos os homens têm igual inteligência. (RANCIÈRE, 2007, P,
38.)
Portanto, a emancipação de Jacotot se distancia do método de Sócrates, pois
ela não visa uma relação de poder e necessidade entre o ―sábio‖ e o incapaz, pelo contrário,
visa mostrar que todos os homens são iguais na inteligência e que o papel do mestre ignorante
é estimular essa inteligência para que ela se torne cada vez mais autônoma e que busque
incessantemente por novas coisas, novas experiências, pois entre os ignorantes não há
hierarquia, há, apenas, emancipação.
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254
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p.12.
255
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p.12.
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mas de manter a vigilância que é exercida sobre o indivíduo por alguém que detém o poder
sobre seus corpos. Quanto o inquérito e o exame diz Foucault:256
(...) O inquérito e o exame são precisamente formas de saber-poder que vem
funcionar ao nível de apropriação de bens na sociedade feudal, e ao nível da
produção e da constituição capitalista. É nesse nível fundamental que se situam as
formas do saber-poder como o inquérito ou o exame. (FOUCAULT, 2000, p. 126)
Como podemos ver nas palavras de Foucault, tanto o inquérito quanto o
exame constituem formas de saber-poder que visam a vigilância e o controle sobre os corpos
dos indivíduos, mostrando que embora na sociedade haja a aparência da legalidade, o que
ocorre é o controle do indivíduo, onde seu corpo é domado, docilizado pela lei. Nas formas
saber-poder do inquérito e do exame ser ―normal‖ é estar de acordo com as regras impostas
pelas leis, regras de domínio e de controle sobre os corpos.
Já Rancière, em sua genealogia pedagógica se deparou com
embrutecimento, que é o princípio da explicação que tem sua base na compreensão. 257 O
embrutecimento é o domínio de uma inteligência sobre outra, onde o mestre explicador
necessita do incapaz para afirmar sua posição de ―sábio‖ e exercer o controle sobre a mente
daquele que é vítima de sua explicação. Por outro lado, a emancipação é uma inteligência que
segue a si mesma, onde um mestre ignorante incita a busca constante e mostrando que não há
hierarquia entre os ignorantes. Quanto ao embrutecimento e a emancipação diz Rancière:
(...) Há embrutecimento quando uma inteligência é subordinada a outra
inteligência. (...) Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre
as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma,
ainda que a vontade obedeça a uma outra. (RANCIÈRE, 2007, pp. 31-32)
Rancière mostra que o embrutecimento é a necessidade do controle de uma
mente por outra, ao passo que a emancipação é quando a inteligência obedece a si mesma.
Mas, porque essas noções de inquérito e exame; embrutecimento e emancipação
aproximariam as obras de Foucault e Rancière? Ora, como já vimos o filósofo genealogista é
256
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 126.
257
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp.23-24.
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o médico da civilização, pois ele a examina e lhe dá seu diagnóstico e foi, justamente isso,
que Foucault e Rancière fizeram com suas respectivas genealogias, examinaram e
diagnosticaram as relações humanas apontando as relações de poder que estão por trás delas.
Onde há relações humanas, sempre haverá relações de poder seja para o controle dos corpos,
seja para o embrutecimento das mentes ignorantes. Nietzsche foi o primeiro a diagnosticar a
sociedade de forma genealógica expondo a moral nobre e a moral escrava, mostrando que a
história humana é a história da decadência cristã e de sua moral torpe que odeia tudo o que é
belo e bom. Nietzsche pavimentou o caminho para que Foucault e Rancière pudessem fazer
seus próprios diagnósticos da sociedade e explorar as relações de poder que estão no cerne
daquilo que significa ser humano.
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Referências Bibliográficas
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
MORA J.F. Dicionário de filosofia, tomos I, II, III, VI. 2ª edição. Trad. Maria Stela
Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno & Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo.
Edições Loyola. 2004.
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SOUSA, Mauro Araújo de. Nietzsche e a Genealogia da Moral: Uma Obra Chave no
Pensamento Nietzschiano. 1° Edição, São Paulo: Zagodini, 2014.
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Gabriel Duccini
Resumo
Neste artigo, visamos apresentar a interpretação adorniana da obra de Franz Kafka, pensando
sua obra como expressão da crise de representação do indivíduo no capitalismo tardio, e como
tal processo levou a uma ruptura com a narrativa do romance de formação. Também
utilizaremos as interpretações de Gyorgy Lukács sobre a obra de Kafka e as vanguardas
literárias do século XX, como um importante contraponto à interpretação adorniana.
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1. Introdução
Neste artigo temos como objetivo apresentar a interpretação de Theodor Adorno sobre
a obra de Franz Kafka. Abordaremos tal análise partindo do romance moderno realista e as
condições que permitem sua realização em seu contexto de formação, e as modificações
dessas condições históricas do ponto de vista da produção literária e artística no romance do
século XX. Nesse sentido, a obra de Kafka é um importante ponto para compreensão da
expressão desse momento histórico tendo em conta a relação entre a literatura e as suas
condições históricas, e da diferenciação entre o romance moderno do século XIX e o romance
do século XX, em seus fundamentos. Também consideramos importante para essa
abordagem, apontar a diferente interpretação de Gyorgy Lukács sobre Kafka, realismo e as
vanguardas literárias do século XX.
1.1. Formação do Romance Moderno
Richardson ―são os primeiros grandes escritores ingleses que não extraíram seus enredos da
mitologia, da História, da lenda ou de outras formas literárias do passado‖ (p.15). Para o
romance moderno esse apego aos enredos tradicionais é abandonado, assim como as
convenções formais: afinal reside na Natureza o ―repertório definitivo da experiência
humana‖, dali deve se retirar os elementos para realização literária. Defoe nesse sentido
inaugura uma nova tendência dos enredos, nos quais a ―sua total subordinação do enredo ao
modelo da memória autobiográfica afirma a primazia da experiência individual no romance
da mesma forma que o cogito ergo sum de Descartes na filosofia‖ (p.16, grifo nosso).
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que ―Shakespeare não considera a diferença de tempo e local‖ (p.26), e as descrições físicas,
vívidas e particularizadas de Byron são fragmentadas e incidentais. Pode se identificar esse
elemento da descrição detalhada em obras como a de Homero e muitas outras, como em
autores de ficção do século XVII, contudo nessas prosas esses trechos ―são relativamente
raros e tendem a destacar-se da narrativa geral; a estrutura literária total não era orientada
no sentido do realismo formal, e o enredo (…) estava em conflito direto com suas premissas‖
(p.32). Defoe seria o primeiro dos ingleses a vislumbrar o ―conjunto da narrativa como se
esta se desenrolasse em um ambiente físico real‖ (p.26).
Tal elemento é muito forte no realismo francês de Balzac. Erich Auerbach comenta a
relação da obra de Balzac com o meio:
Balzac sentiu os meios, por mais diferentes que fossem, como unidades
orgânicas, demoníacas até e tentou transmitir essa sensação ao leitor. Ele não
só localizou os seres cujo destino contava seriamente, na sua moldura
histórica e social perfeitamente determinada, como o fazia Stendhal, mas
também considerou essa relação como necessária (…) (2004, p.423)
Citando Avant-propos à Comedie humaine, Auerbach sinaliza que Balzac interpreta
sua tarefa como uma historiografia dos costumes. Quando Balzac fala de ―história dos
costumes‖, contudo, há de se explicitar que não se trata da investigação científica do passado,
mas do presente, em termos da ―fiction‖. Se considera o presente como história e sua
atividade literária é vista por Balzac como atividade histórico-interpretativa, de natureza
histórico-filosófica (p.430).
Com Flaubert, o realismo assume sua dimensão impessoal, apartidária e objetiva
(p.432). O escritor assume o papel de ordenar o espaço e tempo da narração como se fosse um
quadro. E a narração se desenvolve sem ―interferências externas‖ ao que lhe é apresentado na
exposição dos personagens e do espaço. O que ordena o conteúdo é o material interno na
descrição do enredo, dos personagens e do local que se passa. Se diferenciando de Balzac e
Stendhal, obras em que os escritores ainda expressavam suas posições sobre os
acontecimentos e os personagens, além dos próprios personagens expressarem seus
sentimentos e percepções (permitindo a identificação do escritor com dado personagem),
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Flaubert elimina isso inteiramente, não emitindo nenhum tipo de opinião e nem leva o leitor a
se identificar com a opinião de algum personagem:
258
Ian Watt explicita o sentido do termo ―formal‖ para caracterizar esse realismo: ―(...) aqui o termo ‗realismo‘
não se refere a nenhuma doutrina ou propósito literário específico, mas apenas a um conjunto de procedimentos
narrativos que se encontram tão comumente no romance e tão raramente em outros gêneros literários(...)‖. O
―realismo formal‖ é, portanto, uma convenção formal.
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O narrador parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso
no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom de
quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar(…)o mundo é
puxado para esse espaço interior – atribuiu-se à técnica o nome de monologue
intérieur – e qualquer coisa que se desenrole no exterior é apresentada
como(...)um pedaço do mundo interior, um momento do fluxo de
consciência, protegido da refutação pela ordem espaço temporal objetiva, que
a obra proustiana mobiliza-se para suspender (p.59)
Ocorre um processo de narrar os fluxos de consciência mais alongado do que as reais
circunstâncias objetivas do espaço. Também há uma confusão sobre o tempo em que se passa
a ação: não se ancora mais a narração no tempo objetivo. O contato com o presente, em ―Em
Busca do Tempo Perdido‖, é sempre objeto de frustração, e o dilema do narrador se dá no
trabalho da memória engendrando essa conjunção entre passado e presente. Aqui também
desaparece a distinção entre a ação e o comentário devido a entrelaçamento tão forte entre um
e outro. Deste modo se ataca a distância estética entre leitor e narrador. Esse procedimento se
identifica em Kafka também. Kafka em seus romances realiza um processo de choque
destruindo ―a tranquilidade contemplativa diante da coisa lida‖ (ADORNO, 2003, p.61),
assim eliminando a distância do leitor em relação ao narrador. Adorno aponta sobre o
romance de Kafka:
Seus romances, se é que de fato eles ainda cabem nesse conceito, são a
resposta antecipada a uma constituição do mundo na qual a atitude
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259
Na tradição judaica, a Hagadá (―narração‖ em hebraico) é a leitura das histórias de libertação do povo de
Israel do Egito, na Páscoa judaica (a Pessach), ao passo que a Halachá costuma ser empregada de maneira
contraposta à Hagadá por ser a tradição legal da doutrina, em alguns casos sendo compreendido como um corpo
doutrinário fixo. Benjamin, em um texto de 1931 de nome ―Franz Kafka: na construção do muro chinês‖
explica essa analogia nos termos de que à Hagadá ―chamam-se as histórias e anedotas judaicas da literatura
rabínica, que servem ao esclarecimento da doutrina – a Halachá‖ (BENJAMIN, 2014, p.159)
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mesma forma como Kafka se relaciona com o sonho, ou seja, deveria se fixar nos pontos
cegos e nos detalhes incomensuráveis e intransparentes‖ (ADORNO, 1998, p.243). Adorno
aponta uma série de excertos da obra de Kafka onde esse princípio da literalidade atua, onde o
elemento dos gestos serve a essa dimensão ambígua dos textos de Kafka: ―'Li a carta',
começou K., 'Sabes o conteúdo?', Não', respondeu Barnabás, e seu olhar pareceu dizer mais
que as suas palavras‖ (p.244). Segundo Adorno, ―o gesto é o ‗assim é‘. A linguagem, cuja
configuração deveria ser a verdade, torna-se inverdade quando distorcida‖ (Ibid.).
Podemos aqui traçar um retorno ao fundamento do romance moderno. O romance
moderno supõe uma organicidade entre a parte e o todo, cujo desenlace é o final, que permite
realizar esse entrelaçamento onde todas as partes da obra formam uma totalidade única. Já em
Kafka a totalidade não se faz. A conexão entre as partes da obra não torna o todo transparente
e apreensível de sentido. Se o sentido não está na obra, em tese se encontraria fora dela, na
alegoria. Mas ―a autoridade é a dos textos‖. O sentido está na literalidade e a sensação da
leitura é como se tivessem roubado a chave de apreensão do sentido da parábola.
Adorno concebe Kafka como um herdeiro do expressionismo. Não apenas isso, ―ao
liquidar o sonho por sua onipresença, o épico Kafka levou o impulso expressionista tão longe
quanto os líricos mais radicais‖ (1998, p.258). Adorno cita o problema do eu alienado:
representa uma deformação do mundo objetivo pela subjetividade afetada pela ausência da
objetividade na retratação da vida. A crise do realismo na representação engendra o mundo
esvaziado de sentido, tornando esse retorno ao Eu, a forma do Eu mais espontâneo e imediato.
Kafka se atém a uma compreensão do sujeito como um fechado em si mesmo, sem encontrar
sentido no mundo. Assim Kafka não capta o sentido dos personagens no processo da
narração. Nem dos personagens e nem do que vai além deles.
Não existe uma visão totalizante do processo que permeia a obra e o enredo, por parte
do narrador. Kafka sabe tanto quanto seus personagens sobre eles mesmos, assumindo um
horizonte limitado enquanto narrador. Essa forma que suas obras assumem deriva do processo
histórico que torna o mundo ausente de sentido. A partir disso, o retorno ao Eu torna-se o
último recurso do expressionista. O próprio sujeito aqui deixa de ser um sujeito inconformado
com a objetividade, mas ele também perde sentido e objeto e sujeito se equivalem. Na obra de
Kafka ambos são objetos. O esvaziamento de sentido do mundo impede tanto o realismo
como o Retorno ao Eu, pois tanto o mundo objetivo como o sujeito estão desprovidos de
sentido.
Segundo Adorno, a obra de Kafka é desprovida de dimensão histórica contextualizada,
pois:
tudo que Kafka narra pertence à mesma ordem. Todas as suas histórias
desenrolam-se no mesmo espaço sem espaço, e todos os buracos são tão
perfeitamente tapados que as pessoas levam um susto quando se menciona
algo que não caberia ali, como a Espanha e o Sul da França, evocados em
uma passagem de O castelo (pp.252-253)
3. A diferente abordagem da obra de Kafka por Lukács
Lukács aborda de outra maneira a obra kafkiana. Sua abordagem se dá no contexto da
caracterização das vanguardas literárias260 do século XX como ―decadentes‖. Lukács
260
Na base da noção lukacsiana de ―vanguarda‖ está o contraste entre ―obra de arte orgânica‖, realista, e a
inorgânica. À medida em que Lukács pensa a obra de arte realista como a norma estética por excelência, o
antirrealismo do universo cultural estético do século XX vai ser visto como Lukács como a expressão da
decadência da arte e também ―expressão da alienação‖ (BÜRGER, 1993, p.146)
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diferencia o ―realista crítico‖ dos escritores decadentes. No primeiro ele aponta Thomas Mann
como representante, e no segundo aponta Kafka e toda a literatura de vanguarda do século
XX. Lukács mobiliza a categoria de ―possibilidade‖, dividindo essa em ―possibilidade real‖ e
―possibilidade abstrata‖. Na primeira se desenvolve o espaço em que as personalidades agem,
ao passo que a segunda se dá o processo de subjetivação, inclusive tornando a primeira
arbitrária. A literatura realista nesse sentido, ao refletir ―de maneira fiel a realidade objetiva,
representaria as possibilidades reais e abstratas do homem em suas relações mútuas‖
(LUKACS, 1969, p.42).
