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Revista Aproximação · ISSN: 2175-7534 ·VOLUME 16 Edição 2020.

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Revista Aproximação · ISSN: 2175-7534 ·VOLUME 16 Edição 2020.1
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Revista Aproximação

(Revista eletrônica dos estudantes de graduação em Filosofia da UFRJ)

Volume 16 - Edição 2020.1 – Março de 2021

Capa
Gustavo Amaral
Composta na tipografia Cooper Hewiit, sob licença SIL Open Font License v1.10
Imagem da capa: Single Miniature Excised from Boccaccio's Des Cleres et nobles femmes:
Queen Medusa and Her Court

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A Revista Aproximação é uma publicação acadêmica eletrônica especializada em
Filosofia. Seu objetivo principal é veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos
daUFRJ. Estamosabertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o
da pesquisa filosófica.

© Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Expediente – Comissão Editorial

Daniel Moura Justo


Daniel Nascimento de Almeida
Fellipe da Costa
Gutemberg Rufino
Ícaro Cunha
João Victor Rodrigues
Karol Noberto Guimarães
Kevelyn Secundino
Larissa Medeiros
Luany Beatriz André de Oliveira
Milena Monteiro Rodrigues
Pedro Ferreira Pedalini Pires
Tomás Sertã

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Editora-chefe
Milena Monteiro Rodrigues

Conselho Editorial

Alexandre Costa, Alice Haddad, Andrea Cachel, Antonio Rufino, Antonio Saturnino Braga,
Carolina de Melo Bomfim Araújo, Carlos Eduardo Oliveira, Celso Martins Azar Filho, Cesar
Battisti, Cláudia Drucker, Clovis Brondani, Eduardo Brandão, Elizabeth Dias, Ethel Menezes
Rocha, Fernando José de Santoro Moreira, Flavio Williges,
Franklin Trein, Gilvan Fogel, Guilherme Castelo Branco, Helio Alexandre, José Claudio
Matos, Léo Peruzzo, Lethicia Ouro, Luiz Maurício Menezes, Marco Antonio Caron Ruffino,
Marcus Reis Pinheiro, Maria Clara Dias, Mariluze Ferreira, Mário Antônio de Lacerda
Guerreiro, Mário Carvalho, Marisa Muguruza, Miguel Attie,
Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Pedro
Pricladnitzky, Rafael Haddock Lobo, Rafael Mello Barbosa, Raquel Krempel, Raul
Landim Filho, Ricardo Jardim Andrade, Rodrigo Guerizoli, Rosalie Pereira, Ulysses
Pinheiro, Valdetonio Pereira de Alencar, Vera Cristina Bueno, Vilmar Debona, Wilson
John Pessoa Mendonça.
Contato: revistaaproximacao@gmail.com

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SUMÁRIO

Editorial...........................................................................................................06

A existência de conceitos e sua hipotetização no perspectivismo.......................................10


Leonardo Barros

Paidéia e legitimidade política: a construção do poder em Platão....................................28


Rômulo Brito

O problema do agenciamento discursivo dos sujeitos negros.............................................50


Fellipe da Costa

Considerações filosóficas acerca de Yi Jing..........................................................................64


Fabiano Belloube

O problema do mal e da presciência divina no de libero arbítrio de Santo Agostinho....78


Gabriel Lins

Dignidade humana e marxismo como subversão ético-jurídica a partir de Kant, Lukács


em Pachukanis.........................................................................................................................95
André Dock

O exercício de poder na mídia e sua influência na naturalização do encarceramento


feminino.................................................................................................................................121
Amanda Laporte

A filosofia na boca do povo?: reflexões sobre a popularização da filosofia no


Brasil......................................................................................................................................139
Denizard Custódio

O conceito humiano de causalidade: análise da estrutura argumentativa da seção vii da


investigação............................................................................................................................171
Larissa Broedel

A ética da crença na era das fake news...............................................................................190


Darlan Campos e Matheus Brum

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Genealogia filosófica ou o filosófo como médico da civilização: uma reflexão acerca das
relações de poder em Foucault e Rancière sob a luz da genealogia de Nietzsche...........207
Carlos Rocha

A crise do indivíduo na obra de Franz Kafka: as possibilidades interpretativas de


Adorno e Lukács...................................................................................................................232
Gabriel Duccini

A filosofia moral de David Hume: uma resposta ao egoísmo moral pela perspectiva da
natureza humana..................................................................................................................256
Daniel Nascimento

Solidão como condição para a ética e linguagem na filosofia de Jean-Jacques


Rosseau....................................................................................................................................
286
Caique Nakayama Guimarães

Teoria de tropos e o problema do regresso........................................................................312


Odilon Rodrigues

Um formar que deforma: caminhos e possibilidades para uma educação


emancipatória........................................................................................................................324
Gilmara Damasceno

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EDITORIAL

É com prazer que a Comissão Editorial da Revista Aproximação declara publicada


sua edição de 2020.1. A edição presente apresenta variados temas que estão em pauta e em
alta no cenário de discussão filosófica atual, a Comissão editorial, buscando cada vez mais
uma harmonia entre os temas com objetivo de formalizar uma justa publicação, os oferece
esta edição. Em ordem de recebimento e por aprovação, declaramos publicados os artigos de
numeração 003, 004, 005, 006, 007, 011, 012, 015, 016, 017, 019, 021, 022, 023, 024 e 026.
Em primeiro lugar, temos artigo 003 de autoria de Leonardo de Assis, nele, o articulista fala
da existência de conceitos e de sua hipotetização no perspectivismo, ele busca defender a
possibilidade desse chegar em conceitos unívocos. Para tal, o autor aborda a leitura que
Nietzsche faz da realidade, mostrando que ele, ao falar da pluralidade de sentidos, não tratava
de conceitos, mas antes, de hipóteses. Voltando para a Atenas do período Clássico, temos o
artigo 004 de autoria de Rômulo Brito, discorrendo sobre a construção de poder em A
República de Platão. Nele, o autor busca considerar a pretensão de reformulação de Platão no
âmbito político- educacional, analisando como o filosofo estabelece os pressupostos de uma
nova discursividade em sua contenda em relação à poesia.

No artigo 005, o articulista Fellipe da Costa busca expressar que é a partir da obra de
Abdias do Nascimento: ―O Quilombismo‖ que surge, como pensamento crítico fundamental
para reivindicar filosoficamente, o agenciamento discursivo performático e altamente
‗violento‘ dos sujeitos negros, Fellipe procura mostrar como esse agenciamento está
estruturado no âmbito dos valores civilizacionais filosóficos afro-brasileiros, em meio a uma
disputa ideológica discursiva normativa. Já no artigo 006 de Fabiano Belloube, temos as
considerações filosóficas acerca de Yi Jing, o artigo tem por objetivo responder quais são os
pressupostos metafísicos contidos no tratado Yi Jing, tratado esse que exerceu influência

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sobre algumas das principais escolas de pensamento da China clássica, como o


confucionismo e o taoísmo.
Em 007, Gabriel Lins e Oliveira Batista, por seu turno, em seu artigo intitulado O
Problema do Mal e da Presciência Divina em De Libero Arbitrio de Santo Agostinho,
apresenta uma breve discussão acerca do livre-arbítrio e da presciência divina pela
perspectiva de Santo Agostinho no livro De Libero Arbitrio. Em outros termos, é possível
tomar decisões pela própria vontade? Deus possui de tudo o que está por vir e certamente
acontecerá? Seguramente, por uma perspectiva filosófica, o autor aborda essas questões de
alguma maneira ao longo do artigo aqui presente. Já em 011, o graduando André Dock
demonstra os limites filosóficos e históricos do neoconstitucionalismo. O articulista contrapõe
a ética kantiana à ética lukacsiana, busca analisar o ―ponto de vista da individualidade
isolada‖ e examina a crítica pachukaniana ao Direito burguês.
Ademais, em 012, artindo das questões levantadas por Michel Foucault e Angela
Davis sobre Poder e encarceramento, a articulista Amanda Laporte propõe uma reflexão sobre
as reais condições do encarceramento feminino. Ela evidencia filosoficamente para o leitor,
que há no âmbito estético, mediado pela indústria cultural, certa distorção da realidade e uma
percepção estereotipada e superficial dos reais problemas que dizem respeito aos
acometimentos à população feminina nas cadeias – especialmente no Brasil, país em que o
contingente carcerário é expressivo. No artigo de numeração 015, procurando entender as
razões pelas quais a Filosofia se populariza, o articulista Denizard Custódio se empenha em
pesquisar acerca das noções do que seria popularizar um conhecimento – em seus contextos
históricos na História da Filosofia, na Antiguidade clássica e contemporaneamente – indo ao
encontro do método dialógico desenvolvido por Paulo Freire e das reivindicações pós-
colonialistas como a Filosofia Popular Brasileira.
Em 016, o autor do artigo ―O conceito humiano de causalidade: algumas hipóteses‖
tem como finalidade demonstrar pontos cruciais no que tange à noção de causalidade
contidos na teoria do filósofo David Hume; especialmente nas obras ―Tratado da natureza
humana‖ e ―Investigação sobre o Entendimento Humano‖. Para fazê-lo, leva em conta

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conceitos cruciais para sua compreensão. No artigo 017, ―Ética da crença na era das fake
News‖, os autores abordam, possivelmente, um dos mais relevantes temas da atual esfera
política, a saber: o problema imposto pelas "fake news". Com uma análise não só política,
mas também epistemológica e ética com a ajuda fundamental da clássica controvérsia entre os
filósofos W.K. Clifford e William James e de textos contemporâneos de Quassim Cassam, os
autores constroem um artigo essencial para o conturbado momento político dos últimos anos

Em 019, Carlos Rocha apresenta que o conceito de poder na filosofia contemporânea


sempre foi um tema de amplo interesse, capaz de despertar inúmeras interpretações para o
mesmo assunto. No artigo, o autor trabalhou, justamente, com esse conceito tão amplo e
tendo como objetivo investigar a relação entre dois grandes pensadores, a saber: Michel
Foucault e Jaques Rancière. Mais ainda, no cerne do paralelo ainda reside a indispensável
filosofia de Nietzsche, que é usada como fundo teórico para explicitar o paralelo entre os dois
autores citados. No artigo 021, Gabriel Duccini analisa a obra de Franz Kafka sob a
perspectiva de Theodoro Adorno. O graduando, ao mesmo tempo que utiliza a visão
adorniana sobre o trabalho de Kafka, também a contrapõe através da abordagem de Gyorgy
Lukács.‘
O artigo de numeração 022, intitulado “A filosofia moral de David Hume: uma
resposta ao egoísmo moral pela perspectiva da natureza humana.‖ tem por finalidade
apresentar, ainda que brevemente, argumentos de David Hume contra a concepção egoísta na
filosofia moral. Para fazê-lo, é explanado o contexto da filosofia moral britânica dos séculos
XVII e XVIII. Hume opõe-se a tese segundo a qual o interesse próprio é a fonte de todas as
boas ações e que a benevolência não passa de mera hipocrisia, defendida pelos adeptos do
egoísmo moral.
Já Caique Nakayama Guimarães, em 023, no seu artigo intitulado A Condição do
Solitário e sua Relação com a Moral e a Linguagem na Filosofia de Jean-Jacques Rousseau,
analisa problemáticas do âmbito moral com aquelas do âmbito da linguagem tendo como base
o lampejo para compreender a condição solitária vivida por Rousseau e a estrutura filosófica
de seu pensamento. Desse modo, a solidão é tomada como um conceito filosófico que
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conversa com os dois campos ressaltados anteriormente, isto é, a solidão é analisada


paralelamente às contendas que marcam o campo da moral e o campo da linguagem.
No artigo de numeração 024, Odilon Rodrigues nos oferece a teoria de tropos e seu
problema do regresso, seu artigo consiste em apresentar algumas situações nas o regresso é
consequência da investigação sobre a existência dos universais da perspectiva da teoria de
tropos. Dado esse panorama, seu estudo busca investigar se o regresso é um problema,
acontece que ao examinar isso sabemos de sua viciosidade. Ademais, visto o real problema, o
objetivo é exibir que formas o teórico de tropos pode investigá-lo. Já no artigo 026, de autoria
de Gilmara Damasceno , o objetivo é realizar uma análise a respeito da educação e os
elementos que a estruturam. A articulista coloca Theodor Adorno como o teórico central de
seu trabalho, visando construir um caminho para alcançar uma educação emancipatória.

A Comissão Editorial da Revista Aproximação deseja uma leitura prazerosa e agregadora


aos seus leitores!
Cordialmente,
Comissão Editorial da Revista Aproximação.

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A EXISTÊNCIA DE CONCEITOS E A SUA HIPOTETIZAÇÃO NO


PERSPECTIVISMO

Leonardo Barros de Assis


Resumo

Ao tratar da leitura da realidade, Nietzsche acredita haver um problema que é defendido por
diversos filósofos: a univocidade dos conceitos. Busco defender aqui a possibilidade de
chegar-se em conceitos unívocos. Também pretendo mostrar que Nietzsche, ao falar da
pluralidade de sentidos, não tratava de conceitos, mas de hipóteses.
Palavras-Chave: Nietzsche. Operações. Kant. Conceitos.

Abstract
When treating the reality understandment, Nietzsche believes in the existence of a problem
that is protected by many philosophers: the univocity of concepts. Here I try to defend the
possibility to find the univocity of concepts. Also I intend to show that Nietzsche, when
talking about the sense plurality, was not treating concepts, but hypothesis.
Keywords: Nietzsche. Operations. Kant. Concepts

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1. Nietzsche e o perspectivismo

Para um melhor entendimento do problema apresentado por Nietzsche, é importante


analisar-se alguns dos componentes do perspectivismo. Pode-se notar, como mencionado no
Resumo (1), que a noção de conceito, para ele, é algo problemático ―Não existe nenhuma
coisa em si, nenhum conhecimento absoluto. O caráter perspectivista, ilusório, falsificador é
intrínseco à existência.‖ (Volonté de puissance, II, III § 591 apud OS ABISMOS DA
SUSPEITA: NIETZSCHE E O PERSPECTIVISMO (2004) - PIMENTA - Pág. 216). Além
disso, ele crê que tudo que existe é incapaz de chegar nos conceitos de fato, apenas interpretá-
los segundo a sua perspectiva:

Até onde vai o caráter perspectivo da existência? Possui ela de fato outro
caráter? Uma existência sem explicação, sem ―razão‖, não se torna
precisamente uma ―irrisão‖? E por outro lado, não é qualquer existência
essencialmente ―a interpretar‖? É isso que não podem decidir, como seria
necessário, as análises mais zelosas do intelecto, as mais pacientes e
minuciosas introspecções: porque o espírito do homem, no decurso dessas
análises, não pode deixar de se ver conforme a sua própria perspectiva e só
de acordo com ela. Só podemos ver com nossos olhos. (Gaia ciência, § 374
apud OS ABISMOS DA SUSPEITA: NIETZSCHE E O
PERSPECTIVISMO (2004) - PIMENTA - Pág. 216)
Numa tentativa de solução desse problema Nietzsche propõe o que chamamos
anteriormente de perspectivismo. Uma das ideias centrais da sua tese são as interpretações, as
quais são, diferente do usual, não o entender de um objeto, mas o dar sentido a ele. O sentido
que damos provém do que ele chama de vontade de poder. A vontade de poder é presente em
todos os seres, sejam eles vivos ou não, e é guiada segundo os nossos instinto e desejos.
Portanto, ela mostra-se como a responsável por criar as disputas para a imposição de uma
perspectiva e, assim, de um conhecimento único:

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Até que a palavra "conhecimento" tenha sentido, o mundo é cognoscível;


mas este é interpretável de modos diversos, e não existe nele um sentido,
mas inumeráveis sentidos. "Perspectivismo". São os nossos desejos que
interpretam o mundo: os nossos instintos com seus pros e contras. Cada
instinto é uma espécie de sede de domínio, cada um deles possui a sua
perspectiva, que sempre deseja impor como norma a todos os outros
instintos (Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315 apud
PERSPECTIVISMO GNOSEOLÓGICO E PERSPECTIVISMO MORAL
(2014) - GORI; STELLINO).
As interpretações são encarregadas de gerar um ―conceito‖1, mutável (pois vão se modificar
segundo a pessoa que analisar a interpretação), o qual é definido segundo a vontade de poder
da pessoa que o interpreta. Portanto, a forma que a pessoa X interpreta o objeto ―cadeira‖ vai
ser diferente da pessoa Y interpretando o mesmo objeto.

Todavia, antes de compreendermos com mais clareza as interpretações, precisamos


conhecer uma das formas de se entender o que é a perspectiva em Nietzsche. Para o que busco
explicar podemos entender a noção de perspectiva como sendo uma forma individual (ou
talvez grupal) de compreensão do mundo gerada segundo a vivência. De forma semelhante,
Silvia Pimenta afirma ―A noção de perspectiva sugere ainda uma transformação do objeto em
função da posição do sujeito.‖ (OS ABISMOS DA SUSPEITA: NIETZSCHE E O
PERSPECTIVISMO (2004) - PIMENTA - Pág. 214). A perspectiva é, portanto, anterior à
interpretação e necessária para que ela (interpretação) seja possível. Dessa forma, a
perspectiva vai ser determinante para a nossa interpretação, pois o nosso entendimento de um
objeto vai ser alterado tendo em vista a nossa perspectiva.

Portanto, para o perspectivismo, a ―realidade‖2 é compreendida segundo uma


perspectiva que será ponto de referência para se interpretar algo e que, consequentemente,
criará uma interpretação, chegando-se, então, em um conceito individual3. Assim sendo, da
nossa perspectiva provém tudo que conhecemos e a maneira que interpretamos ―Uma

1 Utilizo da palavra conceito para que seja mais clara a proposta, porém, deve-se ter em mente que não há
conceitos no perspectivismo.
2 Novamente, a noção de realidade é utilizada para clarificar. Nietzsche não compreende que há uma realidade
verdadeira que apresenta as coisas em si.
3 Entendo conceito individual, nesse caso, como um conceito existente apenas para o indivíduo.
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perspectiva é não apenas o que limita nosso campo de visão, mas sobretudo aquilo que o
torna possível‖ (OS ABISMOS DA SUSPEITA: NIETZSCHE E O PERSPECTIVISMO
(2004) - PIMENTA - Pág. 215).

1.1 Os problemas do perspectivismo

Acredito que a proposta perspectivista é problemática, pois creio que, ao haver uma
pluralidade de interpretações, precisaríamos de algum método capaz de medir o valor de cada
interpretação, para assim assumirmos como valiosa ou meramente uma divagação. Porém, a
maneira que avaliaríamos seria perspectiva, criando uma dificuldade para se chegar em algum
tipo de conhecimento. Por isso, os conhecimentos seriam referentes às perspectivas, sendo,
então, irregulares e refutáveis. Sendo esse o caso, de nossos conhecimentos não serem
justificáveis, todas as regras que criamos para lidar com a natureza e a sociedade não terão
razões para existir (ou, ao menos, para serem acreditadas por uma maioria). Além disso,
segundo a afirmação de Silvia ―Se as perspectivas não encontram jamais um fundo que as
suporte, é porque o próprio mundo é destituído de fundamento.‖(OS ABISMOS DA
SUSPEITA: NIETZSCHE E O PERSPECTIVISMO (2004) - PIMENTA - Pág. 216), pode-se
concluir que a própria linguagem, que é componente do mundo, é posta em dúvida, gerando,
portanto, a possibilidade de justificativas de absurdos, como totalitarismos e ‗‘terra-
planismo‘‘. Por fim, coloca-se em uma posição desvantajosa a própria proposta perspectivista,
pois, apesar de ela não pretender utilizar de justificativas ―O que precisa ser demonstrado não
tem grande valor.‖ (Crepúsculo dos ídolos, ―O problema de Sócrates‖ , ― § 5. apud OS
ABISMOS DA SUSPEITA: NIETZSCHE E O PERSPECTIVISMO (2004) - PIMENTA -
Pág. 221), ela torna-se uma tese incapaz de dizer qualquer coisa, pois perspectiviza a própria
linguagem, tornando impossível não só justificar como também compreender o que o
perspectivismo pretende.

Em virtude do que creio serem os problemas da existência do perspectivismo, tentarei


apresentar o que Nietzsche propôs como ―interpretações‖ e, em seguida, mostrar a forma que

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é possível se conhecer um conceito fora delas. Proponho, portanto, para realizar meu objetivo,
que verifiquemos a existência dos conceitos, das hipóteses e, por fim, a maneira que
funcionam o que chamarei de operações, sendo uma delas o que compreendo como
interpretação. No mais, tentarei apresentar uma maneira de conhecermos os conceitos, para,
assim, mostrar que não é possível apenas obter crenças, mas também conhecimento.

2. As operações geradoras de hipóteses e conceitos

Faremos uso de duas formas de se conhecer: experiência e razão. A experiência de um


objeto vai nos fazer conhecê-lo segundo o que vemos e, além disso, segundo as possibilidades
existentes de uso:

Para Hermione saber que o objeto preto que ela está segurando é uma trufa, é
para ela (ou ao menos requer dela) o estado de estar em um certo estado
(talvez psicológico). Também requer a cooperação do resto do mundo, ao
menos na extensão que trata sobre a permissão do objeto que ela está
segurando ser uma trufa (PHILOSOPHY OF MATHEMATICS:
SELECTED READINGS (1983) - BENACERRAF - Pág. 412-413) -
Tradução nossa.
Seguindo o raciocínio de Benacerraf4, no caso da experiência, a forma que a pessoa está
mental-psicologicamente vai ser determinante para como se conhecer o que é uma trufa,
juntamente das possibilidades de essa trufa ser uma trufa e, também, juntamente do ambiente
em que se percebe a trufa. Todavia, da mesma maneira que há limitações que fazem da trufa
uma trufa, há também uma extensão para que ela seja entendida como algo que não uma trufa.
Se no mundo que eu vivo é possível arremessar, pisar e até derreter a trufa, então ela pode ser,
além de uma comida, um objeto de arremesso, uma sujeira no chão, um chocolate derretido,
além de outras coisas. Portanto é compreensível concluir que um conceito na experiência
parece ter sua definição variável5.

Porém, para mim, Benacerraf está na verdade tratando do que chamarei mais à frente
de ―hipótese‖. Ela tem o papel de gerar, no lugar de conhecimento, uma crença segundo a
nossa perspectiva. Apesar disso, não posso desconsiderar toda a sua proposta, pois ao

4 Utilizo da proposta de Benacerraf sem a pretensão de considerar a conclusão pretendida pelo autor.
5 Falaremos mais sobre as minúcias do conhecimento empírico no decorrer do texto.
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mencionar sobre a cooperação do resto do mundo, parece-me de fato que a forma que o resto
do mundo se ordena é parte importante para se definir um conceito. Como mencionado antes,
uma trufa só pode ser uma trufa se é possível que ela seja, tendo em vista todos os outros
objetos: caso algo X, que denominamos como sendo, em nome, diferente de uma trufa, mas
que ao vermos suas propriedades mostra ser exatamente igual a trufa, então a trufa é, na
verdade, X, ou X é, na verdade, uma trufa. Não só isso, como também as propriedades da
trufa são designadas segundo a mesma regra e, inclusive, são os fatores essenciais para dizer
que algo é uma trufa e não uma cadeira. Este movimento tende a continuar até que se chegue
à última propriedade compositora de um objeto, a qual será auto suficiente para se definir,
justamente por não haver mais nada que a antecede. Sendo assim, discordo da forma que
Benacerraf fala que todo esses movimentos são componentes de um conhecimento, pois na
verdade são componentes de uma perspectiva que gerará uma hipótese; concordo com ele
quanto à organização do exterior à trufa, pois creio ser necessária a cooperação do mundo
para que um objeto seja esse objeto e não outro.

Ao tratar sobre as alterações possíveis no sentido da trufa, devo afirmar que elas são,
na verdade, adições feitas no seu conceito. Façamos, inicialmente, uso de um exemplo no
campo matemático para que seja possível em seguida aplicá-lo no campo experiencial: ao
pegarmos uma operação matemática que diz ―1+1 = 2‖ e outra que diz ―½ = 0,5‖, nós temos o
mesmo número ―1‖ em diferentes aplicações, e imagino que ninguém negue isso. Voltemos
agora para a trufa: quando utilizamos o conceito ―trufa‖, o qual pode ser entendido como um
recipiente doce com recheio6 (minha definição talvez possa ser refutada por uma pessoa
especialista em trufas), existem aplicações variadas para ele. Ao pegarmos uma trufa, nós
podemos, como mencionei anteriormente, comê-la, arremessá-la, derrubá-la (e então sujar o
chão), além de diversas outras coisas. Façamos então uma comparação, utilizando exemplos
simples, dessas diferentes aplicações na experiência, em conjunto com as diferentes operações
matemáticas: o número 1 designa um conceito que, junto de uma operação de soma, vai

6 Apesar de no exemplo de Benacerraf estar sendo mencionado provavelmente um fungo que chamamos de
trufa, utilizarei o doce, pois não tenho conhecimento sobre o fungo.
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passar a ser demonstrado como o resultado e não mais como o conceito compositor da
operação (1)7. Da mesma forma: uma trufa designa um conceito que, junto da operação
experiencial (chamarei assim para diferenciar) disposta para um arremesso, vai ser
demonstrada como um objeto de arremesso, o qual é o resultado da operação, e não como o
conceito compositor da operação (trufa). É entendível que pessoas pensem que o resultado é
uma trufa e que trufas são objetos para se arremessar, pois vão utilizar de referência a sua
perspectiva para a ―conceitualizar‖. Contudo, esta perspectiva não é sobre a trufa, mas sobre o
resultado da operação que a trufa está inserida. Inclusive, em casos como ―comer a trufa‖,
também não se está experienciando o conceito, mas outra operação, a qual faz da trufa uma
comida. Portanto, após a realização de operação experiencial não se conhece o que é uma
trufa. O que ocorre de fato é a criação de uma hipótese, a qual tenderá a ser entendida como
trufa e não como um resultado posterior à ela.

Contudo, independentemente da comparação acima, as operações experienciais e


matemáticas não são equivalentes: primeiramente, compreendo as operações experienciais
como evidentemente empíricas, já as matemáticas como a priori; além disso, creio que,
diferente das operações matemáticas, grande parte dos resultados das operações experienciais
não vão gerar conceitos. Isto se dá pelo que vou apresentar a seguir, em conjunto com o que
creio ser a proposta mais forte de minha tese: existe um conceito para algo se e somente se há
um vínculo de necessidade entre o conceito e o objeto. Mais do que isso, apenas é possível
conhecer conceitos e, qualquer coisa que não corresponda a um conceito não é conhecível,
mas sim acreditada. Dessa forma, a maneira que os conceitos e o conhecimento são obtidos
não corresponde, em grande parte das vezes, com a maneira que se obtém o resultado de uma
operação experiencial.

2.1 Hipóteses e conceitos

7 Podem e, provavelmente, vão existir outros conceitos compositores, o mesmo dito para (1) vale para eles.
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Em casos como grande parte das operações empíricas8, não há como considerar o
resultado um conceito, pois não há como se fazer uma análise deste resultado, tendo em vista
que eles dependem do ambiente para serem constituído, o que cria uma gama de variações
para resultados aparentemente iguais. Podemos ver essas variações por meio da arte: uma
cadeira posta junto de uma mesa em uma casa, ou restaurante, é apenas uma cadeira, mas a
mesma cadeira posta em um ambiente artístico, como em uma galeria, e sendo dita como
artística, é uma cadeira artística. Nota-se, então, que se não houver algo ou alguém indicando
a cadeira como artística, mesmo na galeria, e alguém vê-la ali, essa pessoa pode a entender
como apenas uma cadeira. Então, fica claro que nesse caso ocorre uma adição de uma crença
(arte)9 em um conceito. Ao ocorrer isso, nós não temos propriedades suficientes que definem
o conceito como algo diferente de uma cadeira, assim sendo, não há necessidade de uma
cadeira em uma galeria (ou em qualquer outro lugar) ser uma obra de arte ao invés de apenas
uma cadeira.

Já ao lidarmos com operações matemáticas a situação é, no geral, diferente: quando


analisamos o resultado de uma operação como "1+1‖, é necessário que o resultado seja ―2‖
(por razões que não pretendo demonstrar) e não qualquer outro. O que faz de 2 um conceito é
haver necessidade para a sua existência, dadas aquelas propriedades, sem haver qualquer
outro resultado possível. Justamente essa necessidade é raramente encontrada em situações
experienciais. No caso da cadeira, a propriedade artística não é intrínseca ao objeto, mas sim à
pessoa. Desta maneira, só há conceitos quando é necessário que o objeto seja o que ele é, sem
qualquer possibilidade de variação de resultado.

Disso pode-se pensar que, se conceitos só existem por meio de vínculos de


necessidade, como denomina-se o que não for conceito? O que não cumprir com o vínculo de
necessidade é denominado, por mim, como ―hipótese‖, sendo ela correspondente ao que
Nietzsche chama de ―interpretação‖. Os trato como uma hipótese por não utilizarem fatos e

8 Existem casos, como o que veremos mais em frente, que é possível gerar conhecimento por meio de operações
empíricas.
9 Não entendo arte como um conceito, pois ela é dependente da perspectiva humana.
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movimentos de necessidade, mas sim possibilidades: no momento que sou atingido por algo é
possível que seja uma pedra, mas também é possível que seja uma trufa, um pedaço de
plástico, etc.. Da mesma maneira: é possível enxergar essa cadeira como uma obra de arte,
mesmo com as mesmas características intrínsecas de uma cadeira normal. Não há conceito
sendo gerado dessa operação experiencial, apenas interpretações. Todavia, nesses mesmos
casos pode haver conceitos sendo utilizados, pois, como no caso da trufa, ela tem a
necessidade de corresponder ao que denominamos uma trufa, caso contrário ela não poderá
ser uma trufa, assim não podendo corresponder a qualquer variação que utilize deste conceito.
Além disso, é possível utilizar principalmente nas operações experienciais de conceitos para
se formar hipóteses.

Partamos então para a explicação sobre o que são as operações matemáticas e


experienciais. Juntamente apresentarei o porquê de ambas serem denominadas como
operações e, por meio de ambas explicações, creio que seja possível a compreensão da
comparação feita entre as operações matemáticas e experienciais.

2.2 As operações matemáticas

Uma parte importante para o entendimento da semelhança entre ambos os casos é a


compreensão dos componentes deles. Por hora mostrarei por meio de um viés Kantiano a
forma que visualizar ou conhecer o resultado de uma operação não torna possível visualizar
ou conhecer o que a compôs.

Inicialmente, penso nas operações matemáticas de forma sintética a priori, como dito
por Kant ―Os juízos matemáticos são todos sintéticos‖ (Crítica da Razão Pura (2012) - KANT
- Pág. 53) e em seguida ―...proposições verdadeiramente matemáticas são sempre juízos a
priori…‖ (Idem). A matemática10 mostra-se, e devo concordar, como uma ciência exata, a
priori e sintética, pois não utiliza da experiência em momento algum para as suas atribuições.
Concordo que pode ser discutível esse ponto, pois as operações e os números podem ser, de
certa maneira, provindos de experiências com unidades de objetos que se acabaram por virar

10 Quando menciono a matemática, estou me referindo à aritmética.


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abstrações na razão. Penso nessa possibilidade por conseguir visualizar, de certa maneira, o
reconhecimento, após diversas repetições, de que quando temos um conjunto de coisas iguais,
algo fora do mundo sensível faz com que aquelas coisas se somem. Contudo, se olharmos
mais a fundo, a noção de somar algo, multiplicar, etc., só aparenta poder (tanto para mim
quanto para Kant, elas devem) ter sido uma abstração que foi materializada, justamente por
ser impossível se experienciar qualquer uma dessas operações. Na verdade, o que se
experiência, no caso da soma, são dois ou mais objetos juntos e iguais 11. Nada me parece
adquirível dessa união, além de que há dois objetos iguais e alinhados. Em consequência
disso, assumir-se-á aqui que a matemática é a priori.

Quanto à forma sintética provinda da matemática, tomemos novamente a operação


―1+1‖ para falarmos de um caso equivalente proposto por Kant:―...percebe-se que o conceito
da soma de 7 e 5 não contém nada mais do que a unificação de ambos os números em um
único, pela qual absolutamente não se pensa qual será esse único número que reúne ambos.‖
(Crítica da Razão Pura (2012) - KANT - Pág. 54). Kant afirma o que já havia sido
apresentado anteriormente, mas de outra forma: o resultados não representa especificamente
os números iniciais, pois não há neles (resultados) o conteúdo que os formou; ele é um
conteúdo completamente novo. Da mesma maneira, quando falamos sobre a união de ação e
objeto, podemos afirmar que ela não nos faz ter a capacidade de conhecer o que havia antes
do resultado, pois existem n possibilidades de se alcançar as propriedades necessárias para se
chegar a ele. Logo, quando fazemos uma síntese de um conhecimento, ou uma hipótese, não é
possível que conheçamos exatamente o que veio anteriormente por meio de uma análise,
porque, apesar de os conceitos, ou hipóteses, serem necessárias para o resultado, há outras
formas de atingi-lo.

2.3 As operações experienciais

Inicialmente pode-se questionar sobre a importância de se utilizar da experiência para


o conhecimento de conceitos. De fato é questionável que se possa conhecer algo por meio da

11 Não vejo necessidade de explicitar todos os casos. Creio que ficou claro apenas com a soma.
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experiência. Contudo, creio que uma realidade em que os únicos conhecimentos puros vêm da
razão, sem qualquer toque da experiência para prepará-la é, no mínimo, absurda. Kant,
seguindo a mesma linha de raciocínio, diz: ―No que diz respeito ao tempo, portanto, nenhum
conhecimento antecede em nós à experiência, e com esta começam todos.‖ (Crítica da Razão
Pura (2012) - KANT - Pág. 45). Além disso, ele também clarifica quanto à possibilidade de
outros conhecimentos, que não empíricos, surgirem da experiência: ―Ainda, porém, que todo
o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso surge ele apenas da
experiência.‖ (Crítica da Razão Pura (2012) - KANT - Pág. 45). Esta segunda citação é
interpretada por mim como a possibilidade de, por meio do início da nossa perspectiva, criar-
se conheceres. Utilizamos as nossas hipóteses empíricas para encontrar formas distintas de
pensar. São essas, portanto, as formas a priori, pois independem de bases empíricas para se
sustentarem, mas utilizam da influência delas, da mesma maneira que um aluno utiliza da
influência do professor para se aprender a como conhecer. Kant afirma sobre a função da
experiência de maneira semelhante: ―A experiência nos ensina, de fato, que algo é constituído
de tal e tal maneira, mas não que ele não poderia ser diferente.‖ (Crítica da Razão Pura
(2012) - KANT - Pág. 46). Logo, a importância da possibilidade de se ter conhecimentos
derivados da experiência está na importância deles para a existência dos conhecimentos a
priori.

A maneira que entendemos as operações experienciais é definida, em grande parte das


vezes, segundo a nossa perspectiva. Oswaldo Chateaubriand, ao falar de Benacerraf afirma:
―Benacerraf sustenta que uma explicação satisfatória de conhecimento deve conectar o que
nós sabemos com como chegamos nesse saber.‖ (PLATONISM IN MATHEMATICS (2007)
- CHATEAUBRIAND - Pág. 508) - Tradução nossa. Ao se explicar a crença12, Benacerraf
busca pela conexão entre o que se crê e como passamos a crer, pretendendo encontrar a
explicação da nossa interpretação dos objetos. No mais, vejo a conexão entre o que nós
cremos e o ambiente que nos fez crer como partes necessárias para que alcancemos o
componente adicional dado pela experiência, mas não suficiente. Esta conexão serve

12 Benacerraf fala sobre conhecer, mas no caso proposto creio ser mais viável a noção de ‗‘se crer‘‘.
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unicamente para uma crença com maior embasamento, mas de forma alguma é suficiente para
criar um conhecimento. Nas situações dependentes do ambiente não há forma de se obter
conhecimento, pois tratam, de fato, sobre interpretações. Ocorrem interpretações nestes casos
por serem eles dependentes de propriedades além das do objeto:

A perspectiva da nossa experiência tem suas raízes no fato de que todo


experienciador é posto em uma posição no espaço, que toda experiência é
determinadamente orientada pela sua posição e utiliza do local como um
determinante do momento. (Kant. WOOD (2005) - Pág. 34) - Tradução
nossa.
Assim sendo, creio ser útil a proposta de Benacerraf para crenças, justamente por acreditar
que o ambiente é algo existente apenas nas hipóteses: quando temos uma hipótese, podemos
procurar saber como ela foi adquirida, por meio do reconhecimento de todo o ambiente que
compôs o momento, e dessa forma tentar avaliar a quantia de possibilidades existentes para
este devido momento. Imaginemos que algo é jogado em minha cabeça e no local existem
apenas pequenas pedras, as quais correspondem em tamanho com o impacto. Assumo, afinal,
que foi atirada em mim uma pedra. Este é o movimento necessário para se hipotetizar, de
forma embasada, o que corresponde ao objeto arremessado.

Logo, no caso citado acima, sobre a pedra, o ambiente gera uma insuficiência para o
movimento de se conhecer. Isso se dá por causa desses dois problemas principais: o que foi
atirado pode ter sido trazido de fora do ambiente avaliável 13; a possibilidade de algo
correspondente a um objeto que pertencia ao local não nos faz conhecer qual foi o objeto
arremessado, i.e, ao imaginar a possibilidade de terem sido atiradas pedras em mim, pois elas
eram as únicas coisas pequenas e arremessáveis no local em que a experiência da pedrada na
cabeça ocorreu, não significa que eu saiba o conceito de pedra, mas eu sei que algo
pertencente ao chão correspondia ao que é denominado uma pedra14. O primeiro problema
existe em virtude de tratarmos do mundo sensível, onde, até agora, parece quase sempre ser
possível criar contra-exemplos plausíveis, i.e, que não pareçam absurdos para a realidade que

13 Avaliável corresponde ao que é possível se perceber com os sentidos.


14 Utilizo o termo ―pedra‖ mesmo me referindo à possibilidade de não ser uma pedra e a de eu não saber o
conceito de pedra, pois creio ser a forma menos confusa de se explicar o problema.
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vivemos; o segundo é um problema mais complexo, pois seria necessário, para se tentar
conhecer a necessidade do resultado de uma operação, o conhecimento do que a compõem.
Porém, ao se ter apenas o resultado, não se é capaz de se conhecer os componentes, gerando,
então, uma impossibilidade de conhecimento da necessidade do resultado. Portanto, o que o
segundo problema acaba por causar é a possibilidade de se estar lidando com um resultado
conhecível, mas apenas ter a capacidade de interpretá-lo por não haver o conhecimento prévio
necessário.

Vejo que, diferente do proposto por Benacerraf, quando tratamos de operações que
geram conhecimento, precisamos saber como foi composta toda ela para determinarmos a
necessidade de existência do resultado, mas não precisamos saber como se chegou a isso, pois
o conhecimento independe do ambiente. Um caso em que isso ocorre é em um dos princípios
físicos, citado por Kant, que afirma que, apesar de todas as mudanças do mundo corpóreo, a
quantidade de matéria permanece inalterada. A mudança é, e creio que todos concordem, algo
provindo da experiência, pois precisamos experienciar algo em dois estados diferentes para
sabermos que mudou. Além disso, a ideia de mudança é, para mim, o correspondente a uma
operação da experiência15, da mesma forma que ―mais‖ ou ―menos‖ na matemática, porque é
por meio dela que se muda um corpo. Já a matéria é um conceito, pois mesmo sendo algo
experienciável, demonstra (ao menos para mim) uma necessidade com as suas propriedades:
independentemente da nossa existência, a matéria seguirá sendo matéria e não há formas de
dizer o contrário desde que ela esteja com as mesmas propriedades que percebemos compor a
matéria. Ambas noções, junto da ideia de quantidade, que é provinda de uma operação
matemática, formam uma operação experiencial que é capaz de gerar um conceito.
Consequentemente, a operação criada é a soma de toda a matéria sendo aplicada a qualquer
mudança. Já o resultado é a impossibilidade de criar-se matéria ou, seguindo a menção
anterior, a ineficácia da mudança para se criar matéria.

15 Deve-se notar que ―operação da experiência‖ não é equivalente à uma operação experiencial, pois esta
pretendo igualar, como dito em seguida no texto, a operações de soma, divisão, etc..
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Todavia, se analisarmos minuciosamente a operação apresentada, verá-se que ela é


uma operação que usa de componentes experienciais, o que faz com que ela seja experiencial,
mas ao mesmo tempo ela não utiliza da experiência da operação, pois existem, creio eu,
infinitas formas de mudança no mundo corpóreo, e todas essas mudanças não são
experienciáveis por humanos até o momento. Para responder isso, é proposta a seguinte
definição de operação experiencial: uma operação experiencial é uma operação possível de
ser experienciada. Então, mesmo não utilizando da nossa experiência para se afirmar que não
há como gerar matéria, existe a possibilidade de que se experiencie infinitas mudanças em
toda a matéria. O que caracteriza as operações da experiência é, portanto, a possibilidade de
se experienciar a operação.

No caso da propriedade física citada anteriormente, é possível gerar conhecimento por


haver uma necessidade de essa proposição ser verdadeira: não parece haver qualquer
contraexemplo para essa afirmação, porque para isso teria de ser possível criar algo do nada, o
que me parece ir contra as leis da lógica. Consequentemente, nesse caso é possível se criar
conhecimento por meio do resultado das operações experienciais.

Pode-se agora responder à questão: qual a intenção da comparação entre ambas as


operações apresentada anteriormente? Se há diferenças entre ambas, logo não há como fazer
uma equivalência como pareceu ser pretendido. Mas, apesar desse parecer, a comparação
acima tenta demonstrar a forma que, independentemente da operação utilizada para fazer a
síntese de um novo conceito, ou hipótese, os conceitos, ou hipóteses, utilizados para a síntese
não tem seu sentido alterado: a trufa sendo arremessada, comida ou arremessada não deixa de
ser uma trufa antes do resultado, ela sempre será o mesmo conceito, sem precisar levar em
consideração o que a acompanha; da mesma forma o número 1 não deixa de significar ―1‖
quando em uma operação de soma ou multiplicação, porém ele perde sua definição quando
chega-se no resultado. Sendo assim, o único momento que ocorre alteração do que é utilizado
na operação é quando chega-se ao resultado. Inclusive, o resultado dessa adição torna
inacessível o conceito, ou hipótese, inicial, seja na matemática, seja na experiência. Portanto,
o que busquei demonstrar por meio da comparação acima, não é a equivalência dos conceitos
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ou das operações, mas sim a ausência de mudança no sentido dos conceitos compositores das
operações independentemente da operação em que eles se encontram.

3. Os conceitos derivados da experiência

Precisa-se esclarecer, por fim, de que maneira podemos obter conceitos por meio da
experiência. Para isso, precisamos compreender a maneira que se conhece a necessidade das
propriedades de um conceito.

Ao experienciarmos um objeto, precisamos, para retirar a nossa perspectiva, retirar o


valor experiencial dele e nos focarmos unicamente em compreender as propriedades que o
compõem e que o tornam, definitivamente, aquele objeto. Podemos fazer isso por meio da
nossa razão:

...Meu contato direto com um item individual da experiência é peculiar para


mim, enquanto que a minha capacidade de formular julgamentos
reivindicando a verdade (para todos, não importa qual sua perspectiva do
mundo) depende do fato de eu poder pensar sobre o que é experienciado de
forma que não é completamente presa à minha perspectiva. (Kant. WOOD.
(2005) - Pág. 32.) - Tradução nossa.
Como dito por Wood, nossa capacidade de pensar sobre o objeto A deve ser capaz de
encontrar as propriedades necessárias que o fazem corresponder como A e não como qualquer
outra coisa, sendo isso unicamente possível com o uso do nosso pensamento. O grande
problema existente no que é obtido pela experiência vem da nossa incapacidade de abandonar
as operações, pois sempre que tentamos aprender algo por meio dela, procuramos apreender a
utilidade do objeto e não o seu conceito. O conceito é algo separado da utilidade e que é capaz
de ser adquirido unicamente por meio da nossa razão. Deve-se, para isso, realizar uma análise
de toda a operação formadora do objeto experienciado e retirar qualquer tentativa de dar uma
utilidade para ele. Portanto, a nossa razão é responsável por todo o nosso conhecimento, mas
ela, em quase todos os casos, só é capaz disso por meio das nossas experiências16.