Lukács aponta um princípio de seleção capaz de encontrar o concreto ―na imensa
massa dos abstratos‖, princípio este que se dá na interação viva e concreta entre o homem e o
mundo-ambiente, e por meio desta as possibilidades concretas do indivíduo podem se libertar
das possibilidades abstratas e revelar-se como realidades concretas que condicionam este
indivíduo. Para Lukács, as vanguardas rejeitam em si esse princípio de seleção, estabelecendo
o indivíduo ―em relação a si‖, excluindo o mundo, o que distorce esse gênero. Por isso a
atribuição de ―decadente‖, expressando a ―dissolução da forma objetiva em elementos
subjetivos‖ (p.44), correspondendo a um corte entre a literatura e o mundo. Nesse sentido
Lukács nota que ―uma vez que uma vez que identificamos no homem a possibilidade abstrata
e a possibilidade concreta, coloca-se desde logo como absolutamente inexplicável a
realidade objetiva do mundo em que ele vive‖. Lukács considera que em Kafka isso se
expressa de alguma forma:
escritores da vanguarda, por seus aspectos descritivos, que apresentam elementos realistas,
mas o princípio de representação coloca Kafka no grupo de ―decadentes‖:
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entre ―ser e devir‖. Na obra de Mann, Lukács aponta que ―cada elemento concreto do
presente move-se em direção a uma realidade concreta, e o significado humano de cada
movimento - a sua importância em função do progresso da humanidade - sobressai sempre
sem equívoco‖ (p.124). A pergunta que dá nome ao ensaio - Franz Kafka ou Thomas Mann -,
se desdobra a partir de algo que Lukács expõe como ―uma escolha decisiva entre dois termos
da alternativa presente‖: escolher entre aproximar-se da angústia ou se afastar dela. A escolha
decisiva:
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Adorno também recusa a crítica de Lukács à vanguarda como uma arte decadente e
produto de um existencialismo individualista, como uma ―capitulação‖ irracionalista diante da
alienação. Quando Adorno cita Baudelaire, ele aponta justamente o que seria contraditório na
avaliação histórica de Lukács, pois a manifestação da solidão e do abandono em sua poesia
não é uma compreensão da essência humana em geral, mas uma expressão da essência da
modernidade, dado que ―a solidão na sociedade individualista é socialmente mediada e de
conteúdo essencialmente histórico‖ (2014, p.328). Não é o ―abstrato em-si‖, mas a essência
social. Do mesmo modo, Adorno não vê o individualismo em Baudelaire, mas pensa a sua
poesia como:
À base das reflexões adornianas sobre estética e as vanguardas literárias reside suas
considerações sobre o papel do ―negativo‖ na dialética. A interrupção da busca da totalidade
não é um aspecto arbitrário das vanguardas estéticas, mas uma expressão do próprio estágio
atual do capitalismo. Adorno está pensando aqui de um lado a transição do capitalismo
baseado na livre concorrência para o que ele chama de ―sociedade administrada‖, baseada no
capitalismo monopolista, por isso a referência a Kafka é importante. Kafka é um autor que
consegue expressar a angústia da narrativa da modernidade no período do capitalismo tardio.
Uma arte ―desfetichizadora‖ para Adorno só poderia cumprir esse papel caso seja
radicalmente nova, conseguindo captar esse problema do sujeito e objeto no mundo
contemporâneo.
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resplandecente do capitalismo, que Kafka exclui para determiná-la mais precisamente em sua
negatividade‖ (ADORNO, 1998, p.252), e:
nenhum mundo poderia ser mais homogêneo do que o mundo sufocante que
ele comprime em totalidade por meio da angústia do pequeno-burguês. O
sistema é lógico do início ao fim e, como qualquer sistema, desprovido de
sentido (Ibiden)
Há uma visão profética do futuro na observação do resíduo dos sistemas em Kafka,
por isso Kafka ―desmascara o monopolismo nos refugos da era liberal liquidada pelos
monopólios‖ (1998, p.253). Kafka eterniza o instante histórico e por isso evita essa dimensão
histórica:
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. Considerações Finais.
Peter Bürger pensa que apesar de uma disputa teórica e estética entre ambos autores,
existe um ponto em que ambas interpretações se encontram (BÜRGER, 1993, p.147). Para
Bürger, ambas acabam por partir da arte de vanguarda como a expressão máxima da arte na
sociedade moderna burguesa, se de um lado como a expressão de sua decadência, do outro
concebida como a expressão artística adequada ao período histórico. Se Adorno critica Lukács
por conceber o realismo enquanto arte legítima, Bürger vai afirmar que Adorno realiza o
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Deste modo, Bürger pensa que esses pontos de referência comuns a Adorno e Lukács
fez com que ambos não pensassem o problema da vanguarda se conceber como uma ruptura
não apenas com as formas anteriores de arte mas com a própria instituição arte261, afinal
centrando e reduzindo a polêmica sobre a vanguarda aos aspectos ―do meio artístico e
alterações que produz no tipo de obra‖ (BÜRGER, p.147), não se ocupam dos próprios
ataques à instituição arte como um todo realizados pelo movimento vanguardista. Então, para
Bürger, se existe essa ruptura com a própria arte de modo geral, o problema da validade e
legitimidade das expressões artísticas da vanguarda seria um falso problema. Bürger avalia
que Lukács e Adorno, não enxergando esse problema, estariam comprometidos com um
período pré-vanguardista ainda. Essa implicação para a arte do século XX foi o significado
histórico do movimento vanguardista, ao acabar com a noção de validade geral de qualquer
tendência artística em particular, segundo Bürger.
261
Aqui seria importante esclarecer algo sobre a obra de Bürger. Bürger apresenta o desenvolvimento histórico
da vanguarda como um movimento que tem como norte justamente não um novo modo de se pensar a arte mas
uma ruptura com essa noção de arte enquanto uma instituição. Bürger está pensando o desenvolvimento desse
conceito ―instituição arte‖ como algo que surge plenamente na modernidade no processo de autonomização da
arte.
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De fato, é verdadeiro que Lukács não ocupa sua análise desse problema em geral, mas
ao invés de ser algo que Lukács não consegue reconhecer por ignorar o problema, nos parece
que se dá pela própria concepção lukacsiana de estética, que acaba por abarcar de alguma
forma esse problema. Ao analisar o problema da vanguarda como uma expressão da
decadência e da alienação da sociedade burguesa, Lukács termina seu ensaio ―A concepção
de mundo subjacente à vanguarda literária‖ apontando que a tendência do movimento
vanguardista na arte é justamente a própria ―autodestruição da estética‖ (LUKÁCS, 1969,
p.75). Apenas é possível pensar as duras avaliações de Lukács quanto à vanguarda pensando
seu problema estético como um problema ligado a certa concepção de mundo, derivado de um
certo espírito do tempo histórico presente. Em última instância Lukács pensa que ―o que há
de humano na base de uma obra de arte, a atitude que ela plasma como possível (...) é o que
decide em última instância sobre o que ela representa na história da arte e (...) da
humanidade‖ (LUKÁCS, 1966b, p.10).
É sob esta base que reside a sua preocupação com a retomada dos clássicos, não em
nome de um regresso conservador, mas em prol de uma preocupação com o estado de
alienação do tempo presente e suas consequências para a arte do século XX, rompendo com a
decadência desumanizadora do estado estético do tempo presente em defesa de uma arte em
consonância com os clássicos não em sentido de correspondência a ―certas regras formais‖
mas do fato de que a obra seja capaz ―de dar às relações humanas mais essenciais e típicas a
máxima expressão de materialização sensível, de individualização‖ (LUKÁCS, 1965, p.513).
Nessa relação com o negativo, podemos pensar a reavaliação que Lukács realiza da
obra de Kafka. Não podemos pensar que Lukács rejeitava o caráter historicamente constituído
do sentimento diante do mundo manifestado nas obras de vanguarda. Lukács, contudo, se
opunha a como expressar o elemento do negativo nessas obras, e a ―imersão impiedosa‖ de
Adorno na dialética negativa. A essa imersão inevitável no negativo, Lukács pensa na
imanência do processo histórico real recuperando a máxima hegeliana da racionalidade do
real, e rejeita a dialética negativa como um impasse insuperável, como atesta Tertulian,
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afirmando que o que marcava a interpretação lukacsiana era ―a convicção de que a pressão
invasora da alienação, apesar de suas aparências de universalidade, pode ser desfatalizada,
e que potencialidades de resistência e oposição à negatividade sempre existem na própria
imanência do processo histórico‖ (TERTULIAN, 2010, p.108). Nesse sentido que podemos
compreender a afirmação de Lukács de que a escola de Frankfurt era um hotel de luxo à beira
de um abismo, pois ao ficarem presos no momento negativo da dialética, estariam
contemplando a decadência contemporânea como um espetáculo do absurdo (LUKÁCS,
2005, pp.17-18)262.
262
A mesma expressão foi utilizada por Lukács para se referir a Schopenhauer em sua obra Asalto a la razón
(1968)
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diferenciar Kafka da literatura posterior, e que seu estudo em Realismo Crítico Hoje não vai
suficientemente longe.
Coutinho identifica um ―humanismo vigoroso‖ presente em Kafka que se contrapõe ao
―niilismo alegórico e absurdismo impotente da vanguarda‖. Coutinho concebe que nas
―melhores produções de Kafka, que romperiam ―essencialmente‖ com a vanguarda, Kafka se
utiliza de uma forma literária mais próxima da novela do que do romance. Na novela se
verifica a representação da irrupção de um fato excepcional na vida de indivíduo, que
explicita um conflito particular elevado à tipicidade. A totalidade permanece no horizonte,
não como no Romance, mas se figura por meio da reflexão desta em um conflito específico.
Coutinho identifica isso, ―de modo claro‖ em A Metamorfose e, em ―certo sentido‖, em O
Processo:
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consequente com essa suposta revisão, ele teria que rever também o mesmo veredito sobre
Beckett e até sobre o realismo socialista como um todo (Ibiden). Tertulian considera que
essas afirmações de Adorno são uma manifestação do fato de que o autor alemão ignorava as
razões estéticas dessa mudança de julgamento da parte de Lukács, apontamento que
concordamos aqui dado que a profundidade dos escritos de Lukács sobre estética não nos
parecem manifestação de dogmatismo e arbitrariedade de sua parte. Lukács chega até mesmo
a fazer um paralelo de Kafka com o escritor irlandês Jonathan Swift:
os dois escritores teriam forjado uma imagem fantástica e profética das
tendências negativas de sua época, as parábolas de Kafka figurando a contra-
humanidade do mundo da última parte do reino de Franz Joseph, deixando
transparecer através da negatividade onipresente, a revolta contra a
aberração (TERTULIAN, 2010, p.112)
Tertulian, portanto, pensa que uma suposta mudança de atitude para com Samuel
Beckett não seria coerente com a concepção estética lukacsiana. O próprio filósofo húngaro
teria oposto, em sua Estética, O Processo de Kafka à obra Molly do dramaturgo irlandês. O
grito de revolta de Kafka contra o absurdo do mundo através de uma negatividade onipresente
se distingue da obra de Beckett em que ocorre a ―autossatisfação da particularidade
fetichizada e absolutizada‖, e a sua ―aparente profundidade‖ é um ―apego estático a certos
sintomas de uma superfície imediata que o capitalismo de nossos dias oferece‖ (LUKÁCS,
1966a, p.484).
Essa avaliação de Coutinho sobre a injustiça feita por Lukács ao categorizar Kafka ao
lado dos autores vanguardistas, bem como a destacável maturidade do próprio filósofo
húngaro em reavaliar a obra de Kafka a distanciando da ―decadência‖ do tempo presente nos
parece a chave para uma interpretação mais adequada da obra kafkiana, bem como sobre a
atualidade dos apontamentos de Lukács sobre o problema da obra de arte para pensar o
mundo estético como expressão de certo espírito de uma época histórica.
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Resumo
Neste artigo, pretende-se oferecer uma breve apresentação dos argumentos de David Hume
(1711-1776) contra a concepção egoísta na filosofia moral. Para tal, uma compendiosa
explanação do contexto da filosofia moral britânica dos séculos XVII e XVIII tornar-se-á
fundamental. Os adeptos do egoísmo moral defendem a tese de que o interesse próprio é a
fonte de todas as boas ações e que a benevolência não passa de mera hipocrisia. Hume, por
sua vez, opõe-se a essa tese à medida que enfatiza o caráter benevolente e inventivo da
espécie humana.
Palavras-chave: David Hume. Egoísmo Moral. Filosofia Moral Britânica. Natureza Humana.
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1. Introdução
263
Jaimir Conte, em sua tese de doutorado intitulada A natureza da moral de Hume, enfatiza alguns pontos
acerca da moral no contexto moderno ao enfatizar os Ensaios de Montaigne. Segundo Jaimir, é justamente nessa
obra que o filósofo abre margem ao relativismo moral em muitas passagens relacionadas às leis e aos costumes.
264
É conveniente ressaltar que a redescoberta das obras de Sexto Empírico trouxe à modernidade muito do
espírito pirrônico que há muito não se ouvia falar. Evidentemente, o desenvolvimento do espírito cético - em um
contexto já muito turbulento - era mais uma preocupação para a Igreja e um ponto importante a ser levado em
conta nas discussões filosóficas da modernidade. Plínio Junqueira Smith desenvolve um trabalho sobre esse
assunto em seu livro O Método Cético de Oposição na Filosofia Moderna. Além disso, os movimentos de
reforma e contrarreforma também tiveram profunda importância neste contexto (Michele Federico Sciacca
apresenta um panorama geral consentâneo sobre esse tema no contexto da filosofia moderna em seu livro
História da Filosofia II: Do Humanismo a Kant).
265
―As Geoffrey Cantor has pointed out, the language of experiment functioned in the early modern period as a
‗discourse of power‘, insofar as it delimits what counts as legitimate science.‖
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Com isso, deve-se ter em mente que o contexto moderno estava marcado por grandes
controvérsias. Dois pontos importantíssimos devem ser ressaltados nesta conjuntura: (1) a
discussão de novas teorias morais impulsionadas pela diversidade de costumes e perspectivas
que se chocaram com a instabilidade da tradição; e (2) o estabelecimento do método
experimental como critério de validade para a ciência. Logo, era de se esperar que houvesse
uma considerável mudança na abordagem do estudo da moralidade. Nesse sentido, ainda na
direção apontada acima, ao levar em conta o lugar que o método experimental ocupava para
os filósofos modernos, não parece ser um absurdo total considerar que o estudo da moral
também pudesse ser auxiliado pelo método experimental. Evidenciar esse ponto consiste em
tornar mais coerente o modus operandi declarado pelos filósofos da Grã-Bretanha266. É
justamente isso que Hume aponta já na introdução do Tratado da natureza humana:
266
Jonh L. Mackie apresenta uma breve introdução ao contexto moral britânico em seu livro Hume‘s Moral
Theory. Assim, dentre os predecessores de Hume estão: Thomas Hobbes (1588-1679), Lord Shaftesbury (1671-
1713), Samuel Clarke (1675-1729), William Wollaston (1659-1724), Bernard Mandeville (1670-1733), Francis
Hutcheson (1694-1746) e Joseph Butler (1692-1752). Nesse aspecto, vale ressaltar que a editora Unicamp
publicou recentemente a segunda edição de uma coletânea de textos intitulada Filosofia Moral Britânica: textos
do século XVIII. Textos selecionados de Shaftesburry, Clarke, Wollaston, Mandeville, Hutcheson e Butler
podem ser encontrados na coletânea em questão.
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poderia ser conduzida da mesma forma. Isso se deve ao fato de que quando a referência é a
natureza de um experimento necessariamente considera-se a possibilidade de poder repeti-lo
quantas vezes for necessário, isto é, até que aquilo que está sendo especulado por meio da
observação dos fatos seja comprovado. Tratando-se de objetos inanimados, a possibilidade de
reproduzir o mesmo experimento inúmeras vezes, sem nenhuma alteração significativa, é
factível. Em contrapartida, o mesmo não se aplica a situações que envolvem seres humanos,
pois segundo Hume, o comportamento das pessoas poderia ser minimante alterado caso
soubessem que estão sujeitas a um experimento, a saber, as pessoas não agiriam normalmente
sob as mesmas condições. Nesse aspecto, Hume apresenta o seguinte ponto ao final da
introdução do Tratado da natureza humana:
É verdade que a filosofia moral tem uma desvantagem peculiar, que não se
encontra na filosofia da natureza: ela não pode reunir experimentos de
maneira deliberada e premeditada, a fim de esclarecer todas as dificuldades
particulares que vão surgindo. Quando não sou capaz de conhecer os efeitos
de um corpo sobre outro em uma dada situação, tudo que tenho a fazer é pôr
os dois corpos nessa situação e observar o resultado. Mas se tentasse
esclarecer da mesma forma uma dúvida no domínio da filosofia moral,
colocando-me no mesmo caso que aquele que estou considerando, é evidente
que essa reflexão e premeditação iriam perturbar de tal maneira a operação
de meus princípios naturais que se tornaria impossível formar qualquer
conclusão correta a respeito do fenômeno. Portanto, nessa ciência, devemos
reunir nossos experimentos mediante a observação cuidadosa da vida
humana, tornando-os tais como aparecem no curso habitual do mundo, no
comportamento dos homens em sociedade, em suas ocupações e em seus
prazeres (2009, p. 24).
267
Para uma discussão mais profunda acerca do que Hume entende por conduta, necessidade e comportamento,
veja o capítulo VII do livro Hume, de Barry Stroud.
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268
Os filósofos aqui apontados são expoentes do que é conhecido hoje por contratualismo clássico. Hume, por
sua vez, apesar de abordar temas relacionados à origem do governo, sociedade civil e justiça, não é considerado
um contratualista. Ao contrário, Hume é um dos seus principais opositores. Gabriel Bertin de Almeida apresenta
uma discussão sobre o assunto em seu artigo David Hume contra os contratualistas de seu tempo.
269
Jaimir Conte, em sua tese de doutorado, faz referência à passagem de uma edição da Investigação sobre os
princípios da moral de Tom L. Beauchamp ao empregar os termos citados aqui.
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estes que pensam que toda ação generosa é feita por amor próprio (EPM
App. 2.1-5). O trabalho de Bernard Mandeville foi considerado como uma
instância do primeiro tipo de teoria egoísta. Hume identifica Epicuro,
Hobbes e Locke como expoentes do segundo tipo (2009, p. 317, tradução
nossa)270.
270
―In Section 2 and Appendix 2, the focus is on the genuineness of our benevolent dispositions and affections.
In fact, the issue of how selfish we are by nature is immaterial to moral practice since in common life we
recognize real friendship and gratitude, and distinguish between the person who obviously does us a good turn
out of self-interest and one who genuinely desires our well-being. Nevertheless, the question of universal
selfishness ‗is certainly of consequence in the speculative science of human nature‘. Hume has two targets here:
those who think ‗that all benevolence is mere hypocrisy‘, a fair disguise by means of which we can manipulate
others to serve our own interests, as well as those who think that all generous actions are done out of self-love
(EPM App. 2.1–5). Bernard de Mandeville‘s work was regarded as an instance of the first kind of selfish theory,
and Hume identifies Epicurus, Hobbes, and Locke as among the second.‖
271
Dentre os vícios naturais estão: a ingratidão, a crueldade, a vilania ou a baixeza e a desumanidade.
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propriedade e o cumprimento das promessas, por exemplo – o que Hume classifica como
virtudes artificiais.
Foram apresentados acima quatro expoentes da teoria egoísta, porém a discussão do
ensaio será direcionada mais propriamente contra dois deles: Thomas Hobbes (1588-1679) e
Bernard Mandeville (1670-1733). Grosso modo, a tese de Hobbes com respeito à natureza
humana pode ser resumida da seguinte maneira: ―Os homens possuem desejos e aversões,
mas seus motivos são inteiramente egoístas. Bem e mal são palavras que expressam apenas a
relação das coisas com os desejos do falante‖ (MACKIE, 1980, p. 7, tradução nossa)272.
Quanto à tese de Mandeville: ―Um extraordinário animal egoísta e obstinado, bem como
astuto, por mais que possa ser subjugado por um poder superior, é impossível, apenas pela
força, torná-lo tratável (...)‖ (2017, p 42). Ao referir-se a Mandeville, John L. Mackie
sustenta: ―(...) ele é bem próximo de Hobbes em espírito; mas suas concepções são até mais
cínicas que as de Hobbes‖ (1980, p. 23, tradução nossa)273. A declaração de Mackie consiste
em um tipo de comparação entre as formas como Mandeville e Hobbes concebem a natureza
humana. A fim de tornar o suposto cinismo de Hobbes e Mandeville mais evidentes, será
apresentada brevemente neste artigo a forma como Hume entende o egoísmo moral e as suas
principais objeções.
Para tal, inicialmente, tornar-se-á essencial esboçar uma breve apresentação da
concepção egoísta de Hobbes e Mandeville. Em seguida, o modo como Hume entende a
moralidade e, posteriormente, como a benevolência e a simpatia exercem seus respectivos
papéis no arranjo teórico de Hume. Assim, ao fornecer uma representação da natureza
humana que está devidamente baseada na experiência, o artigo aqui em questão estará
cumprindo com a sua proposta inicial de fornecer uma resposta ao egoísmo moral segundo a
perspectiva de David Hume.
272
―Men have desires and aversions, but their motives are entirely selfish. ‗Good‘ and ‗evil‘ are words which
express only the relation of things to the speaker‘s desires‖.
273
―(...) he is close in spirit to Hobbes; but his views are even more cynical than those of Hobbes‖.
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A segunda passagem, por sua vez, de maneira mais clara, é direcionada a Epicuro,
Hobbes e Locke:
(...) que seja qual for o afeto que alguém possa sentir ou imaginar que sente
pelos outros, nenhuma paixão é, nem pode ser, desinteressada; que a mais
generosa amizade, mesmo quando sincera, é somente uma modificação do
amor de si mesmo; e que, ainda que não o saibamos, sempre estamos
buscando nossa própria satisfação, mesmo quando parecemos
profundamente envolvidos em planos para a liberdade e felicidade do gênero
humano. Por um viés da imaginação, por uma sutileza de reflexão, por um
entusiasmo da paixão, parecemos compartilhar dos interesses dos demais e
imaginamo-nos isentos de qualquer consideração egoísta; mas, na realidade,
o patriota mais desprendido e o mais mesquinho usuário, o herói mais
corajoso e o mais abjeto covarde têm, em todas suas ações, exatamente o
mesmo interesse pela própria felicidade e bem-estar (2004, p. 380).
A fim de trabalhar melhor as duas passagens, uma curta digressão a respeito da posição
de Hobbes e Mandeville quanto à forma como ambos descrevem a natureza humana no que
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diz respeito à constituição da sociedade civil torna-se necessária. Desse modo, a concepção
egoísta dos dois filósofos ficará muito mais clara.
Thomas Hobbes retrata sua própria história conjectural tanto no Leviatã quanto em Do
cidadão. Não é o objetivo aqui distinguir as minúcias existentes entre ambas as obras, já que a
estrutura básica permanece a mesma, segundo Renato Jaime Ribeiro, na apresentação de Do
cidadão: ―(...) de uma oposição entre o estado de natureza e o estado civil, entre a desordem
e a sociedade‖ (2002, p. 30). Nesse aspecto, é famosa a máxima de Hobbes ao descrever a
vida dos homens no estado de natureza, expressa em Do cidadão274: ―(...) nada mais é que
uma simples guerra de todos contra todos, na qual todos os homens têm igual direito a todas
as coisas, e, a seguir, que todos os homens tão cedo chegam a compreender essa odiosa
condição, desejam libertar-se de tal miséria‖ (HOBBES, 2002, p. 16). Hobbes discorre a
respeito de algumas leis da natureza no capítulo XV da parte 1 do Leviatã para explicar seu
sistema. Uma dessas leis da natureza diz respeito ao seguinte ―Que os homens cumpram os
pactos que celebram‖ (HOBBES,1983, p. 86). Com base nesses pontos, para Hobbes, pode-se
dizer que a liberdade daquela condição miserável do estado de natureza só é possível por meio
do pacto.
A partir do que foi mostrado acima, Hobbes demonstra que sem a existência de um
pacto, ou melhor, de leis positivas, a convivência dos homens em sociedade seria impossível.
Isso porque, para Hobbes, o governo é instituído apenas pelo contrato. A questão aqui,
portanto, consiste no seguinte: seria a humanidade incapaz de conviver até mesmo em
pequenas sociedades? Se a resposta for sim, não resta alternativa a não ser curvar-se ao
egoísmo de Hobbes e afirmar de uma vez por todas que tudo que é feito tem em vista o
interesse próprio daqueles que executam as ações. Por outro lado, se a resposta for não – o
que é mais condizente com a experiência –, mais próximo da posição de Hume poder-se-ia
permanecer. Segundo Russell Hardin, em seu livro David Hume: Moral and Political
Theorist, no capítulo 6, intitulado Justice as Order, Hobbes parece não admitir que uma tribo
ou sociedade pequena funcione sem que conflitos sejam constantes:
274
No Leviatã pode ser encontrada no capítulo XIII.
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Melhor dizendo, Hobbes tenta forjar outra origem para os ditos caracteres benevolentes
da natureza humana ao dar ênfase à satisfação do interesse próprio:
Hobbes não pode sustentar, portanto, que os seres humanos sejam capazes de conviver
uns com os outros sem o estabelecimento de leis positivas, nem mesmo em uma sociedade
pequena, pois o amor de si mesmo sempre estaria à frente de qualquer coisa. Ao mostrar que
tal convivência é possível – mais especificamente o caso de uma sociedade pequena –,
demonstrar-se-á o quanto o egoísmo está equivocado ao representar a natureza humana de
uma forma tão grotesca.
Já em Uma investigação sobre a origem da moral, Bernard Mandeville expõe alguns de
seus principais argumentos em favor da concepção egoísta. No texto em questão, Mandeville
explica a origem da moral a partir de uma espécie de história conjectural, a saber, num
primeiro momento, descreve o homem no seu estado vulgar de natureza; em seguida, pinta
nas cores mais vivas a forma como a natureza humana pode ser manipulada por meio de seus
próprios caracteres a fim de estabelecer a sociedade civil. A título de discussão, a exposição
de um de seus principais argumentos torna-se indispensável: a divisão das duas classes de
275
―(…) he does not grasp the force of convention and group norms in the context of a small society. If I agree to
do something for you, you can inflict ‗some evil consequence‘ on me through the sanctioning power of our
community.‖
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seres humanos. Primeiramente, Mandeville argumenta que a espécie humana foi dividida em
duas classes muito diferentes uma da outra: 1ª) ―(...) pessoas abjetas, execráveis, que, sempre
correndo atrás de um prazer imediato, seriam completamente incapazes de abnegação, sem
nenhuma consideração pelo bem dos outros e nenhum objetivo mais elevado que seu próprio
benefício‖ (2017, p. 53); e 2ª ―(...) criaturas imponentes e altivas que, livres do egoísmo
sórdido, estimavam os progressos da mente como a sua mais bela aquisição; e estabelecendo
um justo valor para si, não tinham prazer senão em embelezar aquela parte em que consistia
sua excelência (...)‖ (2017, p. 53-54). O objetivo dessa divisão, segundo Mandeville, foi
estimular os homens em seus afazeres em prol do bem comum e do desenvolvimento da
sociedade.
Pode-se dizer, de forma resumida, que o que distingue os membros da primeira classe
dos membros da segunda é justamente a falta de capacidade de abnegação. Abnegação essa
que consiste na capacidade de deixar os seus próprios interesses de lado em vista do bem
comum. A abnegação, portanto, parece estar relacionada a um tipo de artifício e, por
conseguinte, não pode ser dita natural em sentido estrito. Pela perspectiva de Mandeville, a
abnegação e todas as outras características da segunda classe seriam incitadas pelos sábios e
políticos a fim de tornar a conquista de seus interesses mais factíveis. Não só isso, os próprios
homens são suscetíveis ao resultado destas práticas ditas virtuosas conforme recebem elogios
por isso: ―Não há homem, por mais capaz ou inteligente que seja, completamente à prova do
encantamento da bajulação se esta é engenhosamente realizada e ajustada às suas
habilidades‖ (MANDEVILLE, 2017, p. 59). Logo, a prática destas ações virtuosas não tem o
seu fim nelas mesmas. Isto posto, toda ação humana tem em vista o interesse próprio – até
mesmo aquelas executadas pelos membros da segunda classe –, a benevolência é mera
hipocrisia e a noção de virtude não passa de algo contrário à natureza humana e,
consequentemente, fruto de uma invenção que não está em conformidade com tal natureza. O
vício é natural e a virtude é artificial.
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Antes mesmo de contrapor a posição de Hume à posição dos teóricos do egoísmo moral,
é imprescindível realizar uma sucinta exposição da moral pela perspectiva de Hume. O
filósofo dedicou dois de seus escritos exclusivamente ao estudo da moral: o Livro III do
Tratado da natureza humana e a Investigação sobre os princípios da moral. Ademais,
também é possível encontrar alguns pontos a respeito desse tema em seus Ensaios morais,
políticos e literários – destaque aos ensaios: Da dignidade e fraqueza da natureza humana e
Da origem do governo. Por consequência, vale frisar que os textos citados anteriormente
serão as principais fontes primárias deste artigo.
Apesar de a primeira exposição sobre o tema da moralidade ser mais propriamente no
Livro III do Tratado da natureza humana, é no primeiro parágrafo da Seção 1 da Investigação
sobre os princípios da moral que Hume faz um tipo de crítica mais explícita à tese egoísta –
paralelamente à crítica ao racionalismo moral. O filósofo opõe-se àqueles que se aferram em
disputas concernentes às controvérsias morais ao expor dois tipos específicos de filósofos
neste momento: os dogmáticos ―homens que se aferram teimosamente a seus princípios‖
(2004, p. 225); e os disputadores insinceros ―que não acreditam de fato nas opiniões que
defendem, mas envolvem-se na controvérsia por afetação, por um espírito de oposição ou por
um desejo de mostrar espirituosidade e inventividade superiores às do restante da
humanidade‖ (2004, p. 225). Por dogmáticos, imagina-se que sejam aqueles que fazem uso
de termos abstratos para explicar a moral, ou seja, aqueles que pensam que a moral é uma
matéria de verdade e pode ser provada como a matemática. Tais características podem ser
consideradas como marcas do dito racionalismo moral (comentado anteriormente). Nos textos
de Samuel Clarke (1675-1729)276 e William Wollaston (1659-1724)277 podem ser encontrados
276
A obra de Clarke é intitulada Um discurso sobre a religião natural. O texto pode ser encontrado na coletânea
Filosofia moral britânica: Textos do século XVIII publicada pela editora Unicamp.