16 Um exemplo de conhecimento unicamente a priori são os da matemática pura.


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A necessidade da experiência para a maior parte do nosso conhecimento é devido à


maneira que a razão é capaz de conhecer conceitos justamente por meio das operações, pois é
devido a elas que se percebe a operação e, então, o conceito unido ao que foi adicionado nele.
Por meio dessa percepção sabe-se o que deve ser retirado da operação. Ao retirarmos o fator
―utilidade‖ da operação, o resultado será igual ao componente, pois é uma operação de um
componente só: uma trufa sendo utilizada como alimento é vista como uma comida, mas se
retirarmos a ideia de ―comer‖ a trufa, ela se torna unicamente uma trufa e, assim, resulta,
evidentemente, no conceito de uma trufa.

Logo, para se obter conhecimento pelo uso da experiência, precisa-se saber a operação
formadora da nossa hipótese, para, por meio da nossa razão, remover qualquer ideia de
utilidade dada para o conceito e, assim, chegarmos ao conceito sozinho. Ao fazer esses
movimentos, o conceito será unívoco por levar em consideração unicamente as propriedades
que compõem o objeto analisado, acabando, enfim, com a possibilidade de variação do seu
sentido.

Considerações finais

Enfim, a tese proposta por Nietzsche, das diversas interpretações 17, existe em razão,
principalmente, da sua crença de nós mesmos conceitualizarmos o que conhecemos, dando,
assim, a possibilidade de presenciarmos apenas o resultado de uma operação experiencial,
sem que tenhamos como designar o vínculo de necessidade existente entre a operação e o
resultado. Quando tratamos apenas da nossa experiência, a tendência é que, de fato, criemos
apenas perspectivas, o que nos impede de conhecer os conceitos. Correspondente a isso,
Wood afirma:

Nós todos temos a nossa experiência como sendo perspectiva, no sentido de


que todos nós conhecemos o mundo por um único ponto de vista, o que é

17 Problemática para os defensores de conceitos unívocos.


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para ser contrastado com o ponto de vista de outros reais ou possíveis


experienciadores. (Kant. WOOD. (2005) - Pág. 32) - Tradução nossa.
O que ocorre em suas interpretações é, de forma resumida, apenas a definição por
meio da utilidade vinculada aos conceitos, abandonando qualquer análise do conceito sozinho.
Precisamos, enfim, utilizar da nossa experiência apenas como conselheira, não como fonte de
conhecimento, pois a forma que nos fará de fato conhecer algo é a nossa razão e sua
capacidade de julgar o que é um conceito:

Nós também fazemos julgamentos sobre os objetos que experienciamos e


que nós pensamos sobre às vezes sendo (ou ao menos possivelmente)
verdadeiros - implicando que não importa qual perspectiva outro
experienciador pode ocupar, essa perspectiva pode julgar corretamente
apenas se estiver de acordo com esses julgamentos. (Kant. WOOD. (2005) -
Pág. 32) - Tradução nossa.
Além disso, ao lidar com os objetos, aparenta, para mim, que Nietzsche dá muito valor
aos nomes e pouco às propriedades, o que acaba por causar o abandono da busca pelo vínculo
de necessidade. Acredito nisso pela forma que ele não parece buscar avaliar o conteúdo das
interpretações, mas apenas como denominamos o resultado delas, i.e, ele parece assumir que o
resultado será diferente, quando em certas situações, mesmo no campo da experiência, pode
haver concordância por acaso entre duas interpretações de pessoas distintas. Além disso, os
conceitos independem de nomes, os nomes são apenas formas de referência simples, dar
qualquer valor a eles é, novamente, ignorar o conteúdo do que eles buscam representar.

Por fim, ele não parece dar espaço para o conhecimento por tratar apenas de operações
experienciais, o que cria a tendência de, no geral, ocorrer a formação de hipóteses e crenças
ao invés de conceitos e conhecimentos. Acredito que este seja o erro principal da sua tese: o
abandono da possibilidade da razão como juíza das hipóteses empíricas e a análise de
conceitos por meio da sua utilidade individual, não das suas propriedades. Portanto, Nietzsche
engana-se ao tratar sobre os conceitos, pois, analisa unicamente os resultados das operações
experienciais e o nome dado a eles, o que, de fato, tende a levar à conclusão de que
interpretamos os objetos e não os conhecemos.

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Referências bibliográficas

BENACERRAF, P., PUTNAM, H. Philosophy of Mathematics: Selected Readings, Second


edition. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

CHATEAUBRIAND, O. Platonism in Mathematics. Manuscrito, v. 30, n. 2, p. 507-538,


Campinas, jul.-dez. 2007.

GORI, Pietro; STELLINO, Paolo. O perspectivismo moral nietzschiano. Cad. Nietzsche, v.


1, n. 34, p. 101-129, São Paulo, jun. 2014

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 4a Edição. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012.

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PIMENTA, Silvia. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. O que nos faz


pensar, [S.l.], v. 14, n. 18, p. 213-224, Rio de Janeiro, sep. 2004.

WOOD, Allen W. Kant. 1a Edição. 350 Main Street, Malden, MA 02148-5020, USA
108 Cowley Road, Oxford OX4 1JF, UK 550 Swanston Street, Carlton, Victoria 3053,
Australia: Blackwell Publishing Ltd, 2005.

PAIDEIA E LEGITIMIDADE POLÍTICA: A CONSTITUIÇÃO DO


PODER EM A REPÚBLICA DE PLATÃO

Rômulo Brito

Resumo
O objetivo desse artigo é considerar a pretensão de reformulação político-educacional de
Platão em sua obra A República. Para tal, analisamos como, em sua polêmica em relação à
poesia, estabelece os pressupostos de uma nova discursividade com os quais fundamenta sua
empresa em um contexto de disputa política que lhe é anterior, e que supera, no curso de sua
reflexão, pelo estabelecimento do éthos de que pretende dotar sua pólis.
Palavras-chave: Democracia. Paideia. Platão. Pólis
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1. Introdução
Uma das formas de concebermos o pensamento de Platão é considerando-o como uma
resposta ao momento histórico em que vive18. Um dos aspectos dessa resposta é sua crítica ao
discurso mito-poético. Como em seu pensamento uma reflexão não está totalmente
desvinculada da outra, poderíamos dizer que essa crítica surge, por seu turno, como um
momento de sua análise mais abrangente de natureza sócio-política. Mesmo esta última
poderia ser subsumida em uma ainda mais fundamental investigação cujo escopo visaria

18
CHÂTELET (1973, p. 65) opud CHAUÍ (2002, p. 225).

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inquirir os fundamentos da própria realidade, perpassando os variados campos pelos quais


desenvolve seu pensamento. Assim, partindo da investigação ética de Sócrates, seu mestre, é
preciso buscar lhe subsídios; como se a ética não se bastasse a si mesma, a política, a estética,
a ontologia e a epistemologia passam a formar em Platão um conjunto de conhecimentos (ou
de campos de pesquisa) de onde se extrairão argumentos que visem complementar a pesquisa
ética. Em uma realidade política a educação aparecerá como fundamentação necessária a um
empreendimento desse tipo tanto mais quanto percebe que tal suporte à ética pressupõe uma
reformulação política que não se reduz a uma simples troca de mãos do poder ou mesmo de
regime de governo19.
A nobreza aristocrática desde há muito concebia esse anelo educador pela pretensão
de uma formação de determinado tipo do caráter humano através do seu ideal de areté – a
kalokagathia. O bom e o belo constituem elementos essenciais dessa virtude dos aristoi que é
entendida como prerrogativa mesmo de uma classe de homens que compartilham uma
eminência de sangue por se crerem, ademais, descendentes dos deuses e heróis apresentados
na poesia. Mas Platão tem sérias restrições à poesia tomada, pela preeminência aristocrática,
como modelo formador. Destarte, a própria pretensão ao poder por mera herança sanguínea é
também posta em questão – o que já havia acontecido, entretanto, ainda que de outro modo,
com o advento da pólis. No intuito de acompanharmos seu pensamento, aparece como de
particular importância evidenciar como produz as condições teóricas que o permitem
fundamentar essa crítica no quadro de disputa política em que viveu, e assim, através da nova
perspectiva gnosiológica que representa sua Teoria das Formas, as objeções que levanta
contra a poesia no âmbito da reformulação que propõe.

2. Política: o poder em disputa

19
Na Carta VII Platão nos narra como sua decepção com a política, mais do que à questão do regime dominante,
referia-se aos fundamentos desta.

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Para um grego clássico, a ética encontrava-se indissociavelmente ligada à política, e o


momento histórico de Platão lhe depara o regime democrático20 cujas considerações a
respeito são bem pouco elogiosas de sua parte21. Suas reservas à democracia parecem vir, na
mesma linha das de Sócrates, das relações desta com o conhecimento. A busca de
conhecimento de Sócrates22 e sua relação praticamente religiosa com este23 o faziam
desconfiar de um regime político no qual todos os cidadãos, independentemente de seu
conhecimento, tinham acesso aos processos decisórios. Devemos lembrar que há em Sócrates
uma ligação necessária entre conhecimento e ação24. Portanto, age-se bem quando se conhece
bem – uma relação bem ao molde do que verificamos no proceder técnico. De fato, uma
concepção que pretendesse estabelecer a relação entre a tekhné, enquanto um saber fazer
prático advindo da experiência, que visa um télos e relaciona-se a grupos distintos de homens
que se dedicam a um ofício determinado25, e a prerrogativa do poder pareceria não se
coadunar a um regime como o democrático. E se a isto puder ser ainda acrescido o fato de
que os mitos originários que davam conta do surgimento das técnicas eram os mesmos que se
ligavam à ascendência divina dos nobres – partido oposto – e que, por conseguinte, lhes
legitimavam o poder, teríamos, então, alguns indícios para a justificação de uma presumida
crítica26. Mas tal concepção exatamente é o que não caracterizava a democracia27. Em

20
Salvo em duas ocasiões nas quais o partido aristocrático toma o poder: em 411 a.C. e em 404 a.C.
21
A República (558 a-c).
22
É conhecida a história de como Sócrates começou a dedicar-se à filosofia após saber o que declarara a seu
respeito o oráculo de Delfos, e como passou a questionar seus concidadãos, principalmente aqueles que
carregavam fama de sábios. Cf. Platão. Coleção Os pensadores. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural,
2000. pp. 71-73.
23
Ibid. (p. 81); Fedro (249d).
24
Protágoras (352 b-c); XENOFONTE. Memoráveis (IV; 6, 2-6).
25
Ver a esse respeito Vargas, (1994, pp. 18-19).
26
As admoestações de Teógnis a Cirno constituem evidente exemplo dessa crítica que expressa, já no século VI
a.C. – mesma época das turbulências sociais enfrentadas pelo próprio Sólon –, a resistência com a qual a nobreza
tratava a questão do declínio de sua tradição frente às reivindicações cada vez mais intensas do demos. Também

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contrapartida, pareceria haver uma relação de mútua antipatia, uma vez que, por seu lado, a
democracia também poderia reivindicar razões para desconfiar de Sócrates, não só pelo fato
da suposta ligação deste e de alguns de seus frequentadores com o anterior governo
oligárquico28, como pelo real perigo que o exercício de Sócrates e sua demanda por saber
poderiam representar. Essa pretensão de pôr um especial saber governar e exercer o poder não
feriria os princípios da isegoria e da isonomia tão caros à democracia29?
É certo que a democracia, na medida em que se caracterizaria por uma pretensa
participação de todos no poder, não poderia aceitar nenhuma preeminência sobre a
assembleia, mesmo que seja a do saber30. Como nos diz Péricles, através de Tucídides, não há
no regime democrático – devido a um processo desde há muito gestado que culmina no novo
sentido de areté – desigualdade entre os cidadãos. Aristóteles também nos dá testemunho de

as obras de intelectuais do século V a.C. partilham desse sentimento em relação ao demos. Antígona de Sófocles
representa a contraposição entre os elementos da antiga tradição e os novos que emergem no mundo da pólis.
Aristófanes também pode ser visto como representante do conservadorismo que, à custa de Sócrates em As
nuvens, procura criticar as novidades próprias de tempos democráticos como a sofística.
27
E poder-se-ia dizer também que com o advento da pólis e o surgimento da esfera pública, portanto, à virtude
política importa bem mais a aptidão do homem para submeter-se à comunidade do que propriamente qualquer
distinção da qual se valha na esfera privada incluindo aí seu ofício. A esse respeito ver WERNER, J. Paideia – A
formação do homem grego. 5ª Edição. (Clássicos WMF). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p.
146; sobre a virtude política cf. ainda Platão, As Leis (643e).
28
Como Crítias e Antifonte, que inclusive foi condenado pelo golpe contra a democracia de 411, sem falar na
desastrosa figura de Alcibíades.
29
Ver Popper, (1974, pp. 135-137) para quem tratar a questão política a partir da pergunta ―Quem deve
governar?‖, como o fez Platão, é insuficiente, pois a possível resposta ―o melhor‖ ou ―o mais apto‖ implica não
só a dificuldade empírica de se encontrar os indubitavelmente melhores, tanto intelectual quanto moralmente,
como também a admissão implícita de que o poder político seja ou deva ser ilimitado, inquestionável pelo fato
mesmo da crença de se estar sob o melhor arbítrio. Entretanto, chegando à conclusão de que esse poder, exercido
por indivíduos de tal grau de excelência, é humanamente impossível, o autor propõe que Platão teria partido de
um princípio equivocado.
30
Cf. WOLFF, F. Sócrates. Coleção encanto radical. São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 82-89, segundo o qual o
processo de Sócrates foi uma reação anti-intelectualista.

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que não há nenhum poder sobre esses ―iguais‖ que constituem o demos que delibera em
assembleia31. Pareceres especialistas são certamente considerados, mas a última palavra nas
tomadas de decisão não caberá àquele que, por conta de um saber específico, se distingue em
relação aos outros, não caberá ao técnico enquanto técnico32. Essa noção de igualdade lhes
garante a liberdade de colocarem-se como fim a si mesmos enquanto partícipes do horizonte
político maior dos destinos da cidade. É preciso, portanto, não descurar, em dado contexto,
que o ―saber político‖, o que é necessário para participar da política, não é algo tal qual o
―saber fazer‖, o conhecimento próprio dos ofícios dos artesãos e dos técnicos33, mas que essa
igualdade de condições sob a qual funcionaria a democracia seria antes o produto de um
processo de constituição do éthos do indivíduo sob a educação que a própria cidade lhe
ministra e da qual dependerá sua coesão34, ou seja, a política tratar-se-ia de um compromisso

31
ARISTÓTELES, A constituição de Atenas, (XLI, 2). Em que pese, obviamente, o caráter restrito da cidadania
em Atenas, como o próprio Aristóteles nos conta.
32
Um famoso episódio que pode expressar o fato de que um parecer especialista não detém o poder na
assembleia, embora certamente possa ser usado como um argumento de autoridade, é o da incitação de
Alcibíades, na assembleia, à campanha contra Siracusa, o que era altamente desaconselhável por outros
especialistas, como Nícias. É razoável supor que Alcibíades tenha reivindicado sua experiência militar e
autoridade de estratego ao argumentar, porém, não é razoável supor que necessariamente elas decidiram, uma
vez que outros técnicos foram contrários, mas antes sua eloquência que convenceu a assembleia à qual, detentora
do poder efetivo, coube a última palavra. Tal episódio, desastroso para Atenas, terminou concorrendo para a
intensificação das críticas ao regime assemblear.
33
Assim sendo, poder-se-ia contra-argumentar Sócrates – admitindo-se que sua posição seja tão ingênua – pelo
fato de que nem todos se dedicam a todas as artes particulares, razão pela qual Sócrates está correto em procurar,
para pilotar um navio ou construir uma casa, o mais apto. No entanto, em âmbito político, todos os cidadãos
enquanto cidadãos estão obrigados a conhecerem os processos das decisões políticas, pelo que o ideal
democrático está, ao menos em teoria, autorizado a exigir que todos os cidadãos participem de tais decisões.
Entretanto, em que consiste essa cidadania, qual sua virtude? Esta parece ser a questão para Sócrates, a análise
sobre o que seria esse elemento necessário para tomar parte da vida política da cidade.
34
Ao falar dessa forma, obviamente não estamos nos referindo a uma oficial educação estatal formalmente
sistematizada, mas das necessárias instâncias educativas que emergem da vida em comunidade política.

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com a pólis advindo da consciência deste indivíduo a respeito do processo de formação de sua
cidadania (a humanidade por excelência), formação essa que Sólon já havia vislumbrado
como uma possibilidade contra a disnomia35, e que Platão também apresentará ao seu modo
frente à democracia.
Essa diferença entre a política como uma determinada distinção que se manifestaria
também como um saber, um tipo de conhecimento específico próprio a alguns, portanto, e
uma educação do espírito sob uma nova perspectiva da disposição do poder pertinente a todos
pode nos ser de alguma valia para compreendermos que sobre a primeira opção pode estar
amparada uma das críticas aristocráticas à democracia e que se refere à capacidade intelectual
36
do demos que, aparentemente, Sócrates também encampa . Parece ser sobre um saber de
determinado tipo, ou uma especificação em todo caso, que se fundamenta essa dificuldade
que a corrente opositora levanta contra um regime político democrático: o fato de que, o
processo político sendo estendido a um contingente maior – os cidadãos –, a formação deverá
também alcançá-los todos. Mas os homens – e isso repetirá também Platão (que afinal é um
aristocrata) – não são iguais37. Isto, aparentemente, faz retornarmos à crítica de Sócrates, pois
não sendo os homens iguais e expostos ao desenvolvimento de interesses vários, que
terminarão em ocupações de um dado tipo para uns e diversos para outros, isso implicará
politicamente em que uns se ocupem dos assuntos do governo enquanto outros são
governados.
Tais constatações fizeram com que a democracia fosse alvo de críticas mais
específicas em relação às suas instituições. Tucídides, embora admirador de Péricles, não
deixa de expor a fragilidade a respeito de tal regime quando, fazendo menção à agudez
política deste, expõe que afinal o sistema ateniense era uma democracia apenas ―no nome‖
(TUCÍDIDES, 1987, p. 126). Refere-se ao exercício dos demagogos (como o próprio

35
BARROS (1999, pp. 59-60) apud KIBRIT (2012, pp. 145-146).
36
Com a diferença de que não é ao demos, necessariamente, que Sócrates crítica, mas antes todo e qualquer um.
Suas restrições não têm por fundo uma oposição classista.
37
A República (369b-370b).

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Péricles) que se valem do fato de que graças à isonomia a massa da assembleia torna-se palco
propício para esses guias, e isso porque – sendo a isegoria outro princípio fundamental das
deliberações políticas – a palavra, tornando-se instrumento precípuo dos processos
assembleares, era objeto de cultivo por parte daqueles que tinham condições de, através de
treinamento e educação específica para tal, fazer dela uso em sua forma mais elevada e
eloquente – condições a que, obviamente, nem todos tinham acesso –, ou seja, todos podiam
falar, mas nem todos falavam.38 O próprio Péricles deveu a posição a que conseguiu chegar
na pólis democrática também às peculiaridades do regime assemblear.39 A partir disso, não
fica difícil acompanhar a natureza dos argumentos que acentuam a falta de autonomia do
demos por sua insuficiência intelectual. Qual o sentido da democracia? Por que permitir a
liberdade de expressão a todos na assembleia se o povo nada entende, sequer sobre o que é
bom para si mesmo?40
A respeito dessa tensão entre um restrito saber político e a constituição mesma do
éthos, talvez seja de algum interesse atentarmos para duas falas: uma de Péricles em sua
―oração fúnebre‖ e outra de Atena na peça ―As Eumênides‖ de Ésquilo. Ambas nos trazem a
importância que, para uma formação do espírito em contexto político, tem o estabelecimento
das leis e a livre sujeição a estas. Eis o que diz Péricles:
Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições
de nossos vizinhos [...] Seu nome, como tudo depende não de poucos,
mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos

38
No monólogo do personagem Diceópolis, na primeira cena de Os Acarnianos, Aristófanes nos traz valioso
testemunho a respeito desse fato ao apresentar o sentimento de alguém que querendo falar, mas não tendo o
domínio da usança argumentativa que em tal meio vige, excogita formas pelas quais demonstrará sua opinião tão
logo algum demagogo comece a defender posição contrária à sua.
39
Sobre como Péricles habilmente ascende à posição que veio ter em Atenas suplantando Címon, Cf.
CANFORA, L. O mundo de Atenas. Tradução Federico Carotti. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras,
2015, pp. 120-124.
40
Ibid. (p. 148, n. 10). É possível, todavia, encontrar essa atitude ao longo da produção intelectual do século V e
mesmo VI; nomes como Teógnis, Sófocles, Crítias, Antifonte manifestam essa aversão radicada também em
uma reação de classe.

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são iguais para a solução de suas divergências [...] a pobreza não é


razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja
impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-
nos liberalmente em nossa vida pública [...] ao mesmo tempo que
evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida
pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um
temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis,
especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às
que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra
visível a todos. (TUCÍDIDES, 1987, p. 109)
Na obra de Ésquilo, Atena, então instaurando o domínio das leis, estabelece que de
agora em diante os homens, sob o arbítrio dessas, terão de se conduzir em âmbito político, o
que deixa para traz a justiça privada dos nobres:
Prestai toda atenção ao que instauro aqui, atenienses, convocados por
mim mesma para julgar pela primeira vez um homem, autor de um
crime em que foi derramado sangue. A partir deste dia e para todo o
sempre o povo que já teve como rei Egeu terá a incumbência de
manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares.
[...] Sobre esta elevação digo que Reverência e o Temor, seu irmão,
seja durante o dia, seja de noite, evitarão que os cidadãos cometam
crimes, a não ser que eles prefiram aniquilar as leis feitas para o seu
próprio bem (quem poluir com lodo ou com eflúvios as fontes claras,
não terá onde beber). Nem opressão, nem anarquia: eis o lema que os
cidadãos devem seguir e respeitar. (ÉSQUILO, 1991, p. 179)

Todo esse apelo à lei tem o objetivo claro de expor a importância que esta tem, em
esfera política, como um elemento igualador e propiciador de uma experiência política
determinada. A isonomia é um dos fatores mais caros a esse contexto41, sobre o qual somente
poderia ter lugar a pretensão de uma educação comum de caráter distinto daquela destinada a
alguns por privilégios de sangue e mesmo da especializada própria dos ofícios.

41
Para mais detalhes de como a noção de igualdade pôde vir a se constituir em um importante elemento da
experiência da pólis, cf. VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego. Tradução de Ísis Borges B. Da
Fonseca. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Difel, 2010, pp. 64 et. seq.

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A eloquência de Péricles, todavia, não o poupou das críticas de Platão42,


tampouco as instituições democráticas das de seus antagonistas, e questões como o
estabelecimento de um salário para as atividades políticas, bem como uma forma de
irresponsabilidade que atos como a tiragem de sortes pareciam expressar, vinham sempre na
esteira da convicção da inferioridade do regime democrático. Em um cenário de distinção
social em que as convicções tão acentuadamente divergem, mesmo uma noção política tão
importante como a igualdade arrisca-se a, tendo sua natureza polemizada, tornar-se objeto de
disputa, malgrado da lei.43 Esta, obviamente, em tal realidade tende a ter sua efetividade
persuasiva mais profunda comprometida. Forma sem conteúdo, eco sem sentido, a lei torna-se
apenas (como anteriormente no contexto da thémis aristocrática pré-pólis) um mero elemento
constrangedor cuja coerção externa que promove gera apenas uma conduta artificial 44. A
educação como formação espiritual do indivíduo, como paideia45 do cidadão é, assim, o
complemento necessário da lei, e de onde esta tiraria seu sentido mais profundo enquanto
manifestação da vontade geral.46 Entende-se, desta forma, como a realidade da pólis, em vias
de desenvolvimento, pôde sentir a necessidade da realização de uma educação que
contemplasse o homem como um todo, nos moldes da velha educação aristocrática baseada
no ideal da kalokagathia, somente que ampliando as dimensões desse homem, uma vez que o
indivíduo político, o cidadão, inserido em nova realidade social tem interesses outros.47
A crítica aristocrática – baseada em uma realidade pré-pólis onde eram prerrogativas de uma
classe a educação e, portanto, uma distinção que traria consigo um ―conhecimento‖ de caráter
específico e assim uma atribuição particular, a saber, as coisas relativas ao poder – não tem

42
Górgias (515c-516d).
43
Sobre como a própria noção de igualdade é problematizada nesse cenário de rivalidade política, cf. Canfora,
(2015, pp. 157-162) e ainda Vernant, op. cit. (pp. 101-104).
44
A República (425a-427a).
45
De paideúo – educar (uma criança). Assim, paideia – educação, formação.
46
Cf. o diálogo entre Péricles e Alcibíades em Xenofonte. Memoráveis (I; 2, 42-46).
47
JAEGER, (2010, p. 336).

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sentido no novo universo da pólis, onde a noção de cidadão vem substituir a do nobre belo e
bom48.

3. A preocupação com a virtude política


Sócrates não é um aristocrata, e se é certo que teve problemas com a
democracia, não menos o é que os teve também com o regime oligárquico.49 De fato, o
exercício socrático que busca um saber para agir parece ter menos a ver com uma particular
perseguição à democracia do que com uma investigação a respeito dos fundamentos políticos
o que, no seu entender, o autoriza como legítimo cidadão.50 O conhecimento que busca não é
o da virtude? O que ela é; se é uma ou várias; se pode ser ensinada51. Mas visto que sua busca
se dá na realidade da cidade, Sócrates visa uma dimensão mais ampla, pois a virtude que
pesquisa é a do cidadão, não a do aristocrata, pergunta pelos constituintes do caráter, não
pelas distinções do sangue. Sendo a virtude o objeto de seu interesse isso implica, por sua
vez, uma preocupação com o caráter, que é a matéria-prima sobre a qual a formação política
deve trabalhar. Por isso, o conhecimento da virtude é muito distinto do conhecimento técnico,
do saber fazer do artesão, ele se refere ao modo de ser do homem, o que ele é espiritualmente
e não ao que ele sabe produzir materialmente52. Aliás, essa foi uma das censuras que levantou

48
Desta forma, não é necessário supor o regime democrático como móvel dessa mudança, embora tenha nele
culminado. O processo de formação da pólis, conhecendo certos estágios, expande para um contingente cada vez
maior os elementos da cultura e os compromissos do poder. Assim sendo, pôde desenvolver-se, devido à
conjuntura de certos fenômenos sociais e políticos como o pensamento dos sete sábios e a atuação dos
legisladores, a democracia em Atenas. A esse respeito cf. Vernant, (2010, Passim).
49
O episódio mais conhecido é a recusa, da parte de Sócrates, de acatar a ordem dos trinta tiranos de ir à
Salamina buscar um exilado.
50
Górgias (521d). Cf. também nota 16 acima.
51
Mênon (71 b-c, 72a-73c); Protágoras (361a-d).
52
A esse respeito, pode ser interessante a discussão de Jaeger, (2010, p. 654), onde expressa que o saber técnico
era o modelo de saber para Sócrates. Não temos o intuito de divergir nesse ponto. Apenas atentamos para o fato
da distinção dos objetos do conhecimento que acarretará, por sua vez, em consequências distintas do

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aos sofistas, denuncia sua pretensão de querer tratar o problema da virtude como uma questão
técnica, como se fosse possível ensiná-la transmitindo-a de fora como um pacote de ―saber
fazer‖ acabado que de modo algum terá o mesmo impacto sobre a consciência que uma
descoberta levada a cabo por um esforço intelectivo interior tem. Sócrates interessa-se pela
constituição do éthos, independentemente das imagens técnicas que usa. Estas têm o intuito
de reivindicar a ação racional53, mas na medida em que, em contexto político, refere-se ao
conhecimento da virtude, essa ação racional não advém de um saber especificado, do homem
enquanto carpinteiro, sapateiro, oleiro, piloto de navios, mas do homem enquanto homem,
enquanto único ser capaz de agir teleologicamente inclusive na esfera maior para este que é a
política, enquanto cidadão. Se nessa empresa apela para uma firme racionalização, é por conta
do rigor metodológico que uma diligente correção dos juízos lhe manifesta54.

conhecimento. A tekhné, sendo uma instância prática que realiza uma dýnamis, atualizaria na alma como em
outras áreas sua potência. A distinção feita por Aristóteles entre práxis e póiesis poderia nos auxiliar quanto ao
que tentamos expressar, na medida em que o resultado desta última é algo de exterior ao indivíduo enquanto o da
primeira, como a virtude, refere-se a ele próprio.
53
Cf. A República (488a-489a), passagem na qual Sócrates, ao criticar a democracia, expõe uma famosa imagem
referindo-se ao ofício do piloto. Não são raras na obra de Platão as alusões de Sócrates ao conhecimento técnico.
Não obstante a dificuldade em distinguir, na sua obra, Platão de seu mestre, um caminho a partir do qual
poderíamos vislumbrar, com algum escrúpulo, tal possibilidade é justamente recorrer a esse tipo de saber uma
vez que, desinteressando-se Sócrates pela cosmologia por entender que o conhecimento da phýsis cabia somente
aos deuses, acreditava ser o conhecimento técnico pertinente ao ser humano do que nos dá testemunho
Xenofonte nas Memoráveis (I; 1, 6-8). A respeito de como Sócrates tem no conhecimento técnico –
principalmente a medicina – um paradigma ver Jaeger, op. cit. (pp. 518-520). Um outro caminho é a
investigação conceitual de Sócrates que tem por objeto o universal, e, ao que parece, concerne ao método
empregado pelo próprio – e que provavelmente é um dos pontos de origem da Teoria da Formas – como nos diz
Aristóteles na Metafísica (M, 4, 1078b, 25-35). A respeito do conhecimento do universal em Sócrates ver Wolff,
(1982, pp. 62-81) e também Mondolfo, (1966, pp. 144-145). Sobre a dificuldade, porém, de distinguir Sócrates
na obra platônica, temos um interessante debate em PERINE, Marcelo. Platão não estava doente. 1ª Ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2014, onde o autor propõe que, por trás de seus personagens, teríamos na verdade um
possível posicionar-se de Platão.
54
ARISTÓTELES, Metafísica (M, 4, 1078b, 20-25).

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4. Platão e a paideia política


Não obstante a investigação ética de Sócrates, Platão é quem vai pôr mãos à tarefa de,
levando adiante o intuito de seu mestre, propor uma reformulação da política. E se o faz por
meio de um ousado projeto de paideia, é por que nele não só ecoa sua ancestral pretensão
aristocrática à possibilidade de uma modelação completa de determinado tipo do caráter
humano55 que um dia Sólon, então como legislador, também reverberou, mas, de igual modo,
por crer na possibilidade de, pela senda aberta por seu mestre, aplicar paradigmas de uma
nova discursividade à educação que ensejariam um novo horizonte para a politeia56.
É de peculiar interesse essa aproximação em Platão entre paideia e politeia. Na medida em
que a primeira se refere ao homem, ao seu éthos, estaremos aptos a entender o íntimo vínculo
que há para Platão entre a interioridade e o exterior, entre o homem e a pólis, como no mais,
para todo grego.57 Se a investigação ética contemplava a virtude, a política não deve fugir
desse tema e tê-la sempre como horizonte.58 Eis porque, naquela que é considerada como sua
maior obra, está tão interessado no seu projeto educacional59. O vê como propiciador de uma
politeia justa: a consecução do poder, pois, deve estabelecer-se sobre uma esmerada
educação, e essa afigura-se lhe como o campo propício à reformulação radical que intenta, de
fundamentos, sendo aí onde poderá imprimir os princípios da nova discursividade
mencionada antes que, calcada em Sócrates, opõe à antiga paideia. Continuando este, Platão

55
Cf. Jaeger, op. cit. (p.147).
56
O termo ―politeia‖ entendido como a constituição de uma cidade enquanto suas instituições legais desde a
função de governo e as atribuições de direito até ao caráter espiritual da comunidade.
57
A República (435d-e).
58
O tema da virtude – areté – é recorrente na história grega, e sua vinculação ao fenômeno educativo e, portanto,
ao ideal de um determinado tipo de homem desde há muito verificada; começando como prerrogativa da nobreza
e passando, através de uma mudança da própria noção, a um meio político. A respeito dessa evolução da areté,
ver Jaeger, (2010, pp. 246-250).
59
Cf. Havelock, (1996, Passim) para quem a discussão de A República gira em torno, na verdade, da questão
educacional. A esse respeito ver também Jaeger, op. cit. (p. 766.)

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levanta pelo menos dois tipos de crítica à democracia, que veremos depois serem estendidas à
poesia: uma de caráter moral e outra intelectual60. Na verdade, tais críticas se dirigem a toda e
qualquer forma de governo que, na sua opinião, não se exerça sobre as bases corretas61.
No livro VIII de A República, Platão traça um itinerário da degeneração dos caracteres
que se refere à degeneração dos governos. A questão política está – novamente o repetimos –
vinculada à questão moral, a crítica não é exatamente à democracia, ela é uma consequência.
É manifestação do caráter que vigora na cidade como o são também a timocracia, a oligarquia
e, finalmente, a tirania. É sob Péricles que veremos na democracia aquilo de que está falando
Platão. Em sua administração da coisa pública, Péricles não exerce o sentido do poder que é o
bem da cidade, o bem dos cidadãos, não os torna melhores, apenas os adula, ou seja, somente
perpetua a produção de caracteres deformados acarretando em uma degradação da própria
política62. Há uma razão para isso que nos remete ao segundo tipo de crítica. Péricles exerce a
política sem conhecimento. É evidente o que Platão procura expressar: sua crítica assenta
sobre um critério, o conhecimento. A democracia é ela mesma uma degeneração para Platão,
não por causa da democracia em si, mas pela sua incapacidade em satisfazer o critério por ele
estabelecido. Essa crítica, aliás, já era levantada pelo partido aristocrático – não há
conhecimento no demos. Porém, dada a amplitude de sua reflexão, Platão a estende para além

60
Quanto à crítica de caráter moral à poesia, modelar exemplo é a fala de Adimanto (364b-365a) no livro II de A
República a respeito do que a narrativa poética tem dito dos deuses. Ver ainda livro III (388a-389b). No que se
refere à crítica de caráter intelectual, esta decorre, de modo evidente, de uma notória falsidade do que é dito.
Ora, a verdade de um discurso é condição precípua para o seu valor de conhecimento.
61
Carta VII (325c-326b) onde Platão menciona que todas as póleis – e não apenas as democráticas – são mal
governadas. Platão é um pensador político antes que um mero antidemocrata. Suas críticas contra a democracia
podem ser vistas sob a ótica de que o regime democrático é um dentre os vários a serem analisados por um
pensador de sua estatura, além da circunstância óbvia de que é o regime que sua cidade, Atenas, lhe depara. Não
esqueçamos, porém, que mesmo uma cidade por ele admirada, como Esparta – que não é democrática –, terá
suas instituições criticadas em As Leis.
62
Górgias (503b-504e).

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da democracia, uma vez que esse é o teor de sua crítica a Péricles, e é também o teor das
reflexões do estrangeiro no Político (292a-d):
ESTRANGEIRO: E então? Alguma dessas constituições será exata se
definirmos simplesmente por estes termos: ―um, alguns, muitos – riqueza ou
pobreza – opressão ou liberdade – leis escritas ou ausência de leis‖?
SÓCRATES, O JOVEM: Nada o impede, realmente.
ESTRANGEIRO: Pensa melhor, atendendo a este ponto de vista.
SÓCRATES, O JOVEM: Qual?
ESTRANGEIRO: O que dissemos de início subsistirá ainda, ou já não
estamos mais de acordo?
SÓCRATES, O JOVEM: A que te referes?
ESTRANGEIRO: Que o governo real depende de uma ciência. Creio que o
dissemos.
SÓCRATES, O JOVEM: Sim [...]
ESTRANGEIRO: Ora, para sermos consequentes aos nossos princípios, não
nos apercebemos de que o caráter que deve servir para distinguir essas
constituições é a presença de uma ciência, e não a ―liberdade‖ ou a
―opressão‖, a ―pobreza‖ ou a ―riqueza‖, ―alguns‖ ou ―muitos‖?
SÓCRATES, O JOVEM: Nem se pode pretender de outra forma.
(PLATÃO, 1979)
Entramos em uma seara cara a Platão ao nomearmos o conhecimento. Dessa sua
crítica de cunho intelectual ao regime que, ao aventurar-se a atuar sem o conhecimento,
apenas dá vazão à outra instância própria do espírito, a saber, a dos desejos e apetites – e
destes, os mais baixos –, vamos dar diretamente em seu projeto educacional no qual a forma
mais elevada do conhecimento, a filosofia, é o estágio final. Isto de tal forma que sua célebre
afirmação acerca da necessidade do governo dos filósofos, longe de ser uma mera fórmula
manualesca, é antes a expressão da convicção de que da feliz conjuntura entre conhecimento
e exercício político se engendra a finalidade da cidade: a execução do Bem63. Esta está
condicionada a um organizado arranjo entre as estruturas sociais da cidade nas quais o Bem
se manifestará diversamente como virtudes próprias a cada uma.
A pólis deve ser virtuosa como virtuoso deve ser o indivíduo. A virtude liga o homem
e a cidade, pois o homem não é senão uma cidade em miniatura e a virtude que cabe a uma
como ao outro é a justiça, que Platão entende como saúde, como própria da natureza

63
A República (540a-b).

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humana64. E se vai buscá-la na cidade em escala maior para melhor apreciá-la, em escala
menor no homem, é porque deste emana para aquela. Mas a realização da justiça ocorre
concomitantemente à interação entre outras três principais virtudes: a temperança, a coragem
e a sabedoria65. Apesar da crença nos efeitos da educação sobre o espírito, Platão não parece
disposto a sustentar que o conhecimento mais alto caiba a todos. Eis porque a cuidadosa
seleção, que passa por uma definição da índole destes que poderão ter a robustez de caráter e
intelectual necessária para ascenderem aos estágios mais altos de sua formação, toma lugar
importante em sua empresa.66 Daí deriva seu mito das classes, a mais alta das quais, passando
por um processo árduo de preparação, deverá governar67. Aqui Platão parece ecoar antigos
preconceitos de classe. Como nosso intuito não é nos colocarmos como capazes de dizer o
que iria ou não no espírito do filósofo, temos de mencionar ao menos que essa superioridade
nada tem a ver com privilégios de sangue que perfazem classes fechadas, a nobreza de que
fala Platão é uma nobreza de índole na qual as classes não se encerram, o filho de uma classe
pode, eventualmente passar à outra. Ademais, podemos ter em mente que o tipo de vida frugal
e ascética que Platão prescreve à classe mais alta não constitui um privilégio no sentido que a
nobreza convencional de sangue entenderia.
Da admissão de uma reciprocidade entre a cidade e o indivíduo Platão poderá, muito
convenientemente, conformar às classes que a estruturam sua concepção tripartite da alma, a
qual se divide em uma parte desiderativa, outra irascível e, a superior, racional. Cada uma das
quais, como as classes do Estado, apresentará uma característica virtude. Como já dito, a
justiça, a saúde tanto do Estado quanto da alma, depende de uma correta ordenação entre
essas estruturas; o seu ocupar o lugar que lhe cabe, submetida ou liderando. À maior parte,
que na alma se liga ao desejo, corresponde na cidade ao povo e é responsável pela

64
A República (444d).
65
Cf. A República (427e-434d), onde Sócrates promove uma caça das virtudes cuja conjuntura constitui a cidade
justa.
66
A República (374e-376c).
67
A República (414d-415c).

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temperança; a parte irascível da alma, que corresponde na cidade aos que Platão denomina
guardiões,68 é responsável pela coragem. E finalmente sua parte racional, que sendo a
superior deverá liderar, correspondendo na cidade aos governantes, é responsável pela
sabedoria. Atentemos então, algum tanto, a esta última. Vejamos o cuidado que o filósofo
dispensa à parte mais alta dos homens que, pertencendo à camada mais alta da cidade, têm o
dever de governar.

4.1. Os pressupostos teóricos de uma nova paideia


O mito da caverna nos apresenta dramaticamente o caráter da paideia platônica. Seu
sentido ascensional nos é mostrado pela peripécia do homem que, atravessando as
dificuldades de um caminho íngreme, se encontra com seu destino. É propriamente a imagem
da razão que por uma rigorosa capacitação atinge a plenitude de sua natureza. Entenderemos
bem isso se trouxermos conosco o assunto do livro anterior, o sexto, onde Platão expõe,
através do célebre diagrama da linha, os estágios do conhecimento. No entanto, do mito da
caverna nos interessará aqui o tom de mudança de perspectiva que traz depreendido da
conversão do olhar do acorrentado. O filósofo faz menção evidente ao estabelecimento de um
novo paradigma à investigação filosófica que, modificando de modo perene as estruturas do
pensamento, realiza um deslocamento de âmbito da relação entre o conhecimento e o real
chegando até nós ainda hoje enquanto herdeiros de sua tradição 69. Sócrates já havia percebido
que, para um saber que se pretenda ciência, é imprescindível a característica da
universalidade e, por conseguinte, a unidade que a esta acompanha70. Estas características não
sendo encontradas no objeto de investigação dos físicos – que é o mutável – o faz voltar do
exterior para o interior, tanto mais quanto crê na faculdade racional da alma que lhe permite

68
A República (424c). Esses são os responsáveis por proteger a cidade não só no sentido militar, mas também no
de seu caráter e suas instituições. Devem zelar pela integridade da politeia. Deles sairão os governantes-
filósofos.
69
Conhecida passagem desta sua mudança de perspectiva temos em Fédon (99d-101d).
70
Menon (74b-75b).

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conhecer a essência de algo por meio das definições71. É sabido que o método de investigação
conceitual de Sócrates manifesta-se na clássica pergunta ―o que é...?‖; esta, por sua vez, exige
algo de bem específico, uma determinação tal que, afastando qualquer equívoco, enseje a
delimitação rigorosa de algo, sua forma. E isto de modo que esta não possa, sob qualquer
hipótese, ser aplicada senão àquele algo e somente a ele como sua essência. Platão apreende
essa intuição de Sócrates, a amplia e a leva adiante. A verdade, a inteligibilidade da forma é
da ordem da linguagem, não do mundo físico, portanto, mas da alma humana. Por isso, Platão
debruça-se sobre a investigação dessa ―forma‖ que era pressuposta pela pergunta socrática.
Porém, mais ainda, realmente aqui parece conversar não só com seu mestre, mas também com
Parmênides para quem a inteligibilidade do real radica-se na unidade do Ser. Todavia,
tomando partido de Sócrates, e complementando Parmênides, essa inteligibilidade não é
exclusividade do Ser senão de outras unidades inteligíveis ou formas que a linguagem
perfaz72. De outro lado, agora juntando-se ao pensador de Eleia – cuja identidade entre ser
pensar e dizer que postula é princípio ontológico fundamental – para ultrapassar Sócrates,
atribui a essas formas as características do Ser eleata. Por isso, reivindicará também a
realidade dessas unidades que é imprescindível para toda a novidade que propõe. Elas não
podem ser meros constructos intelectuais que se realizam simplesmente nas definições 73,
embora sejam da mesma natureza que a alma, o que possibilita a esta sua apreensão74; Platão

71
Devido a esse deslocamento do exterior para o interior mesmo os objetos investigados por Sócrates não são os
da natureza, do mundo físico dos pré-socráticos, mas elementos constituintes do caráter humano, de onde vem
sua preocupação ética.
72
A República (507b).
73
Parmênides (132b-c).
74
O tema da identidade de natureza entre essas duas instâncias, que Platão nos apresenta em (507c-509a) no
livro VI de A República sob a imagem da semelhança entre a visão e o objeto visível, vem acompanhando um
conjunto de argumentos que, ligando-se à sua teoria da reminiscência e, portanto, à imortalidade da alma, busca
sustentar a possibilidade do conhecimento. Cf. também o Mênon (81c-d; 86b-c). Sobre o fato de essas Formas
não virem da experiência estando em nossa alma, não como suas construções, mas como elementos inerentes a
essa, ver ainda o Fédon (74d-75d).