277
A obra de Wollaston é intitulada A religião da natureza: Um esboço. O texto também pode ser encontrado na
coletânea Filosofia moral britânica: Textos do século XVIII.
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A passagem acima traz à tona um dos principais argumentos oferecidos por Hume tanto
no Tratado da natureza humana quanto na Investigação sobre os princípios moral. O
argumento consiste na reivindicação do princípio da cópia: ―(...) todas as nossas ideias
simples, em sua primeira aparição, derivam de impressões simples, que lhes correspondem e
que elas representam com exatidão‖ (2009, p. 28). Em outras palavras, a partir do mesmo
princípio defendido por Hume na discussão sobre o conhecimento – no Livro I do Tratado da
natureza humana e na Seção 2 da Investigação sobre o entendimento humano –, o filósofo
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propõe o alicerce sobre o qual a discussão moral deve ser estabelecida. Pode-se formular o
argumento da seguinte maneira:
278
Tanto no início do Livro 1 quanto no início do Livro 2 do Tratado da natureza humana, Hume enfatiza a
distinção entre os tipos de percepção. Segundo Hume, uma percepção pode ser definida como tudo aquilo que
está presente à mente ou mesmo qualquer ação exercida por ela. Nesse sentido, existem percepções que se
apresentam à mente de forma mais forte e outras que se apresentam à mente de forma mais fraca. Por exemplo,
suponha que neste momento Pedro tem um lápis em mãos. Este lápis, enquanto está em suas mãos, confere a sua
mente uma percepção forte e vívida do mesmo (o que Hume denomina impressão). Por outro lado, mais tarde,
quando Pedro está pronto para dormir, ele dirige o olhar para a sua mesa de estudos e, então, vem à cabeça o
lápis que estava usando mais cedo para fazer algumas anotações. Ao contrário da situação que ocorreu mais
cedo, agora a percepção é fraca e apática devido ao fato de não ter o lápis presente a nenhum de seus sentidos,
pois apenas o representa em sua mente (O que Hume define como ideia). De modo mais claro, Hume argumenta
que as impressões são equivalentes ao sentir, e as ideias ao pensar. Ademais, pode-se entender que as impressões
são como que causas das ideias, ou seja, não existe nenhuma ideia que não seja derivada de uma impressão - o
que é frequentemente caracterizado pelos comentadores de Hume como princípio da cópia. Em outras palavras, o
empirismo de Hume exprime-se em uma teoria das ideias fundada na prioridade das impressões sobre as ideias;
esta teoria estabelece uma relação dupla: (a) as ideias são cópias ou imagens das impressões, como dados
sensoriais imediatos e (b) as ideias não são descobertas sem impressões correspondentes. Por meio do princípio
da cópia, Hume desafia os filósofos que empregam termos genéricos e abstratos, e aconselha seus leitores a
perguntar de que impressão é derivada aquela suposta ideia discutida pelos seus interlocutores. Para uma
exposição mais detalhada acerca da constituição da mente humana na visão de Hume, veja o livro de Angela
Coventry publicado pela Editora Vozes (intitulado: Compreender Hume) – que nada mais é que uma tradução
para o português do original Hume: A Guide for the Perplexed.
279
Discorrer sobre isto neste momento ocuparia muito espaço e poderia desviar o objetivo da discussão. Na
verdade, ao descartar a fundação dos juízos morais nas ideias, Hume está tecendo uma dura crítica à tese dos
racionalistas morais: se adequar ao comando da razão é virtuoso, porém, ao ser contrário às suas ordens, o
indivíduo torna-se vicioso. Grosso modo, é assim que é caracterizado o racionalismo moral. Hume argumenta de
modo a nos mostrar que a razão sozinha, seria incapaz de tamanha soberania e poder. Dessa maneira, ele
reivindica a concorrência de outros princípios paralelamente à razão (o sentimento). Disso o filósofo retira uma
espécie de máxima: os seres humanos são afetados por juízos morais à medida que estes desencadeiam certa
influência sobre suas ações e afetos. A moralidade tem influência sobre as ações e os afetos. A razão sozinha não
pode nunca ter qualquer influência. Logo, a moral não pode ser derivada da razão: ―A razão é, e deve ser,
apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas‖ (HUME,
2009, p.451). Assim sendo, ao levar em conta somente as ideias, isto é, considerando apenas relações,
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de pôr em xeque a sua origem nas impressões – mais precisamente nas impressões de
sensação280. Isso porque as paixões e os afetos são como que realidades originais, ou seja, não
são nada além do que são. Não há nada neles que possa afetar as impressões de sensação:
―Como quer que a tomemos, encontraremos somente certas paixões, motivos, volições e
pensamentos. Não há nenhuma questão de fato neste caso‖ (HUME, 2009, p. 508). Logo, a
noção de vício ou virtude atrelada às ações não pode ser identificada nelas por meio das
impressões de sensação. Tudo isso implica na busca por outra fonte para os juízos morais.
É nesse sentido que Hume argumenta em favor do sentimento, ou seja, das impressões
de reflexão281. Segundo o filósofo, quando uma ação é aprovada ou reprovada por alguém,
isso não é feito com respeito à ação mesma, mas sim quanto ao caráter do agente de que a
ação é o sinal. Assim, pode-se dizer que Hume defende a tese de que os seres humanos já
possuem uma espécie de constituição mental natural que os faz aprovar ou desaprovar algo.
justaposições e comparações de ideias, pode-se dizer que as mesmas relações que ocorrem entre os objetos
imateriais também são dignas de censura ou louvor. Por exemplo, a comparação da relação da árvore nova que
sobrepuja e destrói aquela que lhe deu origem com a relação do filho (Nero) que mata a mãe (Agripina) reproduz
o argumento apresentado no Tratado da natureza humana (HUME, 2009, p. 506). A diferença é justamente que,
no caso das árvores, não experimentamos nenhum sentimento de repúdio e horror – que prova que o juízo moral
de condenação não está baseado na relação de ideias, mas no sentimento moral. Segundo, não é possível nutrir
nenhum tipo de sentimento quanto às relações no caso delas estarem ocorrendo entre objetos ou seres que não
são humanos. Rachel Cohon desenvolve algumas discussões sobre a perspectiva do racionalismo moral em
alguns de seus escritos como, por exemplo, em seu artigo Hume and Humeanism in Ethics e na seção 1 da
primeira parte de seu livro Hume‘s Morality: Feeling and Fabrication.
280
As impressões de sensação não são nada mais que as sensações apreendidas pelos sentidos – é por isso que o
seu caráter externo deve ser destacado. É justamente neste aspecto que Hume descarta a possibilidade de a fonte
dos juízos morais serem as impressões de sensação, pois elas não fornecem nada além do que aparece aos
sentidos.
281
É necessário ressaltar que no Livro 2 do Tratado da natureza humana Hume se aprofunda em sua
explicação. E é exatamente este ponto que merece destaque agora, afinal, só assim será possível atingir uma
melhor compreensão acerca da distinção entre as percepções anteriormente expostas e a forma como elas
exercem sua influência sobre o funcionamento das engrenagens do sistema moral humeano. Isso implica dar
ênfase a um ponto pertinente a respeito das impressões de reflexão, pois o papel dessas impressões é
significativo na moral. Elas são dividas em: emoções calmas e paixões violentas. As primeiras, segundo Hume,
são o sentimento do belo e do feio nas ações, composições artísticas e objetos externos; e as segundas, são as
paixões de amor e ódio, pesar e alegria, orgulho e humildade. As paixões violentas, por sua vez, ainda podem ser
classificadas como paixões diretas e paixões indiretas. Hume argumenta que as paixões diretas surgem
imediatamente do bem e do mal, da dor e do prazer; enquanto as paixões indiretas procedem dos mesmos
princípios, mas pela conjugação de outras qualidades.
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Por isso, quando Hume se refere a esse ponto ele relaciona tal perspectiva com a forma como
as qualidades secundárias282 são concebidas na filosofia moderna, a saber, como meras
qualidades existentes somente na mente das pessoas e não nos objetos propriamente ditos:
Nesse aspecto, Hume quer mostrar que as ações só podem ser executadas tendo em vista
um sentimento último de prazer ou dor, agrado ou desagrado, que as direcione e constitua seu
fim último, desejado em si mesmo. Só as paixões, portanto, podem desencadear tais
sentimentos. De acordo com este sentimento, o vício está para um tipo peculiar de dor assim
282
A tese da distinção entre as qualidades primárias, secundárias e terciárias é mais bem discutida por Locke em
sua famosa obra Ensaio sobre o entendimento humano (mais precisamente no livro 2, capítulo 8). De forma bem
resumida, as três podem ser entendidas da seguinte forma: 1ª) Qualidades que se referem ao tamanho, forma,
medida, posição e movimentação de outras partes sólidas de corpos (segundo Locke, existem no mundo
independente de nós); 2ª) Qualidades que se referem aos poderes que os corpos possuem, por meio das
qualidades primárias, de afetar nossos sentidos, ou seja, o tato, o paladar, a audição, a visão e o olfato (segundo
Locke, existem no mundo, não categoricamente, mas disposicionalmente, a saber, são apenas poderes ou
disposições para produzir sob condições apropriadas experiências aos nossos sentidos) ; e 3ª) Qualidades que
basicamente se referem às mudanças existentes nos corpos, portanto, têm estreita relação com as qualidades
primárias.
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como a virtude está para um tipo peculiar de prazer. Por consequência, grosso modo, é assim
que Hume entende a moralidade e discorre a respeito dos juízos morais283.
Como ficou estabelecido anteriormente, para Hume, as distinções morais são efetuadas
com base na sensibilidade. Nesse sentido, no início do Livro 3 do Tratado da natureza
humana (HUME, 2009, p. 508; e HUME, 2009, p. 510), enquanto discorre sobre a origem da
moral e a forma como as distinções morais são estabelecidas, Hume enfatiza a relação do
vício e da virtude com os sentimentos de aprovação e desaprovação incitados pela dor e pelo
prazer: ―O vício escapa-nos por completo, enquanto consideramos o objeto. Não o
encontraremos até dirigirmos nossa reflexão para nosso próprio íntimo e darmos com um
sentimento de desaprovação, que se forma em nós contra essa ação (2009, p. 508); e, um
pouco mais adiante: ―Por que uma ação, sentimento ou caráter é virtuoso ou vicioso? Porque
sua visão causa um prazer ou desprazer de um determinado tipo‖ (2009, p. 510). Tal relação
fica ainda mais estreita quando as paixões indiretas284 são levadas em consideração, pois o
orgulho e o amor se assemelham pelas impressões ou sensações agradáveis; enquanto a
humildade e o ódio se assemelham pelas impressões ou sensações desagradáveis
283
É pertinente ressaltar que – no geral – alguns pontos daquilo que entendemos por moralismo britânico não
foram suficientemente apresentados aqui. James Fieser, por exemplo, oferece um panorama geral conveniente
em seu artigo: David Hume Moral Theory. A distinção entre os três sujeitos morais (agente, paciente e
observador) apresentada por Fieser em seu artigo tem um papel importantíssimo para a tradição dos moralistas
britânicos (o que inclui o próprio Hume).
284
Dentre as paixões indiretas estão: o orgulho, a humildade, a ambição, a vaidade, o amor, o ódio, a inveja, a
piedade, a malevolência, a generosidade, e todas as outras que dependem delas. Hume trabalha as paixões de
forma mais bem detalhada no Livro 2 do Tratado.
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A tese de Hume vai ao encontro daquela que alguns de seus predecessores britânicos já
anunciavam285: a capacidade dos seres humanos de perceber qualidades agradáveis e
desagradáveis. A saber, é comum encontrar na tradição britânica (mais precisamente nos
teóricos do senso moral ou sentimentalismo) um discurso que expressa mais ou menos o
seguinte: os seres humanos têm uma faculdade de percepção moral – algo que pode ser
comparado com as faculdades de percepção dos sentidos. Não é possível ser indiferente ao
que provoca prazer ou desprazer, por isso, na perspectiva de Hume, não haveria motivo para
rejeitar a existência das distinções morais – o próprio Hume insiste nisso logo no início da
Seção 5 da Investigação sobre os princípios da moral. Assim sendo, a capacidade de perceber
tais distinções seria possível mesmo sem a presença de leis positivas, e é neste ponto que a
discussão a respeito das virtudes e vícios naturais começa a ganhar espaço.
Ao dissertar sobre o tema das virtudes e dos vícios naturais, Hume tem como um de
seus principais objetivos, por conseguinte, opor-se ao egoísmo moral. Quando o egoísmo
rejeita a existência da benevolência e reduz todas as boas ações à satisfação do interesse
próprio, joga a natureza humana, por assim dizer, no abismo mais profundo. Para Hume,
rejeitar a existência de caracteres benevolentes é o mesmo que afirmar que os seres humanos
não são capazes de sentir afeição genuína uns pelos outros, ou seja, que todos os sentimentos
de caráter humanitário não são naturais. Hume inicia o texto da Seção 2 da Investigação sobre
os princípios da moral afirmando que:
285
Por exemplo, Lord Shaftesbury (1671-1713) e Francis Hutcheson (1694-1746), que são considerados
expoentes da teoria do senso moral ou sentimentalismo.
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Ao abrir a Seção 2 dessa forma, Hume pretende reivindicar o estatuto dos juízos
morais – o mesmo que foi invocado por ele no início da Seção 1. Ao mesmo tempo, Hume
também pretende defender a benevolência e, consequentemente, uma diferente representação
da natureza humana com base na simpatia. Com isso, torna-se inevitável não recorrer ao
modo como o filósofo constitui a crítica ao egoísmo moral. Como já foi exposto antes, Hume
utiliza o princípio da cópia a fim de desafiar os filósofos que empregam termos genéricos e
abstratos, e aconselha seus leitores a questionar de que impressão é derivada a suposta ideia
que seus interlocutores defendem com tanto fervor. Dessa maneira, Hume se posiciona de
forma contundente contra os teóricos egoístas no ensaio Da dignidade e fraqueza da natureza
humana:
Para Hume, os egoístas não podem ser tão insensíveis a ponto de rejeitar a distinção
entre os juízos morais. Muito menos argumentar que aquilo que é tomado como bom
(virtuoso) ou mau (vicioso) é mero fruto do interesse próprio287 ou da bajulação política que a
prole engendra no orgulho288. Pintar os seres humanos como criaturas predominantemente
maléficas e prontas para colocar em prática as maiores barbaridades a qualquer instante e a
qualquer custo, incapazes de executar qualquer tipo de ação que tenha o próprio fim em si
mesma, sem levar em conta todas as qualidades que constituem o caráter benevolente do
gênero humano, é entendido por Hume como um dos maiores absurdos já empregados em
286
―We find few disputes, that are not founded on some ambiguity in the expression; and I am persuaded, that
the present dispute, concerning the dignity or meanness of human nature, is not more exempt from it than any
other. It may, therefore, be worth while to consider, what is real, and what is only verbal, in this controversy.‖
287
Hobbes.