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lhes atribui um estatuto ontológico forte, elas são o real75. Daqui vem a crítica que Platão
sofre ao longo da história da filosofia acusado de ter promovido uma cisão metafísica da
realidade em sensível e inteligível76. Porém, tendo em vista a força persuasiva que essa nova
dimensão lhe depara, Platão não hesita em extrair, do rigor do exercício especulativo que ela
enseja, os critérios dos quais dotará sua paideia.
Mas quem detém o modelo educacional frente ao qual Platão lança sua empresa? Aqui
nos debruçamos sobre a peculiar e obstinada oposição de Platão à poesia. É esta que possui
desde antanho a prerrogativa pedagógica entre os gregos, sendo Homero e Hesíodo
considerados os ―professores da Grécia‖. A crítica aos poetas não era novidade. Xenófanes e
mesmo Heráclito já haviam se levantado contra a pretensão educativa atribuída a seus
antecessores, mas a investida de Platão os supera em muito pela grandeza do seu projeto
arquitetado sobre bases conscientemente distintas, uma vez que busca produzir, na cidade
justa, um tipo de homem eminentemente outro.
Segundo o entender de Platão, a poesia não tem atributos para que se arrogue esse
papel. Se a função da educação é formar o caráter segundo o ideal da areté, a ação educadora
da poesia é insuficiente, produzindo em vez um caráter deformado incapaz da dignidade
moral e intelectual que pleiteia ao homem justo. Mais certeza disso tem quando a compara
com os ditames teóricos baseados no rigor racional das Formas. Como dissemos
anteriormente, Platão critica a poesia tanto moral quanto intelectualmente. No diálogo Ion, já
afirmara que o poeta fala sem razão77. Por quê? Conquanto a questão no Ion seja um tanto
distinta, tentemos captar o cerne do que o filósofo nos diz. A poesia e a arte em geral são para
Platão um exercício de caráter mimético, ou seja, de imitação. Ora, segundo sua Teoria das
Formas, este nosso mundo sensível guarda o mesmo tipo de relação com o mundo inteligível
daquelas. A cisão ontológica proposta por Platão pelo estabelecimento das Formas reais e
inteligíveis supõe que o que nosso mundo tem de real só o tem enquanto se aproxima

75
A República (476c-d).
76
Da qual um dos primeiros expoentes é seu discípulo Aristóteles.
77
Ion (533a-534e).

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daquelas, imitando-as78. Assim sendo, o objeto produzido pela arte que imita o mundo
sensível, este mesmo já uma imitação, é o que de mais afastado há em relação ao real. Essa é
uma crítica contundente quanto ao caráter intelectual da arte. Além do mais, no caso da
poesia, não deixa de fazer observações sobre a forma da sua linguagem, sua léxis que não
parece concorrer para o aperfeiçoamento do caráter, antes desvirtuando-o79 e levando riscos
também para o pensamento.80 E isso porque a arte tem a particular característica de falar à
parte mais baixa de nossa alma81. Ora, se assim for, o que ela ocasiona é um prejuízo
cognitivo devido a um evidente estado de ignorância causado – graças à sua ação – pelo
impedimento de a parte mais elevada de nossa alma, aquela que deve governar, acessar as
Formas inteligíveis que lhes são de natureza assemelhada. Levando em conta que o contexto
em que se fala aqui é o da constituição da areté sob critérios racionais é muito importante,
além do mais, o cuidado com o discurso que se vai produzir sobre perfis geradores de valor,
como os dos deuses e dos heróis82. O que a poesia épica tem dito desde há muito sobre o
divino não condiz com a ideia que dele, seguindo os princípios de seu rigor racional, Platão
constitui. Se ela é capaz de dizer o falso por essa displicência de, querendo se passar por
narrativa histórica, não submeter seus relatos ao ferrenho crivo da razão, deve-se constatar
sua incompetência para a tarefa. Por isso, Platão produz uma série de mutilações nas obras
dos poetas visando não só a correção dos discursos como também a construção de perfis mais
austeros.

Considerações finais
Como foi dito, o combate de Platão à poesia aparece nesse quadro como um momento
de sua reflexão mais ampla de caráter político-educacional, pois sabe que falar de uma

78
A esse respeito ver o famoso mito da caverna no livro VII de A República.
79
A República (395a-396b).
80
A República (595b).
81
A República (603a-b).
82
A Republica (377d-383c).

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reformulação de fundamentos educacionais que incidam sobre o caráter humano é falar de


poder ou de uma educação do poder. Vimos que uma crítica de caráter semelhante à da poesia
é endereçada também aos governantes da cidade. Sua reflexão aponta, no itinerário que toma,
para a necessidade de lidar com elementos fundamentais como as relações entre poder,
educação e moral de tal modo que seja possível estabelecer as condições para a emergência
de um dado caráter. Por isso, é do exemplo moral que constrói na figura de Sócrates que
planeja extrair o modelo para sua reformulação político-educacional. Seu éthos associa-se
intimamente a um profundo respeito pelas leis83 advindo de seu amor pela filosofia84. A
orientação do espírito, a esfera ética radica em uma particular configuração do poder, e, por
isso, Platão procura estabelecer a projeção de toda uma pólis para fazer possível a educação
de um determinado tipo de homem. Desta forma, sua crítica ao discurso mito-poético
aparecerá nessa fase interna de seu projeto mais amplo como um artifício propedêutico, como
uma espécie de catarse para uma educação consequente com seu ideal de homem justo que
reflete a cidade justa. Ao se chegar a este estágio, é à Ideia do Bem para o que se voltam
todos os esforços, todas as ações e raciocínios, por ser a realidade e a verdade de tudo. Ela é o
mais divino e mais alto85 ao que o homem deve, na medida do possível, conformar-se86 para
reproduzi-la na vida da cidade. É a Ideia do Bem que revela, ao fim, o sentido da paideia de
Platão: a realização do homem bom, aquele que leva a cidade justa em si mesmo87.

83
Críton (49c-50c).
84
Górgias (481c-d).
85
A República (509b).
86
A República (500b-501c).
87
A República (591c-592b).

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O PROBLEMA DO AGENCIAMENTO DISCURSIVO DOS SUJEITOS


NEGROS
Fellipe da Costa

Resumo
No presente artigo procuraremos expor como os valores civilizacionais afro-brasileiros
podem surgir como possibilidade de agência em meio a uma disputa discursiva ideológica
normativa, a partir das análises sobre a célebre obra O Quilombismo de Abdias do
Nascimento, entendida como efeito de pensamento crítico fundamental para se reivindicar
filosoficamente o agenciamento discursivo dos sujeitos negros.
Palavras-chave: Análise do Discurso. Filosofia Política. Ideologia.

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1.Introdução
Partindo da premissa de que determinados discursos sofrem com o silenciamento, é que se
percebe as intencionalidades implícitas nas estruturas de produção discursiva. Em razão disso,
o presente artigo visa atender às urgências desse problema com a tentativa de se pensar a
possibilidade de uma construção discursiva agenciada para os sujeitos negros, entendendo os
negros afro-diaspóricos como agentes fundamentais do processo de transformação discursiva.
Tomaremos como base o pensamento crítico de Abdias do Nascimento em O Quilombismo
(2019), justamente por entendermos o caráter de atemporalidade e legado intelectual
inestimável desta obra no que tangencia compreender a sociedade brasileira e suas dimensões
sistêmicas de preconceito racial, como também, das possibilidades que surgem através do
pleno reconhecimento dos saberes africanos-diaspóricos como genuínos caminhos de
instrumentalização política agenciada.
De antemão, procuramos deixar evidente que nossa exposição não pretende explicar o que
fundamentalmente seria um discurso em seu sentido estrito e primordial por dois motivos, o
primeiro: porque existem compreensões diversas do que seria um discurso, é praticamente
impossível reunir todo um período acerca da história da linguagem num espaço reduzido para
exposições, segundo que: fugiria da nossa proposta, que é pensar objetivamente as dimensões
de assujeitamento e agenciamento a partir da discursividade. Sinalizamos, enfim, que as
referências utilizadas em nossa exposição dão suficientemente conta de contribuir e favorecer
esta investigação, sem deixar que o entendimento sobre os discursos seja negligenciado.
Explicado melhor, nossa exposição se baseará da seguinte maneira: na primeira parte do
artigo, mostraremos os caminhos percorridos pela filosofia política no que tange a
constituição dos discursos e o assujeitamento ideológico, a partir das leituras de Michel
Foucault e Michel Pêcheux, a saber, como as tradições políticas ressignificaram os atos de
enunciação e seus sujeitos a partir de um entendimento político e ideológico sobre a
linguagem. Em seguida, direcionaremos a discussão para às opressões do capitalismo,

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considerando as análises de Wendy Brown sobre a estrutura dominante de governança, que


minimiza as consequências do capitalismo contemporâneo em razão de uma discursividade
sacrificial. Nos dois últimos capítulos, trazemos as compreensões de Deleuze e Guattari sobre
agenciamento indireto livre e as passagens extraídas do livro O Quilombismo de Abdias do
Nascimento, para se pensar as dificuldades e possibilidades de uma agencia discursiva negra a
partir dos valores africológicos brasileiros. Dito isto, podemos seguir.

2.Violência discursiva e descontinuidade em Foucault


A tradição de filosofia política da qual falávamos anteriormente compreende a linguagem,
e consequentemente os discursos de maneiras distintas, embora haja alguns pontos de
convergência dos quais tentaremos evidenciar ao longo do artigo. Pois bem, os filósofos que
se dedicaram a analisar os discursos os compreendem como sendo parte de um processo de
produção da linguagem. Essa produção corresponde à uma estrutura, que em primeiro caso,
deve ser combatida porque se pretende normatizar os discursos e perpetuar a homogeneidade
discursiva.
Michel Foucault é um dos pensadores determinantes para se compreender as estruturas
constituintes dos discursos, sua aula inaugural no Cóllege de France, em 2 de dezembro de
1970, que deu origem ao A Ordem do Discurso, diz respeito a uma exaustiva investigação
sobre as condições de produção discursiva, as internalizações do Poder na linguagem e a
influência que isso têm para os acontecimentos históricos. Foucault, por sua vez, ao criticar o
historicismo discursivo não propõe a negação da história, mas estabelecer um ordenamento
dos acontecimentos. Para o filósofo, os discursos necessitam ser extraídos da esfera comum
da linguagem para ocupar um lugar de politização, a linguagem e suas significações comuns
precisam ceder espaço para a politização dos enunciados a partir de uma ‗‘filosofia dos
acontecimentos‘‘, onde os discursos sejam plurais, descontínuos e cruzados necessariamente,
estando distantes da rigidez e hierarquização normativa acumuladas da produção discursiva
dominante.

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Mas não é para reencontrar estruturas anteriores, estranhas, hostis ao


acontecimento. É para estabelecer as séries diversas, entrecruzadas,
divergentes muitas vezes, mas não autônomas, que permitem circunscrever o
"lugar" do acontecimento, as margens de sua contingência, as condições de
sua aparição. (FOUCAULT, Michel, 1996, p. 56).

O autor parte da premissa de que determinados discursos são temidos pela estrutura de
poder justamente pelo caráter divergente de seus conteúdos, na medida em que escapam dos
regimes significantes. Foucault atribui a esse ato o princípio de exclusão, ou seja, uma
restrição sobre o que pode ou não ser dito nas experiências da convivência social. Sobre a
violência discursiva, podemos perguntar: o que seria produzir um discurso violento? Existe
algum entendimento sobre a violência nos discursos? Quais seriam os limites éticos para
exercer uma discursividade considerada violenta? Quem exerce as posições de fala e escuta
nas relações de produção e recepção de discurso? Existe alguma estrutura normativa e
dominante que restrinja os discursos? O que Foucault pretende dizer com conceber uma
violência às coisas? Entende-se a violência neste contexto, não como um convite à violência
propriamente dita, mas se estabelecer condições relacionais diferenciada com a
discursividade, como ordenar as pluralidades discursivas, impor violentamente a
descontinuação dos ‗‘acasos‘‘ históricos, realizar as mudanças históricas no interior da
própria história e seus arquivos.
Bem, o princípio fundamental nas análises de Foucault sobre os discursos, e que se faz
pertinente para entender essa questão da violência, é o princípio de especificidade que explica
as diversas camadas que compõem os discursos e seus atravessamentos históricos. ‘‘Deve-se
conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes
impomos em todo caso‘‘ (FOUCAULT, Michel, 1996, p. 53). Neste princípio de
especificidade, o filósofo sugere que os sujeitos não atribuam aos discursos um caráter de
normalidade, como se os discursos dissessem apenas o que extraímos imediatamente deles, é
preciso, pois, exercer uma prática de desconfiança com os discursos, capturar a
intencionalidade histórica dos mesmos.
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3. Máquina discursiva dominante, ideologias e o Estado de governança


Após as análises de Michel Foucault, que demonstrativamente tem por objetivo
investigar os conteúdos discursivos que compuseram o cenário das sociedades ocidentais a
partir dos acontecimentos históricos, temos em sequência a figura de Michel Pêcheux, outro
filósofo francês que se tornou referência nos estudos sobre a discursividade. Pêcheux
reivindica em seus estudos uma leitura política sobre a linguagem, seu alinhamento com a
tradição marxista o faz compreender os processos de produção discursiva como uma disputa
entre forças desiguais de produção e recepção de enunciados, o autor entende a desigualdade
enquanto fator proposital que parte da máquina discursiva, conceito esse desenvolvido na
primeira fase da análise do discurso, e que predica um processo necessário de ideologização
dos sujeitos em busca de reverter os discursos a favor da classe ‗‘dominada‘‘, por assim dizer.
Em todo caso, não se trata de um processo político fácil de ser organizado, afinal, há um
proposital impasse sobre os assujeitamentos ideológicos propostos pelo autor. Esse impasse é
denominado por Pêcheux como sendo o ‗‘esquecimento do sujeito‘‘, categoria que pretende
explicar a fase de alienação anterior às ideologias e o rompimento com as estruturas comuns
da linguagem. Neste momento de esquecimento, os sujeitos ainda não compreendem a
discursividade enquanto possibilidade de atuação política, somente como um único e neutro
modo de se comunicar dizeres, eles creem serem os reais detentores de seus discursos...
quando apenas reproduzem concepções hegemônicas sobre as coisas, reproduzem os
consensos que se formaram historicamente sobre as experiências sociais. Dito de outro modo,
o esquecimento dos sujeitos é compreender as coisas de uma única perspectiva, estando essa
perspectiva atrelada ao que o autor compreende como sendo essa estrutura dominante
maquínica, a princípio não questionada, que precisa ser tensionada e analisada criticamente, a
fim de que os sujeitos se contraponham a este modelo de produção discursiva e rejeitem este
‗‘já dito‘‘ ideológico homogêneo. Trata-se de suspender necessariamente tal consciente

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coletivo alienado, indo além das conformações, investigando as forças desproporcionais na


produção de discursos e as relações que acontecem exteriormente à linguagem.
Por considerar a linguagem como uma estrutural dominação política sobre os discursos,
como falávamos anteriormente, é que o filósofo sugere uma brutal ruptura com os regimes
linguísticos e suas estruturas normativas de enunciação, tal ruptura dos sujeitos se dá pelo
reconhecimento negativo sobre esta máquina de produção discursiva em marcha, vejamos:

Para romper com a concepção instrumental tradicional da linguagem que


Pêcheux fez intervir o discurso e tentou elaborar teoricamente,
conceitualmente e empiricamente uma concepção original sobre este. Nesta
tentativa de romper com a concepção instrumental da linguagem.
(PÊCHEUX, Michel, 1995, p. 26).

A reação contrária dos indivíduos a tais estruturas após o ganho de consciência


ideológica, não se dá hipoteticamente por um desequilíbrio moral e sim por motivos de
necessidade insurgente contra as opressões discursivas. ‗‘Nós compartilhamos um único
planeta, e vivemos sobre os fantasmas do compartilhamento de catástrofes". (RADICAL
Philosophy, 2020, tradução nossa). Entendemos compartilhar catástrofes aqui como sendo
essa experimentação coletiva sobre os variados processos de uma sociedade, onde não apenas
somos afetados com as consequências de uma ameaça física diante de uma crise climática,
por exemplo, como inegavelmente os sujeitos ainda disputam com essas estruturas desiguais
sobre os discursos. É a catástrofe dos conteúdos discursivos, por parte da máquina dominante
que nega as possibilidades de pluralização através da promoção dos discursos de ódio,
discursos negacionistas, discursos autoritários, etc.
O estado de governança elaborado pela filósofa Wendy Brown traduz essa máquina da
qual tanto falamos. Essa estrutura dominadora dos discursos é quem define os graus de
violência ou de pacificidade das quais determinados discursos passam a ser rotulados, sendo
urgente existir um dissenso-assujeitado estratégico politicamente ancorado na discursividade
violenta fundante de novas utopias e reformações sociais. No que diz respeito a violência
discursiva, pode-se alegar que a governança produz falsos inimigos, visto que a produção

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discursiva ideológica assujeitada não pretende potencializar maiores violências e


desigualdades, como vimos, mas buscar efetivamente os meios contingentes para se reformar
justamente essas estruturas hegemônicas.
Em seu ensaio, onde a autora defende a tese de uma sociedade baseada por um sacrifício
ideológico em detrimento de uma discursividade neoliberal homogênea, conseguimos obter as
dimensões para compreender essa dinâmica de um poder centralizador e estratégico que
chancela e sabota as pautas ideológicas das quais não confere legitimidade. O estado de
governança não apenas silencia, enrijece, austeriza, produz processos e regimes autoritários,
como também, culpabiliza discursivamente os indivíduos pelo desmoronamento catastrófico
do capitalismo, tanto nas dimensões práticas quanto pela produção discursiva exercida.
A atual economicização neoliberal da vida política e social se distingue por
uma produção discursiva que converte toda pessoa em capital humano – de
si mesma, das empresas, e de uma constelação econômica nacional ou pós-
nacional. (BROWN, Wendy, 2018, p. 8).

Assim sendo, a partir da exposição de algumas perspectivas fundamentais para se


entender a produção discursiva conceitual e ideológica, tendo como referência a ordem dos
discursos, o assujeitamento e o Estado de governança, nós conseguimos obter um cenário
panorâmico no que diz respeito compreender as estruturas de produção e recepção discursiva.
Descobrimos, portanto, que a convivência política é interessante, mas não menos desigual em
sua essência, pois segue-se que necessariamente os discursos estão atrelados a essa estrutura
de poder, sendo necessário ocorrer um desprendimento ideológico de tais estruturas
discursivas.
Em últimas linhas, constatamos que a aparente diversidade de interesses e discursos é um
ambiente de sabotagem e silenciamento discursivo, que submete hierarquicamente os sujeitos
à operarem de acordo com agendas políticas que não lhes representam devidamente tampouco
lhe concedem a emancipação ideológica necessária para contribuírem ativamente e
‗‘assujeitadamente‘‘ no fazer político. Urge a proposta de agenciamento coletivo indireto que
combata essas contradições do capitalismo, de igual modo, suas estruturas de linguagem

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abstratas. No seguinte capítulo iremos expor mais especificamente a questão do agenciamento


e suas contribuições para a análise dos discursos.

4.Agenciamento coletivo indireto


A fim de se fazer entender melhor o que seria esse problema do agenciamento discursivo
dos negros, é que neste capítulo utilizaremos as compreensões de Deleuze e Guattari sobre
agenciamento para pensarmos as condições de uma discursividade altamente violenta.
Posteriormente, relacionaremos essas dimensões do agenciamento com a obra de Abdias do
Nascimento e os discursos dos negros frente a dominância brasileira. Trazemos como
referência primeira de nossa exposição sobre essa temática do agenciamento, o capítulo dois
‗‘Haveria uma máquina abstrata da língua, que não recorreria a qualquer fator ‗‘extrínseco‘‘,
do segundo volume de Mil Platôs (1995), onde a dupla de filósofos franceses discorre sobre
as internalizações do poder por meio da linguagem.
Bem, a discursividade indireta dos discursos agenciados dizem respeito à uma recusa às
estruturas ‗‘abstratas‘‘ da língua, onde a linguagem se encontra normativa e impossível de se
adequar as transformações incorpóreas das sociedades. Para Deleuze e Guattari, não existe
linguagem exterior a agência, tampouco os conteúdos e os significados desta estrutura
linguística abstratamente existem fora deste agenciamento, pois a máquina abstrata depende
determinadamente do agenciamento para ser efetuada de maneira fluída e consistente.
Compreende-se que só há individuação do enunciado, e da subjetivação,
quando o agenciamento coletivo impessoal o exige e o determina. Esse é
precisamente o valor do discurso indiretamente livre, não há contornos
distintivos nítidos, não há, antes de tudo, inserção de enunciados
diferentemente individuados, nem encaixe de sujeitos diversos, mas um
agenciamento coletivo. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 18).

A perspectiva de agenciamento coletivo pode ser entendida como um novo modelo de


afetação às estruturas de controle discursivo da qual falávamos anteriormente, embora o
agenciamento não possua um caráter individualista que tecnicamente restrinja os indivíduos
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em suas particularidades, pois leva em consideração não encaixar sujeitos mas as múltiplas
variáveis na totalidade do agenciamento performativo desterritorializado, é que
substancialmente se faz aumentarem as possibilidades de efetuações variáveis de sentidos, de
capacidades de performance de dizeres sobre outros dizeres, de prolongamento e
diferenciação dos discursos no decorrer dos acontecimentos históricos, enfim, a
discursividade agenciada se encerrando e fundindo em si mesma, é a intensidade da diferença.
O conceito de agência, extraído originalmente de uma interpretação dos autores sobre a
concepção maquínica de Franz Kafka, é encontrado nas principais obras da dupla de filósofos
franceses Deleuze e Guattari. Na literatura deleuziana propriamente, o agenciamento
maquínico passa a ser um conceito necessário para se pensar as transformações incorpóreas
de dadas sociedades e seus processos históricos, e faz parte de uma análise crítica direcionada
ao sistema capitalista e suas contradições, bem como à linguagem abstrata, redundante e
normativa. O agenciamento possui em totalidade um caráter de efetuação necessária e
variável e está ambientado sobre um plano de consistência imanente em que os indivíduos
extraem os atos de fala para enunciarem seus discursos diretamente – em última fase,
transformados em enunciados indiretos.
É evidente que as palavras de ordem, os agenciamentos coletivos ou regimes
de signos, não se confundem com a linguagem. Mas efetuam a condição
desta (sobrelinearidade da expressão); preenchem, em cada caso, esta
condição, de forma que, sem eles, a linguagem permaneceria como pura
virtualidade (caráter sobrelinear do discurso indireto). (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 25).

A linguagem não é pura. A linguagem é agência. O discurso indireto, em todo caso, é


um discurso subversivo e produtor da loucura glossolálica, da descentralização da língua nela
mesma, momento onde coletivamente se há a oportunidade de se determinar o uso da língua a
partir de uma perspectiva desterritorializada, contrariando a heterogeneidade que dá sentido
aos modelos de produção discursiva igualmente autoritários citados nos capítulos anteriores.

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5. O agenciamento discursivo dos sujeitos negros em O Quilombismo


Nos capítulos anteriores, buscamos oferecer as definições do que seria propriamente um
sujeito do discurso e suas possibilidades de insurgência, defluindo na questão do
agenciamento discursivo a partir de Deleuze e Guattari, podendo agora, objetivamente
pensarmos, na questão central do nosso artigo: o agenciamento discursivo dos sujeitos negros.
A saber, o que motiva o sujeito negro afro-diaspórico executar uma produção discursiva
violenta, no sentido de violentar os pressupostos implícitos de controle à discursividade afro-
diaspóricas? É o que veremos neste capítulo ao relacionar as compreensões de Abdias do
Nascimento com o conceito de agenciamento discursivo.
Abdias do Nascimento em seu ensaio O Quilombismo consegue articular perfeitamente
esses fenômenos anteriormente citados e as consequências deles no devir-histórico brasileiro,
visando incluir a comunidade negra afro diaspórica, nos múltiplos sentidos do que se entende
por inclusão, nos processos de conscientização agenciada de resgate à unidade e dignidade
cultural africana a partir de uma discursividade perfurante das estruturas de domínio
discursivo. Essa proposta de discursividade violenta não se trata de uma apologia à violência
em seu sentido mais primevo, mas sim executar uma discursividade agenciada e diplomática
que garanta transformações sociais à comunidade africana diaspórica, valorizando a
importância da resistência e conscientização política e os valores africológicos, ou seja, as
contribuições culturais e sociais africanas, inserindo-as em todas as esferas de atuação e
convivência política, inclusive nas que dependam da discursividade, é rejeitar qualquer
aspecto de marginalização discursiva dos pressupostos dominantes homogêneos que
‘‘Destina-se a evitar que os africanos afirmem de forma positiva sua ética, seus valores e
seus costumes. As visões anti-espirituais e pró-materiais do Ocidente levara o mundo à beira
da destruição‘‘. (ASANTE, Molefi Kete, 2009, p. 103).
Segundo os filósofos franceses, Deleuze e Guattari (1995), para que os agenciamentos
sejam considerados válidos e enunciados publicamente eles precisam primordialmente ser
consistentes, factíveis e críveis, presentes tanto imante quanto materialmente no processo das
transformações históricas, o que valida nossa tese de que adotar uma agenda antirracista é um

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ato de consistência política necessário, logo, a partir de uma agência negra desterritorializada
violenta é que se sucederão as transformações incorpóreas, pois ‗‘Cumpre aos negros atuais
manterem e ampliarem a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e de afirmação
da sua verdade‘‘ (NASCIMENTO, do Abdias, 2019, p. 290). No que tange o agenciamento
da comunidade negra brasileira, podemos afirmar que a luta antirracismo é uma luta legítima
historicamente e que, portanto, performar um agenciamento discursivo forneceria condições
de rompimento com o harmonioso consenso maquínico dominante brasileiro onde os
discursos dos negros ocupam um lugar histórico de subalternidade.
Essa obra, em contrapartida, oferece uma agência política baseada na experiência peculiar
da diáspora brasileira quilombola fundamentada por negros escravizados, a proposta de
quilombismo que se ressignifica para as gerações atuais. ‗‘A cristalização de nossos
conceitos, definições ou princípios deve exprimir a vivência de cultura e da práxis da
coletividade negra, deve incorporar nossa integridade de ser total, em nosso tempo histórico,
enriquecendo e aumentando nossa capacidade de luta‘‘. (NASCIMENTO, do Abdias, 2019,
p. 289). O ato de se aquilombar como propõe Abdias do Nascimento, pode ser compreendido
como um modelo de agenciamento que facilita os processos de emancipação dos negros sobre
as opressões da governança dominante, sendo possível capturar nos discursos de Abdias
caminhos para utilizá-los como instrumentos de movimentação política racial e re-
humanização de sujeitos, responsabilizando o sujeito negro e sua produção discursiva ao
tensionar o ‗‘habitual‘‘ lugar de ‗‘passividade‘‘ das construções discursivas negras frente aos
‗‘harmoniosos‘‘ consensos históricos, atualmente tão fragilizados e pressionados a mudarem
significativamente rumo a pluralidade ideológica.

Considerações Finais

O presente artigo buscou examinar o problema do agenciamento discursivo dos


sujeitos negros baseando-se na proposta de aquilombamento desenvolvida por Abdias do
Nascimento em sua célebre obra O Quilombismo fazendo uso também de perspectivas outras

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sobre a temática da discursividade. Desenvolvemos filosoficamente sobre a descentralização


dos processos de produção discursiva, ao refletir sobre as consequências concretas na
convivência política no que diz respeito às opressões sistêmicas e hegemônicas, lançando
mão de identificar sobre quais circunstâncias os discursos estão situados e são produzidos, se
as vozes heterogêneas são realmente ouvidas, sobre o que seria ou não um discurso de caráter
violento ou pacífico frente às estruturas dominantes e qual lugar os sujeitos negros ocupam
nessas relações de poder e enunciação.

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CONSIDERAÇÕES FILOSÓFICAS ACERCA DO YI JING

Fabiano Belloube

Resumo
O Yi Jing é um dos textos mais antigos a que se tem acesso, tendo exercido influência sobre
algumas das principais escolas de pensamento da China clássica, com destaque ao
confucionismo e o taoísmo. O presente artigo objetiva dar resposta à seguinte questão:
quais são os pressupostos metafísicos contidos no tratado? Utilizaremos, para tal finalidade,
comentários que abordem diretamente o texto sob uma perspectiva filosófica (notadamente
os de Wu Jyh Cherng, Zhu Xi e François Jullien), bem como nosso próprio esforço
interpretativo.
Palavras-chave: Dualidade. Metafísica. Yi Jing.

Abstract
The Yi Jing is one of the oldest known texts, having had influence over some of the major
schools of thought of China‘s classical period, with an emphasis on Confucianism and
Daoism. This article seeks to answer the following question: what are the metaphysical
assumptions underlying the Yi Jing? We resort, for that objective, to commentaries that
directly analyze the text-subject with a philosophical approach – such as Wu Jyh Cherng‘s,
Zhu Xi‘s and François Jullien‘s works – as well as our own explanatory effort.
Keywords: Duality. Metaphysics. Yi Jing.

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1.Introdução

Dentre os fatos culturais que imbuíram o espírito chinês em seus três milênios de
registro histórico, destaca-se excepcionalmente o Tratado das mutações (易經, Yi Jing).
Com origem estimada durante a regência Zhou, aproximadamente no século XII anterior à
era comum88, subsistiu até a contemporaneidade como fundo ideário a diversas, mesmo
conflitantes escolas de pensamento, constituindo à sabedoria chinesa um patrimônio
primacial89. Tal patrimônio refere-se à filosofia da mudança (易 yi) proposta pelo
manuscrito, a qual parece ser motivada pelo seguinte projeto: (1) parte-se da premissa de
que a mudança é constitutiva da realidade, ou mesmo idêntica a ela; (2) busca-se ordenar
os ―momentos‖ possíveis no fluxo de manifestações, de modo a se estabelecer sob que
formas simbólicas a mudança pode ser apreendida; (3) desta compreensão, faz-se possível
acessar, a partir do contexto presente, o direcionamento natural e necessário da
mudança, alinhando-se a ele e, desse modo, à realidade mesma. Nos parágrafos
seguintes, desenvolveremos esse projeto com vistas a compreender as raízes filosóficas
que o embasam. Embora cientes da insuficiência da via teórica para a compreensão direta

88
Razão pela qual teria sido originalmente chamado Zhou Yi. Acredita-se que textos análogos, precursores do
manuscrito a que temos acesso, tenham surgido nos períodos Xia (aprox. 2000 A.E.C.) e Yin (aprox. 1600
A.E.C.),respectivamente. Cf. Cheng, C.-Y. (2008).
89
Em especial, confucionistas e taoístas igualmente recorrem ao Yi Jing. Cf. Wilhelm, R. (1984) e Wu, J.-C.
& Souza, M. C. (2015), para traduções de um e outro viés.

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da sabedoria do tratado, pretendemos oferecer ao leitor um mapeamento de seus


fundamentos, aproximando-o, assim, de um contato final e imediato com seu conteúdo.

Nossa fonte principal será o Yi Jing, o qual inclui canonicamente os comentários de


Confúcio e Rei Wen. A edição priorizada foi a de Wu Jyh Cherng, publicada pela editora
Mauad X em coautoria com Marcia Coelho de Souza, uma vez que esta tradução se deu no
contexto da doutrinação taoísta no Brasil, tendo contato direto com a tradição em que se
originou sua fonte. Quando for mencionada a numeração dos hexagramas, portanto, ter-
se- á como referência a numeração introduzida em tal edição. Recorreremos também,
pontualmente e de modo complementar, à edição de Richard Wilhelm. De modo
secundário, valer-nos-emos dos comentários do próprio Wu Jyh Cherng, bem como de Zhu
Xi, François Jullien. A escolha dos três autores se dá pela influência que suas
respectivas obras tiveram na compreensão do tratado, bem como a coerência e
complementaridade partilhadas por elas em face da distância de espaço e tempo entre suas
publicações. Não obstante, todas as três visam a abordar a obra sob uma perspectiva
metafísica, i.e., buscando compreendê-la à luz da concepção da natureza fundamental da
realidade que ela parece endossar, meta que vai de encontro com o recorte deste artigo. Em
todo caso, é importante ressaltar a existência de autores cujas publicações muito
contribuíram para a elaboração do tema em língua portuguesa, dentre os quais podemos
citar Anne Cheng, Eduardo Ribeiro, André Bueno e Monica Simas.

2.Desenvolvimento

Um proeminente mito de origem do Yi Jing remonta a 5577 A.E.C. e narra o


encontro de Fu Xi, primeiro imperador divino da China, com o objeto esférico Mapa do
Rio ( 河圖Hé Tú), que teria jazido oculto por tempo indeterminado no leito do Rio
Amarelo90. Em sua superfície, o soberano identificaria réplicas de constelações e

90
Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado das mutações. Rio de Janeiro: Mauad X, pp. 28-29.

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manuscritos herméticos tais que, estudados por mais de 100 anos, permitir-lhe-iam
conhecer o princípio da dualidade e construir, a partir dele, oito trigramas que embasariam
o conjunto dos 64 hexagramas do tratado ( 卦 guà, i.e., símbolos do que chamamos
momentos possíveis no fluxo de manifestações). Elementar à doutrina do Yi Jing, diz-nos
o mito, é a generalização da duplicidade, donde todos os hexagramas serão constituídos
por uma combinação possível de linhas de um entre dois polos, yin ou yang.

A disposição das seis linhas no hexagrama determinará um momento, de modo que


toda conjuntura seja definida a partir da interação entre duplos. Assim o hexagrama com
todas as linhas yin, chamado Abrangência (坤 Kun)a, será interpretado por Rei Wen
como momento de receptividade e passividade absolutas, quando recomenda a retidão de
uma égua e assevera que o agente do contexto, ―[...] precipitando-se, desorienta-se;
seguindo, adquire orientação‖91, ao passo que o hexagrama com todas as linhas yang,
Criativo (乾Qian)b, receberá uma interpretação diametralmente oposta por Confúcio, que o
remeterá à atividade e à iniciativa ao dizer que ―o movimento do céu é incessante [ e] o
homem superior realiza-se por seu próprio esforço, sem descanso.‖92

693794

91
00, Decisão. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 51
92
63, Grande Imagem. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 452.

93
Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado das mutações. Rio de Janeiro: Mauad X, p. 51.
94
Ibidem, p. 452.

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a) Abrangência (坤 Kun) b) Criativo (乾 Qian)

No hexagrama Paz (泰 Tai)c, composto por três linhas yang sob três linhas yin,
temos um momento favorável de ―troca entre o céu e a terra‖95, pois a terra,
representada pela tríade yin, age de acordo com sua natureza passiva e se rebaixa ao
encontro do céu, o qual, simbolizado pela tríade yang, age de acordo com sua natureza
ativa e ascende ao encontro da terra, de modo que ambos os opostos unam-se
espontaneamente. Em contrapartida, o hexagrama inverso, em que as tríades yin e yang se
situam nas posições contrárias, receberá o nome Estagnação (否 Pi)d, conotando impasse
e limitação, já que o céu, agora acima, e a terra, agora embaixo, não mais se encontram: o
céu pode apenas seguir subindo, a terra descendo, de modo que a disjunção entre ambos
perpetue-se indefinidamente.96

97
109811

c) Paz (泰 Tai) d) Estagnação (否 Pi)

95
56, Grande Imagem. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 408.
96
Para os critérios de interpretação aqui utilizados, cf. Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado
das mutações. Não negamos a existência de outros recursos interpretativos, haja vista que, enquanto oráculo, o
Yi Ji sempre incorrerá a algum grau de subjetividade (cf. adiante). O critério do Mestre Wu Jy-Cherng
cumpre, aqui, papel ilustrativo do ―modo de se pensar‖ partilhado pelos intérpretes canônicos como Confúcio
e Rei Wen, bem como por comentadores consagrados como Zhu Xi.
97
Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado das mutações. Rio de Janeiro: Mauad X, p. 408.
98 11
Ibidem, 94.
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Em qualquer hexagrama (ou momento), yin e yang condicionam-se mutuamente


enquanto opostos. Assim como se concebe o claro relativamente ao escuro e o bom
relativamente ao mau, também só poder-se-á compreender o céu, simbolizado por três
linhas yang, em oposição à terra, simbolizado por três linhas yin; ou um símbolo
inteiramente yin (Abrangência) em oposição àquele inteiramente yang (Criativo). De modo
que todos os hexagramas do tratado se apresentem como modalidades mais ou menos
elaboradas de síntese entre duplos, seja internamente, nas relações entre suas próprias
linhas, seja externamente, em sua relação com outros hexagramas. Por essa razão, Zhu Xi
declara, em sua Introdução ao estudo do Clássico da Mudança, que ―entre o Céu e a Terra
está o ch‘i unitário. Ele é dividido em dois, yin e yang, [e] não há nada que não seja
governado por esse princípio.‖99

Linhas yin e linhas yang, em relação de codependência, dispõem-se de certa


maneira e originam, a partir de sua oposição, uma totalidade referencial unitária e
coerente que não só pressuponha o contraditório, mas também nele se fundamente. Não
obstante, sendo todas as linhas (assim como os hexagramas formados a partir delas)
apreendidas de forma relativa ao contexto, em diálogo umas com as outras, não se pode
priorizar uma delas, tampouco se reconhece um centro: para que um momento seja
compreendido, requer-se uma consideração plana, igualitária de todos os opostos em jogo.
Não se pode, dirá o sinólogo, ―introduzir distinção hierárquica e como tudo que está em
seu lugar é efetivo, ‗não se pode estabelecer meio‘.‖100 Será mais uma vez Zhu Xi aquele
a perceber o que hoje é parti pris dos principais comentários acerca do Yi Jing, a saber, a
coexistência de unidadee diferença no âmbito do tratado:

99
Zhu Xi (2002). Introduction to the study of the Classic of Changes. Provo: Global Scholarly Publications, p.
18.
100
Jullien, F. (2000). Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, p. 34.

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Não é o caso de yin e yang serem duas coisas [separadas] alternando


entre declínio e crescimento. Dentro do Um estas duas partes [estão]
ambas alternando entre declínio e crescimento. Suas relações de
baixo e alto são como um peso e uma balança; suas relações de
divisão e combinação são como deslizes de contagem.101

Cabe compreender de que modo pode a mudança ser contemplada a partir de 64


hexagramas individuais. Pois ainda que reconheçamos a possibilidade de se enquadrar
qualquer conjuntura em um símbolo dado, identificando opostos em determinada
situação e sintetizando-os numa mesma imagem, tal abordagem não explana, de per se, a
passagem de um momento a outro ou a constância do fluxo de manifestações proposta
pelo tratado. Para tal, faz-se necessária uma análise mais minuciosa da hermenêutica
implícita no decorrer do texto, a qual, conforme veremos, pressupõe uma circularidade
entre momentos; a alusão, em cada um deles, à totalidade de contextos.

Tomemos como exemplo, mais uma vez, dois hexagramas contrários: Antes da
Conclusão (未濟 Weiji)e e Alcance da Conclusão (既濟 Jiji)f. No primeiro, cada linha
do hexagrama situa-se fora de retidão; no segundo, todas são consideradas retas102. Em se
tratando de dois momentos relativos ao fim de um processo, pareceria razoável atribuir ao
primeiro uma projeção desfavorável, já que todas as linhas surgem fora de retidão, e ao
segundo, em que todas as linhas encontram-se em retidão, uma projeção favorável. No
entanto, o Yi Jing propõe o oposto. Tendo-se em vista cada hexagrama é uma
manifestação de um fluxo constante, nenhuma conclusão poderia ser definitiva; o fim

101 14
Zhu Xi (2002). Introduction to the study of the Classic of Changes. Provo: Global Scholarly Publications, p.
57.
102
Dizem-se retas as linhas que, contadas de baixo para cima, são simultaneamente ímpares e yang, assim como
aquelas pares e yin. Está além de nosso propósito uma explanação profunda do conceito de retidão no Yi Jing;
atente-se, porém, ao fato de que ele não implica a hipóstase de uma posição ―verdadeira‖ e outra ―falsa‖ para cada
linha, como o nome pode sugerir. Trata-se, pelo contrário, de um entre vários instrumentos igualitariamente
considerados pelos quais a relação entre linhas pode ser avaliada.

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significa, pelo contrário, não mais que o limite entre um ciclo e outro. Assim sendo, a
projeção de uma conclusão ordenada, em que todas as linhas encontram-se no lugar, é
necessariamente a deterioração, uma vez que o que alcançou a perfeição pode apenas
regredir, ao passo que a projeção para uma conclusão desordenada, sem nenhuma linha
reta, é o progresso, já que não se pode imperfeiçoar o absolutamente imperfeito.

Por isso, Rei Wen verá em ambos os hexagramas a potencialidade e a abertura


pressupostas no fim de um ciclo, mas alertará, excepcionalmente para o Alcance da
Conclusão: ―no início, boa fortuna, [e] ao final, desordem.‖103 Confúcio, por sua vez,
interpretará cada um dos dois de acordo com suas tendências: enquanto enfatizará, sobre o
caótico Antes da Conclusão, a potência de um progresso, determinando que o agente do
contexto ―[use] de cautela para discernir e determinar sobre lugares e direções ‖104,
recomendará, sobre o perfeito Alcance da Conclusão, a prevenção e retardo de um regresso
iminente, propondo que o agente ―[utilize] a lucidez para prevenir problemas.‖105
1910620107

e)Antes da Conclusão(未濟 Weiji)


f)Alcance da Conclusão(既濟 Jiji)

103
21, Decisão. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 182.
104
21, Grande Imagem. Ibid.
105
42, Grande Imagem. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 319.
106
Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015). I Ching: o tratado das mutações. Rio de Janeiro: Mauad X, p. 182.
107
Ibidem, p. 319.

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Um hexagrama nunca determinará, portanto, tão somente uma conjuntura estática;


determinará um momento tal que, concebido como manifestação momentânea do fluxo,
não fixa uma referência, tampouco se reifica, mas indica a própria passagem. Os dois
hexagramas desenvolvidos acima, ao tratarem da conclusão de um processo, não
enfocam a fortuna ou azar sob os quais apresenta-se a conclusão mesma, mas o
momento seguinte, o novo ciclo engendrado pela consumação do atual. Conhecendo a
passagem de um ciclo a outro encarnada num hexagrama, o intérprete pode, então,
conformar-se ao direcionamento da mudança e regular seus afetos e volições para que
estejam alinhados com o processo. Caso contrário, agirá contrariamente à natureza (道
dào) e será por elasobrepujado.

Tal abordagem reguladora é comparada por Jullien à doutrina confucionista do ―justo


meio‖. Adeptos dessa escola atribuiriam ao mestre a isenção de quatro excessos: formar
ideias, preestabelecer necessidades, fixar posições e creditar um eu próprio.108 Diriam
que a sabedoria de Confúcio jazia em sua inabalável flexibilidade, em sua capacidade
deadequar-se à circunstância sem identificar-se com um único momento ou um único
curso de ação. Em suma, reconhecendo a necessidade da mudança, ser capaz de agir em
conformidade com cada contexto particular, alinhando-se à própria transformação:

O que era recomendado [por Confúcio] era poder tanto um quanto o


outro, isto é [...] tanto ―se comprometer‖ como ―se retirar‖, tanto
estar ―pronto‖ quanto ―durar‖, e com isso ir cada vez até o fim do
―possível‖ explorando ao máximo cada ―momento‖ particular. A
noção de justo meio está presente aí, mas deve ser repensada. De
fato, esse ―justo meio‖ é ―justo‖ porque é regulado: você não se
imobiliza, ou não ―se obstina‖, em nenhuma posição, e não cessa
de evoluir para se adaptar à situação; do mesmo modo, há um
―meio‖, mas este é desdobrado: ele está para um e para o outro
extremo, em si tão legítimos um quanto o outro, assim como, na
figura do hexagrama, estão [seus] opostos.109

108
Cf. Confúcio. (2017). IX.4, p. 99.
109
Jullien, F. (2000). Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, pp. 34-35.

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A via confuciana é a mesma imposta pelo tratado: uma aderência permanente à


passagem que implica, simultaneamente, a não aderência a nenhum de seus momentos
particulares. Reconhece-se a máxima hieracliana de que a única constante é a mudança e
busca-se, a partir dela, compreender em que forma a mudança pode ser apreendida em um
dado contexto. Dessa compreensão deduz-se um direcionamento natural a partir do
momento, tal como as possibilidades de ação e cognição mais conformes à própria
transformação. Mas essa possibilidade, tão logo avançada, dá vazão a outro contexto, em
que torna-se imediatamente obsoleta. O intérprete não se fixa, portanto, em um momento,
tampouco generaliza um modo de conduta: ―aplica a sentença; porém, não se demora em
aprisionar‖110, de modo que seja sempre uno com o processo.

Mesmo em algo aparentemente simples como o posicionamento catalogado dos


trigramas que compõem os hexagramas, Zhu Xi proporá que sejam alocados de modo a
enfatizar a relação de mudança entre um e outro. Diz o autor:

―[Shao] também disse: ‗Mudança‘ (yi) é o que designa ‗a


alternação de yin e yang.‘ Chen e Tui começam a interação; portanto
eles são colocados em posições de manhã e noite. Ken e Li interagem
ao máximo; portanto são colocados nas posições de meia-noite e
amanhecer. Sun e Ken não interagem, mas seus yin e yang
permanecem misturados.111
Se considerarmos acurada a análise acima, dois motivos se sobressaem na
fundamentação filosófica do tratado. Em primeiro lugar, temos a generalização da
duplicidade a todos os fenômenos apreensíveis (considerando-se que todo fenômeno
apreensível pode ser enquadrado em um hexagrama que, conforme exposto,
fundamenta- se na interação de duplos); em segundo lugar, decorre da própria extensão
da duplicidade às relações externas ao hexagrama (com outros hexagramas), que um
fenômeno só existe em relação aos demais, donde sempre aluda ao fluxo e, portanto, à

110
13, Grande Imagem. Em: Wu, J.-C. & Souza, M. C. (2015), p. 130.
111
Zhu Xi (2002). Introduction to the study of the Classic of Change. Provo: Global Scholarly Publications, p.
42.

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mudança . Por sua vez, ambos os motivos dão margem a um terceiro, a saber: a não
separação de sujeito e objeto,a ser desenvolvida a seguir.

É de imediato evidente que a oposição sujeito-objeto seja desconsiderada em prol de


uma integração do intérprete com a situação a que se visa adequar. Afinal, a
conformação de um contexto a um dos 64 hexagramas pressupõe uma perspectiva
sincrônica em que intérprete e situação coexistem num mesmo plano. Através da própria
inserção no contexto que pretende analisar, um oraculista encontra, espontaneamente, um
encaixe, um modo de contemplá-lo através do modelo oferecido por um hexagrama.
Assim significa o modelo de acordo com sua relação com o contexto, descobrindo os
contrários em jogo e sistematizando-os em uma única imagem. Dois indivíduos podem
defrontar o mesmo modelo, mas farão associações radicalmente díspares a depender da
situação que objetivam nele enquadrar.112 A subjetividade, desse modo, sempre se mistura
com o objeto que pretende abordar, a ponto de se tornar indissociável dele. Com isso em
mente, um comentário alega que Confúcio teria justificado o uso de imagens como uma
forma de ―expressar intencionalidade [e] exaustar a semântica‖113, o que, para Davis,
significa:

Imagens carregam significado, assim como fonemas, apenas por sua


articulação; no mais baixo nível de significado, elas são exemplares –
promissoras – do potencial para significar diferenças perceptíveis [...]
em configurações vindouras. [...] Imagens desse tipo [...] são
intermediárias entre percepções e conceitos.114
De modo que a realidade seja interpretada pelo processo em que os opostos sujeito e
objeto conciliam-se, donde um momento dependa igualmente dos aspectos fatuais de uma
situação e do enquadramento que recebem do agente nela inserido, o qual não pode

112
O enquadramento dos opostos será sempre relativo. Assim, um mesmo objeto avançado como ―yin‖ por um
oraculista pode receber um enfoque ―yang‖ por outro, que opera sob outra referência, sem que haja prejuízos à
interpretação.
113
Davis, S. (2012). The Classic of Changes in cultural context. Amherst: Cambria Press, p. 12.
114
Ibidem, p. 13.

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distinguir-se tampouco alienar-se daqueles. Sujeito e objeto defrontam-se num mesmo


plano enquanto aspectos convencionalmente diferenciados de uma mesma qualidade.
Coerente com esta radical conciliação de opostos é, conforme vimos, a circularidade
dos 64 hexagramas: a partir de linhas convencionadas opostas, yin e yang, conciliamo-
las em

oito tríades tais que, concebidas como opostas umas às outras, são mais uma vez
conciliadas em 64 símbolos; símbolos esses que, no entanto, de modo algum representam
situações autossuficientes, não só sendo concebidos como relativos opostos uns dos outros
(Abrangência e Criativo, Paz e Estagnação, Antes da Conclusão e Alcance da Conclusão),
como referindo-se e aludindo a todos os demais, donde um momento sempre conterá a
tendência implícita à ciclicidade.
Ao mesmo tempo, uma vez que cada contexto clama por um modo distinto de
adequação, o domínio subjetivo parece cumprir um papel intermediário, haja vista que seu
destino é sempre a conformação com o processo em que está inserido e do qual não se
destaca, o que faz com que sua disjunção com o domínio objetivo termine por ser mitigada.
Simultaneamente: 1) o sujeito é compelido a reconhecer a impermanência da realidade
em si mesmo, já que todos os contextos são concebidos relativamente a ele próprio, o que,
por si só, mitiga a possibilidade de um sujeito idêntico a si mesmo ao longo do tempo na
perspectiva filosófica do Yi Jing; 2) e o próprio objetivo que o uso oracular do tratado
pressupõe115 – a conformação ao fluxo de manifestações – implicitamente nivela o
intérprete com todas as forças em jogo em uma dada situação, de modo que seja concebido
como uno com o processo (o qual, em última instância, ―não pensa em nada, não faz nada
[e] em tranquilidade, imóvel‖116).

115
Sobre a primazia do uso oracular do Yi Jing, cf. CHENG, C. -Y. The Yi-Jing and the yin-yan way of thinking.
Em B. Mou, The Routledge History of Chinese Philosophy. Abingdon: Routledge, 2008.
116
Cf. Zhu Xi (2002). The original meaning of the Yijing: commentary on the Scripture of Change.
Colúmbia:Columbia University Press.

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Considerações finais

Neste breve artigo, buscamos pincelar os pressupostos metafísicos subjacentes ao Yi


Jing. Consultamos, para isso, o texto original com os comentários canônicos de
Confúcio e Rei Wen, bem como autores de viés filosófico cujo trabalho nos auxiliou a
abordar o tratado sob esse recorte. Três motivos principais foram identificados em nossa
análise. Da estrutura dos hexagramas e seu mito de origem, depreendemos a generalização
da duplicidade, ideia posteriormente tornada canônica por Zhu Xi. Estendendo tal
generalização para além das relações internas ao hexagrama, ou seja, para sua relação
com os demais, deparamo-nos com a codependência entre momentos, de modo que um
hexagrama sempre aluda aos outros e configure, assim, uma face da mudança. Por fim,
identificamos a não disjunção entre sujeito e objeto, haja vista o nivelamento de ambos
no contexto do hexagrama. Isso por sua vez nos levou a argumentar por uma óptica
metafísica que mitiga a contrariedade dos domínios subjetivo e objetivo da experiência, já
que a integração de todos os opostos, tal como o alinhamento incondicional à mudança
imposto a cada contexto particular, dispõem o intérprete a ver-se dissoluto no contexto
originário e unitário da mudança mesma, de modo que, conforme almejava Confúcio, já
não tenha ideias, necessidades, posições ou identidade própria. Em linhas gerais,
identificamos no Yi Jing um mapeamento de momentos apreensíveis e o estabelecimento de
uma totalidade referencial a partir deles que supõe a simultaneidade e codependência de
todos os opostos nela contidos, seja no nível da relação entre linhas, entre tríades em um
mesmo hexagrama, entre um hexagrama e os demais, ou, ainda, entre sujeito e objeto
da interpretação. Em toda mudança, informa-nos o manuscrito, subjaz a matriz imóvel em
que todos os eventos encontram-se planificados e indiscriminados, de modo que o
intérprete se assemelhe à gota de mercúrio quando reaproximada da fonte que a lançou,
sendo por ela sorvida e mais uma vez igualada ao todo a que se deve.

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Referências bibliográficas

CHENG, C.-Y. The Yi-Jing and the yin-yan way of thinking. Em B. Mou, The
RoutledgeHistory of Chinese Philosophy. Abingdon: Routledge, 2008.

CONFÚCIO. Os analectos. Porto Alegre: L&PM, 2017.

DAVIS, S. The Classic of Changes in cultural context: a cultural archaeology of the Yi


Jing. Amherst: Cambria Press, 2012.
JULLIEN, F. Traité de l'efficacité. Paris: Grasset et Fasquelle, 1997.

. Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

WU, J.-C. & SOUZA, M. C. I Ching: o tratado das mutações. Rio de Janeiro: Mauad
X,2015.

LAO TSE. Tao Te Ching: o livro do Caminho e da virtude. Rio de Janeiro: Mauad X,
2011.WILHELM, R. I Ching: o livro das mutações. São Paulo: Pensamento, 1984.
ZHU XI. Introduction to the study of the Classic of Change. Provo: Global Scholarly
Publications, 2002.
. The original meaning of the Yijing: commentary on the Scripture of
Change.
Colúmbia: Columbia University Press, 2002.

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O PROBLEMA DO MAL E DA PRESCIÊNCIA DIVINA EM DE LIBERO


ARBITRIO DE SANTO AGOSTINHO

Gabriel Lins Batista

Resumo
O presente trabalho visa apresentar a solução dada por Santo Agostinho ao problema do mal,
aliado à aparente contraditoriedade entre a presciência de Deus e a liberdade humana. Para
isto, será útil como bibliografia principal do filósofo sua obra De libero arbitrio, um livro em
forma de diálogo onde o pensador esclarece suas posições acerca do livre-arbítrio e da
presciência divina.
Palavras-chave: Livre-arbítrio. Patrística. Santo Agostinho.

Abstract
The present work aims to present the solution given by Saint Augustine to the problem of
evil, combined with the apparent contradiction between the God‘s foreknowledge and human
freedom. For this, his work De libero arbitrio will be useful as the main bibliography of the
philosopher, a book in the form of a dialogue where the thinker clarifies his positions
regarding the free will and the divine foreknowledge.
Keywords: Free will. Patristic. Saint Augustine.

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1. Introdução ao problema do mal

Em De libero arbitrio, Santo Agostinho procura responder à questão da origem do


mal. Com efeito, como harmonizar a doutrina da bondade eterna de Deus com a existência do
mal no mundo? A resposta de Agostinho decidiu os rumos da apologética cristã, na medida
em que propôs a noção de que a maldade do mundo não pode vir de outro lugar a não ser do
próprio homem, que escolhendo de forma errônea o que deve ser feito, inicia o processo de
separação entre criatura e Criador.
Sem dúvida, a defesa do livre-arbítrio surge como resposta ao pensamento da seita de
Manes (ou Maniqueu), conhecida como ―maniqueísmo‖, da qual outrora o santo era membro,
caracterizada por criar certa dicotomia no mundo ao afirmar que existia, tal como o Bem, o
Mal no sentido ontológico do termo. Mais ainda, o bispo de Hipona está interessado em
afirmar que o homem é verdadeiramente responsável por seus atos e que, portanto, não se
pode atribuir a Deus a causa do pecado. Decerto, para além da teologia, a ideia de livre-
arbítrio em Agostinho contém grande desenvolvimento filosófico, segundo o qual o pensador
traz elementos de uma psicologia interessante, na qual é visto que nem mesmo as
propriedades passionais humanas são capazes de restringir em total a ação do livre-arbítrio, de
modo que sempre pode ser responsabilizado o pecador.
Contudo, é digno de nota que suas afirmações favoráveis ao livre-arbítrio renderam ao
autor muitas controvérsias, principalmente com Pelágio e seus seguidores, que se utilizaram
até mesmo desta obra do Hiponense para afirmar a crença de que o homem pode evitar o

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pecado por suas próprias forças. Contra o pelagianismo, Agostinho precisará então debruçar-
se sobre a questão de como conciliar a soberania da graça e a liberdade humana. A defesa do
filósofo à doutrina da necessidade do auxílio divino para a salvação rendeu-lhe o título de
―Doutor da Graça‖, e seu ponto de vista influenciou principalmente teólogos escolásticos,
como também os da Reforma Protestante, como João Calvino.
É fato, porém, que é o problema do mal que ocupa lugar importante não só em De
libero arbitrio, mas também numa de suas mais conhecidas obras, as Confissões. Ali o santo
admite ter sido influenciado pelo maniqueísmo ao buscar a origem do mal de modo errôneo,
conforme diz117:
Buscava a origem do mal, mas buscava-a erroneamente. E, ainda mesmo
nessa indagação, não enxergava o mal que nela havia. Obrigava a passar,
ante o olhar do meu espírito, todas as criaturas, tudo o que nelas podemos
ver[...]. Dizia: ―Ele [Deus] é bom e, por conseguinte, criou boas coisas. E eis
como Ele as rodeia e as enche! Onde está, portanto, o mal? De onde e por
onde conseguiu penetrar?118
Agostinho, de fato, procurava o mal no mundo como algo que possuísse substância, de
maneira próxima àquela proposta pelos maniqueístas. Contudo, se de fato podemos crer na
bondade de Deus, como poderia ocorrer que Ele criasse substâncias más? A solução desse
problema dada pelo autor está relacionada ao que se entende por ―mal‖.

2. O que é o mal?

117
Para as citações do livro das Confissões, utilizo a tradução disponibilizada em AGOSTINHO, 1980. Quanto
às citações do diálogo O livre-arbítrio, faço uso da tradução presente em AGOSTINHO, 1995. Já o texto
original em latim que se segue nas notas de rodapé referentes a ambas as obras, é o presente na Opera Omnia de
Agostinho, disponível gratuitamente no site <http://www.augustinus.it/latino/index.htm> ; acesso em 07 de
agosto de 2020.
118
Confessionum VII, 5, 7: Et quaerebam, unde malum, et male quaerebam et in ipsa inquisitione mea non
videbam malum. Et constituebam in conspectu spiritus mei universam creaturam, quidquid ea cernere
possumus.[...] sed tamen bonus bona creavit; et ecce quomodo ambit atque implet ea: ubi ergo malum et unde et
qua huc irrepsit?

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O Hiponense em suas obras irá muitas vezes tratar do ―mal‖ segundo três aspectos
principais119, que outrora para ele eram confusos. O não entendimento desses distintos
significados de mal é a raiz do erro dos maniqueístas, que viam o mal como algo presente
substancialmente na realidade. O primeiro sentido de ―mal‖ é o metafísico-ontológico, o
modo com que a heresia de Maniqueu interpretava o mal no mundo. Nesta perspectiva, o mal
é substância, é dotado de ―ser‖, contendo assim uma existência real e concreta. Os hereges
julgavam que o mal estava relacionado à matéria120, e assim procuravam de todo modo
desvincular-se da mesma. Dessa forma, Agostinho viu-se influenciado a procurar desta
maneira o mal no mundo, mas chegou a compreender que não era assim que deveria
identificá-lo.
O segundo aspecto pelo qual o mal pode ser considerado é o moral, e é
principalmente nesse sentido que o filósofo discutirá as ações proporcionadas pelo livre-
arbítrio, culminando na ideia de que o mal moral, que é propriamente o pecado, é originado
pelo homem e não por Deus. Há então, por último, o mal físico, que é identificado como
consequência do mal moral cometido por Adão e Eva. O pecado original criou no ser humano
uma condição de fraqueza, por onde as doenças, as dores e a morte poderiam vir a existir,
algo diferente de antes da Queda.121
Assim, tendo distinguido essas três particularidades, pode-se compreender melhor a
solução dada por Santo Agostinho, a saber, de que o mal no mundo não existe de forma
ontológica, mas segundo uma escolha errônea do livre-arbítrio da vontade, caracterizando o
mal moral. É isto mesmo o que o autor diz nas Confissões:
Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma
perversão da vontade desviada da substância suprema–de Vós, ó Deus– e

119
Cf. AGOSTINHO, 1995, pp. 16-17.
120
AGOSTINHO, 1980, p. 87, nota de rodapé 2ª.
121
Cf. De libero arbitrio, III, 18, 51.

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tendendo para as coisas baixas: vontade que derrama as suas entranhas e se


levanta com intumescência.122
A interpretação do autor sobre o problema deparou-se com a realidade de que a
bondade de Deus, estendida a todos os seres por Ele criados, não podia estar em comunhão
com qualquer maldade. Assim, Agostinho interpretou que, ao contrário, o mal se mostra
como privação do bem, na medida em que os seres humanos preferem alguns bens inferiores
ao Bem supremo que é Deus, algo já tratado de modo parecido também por outros filósofos
cristãos123. Também é preciso dizer que a resposta do Doutor da Graça a tal questão fora
deveras influenciada pelos escritos neoplatônicos124, tal como nos diz Silva (2016):
À medida que lia os livros dos neoplatônicos Agostinho compreendia cada
vez mais que Deus não podia estar localizado no espaço como algo corpóreo
nem tampouco haveria um ―onde‖ Deus não pudesse estar. Esta nova
compreensão do hiponense, provavelmente se deve ao fato de ele ter lido na
Enéada V, V, 9, ―não podemos pensar de algo de Deus aqui e algo acolá,
nem de Deus todo reunido num sítio‖. (SILVA, 2016, pp. 66-67)
Por conseguinte, Agostinho entendeu que Deus, não estando circunscrito a um corpo,
estaria presente em todas as coisas, Ele ―as rodeia e as enche‖125, não podendo assim o mal
existir de modo ontológico, pois Deus é entendido como o Sumo Bem. Assim, Agostinho
deveria focar seu estudo na realidade pecado e, para tanto, dialogou com seu amigo Evódio
em De libero arbitrio, onde a fundo procuraram a origem da mesma. Tratar-se-á agora de
analisar o modo com que o Hiponense faz sua defesa do livre-arbítrio para apontar a fonte do
pecado e o grande problema que tratará em conciliá-lo com a presciência divina.
3. Livre-arbítrio: causa do pecado

122
Confessionum VII, 16,22 : Et quaesivi, quid esset iniquitas, et non inveni substantiam, sed a summa
substantia, te Deo, detortae in infima voluntatis perversitatem proicientis intima sua et tumescentis foras.
123
―Esta identificação do mal com o não ser foi retomada por alguns filósofos e teólogos cristãos – Clemente de
Alexandria em sua obra Stromata, Orígenes em De principiis e, principalmente, por Agostinho de Hipona que
afirma na sua obra, A Cidade de Deus, cap. XI, 22, ‗Nenhuma natureza, absolutamente falando, é um mal. Esse
nome não se dá senão à privação do bem‘.‖ (SILVA, 2016, p. 7)
124
Confessionum VII, 9,13.
125
Ibid. VII, 5,7.

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O De libero arbitrio começa com um questionamento de Evódio: ―Será Deus o autor


do mal?‖(I,1,1). Esta pergunta realmente sempre intrigou a teologia, pois a existência do mal
no mundo parecia contradizer-se com a caracterização de Deus como Sumo Bem. Agostinho
responde a Evódio esclarecendo que, na investigação de ambos, devem ser distinguidos dois
sentidos de mal: aqueles dois últimos aos quais nos referimos anteriormente, o moral e o
físico. Contudo, será o mal moral (isto é, o pecado) o foco das discussões. Se de fato Deus
criou todas as coisas e o pecado existe, parece ser justo acreditar que Ele também o tenha
criado.
Porém, caracterizar Deus como autor do pecado seria negar todas as prescrições
morais dadas pela divindade na prática religiosa, negando, portanto, a bondade divina. Por
isso, no que se refere ao pecado, Deus não é seu autor, indica Agostinho; e que Ele é justo ao
punir o pecador, enquanto se entende que este último peca por vontade própria.
Assim, novamente, a defesa do livre-arbítrio surge como pedra fundamental não só
para a apologia da bondade de Deus, mas de sua justiça, como diz o santo:
O mal não poderia ser cometido sem ter algum autor. Mas caso me perguntes
quem seja o autor, não o poderia dizer. Com efeito, não existe um só e único
autor. Pois cada pessoa ao cometê-lo é o autor de sua má ação. Se duvidas,
reflete no que já dissemos acima: as más ações são punidas pela justiça de
Deus. Ora, elas não seriam punidas com justiça, se não tivessem sido
praticadas de modo voluntário126.
Prosseguindo em seu estudo sobre o livre-arbítrio, Agostinho faz uma análise de
alguns pecados, em particular o adultério, e discute com Evódio a possibilidade de que sejam
causados pelas paixões. No entanto, o bispo de Hipona estabelece como que uma hierarquia
entre os seres, de modo que o homem é superior aos outros animais, justamente por ser
dotado de razão, a ponto de, por ter tal elemento em sua constituição psicológica, poder
dominar as criaturas ferozes, superiores ao homem em habilidades corporais, mas inferiores
segundo a inteligência.

126
De libero arbitrio I,1,1: Non enim nullo auctore fieri posset. Si autem quaeris quisnam iste sit, dici non
potest: non enim unus aliquis est, sed quisque malus sui malefacti auctor est. Unde si dubitas, illud attende quod
supra dictum est, malefacta iustitia Dei vindicari. Non enim iuste vindicarentur, nisi fierent voluntate.

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O filósofo indica, porém, que também os seres humanos possuem paixões que os
outros animais não possuem, como o ―amor aos elogios e à glória‖127, mas que por esses
sentimentos o homem não deveria gloriar-se, já que essas e as outras paixões sempre se
revoltam contra a razão. Além disso, Agostinho afirma que é comum considerar sábio o
homem capaz de dominar cada uma de suas paixões, e não apenas dominar os outros seres.
E, constatando o fato de que um homem é tido por superior aos demais animais pelo
fato de ter razão, e é ainda superior aos demais de sua espécie na medida em que é capaz de
dominar a si mesmo, parece ser evidente que a razão detém superioridade sobre as paixões, a
ponto de seres humanos serem capazes de ir contra o que as paixões sugerem muitas vezes.
Se assim é, a razão da mente humana não é obrigada a seguir as paixões e, ainda que as
mesmas possam influenciá-la na tomada de decisões, não podem escravizá-la. O pensador
indaga Evódio:
Julgas que a paixão seja mais poderosa do que a mente, à qual sabemos que
por lei eterna foi-lhe dado o domínio sobre todas as paixões? Quanto a mim,
não o creio de modo algum, pois, caso o fosse, seria a negação daquela
ordem muito perfeita de que o mais forte mande no menos forte. Por isso, é
necessário, a meu entender, que a mente seja mais poderosa do que a paixão
e pelo fato mesmo será totalmente justo e correto que a mente a domine128.
Entendido isso, Agostinho e Evódio concluem que somente algo superior à mente
humana poderia ser capaz de subjugá-la, mas o que seria esse Ser capaz de superar a reta
razão, de modo que fizesse uma pessoa virtuosa escolher o pecado? A conclusão é óbvia para
Evódio e Agostinho: somente Deus seria capaz de tal feito. No entanto, seria contraditório
que Deus pudesse fazer tal coisa, já que se Ele é superior à razão virtuosa, não poderia obrigar
o homem a errar sem que Ele mesmo decaísse de seu estado.129

127
Ibid. I, 8,18.
128
Ibid. I,10,20: Putasne ista mente, cui regnum in libidines aeterna lege concessum esse cognoscimus,
potentiorem esse libidinem? ego enim nullo pacto puto. Neque enim esset ordinatissimum ut impotentiora
potentioribus imperarent. Quare necesse arbitror esse ut plus possit mens quam cupiditas, eo ipso quo cupiditati
recte iusteque dominatur.
129
Ibid. I,10,20 : Aug. - animus iustus, mensque ius proprium imperiumque custodiens, num potest aliam mentem
pari aequitate ac virtute regnantem, ex arce deicere, atque libidini subiugare? Ev. - Nullo modo; non solum

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Portanto, Santo Agostinho conclui seu raciocínio dizendo que se por um lado as
paixões não podem obrigar o ser humano a pecar, e que por outro muito menos ainda Deus o
faria, só resta admitir que é o próprio livre-arbítrio o responsável pela escolha do pecado.130
Deus, então, não poderá ser considerado o autor do pecado, uma vez que o pecado está
relacionado à radical opção da liberdade humana. No entanto, restam ainda muitas questões a
se fazer. Com efeito, existe uma grande pergunta no livro III, a saber: se Deus é onisciente,
tendo presciência de todas as coisas que estão acontecer, não seria o caso de dizer que todos
os pecados acontecem necessariamente? E se assim for, ainda podemos dizer que os seres
humanos possuem livre arbítrio?
4. A presciência de Deus contradiz o livre-arbítrio?131

propter eamdem in utraque excellentiam, sed etiam quod a iustitia prior decidet, fietque vitiosa mens, quae
aliam facere conabitur, eoque ipso erit infirmior. [Agostinho: O espírito justo, e a mente firme em seu direito
conservando seu domínio, poderá afastar-se de sua força e submeter à paixão outra mente que reina com igual
equidade e virtude? Evódio: De modo algum. Não somente porque a excelência é igual em uma e outra, mas
também, a primeira mente não poderia obrigar a outra a se tornar viciada, sem ela mesma decair de sua justiça e
tornar-se viciada, ficando por isso mesmo mais fraca.] Se, conforme o dito, um espírito virtuoso não é capaz de
tornar vicioso outro espírito virtuoso, sem antes se tornar vicioso, quanto mais Deus que é superior em virtude
aos demais espíritos. Como diz Agostinho, ―quaecumque illa natura sit, quam menti virtute pollenti fas est
excellere, iniustam esse nullo modo posse‖. (Ibid. I,11 a, 21b) [esse Ser, seja ele qual for, capaz de ultrapassar
em excelência a mente dotada de virtude, não poderia de modo algum ser um Ser injusto. Tampouco, ainda que
tivesse esse poder, ele não forçaria a mente a submeter-se às paixões].
130
Ibid. I,11 a, 21c: Nulla res alia mentem cupiditatis comitem faciat, quam propria voluntas et liberum
arbitrium. [Portanto, não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria
vontade e o livre-arbítrio].
131
Ibid. III, 2, 4: Ev. - Quae cum ita sint, ineffabiliter me movet, quomodo fieri possit ut et Deus praescius sit
omnium futurorum, et nos nulla necessitate peccemus. Quisquis enim dixerit aliter evenire posse aliquid quam
Deus ante praescivit, praescientiam Dei destruere insanissima impietate molitur[...]. Quomodo est igitur
voluntas libera ubi tam inevitabilis apparet necessitas? [Evódio: Assim sendo, sinto-me sumamente preocupado
com uma questão: como pode ser que, pelo fato de Deus conhecer antecipadamente todas as coisas futuras, não
venhamos nós a pecar, sem que isso seja necessariamente? De fato, afirmar que qualquer acontecimento possa se

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O questionamento de Evódio reflete uma preocupação bem comum e intuitiva para a


maior parte das pessoas. É verdade que a ideia de que Deus, ao conhecer tudo o que irá
acontecer, parece deixar evidente que não somos livres. Na ocasião de existir um Deus
onisciente, que por isso conhece também o futuro, como poderíamos dizer que as coisas não
estão destinadas a ocorrer e que, dessa forma, não há liberdade?
A resposta dada por Agostinho é simples, mas ele faz Evódio entendê-la segundo
vários questionamentos sobre a felicidade. Ambos entendem que a felicidade é um bem que
pode ser dado verdadeiramente por Deus. O bispo de Hipona leva seu colega a compreender
que se Deus é capaz de conhecer a felicidade futura que dará a Evódio, é fato que essa
felicidade dará lugar a uma vontade própria de Evódio de continuar sendo feliz, pois os
homens aspiram à felicidade. E, se realmente Deus sabe que Evódio quererá ser feliz, apesar
disso necessariamente acontecer por já estar previsto, como poderá ser dito que Evódio será
feliz contra a própria vontade? Agostinho indica:
Ora, a vontade de ser feliz que terás, quando começares a sê-lo, certamente
não te é tirada pela presciência de Deus, que já desde hoje volta-se com
certeza sobre tua felicidade futura. Assim também, a vontade culpável, se
acaso estiver em ti, não deixará de ser vontade livre, pelo fato de Deus ter
previsto a existência futura dela.132
A solução do Doutor da Graça basicamente diz que há equívoco em considerar uma
só e mesma coisa (I) o ato de Deus em prever por sua onisciência e (II) as ações humanas
previstas por Ele. Em verdade, a vontade livre é condição de existência para a previsão dada
por Deus. Se Deus realmente prevê os atos causados pelos homens, é porque eles
acontecerão, mas não em virtude da previsão; ao contrário, porque tal pessoa fará
determinado uso de sua vontade no futuro, é que Deus pode prever o que ocorrerá. A previsão
divina, portanto, não causa o ato da vontade livre; antes, o supõe. No dizer de Agostinho:

realizar sem que Deus o tenha previsto seria tentar destruir a presciência divina com desvairada impiedade. [...]
Como, pois, pode existir uma vontade livre onde é evidente uma necessidade tão inevitável?]
132
Ibid. III, 3,7 : Sicut autem voluntatem beatitudinis, cum esse coeperis beatus, non tibi aufert praescientia Dei,
quae hodieque de tua futura beatitudine certa est: sic etiam voluntas culpabilis, si qua in te futura est, non
propterea voluntas non erit, quoniam Deus eam futuram esse praescivit.

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Se o objeto da presciência divina é a nossa vontade, é essa mesma vontade


assim prevista que se realizará. Haverá, pois, um ato de vontade livre, já que
Deus vê esse ato livre com antecedência. E por outro lado, não seria ato de
nossa vontade, se ele não estivesse em nosso poder. Portanto, Deus também
previu esse poder. Logo, essa presciência não me tira o poder. Poder que me
pertencerá tanto mais seguramente, quanto mais a presciência daquele que
não pode se enganar previu que me pertenceria.133
Desse modo, mais uma vez, Deus não poderia ser responsabilizado pelo mal no
mundo. O fato de prever a existência do mal moral não imputa a Deus qualquer culpa. Antes,
são as ações humanas que geram o pecado, em razão do livre-arbítrio. E ainda, Agostinho faz
uma última pequena argumentação a este respeito, a partir de uma dimensão mais pessoal.
Tendo percebido que Evódio permanecera ainda duvidoso quanto à impossibilidade de
se imputar a Deus a culpa pelos pecados, Agostinho o indaga se o problema referia-se à
presciência propriamente dita ou ao fato de que é Deus que prevê em tal situação. Assim,
Agostinho convida-o a pensar que caso fosse Evódio mesmo quem previsse a ocorrência dos
pecados de alguém, seria evidente que a pessoa em questão pecaria; caso contrário, não se
poderia dizer que Evódio detinha o poder de previsão. Ainda assim, seria desonesto atribuir a
ele a causa do pecado daquele indivíduo.134 Verifica-se, de tal maneira, que o Hiponense
objetivou dar mais concretude à questão, a fim de que Evódio pudesse compreendê-la não
apenas em termos mais abstratos, que é o caso de se analisar a situação sob o aspecto divino.
Ademais, encerrando definitivamente o tópico, o filósofo estabelece uma comparação
entre a presciência e a memória. Embora seja evidente que o objeto da primeira é o futuro e o
da segunda é o passado, Agostinho enxerga a semelhança entre as duas realidades, na medida
em que ambas se relacionam com atos que necessariamente acontecem. Porém, como a
memória constitui-se como um fenômeno mais próximo da experiência humana, Agostinho se

133
Ibid. III, 3,8: Cum enim sit praescius voluntatis nostrae, cuius est praescius ipsa erit. Voluntas ergo erit, quia
voluntatis est praescius. Nec voluntas esse poterit, si in potestate non erit. Ergo et potestatis est praescius. Non
igitur per eius praescientiam mihi potestas adimitur, quae propterea mihi certior aderit, quia ille cuius
praescientia non fallitur, adfuturam mihi esse praescivit.
134
Ibid. III, 4,10.

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utiliza dela para explicar a Evódio. Explicando de modo magistral sobre a licitude da punição
dos pecados, o pensador diz:
Por que, pois, como justo juiz, não puniria ele [Deus] os atos que sua
presciência não forçou a cometer? Porque, assim como tu, ao lembrares os
acontecimentos passados, não os força a se realizarem, assim Deus, ao
prever os acontecimentos futuros, não os força. E assim, como tens
lembrança de certas coisas que fizeste, todavia não fizeste todas as coisas de
que te lembras, do mesmo modo Deus prevê tudo de que ele mesmo é o
autor, sem contudo ser o autor de tudo o que prevê135.
Com isso, Agostinho relaciona as nossas memórias com a presciência divina, de
maneira que tal como o fato de lembrarmos o que fizemos não é causa de tais coisas terem
acontecido, assim também o fato de Deus prever o que irá acontecer não é a razão para essas
ações ocorrerem. E ainda, tal como é possível lembrar-se de coisas que não foram causadas
por nós, também Deus prevê eventos dos quais Ele não é o autor.
Após tal questão, Agostinho faz uma grande catequese sobre a Providência Divina,
defendendo que o livre-arbítrio, ainda que podendo ser utilizado para o mal, é um bem.

5. Seria o livre-arbítrio um mal?


Do quinto ao décimo sexto capítulo do livro III do De libero arbitrio, Agostinho já
não é interrogado por Evódio, pois esse último possivelmente estaria longe de seu amigo
nesta etapa da redação do texto. Esta ausência de Evódio proporciona uma extensa reflexão
agostiniana a respeito da Providência de Deus com relação às suas criaturas.
Nessa passagem, Agostinho cita algumas objeções frequentes feitas por algumas
pessoas insatisfeitas com algumas coisas criadas por Deus. Ele exorta Evódio a não dizer:
―Seria melhor se estas coisas não existissem‖ ou que algumas coisas ―poderiam ter sido
constituídas de outro modo‖. Porque, segundo Agostinho, tudo o que de melhor é concebido
pela razão foi feito por Deus. O filósofo afirma de forma ousada:

135
Ibid. III, 4,11: Cur ergo non vindicet iustus, quae fieri non cogit praescius? Sicut enim tu memoria tua non
cogis facta esse quae praeterierunt; sic Deus praescientia sua non cogit facienda quae futura sunt. Et sicut tu
quaedam quae fecisti meministi, nec tamen quae meministi omnia fecisti; ita Deus omnia quorum ipse auctor est
praescit, nec tamen omnium quae praescit, ipse auctor est.

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Pois tudo o que a razão apresenta, com verdade, como sendo melhor, saiba
que Deus o fez, sendo ele o autor de todos os bens.[...] Pode pois, conforme
isso, existir na natureza certas coisas que tua razão não consegue conceber.
Mas que algo concebido por tua razão, dotado de verdadeira ideia, não
exista, isso não é possível136.
É evidente que se pode traçar um paralelo entre essa tese agostiniana e aquela
manifestada por Sócrates no Fédon137, quando falava do que o motivava a buscar a doutrina
de Anaxágoras. Segundo a narrativa de Platão, Sócrates desejava saber o porquê das coisas
existirem e serem como são, e assim queria porque entendia que a Inteligência (νοῦρ) havia
disposto todas as coisas da melhor maneira.138
Isso poderia explicar o motivo de Agostinho considerar que as coisas pensadas como
melhores devem existir, tendo em vista a ordem presente em todas as criaturas divinas. É isto
que ele diz ao comentar sobre a beleza da terra, que podendo parecer inferior ao céu para
alguém, não deixa de ser digna de ser criada:
Com efeito, da parte mais fértil e aprazível da terra, até à mais árida e estéril,
passa-se por graus tão bem dispostos que não ousarias dizer que nenhuma

136
Ibid. III, 5,13 : Quidquid enim tibi vera ratione melius occurrerit, scias fecisse Deum tamquam bonorum
omnium conditorem. (...) Potest ergo esse aliquid in rerum natura, quod tua ratione non cogitas. Non esse autem
quod vera ratione cogitas, non potest.
137
Na nota seguinte, faço uso da tradução presente em PLATÃO, 1977. E também reproduzo o texto original
grego disponível gratuitamente em < https://geoffreysteadman.com/phaedo >; acesso em 07 de agosto de 2020.
138
Fédon 97 b 8–d 1: ἀλλ᾽ ἀκούζαρ μέν ποηε ἐκ βιβλίος ηινόρ, ὡρ ἔθη, Ἀναξαγόπος ἀναγιγνώζκονηορ, καὶ
λέγονηορ ὡρ ἄπα νοῦρ ἐζηιν ὁ διακοζμῶν ηε καὶ πάνηων αἴηιορ, ηαύηῃ δὴ ηῇ αἰηίᾳ ἥζθην ηε καὶ ἔδοξέ μοι ηπόπον
ηινὰ εὖ ἔσειν ηὸ ηὸν νοῦν εἶναι πάνηων αἴηιον, καὶ ἡγηζάμην, εἰ ηοῦθ᾽ οὕηωρ ἔσει, ηόν γε νοῦν κοζμοῦνηα πάνηα
κοζμεῖν καὶ ἕκαζηον ηιθέναι ηαύηῃ ὅπῃ ἂν βέληιζηα ἔσῃ· εἰ οὖν ηιρ βούλοιηο ηὴν αἰηίαν εὑπεῖν πεπὶ ἑκάζηος ὅπῃ
γίγνεηαι ἢ ἀπόλλςηαι ἢ ἔζηι, ηοῦηο δεῖν πεπὶ αὐηοῦ εὑπεῖν, ὅπῃ βέληιζηον αὐηῷ ἐζηιν. [Tendo ouvido alguém ler
num livro que dizia ser de Anaxágoras que o espírito era a causa e a regra de todos os seres, espantei-me.
Pareceu-me admirável que a inteligência fosse a causa de todas as coisas, porque pensava que a inteligência,
tendo ordenado todas as coisas, as havia disposto da melhor forma. Se alguém quer saber a causa de algo, o que
faz que nasça e que morra, deve procurar a melhor maneira que esse algo possa ser].

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dessas partes é má, a não ser comparada a outra melhor. E assim, sobes no
louvor, por todos os degraus.139
Dessa forma, compreende-se que também Agostinho vê o mundo de modo ordenado,
com todas as coisas constituídas de um bom modo, ainda que possam ser inferiores umas às
outras segundo a ordem de uma hierarquia rica e vasta. Mas a razão de Agostinho assim
pensar é que ele parece adaptar a tese platônica das Ideias para sua teologia. A explicação
dada por Agostinho para o fato de que a razão não pode conceber algo de melhor sem que
tenha sido criado por Deus está no fato de que ―a alma humana está em união natural com os
exemplares divinos, dos quais ela depende‖140.
A epistemologia agostiniana, portanto, confessa a chamada doutrina do
―exemplarismo‖, pela qual entende que a atividade racional está submetida à ação divina,
diante de uma ótica de participação. A ―união natural‖ de que fala Agostinho deixa evidente
seu platonismo em considerar que a razão só pode conceber aquilo que, de algum modo, está
presente no pensamento divino. O ser humano, criado ―à imagem e semelhança de Deus‖, tem
a capacidade de participar das Ideias divinas: estas são, por conseguinte, o perfeito Exemplar;
já os pensamentos humanos são as cópias.
Assim sendo, Agostinho convida Evódio e todos os seus leitores a refletirem que a
verdadeira excelência que almejam em seus pensamentos já está nas coisas criadas141.
E constata isso com o exemplo dos anjos. Com efeito, o filósofo identifica que muitos
afirmam que teria sido melhor que os seres humanos fossem criados com um livre-arbítrio tal
que só desejasse escolher o bem. Contra isso, Agostinho responde que Deus não forçou
ninguém a pecar, e que os anjos já incorporam essa ideia de perfeição na mente de seus

139
De libero arbitrio III,5,13: Namque a terra feracissima et amoenissima usque ad salsissimam et
infecundissimam, ita gradatim per medias pervenitur, ut nullam reprehendere audeas, nisi in comparatione
melioris; atque ita per omnes gradus laudis ascendas.
140
Ibid. III, 5,13 : Humana quippe anima naturaliter divinis ex quibus pendet connexa rationibus.
141
Ibid. III, 5,14: In eo plerique homines errant, quia meliora cum mente conspexerint, non in sedibus congruis
ea oculis quaerunt. [Constitui um erro comum à maioria dos homens, quando, ao conceber em seu espírito a
existência de realidades melhores, não as procura com os olhos corporais, em seus lugares próprios].

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objetores. Os anjos do Céu já estão na glória eterna e sua vontade livre sempre se direciona a
honrar a Deus, enquanto que os anjos caídos, isto é, os demônios, usam seu livre-arbítrio para
o erro sempre.
Por isso, o homem se encontra como que em um estado intermediário numa hierarquia
ordenada dos seres racionais. Diante do homem está a possibilidade de ascender ou descender
a um desses outros dois estados, fato que deve acontecer por ocasião do Juízo pós-morte. Em
todo o caso, porém, não se deve censurar a Deus por ter criado a humanidade com a
possibilidade de se afastar d‘Ele, pois esta opção é dada pelo livre-arbítrio humano. E assim,
ainda que o livre-arbítrio possibilite a existência do mal moral (ou seja, o pecado), continua
sendo um bem.
Para ilustrar esse pensamento, Agostinho faz no livro II142 uma simples comparação
para afirmar que o livre-arbítrio deve ser contado entre os bens. Para o autor, o livre-arbítrio é
metaforicamente como uma parte do corpo. As partes corporais possuem sua utilidade e sabe-
se que é natural que se possa considerar ―deficiente‖ aquele que não possui alguma delas.
Entretanto, pode-se dizer que muitas partes proporcionam a ocasião de ações más, tal como as
mãos podem dar origem a furtos e homicídios. Ainda assim, todas elas são um bem do qual
ninguém deveria ser privado.
Portanto, o livre-arbítrio é um bem, considerado como bem ―médio‖143, superior aos
corpos e inferior às virtudes, um bem que pode também ser usado para o bem ou para o mal,
pois permite realizar atos de amor a Deus e ao próximo e, por outro lado, permite que o ser
humano peque. Contudo, sem ele não se pode ser verdadeiramente bem-aventurado, pois a

142
Ibid. II,18,48.
143
Ibid. II, 19,50: Virtutes igitur quibus recte vivitur, magna bona sunt: species autem quorumlibet corporum,
sine quibus recte vivi potest, minima bona sunt: potentiae vero animi sine quibus recte vivi non potest, media
bona sunt. [Portanto, as virtudes pelas quais as pessoas vivem honestamente pertencem à categoria de grandes
bens. As diversas espécies de corpos sem os quais pode-se viver com honestidade, contam-se entre os bens
mínimos. E por sua vez, as forças do espíritos, sem as quais não se pode viver de modo honesto, são bens
médios].

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vida feliz é ―o que o espírito sente quando adere ao Bem imutável‖144. Destarte, o livre-
arbítrio surge como uma dádiva divina que permite ao homem participar cada vez mais da
bem-aventurança eterna em Deus. Para concluir, é útil que se faça um panorama geral acerca
do que foi dito, contextualizando as posições de Agostinho e comentando seu legado para a
história da filosofia.

Considerações Finais

Viu-se o modo pelo qual Santo Agostinho contrapôs-se aos maniqueístas ao entender
o mal como uma privação do bem, influenciado pelo neoplatonismo. Nesse sentido, os seres
humanos só podem ser considerados maus na medida em que se afastam do Sumo Bem,
voltando-se mais para os bens inferiores, buscando nestes o que deveriam encontrar apenas
Naquele. O pecado, portanto, corrompe o chamado íntimo da alma humana para a comunhão
completa com Deus. O mal, então, deverá ser encarado segundo a perspectiva da moralidade,
onde se vê que os homens detêm o poder de escolher fazer as coisas, de acordo com o livre-
arbítrio inerente à vontade.
Esse livre-arbítrio, propriedade dos seres humanos, dá a eles a autonomia necessária
para não serem subjugados pelas paixões. Embora Agostinho admita a realidade da
concupiscência, por onde a vontade humana tende a querer escolher o mal, o auxílio da graça
torna possível rejeitar o mal e também fazer bem.145 Por essa razão, seres humanos podem ser
devidamente julgados por seus atos, uma vez que têm a capacidade de evitar seus crimes.
Ademais, o livre-arbítrio não está em conflito com a presciência divina, uma vez que
esta presciência apenas vê com antecedência as más ações causadas pela vontade humana;
Deus, portanto, não é causa do pecado. E, ainda que se considere que a presciência não é
causa direta das más ações, sabe-se também que ela não imputa a Deus alguma culpa indireta

144
Ibid. II,19,52: Eaque ipsa vita beata, id est animi affectio inhaerentis incommutabili bono.
145
Ibid. II, 20,54.

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por Ele criar seres imperfeitos. Foi mostrado como a Providência Divina atua como
ordenadora do mundo, fazendo um paralelo ao νοῦρ de Anaxágoras entendido por Platão.
E ainda, o bispo de Hipona propôs uma epistemologia de cunho platônico, pela qual os
seres humanos só são capazes de conceber aquilo que está nos exemplares divinos, de modo
análogo às Ideias. Baseando-se nisso, Agostinho entendeu que não se pode conceber algo
melhor do que aquilo que já está no pensamento divino e que, portanto, tudo criado por Deus
não deve ser censurado. Por essa razão, o livre-arbítrio continua sendo um bem, ainda que
possa ser usado para fazer o mal.
Esta contribuição de Agostinho nesses temas influenciou de certo modo a filosofia
medieval que lhe sucedeu, sobretudo na Escolástica, onde o santo foi muitas vezes constituído
como autoridade em assuntos filosóficos e teológicos. A teoria do conhecimento trazida por
Agostinho pareceu trazer harmonia entre o platonismo e a teologia cristã. Pode-se dizer que
algo interessante em De libero arbitrio é trazer de modo prático para o âmbito do cristianismo
a dialética filosófica, através da qual Agostinho e Evódio chegam a muitas conclusões
relevantes.
O De libero arbitrio é para muitos uma obra desconhecida; no entanto, sua leitura é
necessária para perceber como tantas discussões ainda presentes hoje no imaginário popular e
acadêmico já foram tratadas séculos antes. Esta incrível obra de Agostinho mostra o que há de
mais incrível na vivência da filosofia: o diálogo que permite o parto do conhecimento
(maiêutica), algo que muitos ainda precisam entender, sobretudo nos tempos atuais.