288
Mandeville.
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toda a história da filosofia: ―Quão perversa deve ser uma filosofia que não concede à
amizade e aos sentimentos humanitários os mesmos privilégios que, de modo inconteste,
atribuem-se às sombrias paixões da inimizade e do ressentimento‖ (2004, p. 387-388); além
disso, o filósofo ainda aponta o modo equivocado como os egoístas descrevem a natureza
humana: ―Uma filosofia como essa é antes uma sátira que uma genuína representação ou
descrição da natureza humana (...)‖ (2004, p. 388).
Fazer uma breve discussão acerca da noção de simpatia em contraste com a posição
egoísta de Hobbes e Mandeville apresentadas ao longo deste artigo é conveniente neste
momento. Desse modo, ficará mais fácil compreender como a tese de Hume difere da tese
egoísta.
Hobbes, ao argumentar, por exemplo, que sem o estabelecimento de um pacto, o
homem não pode viver uma vida em sociedade, certamente nunca tomou conhecimento de
uma tribo indígena. Em uma tribo, pelo fato de a população não ser muito numerosa e todos
conhecerem uns aos outros, um indivíduo pode vigiar as ações do outro e, assim, fazer com
que as leis ali estabelecidas pelo costume sejam aplicadas. No geral, a justiça no sentido
humeano do termo, como uma virtude artificial289, não se faz necessária nesse caso, pois as
virtudes naturais suprem todas as necessidades das pessoas da tribo290.
289
As virtudes artificiais constituem um sistema de regras ou convenções que são necessárias para que as
pessoas possam se conformar com o bem público. O sistema geral destas regras ou convenções é útil para a
sociedade como um todo, e a longo prazo, mesmo que a aplicação de regras a este ou àquele caso individual
possa ser considerada prejudicial.
290
O ponto de Hume consiste em destacar o quanto as virtudes perdem sua influência sobre os membros de uma
sociedade ao levar em conta a condição humana. O apreço pela justiça, por exemplo, não poderia vir de outro
lugar senão da utilidade: ―A história, a experiência e a razão nos instruem suficientemente sobre esse progresso
natural dos sentimentos humanos e sobre a gradual ampliação de nosso respeito pela justiça à medida que nos
familiarizamos com a vasta utilidade dessa virtude‖ (HUME, 2004, p. 253).
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291
Derivam da natureza humana e, portanto, são nesse sentido classificadas como naturais, mas essas virtudes
eram desconhecidas pelos humanos em seu estágio primário, a saber, ―em sua condição rude e mais natural‖
(HUME, 2009, p. 520).
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292
Isto porque a simpatia consiste no espelhamento de estados mentais, propiciado pela semelhança básica que
os seres humanos possuem entre si.
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primeiro caso, por influência das relações filosóficas de semelhança e contiguidade sobre as
relações de ideias e relações de impressões ou emoções, a parcialidade ganha espaço sobre os
juízos. De outro modo, no segundo caso, por não sofrer tanta influência daquelas relações, os
juízos tendem a ser menos parciais.
A partir do que foi evidenciado acima, percebe-se que até mesmo a generosidade está
circunscrita a certas situações e aspectos bem restritos. Ou seja, a resposta de Hume ao
egoísmo não consiste simplesmente em colocar os caracteres benevolentes (virtuosos) sobre
os egoístas (viciosos). Ao contrário, pode-se dizer que a sua intenção está mais próxima de
um tipo de moderação entre ambos, de modo que nem um nem outro pode jamais prevalecer
de maneira absoluta – apesar de as situações que propiciam o vício serem mais contiguidade
que aquelas que incitam a virtude. Logo, a natureza humana293 não carrega uma conotação de
algo essencialmente bom, nem mau. De outro modo, Hume reconhece que a educação e o
costume podem sim influenciar a conduta, mas ele também defende que existe nos seres
humanos um tipo de sentido moral que exerce influência considerável sobre a forma como a
moralidade é concebida. Tal posição é defendida por Hume ainda no Livro 2 do Tratado:
Comecemos com o VÍCIO e a VIRTUDE, que são causas mais óbvias dessas
paixões (aqui Hume se refere ao orgulho e à humildade, grifo do autor).
Seria inteiramente alheio a meu propósito presente entrar na controvérsia,
que nos últimos anos vem despertando tanto a curiosidade do público, se
essas distinções morais se fundam em princípios naturais e originais ou se
nascem do interesse e da educação. Reservo o exame dessa questão para o
próximo livro; por ora, tentarei mostrar que meu sistema se sustenta em
293
No Livro III do Tratado da natureza humana, Hume argumenta que a noção de Natureza ―(...) vem a ser a
mais ambígua e equívoca que existe‖ (2009, p.513). Neste momento, o filósofo faz uma pequena análise sobre
os modos como o vício e a virtude podem ser entendidos no que diz respeito às noções do que é natural e
artificial. Assim, Hume divide a análise em três partes: 1ª) Vício e virtude como oposição de natureza a milagre;
2ª) Vício e virtude como aquilo que é raro e inabitual; e 3ª) Vício e virtude como artifício ou oposição. Ao
apresentar tais pontos, o filósofo pretende apontar que a distinção entre natural e não-natural não pode delimitar
o limite entre vício e virtude. Inclusive, as três perspectivas oferecem noções diferentes sobre o modo como o
vício e a virtude são entendidos.
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qualquer das duas hipóteses – o que constitui uma forte prova de sua solidez
(HUME, 2009, p. 329)294.
A partir desses pontos, uma possível resposta à posição de Mandeville pode ser
apresentada. Lembrando que Mandeville descreve os seres humanos como criaturas que não
são naturalmente sociáveis e que só deixam os vícios naturais de lado devido à influência de
sábios e políticos. Para Hume, tal posição é insustentável, pois além de oferecer uma visão
nefasta da natureza humana, também rejeita o lugar das virtudes naturais como partes dessa
natureza. Além disso, se os seres humanos não fossem suscetíveis a certos sentimentos de
aprovação ou reprovação, o discurso de políticos ou sábios não faria qualquer efeito sobre o
povo. Nesse sentido, Hume coloca o seguinte: ―(...) e as palavras louvável, elogiável,
condenável e odioso seriam tão pouco inteligíveis como se pertencessem a uma língua
inteiramente desconhecida de nós, como já observamos‖ (2009, p. 618).
Considerações finais
294
É justamente neste ponto que Hume demonstra de forma mais clara a sua pretensão de investigar como se dão
as distinções morais: (1) Se são traçadas com base no interesse próprio ou nos preconceitos da educação (o que
implicaria que a moral não está fundada na natureza); ou (2) Se estão fundadas em princípios naturais e originais
(o que implicaria que a moral é algo real, essencial, e fundada na natureza). Como foi demonstrado, o sistema de
Hume se sustenta nas duas vias. A distinção entre as virtudes e vícios naturais e as virtudes e vícios artificias
parece assegurar a coerência da posição de Hume. David Fate Norton discute essa problemática em seu artigo:
The Foundations of Morality in Hume‘s Treatise.
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295
―Were our selfish and vicious principles so much predominant above our social and virtuous, as is asserted by
some philosophers, we ought undoubtedly to entertain a contemptible notion of human nature.‖
296
João Paulo Monteiro destaca um tópico pertinente a este respeito em seu livro Hume e a epistemologia, no
capítulo 5, intitulado Parcimônia e desígnio: ―O princípio científico de simplicidade – uma versão moderna da
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mais simples e mais óbvia que se pode atribuir a um fenômeno é provavelmente a sua
verdadeira causa‖ (2004, p. 384).
Ao levar em consideração a experiência e, por meio dela, a forma como o
comportamento dos homens se apresenta, Hume deduz que a natureza humana não pode ser
representada da maneira como os egoístas fazem questão de ressaltar. Não existem impressões
no mundo que podem garantir a tese egoísta. Assim sendo, se não satisfaz as exigências do
princípio da cópia, a tese egoísta não deve ser levada em conta nesse contexto. No fim das
contas, as pessoas se importam com seus amigos, familiares e conterrâneos – isso é um fato.
Ademais, além de sentir simpatia por pessoas tão próximas, também sentem o mesmo por
pessoas desconhecidas enquanto seres humanos – apesar de a semelhança e a contiguidade no
espaço e no tempo exercer certa influência nesse caso.
Em vista disso, não pode ser o amor de si mesmo – como sustenta Hobbes – ou somente
os efeitos da educação e do elogio – como emprega Mandeville – a fonte destes sentimentos
morais e a consideração prestada a eles. A experiência ensina uma coisa: é impossível não
sentir desprazer ao presenciar uma situação de completo sofrimento de outro ser humano sem
que isso não desperte um enorme desconforto. Ao frequentar um velório, por exemplo, é
natural se compadecer por todos que ali estão. O ranger de dentes, o profundo suspiro e choro
dos amigos e familiares do morto fazem com que a imaginação ou fantasia entre em ação e
―ela nos faz participar de sentimentos que não nos pertencem de forma alguma, e só podem
nos interessar em virtude da simpatia‖ (HUME, 2009, p. 629). O mesmo pode ser dito
quanto à situação contrária, porque é comum as pessoas encherem-se de alegria e euforia ao
presenciar o sorriso de felicidade de um amigo que conquistou o seu objetivo; assim também
como se divertem em conversas com estranhos quando esses expressam sentimentos ou
expressões relacionas à felicidade. É nesse sentido que Hume cita Horácio: ―Assim como as
faces humanas riem com as que riem, também choram com as que choram‖ (HUME, 2004, p.
286).
navalha de Occam, a qual por sua vez era a retomada de um princípio aristotélico – deve ser considerado um
terreno comumente partilhado por Fílon, Cleanto e o próprio David Hume‖ (MONETEIRO, 2009, p. 141).
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Pode-se dizer, então, que a verdadeira representação da natureza humana não pode
condizer com aquela pintada pelos teóricos egoístas. Ao recorrer à experiência o argumento
de Hume se mantém de forma irrefutável, isto é, características benevolentes ou virtuosas
existem assim também como existem características egoístas ou viciosas. Por outro lado,
argumentar em favor da predominância das últimas sobre as primeiras não seria nem um
pouco condizente com a índole de um disputador que se pretende sincero.
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Referências bibliográficas
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2ª Ed. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2013.
COHON, R. Hume and Humeanism in ethics. Pacific Philosophical Quartely. nº 69, p. 99-
116, 1988.
COHON, R. Hume’s Morality: Feeling and Fabrication. 1ª Ed. New York, USA: Oxford
University Press, 2008.
COVENTRY, A. M. Compreender Hume. Trad. Hélio Magri Filho. 2ª Ed. Petrópolis, RJ:
Editora Vozes, 2009.
HARDIN, R. David Hume: Moral and Political Theorist. 1ª Ed. New York, USA: Oxford
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HOBBES, T. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. 3ª Ed. São Paulo, SP: Editora Martins
Fontes, 2002.
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LOCKE, J. Segundo tratado do governo. Trad. Carlos E. Pacheco Amaral. 1ª Ed. Lisboa,
PT: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
MONTAIGNE, M. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. 1ª Ed. [S.I.]: Editora 34, 2016.
MONTEIRO, J. P. Hume e a epistemologia. 1ª Ed. São Paulo, SP: Editora Unesp, Discurso
Editorial, 2009.
NORTON, D. The foundations of morality in Hume‘s Treatise. In: NORTON, D.; TAYLOR,
J. (Eds.). The Cambridge Companion to Hume. 2ª Ed. New York, USA: Cambridge
University Press, p. 270-310, 2009.
ROUSEEAU, J. –J. Do contrato social. Trad. Eduardo Brandão. 1ª Ed. [S.I.]: Editora
Penguin, 2011.
SMITH, P. J. O Método cético de oposição na filosofia moderna. 1ª Ed. São Paulo, SP:
Editora Alameda, 2016.
STROUD, B. The Arguments of the Philosophers: Hume. 1ª Ed. London, UK: Routledge,
1977.
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TAYLOR, J. Hume‘s Later Moral Philosophy. In: NORTON, D; TAYLOR, J. (Eds.). The
Cambridge Companion to Hume. 2ª Ed. New York: Cambridge University Press, p. 311-
310, 2009.
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Resumo
O tema da solidão nas obras de Jean-Jacques Rousseau é mais recorrente em seus textos
autobiográficos. Sendo assim, o presente artigo pretende assegurar a possibilidade de associar
os conceitos do arcabouço filosófico do autor e a condição solitária vivida no âmbito de sua
vida. Portanto, o artigo tem como proposta entender a solidão como um conceito filosófico
que dialoga com problemáticas do campo da moral e da linguagem.
Palavras-Chave: Linguagem. Moral. Sociedade. Solidão.
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1. Introdução
A trajetória da literatura crítica que se traçou desde o século das Luzes acerca da obra
de Jean-Jacques Rousseau se articulou entre diversas interpretações. No percorrer da
Revolução Francesa, revolucionários e contrarrevolucionários tomavam sua obra e defendiam
posicionamentos sobre ela que, pela contraditoriedade, nem parecia se tratar do mesmo autor.
Não se via uma coligação entre um escrito que tomava como perspectiva discursiva o âmbito
individual, caso do Discurso Sobre a Origem da Desigualdade, e seu texto Do Contrato
Social, que se posicionava a favor da obrigatoriedade da participação de todos para a decisão
da vida coletiva. A dificuldade interpretativa não se esgotou apenas ao debate político, mas
abrangeu os demais escritos de Rousseau: seus romances, peças teatrais, textos acerca da
música, botânica e, sobretudo, dos escritos conhecidos como autobiográficos.
297
Para um comentário aprofundado sobre interpretações que defendiam contradições na obra de Jean-Jacques
Rousseau, ver GAY, PETER. Introdução. Trad. Jézio Gutierre. In: CASSIRER, Ernst. A Questão Jean-Jacques
Rousseau. São Paulo: Editora UNESP, 1999 e, para uma exposição das diferentes concepções de unidade em sua
obra, ver a introdução de RADICA, Gabrielle. L‘histoire de la Raison: Antrophologie, morale et politique chez
Rousseau. Paris: Honoré Champion, 2008.
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com seu arcabouço filosófico e compreender o autor como um sujeito que defende sua
filosofia ao ponto de fundamentar sua ação no mundo por meio dela.
Logo em sua primeira carta suas motivações são expostas: ―nasci com um amor
natural pela solidão que só fez aumentar conforme conhecia melhor os homens‖
(ROUSSEAU, 2005, p. 20). Acrescenta ainda que existe dentro de si uma paixão que fomenta
a vontade da vida solitária desde sempre no âmbito de sua individualidade e, conforme tomou
contato com as injustiças da vida cotidiana e demais maldades, o seu desejo de reclusão se
intensificou. Verificamos uma causa primeira que acentua essa paixão: o contato recorrente
da injustiça e dos vícios vividos e observados empiricamente nas ocasiões da vida social. Em
defesa da sua condição solitária, Rousseau apresenta ao seu interlocutor de maneira resumida
as principais consequências positivas que seu modo de vida tem em relação à vida em
sociedade:
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Em suma, todo movimento que não é produzido por outro somente pode vir
de um ato espontâneo, voluntário; os corpos inanimados agem apenas pelo
movimento, e não há verdadeira ação sem vontade. Eis meu primeiro
princípio. Acredito, portanto, que uma vontade move o universo e anima a
natureza. Eis meu primeiro dogma, ou meu primeiro artigo de fé.