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Referências bibliográficas

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Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores)

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(Coleção Patrística)

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<http://www.augustinus.it/latino/index.htm >. Acesso em 07 de agosto de 2020.

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Editado por Geoffrey Steadman. Disponível em < https://geoffreysteadman.com/phaedo/ >
Acesso em 07 de agosto de 2020.

SILVA, F.V. O problema do mal no livro VII das Confissões de Santo Agostinho.
Dissertação (Mestrado em Ciência das Religiões ) – Programa de Pós–Graduação em Ciência
das Religiões, Centro de Educação, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa: UFPB, pp.
7; 66-67, 2016.

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DIGNIDADADE HUMANA E MARXISMO COMO SUBVERSÃO


ÉTICO-JURÍDICA A PARTIR DE KANT, LUKÁCS E PACHUKANIS

André Dock

Resumo

O presente trabalho buscou demonstrar os limites filosóficos e históricos do


neoconstitucionalismo ao contrapor a ética kantiana à ética lukacsiana - após essa ser
reconstituída -, analisar o chamado ponto de vista da individualidade isolada, examinar a
crítica pachukaniana ao Direito burguês e, a partir desse acúmulo e síntese, encontrou uma
alternativa ao neoconstitucionalismo na forma do Princípio da Dignidade do Gênero Humano.

Palavras-chave: Ética; Direito; Dignidade humana; Marxismo.

1. Introdução

O presente artigo146 tem como proposta a análise da aplicabilidade da teoria marxista


do Estado e da lei à crítica e superação de fronteiras teóricas, históricas e éticas do
neoconstitucionalismo. Abordará como o princípio da dignidade da pessoa humana incorre
em contradições, enfrentando dificuldades persistentes em endereçar maiores mazelas sociais,
podendo inclusive ser reivindicado por grupos sociais totalmente antagônicos.
Particularmente, serão enfocadas a centralidade e as especificidades do princípio da dignidade
da pessoa humana nesse entendimento jurídico. Pretende-se, tangente a esse tema, investigar
as raízes dos chamados juspositivismos (indo de Kelsen a Habermas) na teoria ética kantiana
e identificar seu paradigma metodológico. Após isso, deverá observar a relação material do

146
Este artigo é uma adaptação de parte de projeto de pesquisa monográfica para a conclusão do curso de
graduação em Direito na Estácio de Sá.

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Direito com a chamada ―forma mercadoria‖. Essas tarefas serão feitas pelas análises do
filósofo húngaro Gyorgy Lukács e do jurista russo Evgeni Pachukanis.

Observando o contexto histórico em que tais noções foram desenvolvidas, a pesquisa


tratará de atestar a real magnitude de possíveis defasagens desse princípio e da atual
institucionalidade em relação aos maiores desenvolvimentos do pensamento social ocidental
até hoje. Assim, deverá ser verificado o que distingue a teoria ética kantiana da perspectiva
lukacsiana, no que consiste o denunciado ―ponto de vista da individualidade isolada‖ e no que
implica a crítica de Pachukanis ao Direito como um todo. Ao término desse exercício, seu
acúmulo crítico deverá apontar para possibilidades de desenvolvimento da noção de
dignidade humana para além do princípio da dignidade da pessoa humana, essa que é sua
forma jurídica pós-positivista padrão.

Logo, o estudo pretende responder por que essa noção em sua forma moderna seria
ainda pouco eficaz em capturar o sentido da Ética - como considerada por Lukács - e em
desvencilhar o Direito de um persistente ponto de vista individualista; esse que seria um vício
metodológico das filosofias originadas no seio da sociabilidade mercantil, refletindo as ideias
da classe dominante. Essas respostas então deverão ser complementadas pelo esforço crítico
de Pachukanis ao Direito burguês, com sua análise da forma mercadoria e seu embate jurídico
interno no contexto da incipiente União Soviética. O verdadeiro desafio aqui, portanto, será o
de encontrar um tratamento alternativo da principiologia jurídica que, autoconsciente e crítica
de suas raízes materiais e teóricas, seja capaz de orientar a uma outra sociabilidade que supere
seus próprios limites - tendo, no horizonte, a superação em última instância da necessidade do
próprio Direito.

Assim, a pesquisa poderá ajudar a elucidar deficiências teóricas e provocar o leitor


com novos olhares ao estudo do Direito. Espera-se que assim seja de forma mais adequada ao
dramático desenvolvimento da teoria social desde o século XVIII, a sua relação com a
produção de uma sociabilidade ética e seu papel histórico no desenvolvimento de uma
sociedade para além das classes sociais. Um ordenamento e prática jurídica profundamente

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críticos e reorientados do indivíduo para o coletivo, dessa maneira, poderão ser mais bem
situados no atual problema prático da radical defesa dos direitos sociais e do combate às
desigualdades, como ferramentas úteis e de mais elevada relevância social.

2. Desenvolvimento
2.1 Sobre o Neoconstitucionalismo e a Dignidade Humana em Kant

O neoconstitucionalismo é comumente definido em função da maior primazia dada à


normatização axiológica do Direito e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Em um
movimento global surgido na segunda metade do século XX, após os horrores da Segunda
Guerra Mundial, tal princípio é posto em centralidade na teoria jurídica contemporânea. A
partir dele, se desenvolveu uma nova importância dada à constituição e aos direitos
fundamentais. Especialmente no Brasil, o reconhecimento de tal centralidade é visto no Art.
1°, inciso III da Constituição Brasileira, sendo recorrente também na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal e figurando ainda em numerosos tratados internacionais dos quais
o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como em
outras constituições nacionais. A indeterminação persistente dessa noção, contudo, é apontada
como um empecilho para sua capacidade de equacionar controvérsias jurídicas e sociais,
frequentemente funcionando como ―um espelho no qual cada um projeta seus valores‖, tal
como considerou Luís Roberto Barroso (BARROSO, 2013, p. 9-10).

Contudo, a força moral desse elemento na busca pela humanização do ordenamento


jurídico e das práticas sociais é observada com grande ênfase por Daniel Sarmento - apesar de
também reconhecer as incoerências cometidas por muitos dos mesmos que o reivindicam:
O princípio da dignidade da pessoa humana, corretamente interpretado, pode
ajudar a colorir com tintas mais emancipatórias a ordem jurídica; pode servir
como arma de combate, nos tribunais e fora deles, contra práticas sociais
injustas e opressivas; pode contribuir para o enraizamento de um genuíno
sentimento constitucional na sociedade em favor da inclusão e da justiça.
(SARMENTO, 2016, p. 19)

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Sarmento se propõe a investigar a trajetória desse conceito e identifica que, ao longo


da história, desde a Antiguidade, a noção de dignidade humana passou por três
desenvolvimentos mais relevantes até se cristalizar em um entendimento moderno, atingido
com o advento do Iluminismo. Esses desenvolvimentos culminam em três características mais
essenciais do princípio da dignidade da pessoa humana, seja qual for sua interpretação
específica, nomeadamente, sua universalização, seu foco na pessoa concreta e sua forma de
norma jurídica vinculante (SARMENTO, 2016, p. 22-23). No decorrer desse estudo, veremos
como cada uma pode ser criticada.

Na investigação do princípio, Sarmento encontra as raízes dessa noção moderna no


filósofo Immanuel Kant, autor da mais importante e influente formulação sobre a dignidade
humana do Iluminismo. Ou seja, a filosofia kantiana marca o ponto de inflexão de uma noção
antiga de dignidade para essa sua forma moderna, dispondo então os alicerces para
amadurecimentos ainda posteriores do princípio da dignidade da pessoa humana em sua
forma contemporânea. O imperativo categórico logo se destaca para Sarmento:

É conhecida a teoria kantiana de que as pessoas, diferentemente das coisas e


dos animais, não têm preço, mas dignidade, constituindo fins em si mesmas.
Kant fundamentou essa dignidade na autonomia da pessoa humana, que lhe
confere a capacidade de agir de acordo com a moralidade. A autonomia, para
Kant, é uma característica universal dos seres racionais capazes de descobrir
e de se autodeterminar pela lei moral. Ela não depende de classe social, raça
ou qualquer outro fator. Daí a formulação do conhecido imperativo
categórico da dignidade, cujo viés igualitário é evidente: ‗Age de tal maneira
que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e simultaneamente como fim, e nunca simplesmente como
meio‘ (KANT, 2011, p. 73). (SARMENTO, 2016, p. 35-36)
Dessa maneira, o autor nota incipientemente, nessa formulação do imperativo
categórico da dignidade, as características de universalização, foco no indivíduo abstrato e,
embrionariamente, a forma de norma jurídica que não se atingiria plenamente até o século
XX. Contudo, mesmo com toda sua força revolucionária acompanhada por transformações
políticas permanentes no mundo ocidental a partir da Revolução Francesa e para o resto do
ocidente, o entendimento de dignidade em Kant não se mantém imune de críticas - as quais
perduram até hoje em sua forma contemporânea. Em virtude disso, Sarmento nota que, já no
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século XIX, Schopenhauer protestava contra a falta de profundidade do conceito e a


leviandade com que passou a ser utilizado:

Esta expressão, dignidade humana, usada por Kant, tornou-se desde então o
lenga-lenga de todos os moralistas perplexos e cabeças-ocas, que escondem
por trás dessa imponente expressão a sua incapacidade de estabelecer
alguma base real para a moral, ou de uma que faça algum sentido. Eles
contam astuciosamente com o fato de que seus leitores vão ficar contentes de
se verem investidos nesta dignidade, e por isso se darão por satisfeitos.
(SCHOPENHAUER, 1965, p. 100)
A influência do pensamento kantiano na filosofia alemã e ocidental como um todo é,
de todo modo, inquestionável, sendo celebrado como auge do pensamento moderno e tendo
se cristalizado na mais alta forma do idealismo alemão nas obras de Friedrich Hegel. Apesar
disso, as inquietações políticas da Europa continuadas no século XIX com a ascensão da
burguesia pavimentaram o espaço para uma inversão radical dos ensinamentos de Hegel,
iniciada por um de seus mais proeminentes alunos, o jovem Ludwig Feuerbach. Proponente
inicial do materialismo dialético em oposição ao idealismo hegeliano, se tornaria grande
influenciador da filosofia, sociologia e economia política de Karl Marx – ainda que de
maneira tão crítica quanto inspirada. Com essa relação conflituosa de parentesco da filosofia
de Marx com a de Kant, explicita-se o escopo e natureza das transformações do pensamento
social alemão e ocidental no século que os separa e nos últimos três até hoje.

O princípio da dignidade humana, contudo, não se desenvolve por essas


transformações. Essa breve contextualização do mesmo em sua situação histórica e filosófica
será vital para o argumento maior sendo tecido sobre as limitações ético-teóricas em atingir a
pretendida humanização do Direito. Principalmente, entender Kant como o filósofo fundante
e paradigmático da noção moderna de dignidade humana que hoje sustenta a teoria jurídica
contemporânea será fundamental nas seções seguintes.

Assim, é possível estabelecer onde o atual pensamento jurídico hegemônico deixou de


acompanhar as mais dramáticas transformações do pensamento filosófico político desde o
século XVIII, mesmo que revitalizado periodicamente por pensadores como Hans Kelsen,
Miguel Reale, Ronald Dworkin e Jürgen Habermas. Esses se restringem no quadrante dos
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chamados juspositivismos, como identifica Alysson Mascaro (MASCARO, 2016, p. 278-


279). A razão desses limites, Mascaro aponta, é uma característica muito peculiar e essencial
do ocidente, que atinge sua maior expressão nas obras de Kant, sendo compartilhada pelas
correntes juspositivistas:

Na visão do jusracionalismo burguês, só há uma razão, universal, invariável


e que reside além das mudanças históricas. Essa razão se fecha sob um
sistema: os interesses burgueses não se chocam internamente e se tornam
lógicos, dedutíveis uns dos outros. Immanuel Kant, o último grande filósofo
do jusracionalismo do século XVIII, fornece a mais bem acabada teoria
sobre a compreensão de tais direitos naturais. Por meio dos imperativos
categóricos, o entendimento do justo há de se fazer a partir do indivíduo,
universalizado porque apartado das condicionantes sociais e históricas.
(MASCARO, 2016, p. 284) (grifo nosso)
Tais alicerces em uma visão anistórica e universalista do indivíduo como ponto de
partida podem ser encontrados desde a Grécia antiga, mas com o tratamento kantiano teriam
efeitos importantes para todo o pensamento moderno; um paradigma que seria superado por
completo apenas com o advento do materialismo histórico-dialético de Marx. Tal
característica viria a ser identificada pelo filósofo húngaro Gyorgy Lukács como o ―ponto de
vista da individualidade isolada‖ em oposição ao ―ponto de vista da totalidade‖, que assim,
delimita: ―Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que
distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da
totalidade‖ (LUKÁCS, 2003, p. 105). É de suma relevância, portanto, examinar como se dão
os efeitos dessa característica, particularmente, na ética kantiana e como seriam superados em
Lukács.

2.2 Sobre a Ética e o Ponto de Vista


2.2.1 Da Ética Kantiana e Ética Lukacsiana

Para os propósitos desse estudo, os delineamentos sobre a Ética usados serão os de


Gyorgy Lukács, o qual faleceu antes que pudesse compor seu tratado mais extenso sobre a
Ética e deixar mais que meras orientações para o tratamento da questão sob a ótica marxista.

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É através do esforço do professor Sergio Lessa em reconstituir tais delineamentos, portanto,


que discutiremos a aplicabilidade da teoria marxista na crítica aos limites históricos do
neoconstitucionalismo na sua busca pela Ética. Lessa identifica uma distinção entre as
concepções kantiana e lukacsiana da Ética que se faz absolutamente fundamental:

A ética não é um conjunto predeterminado de valores eternos e imutáveis,


mas uma função social que, em algumas circunstâncias históricas, pode vir a
ser atendida por um conjunto de valores que expressem, cotidianamente,
uma já existente relação não antinômica do indivíduo com o gênero. Todas
as abordagens lógico-gnosiológicas, que procuraram determinar a ética ou
pela sistematização teórica dos atos morais singulares (no fundo, Kant), ou
pela determinação a-histórica de preceitos valorativos (uma sociedade justa,
livre etc.), não foram além da universalização para toda a história do
patamar de desenvolvimento social já alcançado. Assim como Aristóteles
identificou a essência humana com a essência do senhor de escravo
ateniense, Tomás de Aquino identificou-a com a essência do servo da igreja
(a alma pecadora). Também Kant elevou a preceito ético o individualismo
característico da sociedade burguesa. ―Não faças ao outro o que não queres
que façam a ti‖ é o seu imperativo categórico: o indivíduo é o único
referencial para os valores mais elevados. Todas as tentativas de elaborar
uma ética, não a partir do solo sócio-histórico, mas a partir de elucubrações
teóricas, se limitam a tornar paradigma para todo o desenvolvimento futuro
os valores da classe dominante. (LESSA, 2015, p. 21) (grifo nosso)
É necessário analisar cuidadosamente esse enunciado; um entendimento adequado do
que determina e como se situa a ética historicamente se faz da mais alta relevância para o
entendimento de tais limites das pretensões humanizantes do neoconstitucionalismo. Deve-se
notar que, enquanto Kant apoiaria sua ética na universalização dedutiva e não-historicizada de
valores morais do ponto de vista do indivíduo, notoriamente na formulação do imperativo
categórico, Lukács sustentaria seu entendimento da moral pelo ponto de vista da totalidade
das relações sociais de consequências objetivas na reprodução social, percebendo sua
dinâmica antinômica, de conflito de interesses entre o individual e o geral. De outra maneira,
Lessa agregaria a esse ponto que a base ontológico-material da Ética deve corresponder à
progressiva superação desse conflito:

A ética, no conjunto dos complexos valorativos, se diferencia porque atende


à necessidade social de explicitação do conflito entre o universal e o singular
pela superação da relação dicotômica entre indivíduo e sociedade. A ética é
aquele complexo valorativo objetivado em relações sociais que desdobram,
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cotidianamente, uma relação não antinômica entre o indivíduo e o gênero.


(LESSA, 2015, p. 16-17)
Evidencia-se aqui um risco de se assemelhar as capacidades metodológicas de ambos
os autores em busca de uma equiparação indevida em termos. Contudo, percebe-se não apesar
da discrepância em método, mas efetivamente em virtude dessa discrepância, que, enquanto o
pensamento de Kant privilegia a prevalência de um ponto de vista individual que não se
sobreponha à generalidade para então generalizá-lo e universalizá-lo como norma, no
pensamento de Lukács é o ponto de vista coletivo que não se sobrepõe à individualidade antes
de ser particularizado e contextualizado. De maneira análoga à formulação tradicional do
imperativo categórico, a ética pelo ponto de vista da totalidade é tal como se dissesse não ao
indivíduo, mas à sociedade como um todo que: organize-se de tal maneira como se a máxima
de tua organização pudesse simultaneamente se tornar lei particular. Essa inversão
fundamental só é possível através da identificação explícita de duas dimensões em conflito e
do seu enraizamento histórico como expressão objetiva de interesses de classe.

Deve-se perceber aqui que, ao contrário do que faz parecer, universalizar o ponto de
vista da individualidade isolada não o subordina aos interesses gerais, mas simplesmente o
modera como norma social. O ponto de vista individual toma papel ativo na determinação dos
interesses sociais possíveis e apenas deixa de valer na hipótese de que em última análise se
vire contra si mesmo - valendo enquanto não se instaure o caos social para a classe
dominante. Pela mesma razão, particularizar o ponto de vista da totalidade também não o
subordina aos interesses individuais e o confere o papel ativo na determinação dos interesses
sociais possíveis, de tal maneira que se aplica até o limite prático da impossibilidade de sua
concretização cotidiana. Verifica-se, contudo, que o mero fato de ambos os casos apontarem
ao que se pretende que seja uma harmonização do individual e do social não incorre na
redundância ou equivalência das duas perspectivas éticas. Há uma diferença significativa na
forma de harmonização e consequentemente no horizonte a que aspiram.

Por extensão a esse ponto, poderia ser arguido que o ponto de vista da individualidade
isolada não se sustenta, por não atender ao próprio imperativo categórico. Afinal, verifica-se

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que tal ponto de vista, alçado ao patamar de lei universal, leva à naturalização de um domínio
de classes não percebido na formulação do imperativo categórico. Logo, pelo conflito de
interesses estrutural da individualidade contra a generalidade, não se poderia exigir do
indivíduo que adotasse o ponto de vista da individualidade isolada, pois tal ponto de vista não
cumpriria ao preceito de não se sobrepor em qualquer hipótese à humanidade e, portanto, não
podendo ser desejado como lei universal. Por outro lado, o ponto de vista da totalidade
particularizado não poderia sofrer com a incoerência do conflito de classes, pois já parte da
dimensão mais geral dos interesses sociais antes de representá-los em níveis menos gerais. O
ponto de vista da totalidade se coloca, para o indivíduo, como um convite à vida engajada e
responsável, contrário à vida individualista e indiferente, e, para a sociedade, como sua única
posição coerente.

Sobre essas duas dimensões percebidas por Lukács, Lessa ainda frisa que seus
elementos se fazem presentes de toda maneira em qualquer relação social, por determinarem
exatamente a mínima e a máxima extensão possível dos interesses pelos quais tais relações
sociais são praticadas:

A contradição entre a singularidade e a universalidade é, rigorosamente, uma


contradição sempre presente na vida social. Nesta medida e sentido, não há
relação social, por mais primitiva ou por mais desenvolvida, que não articule
contraditoriamente o ato singular com a história do gênero humano; e que
não contraponha, no interior de cada ato humano, os elementos singulares
aos elementos genéricos. Nas sociedades mais desenvolvidas, esta esfera de
contraditoriedade ganha uma expressão mais complexa pela mediação das
classes e da luta entre elas. Em tais sociedades, a contradição entre o
singular e o universal não raramente comparece como a contradição entre os
interesses particulares de uma classe versus as necessidades da humanidade.
Sempre segundo Lukács, esta tensão entre o gênero e o particular é um
elemento sempre atuante nas relações sociais. (LESSA, 2015, p. 12)
Fica evidenciado no artigo de Lessa que a universalidade e a singularidade são
componentes igualmente reais da reprodução social. Diferenciam-se pelo universal concentrar
elementos de continuidade (como a totalidade social e o gênero humano), e o singular, os
momentos efêmeros e pontuais dos processos históricos (como os indivíduos e seus atos
singulares isolados). Sendo assim, são ambos determinações objetivas de toda

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processualidade social (LESSA, 2015, p. 12-13). A partir dessa dupla dimensão, Lessa
também é capaz de relacionar as determinações objetivas da Ética com as determinações
históricas da moralidade - ou seja, de entender como a dinâmica antinômica entre as duas
dimensões se traduzirá em valores morais determinados por sua época e contexto social:

Os valores universais, assim como a própria universalidade humana, são


relações sociais reais que atuam objetivamente sobre a reprodução social:
esse o primeiro aspecto decisivo para o nosso estudo dos fundamentos
ontológicos dos valores e, portanto, da ética. O segundo aspecto fundamental
é articulado ao primeiro: a contradição objetiva entre o singular e o universal
é o fundamento ontológico mais geral para que, na reprodução social, os
indivíduos possam elevar à consciência, em escala social, a contradição entre
o que eles são enquanto indivíduos e o que é a sociedade à qual pertencem.
(...) É desta base social objetiva que surgem valores como justiça, igualdade,
liberdade etc. São, sempre, expressões concretas, historicamente
determinadas, das necessidades genérico-coletivas postas pelo
desenvolvimento social e, por isso mesmo, seus conteúdos se alteram no
tempo. (LESSA, 2015, p. 14-15)
Assim, é ainda possível dizer que a ética é um complexo valorativo, objetivado em
relações sociais, com a propriedade de desdobrar cotidianamente uma relação não antinômica
entre indivíduo e sociedade. Em outras palavras, a ética é um fenômeno social comprometido
objetivamente à superação da contradição histórica entre o interesse singular e o geral, dentro
das possibilidades imediatas e necessidades concretas.

Configura-se assim uma poderosa crítica relacionável à primeira característica


identificada por Sarmento do princípio da dignidade da pessoa humana, a universalização.
Lessa aponta que sem o devido enraizamento sócio-histórico, tal conceito limita-se
gravemente a tornar paradigma os valores da classe dominante. Livrando-se do ponto de vista
da individualidade isolada, a elaboração de uma ética deve se atentar, portanto, à
historicização.

Após esclarecidas tais diferenças fundamentais consideradas entre a Ética kantiana e


lukacsiana, em grande parte por virtude da inversão e superação do ponto de vista da
individualidade isolada, é oportuno retomar a discussão mais genérica sobre essa
característica compartilhada pelas correntes juspositivistas, de Kelsen a Habermas em virtude

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de seus alicerces kantianos. Seguindo o objetivo dessa pesquisa, portanto, a análise do método
marxista em questão terá foco sobre a crítica feita a tal característica, excepcionalmente
exposta pelo filósofo István Mészáros, o qual foi proeminente aluno do próprio Lukács.

2.2.2 Do Ponto de Vista da Individualidade Isolada

São dois os elementos específicos do ponto de vista da individualidade isolada


denunciados por Mészaros. A elevação da particularidade ao nível da universalidade e a
inversão de relações estruturais objetivas, ou seja, daquilo que é primário pelo que é
secundário. Sobre o primeiro, Mészaros identifica seus efeitos de caráter ideológico na
fabricação, justamente, de uma pseudouniversalidade através de uma noção inflada de
indivíduo:

Inevitavelmente, qualquer orientação metodológica que possua em seu cerne


estrutural o ponto de vista da individualidade isolada segue a tendência
de insuflar o indivíduo — o qual, em virtude de ser o pilar de sustentação de
todo o sistema, pode apenas ser imputado — em um tipo de entidade
pseudouniversal. Eis porque as concepções dúbias de ―natureza humana‖ —
que constituem um dos mais importantes lugares-comuns de toda a tradição
filosófica, com suas afirmações completamente infundadas — não são os
únicos corolários apriorísticos de determinados interesses ideológicos, mas
ao mesmo tempo são também a realização de um imperativo
metodológico inerente com vistas a elevar a mera particularidade ao patamar
de universalidade. O outro lado da moeda é, evidentemente, a ausência
necessária de um conceito viável de mediação — socialmente articulada —
pela qual a dialética entre particularidade e universalidade possa ser
compreendida em sua complexidade dinâmica. (MÉSZÁROS, 2009, p. 47)
Nota-se aqui que não há no movimento lógico de universalizar aquilo que é particular
uma mediação adequada que capture a articulação dialética complexa dessas duas dimensões
igualmente reais. Assim, o efeito apontado desse movimento será o de confundir elementos
do geral pelo do individual e trazer consigo noções automáticas e injustificadas sobre a
natureza humana. Abre-se então a possibilidade, ao se analisar as mazelas sociais, de tomar o
secundário pelo primário ou vice versa. Tal movimento assume então uma função ideológica

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de deturpar as relações estruturais objetivas de seus conflitos. Esse seria o segundo elemento
específico do ponto de vista da individualidade isolada:

A função ideológica crucial do ponto de vista da individualidade isolada é


a inversão radical da relação estrutural objetiva entre diferentes tipos de
conflitos e antagonismos. Dada a sua constituição e orientação imanentes,
deve concentrar a atenção nos aspectos secundários e
subjetivos/individualistas da contradição, relegando simultaneamente —
quando sequer os reconhece — os antagonismos primários da sociedade à
periferia. (MÉSZÁROS, 2009, p. 55)
Dessa maneira, apenas a competição entre indivíduos é reconhecida como estando enraizada
em determinações objetivas e secundariza-se a consideração criteriosa quanto a reais
interesses de grupo, sendo inconcebível a abordagem do conflito de classes como central à
ordem social. Tal conflito de classes é a verdadeira dinâmica de mediação entre a
particularidade e a universalidade que o ponto de vista da individualidade isolada não é capaz
de perceber.

Ignora-se, assim, qualquer permanência de efeitos sócio-históricos, ciclos de violência


estrutural e dominação material e ideológica que sejam pré-condicionantes e determinantes de
tipos de consciência adequados ou não ao estilo de vida particular da sociedade individualista
moderna. Ou seja, são abandonadas considerações sobre qualquer fato que não corrobore a
normalização e naturalização da maneira específica de relação social da sociedade burguesa.
Logo, relega-se tudo o que não é capaz de capturar como social e historicamente originário às
noções internas de autonomia da vontade, liberdade, natureza humana e mesmo o próprio
Direito, como se fossem essas noções triviais ou atemporais.

Com isso, torna-se clara uma crítica relacionável à segunda característica do princípio
da dignidade da pessoa humana que Sarmento identifica, o foco na pessoa concreta (ou no
indivíduo abstrato). Mészáros denota que o indivíduo é inflado e alçado ao patamar da
universalidade sem o entendimento da luta de classes. O foco no gênero humano desponta
como muito mais apropriado ao profundo entendimento das mazelas sociais. Vistas essas
limitações e vícios metodológicos, de efeitos ideológicos, do ponto de vista da
individualidade isolada, especialmente nas tradições filosóficas de raízes pré-marxianas, com
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ápice em Kant, é então possível passar à análise das contribuições de Evgeni Pachukanis à
teoria geral do Direito de maneira mais enriquecedora.

2.3 Sobre a Forma Mercadoria como Forma Jurídica em Pachukanis

A motivação crítica de Pachukanis no desenvolvimento da teoria marxista do Estado e


da lei facilmente se revela na seguinte passagem, através de um pensamento historicizado ao
invés de um apriorístico e anistórico:

Não dispostos a reconhecer, por exemplo, o fato basilar de que Estados


diferem de acordo com a classe em que se baseiam, teóricos burgueses do
Estado concentram toda sua atenção em várias formas de governo. Mas, essa
diferença em si é sem sentido. Assim, por exemplo, na antiga Grécia e antiga
Roma nós temos as mais variadas formas de governo. Porém todas as
transições de monarquia a república, de aristocracia a democracia que
observamos por lá não destroem o fato trivial de que esses Estados,
independente de suas diferentes formas, eram Estados escravagistas. (...) As
formas de governo podem mudar, embora a natureza de classe do Estado
permaneça a mesma. A França, no curso do século XIX e após a revolução
de 1830 até o tempo presente, foi uma monarquia constitucional, um império
e uma república e o domínio do Estado capitalista burguês se manteve em
todas essas três formas. Inversamente, a mesma forma de governo (por
exemplo, uma república democrática) que era vista na antiguidade como
uma das variações do Estado escravagista é, em nosso tempo, uma das
formas da dominação capitalista. Portanto, ao estudar qualquer Estado, é
muito importante examinar primariamente não sua forma externa, mas seu
conteúdo interno de classe, situando as condições históricas concretas do
conflito de classes na própria fundação da análise. (PASHUKANIS, 1980, p.
278-279) (tradução livre)
Entendendo que há algo muito mais substancial a ser dito sobre os Estados a partir de
sua classe dominante como seu conteúdo concreto do que de suas formas de governo como
meras modalidades dos mesmos, Pachukanis pode se concentrar na análise mais criteriosa
daquilo que de fato constitui o próprio Estado e o Direito a partir do solo sócio-histórico ou
plano material. O autor fará isso pela análise das relações sociais de troca mercantil.

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Visto essa sua motivação, compreende-se melhor o que esse pensador se propõe a
demonstrar quando denuncia que a própria forma jurídica do Direito guarda uma íntima
conexão com a forma mercadoria. Destoando do que se chamaria de marxismo ortodoxo de
seus pares, ele procura sintetizar da seguinte maneira tal relação, bem como as razões pelo
domínio de classe no capitalismo se dar pelo Estado e pelo Direito:

Na medida em que a sociedade representa um mercado, a máquina do Estado


estabelece-se, com efeito, como a vontade geral, impessoal, como a
autoridade do direito etc. No mercado, como já foi visto, cada consumidor e
cada vendedor é um sujeito jurídico por excelência. Nesse momento, quando
entram em cena as categorias do valor, e do valor de troca, a vontade
autônoma dos que trocam impõe-se como condição indispensável. O valor
de troca deixa de ser valor de troca, a mercadoria deixa de ser mercadoria
quando as proporções da troca são determinadas por uma autoridade situada
fora das leis inerentes ao mercado. A coação, enquanto imposição baseada
na violência colocando um indivíduo contra o outro, contradiz as premissas
fundamentais das relações entre os proprietários de mercadorias. É por isso
que numa sociedade de proprietários de mercadorias e dentro dos limites do
ato de troca, a função de coação não pode aparecer como uma função social,
visto que ela é não abstrata e impessoal. A subordinação a um homem como
tal, enquanto indivíduo concreto, significa na sociedade de produção
mercantil a subordinação a um arbítrio, uma vez que isso equivale à
subordinação de um proprietário de mercadorias perante outro. Eis a razão
porque também aqui a coação não pode surgir sob a forma não camuflada,
como um simples ato de oportunidade. Ela deve aparecer antes como uma
coação que proveniente de uma pessoa coletiva abstrata e que é exercida não
no interesse do indivíduo donde provém, pois numa sociedade de produção
mercantil cada homem é um homem egoísta, porém, no interesse de todos os
membros que participam nas relações jurídicas. O poder de um homem sobre
outros expressa-se na realidade como o poder do direito, ou seja, como o
poder de uma norma objetiva imparcial. (PACHUKANIS, 1988, p. 97-98)
Dessa maneira, Pachukanis pretende demonstrar como da própria relação social de
troca de mercadorias deriva-se a necessidade da função coercitiva do Estado como autoridade
pública impessoal e camuflada, ao invés de um aparato privado parcial e transparente, bem
como o Direito como norma objetiva e imparcial. Ou seja, a partir de uma maneira específica
de sociabilidade econômica, reflete-se idealmente uma maneira correspondente de
superestrutura política. Assim, a forma jurídica é resultado da relação social específica da
troca de mercadorias entre sujeitos de direito que assim se reconhecem reciprocamente, como

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o resultado ideal da forma mercadoria. Diz-se que tal autoridade é camuflada, pois
Pachukanis percebe tal superestrutura política como tendo efeitos não-declarados de
ocultação de sua verdadeira natureza de dominação de classe, que seriam exteriores a sua
delimitação jurídico-legal:

Ao concentrar sua atenção no Estado onipotente na esfera da criação e apoio


da forma jurídica (leis obrigatórias de forma geral, a força da decisão
judicial, a execução estrita de sentenças, etc.), os juristas positivistas
consciente ou inconscientemente ocultam o poder extrajurídico, extralegal e
extrajudicial muito mais importante do Estado que se direciona à defesa da
soberania de classe de todas as maneiras, todas as quais estão fora da forma
jurídica. (PASHUKANIS, 1980, p. 198) (tradução livre)
À primeira vista, a pretensão dessa análise salta aos olhos e confunde. Pachukanis parece
dizer que a real emancipação humana da exploração de classe não deve ter relação com o
Estado e o Direito - ao mesmo tempo em que defende a construção de um Estado proletário
organizado por um arcabouço jurídico. Essa contradição aparente, aliada ao posterior período
da União Soviética sob Stálin, que o levaria a sua morte e atrasaria em décadas o
reconhecimento de sua obra, se mostra como um dos principais empecilhos para seu pleno
entendimento. Como resolução, o próprio esclarece a seus críticos que a principal distinção
que verifica entre a lei burguesa e a lei soviética – ―lei burguesa sem burguesia‖ - é a
possibilidade da segunda de superação de si própria sem a necessidade de um processo
revolucionário:

É claro que eu não enxerguei o processo de deterioração da lei como uma


‗transição direta da lei burguesa à não-lei‘. Se alguém poderia ter essa
impressão, isso se deve por eu ter direcionado minha atenção principal ao
comentário do lugar-comum na Crítica do Programa de Gotha de Marx, o
qual se refere ao ‗horizonte estreito da lei burguesa‘. É claro, essa ‗lei
burguesa sem a burguesia‘ (Marx se refere ao estágio quando classes já
foram destruídas e apenas o princípio de distribuição em proporção ao tempo
de trabalho se mantém) está tão longe da lei burguesa sem aspas quanto o
céu está da terra, a qual é um elemento facilitador do processo de
exploração. A funcionalidade de classe dessa lei e não apenas dessa, mas da
nossa lei soviética, correspondendo a um nível inferior de desenvolvimento
do que o que Marx envisionou no Crítica do Programa de Gotha, é
fundamentalmente diferente da lei burguesa genuína. Apenas a ‗lei
burguesa‘ entre aspas – a qual não é lei burguesa genuína – pode se
deteriorar. A lei do Estado burguês, protegida pela força do último, só pode
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ser destruída pela revolução proletária. (PASHUKANIS, 1980, p. 194)


(tradução livre)
Essa distinção resolve o paradoxo aparente da teoria pachukaniana, apontando a necessidade
de desenvolvimento da lei burguesa em sua própria subversão, para os propósitos de ‖parto‖
da sociedade de transição socialista (MARX, 2013, p. 821).147 Vale notar que tal subversão e
deterioração da lei representam simultaneamente também seu desenvolvimento histórico, pois
não se trata de um regresso a um suposto estágio anterior de estado de natureza sem lei, mas
de uma evolução civilizatória orientada a um estágio ainda não atingido de supressão da
necessidade do Estado.

A maneira pela qual Pachukanis pretende guiar uma superação dos elementos
econômicos capitalistas na lei soviética revela suas nuances mais centrais principalmente no
contexto do compilamento de um primeiro Código Civil e da apresentação da Nova Política
Econômica (NPE) por Lenin após a guerra civil contra as forças tsaristas - quando se fazia
urgentemente necessário desenvolver algum tipo de concepção geral de lei para o novo
Estado soviético. Contra a noção jurídica que chamou de ―propriedade privada convertida em
função social‖, que sai vitoriosa desse período, Pachukanis denuncia os elementos de lei
burguesa voltados exclusivamente ao desenvolvimento das forças de produção em todas as
instâncias e que teriam perdurado irrefletidamente mesmo para além da morte de Lenin, o que
teria exercido forte influência regressiva à ideologia burguesa legal:

No tempo que se passou desde 1921, nosso ‗movimento pelo socialismo no


contexto da NPE‘ obteve um passo a frente significativo e desde então já
passou da hora dos juristas soviéticos tornarem o critério supremo de seus
propósitos dogmáticos e político-legais não o desenvolvimento das forças de

147
Metáfora utilizada por Marx ao tratar da necessidade da violência na transição do feudalismo para o
capitalismo, particularmente através do uso do Estado. Generalizando tal necessidade, diz que ―a violência é a
parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência
econômica‖. Nota-se a ressalva ―que está prenhe de uma sociedade nova‖, que já informa em que contexto há
algum papel para a força da violência; isto é, quando corresponder inevitavelmente às necessidades econômicas
e se justificar por elas, não sendo possível supor que qualquer violência em qualquer momento ative processos
revolucionários, como se dar à luz dependesse singularmente de força.

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produção, mas a perspectiva da vitória dos elementos socialistas da nossa


economia sobre seus elementos capitalistas. (...) As categorias mais
características da lei burguesa – o sujeito de um direito, propriedade,
contrato etc. – primariamente e mais claramente revelam sua base material
no fenômeno da troca [de mercadorias]. A categoria do sujeito jurídico
corresponde à categoria do valor do trabalho. A qualidade impessoal e geral
das mercadorias é aprimorada pelas qualidades formais de igualdade e
liberdade que proprietários de mercadorias conferem uns aos outros. Esse é o
ponto inicial da crítica de Marx a categorias jurídicas abstratas. (...) Estou
convencido de que apenas por essa abordagem poderá a crítica marxista
superar toda regressão ao dogmatismo absolutista jurídico, as quais, como
mostra a experiência, inevitavelmente se transformam em uma reversão à
ideologia burguesa legal. (PASHUKANIS, 1980, p. 192-199) (tradução
livre) (grifo nosso)

Dessa forma, verifica-se também um obstáculo à terceira e última característica do princípio


da dignidade da pessoa humana. A forma de norma jurídica vinculante identificada por
Sarmento se depara com suas fronteiras: a dignidade humana não poderá figurar fora da
sociedade capitalista enquanto norma jurídica. Esta só poderia agir por fora dessas fronteiras
pela forma de preceito ético-prático. Nota-se que Pachukanis antecede as pretensões
moralizadoras do Direito do neoconstitucionalismo no ocidente. Apesar disso, o entendimento
lukacsiano da Ética parece se adequar ao que Pachukanis preferiria como critério maior para a
lei soviética. Afinal, apesar das possíveis tortuosidades entre suas concepções, ambos
enfatizam que a solidariedade deve prevalecer às relações de produção mercantil como
sociabilidade e base material para a forma jurídica até que se supere o Estado. A seguir,
veremos de que maneira essa articulação se torna possível.

2.4 Sobre a Humanização do Direito pela Dignidade Humana


2.4.1 Do Direito Subversivo

Mascaro inevitavelmente observa que, durante as revoluções burguesas, a classe


burguesa em ascendência deixa de ser contrária ao Direito positivo - com amparo no Estado,
antes defendido pelo Absolutismo - para adotá-lo como sua filosofia basilar logo após as

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revoluções, em defesa da propriedade privada (sobre os meios de produção, especialmente),


da igualdade formal e da liberdade contratual, elevados à condição de direitos naturais:

Se o fim do Absolutismo representou o fim de um tipo específico de


pensamento jurídico, o absolutista, a lógica da burguesia, apenas com
pequenos ajustes, adaptou o seu jusnaturalismo às condições de domínio
estatal que então se apresentavam. O jusracionalismo era um sistema
fechado e lógico de apoio aos interesses burgueses, e seu esteio era uma
pretensa razão universal. Ocorre que o juspositivismo, que é a filosofia do
direito burguesa que matou o jusracionalismo e o sucedeu, é a mesma coisa
que este, apenas com outra base. Também o juspositivismo é um sistema
fechado, lógico, que dá base à ação burguesa. Mas seu esteio é o Estado, que
agora já é burguês também. (MASCARO, 2016, p. 284)
Tal apropriação do Direito absolutista para propósitos burgueses, portanto, não se
compara à muito mais radical subversão do Direito burguês sugerida por Pachukanis para
propósitos socialistas, que fosse capaz de se deteriorar, dada sua distinta proposta de
superação do Estado classista, ao invés de sua manutenção.

É precisamente esse o motivo da teoria jurídica hegemônica ser incapaz de levar a


humanização do Direito para além das possibilidades e necessidades da classe dominante.
Nisso, - para propósitos imediatos – a possibilidade de superação histórica do
neoconstitucionalismo aponta para sua subversão que aparenta demandar uma inversão
radical de ponto de vista e orientação moral do princípio da dignidade da pessoa humana ao
longo de parâmetros mais apropriados ao arcabouço de enorme potencial do pensamento
social marxista.

Como vimos, a mais atual e proeminente perspectiva para essa tarefa, mesmo que não
desenvolvida especificamente para tal e ainda incipiente, parece ser a da Ética lukacsiana. É
por Pachukanis entender a ―lei burguesa sem burguesia‖ como necessária subversão da
mesma pela perspectiva de vitória sobre os elementos capitalistas da economia e por Lukács
enxergar o ponto de vista da individualidade isolada como a especificidade distintiva da
ciência burguesa que essa síntese se faz impositiva e inescapável.

É a partir dessa síntese e apenas a partir dela que se faz então possível teorizar uma
contribuição apropriada ao tema da dignidade humana, na forma do que poderia ser chamado
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de Princípio da Dignidade do Gênero Humano. Afinal, friso, compreende-se em Pachukanis


que o desenvolvimento social e a emancipação humana devem se refletir no Direito e no
Estado não como sua superação imediata e absoluta, apesar de suas incompatibilidades
essenciais últimas; mas como sua subversão progressiva em um instrumento de apoio a uma
sociabilidade materialmente baseada em relações sociais solidárias, a partir de um ponto de
vista coletivo e em oposição a uma sociabilidade individualista de relações sociais
mercantilizadas. Nesse mesmo sentido, Mascaro faz considerações pertinentes, mais uma vez
atento às contradições estruturais que permeiam o tema dos direitos humanos:

A defesa dos direitos humanos na sociabilidade contraditória capitalista é,


exatamente e ao mesmo tempo, de algum modo sua negação. Justamente
porque são instituições advindas de condições estruturais específicas e
necessárias, com usos conjunturais muito variáveis, os direitos humanos não
podem ser tomados acriticamente, como escudo de resistência total à
barbárie ou como atributo imediato, imparcial e neutro da dignidade
humana. Os amigos dos direitos humanos necessitam compreender, mais
profundamente, sua lógica e sua anunciação nas sociedades contemporâneas.
É por gostar da dignidade humana e por ela lutar que não se pode deitar
confortavelmente na ilusão normativista causada pelos direitos humanos
como mera ferramenta jurídica de garantias. É preciso entender sua estrutura
íntima, peculiar e necessária para, a partir dela, divisar os horizontes mais
largos – e as lutas também então mais difíceis – para garantir a dignidade à
humanidade. (MASCARO, 2017, p. 111-112)
A fala de Mascaro aqui é ilustrativa da natureza da subversão proposta pelo presente estudo.
Não uma subversão em abstrato, mas especificamente como inversão do ponto de vista da
individualidade implícito ao dispositivo jurídico. Na seção seguinte, exercitaremos de que
maneira isso se torna possível e veremos que tais subversões trariam mudanças qualitativas
profundas ao Direito.

2.4.2 Do Princípio da Dignidade do Gênero Humano

As especificidades de um princípio da dignidade do gênero humano, em oposição às


do princípio da dignidade da pessoa humana, não podem deixar de ser tão radicais quanto as
distinções entre a ética kantiana e a ética lukacsiana. Não deve herdar acriticamente as

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características gerais de universalização, foco na pessoa concreta (ou mesmo no indivíduo


abstrato) e forma de norma jurídica vinculante, com alicerces nos imperativos categóricos;
ainda menos, regressar às características de hierarquia, foco na ordem estamental/organicista
e forma de valor religioso da noção pré-kantiana de dignidade, como identificadas por
Sarmento (SARMENTO, 2016, p. 26).

Para estar mais de acordo tanto com uma Ética de superação da antinomia entre
individualidade e generalidade quanto com um Direito comprometido com a perspectiva de
vitória dos elementos econômicos socialistas sobre os capitalistas como seu critério supremo,
tal princípio deve ir para além dessas e atingir, como vimos, as características - tomadas
sempre em conjunto - de historicização, foco no gênero humano e forma de preceito ético-
prático; esse último com uma dimensão jurídica, assim como a forma de norma jurídica
anterior teria dimensões extrajurídicas.

Teria, assim, na historicização, sua atribuição de ir além da mera universalização e se


sustentar no solo sócio-histórico real (para além das sistematizações ideais do Direito) e na
análise crítica do status quo, em função do pleno entendimento do efetivo papel histórico do
Direito, especialmente em suas capacidades organizativas anticolonial e revolucionária; no
foco no gênero humano sua atribuição de assumir o ponto de vista da totalidade, pautando
centralmente suas opressões e o conflito de classes e particularizando-o às necessidades e
possibilidades imediatas e concretas do nível cotidiano na resolução dos conflitos; e na forma
de preceito ético-prático sua atribuição autocrítica de ativamente reavaliar o Direito, de
maneira a coordenar a progressiva absorção dos papéis do Estado pela própria sociedade civil
organizada, projetando-o à deterioração de sua necessidade social, em movimento contrário à
automatização e engessamento conservador da prática jurídica.

Consequentemente, tal subversão se transmite da forma (lato sensu) para o conteúdo


do princípio, onde quer que se faça presente o ponto de vista da individualidade isolada.
Sarmento identifica cinco elementos do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa
humana, esses sendo o valor intrínseco da pessoa, a autonomia, o mínimo existencial, o

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reconhecimento intersubjetivo e a igualdade – com esse último já sendo contemplado como


seu próprio princípio na constituição brasileira (SARMENTO, 2016, p. 92-93). Aqui, é
possível esboçar como a subversão desses elementos, pela inversão do ponto de vista
implícito ao dispositivo jurídico, pode ser trabalhada, respectivamente, pelas categorias de
valor intrínseco da humanidade, cooperatividade, máximo organizativo, antietnocentrismo e
justiça social, as quais, logo após, veremos por que motivos são especiais e assim se impõem.

Teria no valor intrínseco da humanidade a vedação da indiferença ou


instrumentalização da coletividade em proveito de interesses individuais ou de classe, de
modo a garantir tal valor digno ao indivíduo; na cooperatividade, o apoio às organizações
civis autônomas, como comitês de moradores e cooperativas, voltadas às necessidades e
possibilidades concretas das comunidades, percebidas suas interdependências e
predeterminações socioculturais, econômicas e históricas (externas e heterônomas), tanto na
sua dimensão privada, ligada ao acesso a informação, cultura, emprego, serviços e lazer,
quanto na pública, ligadas à democracia direta, de modo a garantir autonomia digna ao
indivíduo; no máximo organizativo a garantia de todo o necessário à máxima organização
possível da classe trabalhadora no ambiente de trabalho, em âmbito privado, e no Estado, em
âmbito público, de modo a garantir o mínimo existencial digno ao indivíduo; no
antietnocentrismo o respeito à alteridade a partir de um entendimento anticolonial das
diversidades sócio-histórica e étnico-cultural e da responsabilidade de reparação histórica, de
modo a garantir o reconhecimento intersubjetivo digno ao indivíduo; e na justiça social o
combate às hierarquias sociais, culturais e econômicas, impondo que se busque sua superação
concreta e a eliminação tanto das opressões, como a racial e a patriarcal, quanto das formas de
exploração do trabalho, de modo a garantir igualdade digna ao indivíduo.

Tais categorias, especificamente, destacam-se, visto que os conteúdos antes


identificados no princípio da dignidade da pessoa humana não são escanteados em seu
processo de subversão, mas assumem as formas das condições sociais de possibilidade de si
mesmos e, portanto, formas mais desenvolvidas e não infladas ou exacerbadas de si mesmos,
sendo incorporados ou pressupostos nessas, mesmo que de maneira crítica. É evidente,
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portanto, que as noções de autonomia ou igualdade atingidas depois de incorporadas não são
necessariamente as mesmas que as anteriores. Impõem-se assim, visto que procurar garantir
esses elementos de forma isolada, que não pelas suas condições sociais de possibilidade,
demonstra-se, afinal, uma procura falsa, vazia ou pela metade, incapaz de quebrar barreiras
econômicas, culturais, de cor, de gênero e de classe. Esse efeito de incorporação pela
subversão ocorre fundamentalmente por não ser possível conceber a generalidade sem
pressupor a individualidade, muito apesar de ser ideologicamente possível partir de uma
concepção de indivíduo que escanteia ou escamoteia sua necessária relação dialética com a
generalidade.

Verifica-se assim que tal subversão, não concebe um sujeito de direito dotado ele
próprio de um rol de valores anistóricos e individuais por força jurídica, mas concebe antes
um coletivo de direito situado historicamente e a partir do qual se desdobra a particularização
ao indivíduo, por força ética. Guia-se, assim, pela máxima de Marx: ―de cada qual, segundo
sua capacidade; a cada qual segundo suas necessidades‖, para além do ―estreito horizonte do
direito burguês‖ (MARX, 2012, p. 33).

Note-se que as subversões aqui incipientes procuram um mínimo de comunicação com


a construção atual do princípio da dignidade da pessoa humana, de forma que não incorra em
uma completa incompatibilidade com a atual tradição jurídica, mas se vislumbre a
possibilidade inicial de seu uso prático – mesmo que por interpretação diversa da aqui
sugerida. Contudo, essa comunicação mínima nem sempre será possível. Não se pretende
ignorar que os desdobramentos dessa inversão radical em ponto de vista seriam tremendos e
que ainda estão longe de serem exauridos. Logo, é de se esperar que só viriam acompanhados
de tremendas transformações político-institucionais, seja por causa ou por efeito,
paulatinamente ou em momento brusco de mais elevada convulsão social.

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Considerações finais
A presente pesquisa se ocupou de situar onde a humanidade se encontra em sua
história - e quais encruzilhadas se projetam para ela. Para essa investigação, o referencial
teórico utilizado foi o da tradição filosófica posta por Karl Marx, expoente maior do
pensamento crítico social contemporâneo. O tema da dignidade humana e seu
desenvolvimento histórico até o neoconstitucionalismo assumiram a centralidade nesse
estudo. Foi percebido que, muito apesar da força moral do princípio da dignidade da pessoa
humana que orienta a teoria jurídica hegemônica, sua evocação é frequentemente vaga,
contraditória, não-neutra, logo, largamente inefetiva. O estudo identificou que as raízes da
noção moderna de dignidade humana se concentram em Immanuel Kant. Notou-se que
relevantes acontecimentos históricos entre o tempo das perspectivas paradigmáticas desses
dois pensadores se fizeram, em grande parte, de efeito prático nulo para a teoria jurídica
hegemônica. E que, além disso, o próprio Direito burguês se situa como uma apropriação
acrítica de um entendimento jurídico ainda anterior, herdado do Absolutismo e adaptado para
propósitos burgueses. Logo, o estudo concentrou-se em analisar a crítica marxista às
especificidades e limites metodológicos da perspectiva filosófica kantiana, que poderiam
encontrar tentáculos na atual teoria jurídica.

Foi visto então que tais limites metodológicos também comprometem gravemente a
teoria ética do mesmo paradigma kantiano. Foram apontados vícios de uma perspectiva
anistórica e individualista da ética. Depois de inicialmente afastada da discussão jurídica por
pretensões objetivantes do Direito, tal teoria seria ainda resgatada mundialmente no
ordenamento jurídico após os horrores da Segunda Guerra Mundial, com ápice no
neoconstitucionalismo. Percebeu-se que, no tema da dignidade humana, demandava-se uma
alternativa crítica a essa teoria e tradição jurídica. Para essa tarefa, foi utilizado como norte
principiológico o entendimento da ética historicizada de Gyorgy Lukács, que se destaca
especialmente pela superação do chamado ponto de vista da individualidade isolada e de seus
efeitos ideológicos.

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Visto ainda a fulminante crítica de Evgeni Pachukanis às determinações materiais do


próprio Direito, verificou-se a íntima relação entre a forma jurídica e a forma mercadoria.
Como proposta de superação da teoria jurídica da sociabilidade individualista, Pachukanis
conclui que o Estado pós-capitalista deve subverter a lei burguesa, rejeitando os elementos
capitalistas da economia. Tornou-se assim altamente relevante a apresentação de uma
adequada síntese teórica entre a crítica pachukaniana ao Direito e a orientação pela ética
lukacsiana. Chegou-se, por essa síntese, ao entendimento do Princípio da Dignidade do
Gênero Humano, com os méritos de superar o ponto de vista da individualidade isolada,
orientar-se pela ética historicizada e desenvolver o entendimento jurídico da noção de
dignidade humana para além das limitações teóricas do paradigma kantiano.

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O EXERCÍCIO DE PODER NA MÍDIA E SUA INFLUÊNCIA NA


NATURALIZAÇÃO DO ENCARCERAMENTO FEMININO

Amanda Laporte

Resumo
O presente artigo tem como objetivo debater a excessiva representação midiática do sistema
prisional feminino em plataformas de streamings e a sua influência na naturalização do
encarceramento em massa de mulheres. Para isso, serão analisados os reforços dos
estereótipos criminais empregados de forma superficial, e a insistência em usar a prisão como
instituição fundamental para a existência de um corpo social seguro. Por uma perspectiva
filosófica, serão usados como base de análise os filósofos Michel Foucault e Angela Davis.
Ademais, apresento uma reflexão sobre a questão dentro do contexto brasileiro com o auxílio
da antropóloga Juliana Borges.

Palavras chaves: Gênero. Mídia. Prisão. Streamings.

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1. Introdução

O encarceramento em massa é uma ação em ascensão de uma sociedade extremamente


punitivista, que é levada a enxergar esse espaço como fundamental e estrutural para o corpo
social existir de forma segura e plena. Neste processo, o gênero feminino e o sistema prisional
têm protagonizado um estreitamento de relações que possuem dimensões significativas na
coletividade.

A grande popularização midiática em forma de streamings avança e realiza


investimento de materiais e produções que buscam cada vez mais explorar esse tema de forma
massiva e naturalizada, reforçando e repetindo estereótipos que levam a sociedade a enxergar
essa instituição como essencial e necessária, ainda que ela exista e se mantenha ao custo de
pessoas que foram produzidas como criminosas. As plataformas de streamings funcionam
com base no modo de operação da internet, sendo assim, o poder que ela produz é
imprescindível para catalogar pessoas e induzir o acesso fácil a esses conteúdos com temática
prisional.

Atualmente, o Brasil é o quarto país que mais encarcera mulheres no mundo. Este é
um número que aumenta progressivamente frente ao aumento de endurecimento de leis
relacionadas ao tráfico de drogas, problema que poderia ser considerado de saúde pública. São
diversos os motivos para que os números de mulheres presas sejam tão altos no país,
incluindo até mesmo assuntos burocráticos, como a questão de presas provisórias, ou seja,
sem condenação. A falta de acesso rápido a um julgamento submete as pessoas a um sistema
precário antes mesmo de uma sentença, ferindo o princípio de inocência, garantido por lei.
Assim sendo, pessoas que poderiam ter seus crimes resolvidos com serviço comunitário, por
exemplo, têm sua existência legitimada dentro de um sistema punitivo que muitas vezes não
deveria ser o seu destino, como é o caso do regime fechado.

As conjunturas que acompanham este aprisionamento sem freio no Brasil são


extremamente problemáticas, assim como o avanço da disseminação midiática desse tema,

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que de forma consciente ou não, induz a sociedade a naturalizar cada vez mais este sistema
vigente de punição. Isso nos leva a evitar um debate necessário sobre o questionamento de sua
real funcionalidade, uma vez que o encarceramento em massa se torna expressivo sob a
alegação de uma suposta segurança, enquanto a sensação de um ambiente seguro é cada vez
mais inexistente.

Para melhor compreender o surgimento deste sistema e pensar sobre sua permanência
utópica, que tenta dissimular ao máximo sua obsolência, será apresentada uma breve análise
das perspectivas dos filósofos Michel Foucault e Angela Davis acerca do tema, além de uma
reflexão sobre o contexto brasileiro, com ajuda de Juliana Borges.

2. O exercício do poder e a naturalização

O funcionamento do espaço prisional para o depósito de pessoas que cometeram crimes


se consolidou ao longo da história, causando a falsa noção de resolução dos problemas
existentes na sociedade. Um efeito dessa construção no mundo contemporâneo é o
encarceramento em massa que tem ocorrido em vários países. Desta forma, punir os sujeitos
pelo perigo que eles representam e afastá-los do convívio social – alocando-os em prisões
distantes dos centros urbanos – é o caminho mais aceito por uma grande parcela da população.

O encarceramento físico dos corpos como conhecemos atualmente é o resultado de um


processo de reformas produzidas pelas mudanças nas formas de exercício de poder. O filósofo
Michel Foucault é quem melhor traz essa reflexão em seu livro: Vigiar e Punir (2004). Nele o
autor explica a gênese da prisão como uma forma de moderar o poder que o soberano tinha
perante a população. Antes desse confinamento, os considerados criminosos eram castigados
em praça pública e tinham seus corpos supliciados. Tal modelo francês que o autor analisou
inspirou modelos prisionais ao redor do mundo.

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Esta forma de exercer o poder – por meio da tortura do corpo do condenado – aos
poucos foi se tornando excessiva e cruel, já que os suplícios representavam um espetáculo
onde o físico era exposto ao seu limite, membros eram arrancados, queimados, abatidos,
impondo à sociedade uma experiência vívida na qual o sujeito agonizava. O soberano obtinha
justiça sobre aquele que quebrou suas regras e propagava na população o medo de cometer o
crime. Entretanto, com o passar do tempo, a presença constante desse mecanismo de
perversidade não causava mais medo na população, mas sim uma empatia com o sujeito
condenado:

[...] ficou a suspeita de que tal rito que dava um ―fecho‖ ao crime mantinha
com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em
selvageria, acostumando os espectadores a uma feracidade de que todos
queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a frequência dos crimes, fazendo o
carrasco se parecer com os criminosos, os juízes aos assassinos, invertendo
no último momento os papéis, fazendo o supliciado um objeto de piedade
(FOUCAULT, 2004, p. 13).

Após a inversão de papéis apontada na análise de Foucault, foi sinalizado que os suplícios não
estavam funcionando como eram necessários para a sociedade, pois suas ações eram de uma
intensa perversidade. Desta forma, surge a necessidade de reformar o modelo punitivista
vigente. Assim, o cárcere – que antes era usado para garantir que o condenado não fugisse de
seu destino impiedoso – deixa de ser apenas um meio para assegurar a punição e torna-se a
finalidade. O encarceramento físico do sujeito passa a ter como função uma humanização da
pena, direcionando a punição à alma e não mais ao corpo.

Aprofundando um pouco mais em sua obra, Foucault expressa sua análise sobre uma
sociedade que vai mudando e se tornando cada vez mais disciplinada, que busca ao extremo
docilizar os corpos e toná-los úteis para acompanhar o modelo econômico crescente no tempo.
Para isto, ela cria todo um aparato de instituições disciplinares onde o sujeito vai estar sob
vigilância constante, moldando suas ações nos mínimos detalhes.

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Fica evidente que a prisão é um sistema feito e atravessado por poderes


disciplinares. A ideia construída no livro expõe que, para Foucault, a prisão é como um
sistema que não fracassa, pois obtém o sucesso de produzir a delinquência, processo no qual,
segundo ele, a prisão tem sua principal funcionalidade. Sendo assim, desde sua gênese a
prisão pretendia moldar e corrigir os sujeitos em sua alma, através de seu físico, por meio do
encarceramento.

Portanto, a remodelação dos sistemas de punição está atrelada ao tipo do exercício de


poder que existe de acordo com a época. Atualmente, segundo a filósofa Angela Davis, os
Estados Unidos estão se consolidando como um modelo de punir. O padrão punitivista
seguido e exportado por eles é baseado na privatização dentro do sistema capitalista. Os EUA
estão em primeiro lugar no índice de encarceramento de ambos os sexos no mundo. De acordo
com a divisão binária vigente, as pessoas do sexo masculino representam a maior parte de
presos no país, seguido de China e Brasil. No que diz respeito ao índice do sexo feminino, a
ordem é EUA, China, Rússia e Brasil, segundo os dados do DEPEN (Departamento
Penitenciário Nacional).

A forma em que o exercício de poder vai consolidando mudanças através de aparelhos


que buscam consolidar suas ideias e necessidades difere ao longo do tempo. Através do livro
Vigiar e Punir, Foucault esclarece que a vigilância constante, por meio do panóptico148, é
crucial para exercer poder e controlar os corpos dos indivíduos, para assim, docilizá-los e
torná-los úteis. O controle rígido do tempo e a vigilância eram as principais formas de
disciplinar sujeitos e, por consequência, sua mente, tornando sua existência conveniente à
expressão de autoridade vigente.

Entretanto, na contemporaneidade, o exercício do poder está buscando agir não mais


puramente na disciplinação dos corpos, como fonte principal de controle, mas sim das mentes.
Portanto, a forma de exercer poder no mundo contemporâneo é divergente do mundo

148
Panóptico.Disponível em
<http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20disciplinar/Panóptico.htm>. Acesso
em 9 ago. 2020.
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moderno, que via o corpo físico como fonte oriunda para chegar à mente, para assim, obter
controle e poder. O exercício deste poder no mundo atual está atuando diretamente por meio
da internet. O cyber poder, como é conhecido, é a principal forma de executar poder e
controle, produzindo verdades e representações que influenciam a mente e as ações dos
sujeitos que compõem o corpo social.

Assim sendo, o exercício de poder que se estabelece na sociedade contemporânea para


formular as opiniões e as ações do indivíduo estão em contato direto com a comunicação e os
processos midiáticos, sobretudo os que dependem dos meios virtuais. Desta forma, o processo
que busca a naturalização da punição perpassa por esse exercício de poder, a mídia e a
representação.

A pesquisadora Juliana Borges, em seu livro Encarceramento em Massa, traz debates


sobre a real necessidade da instituição prisional e os resultados de seus impactos negativos na
sociedade, além de demonstrar como as concepções acerca do sistema punitivista vêm se
alterando e se complementando através do tempo. Em uma passagem que faz referência a Ana
Flauzina, ela expõe:

E são essas visões que sedimentam uma relação dinâmica de que o


criminoso, ao cometer um crime contra o todo do corpo social, pode e deve
receber sanções por quebrar os pactos definidos para o ordenamento e o
convívio social. Os sistemas punitivos, portanto, não são alheios aos sistemas
políticos e morais, são fenômenos sociais que não se prendem apenas ao
campo jurídico, pelo contrário, têm um papel no ordenamento social e têm,
em sua constituição, uma ideologia hegemônica e absolutamente ligada à
sustentação de determinados grupos sociais em detrimento de outros
(BORGES, 2019, p.44).

Em seu livro Estarão as Prisões Obsoletas? Angela Davis explica que segundo a crítica
cultural Gina Dent, a mídia teve um grande impacto na construção da normalização do espaço
prisional como uma instituição comum, que nasceu junto à construção de mundo e que não

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pode mais ser abolida. A autora explicita este argumento na seguinte passagem que faz
referência a Gina Dent:

A história da visualidade ligada à prisão também é uma das principais formas


de reforçar a instituição da prisão como uma parte naturalizada da nossa
paisagem social. A história dos filmes sempre esteve conjugada à
representação do encarceramento (DAVIS, 2018, p. 19).

O papel da TV e do jornal consolidaram esse local como único capaz para expurgar o
mal da sociedade. Além disso, a mídia criou e alimentou a existência de um perfil criminoso,
um perfil que representa perigo para a comunidade. Os jornais noticiavam homicídios e
roubos de forma massiva, mesmo quando os números estavam abaixando sem precedentes,
enquanto as construções de prisões eram feitas sem serem questionadas, tudo em nome de
uma segurança que buscava proteger a propriedade privada, em especial de pessoas brancas.
Essas produções de notícias recorrentes, juntamente com um perfil criminoso por trás,
implicaram em ações que parecem não terem escapatória. Angela Davis deixa explicita as
consequências dessas ações na passagem:

Nos Estados Unidos, já sentimos efeitos insidiosos e socialmente prejudiciais


da expansão prisional. A expectativa social dominante é de que homens
jovens negros, latinos, nativos americanos e oriundos do sudeste asiático – e
cada vez mais também mulheres – passem naturalmente do mundo livre para
a prisão, onde se supõe que seja seu lugar (2018. p. 111).

Assim como nos EUA, no Brasil vem sendo construída uma naturalização do encarceramento
feminino. Apesar de a história das prisões femininas no Brasil ser bem mais recente quando
comparada com a de outros países, inclusive suas irmãs da América Latina. A primeira prisão
construída para receber as mulheres desviantes – consideradas criminosas – teve sua origem
no Rio de Janeiro em 1941. São Paulo e Rio Grande do Sul só adaptaram prisões que já
existiam para separar um local exclusivo a essas mulheres.

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Nos dias de hoje, mesmo diante de um sistema recente, os brasileiros vivem dentro
de uma construção social imaginária da prisão, como se pudessem compreender e vivenciar o
que acontece dentro das prisões femininas. Essa é uma consequência que está atrelada ao
aumento de produções midiáticas em plataformas de streamings sobre o sistema punitivista e
gênero feminino, pois eles não apenas reproduzem uma realidade, como também têm o poder
de criar e dissimular a mesma.

Destarte, o papel da mídia e das plataformas de streamings parece ser o de


realimentar a ilusão de que as prisões femininas sempre foram funcionais e também que
sempre existiram, como se as mulheres que cometem uma infração da lei fossem naturalmente
perigosas, criminosas cruéis que, portanto, merecem ser punidas de forma igual ou pior que os
homens. Angela Davis faz uma colocação histórica de como eram vistas as mulheres dentro
da prisão norte-americana, visão similar no Brasil. Segundo ela:

[...] se baseavam no pressuposto de que mulheres ―criminosas‖ podiam se


regenerar por meio da assimilação de comportamentos femininos adequados
– isto é, tornando-se especialistas na vida doméstica –, especialmente
cozinhar, limpar e costurar. Obviamente, um treinamento destinado a
produzir esposas e mães melhores dentre as mulheres brancas de classe
média produzia empregadas domésticas qualificadas dentre as mulheres
negras e pobres (DAVIS, 2018. p. 69).

Desse modo, a mulher presa é duplamente punida no sistema prisional brasileiro. A primeira
vez ocorre quando a pena decidida pelo Estado é realizada e a mesma é inserida em um
sistema precário que não está apto a lidar com as necessidades naturais do físico feminino; e
uma segunda vez, pelo abandono social, seja familiar ou no processo de ser reinserida na
sociedade, onde elas são vistas como delinquentes natas e muitas vezes sendo muito mais
julgadas do que homens que também foram presos e até mesmo que cometeram o mesmo
crime.

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As mulheres em condição de cárcere no Brasil correspondem ao clássico problema


interseccional de gênero, raça e classe que o Estado insiste em ignorar, o que acaba
implicando no encarceramento de mulheres de forma desenfreada, punindo suas famílias junto
com elas. Segundo o Infopen (levantamento nacional de informações penitenciárias), o Brasil
é o país que mais cresceu em aprisionamento de mulheres em menos tempo – cerca de 455%
entre os anos de 2000 a 2016, enquanto os outros países presentes no ranking não chegaram a
20%149 .

O aumento desse encarceramento em massa está vinculado a questões que estão


fundamentadas em problemas estruturais – dos quais o governo fecha os olhos e ainda busca
dificultar. As leis mais rigorosas para a política de drogas representam uma ação direta com o
aprisionamento em massa de mulheres – que são, muitas vezes, vítimas ou mulas desse
comércio fora da lei, mas que são frequentemente vistas e posicionadas como grandes
traficantes150. Como pode ser visto pela colocação de Juliana Borges em seu livro
Encarceramento em Massa:

No artigo 28 da Lei n o 13.343/2006, está descrito que o juiz terá sua decisão
determinada se a droga estava destinada a consumo pessoal ou para o tráfico
a partir da natureza, da quantidade de substância, do local, das condições em
que a ação de apreensão foi desenvolvida, das circunstâncias sociais e
pessoais, bem como da conduta e dos antecedentes da pessoa analisada
(BORGES, 2019, p. 102).

Na atual política de drogas, quem define se a quantidade que a acusada está portando no
momento da prisão equivale ao tráfico ou consumo, é unicamente o policial que vai estar
presente. As circunstâncias que vão definir se você é uma traficante ou usuária, são a cor da

149
Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/brasil-e-o-4o-pais-com-mais-mulheres-presas-no-mundo>
Acesso em 2 ago. 2020.
150
Exemplo de reportagem Disponível em: <https://observatoriodeourofino.com.br/noticia/mulher-e-presa-por-
trafico-de-drogas-em-bar /> Acesso em 2 ago. 2020.

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pele e seu CEP. A maior parte dessas mulheres é pega com uma quantidade pequena de
drogas porque são apenas considerada ―mulas‖ para o tráfico. Elas, em sua maioria, não
representam importância dentro desse meio. Juliana Borges explica melhor essa realidade na
seguinte passagem:

A lei não tem uma visão sistêmica e totalizante sobre tráfico de drogas,
muito menos tem como objetivo desmantelar, de fato, essa economia ao
focar em pequenos traficantes, contingente em que as mulheres têm
predominância. Se pensarmos o tráfico como uma indústria, a estrutura
espelha a do mercado formal de trabalho. Em outras palavras, cabe às
mulheres posições mais vulneráveis e precarizadas, e com mais diferenças se
adicionarmos o quesito cor. Além disso, diversos são os estudos que
demonstram que várias prisões de mulheres são realizadas em operações 66
nas quais o foco eram os parceiros ou familiares dessas mulheres, que
acabam sendo detidas por associação ao tráfico (BORGES, 2019, p. 103).

Entretanto, o reforço midiático que constantemente vinculado em jornais, filmes e


séries são de que, em sua maioria, as mulheres seriam naturalmente cruéis e criminosas natas,
passando a ideia de que: quem passa pela prisão, praticou algum crime hediondo. Como no
caso real de Elize Matsunaga, que matou o marido e esquartejou o corpo do mesmo; ou o caso
muito popular de Suzane Von Richthofen, acusada de mandar matar os pais. Ambos os casos
– assim como outros de mulheres assassinas – foram massivamente explorados pela mídia,
ajudando a criar no inconsciente da sociedade que os crimes cometidos por mulheres são
hediondos, em sua maioria. Desta forma, reforçando a ideia de que as mulheres nas prisões
são essencialmente assassinas.

Além da exploração da mídia em cima dessas mulheres, é possível ver uma


construção de mocinha, por parte dos advogados ou até mesmo da mídia, quando não podem
esconder o crime, como no caso mais recente de Sari Corte Real, acusada de homicídio
culposo, quando não há intenção de matar. Sari é acusada pela morte de uma criança negra de
5 anos, chamada Miguel. A primeira dama de Tamandaré compareceu a uma entrevista ao
jornal chamado Fantástico da emissora Globo - a emissora também é responsável pela
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plataforma de streamings, Globo Play, onde possibilita o acesso a novelas e jornais, além de
séries, filmes e documentários. Seu visual foi construído para não parecer uma criminosa nata.
Dessa forma, ela aparece de cabelos longos, loiros, blusa branca, sem maquiagem e com um
terço na mão enquanto faz a entrevista.

Essa criação do visual de mocinha é feita e realizada para causar empatia no


telespectador, para que ele a veja como uma mulher do bem, de família, religiosa, boa mãe,
que apenas cometeu um erro. Essa construção busca omitir o poder e privilégio que Sari
obtinha como primeira-dama, mulher branca, com boas condições financeiras e que mantinha
a funcionária trabalhando contra todas as recomendações de saúde durante o período de
pandemia, além de pagar a trabalhadora com dinheiro da prefeitura.

Dessa forma, é reprimido todo poder que ela entoava antes do crime. Cria-se o
discurso familiar de boa mãe que não podia abandonar sua filha e, por isso, deixou Miguel
sozinho no elevador. Portanto, esse discurso é construído tentando, assim, trazer mais empatia
com ela do que com Miguel e sua mãe – Mirtes Renata de Souza Santana, que apesar de
representar a maior parte do Brasil, como classe trabalhadora, isto é: mãe, negra e doméstica;
foi pouco representada como uma vítima real.

Dentro da ficção, o mercado em torno do cárcere feminino está cada vez mais
presente. É extremamente difícil não visualizar dentro dos programas midiáticos151 uma
menção ao sistema prisional ou uma história voltada para esse tema. Apesar de localizadas tão
longe dos centros urbanos, as prisões femininas estão mais presentes do que nunca no
imaginário social, seja através de novelas, séries, filmes ou jornais que estão se tornando
presentes em plataformas como Globo Play .

151
Séries disponíveis em streamings como: How to Get away with Murder, Grey‘s Anatomy, Prisão de
Mulheres, Irmãs de Cela; documentários como Garotas no Cárcere; novelas como Avenida Brasil, Totalmente
Demais, além de filmes e minisséries.

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O crescimento da utilização desse tema está intrinsecamente ligado ao aumento


desses números na vida real. Frequentemente, as produções midiáticas que querem a prisão
feminina como o cerne do conteúdo utilizam-se desse ideal de mocinha para iniciar a história.
Onde a protagonista é branca, loira, magra, de família bem construída e o crime dela é bem
pequeno, ou seja, não oferece risco à vida de ninguém, ou simplesmente foi enganada. A
partir desse pequeno delito, ela vai parar na prisão, local roteirizado como sendo repleto de
criminosas cruéis e ferozes que não tem nada em comum com a mocinha exceto, é claro, todas
serem fora da lei em algum momento de suas vidas.

Entretanto, é necessário ressaltar que muitos produtores dessa área utilizam-se desse
padrão para inserir um cavalo de Tróia no público, apresentando mais profundamente os
problemas que alimentam a existência destas prisões femininas e como a sua influência em
punição ultrapassa os muros, afetando diretamente suas famílias. Desta forma, por mais que o
autor caracterize esse padrão mocinha como protagonista, com o passar das temporadas ou do
desenvolvimento da série, ele aprofunda em personagens que antes não eram tão humanizados
dentro desse espaço.

É como a série original da Netflix, Orange is the New Black, criada em 2013, cada
temporada contendo 13 episódios, sendo renovada para a sétima e última temporada ainda na
terceira, devido ao sucesso no grande público dentro e fora do seu país de origem, os Estados
Unidos. A série tem um total de 91 episódios com média de 60 minutos cada, tendo seu final
no ano de 2019. A produção é definida com o gênero de comédia e drama, explorando de
forma humorística o drama que é vivenciar a realidade prisional todos os dias.

Ao decorrer das temporadas, a série percorre pelas histórias que constroem o


complexo industrial prisional: as famílias das presas, o trabalho dentro da prisão, a comida, as
condições das presas que precisam de remédios, condições de presas transexuais, violência
policial por parte dos guardas, corrupção do sistema e precariedade de condições de trabalhos
para os diretores desse espaço. Todo um enredo baseado nessa protagonista mocinha que é

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jogada na cova das leoas, mas que com o tempo, mostram-se gatinhas, pessoas que foram
extremamente desumanizadas na sociedade e refletem essa produção subjetiva na prisão.

Durante o processo de adaptação da protagonista Piper Chapmam, é exibida a reação


de sua família e amigos. Seu pai se recusa a visitá-la, enquanto a mãe insiste em reforçar que a
filha que foi tão bem educada não deveria se misturar com aquelas outras criminosas cruéis e
violentas, perseverando a imagem social da prisão. Além disso, sua mãe – ao confessar uma
mentira – declara que contou às pessoas de seu círculo de amigos que a filha estaria fazendo
trabalho voluntário em um país distante.

A produção também relata o tratamento diferenciado que Piper Chapmam tem por
ser vista como um ser humano que cometeu um erro, não como uma criminosa nata das quais
a prisão está lotada – papel que a mídia insiste em reforçar e utilizar-se. Criminosas essas que
tem um perfil muito bem caracterizado pela mídia e localidade onde o tema é ambientado. No
caso de Orange is the New Black , que é nos Estados Unidos, as criminosas são retratadas
como más, cruéis e naturalizadas nesse ambiente punitivo. Assim, frequentemente são
representadas por um corpo negro, latino, pobre e atravessado por diversas violências, onde a
série vai explorar quando convém ou quando tem tempo de tela para isso.

Além de Piper, que busca se adaptar nesse novo ambiente, temos acesso – ainda na
primeira temporada – à personagem de Tasha Jefferson, mulher negra e gorda. Em sua
primeira cena, Tasha Jefferson, contracenando com a principal, repara em seus peitos e a trata
com ignorância, primeira cena de impacto tanto do trailer quanto do primeiro episódio,
reforçando o estereótipo de quem é naturalizado nesse local. Em capítulos seguintes, Tasha
consegue seu direito à liberdade condicional, porém revela às amigas que não se sente segura,
pois não sabe fazer nada no mundo livre, afinal, cresceu em várias instituições do Estado e a
prisão não executou a tarefa de ressocialização – como a sociedade insiste em acreditar. Antes
do fim da primeira temporada, ela regressa à prisão de onde trabalhava na biblioteca e lá
explica a sua amiga Poussey que:

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Sabe o que não te falam quando você sai? Que vão ficar na sua cola como a
KGB. Toque de recolher, mijar num pote quando mandarem. Fazer três
entrevistas de emprego para vagas que não vai conseguir. O agente da
condicional ligando a cada minuto. Aqui pelo menos você tem comida... A
coisa não é bem assim. O salário mínimo é uma piada. Eu trabalhava no
pizza hut e eu ainda devia US$ 900 para a prisão em taxas. Eu não tenho
lugar pra ficar! Eu dormia no chão da minha prima de segundo grau igual um
cachorro. E lá moram seis pessoas em dois cômodos. Uma vadia roubou meu
pagamento. Eu peguei piolho. Todos os meus conhecidos estão pobres, ou
presos, ou mortos. Ninguém me perguntava como foi meu dia. Eu fiquei
doente da cabeça, sabe? (T1E12 46:23).

Discursos como esse de Tasha, mesmo que inseridos em um contexto ficcional, refletem no
mundo real, a prisão como resposta aos problemas sociais. Além do caso da mesma, a série
passa por assuntos complexos como: mãe e filha que acabam na mesma prisão, maternidade
no cárcere, greves pacíficas para se livrar da violência policial e até mesmo a morte de uma
detenta nas mesmas circunstâncias vistas na realidade.

Além de Orange is the New Black, diversas séries têm sido ambientadas dentro do
tema prisão de mulheres como, Vis a Vis, série da TV espanhola que se tornou um fenômeno
em outros países ao entrar no catálogo da Netflix . Vis a Vis se passa em outro país, entretanto
a receita é a mesma a ser seguida: a protagonista é uma branca, loira, magra, de família
considerada bem construída e afirma ter sido enganada pelo namorado. As séries têm suas
diferenças, mas ambas não deixam de criar no imaginário do consumidor a falsa noção de que
a prisão é funcional e é o único caminho. Assim sendo, o público compreende essa instituição
como necessária para a sociedade conseguir se livrar de todo mal, reforçando estereótipos
desse espaço.

A lista de séries que ambientam esse tema em algum momento de sua história é
grande: Sense 8, How To Get Away With Murder, Grey‘s Anatomy, entre outras. Para além das
questões ficcionais, os documentários sobre o cárcere têm ganhado cada vez mais espaço nos
streamings, incluindo sobre o sistema prisional feminino. Segundo Lucas Braga, do site
Tecnoblog, o Brasil é o sexto país que mais consome essa tecnologia e seu material,
ultrapassando qualquer operadora de TV paga no país.

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Existe ainda outro meio de acesso mais comum ao audiovisual no Brasil, os canais de
TV aberta que possuem um grande acesso no país, em lugares em que a internet não chegou.
Esses canais produzem novelas e histórias em seus jornais que reafirmam a existência da
prisão como local necessário para pagar pelos crimes cometidos. Essas grandes empresas
televisivas exploram esse lugar de maneira genérica, ensinando o povo a temer esse ambiente,
e não a pensar sobre sua existência e expansão, mesmo ele sendo uma das instituições que
mais crescem no país.

O resultado dessas ações e suas produções influenciam diretamente os sujeitos.


Durante uma entrevista cedida ao jornal independente chamado Jornalistas Livres,152 Preta
Ferreira, que foi presa em São Paulo enquanto lutava por direitos de moradia juntamente com
mais duas mulheres, relata as condições subumanas a que foi submetida. Ainda no início da
entrevista, a repórter questiona se Preta se sentiu ameaçada na prisão, espaço destinado a
mulheres extremamente criminosas. Entretanto, sua resposta esclarece que: ―Não tive ameaça
de ninguém, muito pelo contrário, fui acolhida. Quando eu cheguei na prisão eu pensei que
fosse aquela coisa que a gente via na TV, e não, não é nada disso. São pessoas assim como eu,
que precisam de lugar de escuta‖.

Frequentemente, ao longo de uma novela, é construído o personagem do vilão, que


na maioria das vezes é uma mulher que no fim do entretenimento acaba morta ou presa.
Reforçando assim a lógica de que pessoas que vão para a prisão não possuem uma vida após
esse espaço, como se elas não fossem voltar para a sociedade e, portanto, não representando a
problemática evidente da situação das ex-presidiárias que, segundo a exposição de Angela
Davis:

A criminalidade masculina, entretanto, sempre foi considerada mais


―normal‖ do que a criminalidade feminina. Sempre houve uma tendência a

152
Jornalistas Livres em https://jornalistaslivres.org/. Entrevista disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=e3tAj6JhJxI&t=821s>. Acesso em 09 de ago. 2020.

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encarar as mulheres que foram punidas publicamente pelo estado por seu
mau comportamento como significativamente mais anormais e muito mais
ameaçadoras para a sociedade do que suas numerosas contrapartes
masculinas. (2018, p. 71).

A vista disso, dentro da mídia, a exploração do tema cárcere feminino é utilizado de forma
superficial e cruel, reforçando a desumanização das pessoas reais que estão submetidas a esse
sistema e que têm uma vida depois dele. As condições subumanas nas quais essas mulheres
são colocadas na vida real, poucas vezes são refletidas na produção midiática, negando o
impacto que essas ações têm na sociedade.

Considerações Finais

Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, caminha no pensamento sobre uma
sociedade disciplinar e o nascimento de um sistema prisional, que um dia serviu de modelo
para a sociedade. Além de explorar sua funcionalidade, o autor demonstra modelos de atuação
no que cerne ao tema exercício de poder, implicando em um debate que até os dias atuais se
faz necessário, como o avanço e a permanência de ações onde o objetivo principal é buscar
meios de se consolidar o controle sobre a mente e os corpos.

A partir da perspectiva que Angela Davis trabalha em sua obra Estarão as Prisões
Obsoletas? essa forma de punir foi construída e fundamentada no racismo, além de ser uma
instituição que perpetua a violência contra a mulher. Através da apresentação da crítica
cultural Gina Dent, podemos compreender o papel da mídia para fortalecer esse espaço e
torná-lo o único possível para uma sociedade segura, mesmo quando os índices de
criminalidade diminuem, além disso, trabalhando para reforçar um perfil do criminoso
perverso, que não corresponde com a realidade.

Diante dessa colocação de Gina Dent, é possível associar o crescimento do


encarceramento feminino em massa e o aumento de investimento e produções de séries,

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filmes e novelas por parte dos streamings e TVs abertas que reforçam a narrativa da
necessidade e naturalização desse espaço e do gênero feminino.

Desta forma, o perigo que acompanha a massificação midiática desse tema nas
plataformas de streamings reflete no mundo contemporâneo, que nunca antes encarcerou
tantas mulheres assim. Criando no inconsciente do telespectador a falsa noção de proximidade
com a realidade prisional feminina, seus demônios, suas necessidades, suas condições e a
razão universal para entrar nesse sistema: escolha.

O Brasil é o país que mais cresceu no que se refere ao encarceramento de mulheres,


também é um dos que mais consomem materiais midiáticos que retratam essa temática de
maneira superficial e totalmente diatópica da realidade brasileira. Todo esse acesso pode ser
perigoso, compreendendo que nem todos os brasileiros podem entender a existência da
diferença entre os sistemas retratados. Existindo um potencial de misturar as experiências
ficcionais e acreditar que a verdade prisional feminina no Brasil é minimamente similar ao
que nós assistimos, criando no imaginário a ilusão de que estamos tão próximos dessa
realidade, ainda que distante.

Por fim, é possível apontar que esse avanço midiático nas plataformas de streamings,
em sua maioria, reforça a narrativa de corpos não reais, de mulheres não reais, crimes não
reais e mesmo assim causam impacto real no corpo social. Esses discursos que ganham
alcance sem precedentes diante de um alto consumismo sobre o sistema prisional, unidos
reafirmam a ideia de que a instituição é eficaz e fundamental. Perpetuando uma falsa
eficiência de um sistema que está obsoleto, e apenas funciona para alimentar o bolso de quem
já detém milhões a custos de vidas, famílias e espaços que poderiam existir em plenitude sem
essa forma de morte social presente.

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Referências bibliográficas

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BORGES, J. Encarceramento em Massa . São Paulo: Sueli Carneiro; pólen, 2019.

BRAGA, Lucas. Netflix atinge 10 milhões de assinantes no Brasil é maior que Claro, Sky,
Oi e Vivo. Tecnoblog, 2019. Disponível em: <https://tecnoblog.net/308893/netflix-10-
milhoes-assinantes-brasil-maior-que-tv-paga/>. Acesso em: 28 de jul. de 2020.

DAVIS, A. Estarão as Prisões Obsoletas? . Rio de Janeiro: Difel, 2018.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir . Petrópolis: Editora vozes, 2000.

Orange Is The New Black (OITNB). Adoro cinema. Disponível em:


<http://www.adorocinema.com/series/serie-10368/>. Acesso em: 29 de Jul. de 2020.

Relatório Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen); atualizado em


Junho de 2016.

Relatório Temático sobre Mulheres Privadas de Liberdade (Infopen Mulheres);


Atualizado em junho de 2017. Disponível em <https://www.gov.br/depen/pt-br/depen-
divulga-infopen-mulheres-de-junho-de-2017>. Acesso em: 29 de jul. de 2020.

SOARES, L. A ENTREVISTA DE SARI CORTE NO FANTÁSTICO: UMA ANÁLISE


DE DISCURSO E DE IMAGEM. Da redação 4P, 2020. Disponível em:
<https://midia4p.cartacapital.com.br/a-entrevista-de-sari-corte-no-fantastico-uma-analise-de-
discurso-e-de-imagem>. Acesso em: 29 de jul. de 2020.

YUGE, Claudio. Brasil é o 6º maior consumidor de streaming de filmes e séries do


mundo. Tecnoblog, 2019. Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/mercado/143694-
brasil-6-maior-consumidor-streaming-filmes-series-mundo.htm>. Acesso em: 28 de jul. de
2020.

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A FILOSOFIA NA BOCA DO POVO?: REFLEXÕES SOBRE A


POPULARIZAÇÃO DA FILOSOFIA NO BRASIL
Dénizard Custódio

Resumo

Nesse artigo pretende-se pensar sobre o atual fenômeno de popularização da filosofia e de


como ele tem afetado o contexto brasileiro. Utilizando da concepção freiriana de educação
dialógica, consideramos as eficácias e os perigos envoltos na prática de popularização, além
de tentar entender como ela está atuando e contribuindo para a prática educacional filosófica
no contexto contemporâneo. Contribuímos também com um método de popularização mais
acurado.

Palavras-chave: Divulgação Filosófica. Filosofia Brasileira. Paulo Freire. Popularização da


Filosofia.