(ROUSSEAU, 2017, p. 319)
Um segundo argumento defendido pelos materialistas se refere ao movimento ser
necessário à matéria. Entretanto, todo movimento precisa de uma direção ao qual se dirige
para se transportar no espaço e o Vigário questiona: ―em que sentido, portanto, a matéria se
movimenta necessariamente? Toda a matéria em corpo possui um movimento uniforme ou
cada átomo tem seu próprio movimento?‖ (ibidem, p. 320). Se o primeiro caso for verdade, o
mundo deve formar uma unidade indivisível, sólida, com uma única direção; se tomássemos a
segunda ideia como verdade, deveríamos assumir a fluidez, sendo impossível de verificar se o
átomo se movimenta para esquerda ou direita, para baixo ou para cima e, independente de
cada caso for o correto – ou todos os casos serem válidos – , teríamos infinitos problemas se
tentássemos defender tal posicionamento298.
298
O Vigário atesta a impossibilidade desse processo: ―Dar à matéria o movimento por abstração é pronunciar
palavras que não significam nada, e dar-lhe um movimento determinado é supor uma causa que o determine.
Quanto mais multiplico as forças particulares, mais causas novas tenho para explicar, sem nunca encontrar
nenhum agente em comum. Longe de poder imaginar alguma ordem no concurso fortuito dos elementos, sequer
posso imaginá-los em combate, e o caos do universo me é mais inconcebível que sua harmonia‖ (ROUSSEAU,
2017, p. 320).
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O olhar do Vigário para a formulação dos dois artigos de fé esteve inscrito dentro do
campo objetivo da física, estacionado em debates de ordem ontológica se posicionando frente
ao materialismo francês de seu século. O terceiro e último artigo de fé se dá na volta ao olhar
subjetivo, de maneira semelhante àquela do início da Profissão de Fé cujo foco foi estabelecer
seus pressupostos e método299.
299 O método apresentado pelo Vigário preliminarmente é demonstrado da seguinte maneira: ―Carregando,
portanto, em mim o amor à verdade como única filosofia e, como único método, uma regra fácil e simples que
me dispensa da sutileza fútil dos argumentos, retomo, com base nessa regra, o exame dos conhecimentos que me
interessam, decidido a admitir como evidentes todos aqueles a que, na sinceridade de meu coração, não puder
recusar meu consentimento, e como verdadeiros todos os que me parecerem ter uma ligação necessária com os
primeiros, e a deixar todos os demais na incerteza, sem rejeitá-los nem admiti-los e sem me atormentar a
esclarecê-los quando não conduzem a nada de útil na prática‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 314).
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300
A formulação do sujeito passivo, no âmbito do corpo, no momento de receber impressões do mundo, e ativo
no processo de julgar as ideias simples recebidas sensivelmente nos é fornecido preliminarmente no momento
que Rousseau faz a inversão do cogito cartesiano, no primeiro momento da Profissão de Fé. Entretanto, vemos a
importância argumentativa dessa premissa no momento que o autor irá sustentar o terceiro artigo de fé. Para uma
apresentação da concepção de sujeito em Rousseau, ver FERREIRA JUNIOR, P. Une philosophie pour moi:
Rousseau leitor de Descartes contra o materialismo. Contemplação, Marília, n. 15, v. 1, p. 199-220, 2017.
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recusar, resistir, consentir, impor limites às tentações, em poucas palavras, ―tenho sempre o
poder de querer, não a força de executar‖ (ROUSSEAU, p. 326).
A frase que inicia o Livro I do Emílio ―Tudo é bom ao sair das mãos do Autor das
coisas; tudo degenera entre as mãos do homem‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 41) se faz mais clara
depois que observamos o desenvolvimento dos três artigos de fé. O mal, portanto, só existe no
âmbito da moralidade, reflete apenas no homem e sua causa está nele mesmo. Rousseau nos
havia demonstrado anos antes em seu Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade entre os Homens (1756), ao expor o processo imaginário da saída do homem
em seu estado de natureza à condição social que a origem da desigualdade e,
consequentemente, a maldade tem como único responsável o homem.
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Esse homem imerso na natureza em igual condição frente aos seus semelhantes tinha
como condutor de sua ação a vontade que era atendida imediatamente em resposta aos
apetites. O sujeito natural possui uma unidade entre seu ser e sua ação, ou melhor, seu ser se
apresenta transparente, atendendo o pedido de sua natureza em todas ocasiões da vida. A
concepção do homem naturalmente bom se dá na conformidade entre a natureza e sua
atividade no mundo, no domínio da bondade e ordem física, uma vez que não há norma
estabelecida para interpretarmos seus gestos moralmente.
Duas são as virtudes naturais que o homem natural tem como guia para a conduta
imediata: o amor de si e a piedade. O primeiro faz com que o homem satisfaça seus apetites
naturais sem ultrapassá-los como, por exemplo, comer ou repousar para além daquilo que o
corpo pede; estes excessos só se encontram nas sociedades. O amor de si segue, portanto, a
máxima da bondade natural: ―Alcança teu bem com o menor mal possível‖ (ROUSSEAU,
2000, p. 79). Dito isso, a piedade é paixão que se direciona para o exterior e visualiza a
condição que outros estão, estendendo o amor de si para todos os seres levando a
―conservação mútua de toda a espécie‖ (ROUSSEAU, 2000, p. 78-9). Esta paixão faz com
que o homem, ao se deparar com alguma situação de dor e sofrimento de outro ser vivo, sinta
uma empatia e que o impulsione a socorrê-lo. Tal paixão esclarece o significado da máxima
anterior, entendendo que em condições naturais não há excessos, come na medida que sua
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fome o provoca e impossibilita casos de satisfação pela dor de outros. Vejamos, então, o
percurso resumido que o autor nos fornece acerca da condição natural do homem:
Concluamos que, errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem
domicílio, sem guerra e sem ligação, sem nenhuma necessidade de seus
semelhantes, bem como sem nenhum desejo de prejudica-los, talvez, sem
sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem selvagem, sujeito
a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os
sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas
verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de
ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do que a vaidade. [...]
Então não havia nem educação, nem progresso; as gerações se
multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto,
desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a
espécie já era velha e o homem continuava sempre criança (ROUSSEAU,
2000, p. 82).
Para que o ser humano deixasse a condição de viver isolado e passasse a viver em
conjunto, na dependência mútua de outros, foi preciso alguma ocorrência natural, como
inundações, terremotos ou escassez de recursos, que fez com que todos esses seres
independentes fossem forçados a habitar um espaço comum e, consequentemente, com o
contato mais recorrente, fossem obrigados a estabelecer relações. Num primeiro momento,
apenas caçavam em conjunto visando a atingir mais facilmente o seu objetivo. Conforme
muitos séculos e a aproximação mais frequente, surge a estrutura da família. Neste percurso,
tendo passado o tempo suficiente para que as famílias tenham se desenvolvido e aumentado
em números, possibilitou uma nova organização a partir da junção de algumas famílias,
originado as tribos e, com isso, surgiram costumes que regem o modo de vida de cada tribo
particular e, principalmente, constituem-se as primeiras línguas comuns. Na perspectiva de
Rousseau, a humanidade só se desenvolveu desta maneira porque foram forçados a viverem
juntos.
Jean-Jacques Rousseau, imaginando como seria essa vida, percebe que a desigualdade
que encontramos em sociedade não tem sua causa na natureza do homem. A desigualdade
física – altura, peso, cor de cabelo, olhos, entre outros – não legitima a desigualdade social,
uma vez que, em um ambiente com recursos para todos, cabe ao mais forte vencer uma
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disputa e o perdedor segue em uma outra direção, isto é, a variedade em questão física não
pode servir de justificativa. No âmbito moral e psicológico, o homem encontrava-se na
mesma condição e, desse modo, não também não é valido qualquer argumento que utilize
esses dois campos para legitimar a desigualdade acontecida em sociedade. Qual seria, então,
sua causa? Rousseau dedica-se em demonstrar como a desigualdade, não tendo origem
natural, tem sua causa na própria ação humana.
Rousseau julga esse estado vivido pelo homem como a ―época mais feliz e a mais
duradoura‖ da espécie, a qual teria sido ―a verdadeira juventude do mundo‖ (ROUSSEAU,
2000, p. 93), em que o homem teria passado a olhar o seu semelhante e querer ser olhado em
momentos em que o grupo realizava atividades em conjunto, como a dança, o canto, dentre
outras ocupações de lazer que a vida em tribo possibilitava. Tal momento iniciou o
distanciamento do homem de seus princípios naturais da piedade e amor de si, e a necessidade
de ser olhado ―foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício‖, mas,
não obstante, ―os homens começaram a apreciar-se mutuamente e se lhes formou no espírito a
ideia de consideração [...] saíram daí os primeiros deveres de civilidade‖ (ROUSSEAU, 2000,
p. 92). A duração deste estado intermediário entre a bondade natural do homem isolado e a
vida social, como diz o autor, deve ter tido uma grande duração, mas o que retirou desta
condição? Rousseau no certifica que:
comida e vice-versa. Cada qual com sua função em sua tribo, o homem se viu tendo uma
relação diferente com a terra, uma vez que, fixado um local para a produção de alimentos, e
―dando ao cultivador um direito sobre o produto da terra que ele trabalhou‖ fez ―por
determinar tal fato uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade‖
(ROUSSEAU, 2000, p. 96). Logo, a pretensão de tomar o espaço de cultivo para si e remover
da utilização de todos a terra, próprio da vida em estado de natureza, implicará na invenção
do que chamamos de sociedade civil: : ―o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o
primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas
suficientemente simples para acreditá-lo‖ (ROUSSEAU, 2000, p. 87).
Por sua vez, tendo tomado para si, verificamos que a propriedade privada é inventada
e, por consequência, inventou-se a sociedade. A propriedade privada, portanto, é a motivação
para que seja preciso firmar o contrato social. Pois, se antes havia um modo de vida em que
estaria presente um grande compartilhamento de alimentos, terra, dentre outros recursos
necessários à vida, quando retirado do uso comum a todos, certamente causaria problemas
para a convivência e, assim, a humanidade teria tido um período conflitos pela disputa
daquilo que foi usurpado do uso comum. Neste conflito a única garantia do usurpador seria a
sua força para manter a propriedade privada e, para cessar os conflitos e garantir a sua
manutenção, o contrato social foi instaurado e com ele a força física que era empregada para
proteger a propriedade privada é formalizada e assegurada pela força da lei. Dessa forma, a
passagem do estado de natureza para o estado civil tem como fundamentação a legalidade da
propriedade privada e, por consequência, toda convivência social é fundamentada pela
desigualdade instituída:
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Por meio da invenção da propriedade privada, o homem sofre uma alteração em sua
relação consigo e com o mundo: não age mais em conformidade seu ser, não há mais unidade
entre o que somos e o que fazemos, pois o amor de si deixa de ser condutor da ação imediata
e é trocado pelo amor-próprio, guia mediato entre os meios para obtenção de fins pessoais e,
com ele, todos os vícios humanos surgem, ou melhor, ―ser e parecer tornaram-se duas coisas
totalmente diferentes‖ (ROUSSEAU, 2000, p. 97). A condição de igualdade se perde e com
ela a possibilidade de agir segundo a natureza, o espaço em que haveria uma correspondência
entre natureza e vida humana se torna um espaço artificial que torna possível o luxo, o
excesso e os demais vícios que observamos na sociedade. O homem em sociedade, por sua
vez, estará em conflito ao sentir o amor de si e a piedade convocando sua ação e, não podendo
executar por inúmeras questões sociais, estas virtudes inatas serão sufocadas e o homem é
obrigado a conviver num mundo cujas condições de relação são estabelecidas pela injustiça e
desigualdade.
Vemos isso no próprio relato de Jean-Jacques nas Confissões, em que recorda como
foi sua primeira infância no início da obra. Com poucos anos de idade teve que morar com
seu tio, Ministro Lambercier, e era uma criança inocente, fazia suas travessuras como
qualquer outra, mas nunca com a intenção ou entendimento de que seu gesto afetaria alguém
negativamente. Pergunta-se o autor: ―e como me tornaria mau, se só tinha sob a vista
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―só comecei a viver em 9 de abril de 1756‖ (ROUSSEAU, 2005, p. 27). A partir desta
afirmação metafórica entendemos que desfrutar do sentimento de solidão, isolado do meio
social, serve como tentativa de reconciliação com sua essência.
que ao agir por virtude ser condenado por seus contemporâneos. Rousseau, então, identifica a
causa de seu problema:
O genebrino analisa as línguas da sua origem até seu ápice na construção de uma
gramática estruturante da fala e tal movimento deve ter demorado séculos. O grito – que são
vogais e grandes acentos, exclamações vivas e inarticuladas - foi a primeira maneira de
comunicação que tivemos, em que não se distinguiria a fala do canto: ―Cantar-se-ia em lugar
de falar, a maioria das palavras radicais seria feita de sons imitativos, de acentos das
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Com o desenvolvimento das luzes, os acentos vogais são trocados por novas
consoantes e as ideias assumem o lugar da expressão dos sentimentos, falando mais à razão
que ao coração, e isso se deve à invenção da escrita. O desenvolvimento da linguagem se
expressa em três diferentes maneiras de escrita: os selvagens, aqueles que pintavam objetos
em sua escrita, deveriam ter uma língua apaixonada com vogais acentuadas e inarticuladas,
com suas necessidades e a sociedade formadas pela paixão; os povos bárbaros já deveriam ter
firmado um pacto social e viviam sob leis comuns, aqui ―se pintam os sons e falam aos
olhos‖, isto é, ainda há uma prioridade da voz à escrita; por último, os povos civilizados
decompõem a voz e criam palavras para ter caracteres comuns entre línguas diferentes, em
outras palavras, possuem alfabeto, a escrita que até hoje perdura se segue pela análise e
construção de palavras, sendo um processo estritamente racionalizado, entendido pelo autor
como uma articulação: ―a escrita, que parece fixar a língua, é precisamente o que a altera;
ela não muda suas palavras mas seu gênio; ela substitui a exatidão à expressão‖
(ROUSSEAU, 2015, p. 115-6).
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Uma língua que possui somente articulações e vogais possui portanto apenas
a metade de sua riqueza: ela exprime ideias, é verdade, porém para exprimir
sentimentos, imagens, precisa ainda ter ritmo e sons, isto é, melodia; eis o
que possuía a língua grega e o que falta à nossa (ROUSSEAU, 2015, p. 146)
Dado este quadro geral do entendimento do percurso de uma língua, que iniciaria
melódica e onomatopaica expressando paixões e necessidades até uma língua escrita
organizada por um alfabeto e harmônica, temos um desenvolvimento da discussão sobre a
linguagem não a partir de uma problemática epistemológica, mas moral, visto que se conclui
com o progresso da escrita e a subordinação da linguagem a ela que:
me encantaria. Os escritos que elevam a alma e inflamam o coração merecem uma outra
palavra‖ (ROUSSEAU, 1969, p. 667).
Como aqui [em nosso mundo real], as paixões são, nele, o móvel de toda
ação, mas são ali mais vivas, mais ardentes, ou talvez apenas mais simples e
mais puras; e por isso mesmo assumem um caráter totalmente diferente.