1.Introdução
Nos últimos anos a Filosofia tem se tornado cada vez mais evocada nos contextos
sociopolíticos brasileiros. Seja para ser afirmada ou negada, rechaçada ou enaltecida. Com
isso, podemos perguntar: como se deu esse processo? Como ela foi parar na pólis[1]? E na
pólis brasileira? Foi certamente pela popularização da Filosofia, que se torna cada vez mais
presente em todos os âmbitos sociais.

Decerto as redes sociais ajudaram nisso, sendo plataformas vastas que possibilitam
que diferentes grupos se reúnam. Não demora para diversas subculturas virtuais se formarem
pelo interesse de cada indivíduo, como militância política, consumo artístico, divulgação de
saberes, entre muitas outras. Mas há também as páginas e grupos em que o foco não é o
conhecimento, nem o engajamento, mas sim a troca prazerosa, o lazer, o meme[2], o risível,
algo bem próprio da sociabilidade. O curioso é quando alguns desses grupos aparentemente
diferentes, se unem. E na cultura brasileira, recentemente apareceu um movimento que une
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âmbitos supostamente distantes entre si, o risível e o conhecimento. Não é novidade o poder
da internet para disseminar conteúdos, pois diversos temas ganham as redes a cada semana,
trazendo um novo tema de discussão. A novidade da vez é que, por vezes, esses temas são
relativos e pertencentes às ciências sociais. Até certo tempo atrás, apenas os acadêmicos
fechados em seus departamentos podiam produzir e responder tais demandas, mas hoje a
exclusividade parece ter diminuído. Em meados de 2020, tivemos um caso de popularização
filosófica que demonstra bem como a educação está transcendendo os muros da academia e se
voltando a sociedade.

Por conta da própria natureza do fenômeno analisado, a saber, a popularização da


Filosofia, por vezes nos utilizaremos de fontes virtuais e de uma linguagem não tão
rebuscada, mais popular e em um tom provocativo, questionador, direcionado para a
curiosidade. Tudo isso para singelamente tentar entender como a filosofia está indo parar na
boca do povo[3].

A análise pretende mostrar quais são as consequências que estão envoltas na educação
filosófica no século XXI e a popularização inerente a esta, já que ―qualquer ação educativa
acaba sempre recaindo na questão da cultura e da comunicação‖ (GERMANO; KULESZA,
2007, p. 15). Antes, porém, faz-se necessário esclarecer o que tomaremos por educação aqui.
Nossa definição de educação será baseada na educação dialógica, definida por Paulo Freire
durante toda a sua vida e obra. Tendo como tarefa essencial o diálogo, essa metodologia visa
a prática educacional enquanto forma de libertação, e essa só ocorre quando há diálogo entre
os humanos, que tem conhecimentos variados, e que não podem ser classificados em melhor
ou pior, pessoa mais ou menos sábia. O aprendizado só ocorre quando há uma evolução do
diálogo para uma conscientização da sua situação no mundo que, por fim dá vazão a
liberdade, na qual educador e educando aprendem e se libertam juntos. Nesse conceito, como
afirma Freire (1996, p. 17): ―Não há inteligibilidade que não seja comunicação e
intercomunicação e que não se funde na dialogicidade‖, ou seja, o conhecimento só se forma
a partir do diálogo entre o professor e o educando. Assim, o professor não pode se arrogar

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achando que sabe de tudo e centralizar a aula em si, tornando os alunos como meros seres
passivos, que apenas escutam e reproduzem o que o tutor acabou de falar.

Nessa perspectiva dialógica, toda educação é uma comunicação, literalmente um


diálogo entre os sujeitos que estão em encontro. Nelson Pretto (2008, p.13) sintetiza que, para
Freire, ―o ato de educar é um ato de comunicação‖ e, como melhor pontua Luiz Alves
(2006), educar seria ―um ato radical de comunicação‖. Se os atos de divulgar e democratizar
os conhecimentos já não estavam intrínsecos ao ato de educar, dessa maneira se torna
explícito que fazem parte do mesmo movimento. Assegurados dessa definição de educação[4]
e de como deve se dar o ensino, podemos seguir para entender quais são as relações dessa
educação com a atual difusão que ocorre da filosofia nas mídias.

2.O que é popularização?


Antes de mais nada, precisamos entender do que se trata nosso objeto. De acordo com
Germano e Kulesza (2007, p. 18) o termo popularização da ciência indica mais uma
preocupação ―com o produto e os aspectos práticos que com a forma‖ da qual ela é feita. E o
conceito de popularização é perigosamente simples, como nos diz Germano e Kulesza:

Popularização é o ato ou ação de popularizar: tornar popular, difundir algo


entre o povo. O que remete a dois novos conceitos também problemáticos, o
conceito de popular: agradável ao povo; próprio do povo ou destinado ao
povo e ao conceito de povo: vulgo, massa, plebe, multidão [...]. Povo são os
excluídos, os que vivem ou viverão do trabalho. (GERMANO; KULESZA,
2007, p. 19).

Interessante notar como eles afirmam que o termo tem ―uma forte penetração em
países latino-americanos e caribenhos‖ (GERMANO; KULESZA, 2007, p. 18), locais
historicamente marcados pelo colonialismo e o subdesenvolvimento. Quanto a isso, vale
reforçar que há

Uma tendência muito forte, talvez hegemônica, é aquela fundamentada na


difusão de uma espécie de desenvolvimentismo sem limites. Nesta
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perspectiva existe uma preocupação em difundir generosamente a


racionalidade e a cultura modernizada das nações desenvolvidas para as
nações subdesenvolvidas ou de setores sociais privilegiados àqueles
considerados excluídos [...]. Esta concepção ingênua, ancorada em uma
visão utópica da ciência e da tecnologia, resulta, não muito raramente, em
intervenções apaixonadas e equivocadas de divulgação científica. A falsa
crença, quase religiosa, de que a ciência é desenvolvida para o benefício de
toda a humanidade e que certamente solucionará todos os nossos
problemas, reforça a desarticulação entre ciência, sociedade e poder,
apresentando os processos como despojados de todo conflito. (GERMANO;
KULESZA, 2007, p. 17, grifo nosso).

Certamente poucos são os comunicadores e comunicólogos que atuam enquanto


educadores ou divulgadores científicos, salvo raras exceções; e quando o fazem podem estar
incorrendo neste erro que aflige a nós professores também. Em filosofia, com nossa pretensa
universalidade[5], devemos redobrar o cuidado com essa tendência antes de refletirmos
propriamente sobre o conceito de popularização de nossa disciplina.

Não podemos contribuir com a invasão e dominação cultural dos ―invasores‖, como
nos aconselha Paulo Freire (1987, p. 87), pois convencidos de uma suposta ―inferioridade
intrínseca‖, os invadidos, à medida que ―vão reconhecendo-se inferiores, necessariamente
irão reconhecendo a superioridade dos invasores‖. Ilustrativo dessa situação é relembrar a
crônica de Nelson Rodrigues (1993, p. 61-63) sobre o complexo de vira-latas brasileiro, em
que o define como ―a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face
do resto do mundo. Isto em todos os setores‖ (RODRIGUES, 1993, p. 61). Especulando sobre
o assunto, Jessé Souza (2018, p. 24) escreve que: ―Hoje em dia, pela ação da repetição diária
na imprensa, venal e vendida desde sempre, nas escolas e nas universidades, essa
autoconcepção vira-lata se tornou uma espécie de ‗segunda pele‘ de todo brasileiro‖, o que
acentua o impacto que tem uma divulgação errônea. Sobre a quase ―vergonha de si‖,
lembremos que Freire (1998, p. 49) destaca em outro contexto que é ―importante brigarmos
contra as tradições coloniais que nos acompanham‖. Após alertarmos sobre isso, podemos

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nos concentrar em pensar os caminhos e descaminhos da popularização filosófica ―entre


nós‖[6].

À primeira vista, a divulgação apesar de se assemelhar à popularização por serem


ambas formas de educação e difusão informais, se diferenciam porque a divulgação segundo
os autores: ―quer tornar acessível um conhecimento superespecializado, mas, não se trata de
uma tradução, no sentido de verter de uma língua para outra, e sim, de criar uma ponte entre
o mundo da ciência e os outros mundos‖ (GERMANO; KULESZA, 2007, p. 15). Já
―popularizar é recriar de alguma maneira o conhecimento científico‖, tornando-o acessível, e
então ―popularizar é muito mais do que vulgarizar ou divulgar a ciência. É colocá-la no
campo da participação popular e sob o crivo do diálogo‖ (GERMANO; KULESZA, 2007, p.
20, grifo nosso). A educação dialógica freiriana nos ajuda a entender e analisar essa
comunicação com o povo justamente por se basearem no diálogo com o outro, nesse caso, o
povo. Assim sendo, como a filosofia no Brasil está lidando com essa situação? Está honrando
o termo popularização e dialogando com seu povo ou está fazendo apenas uma digna
divulgação? Ou nem isso?

O propósito almejado aqui é produzir reflexões que nos faz pensar e nos leva a agir[7].
Mas é preciso ressaltar que há poucos artigos sobre o fenômeno, portanto, o assunto necessita
de mais estudos, pois ―no que tange propriamente à popularização da filosofia, poucos
autores detiveram-se na questão‖ (OLIVEIRA; AQUINO, 2015, p. 66). Mas isso só flui a
curiosidade para uma pergunta: Que caminho percorremos da ágora[8] para o agora?

3.Um breve histórico de uma filosofia popular na história ocidental


O cânone filosófico ocidental demarca um único início da filosofia: o da pólis grega.
Mas, como explica Théophile Obenga (2004, p. 1), isso ―implica que outros povos antigos
não se engajaram no pensamento especulativo‖ e isso é um tremendo desacerto. Porém,
mesmo não sendo o ideal, ainda utilizaremos da tradição hegemônica no Ocidente, pois os
―primeiros esforços de popularização do conhecimento filosófico de que se tem notícia são

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encontrados nos Diálogos de Platão‖ (DURANT, 2000 apud SANCHES, 2011, p. 126). E de
fato, logo ao pensar a aproximação da filosofia com o povo necessariamente somos levados a
Sócrates e sua maiêutica[9], que era praticada nas praças públicas. E ali, em meio ao convívio
de todos os cidadãos, ―nos dá a ideia de filosofia como algo profundamente colado à
existência humana cotidiana‖ (DALBOSCO, 2009, p. 55). Claudio Dalbosco (2009, p. 51)
ressalta que, para alguns, ―a praça não passa do lugar do vulgo e do comum; o lugar da
vagabundagem, no qual pessoas desocupadas se encontram para matar o tempo‖. Por outro
lado, para outras é lugar do livre mercado de ideias, e nas palavras de Dalbosco:

Nela as pessoas se encontravam para discutir seus problemas, suas angústias,


para matar a saudade e para reafirmar sua amizade; também servia para
falarem livremente das coisas e acontecimentos da cidade (pólis), de sua
vida pública, constituindo-se, por isso, em espaço extrainstitucional no qual
se punham na roda do discurso as decisões tomadas no espaço institucional
pelos governantes. (DALBOSCO, 2009, p. 51)

A intenção original de Sócrates supostamente seria: ―provocar os jovens para que se


deixem vitimar pelo pensamento; que se deixem espantar, vendo o incomum no comum, o
extraordinário no normal, enfim, a nobreza que perfaz o aparentemente fútil e sem sentido da
cotidianidade‖ (DALBOSCO, 2009, p. 54). E Sócrates faria isso por meio do diálogo, das
perguntas que lançava aos transeuntes. Mas assim, prossegue Dalbosco (2009, p. 54-55): ―E a
filosofia? Nasce justamente do desacordo com o cotidiano; nasce da ruptura com a aparente
autoevidência que o constitui‖. Logo, a conclusão que podemos chegar, assim como
Dalbosco, é que, em seu berço ocidental, a relação da filosofia com o cotidiano era contínua e
não restrita. E segundamente, a filosofia ―não precisa possuir necessariamente instituição e
local definidos. Locais oficiais podem até mesmo impedir a livre circulação de ideias e não
se constituir necessariamente nos melhores espaços de formação‖ (DALBOSCO, 2009, p.
55).

Com o passar do tempo, a filosofia se institucionalizou provocando mudanças nessa


estrutura aparentemente popular que vemos acima. Na Idade Média, a Igreja regrou a maioria
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das práticas filosóficas que saíram das ruas e ficaram somente com os clérigos, desse modo,
detiveram o saber e, consequentemente, sua difusão. O interesse por qualquer tipo de difusão
―não foi prioridade da Igreja, pelo menos até a reforma protestante‖ (GERMANO;
KULESZA, 2007, p. 11). Não havia interesse em uma educação filosófica, muito menos em
uma alfabetização básica. Nesse sentido, há um distanciamento e até mesmo uma elitização
da disciplina, que se torna inacessível ao grande público.

Mais à frente, no início da época moderna, temos o exemplo de Hobbes que atendendo
às necessidades sociais, publicou suas obras em língua comum de seu povo (inglês) e não na
língua habitual do conhecimento (o latim), para que servissem para influenciar a opinião
pública a respeito da monarquia. Segundo confirma Angela Scaramal (2010, p. 2), sua obra é
―influenciada pelos problemas contemporâneos da Inglaterra‖.

Já na época do iluminismo ou, como chama Roger-Pol Droit (2012, p. 196) nos
―Séculos das Luzes, convencionou-se chamar filósofos os propagadores de ideias‖. Dentro
desse contexto, é impossível não evocar o maior propagador das ideias científicas, o
idealizador e editor da enciclopédia, Denis Diderot. Em sua concepção, ―a enciclopédia
serviria como uma máquina de guerra contra os dogmas, como uma ferramenta
incomparável de educação intelectual e científica‖ (DROIT, 2012, p. 197). Sua ideia de
popularização da filosofia é revolucionária pois a ―aberta circulação dos conhecimentos foi,
na época, uma grande novidade [...]. A transmissão era em geral, restrita‖ (DROIT, 2012, p.
197-198). Como se sabe, a ideia de progresso do iluminismo estava ligada plenamente com a
ilustração e a autonomia individual e coletiva, e somente com ações de difusão que esse
progresso ―deixava de ser apenas uma ideia, uma concepção geral e vaga‖ (DROIT, 2012, p.
198). Segundo Droit (2012, p. 199), em Diderot se encontra a ideia e a prática de tornar a
filosofia acessível a todos, e, sendo acessível, a intenção era que o povo ―se transformasse
pela prática da reflexão filosófica‖. Mas ele alerta que essa intenção já vinha emergindo ao
longo do século XVIII, principalmente na Alemanha[10]. É curiosa e pertinente a
caracterização que Pol Droit (2012) faz de Diderot como um atraente encantador que é

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eloquente e encanta os ouvintes. O curioso é notar como ele contrapõe essa figura
encantadora ao professor, como vemos em:

A popularização da filosofia estava igualmente em relação direta com a


questão do encantamento. Sem um toque de espetáculo, sem uma aparência
de conto ou até certa loucura, é difícil tornar atraente o pensamento[...]
Diderot se colocou como encantador e não como professor. (DROIT, 2012,
p. 200)

Pelo que podemos deduzir da citação, o professor teria naturalmente algo de chato, de
desencantador, de repulsivo e tedioso. Algo que se fixa à imagem do professor no período
atual, mesmo com a troca de instituição que retém o filosofar, já que a Igreja é substituída
pelas Universidades na modernidade. Assim, fica fácil de entender como, na
contemporaneidade, o professor da instituição formal e obrigatória passa a ser visto como
chato e tedioso, enquanto o comunicador que aparece ocasionalmente nas informalidades
digitais é espetacular. Essa é uma disputa desleal por conta dos meios diferentes que se
apresentam, e não podemos equipará-las e esperar resultados válidos. Mas voltemos à
popularização que, a partir da contemporaneidade, surge algo novo: o envolvimento do
mercado modifica o processo com novos funcionamentos.

O famoso Café Filosófico, como nos diz Maria Neves (2017, p.3) surge na ―França
em 1992, iniciativa do filósofo Marc Sautet‖, autor do livro Um Café para Sócrates,
publicado em 1995. Ainda segundo Neves (2017, p. 3), ―o Café Filosófico segue os passos de
Sócrates‖ pois questiona, perturba e desorienta os que estão presentes lá, mas é claro ―que
isto não o tornou popular… Quando estamos convencidos de que sabemos, não é lá muito
agradável que alguém nos venha mostrar que, afinal, não sabemos‖. Mesmo assim, Neves
afirma que esse método

[...] ajudou a desmistificar a filosofia trazendo-a para fora dos muros da


Academia, reconduzindo-a ao seu lugar de origem: a rua socrática. Uma rua
onde se fala, onde a oralidade domina. E urgem espaços de palavra viva
porque ‗a filosofia livresca deixou de interrogar os homens [...]. (NEVES,
2017, p. 3)
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A ação de tirar a filosofia da Academia constitui a maior parte dos novos processos
contemporâneos de difusão filosófica e, como argui Tatiana Sanches (2011, p. 126), esses
processos lidam diretamente com ―uma real massificação [envolvendo o] mercado‖, e só
―começou a acontecer, no Brasil e no mundo, a partir da década de 1990‖. Assim, o
fenômeno que se inicia com Sócrates se renova e ganha novas mecânicas na atualidade. Este
novo funcionamento é o que, de fato, estará em foco neste trabalho. Buscamos mostrar quais
os perigos e os acertos quando o mercado e a mídia influenciam a popularização da filosofia
e, até mesmo o fazer e ensinar a filosofar no atual momento histórico.

4.O “boom” filosófico na sociedade contemporânea


Atingindo um imenso número de pessoas, a filosofia passa por um processo peculiar,
no qual tem seu nome circulando em diversos produtos. A popularização se impôs, segundo
Jean Béziau (2000, p. 13), pois ―há uma procura popular muito grande‖, e dessa forma

Tal fenômeno pode ser constatado pelo aumento significativo no número de


livros, revistas, programas de televisão, cursos livres, sites na internet,
quadrinhos, filmes e até mesmo em guias destinados à gestão empresarial.
Antes confinada a obras consideradas eruditas, a filosofia tem se tornado
mais acessível por meio de novas abordagens de questões do dia a dia, bem
como por respostas facilmente compreensíveis para algumas das tradicionais
indagações da filosofia. (SANCHES, 2011, p. 125).

Como Oliveira e Aquino (2015, p. 57) apontam, há um ―hiperinvestimento no plano


sociocultural‖ da filosofia nos últimos anos, que ascende de sua conhecida posição de inútil
para figurar como garantidor da qualidade de venda de diversos produtos. Alçados a essa
posição de relativo destaque, podemos pensar em novas formas de empregar o caráter
filosófico. Não podemos esquecer o que Luiz Orichio (2006, p. 6 apud OLIVEIRA;
AQUINO, 2015, p. 59) observa: ―Há algumas décadas, quem fazia um curso de filosofia
sabia-se candidato preferencial ao desemprego‖, e hoje a situação não parece estar tão
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diferente, mesmo agora que filosofia é ―um nome mercadologicamente poderoso‖ (LUZ,
2020). O curioso nesse processo de notoriedade social do filósofo, da filósofa e da filosofia é
que ele surge de uma demanda externa aos departamentos filosóficos. Béziau (2000, p. 15)
afirma que existe um ―insucesso absoluto da filosofia universitária para tocar o grande
público. A filosofia universitária, [...] permanece intragável para o homem ordinário. Ela
não corresponde à espera do público, à sede filosófica do povo‖. Isso solicita dos intelectuais
acadêmicos um novo posicionamento diante da sociedade. E por que não inovar e investir
nesse processo popular?

Em seu estudo, Sanches (2011, p. 127-129) categoriza que a popularização se dá em


quatro aspectos: Uma filosofia clínica; uma filosofia midiática; uma filosofia pop; e por
último uma filosofia cibernética. E até acena uma filosofia destinada ao meio empresarial[11].
Essa distinção é relevante para entendermos como o fenômeno tem diferentes públicos, meios
de propagação e objetivos diversos, mas ainda se mantém uno. O ser popular se diz de muitas
maneiras porque

[...] todos esses exemplos sugerem não apenas a popularização da filosofia,


mas, principalmente, o uso dela para a busca de soluções rápidas para uma
vida feliz e produtiva‖, agindo como ―vitaminas filosóficas, capazes de
ajudá-lo em um mundo em que antigas referências ligadas à religião, família
e comunidade perdem a importância. (SANCHES, 2011, p. 129).

A busca interessada somente na utilidade acarreta problemas, obviamente. Mas como


comprova a análise de Oliveira e Aquino (2015, p. 57), entre aqueles que se debruçaram sobre
os motivos dessa popularização, todos apresentaram razões genéricas, não passando a uma
investigação minuciosa. Além disso, os autores (2015, p. 69) analisam que aqueles que
estudaram o tema ―versam, em uníssono, sobre o modo como o espraiamento da filosofia na
cultura oscila entre a banalização do seu rigor‖ e baseando-se na filosofia como ferramenta
para interpretar o mundo a volta, veem a prática de popularização como ―benéfica e
imprescindível‖, se bem-feita. A questão do método de se fazer essa difusão deve ser central

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para nós, acadêmicos, pois se pudermos fazer algo com qualidade, por que deixarmos para
outros fazerem? Ou melhor, por que não fazer?

Entretanto, a banalização é certamente um problema que devemos nos ater. Para os


professores da UNB Pedro Gontijo e Alexandre Hahn (2017), haveriam algumas filosofias
que ―se prestariam mais ao trabalho filosófico‖ enquanto para outras filosofias esse trabalho
seria um pouco mais complicado devido a própria densidade de seu conteúdo. Se a
manutenção dessa tese é possível em um mundo onde todos os conteúdos são passíveis de
serem acessados sem a mediação de um especialista por meio da internet ou não, é algo que
precisa ser analisado. Não podemos deixar que o termo filosofia sirva ―para designar
qualquer coisa‖ como os delírios de empresas e ―das seitas religiosas‖ (BÉZIAU, 2000, p.
11).

E no Brasil, o fenômeno é observado também por Safatle (2006, p. 7): ―um dos
fenômenos mais pitorescos na vida cultural do Brasil dos últimos anos: o crescente interesse
pela filosofia‖. A popularização no Brasil, segundo Oliveira e Aquino (2015, p. 72), foi
sempre sondada pelo viés da questão mercadológica ou pela utilidade de tal divulgação, e a
conclusão feita pelos acadêmicos foi ―ajuizadora na maioria das vezes: ora a popularização
é repreensível [...], ora ela é legítima‖. Além disso, eles observam que alguns autores
brasileiros embarcam na onda de popularização, principalmente os autores Eduardo Giannetti,
Luis Pondé, Clóvis de Barros Filho, Vladimir Safatle, Marcia Tiburi e Sérgio Cortella que se
utilizam de diferentes meios para chegar ao público. Os mais diversos meios também são
examinados por Oliveira e Aquino (2015), que inspecionam coleções de livros, diversas
revistas de grande circulação, colunas em jornais assinadas por filósofos e participações em
rádio e TV, que fazem o mesmo papel divulgador. Tal demarcação do fenômeno é
imprescindível para o entendimento de como ele funciona aqui no Brasil. Os autores Aquino
e Oliveira concluem que:

De modo geral, parece-nos que a singularidade dos discursos acerca da


popularização apoia-se tanto na alegação de que a filosofia acadêmica estaria
apartada da realidade cultural, quanto na descrição dessa mesma realidade

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como incerta e cambiante, para, em seguida, o discurso filosófico despontar


como algo sólido e, portanto, benéfico. Em suma, uma lógica produtiva de
crise-salvação, de viés utilitarista e supostamente democratizante. (2015, p.
74).

As problemáticas de tal atitude serão abordadas mais à frente. Por hora, pensemos no
passado nacional. Qualquer processo de divulgação científica e popularização no Brasil se
torna particularmente complicado, sobretudo, por nosso passado colonial:

No cenário brasileiro dos séculos XVI, XVII e XVIII, enquanto o país ainda
era uma colônia portuguesa de exploração, as atividades científicas e mesmo
de difusão das novas ideias modernas eram praticamente inexistentes. [...] e
início do século XIX, brasileiros que conheciam Portugal, França e outros
países da Europa, começaram a difundir, muito timidamente algumas ideias
da ciência moderna no Brasil. (GERMANO; KULESZA, 2007, p. 10).

E se tratando de filosofia, a divulgação no Brasil era praticamente inexistente. E ainda é


mínima. Se é verdade que ―a filosofia acadêmica estaria apartada da realidade cultural‖
(OLIVEIRA; AQUINO, 2015, p. 74), como fica uma filosofia que além de separada da
realidade cultural, ignora toda a realidade onde se encontra? O isolamento social entre a
filosofia e o contexto brasileiro é um fato, de acordo com Silveira (2016). Há um abismo
entre a filosofia e a cultura brasileira. E isso ocorre porque ela evita pensar em problemas de
sua própria conjuntura social, seu povo, seu país, e até mesmo dialogar com seus filósofos e
filósofas. Não à toa o termo ―filosofia brasileira‖ é, por si, um problema[12]. A popularização
é algo que para a filosofia é raro e ainda não tem seus significados bem definidos, mas para
filosofia brasileira certamente significa uma crise identitária.

5.A popularização da filosofia no Brasil: Filosofia de botequim ou Filosofia séria?


Roberto Gomes em seu livro Crítica da Razão Tupiniquim, discute uma possível
filosofia brasileira e declara que, apesar de a vida social brasileira tender para a piada e

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brincadeira, ―no momento de pensar não admitimos piada. Queremos a coisa séria. Frases na
ordem inversa, palavras raras, citações latinas‖, ou seja, mergulhamos ―num escafandro
greco-romano‖ (GOMES, 1994, p. 6). E mergulhando nesse delírio greco-romano ou
europeu-estadunidense, ―o brasileiro foge de sua identidade‖, e então no nosso pensamento
oficial-acadêmico ―não se encontra qualquer sinal de uma atitude que assuma o Brasil e
pretenda pensá-lo em nossos termos‖ (GOMES, 1994, p. 7).

Diante disso, Gomes analisa o valor que damos à seriedade, já que como vimos, o
pensar não é brincadeira. Ele diferencia o ser sério do levar algo a sério. A diferença estaria
na potência transgressora de regras quando se leva algo a sério, lá estaria ―o germe
revolucionário indispensável‖ (GOMES, 1994, p. 11), que é diferente de quando se
internaliza as regras e não ―sai da linha‖ para cumprir o que se propõe. Nesse sentido, de
acordo com Gomes (1994, p. 11), a atividade filosófica tem que ser levada a sério e, por isso,
é uma atividade essencialmente marginal, que transgride as regras vigentes. Mas o problema
surge porque no Brasil faríamos uma ritualização do fazer filosófico e também do que é
considerado sério, não levando em conta o que é dito, mas somente a forma pela qual é dito.
Nas palavras do autor,

É esta máscara séria que vem sufocando o pensamento brasileiro [...]. A


ritualização, triunfo do sério, consiste exatamente nisto: fala-se agora sobre
temas adequados, pouco importando se importam. Vale dizer: mesmo que se
trate de especulações sem qualquer raiz na realidade que nos circunda. [...]
Li uma entrevista de Nelson Rodrigues [...] em que dizia que o mais grave
defeito dos personagens de romance brasileiro é serem incapazes de cobrar
um escanteio. Por detrás do efeito de espírito, uma intuição radical: entre nós
perdeu-se o contato com a realidade em torno. (GOMES, 1994, p. 13).

O autor continua argumentando que no ―intelectual brasileiro que discursa, triunfa o


sério - expressão de uma classe privilegiada diante da multidão analfabeta‖ (GOMES, 1994,
p. 14), produzindo uma razão apenas ornamental. Assim, a vitória da seriedade, que é
definida por meios externos ao país[13], não significa apenas a submissão às regras impostas,
mas necessariamente uma fuga da realidade brasileira, e Gomes (1994, p. 14) afirma que se
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continuarmos com esse tipo de prática, nada poderemos ―dizer de importante, que importe‖.
O filósofo Gomes (1994, p.40) atribui esse desligamento da realidade inerente de nossa
prática filosófica a um ―medo de assumir nossa posição‖ enquanto brasileiros. E ainda se
inflama e diz que: ―Urge ser o que somos - descobrir-se no Brasil, na América Latina. Sem
um ‗outro‘ ao qual possamos nos agarrar‖.[14] (GOMES, 1994, p. 110).

Dessa maneira, a filosofia brasileira é séria a partir do momento em que assume o que
é. Se conscientizando criticamente de onde está, quem é sua população, quais são os
problemas que enfrentamos em nossas escolas e outras perguntas básicas, demarcaríamos o
que somos, e só assim conseguiríamos falar algo de importante que importe. Levando em
conta as respostas que nos conscientizam, podemos fazer uma filosofia séria, nos levando a
sério, ouvindo nossos filósofos. Dialogar com a multidão equiparados com ela, fazendo
filosofia séria como a já existente no país, mas que é desconhecida pela maioria dos filósofos
e filósofas nacionais.

Porém, por outro lado, Ronie Silveira (2016, p. 262) garante que o isolamento social
entre a filosofia e o contexto brasileiro é justamente a filosofia sendo brasileira. Na mesma
página ele argumenta que ―não apenas há uma filosofia brasileira, como faz parte do seu
exercício negar-se a se tornar brasileira. [...] Ela é brasileira justamente por estar de costas
para o Brasil e por não possuir a disposição de voltar seus olhos para o lado de cá‖. Então, a
atitude de envergonhados, virar de costas para o Brasil e querer estudar e comentar textos
apenas de filósofos europeus e fazer isso hermeticamente fechados, fora de risco de
contaminação com o resto da cultura brasileira é aquilo que define as filósofas e os filósofos
nacionais. Isso acontece porque aqui, na Terra dos papagaios[15] a filosofia funciona dentro
de uma estufa, como demonstra hegemonicamente a produção nacional, ―é possível viver
dentro desse isolamento cultural, estudar filosofia e exercer a profissão de filósofo durante
anos, sem fazer referência a nenhuma situação nacional ou sem refletir sobre algo que seja
específico do país‖ (SILVEIRA, 2016, p. 262). Então, o filosofar no Brasil é (ou era) como
uma estufa, que desinfeta qualquer vestígio nacional, se esterilizando do ―vírus brasis‖[16].
Mas essa prática também esteriliza as potências de transformação que seus atos e
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pensamentos podiam trazer pro país. Os recentes ataques a filosofia[17] são demonstrações de
como uma parte da população não vê utilidade nela, não vendo uma justificativa de sua
obrigatoriedade no ensino médio. E qual resposta foi dada ao povo? Será dada alguma? A ralé
e a plebe conseguiriam entender o discurso de um filósofo/filósofa?

Como Silveira (2016, p. 264) enuncia ―Uma das mais perversas justificativas para
essa situação de isolamento é a de que o diálogo com o restante da cultura inevitavelmente
implicaria em algum tipo de rebaixamento da posição do filósofo‖. A filosofia na boca do
povo certamente causaria um rebaixamento dela, segundo essa lógica. Mas antes, levaria o
filósofo e a filosofia que nega a pensar seu contexto a uma crise identitária existencial. Poderá
existir o filósofo brasileiro que se assume enquanto tal? Ou isso é ser rebaixado a filósofo de
botequim? Filosofia de botequim é um termo comum de se ouvir no país, tanto que virou
título de um DVD de divulgação filosófica, como aponta Sanches (2011, p. 127). Mas apesar
do valor pejorativo que carrega, será que é tão ruim quanto parece? Por quase não pensarmos
em nossos termos, acabamos não investigando coisas de nosso cotidiano. Mas Francisco
Romanelli (2018) demonstra que a filosofia de botequim pode ser muito proveitosa para o
pensar. E como complementa Gomes (1994, p. 110), ―do ponto de vista de um pensar
brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos ensinar do que o senhor Immanuel Kant, uma vez que a
Filosofia, como o samba, não se aprende no colégio‖. Assim, ao pensarmos numa
popularização filosófica no Brasil, devemos levar em conta o que é e como é feita a filosofia
em solo nacional. Não deixando escapar também a questão de qual conteúdo estamos
divulgando/popularizando e, principalmente, como estamos fazendo isso.

Tatiana Sanches (2011, p.133) enfatiza que a ―popularização da filosofia está


intrinsecamente ligada às condições sociais, econômicas e culturais de seus produtores e
receptores‖. Isso relembra a pergunta de Jean Béziau (2000, p. 13): ―não haveria alhures
outra filosofia?‖. Com essa pergunta em mente, ao olharmos a mais recente prática de
popularização filosófica produzida no âmbito cibernético, conforme definido por Sanches
acima, encontramos uma experiência curiosa que vale ser especulada sob o crivo dialógico.

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O movimento Funkeiros Cults[18] surge como algo cômico e que permanece e


funciona enquanto difusor educativo também por isso. Eles unem o conhecimento acadêmico
com a linguagem das ruas da ―perifa‖. Na função de traduzir as rigorosas linguagens
acadêmicas para os termos da língua vivida na ―quebrada‖ (na periferia), fazem com que os
conhecimentos atinjam a população, mas não só isso, também os convida a ler os livros que
sintetizam. O louvável é que, não tendo vergonha da sua situação de ―favelado‖, ou seja,
marginalizado da sociedade e da globalização, se assumem enquanto tal e divulgam os
conhecimentos sobretudo para os seus e também para todos.

Dentre os muitos produtores de conteúdo e participantes deste movimento, Marcelo


Marques, mais conhecido como Audino Vilão[19], se destaca pela forma de ensinar filosofia
em seu canal do YouTube. Utilizando o vocabulário das ruas, ―traduz‖ os aforismas
filosóficos para o entendimento popular. Na sua interpretação, o isolamento sociocultural da
filosofia acontece diferentemente de outras ciências sociais porque:

―Tanto a história como a sociologia estão chegando na quebrada por causa


do RAP, na minha visão. Desde racionais MCs traz muito do contexto
histórico e de sociologia. Só que a filosofia não, a filosofia ficou um
bagulho bem elitista, né? Nunca conversou com a periferia, com o
povão” (VILÃO, Audino apud DELGADO, Andreza, 2020, online, grifo
nosso).

A posição se assemelha com a do professor de filosofia da USP João Cruz Costa.


Notando, ainda na década de 70, a linguagem filosófica e de outras disciplinas ficar mais
complexa, declarou que elas assim ―ficaram, para nós, do vulgo, um tanto (ou mesmo muito)
herméticas. Há um economês, um sociologuês e logo, um filosofoguês. O alcance dessas
disciplinas, assim, diminui e isso não me parece proveitoso para a cultura geral‖ (COSTA,
1975/2011, p. 114). No decorrer do artigo, analisaremos um artifício que é inspirado por
Audino e como ele pode auxiliar a prática de popularização filosófica. Agora, foquemos na
caracterização desse movimento enquanto marginalizado socialmente e o que decorre disto.

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Ao dissertar sobre a globalização perversa que se impõe ao mundo contemporâneo,


Milton Santos, geógrafo, elabora um estudo das limitações dessa globalização. Ele se debruça
sobre a racionalidade dominante até então, ou seja, o ―racionalismo europeu, que é o bisavô
das ideias de racionalismo tecnocrático hoje dominantes‖ (SANTOS, 2003, p. 60). E em sua
análise, Milton Santos (2003, p. 59) afirma que mesmo havendo uma racionalidade
hegemônica; uma ―pequena margem é deixada para a variedade, a criatividade, a
espontaneidade‖, e que mesmo sendo ―corriqueiramente chamadas de irracionalidades‖ ―na
realidade constituem outras formas de racionalidade‖. Segundo ele, tais ―filosofias
produzidas nos diversos continentes‖ e espaços marginais, surgiriam em ―detrimento do
racionalismo europeu‖ (SANTOS, 2003, p. 59). Essas filosofias ―são produzidas e mantidas
pelos que estão ‗embaixo‘, sobretudo os pobres, que desse modo conseguem escapar ao
totalitarismo da racionalidade dominante‖ (SANTOS, 2003, p. 59). Uma filosofia produzida
desde baixo é encontrada também em Josef Estermann, quando declara: ―até agora a filosofia
dominante só se interpretou como filosofia dos dominadores, porém chega o momento em que
lhe toca a urgência de colocar-se a serviço dos dominados e a mudar o mundo desde baixo‖
(ESTERMANN, Josef apud SILVA, N. V, 2015, p. 348). Mudar o mundo filosófico desde
baixo, pelo menos o nosso, é tão necessário quanto pretenso. E a popularização da disciplina
no Brasil parece indicar esse caminho, caso se inspirasse nos ―de baixo‖, um novo caminho
surgiria, assumindo-se e se afirmando enquanto brasileira, sem vergonha de si, e utilizando
dessa afirmação para agir, teríamos uma suposta reinvenção da filosofia brasileira.

6.A filosofia na rede do juízo público: o balanço entre os perigos e as potências


Mas não ignoremos que ao fazer essa passagem da Academia para as periferias
geográficas e epistêmicas muito pode se perder[20]. A ―tradução‖ das linguagens pode vir a
ser uma traição, fazendo com que os conceitos percam o sentido e o rigor no caminho. Vale
destacar também que a linha entre a sensibilidade e o preconceito é tênue: a sensibilidade para
ajustar a linguagem e conquistar o público dialogando com ele, ou não rebuscar a linguagem e
não tocar em tema complexos simplesmente por achar que seus ouvintes não conseguiriam
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entender é algo problemático. Essas são algumas facetas de um problema legítimo que merece
nossa atenção e se assemelha com a preocupação com a aprendizagem do ouvinte e do
educando como foi na inquietação que atingiu os professores quando a filosofia se tornou
matéria obrigatória para o ensino médio. A implementação da filosofia no ensino médio como
componente curricular obrigatório, segundo Gontijo e Hahn (2017), alçava a divulgação
filosófica como política pública de Estado. E essa estadia da filosofia na educação básica
levantou muitos tópicos, entre eles o método de fazer a aproximação dos jovens com a
filosofia. Mas também revigora uma longa controvérsia, como podemos ver em:

A obrigatoriedade do ensino de filosofia [...] como disciplina nas três séries


do Ensino Médio brasileiro faz nascer uma antiga controvérsia. A polêmica
vem de longa data. Seus movimentos parecem pendulares: quando a filosofia
entra na instituição escolar, questiona-se sua presença e ela deve defender
sua legitimidade, quando ela é ameaçada de ficar como optativa ou fica de
fora, ela busca estar dentro e mais uma vez precisa defender suas credenciais
para tal fim. (BORBA; KOHAN, 2008, p. 9).

Um dos temas mais discutidos nesse tópico de educação com jovens é que a
―tradução‖ feita para os alunos entenderem seria uma traição ao conteúdo que se pretendia
ensinar. E nesse sentido, a popularização perderia o rigor e deturparia o conceito. É a mesma
aflição preocupando a filosofia desde o ingressar nas escolas até a atual dominação das redes
sociais. Mas sendo essa tese de tradução-traição verdadeira ou não, é certo e inegável que
após alguns anos há excelentes trabalhos de atuação no ensino médio e os resultados obtidos
se mostram satisfatórios, se não dignos. E isso se mantém mesmo com as conclusões de Julio
Gonçalves (2015, p. 95) que, ao analisar as atuações no ensino médio e a formação do
professor filósofo, afirma que o ensino é uma temática pouco explorada em alguns cursos de
filosofia, e alguns formandos nem ―se prepararam para ser professores‖.

Mas por outro lado, seu trabalho também indica outros problemas que devem ser
combatidos na prática da popularização: a existência de cursos que forma o estudante como
um ―discípulo reprodutor do conhecimento de seu ‗mestre‘ e, portanto, fora da realidade na

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qual vivemos‖[21] (GONÇALVES, 2015, p. 95), corroborando a distância entre o filósofo e o


Brasil. O professor da UFSC Alexandre Luz (2020), destaca ainda que em muitos
departamentos, a divulgação é tratada como filosofia de segunda categoria, não sendo uma
―filosofia de verdade‖. Devemos formar pensadores, não discípulos, ou seja, ter uma prática
educadora ―que forje mentes críticas, audazes e criadoras‖ (FREIRE, 1998, p. 16), não
mentes repetidoras do que acabaram de ouvir. Se uma graduação com toda sua estrutura
plural para o aluno se instruir ainda pode ocasionar adeptos de um mestre professor, o que
pensar de um conhecimento[22] divulgado e acessado pelas mídias que em sua maior parte se
adequam às escolhas do usuário? A imprudência nesse processo educacional é bastante
provável. Daí surge o cuidado com o que e como divulgamos conteúdos. Ao expor durante o
percurso filosófico as fragilidades das filosofias expostas por nós, professores e divulgadores,
um caminho potente parece se formar.

Além da tradução-traição e do mestre-professor, há muitos outros perigos inerentes à


popularização. Mas por esses perigos, não podemos ir em direção oposta, ou seja, nos ater a
um ―academicismo exacerbado‖ que Gontijo e Hahn (2017) apontam como sendo uma das
justificativas usadas para não fazer práticas de popularização. Sobre popularização, devemos
lembrar da indicação de Germano e Kulesza (2007, p. 20, grifo nosso): ―É no concreto da
atuação que encontramos o lugar e a adequação do conceito. É na maneira de intervir que
se, revela um sentido para o conceito. A questão não se reduz à semântica, mas a uma
prática cercada de riscos e apostas‖. Temos que defender e ocupar a popularização e nos
arriscar para descobrir as soluções de erros passados e futuros e, obviamente, de acertos
poderosos de novas maneiras de popularizar.

Assim, sigamos elencando outro perigo, uma quase extensão do mestre-professor, no


qual o comunicador da difusão acabar sendo tido como uma espécie de guru, um oráculo da
verdade, algo que presenciamos cotidianamente na política atual brasileira. O erro consiste
em a filosofia ser aceita como a Verdade, não deixando brechas para as constantes refutações
inerentes à filosofia. Esse erro é diagnosticado pelos foucaultianos Oliveira e Aquino quando
observam a atuação filosófica convertida em expertise, o que implica que ela
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[...] está ancorada num tipo de autoridade atribuída ao filósofo a consagrá-lo


como farol de supostos valores morais, bem como de modos mais
apropriados ou convenientes de interpretação do próprio presente. A
filosofia e o filósofo popularizados passam a ter, então, sua atuação bem
definida: aliando-se a práticas corretivas e terapêuticas, findam por exercer a
função de pastores de uma tal boa consciência [...]. Nos jogos
contemporâneos de governo de si e dos outros, o filósofo desponta, então,
como um especialista que deve incitar o sujeito a se adequar aos preceitos
vigentes, sem questioná-los. (OLIVEIRA; AQUINO, 2015, p. 75).

A filosofia clínica, dentre as demais popularizações, se destaca nesse quesito,


produzindo recomendações de como bem viver e de como interpretar a vida, produz o
Correto, o Verdadeiro. E assim, segundo eles, essas práticas de governos de conduta são
propagadas pela mídia e tem efeitos de poder em toda a população. A citação evoca dois
problemas que estão relacionados, mas são diferentes. Se por um lado a conduta ordenada e
prescrita pelo filósofo é a Correta, por outro lado seu nome ganha destaque e é usado para
argumentos de autoridade.

Ambas as posições ignoram a história da filosofia, que demonstra como se dá o


movimento do filosofar, sempre numa constante resposta insuficiente. A solução parece ser
―deixar claro o caráter revisionista, crítico, do constante fazer filosófico, do não aprender a
filosofia, mas sim do aprender a filosofar‖ (GONTIJO; HAHN, 2017). Entretanto, por vezes
a popularização em mídias afamadas, por seu caráter encurtado não pode abarcar as
complexidades historiográficas e os desdobramentos do conceito, e precisamos tomar cuidado
com isso. Isso não significa que bons trabalhos não possam ser feitos, a título de exemplo,
podemos observar a caracterização de Nietzsche como um ―roba brisa‖[23] e Aristóteles
sendo uma espécie de ―coach‖, presentes nos vídeos de Audino Vilão, que demonstra a
potência dos pensamentos, mas também evidencia a fragilidade dos filósofos. Talvez este seja
um caminho seguro e acurado no modo de popularizar a filosofia.