Todos os primeiros movimentos da natureza são bons e corretos. Eles
tendem o mais diretamente possível à nossa conservação e nossa felicidade,
mas tão logo lhes falte força para prosseguir em sua direção original através
de tanta resistência, eles se deixam defletir por mil obstáculos que,
desviando-os do verdadeiro fim, fazem-nos tomar caminhos oblíquos em que
o homem esquece sua destinação original. O erro de julgamento, a força dos
preconceitos, ajudam muito a nos fazer tomar esse desvio, mas esse efeito
provém principalmente da fraqueza da alma que, seguindo frouxamente o
impulso da natureza, é desviada pelo choque com um obstáculo do mesmo
modo que uma bola toma a trajetória de ângulo de reflexão, ao passo que
aquele que segue mais vigorosamente seu rumo não se desvia, mas, como
uma bala de canhão, vence pela força o obstáculo, ou se amortece e tomba
ao ir de encontro a ele (ROUSSEAU, 1959, p. 668-9)
Aqui temos diferentes maneiras com que a paixão se encontra com os objetos do
mundo. De maneira reta, segue fielmente a natureza e a força o fará ultrapassar os obstáculos
atingindo seu fim de conservação e felicidade, ou irá tombar com o obstáculo e não seguirá
em frente. O caminho oblíquo será aquele em que a paixão irá se desviar do guia da natureza
ao se encontrar com os obstáculos e, com isso, se esquecerá de sua finalidade natural. Tanto o
fausto quanto a força pertencem a uma linguagem reta da natureza, seu dizer não escapa
moralmente daquilo que seria o guia bom e correto. Por outro lado, o movimento oblíquo da
linguagem escapa do guia que a natureza fornece ao sujeito e por isso lhe falta virtude.
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De modo geral a música ―não representará diretamente essas coisas, mas excitará
na alma os mesmos sentimentos que experimentamos ao vê-las‖ (ROUSSEAU, 2015, p. 164)
e para isso tem-se a importância da interpretação, como assinala Bento Prado Junior, que
tanto para o músico bem representar como o ouvinte ser tocado pela audição ambos devem ter
tido uma experiência daquilo que a representação imita.
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Rousseau, em uma de suas passagens das Confissões, afirma ter lido alguns de seus
livros em público, expondo-se de maneira transparente aos seus semelhantes e que, ao
finalizar sua leitura, percebeu ter gerado engodo na plateia. Bento Prado Junior comenta esse
caso, reforçando a dificuldade do uso da consciência em um ambiente tomado pelo amor-
próprio:
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editor, diz que ―se a força do sentimento não nos choca, sua verdade nos toca, e é assim que
o coração sabe falar ao coração‖ (ROUSSEAU, 1994, p. 28). Dada a situação de dois
personagens solitários, vemos Rousseau expor a possibilidade da transparência da linguagem,
e, assim se segue o que diz ser a linguagem do solitário.
Considerações Finais
A atitude tomada por Jean-Jacques Rousseau de isolar-se da sociedade serve como
resposta no âmbito físico, em questão de referenciar um espaço que distingue sociedade e
aquele em que não se estrutura das mesmas diretrizes que esta, ou melhor dizendo, que o
ambiente doméstico e campestre habitado pelo autor tem como função limitar dentro do que é
possível individualmente a localidade segura não fundamentada na desigualdade. Assim
como a natureza habitada pelo homem em estado de natureza, condição de possibilidade para
a liberdade e, por consequência, da igualdade, sua casa serve a esse propósito. Na
simplicidade viva ele, sua esposa Thérèse, seu cão e sua criada e estabelecia-se a relação de
igualdade, conforme o genebrino nos relata em suas Quatro Cartas:
Por sua vez, o sentimento de solidão não é permanente e pode ser abalado a qualquer
contato com os homens que escapam às regras da transparência. A exemplo disto temos o
caso do hóspede presente na casa de Rousseau enquanto o autor escrevia sua terceira carta no
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dia 26 de janeiro de 1762, dizendo que ―um corpo que sofre tira ao espírito sua liberdade, de
agora em diante, não estou mais sozinho, tenho um hóspede que me importuna, preciso
livrar-me dele para pertencer a mim mesmo‖ (ROUSSEAU, 2005, p. 31). Este hóspede é o
suficiente para que toda ordenação do espaço entrasse em colapso, tirando o equilíbrio de
quem antes estava ali, pois uma vez que um corpo entra em contato novamente com a doença,
todas as relações são tornadas oblíquas.
Como nos assegura o Vigário de Sabóia: ―Ó, sejamos primeiramente bons, e depois
seremos felizes‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 329). A felicidade para Jean-Jacques Rousseau se
refere diretamente à possibilidade realizar a ação segundo as noções de bondade, ou seja, sua
noção de felicidade está vincula-se com o campo da moral defendida em sua filosofia. O autor
lançou-se na busca pela felicidade em sua trajetória pessoal e diz a ter encontrado na
experiência da condição de solidão.
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Referências bibliográficas
CASSIRER, E. A questão Jean-Jacques Rousseau. Trad. Erlon José Paschoal. São Paulo:
Editora Unesp, 1999.
DESCARTES, R. Princípios de Filosofia. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 2006.
FERREIRA JUNIOR, P. Une philosophie pour moi: Rousseau leitor de Descartes contra o
materialismo. Contemplação, Marília, n. 15, v. 1, p. 199-220, 2017.
GAY, P. Introdução. Trad. Jézio Gutierre. In: CASSIRER, Ernst. A Questão Jean-Jacques
Rousseau. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
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Odilon Rodrigues
Resumo
A Teoria de Tropos fornece uma visão alternativa acerca da natureza das propriedades;
essas não seriam universais, mas particulares. Soluções para o problema dos universais
precisam responder ao problema do regresso ao infinito. Por postular metarrelações —
semelhança e copresença — a teoria de tropos também precisa lidar com essa crítica. Neste
artigo, discuto como o problema do regresso afeta essa teoria. Em geral, há na literatura várias
maneiras de analisar esse problema e algumas dessas são discutidas neste trabalho.
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1.Introdução.
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Existe o argumento do Terceiro Homem Restrito que é mais consistente que o Terceiro
Homem comum. Podemos descrever o restrito do seguinte modo: as Formas possuem algo em
comum, todas são Formas. Disso retiramos a Formalidade que está em todas as Formas.
Porém, a Formalidade também é uma Forma, que precisa ter uma nova forma comum com a
forma anterior, e assim ao infinito. Nesse argumento vemos a auto-predicação se consolida
em todas as análises relacionais segundo Armstrong (1974, p.199).
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Podemos definir universal como sendo aquilo em comum entre muitos, e esses muitos
seriam os particulares. Armstrong (1974, p.191) explana as classificações das análises
relacionais como possíveis soluções, sendo que essas investigam a circunstância em que a tem
a característica F, uma vez que a tem alguma relação, R, com alguma entidade Φ e podem ser
divididas em nominalista e realista. Sendo que, na visão nominalista o que existe são
particulares e na realista a existência de universais é aceita. Encontramos as seguintes
subdivisões nominalistas: de predicado, de conceito, de classe e de semelhança. Em seguida,
apresenta argumentos de regresso ao infinito contra essas soluções.
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Armstrong (1974, p. 197) nos mostra que devido a natureza própria do universal na
análise realista para solução ao problema dos universais não se aplica o argumento de
regresso de objetos. No entanto, como a participa da Forma F, e tratando participação como
situação, toda participação participa da Forma participação, novas situações de participação
aparecerão, efetivando assim o regresso de relação.
Como tipo não é um particular, é preciso que o token caia sob outro predicado ‗(‗F‘)‘,
porém esse predicado também é um tipo, mais uma vez é aplicado outro predicado, desta vez
‗(‗(‗F‘)‘)‘ e assim por diante. Para Armstrong (1974, p.193) seria melhor ter mantido o tipo
primitivo F do que recorrer a outros tipos. Sendo essa a regressão de objetos. Para
Armstrong, a análise relacional de predicado também sofre com regresso de relação, pois ao
analisarmos a caindo sob o predicado ‗F‘, encontramos um tipo de relação, que pode ser
expressa com o par ordenado <a , ‗F‘>. Porém, como já mencionado, tipo não é um particular,
desta forma é necessário que <a , ‗F‘> cai sob ‗caindo sob‘ e essa queda não terá fim.
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relação, que é expressa pelo par ordenado < a, classe de F >, sendo este membro da classe de
todos os pares ordenados, na qual, o primeiro elemento dos pares ordenados, é um objeto que
possui propriedade e o segundo uma classe de objetos que possui essa tal propriedade.
Armstrong questiona se essa relação é diferente a de primeira ordem, no caso, a um membro
da classe F, ou é igual. Se for igual, a análise permanece a mesma, exigindo sempre a
concepção de associação de classe. Porém, se a relação for diferente, temos um regresso ao
infinito que procura um tipo relação não analisada.
Armstrong (1974, p.196) mostra que temos um regresso de relação, pois a semelhança
proveniente de um objeto e o paradigma é uma relação, sendo que essa relação se assemelha
com um paradigma de semelhança, estabelecendo uma nova relação essa última relação
também se assemelha com outro paradigma de semelhança, gerando uma nova relação e
assim sucessivamente.
Universal pode ser entendido como algo que está presente em diversos objetos, esses
são conhecidos como instâncias do universal, sendo que o número de instâncias não
influencia o universal, isso com base Campbell (1991, p.12). Para Campbell (1991, pp. 28-29)
a expressão ‗o problema dos universais‘ poderia ser substituída por: ‗existe universais, esse
algo em comum entre muitos?‘ Para os teóricos de Tropos, a resposta é não, pois haveria
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apenas particulares. Maurin (2002, p.60) mostra que o problema dos universais pode ser
expresso pela linguagem através dos tipos de palavras. Termos singulares, designando os
particulares, os muitos, e predicado, como o comum entre muitos, o um. Podemos explanar o
problema dos universais em duas perguntas: (1) O que há nessa coisa em virtude de ser
vermelha? E (2) O que há nessas duas coisas em virtude do que ambas são vermelhas? É
habitual pensar que essas perguntas possuem respostas paralelas segundo Campbell (1991,
p.29). Respondendo a primeira questão, Campbell (1991, p.30) afirma ser a natureza do tropo.
Para questão 2, o autor apresenta a teoria de semelhança entre tropos como elucidação. Para
um filósofo de tropos o que há são dois tropos vermelhos, sendo que são do tipo vermelho
devido a semelhança entre eles, na qual essa é proveniente da natureza do tropo.
Campbell (1991, pp.38-39) tem semelhança como uma relação derivada, ela é
fundamentada na existência de uma identidade parcial entre dois particulares ou universais.
Descrevendo-a temos a e b são semelhantes pois possuem uma parte em comum.
Aparentemente encontramos uma economia na análise, porém essa redução vai contra o que a
teoria da semelhança postula, que é a não-identidade de partes de particulares semelhantes.
Maurin (2002, pp.92-93) trata a semelhança entre tropos como sendo exata, essa é
proveniente da natureza dos tropos. Sendo assim, o simples fato dos tropos existirem já
proporciona semelhança. A identidade dos tropos que se assemelham não depende da
semelhança. Desta forma, não há uma dependência existencial dos tropos com a semelhança
segundo Maurin (2002, pp.92-93).
existente na teoria da semelhança não gera uma ampliação ôntica. Desta forma, os itens d, e e
f são supervenientes a a, b e c, e os tropos de semelhança gerados a partir daqueles, são
supervenientes a eles e assim por diante. Maurin (2002, p. 110) trata a superveniência como
sendo uma pseudo-adição. Isso porque a definição de superveniência é bem complexa e
muitos filósofos, incluindo Campbell, concordam que tendo superveniência não existe uma
adição ôntica.
Maurin (2002, p.105-108) apresenta como forma de análise realista, o empate. Dessa é
proveniente uma nova entidade, chamada laço, esse seria o responsável por juntar a instância
ao universal. Porém esse laço é não-relacional e nem qualitativa, evitando assim um regresso.
O teórico de tropo não pode aceitar essa alternativa, pois consequentemente aceitaria a
existência do universal.
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Campbell (1991, pp.64-65) nos mostra que essa assimetria também aparece na teoria
de tropos. Utilizando uma relação de posição podemos estabelecer o seguinte exemplo: Crato
ao sul de Juazeiro do Norte. Definindo Crato como c1, ao sul de como S e Juazeiro do Norte
como c2 constituímos o complexo (c1, S, c2), sendo necessário uma ocorrência relacional p1
para estabelecer o elemento c1 o primeiro no complexo. Chegamos então a seguinte relação
(c1, p1(c1, S, c2)) de acordo com Campbell (1991, p.65) para provar a assimetria com (p1,
c1(c1, S, c2)) e consequentemente evitar um regresso, devemos utilizar parte da teoria de
níveis de Russell. Essa estabelece níveis para elementos em relações. Com isso, a ocorrência
relacional p1 é um nível acima de c1, podendo possuir c1 que é logicamente de nível inferior.
Como uma ocorrência de nível inferior não pode possuir uma de nível superior a assimetria
aparece evitando o regresso.
Simons (1994, p.558) nos apresenta a relação de copresença como forma de unir
particulares em um feixe. Essa relação seria análoga a de semelhança exata. Porém a relação
primitiva interna que estabelece a semelhança exata e evita um regresso, não encontramos na
relação de copresença. Nessa é possível a existência de tropos nesse feixe, que ao se
substituírem por outros tropos, demonstra que a relação de copresença não é proveniente da
natureza dos tropos, possibilitando assim regresso ao infinito vicioso.
Uma solução para esse regresso gerado pela característica da relação de copresença é
apresentada por Simons (1994, p.559) que é a relação fundação de Husserl. Nessa fraqueza da
fundação de um tropo C com relação a outro, torna a existência do tropo C dependente da
existência desse outro tropo de que ele é fundado. Outra interpretação explanada é que C
funda-se de maneira forte em outro tropo, se a fraca fundação de C com esse outro tropo e
esse não integra C. Husserl explica a relação de fundação devido a espécie do tropo, esse
necessita de um tropo de extensão.
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que os tropos que constituem um objeto, isso inclui o tropo de copresença, podem existir sem
a necessidade que o objeto exista. Porém a existência do objeto depende da existência desses
tropos. Estabelecendo uma assimetria na relação dos tropos constituintes e o objeto
constituído.
Com base em Maurin (2007, pp.19-21) devemos nos preocupar com a virtuosidade ou
viciosidade do regresso, essa distinção é possível através do sentido da dependência
existencial do regresso. Se a partir da etapa inicial do regresso as etapas seguintes dependem
desta para existir, o regresso é virtuoso, mas se a dependência é das etapas posteriores o
regresso é vicioso. Segundo Maurin (2007, pp.22-23) ao usarmos essa forma de analisar, no
regresso da semelhança, observamos que com tropos o regresso é virtuoso pois a etapa inicial,
no caso os tropos d e f que se assemelham, são necessários para a existência do respectivo
tropo de semelhança g.
Considerações Finais.
Observamos que nas diversas formas que os teóricos de tropos explanam uma análise
sobre o regresso, o que se destaca entre elas é a natureza peculiar dos tropos. Essa por ter uma
característica primitiva, faz com que os argumentos utilizados sejam consistentes e de difícil
refutação.
Além do que, ao constatarmos que o regresso não acontece nas análises, não há uma
adição ôntica. Ou caso exista o regresso, isso não é um problema, mas sim sua viciosidade,
nesse caso, podemos estabelecê-la com base no sentido em que a regressão segue ou da sua
dependência do objeto inicial do regresso.
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Referências bibliográficas
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Resumo
O presente texto tem por objetivo realizar uma análise sobre a educação e os elementos que a
estruturam. Theodor Adorno será o teórico central dessa pesquisa, pois através de seus
conceitos e visões será trilhado um caminho para se chegar a uma educação para a
emancipação e autonomia. Nesse sentido, entender os conceitos de Razão Instrumental e
Indústria Cultural é de suma importância para perceber os impactos causados na educação
contemporânea.
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1. Introdução:
Buscar compreender a importância de uma educação que conduz a autonomia para
a sociedade contemporânea é um fator que precisa urgentemente ser discutido. É nesse
sentido que o trabalho em questão vai abordar a educação e os mecanismos que a comandam.
Ao longo do texto será percebido que, em uma sociedade onde o progresso econômico é
colocado acima dos sujeitos, a educação que vigora é uma educação de manipulação e
aprisionamento dos corpos. O que há é um caminho vasto para a barbárie.
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caminho que precisa ser traçado é analisar o que conduz a essa educação de semiformação
para assim pensar em uma educação para a emancipação.
Assim, o pensador brasileiro Paulo Freire será abordado na medida em que vai
pensar também na educação como um fator capaz de oferecer a emancipação e gerar
transformações na sociedade. A educação conduzirá o sujeito para a ação, este precisa ser
engajado politicamente e socialmente de maneira consciente, pois dessa forma poderá se
construir e transformar a sua realidade.
A teoria crítica vai buscar compreender o papel que a racionalidade passa a ocupar
na sociedade, enfatizando que, com o advento do Iluminismo, o que passa a vigorar é uma
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razão instrumental e controladora que possui como objetivo padronizar os sujeitos. Sendo
assim, para alguns teóricos pertencentes à Escola de Frankfurt, o Iluminismo trouxe consigo
um esclarecimento que é totalitário e dominador. Com isso, tornar os sujeitos prisioneiros de
uma razão técnica e instrumental foi um dos males que essa razão provocou à humanidade.
Um dos questionamentos que surgem ao estudar sobre a teoria crítica é: até que
ponto a tecnologia pode ser benéfica para a humanidade? Pois com a tecnologia surgem
possibilidades e caminhos para combater diversos impasses que circundam o núcleo social,
como, por exemplo, a fome, mas o contrário disso acontece. O que deveria ―salvar‖, gerar
sujeitos autônomos e livres fez completamente o oposto. Existe nesse contexto uma sociedade
que é feita de marionete pela força dominante. A razão que visava ao progresso social e à
emancipação dos indivíduos levou a uma maior dominação em virtude do desenvolvimento
das indústrias.
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desenvolveu e desenvolve na sociedade, vão questionar por que a razão que deveria tornar
todos iguais trilhou outro caminho.
Conhecer é ter consciência de algo para um determinado fim, mas quem diria que
o propósito do conhecimento da razão moderna fosse enclausurar e domesticar os sujeitos. Há
uma contradição no que se refere ao conhecimento no mundo hoje, pois para onde o
desenvolvimento da humanidade a levou? O objetivo primeiro era fazer uso da razão para
tornar-se um sujeito ―iluminado‖, consciente e conhecedor dos fenômenos naturais e sociais.
No entanto, é possível perceber que o pretendido teve um efeito completamente oposto. A
tecnologia deveria ser empregada como um fator essencial para a melhoria da humanidade,
mas o percebido é totalmente contrário. Ainda na introdução de Educação e emancipação
escrita por Wolfgang Leo Mar:
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Fica claro, nesse sentido, que a razão advinda do Iluminismo trouxe consigo
aspectos totalitários e dominantes e o objetivo central foi articular meios para domesticar e
padronizar os sujeitos. Esta é uma questão clara e que fica explícita quando Adorno expõe o
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conceito de Indústria cultural, relatando sobre os mecanismos usados pela classe dominante
para manter-se no poder. Francis Bacon (1561 – 1626) alega que conhecimento é poder e este
poder servirá para dominar os fenômenos naturais para melhor benefício da humanidade.
Entretanto, este conhecimento foi utilizado para dominar não só a natureza, mas todos os
indivíduos.
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qual o ―senhor‖ domina os proletariados em seu lazer, tornando-os marionetes para estar a seu
serviço, não questionando, não revidando e aceitando tudo que é imposto e propagado.
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É válido analisar que inúmeras são as dificuldades para que haja uma formação
educativa crítica. A autonomia e a subjetividade são completamente sufocadas pelas forças de
produção do processo capitalista e isso acontece de forma estrutural. Dessa forma, contrário a
uma formação (Bildung)301, há uma semiformação dos sujeitos. Encontra-se impregnado uma
―formação‖ que na verdade visa a deformar a subjetividade, uma vez que a formação está em
função da produção e reprodução da ideologia dominante.
301
Palavra alemã que significa formação completa ou integral do indivíduo. Essa palavra passa a obter muita
relevância no contexto da Modernidade.
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Quando a educação é controladora o sujeito se torna apenas mais uma peça para
que o todo possa funcionar corretamente e para que a classe dominante se mantenha no poder.
Nesse sentido, houve a instalação, desde o Iluminismo, de uma razão que não tinha como
objetivo ―iluminar‖ os sujeitos. Muito pelo contrário, a razão instrumental não proporciona
uma reflexão objetiva sobre os fins do conhecimento, a ciência é um instrumento, cujo
propósito é dominar. Eles tiram o direito de ser, de pensar e de agir. Instaura-se uma
massificação.
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Eis aí uma das grandes contradições advindas do Iluminismo: como é possível ter
ocorrido um efeito completamente reverso, por que a razão, que deveria emancipar, aprisiona?
Isso acontecia por falta de
Na educação usada como mecanismo para a manipulação das massas, não existia uma
relação entre esclarecimento e liberdade, razão e emancipação, ambas caminhavam em
direções opostas. Segundo Wolfgang, na introdução da obra Educação e emancipação, ―A
razão também seria caracterizada em termos sociais objetivos, e não teoricamente, no plano
da consciência ou do esclarecimento, ou seja, do conhecimento por oposição à ignorância
etc.‖(ADORNO, 1995. p. 18).
autonomia e reflexão crítica) foi o seu objetivo central. A classe dominante obteve êxito em
seu projeto de coisificar e desumanizar a humanidade. Dessa forma, o progresso está atrelado
ao desaparecimento da autonomia do sujeito.
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(HOOKS, 2017, p. 12). Percebe-se que esse tipo de educação que visa somente o perpassar de
informações e de conhecimentos prontos e acabados não proporciona uma visão crítica e
reflexiva da realidade, as consciências são ―roubadas‖ e os sujeitos são guiados para a
reprodução de ações e comportamentos.
A escola precisa ser um local atrativo e chamativo para os educandos, pois é nela
que ocorre o processo de ensino-aprendizagem,
Para haver nas escolas uma educação que tenha como intuito a formação, é necessária
uma formação para autonomia. Nesse sentido, cabe ao educador instigar na sala de aula a
participação de cada estudante, mostrando para eles que suas histórias e vivências são cruciais
para o processo de ensino-aprendizagem na obtenção de conhecimento.
Nesse sentido, é necessário, em primeiro lugar quando se fala em educação para
formação e emancipação dos sujeitos, entender que o aluno precisa participar ativamente do
processo de ensino-aprendizagem. Com a participação dos educandos há possibilidades do
surgimento de novos conhecimentos. Para isso o professor não pode ver o (a) estudante
somente como um ser vazio que não carrega bagagens e conhecimentos consigo.
É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes saberes indispensáveis, que o
formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora,
assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença
definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua produção ou a sua construção. (FREIRE, 1996,
p.12)
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Uma educação que tenha como principal objetivo criar sujeitos autônomos e
críticos é o que precisa prevalecer na sociedade contemporânea, a razão instrumental não
pode mais predominar sobre a capacidade de pensar por si só. Precisa-se pensar em uma outra
ideia de educação. A transformação no âmbito educacional deve advir da estrutura, a mesma
precisa ser reorganizada para que assim deixe de estar somente a serviço de um sistema
dominante com a finalidade de gerar produção e reprodução de mercadorias. A educação deve
ser entendida sob uma perspectiva cultural que tenha como objetivo a formação completa de
cada indivíduo.
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na contemporaneidade alunos cada vez mais alheios a questões sociais e políticas, mas isso
ocorre porque os mesmos entendem o núcleo escolar como um lugar que os aprisiona e que os
obriga a agir de uma determinada maneira e a seguir o modelo que já está posto. A escola
precisa manter um diálogo com a sociedade e com os alunos, a educação precisa trabalhar
para possibilitar a formação completa do cidadão. Em um de seus trabalhos, Juarez Dayrell302
redigi:
A escola se torna um lugar apático para os alunos, ela é vista como uma obrigação
que é preciso suportar todos os dias, um lugar que não oferece nada de atrativo. Este é um
problema desenvolvido desde o primeiro contato que o aluno tem com a escola, ele passa a
perceber e com o passar do tempo a enxergar o espaço educativo como um lugar que não o vê,
a escola se torna indiferente ao aluno. Este é mais um exemplo a ser percebido de que a razão
instrumental e a Indústria Cultural estão tão presentes quanto no momento em que Adorno fez
suas críticas à sociedade da qual fez parte.
Afinal, para onde a educação pretende conduzir os sujeitos? Para Adorno o que é
urgente questionar é, para onde a educação deve conduzir, ―Quando sugeri que nós
conversássemos sobre: ‗Formação — para quê?‘ ou ‗Educação — para quê?‘ a intenção não
era discutir para que fins a educação ainda seria necessária, mas sim: para onde a educação
deve conduzir?‖ (ADORNO, 1995, p. 139). Isso é o que precisa ser repensado atualmente,
teoricamente a educação deveria formar o sujeito em seu desenvolvimento pessoal e para a
qualificação no mercado de trabalho, mas percebe-se que a relação entre teoria e prática
andam por caminhos opostos, pois o que prevalece é apenas o último: cada sujeito é formado
para ser apenas mais uma peça para a grande máquina chamada Estado.
302
Pensador contemporâneo que desenvolve trabalhos acerca da cultura, educação, movimentos sociais e
juventude.
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A educação deve formar sujeitos críticos e ela deve sempre prezar pelo
aprimoramento da consciência de sujeitos individuais. Segundo Adorno,
A educação é um dos recursos principais para possibilitar uma sociedade mais igual,
com menos injustiça social e, principalmente, ser uma forma de vencer e eliminar a barbárie,
pois ela precisa ser superada.
Despertar e fazer viver um sujeito crítico é o essencial, mas como fazer para
despertar a criticidade? O papel central para essa tarefa é da educação. Ela, através de suas
práticas pedagógicas, deverá formar um indivíduo de ação, pois é somente com a ação que se
obtém a transformação do meio social. A escola formará o sujeito para a sociedade, um sujeito
engajado e consciente. ―O engajamento é também um indicador de mudanças políticas e
culturais na sociedade‖. (GOHN, 2019, p.36). As massas precisam ser conscientizadas, uma
vez que só é livre o sujeito que é engajado e que participa das decisões do núcleo social de
forma consciente. No entanto, ao engajar-se precisam ser críticos, pois se apenas fizerem
parte de um coletivo sem nenhuma criticidade a barbárie ainda estará presente e cada vez com
mais força.
A passividade faz a barbárie tornar-se mais forte, para Adorno ―Ao contrário:
esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente, apenas uma forma da
barbárie, na medida em que está pronta para contemplar o horror e se omitir no momento
decisivo.‖ (ADORNO, 1995, p. 163). O sujeito que não questiona, que não se integra e que
está de fora de toda decisão da sociedade é apenas um objeto que é manuseado e domesticado
por uma força maior. Nesse sentido, a ação deve constituir e fazer parte do ser de cada sujeito,
eles precisam ser educados para agir e transformar. Através da ação e do engajamento as
pessoas são educadas para reagir ao que é imposto.
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Educar para emancipar, chega de uma educação que ―educa‖ somente visando o
progresso, o necessário é:
Toda a estrutura social precisa ser modificada para que de fato seja possível pensar em
uma educação para a emancipação, pois, da forma que se encontra, se a mudança não
acontecer ―da raiz‖ ou melhor, se a raiz do problema não for cortadam o que continuará
existindo é uma educação controladora e tendenciosa.
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Considerações finais.
Fica claro, portanto, que, para romper com o processo educativo que tem por
finalidade apenas domesticar e padronizar os sujeitos, é necessário antes de tudo mudar a base
da educação que vigora hoje, as salas de aula, os projetos políticos e pedagógicos, a forma de
relação existente entre professor e aluno e a própria forma que a escola aprisiona os sujeitos,
pois ela os prepara para somente reproduzir e não questionar. Dessa maneira, é imprescindível
que a escola seja um espaço atrativo, um ambiente onde os alunos queiram estar, ―O primeiro
paradigma que moldou a minha pedagogia foi a ideia de que a sala de aula deve ser um
lugar de entusiasmo, nunca de tédio.‖ (HOOKS, 2017, p.16). Mudar a forma do aluno
perceber a escola certamente mudará e facilitará o seu aprendizado.
Além disso, para que haja de fato um processo de formação para a emancipação,
os indivíduos precisam não serem mais vistos como passivos e conformados. É preciso antes
de tudo proporcionar uma formação para engajar os sujeitos, pois, engajados e conscientes de
suas lutas e desafios, com certeza serão agentes de transformações das mazelas que existem
na sociedade, como a desigualdade, as injustiças e a falta de assistências para as camadas
menos favorecidas. A educação pode mudar o quadro de uma vida, de uma família e de uma
sociedade inteira.
Para que haja uma educação emancipadora, os alunos precisam ser olhados em
sua individualidade. Perceber que uma sala de aula é um local que abriga diversas
subjetividades e reconhecer a importância de cada um para o processo de formação é central
para eliminar o quadro de semiformação.
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Para transformar, o sistema educacional precisa enxergar no aluno não apenas mais
uma mão para o mercado de trabalho e sim como mais uma mente capaz de trazer melhorias
para a realidade à sua volta. Lutar por uma sociedade mais igual e mais justa requer uma
formação. Formar para emancipar e para transformar. A educação ainda tem chances de
mudar, se bem ofertada ela criará sujeitos livres e capazes de ir em busca de melhores
oportunidades, de mais justiça e de mais igualdade.
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Referências bibliográficas
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24, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São
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1967.
GOHN, Maria da Glória. Participação política e democracia no Brasil: da década de 1960
aos impactos de pós-junho de 2013. Petrópolis (RJ): Vozes, 2019.
GOMES, Luiz Roberto. Teoria crítica e educação política em Theodor Adorno. São Paulo
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HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Tradução de
Marcelo Brandão Cipolla. 2.ed. São paulo (SP): WFM Martins Fontes, 2017.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 2.ed. São Paulo (SP): Martins
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KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é esclarecimento? In: Antologia de textos
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SGRIILI, Haryanna Pereira. A formação para autonomia: contribuições da teoria crítica da
escola de Frankfurt. São Paulo (SP): Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p.
307-318, 2008.
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