Um clássico exemplo de ―guru da verdade‖ decorre da adequação do filósofo em


espaços públicos, que Oliveira e Aquino estudam e preveem o lugar ocupado por Olavo de

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Carvalho atualmente. Nesse caso, ao invés de filósofo é um charlatão[24], que de maneira


semelhante arroga-se ―a autoridade de especialista social‖ e finda ―por ocupar um papel de
destaque na racionalidade típica dos regimes neoliberais‖ (OLIVEIRA; AQUINO, 2015, p.
56). O ex-astrólogo Olavo de Carvalho não curiosamente se autointitula filósofo e é um dos
responsáveis pelo atual desprezo aos intelectuais. O autor é ―certamente o maior
influenciador das novíssimas direitas conservadoras no Brasil, tem exercido uma autoridade
enorme na política brasileira, principalmente no que se refere aos discursos produzidos
sobre o processo de redemocratização do país nos anos 1980‖ (ROSA; et al, 2018, p. 176).
Rosa, Rezende e Martins (2018) exemplificam a tamanha influência dizendo que o autor teve
seu livro citado no plenário da câmara dos deputados e ainda tem um filme inspirado em seu
livro. Não suficiente, os autores (2018, p. 177) esquadrinharam que Olavo ainda tem diversos
discípulos que também influenciam o ciberespaço, figuras ―tais como Bernardo Kuster,
Nando Moura, Terça Livre, Diogo Rox, Spider, O antagonista, dentre muitos outros‖ não
esquecendo dos ―cursos do Brasil Paralelo‖. Seu poder social é tanto que influi em
movimentações sociais, aonde se vê cartazes com a frase ―Olavo tem razão‖ (ROSA;
REZENDE; MARTINS, 2018, p. 187) marcando seu nome como farol moral da Verdade. E
segundo Sena Junior (2019, p. 44) Olavo de Carvalho conseguiu até mesmo indicar dois de
seus discípulos para ocupar o cargo de ministro da educação[25]. Diante desse cenário, não é
de se espantar quando alguns adeptos e discípulos dele concordam com a auto intitulação e
torna-se comum a alegação de que ele é ―o maior filósofo do país‖ (ROSA; REZENDE;
MARTINS, 2018, p. 166), mesmo que ele use seu discurso para validar apenas ―teorias
estapafúrdias, recheadas de ódio, anti-intelectualismo e anticientificismo‖ (JUNIOR, 2019, p.
33). Neste trabalho buscamos fazer uma crítica à prática intelectual, visando apoiá-la e
incentivá-la, algo bem distante do abjeto desprezo olavista.

As consequências do etnocentrismo nos discursos olavistas é o problema explorado


por Rosa, Rezende e Martins (2018) em seu artigo. Essa posição etnocêntrica reforça a
afirmação de Freire (1987, p. 87) quando dizia que os invadidos se sentem inferiores
enquanto afirmavam a superioridade dos invasores. E o pseudointelectual, Olavo, declara que

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a falta ―de filósofos num país de dimensões continentais e quinhentos anos de existência já
basta para fazer dele uma anomalia [...] assustadora, provavelmente sem similar na história
universal‖ (Carvalho, 2018, p. 407 apud ROSA; REZENDE; MARTINS, 2018, p. 179). Esse
caso demonstra que nem só o grande público está suspeito de sofrer da invasão cultural, que
ainda se mantém vigente.

Mesmo com todas essas problemáticas que nos fariam perder muito, também há muito
o que ganhar, que estamos a descobrir. A popularização da filosofia no Brasil faria ela se
misturar com o povo, tocando no ambiente brasileiro e finalmente pensando este. Após a crise
identitária de finalmente se encontrar e se olhar no espelho, o que poderá surgir? Vale afirmar
que grande parte dessa popularização ocorreria por meio da internet, da mídia, os meios de
comunicação em geral, que são frequentemente evitados pelos filósofos. Mas nem só coisas
ruins derivam da difusão, os Funkeiros Cults explodiram no Instagram e no Youtube. O
youtuber Audino Vilão conta com mais de trezentas e cinquenta mil visualizações, e cento e
vinte mil inscritos em seu canal, demonstrando a potência dos meios tecnológicos para a
educação informal. Estes mesmos meios digitais, os quais nós professores fomos forçados a
aderir por conta da pandemia de 2020, mas que urgem serem melhor explorados e
pesquisados.

7.O papel do intelectual público das ciências humanas


Mas nem tudo são flores nos meios massificados. Como vimos a popularização pode
ser traiçoeira. Então como devemos nos portar diante disso? Antes de prosseguirmos, convém
lembrar que: ―Como educadoras e educadores somos políticos, fazemos política ao fazer
educação‖ (FREIRE, 1998, p. 92), e isso acontece pela própria natureza da educação, que é
―indispensável à vida social‖ (FREIRE, 1998, p. 48). Alertados a isso, espanta ver como
frequentemente são evocados no espaço público os objetos de estudo das ciências humanas,
mas apesar de estarem em voga, raramente se vê um cientista social de fato debatendo as
questões em alta.

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Essa situação pode ser exemplificada com o caso dos historiadores. Conforme aponta
o estudo de Juliana Ogassawara e Viviane Borges (2019, p. 51) é minimamente conhecida ―a
querela de historiadores versus jornalistas‖, com recentes episódios ganhando as redes
sociais[26]. De acordo com o exposto no artigo delas, no contexto brasileiro a mídia e as
redes sociais, ou seja, os lugares públicos são geralmente ocupados por divulgadores sem
formação na área a qual se dedicam a difundir, isso ocorre principalmente quando o assunto é
sobre história geral e brasileira. Alguns exemplos disso são: Eduardo Bueno, Leandro
Narloch e Felipe Castanhari, que produzem conteúdos midiáticos e livros sobre História, mas
não tem formação específica no campo. Isso, em si, não é um problema[27], quanto mais
autores divulgando, melhor. Mas as consequências dessa ocupação é que frequentemente
esses autores cometem erros conceituais que seriam evitados se fossem especializados.

Ao analisar as obras desses divulgadores, as autoras afirmam que ―fica claro que os
usos do passado se inserem em uma construção de sentidos conflituosa, permeada por
disputas‖ (OGASSAWARA; BORGES, 2019, p. 49), ou seja, o passado é o que é disputado
no espaço público do historiador. E na filosofia? Como enfatizam os foucaultianos:

Os discursos filosóficos popularizados, a despeito de terem o presente como


seu problema analítico e, concomitantemente, seu foco de atuação, dirigem-
se a ele mais como um terreno fértil para semearem verdades inexoráveis do
que como um solo minado por certezas frágeis e, no limite, disparatada.
(OLIVEIRA; AQUINO, 2015, p. 77).

Por um lado, a citação nos traz novamente a questão de a filosofia ser requisitada para
temas práticos, como de que maneira viver bem, como ser feliz e coisas assim. E com uma
explicação rápida e resposta fácil, o filósofo estaria fatalmente inclinado aos erros já
elencados.

Mas por outro lado, também ressalta que filósofo em espaço público está na disputa do
presente, influenciando a interpretação deste. Podemos supor que outras humanidades estão
na disputa da interpretação de outros âmbitos sociais, bem como o passado com a História,

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que é muito requisitado, já que o passado está em disputa constante. Assim, da mesma forma
que o historiador disputa o passado, o filósofo é um dos que disputa o presente, e essas
disputas só ocorrem por demanda popular, já que se dão em espaço público e não na
academia elitizada.

Há uma ideia comum entre a maioria dos cientistas de que, para popularizar a
disciplina, teríamos que inevitavelmente deturpar os conteúdos. Como vemos no estudo de
Ogassawara e Borges (2019, p. 38), seria preciso ―aceitar alguns arranjos com a verdade‖ a
fim de conquistar um público maior, o que acaba ocasionando um receio nos intelectuais de
ocuparem as grandes mídias. O receio pode ser sintetizado no dilema exposto por Ogassawara
e Borges (2019, p. 53, grifo nosso): ―conceder entrevistas a uma produção de qualidade
questionável, mas que é capaz de atingir milhões, ou recusar participações por desavenças
ideológicas? Ocupar a mídia mainstream, ou ignorá-la?‖ Esse pudor tem uma
consequência terrível: a ocupação se dá por pessoas sem qualificação e sem o pudor que,
justamente por não dominarem tanto o assunto tratado, não enxergam as possíveis
consequências maléficas de suas falas erradas. Devemos fugir da ―mera simplificação, há
diferenças sensíveis entre a simplificação didática da linguagem e a distorção de fatos para
privilegiar argumentos frágeis e até falsos‖ (OGASSAWARA; BORGES, 2019, p. 54). Não
podemos aceitar a deturpação do conteúdo em nome de um falso didatismo, muito menos por
motivos ideológicos ou conjecturais.

A especificidade filosófica nos ajuda a tomar cuidado com o ambiente público por sua
própria natureza, já que se baseia em respostas nunca suficientes. Então, a cada nova aparição
é um momento para o intelectual público reavivar e explicitar a marca e a excelência de nossa
disciplina. Assim, estendendo o convite que as autoras fazem aos historiadores, para os
filósofos e demais cientistas sociais, enfatizamos que devemos sim tornar esses espaços
nossos também.

Em tempos marcados por demandas sociais e discussões políticas a quente,


sobretudo relacionadas ao ensino e às práticas didáticas [...]. Um convite
irrecusável se impõe nesse contexto: assumir a importância da dimensão

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pública da atividade [...], ultrapassando os muros institucionais da


universidade, e usar a palavra, como intelectuais, nos debates públicos.
(OGASSAWARA; BORGES, 2019, p. 55).

Considerações finais
Como esperamos ter ficado claro ao longo desse artigo, apesar das imensas
dificuldades que podem abater o filósofo durante a popularização, podemos e devemos
investir nessa prática pois é relevante ao trabalho filosófico e educacional e, querendo ou não,
já está sendo feita (por outros). Então, seria desejável que fizéssemos bem. A metodologia é o
que merece atenção, o método de fazer a popularização deve ser a prioridade ao pensar a
difusão. Tentamos aqui, fazer uma análise conjuntural de um fenômeno na sociedade
brasileira e de como a filosofia tem lidado com ele e como pode lidar. Tentamos contribuir
para uma metodologia de popularização que, dentro de seu discurso, demonstre também os
problemas de sua teoria, não só os seus aspectos coerentes. Pois assim resolveriam-se ou
diminuiriam-se as inúmeras consequências do método usado até então, que somente apresenta
os pontos coerentes. Mas esse mesmo método valioso apresenta um problema logo quando
confrontado com os clássicos formatos mercadológicos reduzidos, que compõem a maior
parte dos meios de propagação da divulgação filosófica da grande mídia institucionalizada,
mas que se mantém útil em meios cibernéticos.

É como um discurso envolto de sinceridade, bem próprio do diálogo, pois como


enfatiza Paulo Freire (1996, p. 51): ―O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura
com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como
inconclusão em permanente movimento‖. Por ter a inconclusão como resultado, ela serve
como combustível para uma busca própria dos consumidores midiáticos, atrás das respostas
que eles próprios buscarão. Apesar da educação por mídias ser complexa, tem como dar certo
ou, na linguagem popular, tem como dar pé, complementando a sociedade com a ciência e a
tecnologia.

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Por fim, reiteramos que a ―questão de um pensamento brasileiro deverá brotar de uma
realidade brasileira‖ e fazer isso inventando ―seus temas, ritmo, linguagem‖ (GOMES, 1994,
p. 8). Isso é necessário e já foi feito diversas vezes em nossa história, mesmo que siga
desconhecida. Talvez por ser uma filosofia que se assumiu enquanto ―marginal‖ e continuou
fora do padrão de seriedade da universidade. Mas é ―evidente que a Filosofia brasileira só
existirá a partir do momento que vier a ser, como a piada, uma investigação do avesso da
seriedade vigente‖ (GOMES, 1994, p. 13), levando isso em consideração, não é sem razão
que um dos fenômenos mais específicos e acurados de popularização (educação filosófica) a
surgir na cultura brasileira nasce de uma prática risível, um meme. Os funkeiros cults fazem
piada com os conhecimentos herméticos acadêmicos, criando um riso e também uma
democratização dos conhecimentos. Ao se debruçar sobre a popularização, Diderot clama:

Apressemo-nos para tornar a filosofia popular. Se quisermos que os filósofos


caminhem para frente, aproximemos o povo do ponto em que estão os
filósofos. Acaso dirão que há obras que nunca se colocarão ao alcance
comum dos espíritos? Se o disserem, mostrarão apenas que ignoram o que
pode um bom método e um longo hábito. (DIDEROT, 1990, apud SANTOS,
2010, p. 91).

Método e hábito, aperfeiçoando o primeiro, é só gozar dos benefícios do segundo. Por


sorte, uma das características da filosofia é apresentar erros e falhas de um projeto ou ideia.
Devemos então, depois de constatar a falha de outros modos de popularização, apostar em
novos jeitos, quem sabe assim atingimos uma excelência na prática quase aristotélica. O bom
método e o hábito ditos por Diderot, nos reafirmam a mensagem de Paulo Freire (1996, p.
31), em que afirma que apesar de o futuro ser problemático, ele não é inexorável, então
devemos mudá-lo, o que ―é difícil, mas é possível‖. Assim, a popularização da filosofia como
qualquer meta que vise a democratização do saber ―não se faz com palavras desencarnadas,
mas com reflexão e prática‖ (FREIRE, 1998, p. 91). Mas nós filósofos estamos prontos para
aceitar essa popularização filosófica? E aproveitaremos para fazer ―aquilo que já deveríamos
ter feito: uma conexão entre o Brasil e a Filosofia‖ (SILVEIRA, 2016, p. 263) ou não?

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[1] Refiro-me aqui ao conceito de cidade; historicamente se denomina pólis o modelo de


cidade-estado da Grécia Antiga. Mas, metaforicamente, simboliza o sentido de cidade em
geral.
[2] Aqui utilizaremos o conceito como é utilizado vastamente na internet, ou seja, para
designar imagens, gifs, vídeos, frases e outros tipos de mídia que sejam amplamente
divulgados. Geralmente são de teor humorístico.
[3] Sendo esse um exemplo da linguagem tida como popular, que utilizaremos durante o
percurso intelectual aqui empreendido. Essa expressão particularmente significa dizer que
algo se tornou popular, está sendo falado.
[4] A educação considerada aqui não se encerra em seu sentido de comunicação dialogada
porque para haver realmente uma educação nos moldes de Freire é preciso conscientização,
algo que nem sempre acontece neste meio. Faremos uso deste conceito pois, segundo a
definição de popularização, o diálogo com o povo é o objeto central dos dois conceitos. Por
isso, esta escolha se sustenta mesmo que o uso da internet com suas massificações possa
ocasionar uma maior ocorrência da educação bancária (posição contraria ao diálogo com o
educando), apenas preocupada fazer suas comunicações e depositar o conhecimento no
sujeito, não se comunicando com ele.
[5] Sobre isso, caso já não seja óbvio, verificar a apresentação e destruição da primeira regra
do ―Acervo T‖, apresentado por Cabrera. Veja: CABRERA, Julio. Europeu não significa
universal. Brasileiro não significa nacional. Nabuco, Revista Brasileira de Humanidades,
nº 2, nov. 2014/fev. 2015.
[6] De acordo com Ricardo Andrade (2018, p. 184), essa expressão é usada ―quase sempre de
uma forma irônica, ao resultado, por vezes pouco auspicioso, do trabalho filosófico realizado
no Brasil. ‗Nós‘ tanto significa, como substantivo, as dificuldades e obstáculos da prática
filosófica em nosso país, como também pode significar, como pronome: ‗nós os brasileiros‘,
ou ‗nós os filósofos‘, ou ainda ‗nós, filósofos brasileiros‘ e desta ambiguidade deriva parte
da ironia dessa expressão‖.
[7] Algo que ―faz-nos pensar. Dá o que pensar. Não será esse o objetivo primeiro de um
intelectual? E, ao mesmo tempo, convida-nos a agir. Não será essa a missão principal de um
educador?‖ (PRETTO, 2008, p. 11).
[8] Praça pública da Grécia Antiga. Local particularmente explorado por Claudio Dalbosco.
Cf.: DALBOSCO, Claudio, A. O mestre na praça: Sentido pedagógico das metáforas
socráticas. REP-Revista Espaço Pedagógico, v. 16, n. 1, Passo Fundo, p. 50-57, jan./jun.
2009.
[9] Método que por meio de perguntas, conduz o interlocutor a caminho da verdade.
[10] Alexandre Hahn explana melhor a situação da Alemanha do século XVIII, Cf.:
GONTIJO, Pedro; HAHN, Alexandre. Diálogos: Popularização da filosofia. Vídeo (21

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min.). UnBTV - Julho/2017. Disponível em: <https://youtu.be/-qkaoczIOeo>Acesso em:


29/07/2020.
[11] Apesar da autora não categorizar esta enquanto um eixo autônomo, talvez por esta ser
uma subseção da filosofia clínica, ainda é uma categoria considerável para esta análise. Veja:
SANCHES, 2011, p. 125.
[12] Haveria um ―constrangimento‖ ou ―pudor linguístico‖ inerente a frase que nos inibiria de
pronunciá-la, e Ronie Silveira (2016, p. 262) afirma ainda que: ―A maior evidência de que
realmente existe uma estufa filosófica é derivada das restrições que nós, os filósofos
brasileiros, temos em falar em ‗filosofia brasileira‘‖.
[13] De acordo com Gomes (1994, p. 12) sérias são aquelas ―coisas que vêm sendo discutidas
na Sorbonne, em Oxford, publicadas em Paris ou Berlim, apresentadas em congressos‖.
Assim a forma séria de expor o discurso surge sempre lá fora, sendo importada. Talvez nosso
pensamento ―oficial‖ também padeça do mesmo mal.
[14] A história da filosofia não ocorreria sem o Outro. A questão aqui não é filosofar sozinho,
para ninguém. É filosofar com o outro de igual para igual, autonomamente, e não de maneira
subserviente. Em um trabalho sobre nossa relação com os ―clássicos‖ europeus, Seabra e
Tolton (2017, p. 229) enfatizam: ―o servilismo tem que morrer‖.
[15] Um dos nomes dados ao território, hoje brasileiro, pelos conquistadores portugueses. É
um nome sugestivo, já que aparentemente gostamos de ―repetir‖ o que filosofam, mas só se
forem europeus-estadunidenses.
[16] Relativo à terra de brasis, ou a terra onde existem inúmeros paus-brasis.
[17] Sim, ―a gente tá sendo atacado‖ como afirma Lunga de Bacurau e como parafraseiam
Esteves e Valverde (2019) enquanto evidenciam estes ataques. E estamos sendo atacados
duplamente, enquanto educadores e enquanto filósofos. Novamente: iremos reagir ou vamos
deixar como está, para ver como é que fica?
[18] O movimento acontece em várias redes sociais diferentes, mas a página oficial no
Instagram pode ser explorada no seguinte endereço:<
https://www.instagram.com/funkeiroscults/>. Acesso em:12/08/20.
[19] Seu canal do YouTube está disponível
em:<https://www.youtube.com/channel/UCdYnL5uXF-sIddK4BpSy2Fw>. Acesso em
29/07/20.
[20] Mas deve-se levar em conta que a intenção dos funkeiros cults não parece ser formar
filósofos/cientistas. Ao tornar a filosofia ou a ciência um instrumento para auxiliar a vida,
talvez a perda conceitual não seja tão relevante. Mas deve ser levada em conta por nós
educadores.
[21] Novamente o servilismo demarca-se, fazendo-nos sonhar com caravelas que tragam a
filosofia já pronta para nós.

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[22] Entendendo conhecimento aqui enquanto informações mediadas de alguma maneira por
um educador. Não apenas as informações soltas na rede.
[23] Segundo Andreza Delgado (2020, online) a expressão é ―empregada para se referir a
quem costuma ter um papo que, reflexivo, estraga o momento...‖
[24] Que ou quem, ostentando qualidades que não possui, procura auferir prestígio e lucros
pela exploração da credulidade alheia; um impostor, trapaceiro.
[25] Se referia a Vélez Rodríguez e seu posterior substituto Abraham Weintraub.
[26] Relatos sobre um acontecido recente dessa disputa pode ser encontrado em: YAO,
Rodrigo. Castanhari é cancelado após anúncio de sua série na Netflix, responde e revolta a
web. UOL, Observatório de Séries. Disponível em:
<https://observatoriodeseries.uol.com.br/netflix/castanhari-e-cancelado-apos-anuncio-de-sua-
serie-na-netflix-responde-e-revolta-a-web>. Acesso em: 23/07/20.
[27] Eles não querem criar historiadores, só entreter e divulgar. O problema surge quando
divulgam conteúdos errôneos ou sem comprovação científica para o povo, que pode passar a
crer em mentiras.

Referências Bibliográficas

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sociedade em mudança. Unisinos. Revista Fronteiras, estudos midiáticos, VIII (2):
maio/agosto, 2006, p.123-132.
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2000.
BORBA, Siomara; KOHAN, Walter O. (orgs). Filosofia, aprendizagem, experiência. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.
CABRERA, Julio. EUROPEU NÃO SIGNIFICA UNIVERSAL. BRASILEIRO NÃO
SIGNIFICA NACIONAL. Nabuco, Revista Brasileira de Humanidades, nº 2, nov.
2014/fev. 2015.
COSTA, João Cruz. Sobre o trabalho teórico. Trans/Form/Ação. v. 2, 1975, p. 87-94.
Reproduzida na Trans/Form/Ação, Marília, Edição especial, v. 34, 2011, p. 107-115.
DALBOSCO, Claudio, A. O mestre na praça: Sentido pedagógico das metáforas socráticas.
REP-Revista Espaço Pedagógico, v. 16, n. 1, Passo Fundo, p. 50-57, jan./jun. 2009.
DELGADO, Andreza. A filosofia já chegou na quebrada? Um papo com o youtuber Audino
Vilão. UOL, Entretê, 2020. Disponível em: <

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49. Tradução para uso didático, para o projeto de pesquisa: Dissecando o racismo epistêmico:
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SCARAMAL, Angela Aparecida. O início da era contratualista: Thomas Hobbes,
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Em: VIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais. I Jornada Internacional de Estudos
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O CONCEITO HUMIANO DE CAUSALIDADE: ANÁLISE DA


ESTRUTURA ARGUMENTATIVA DA SEÇÃO VII DA
INVESTIGAÇÃO

Larissa Broedel

Resumo
O presente artigo tem como objetivo elucidar o conceito humiano de causalidade, tal como
é apresentado na Investigação Sobre o Entendimento Humano; por conseguinte, o trabalho
analisa sobretudo o percurso argumentativo da seção VII desse livro, composto por três
hipóteses para a origem da representação de conexão necessária entre causa e efeito e, por
fim,pela exposição da original tese de Hume.
Palavras-chave: Associação. Causalidade. Ideia. Impressão.

Abstract
The following article aims to elucidate the Humean concept of causality as it is presented in
the Enquiry Concerning Human Understanding; therefore, the work analyzes mainly the
argumentative path of section VII of this book, which contains three hypotheses for the
origin of the idea of necessary connection between cause and effect and, finally, the
exposition of Hume's original thesis.
Keywords: Association. Causality. Idea. Impression.

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1. Introdução

O processo que se dá na mente humana, responsável pela conexão entre dois


eventos distintos, um caracterizado como causa e o outro como efeito, é descrito
filosoficamente pelo denominado princípio da causalidade. O filósofo escocês David Hume
escreveu duas importantes obras que tratam do tema: o Tratado da Natureza Humana153 e a
Investigação Sobreo Entendimento Humano154.

No Tratado155, publicado em 1739-40, o autor inicia a discussão sobre o conceito de


causalidade, e mais tarde, em 1748, retoma-a na Investigação156, obra considerada mais
concisa e melhor escrita157 por certos comentadores. Minha análise concentrar-se-á no texto
da seção VII da Investigação. É digno de nota, no entanto, que esses livros não se
contradizem, de modo quepassagens do Tratado serão consideradas oportunamente.

Para uma melhor compreensão da teoria causal do filósofo, algumas terminologias


devem ser elucidadas, como por exemplo, o que entende Hume por impressões, ideias, e
associação de ideias. Na obra publicada em 1748 o autor é excessivamente sucinto quanto
ao esclarecimento do significado destes termos, mas o livro de 1739-40 os esclarece
detalhadamente.

153
HUME, D. Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 1960. Editor Sir L. A. Selby-Bigge;
cf. tb. HUME, D. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Editora UNESP, 2009
154
HUME, D. Enquiries concerning Human Understanding and concerning the Principles of Morals
(editado por P.H. Nidditch). Oxford, 1975; cf. tb. HUME, D. Investigações sobre o Entendimento Humano e
sobre os Princípios da Moral. São Paulo: Editora UNESP, 2003
155
Passarei a me referir ao Tratado da Natureza Humana com a expressão Tratado
156
Passo a me referir à Investigação sobre o Entendimento Humano com a expressão Investigação.
157
Essa é a opinião, por exemplo, de Jens Kulenkampff. Cf. KULENKAMPFF, J. Einleitung. In:
KULENKAMPFF, J. (org.). David Hume - Eine Untersuchung über den menschlichen Verstand (Klassiker
Auslegen). Berlin: Akademie Verlag, 1997. Agradeço ao orientador do meu trabalho de conclusão de curso, o
prof. Renato Valois (UFRRJ), pelo acesso ao conteúdo dos artigos em alemão citados aqui, bem como às
discussões acerca dos mesmos.

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2. Desenvolvimento

2.1. Impressões e Ideias

Todos os dados mentais são denominados genericamente por Hume como


percepções. Trata-se de uma terminologia bastante adequada enquanto expressão semântica
da tese empirista: tudo que for matéria de operações intelectuais deverá ser considerado
espécies de percepções dos sentidos em sentido lato - isto é, serão dos sentidos pelo simples
fato de estarem dadas no intelecto. Desde o Tratado, Hume utiliza o termo ideia para
caracterizar cópias mentais de impressões originárias158. Impressões, afirma ele, são
sentimentos internos ou externos159, marcas efetivas dos objetos reais dos nossos sentidos;
são, por conseguinte, representações sempre imediatas. Hume eximiu-se de enfrentar o
problema da teoria causal da percepção, pois não refletiu detidamente sobre a origem das
impressões, limitando-se a aplicar o termo a percepções caracterizadas como fortes e
vivas160. Seriam causas desconhecidas161 que suscitariam nossas impressões dos sentidos, a
investigação a respeito das mesmas devendo antes ser considerada uma tarefa para
anatomistas ou filósofos da natureza, entre os quais Humenão se incluiria162.

O conceito de ideia está, portanto, diretamente conectado ao conceito de impressão.

158
HUME, 2009, p. 1/25. As citações das páginas do Tratado serão datadas da edição brasileira, 2009, enquanto
a paginação será feita sempre com a forma ―x/y‖, onde ―x‖ referir-se-á à página da edição de Oxford e ―y‖ à
página da edição brasileira.
159
―Our outward or inward sentiment.‖ Cf. HUME, 2003, p. 19/35. As citações das páginas da Investigação
serão datadas da edição brasileira, 2003, enquanto a paginação será feita sempre com a forma ―x/y‖, onde ―x‖
referir-se-á à página da edição de Oxford e ―y‖ à página da edição brasileira.
160
HUME, 2009, p. 2/25-26.
161
HUME, 2009, p. 7/32.
162
HUME, 2009, p. 8/32. Relativamente à difícil distinção entre impressões e ideias, o trabalho de Heidrun Hesse
é bastante esclarecedor. Em grande parte, as observações a seguir acompanham sua interpretação: Cf. HESSE,
H. Eindrücke und Ideen. Die Funktion der Wahrnehmung (Abschnitt II und III). In: Klassiker Auslegen – Eine
Untersuchung über den menschlichen Verstand. Berlin: Akademie Verlag, 1997.

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Hume defende intransigentemente a tese de que as ideias (base da constituição de nossa


memória) são, diferentemente das arbitrárias misturas da imaginação, cópias fiéis de nossas
impressões internas e externas; excetuando-se a hipótese de que o sujeito padeça em algumas
de suas faculdades de alguma espécie de defeito orgânico163. Desse modo, as records of our
memory dependeriam necessariamente dos present testimony of our senses164. Em outras
palavras, os conteúdos da memória retratariam fielmente não apenas impressões simples na
figura de ideias simples, mas também their order and position165.

Por conseguinte, a vivência expressa pela observação do nascer do sol gera uma
impressão, enquanto sua recordação depende da produção de uma ideia. Ou então, quando
provamos uma fruta amarga, ou o momento vivido do ato de provar uma maçã; em todos
esses momentos as percepções geradas serão impressões. Em momentos futuros, quando for
evocadaa memória do que aconteceu, ou quando se pensar sobre o que houve, recorreremos
às ideias.

A diferença entre impressões e ideias não é difícil de ser notada, pois são percepções
distintas em graus de vividez e força. Uma ideia nunca será tão viva e nunca terá suas cores
tão fortes quanto uma impressão. Por mais que a lembrança contenha muitos detalhes ou
muita vividez, as ideias não alcançam a força das impressões. A experiência de viver uma
situação é muito mais viva que a de recordá-la. Numa palavra, Hume considera que as
percepções de ideias, quando comparadas às percepções de impressões, parecem pálidas; e
que somente devido à loucura ou a alguma outra doença seria possível confundi-las166. Sob
esta perspectiva, as ideias são assimiláveis aos pensamentos, assim como as impressões às
sensações.

Há subclasses de ideias e impressões, analisadas especialmente no Tratado. A

163
HUME, 2009, p. 9/32-33.
164
HUME, 2003, p. 26/54.
165
HUME, 2009, p. 9/32-33.
166
HUME, 2009, 2/25-26; HUME, 2003, 17/33-34.

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primeira subdivisão é a de impressões simples e complexas; há, portanto, ideias simples,


impressões simples, ideias complexas e impressões complexas. Uma tese central que subjaz
a todas as classes é a de que a produção de ideias simples depende necessariamente da
presença anterior de impressões (simples) correspondentes; ideias complexas, por sua vez,
nem sempre dependerão de impressões (complexas) correlatas167. Uma maneira simples de
definir se determinada ideia é complexa ou não consiste em analisar sua eventual
divisibilidade. Assim, se a ideia pode ser dividida em ideias parciais, poderá ser
classificada como complexa. Por exemplo, a ideia de uma maçã é uma ideia complexa; há
nela a conjugação da ideia de doçura, de avermelhado, do circular etc. Evidentemente, estas
são ideias simples.

Outra distinção, brevemente indicada pelo autor, é a separação entre sensações e


reflexões. As primeiras teriam suas causas desconhecidas168, enquanto as reflexões seriam
atos por intermédio dos quais originar-se-iam imediatamente as ideias. Por fim, Hume
distingue a memória da imaginação169. Conforme a teoria humiana, quando uma impressão
retorna à mente, é possível que se torne uma ―ideia de memória‖ ou uma ―ideia de
imaginação‖, a depender do grau de vividez com que retorna: uma vividez maior
constituiria uma ideia de memória, enquanto a palidez da percepção geraria uma ideia de
imaginação. De todo modo, o Tratado defende a pouco convincente tese de que as ideias
relacionadas à memória são, diferentemente das arbitrárias misturas da imaginação, cópias
fiéis de nossas impressões internas e externas - excetuando-se a hipótese de que o sujeito
padeça em algumas de suas faculdades de alguma espécie de defeito orgânico170.
Posteriormente, Hume é ambíguo na Investigação, tratando as lembranças, isto é, as
memórias, de modo próximo às figuras da imaginação171, mesmo insistindo172 que qualquer

167
HUME, 2009, livro 1, parte 1.
168
HUME, 2009, p. 7/32.
169
HUME, 2009, livro 1, parte 1.
170
HUME, 2009, p. 9/32-33.
171
HUME, 2003, p. 17/33-34.

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fato deve estar presente aos sentidos ou à memória.

2.2. Associação de Ideias

As ideias não parecem ser organizadas e dispostas de forma aleatória, pelo


contrário, parece haver certa conexão ou mecanismo responsável pela ligação das mesmas,
bem como pela formação de raciocínios. Destarte, o princípio de conexão seria responsável
pelo que Humedenomina associação de ideias. Em qualquer cadeia de raciocínios é possível
perceber certa ordenação dos pensamentos; um raciocínio A direciona a uma ponderação B e
assim por diante. Segundo a teoria humiana, a mente humana está condicionada a trabalhar
sob certos princípios, que permitem que as ideias fluam de maneira ordenada; o intelecto
reorganiza ideias sem conexão com o fluxo estabelecido173.

A observação de uma conversa permite observar o funcionamento de princípios de


conexão. Quando não, o interlocutor que aparentemente violou regras de associação de
ideias

poderá certamente explicar conexões que não haviam sido oralizadas. Independentemente
da língua que se examina, os princípios de associação de ideias poderão ser discernidos.

De acordo com Hume, existem três maneiras pelas quais uma ideia pode ser
associada a outra: a primeira é através do princípio da semelhança, a segunda através do
princípio da contiguidade e a última consiste no tema deste trabalho, a saber, por intermédio
do princípio da causalidade174. A associação por meio da semelhança é realizada
precisamente por meio da similitude eventualmente exibida pelas ideias entre si; portanto,

172
HUME, 2003, p. 45/77-78; 26/53-54; 46/78-79.
173
HUME, 2009, livro 1, parte 1
174
HUME, 2003, seção II.

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quando A for semelhante a B, ou quando A e B forem semelhantes a C etc. A associação


por meio de contiguidade é estabelecida através de possíveis relações de justaposição entre
as representações, nas quais determinadas ideias acompanham outras por exibirem
percepções usualmente próximas – por exemplo, a ideia de porta e a ideia de parede etc. Por
fim, a associação por causalidade permitesupor que um determinado elemento A causou um
elemento B, que passa a ser considerado efeito daquele.

O trabalho dos historiadores e dos narradores de histórias em geral é um bom


exemplo da operacionalização dos métodos de associação de ideias. Mais comumente, as
narrações são conectadas por causalidade, explicando a ordem natural dos eventos
sucessivamente. A reflexão humiana madura sobre o princípio da causalidade concentra-se
exatamente na seção VII da Investigação. Tanto por razões teóricas como por motivos
práticos, Hume considera essencial determinar se a associação de acontecimentos em pares
(nos quais são representadas respectivamente as posições causa e efeito) depende de um
princípio contingente/psicológico ou de um princípio necessário/objetivo. O procedimento na
seção VII, por conseguinte, consisteem dois momentos centrais: primeiramente, analisar três
hipóteses para a fonte da ideia de conexão necessária entre causa e efeito e aduzir
argumentos no sentido de mostrar inconsistências subjacentes àquelas; finalmente, fornecer
uma legítima tese a respeito da origem da representação de conexão necessária.

2.3. Primeira hipótese acerca do fundamento da representação de conexão necessária175

Como se sabe, a ―mecânica mental‖ humiana pressupõe que o conhecimento

175
Meu estudo nesta parte do artigo é essencialmente uma paráfrase da interpretação de Bertram Kienzle, com a
qual concordo. O excelente estudo de Martin Bell também influenciou bastante a redação desta etapa do artigo. Cf.
KIENZLE, B. Von der Vorstellung der notwendigen Verknüpfung. In: Klassiker Auslegen – Eine
Untersuchung über den menschlichen Verstand. Berlin: Akademie Verlag, 1997. Cf. tb. BELL, M. Hume on
Causation. In: The Cambridge Companion to Hume. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

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expresso em ideias complexas depende, por um lado, de definições e, por outro, do


conhecimento das ideias simples, cujos conteúdos constituem, por sua vez, as
representações associadas em representações complexas. Ao contrário das ideias
complexas, ideias simples são intrinsecamente representações não-definidas, isto é, o único
modo de ―esclarecê-las‖ ou explicá-las é relacionando-as a impressões correspondentes, das
quais elas são originariamente cópias. Com efeito, inicialmente, o objetivo principal da
doutrina filosófica humiana acerca da causalidade é descobrir se há alguma impressão que
possa ser considerada fonte da ideia de conexão necessária. Em outras palavras, se há
alguma impressão que possa ser considerada a origem da ideia de conexão de causa e efeito
entre os eventos.

Nesse sentido, a análise da primeira hipótese parte da seguinte questão: a ideia de


conexão necessária teria como fundamento impressões externas? Por impressões externas
entende Hume espécies de representações que ocorrem no sentido externo, ou seja, o meio
no qual representamos objetos como fora de nós, portanto, ocupando lugares distintos do
sujeito no espaço; contrariamente, podemos nos referir ao sentido interno, isto é, ao meio
no qual representamos objetos pensados como ocorrências em nós, sejam ocorrências
sucessivas ou simultâneas. Essa alternativa é rapidamente despachada por Hume, pois
impressões externas envolvem qualidades secundárias, estritamente176 sensoriais, e não há,

176
É claro que, rigorosamente, percepções sensíveis são constituídas não apenas por qualidades secundárias, mas
também por qualidades primárias, independentes dos cinco sentidos e de nossa posição no espaço. Por
conseguinte, caracterizo como estritamente sensorial apenas a parte ―material‖ da representação sensível, esta
sim variável e dependente das sensações e da posição espaciotemporal do sujeito. De todo modo, a origem das
percepções é um ponto controverso na teoria de Hume. Assim, levando em consideração que o filósofo foi leitor
de Berkeley, clássico defensor de uma doutrina imaterialista, é relevante a questão sobre a admissibilidade de
intuições intelectuais na filosofia do conhecimento humiana. Pois, em última análise, o imaterialismo classifica
tudo que pode ser discernido mentalmente como ―sensível‖, sejam qualidades primárias, sejam qualidades
secundárias. Ora, visto que sem dúvida Hume não tem uma teoria causal da percepção (cf. notas 8, 9 e 10) e
muito menos uma reflexão sobre a existência de um substrato não-sensível da realidade (e distinto da mente),

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por assim dizer, qualquer sensação de ligação capaz de conectar ocorrências externas
causalmente. Assim, o máximo que impressões externas podem fornecer é a constatação ou
o reconhecimento do fato de que uma ocorrência pensada como efeito sucede outra,
representada ou classificada como sua causa. De tal modo que a ideia simples de
representação necessária não poderia ser derivada da mera contemplação de objetos
externos. É preciso, contudo, ressaltar que o argumento não consiste simplesmente na
afirmação de que não há uma impressão correspondente à representação de conexão
necessária; seu aspecto sutil, de acordo com as bases da doutrina humiana, é a
refutação da pressuposição de que aquela representação poderia resultar da cópia de
umaimpressão externa.

2.4. Segunda hipótese acerca do fundamento da representação de conexão necessária

A segunda hipótese investiga se a fonte da ideia de conexão necessária poderia


corresponder a impressões internas. A hipótese avalia essencialmente duas alternativas: a
primeira analisa a relação entre corpo e mente; a segunda, a relação da mente com ela
própria. Nos dois casos deve-se avaliar se, na base da relação entre os dois elementos,
haveria uma impressão interna que corresponderia à origem da ideia de conexão necessária.

A primeira alternativa parte da análise da relação entre os movimentos do corpo


humano e os atos da vontade. De fato, nossos membros podem se mover a partir de
determinações expressas por nossas decisões. O primeiro aspecto a ser considerado é a
constatação de que, através do sentido externo, não é possível ter qualquer percepção de uma
eventual ligação entreos atos do querer e os movimentos do corpo. Em princípio, só através
da consciência de que nossa vontade determina o movimento dos membros pode ser
encontrada a impressão (interna) cuja cópia corresponderia à ideia de conexão necessária.
Na terminologia humiana, essa hipotética ideia seria então uma espécie de ―ideia de

inevitavelmente seu sistema deixa em aberto a possibilidade de que, ao fim e ao cabo, nossas representações
sejam meros produtos do intelecto puro. Contudo, não desenvolverei essa dificuldade aqui

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reflexão‖177. Trata-se de um tipo de ideia que teria origem na reflexão acerca de processos
intrinsecamente mentais, isto é, através da mera introspecção relativamente às operações do
espírito.

Somos imediatamente conscientes da determinação dos movimentos do corpo


através do arbítrio e, portanto, a constatação da influência da vontade sobre os membros
consiste num mero fato que, como qualquer ocorrência natural, só pode ser identificado por
intermédio da experiência178. É interessante notar que, em Hume, o conceito estrito de
experiência implica necessariamente a presença de sensações (qualidades secundárias)
como elementos constitutivos da representação considerada. É claro que cópias são obtidas
pela experiência, mas devem ser consideradas representações mediatas que permanecem
retidas na memória. Entretanto, o que propriamente experimentamos corresponde a
representações imediatas, vale dizer, a impressões, que pressupõem necessariamente a
presença de dados captáveis diretamente no sentido interno e/ou no sentido externo. Por
esta razão, seria impossível ter consciência da influência da vontade sobre o corpo
independentemente da experiência do
.próprio movimento dos membros representado no espaço e no tempo. Seria inviável, para
usarmos termos kantianos, obter uma espécie de conhecimento a priori que supostamente
poder-se-ia obter através de um processo de introspecção. Conclui-se então que é impossível
buscar imediatamente na causa em questão, a mente, o fundamento da sua influência sobre o
corpo humano. Eis, portanto, o cerne da crítica humiana à primeira alternativa acerca de
impressões internas como fontes da ideia de conexão necessária. Seu argumento pode ser
sintetizado da seguinte forma179:

Premissa 1 (P1) - Premissa relativa à origem mental das ideias de reflexão: se a ideia de
conexãonecessária é uma ideia de reflexão, ela deve provir da mente;

177
HUME, 2003, seção II e III.
178
HUME, 2003, p. 64/100-101
179
Reproduzo aqui integralmente a reconstrução de Kienzle. KIENZLE, 1997, p. 121.

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Premissa 2 (P2) - Premissa que relaciona a hipotética origem mental da ideia de conexão
necessária a uma espécie de conhecimento a priori: se a ideia de conexão necessária provém
damente, devemos ter um conhecimento a priori da relação causa-efeito;

Premissa 3 (P3) - Premissa que expressa a tese fundamental empirista: todo o conhecimento
que temos acerca de relações causais deve provir da experiência180.

Conclusão (C) - Recusa da primeira alternativa quanto a impressões internas: a ideia de


conexão necessária não pode ser uma ideia de reflexão, pois não temos acesso a
conhecimentos a priori. A ideia de conexão necessária, por conseguinte, não pode ser
assimilada a uma cópia de uma impressão interna.

Ora, admitido que P3 é verdadeira e se efetivamente é impossível termos uma forma


de conhecimento a priori, então é logicamente válido afirmarmos que a ideia de conexão
necessária não pode estar fundada numa hipotética ―impressão não-sensível‖ ou
―intelectual.‖ É preciso reconhecer que Hume não formulou explicitamente as premissas P1
e P2. Contudo, depreende- se do seu texto que elas foram consideradas e abandonadas, a
partir de alguns argumentos que expressam a impossibilidade da hipotética consciência
imediata de uma força ou energia na causa subjacente à determinação de movimentos
corporais.

2.5. Terceira hipótese acerca do fundamento da representação de conexão necessária

A última crítica de Hume, por assim dizer, quanto a possíveis candidatos à fonte da
ideia de conexão necessária também se refere a uma espécie de ato da vontade181.
Trata-se aqui

precisamente da investigação da vontade divina como eventual origem dessa ideia. De


acordo com a análise humiana, a vertente filosófica que comportaria conceitualmente essa

180
Em sentido estrito, como expliquei acima.
181
HUME, 2003, seção VII.

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interpretação no contexto da origem da representação de ligação necessária seria o


ocasionalismo.

O termo provém do vocábulo latino occasio. Seus defensores afirmam


essencialmente que qualquer espécie concebível de causalidade seria, em última análise,
uma oportunidade ouocasião que exprimiria o agir característico da vontade de Deus. Nesse
sentido, sejam relações causais presentes em objetos dados no tempo e no espaço, portanto,
representados no sentido externo, sejam relações causais exibidas estritamente no sentido
interno - isto é, entre mente e corpo ou na relação da mente com ela própria. Numa nota182,
Hume refere-se expressamente a Descartes e Malebranche como os principais representantes
das teses ocasionalistas, o primeiro como suposto autor, o segundo como principal defensor
dessa concepção filosófica.

Os argumentos humianos para recusar a hipótese ocasionalista são sumários183. O


primeiro consiste em classificar o ocasionalismo como uma doutrina grosseiramente
metafísica, com efeito, excessivamente distante da vida cotidiana e da experiência; o
segundo argumento resumir-se-ia em considerar os princípios ocasionalistas simplesmente
implausíveis, pois, de acordo com as refutações anteriores, é impossível obter uma
representação da determinação à causalidade que conectaria eventos dados ao sentido
externo ou ao sentido interno. De tal modo que, assim como é impossível acessar a
representação da ligação da nossa mente a efeitos externos ou internos, o mesmo pode ser
afirmado no que tange ao intelecto divino. Acresce-sea isso que a representação da essência
divina só pode ser obtida através da reflexão sobre as características da nossa natureza, ao
serem maximizadas através de simples operações intelectuais.

2.6. O princípio da causalidade e a tese humiana

Hume encerra provisoriamente sua busca pela origem da ideia de conexão


182
HUME, 2003, p. 73/111.
183
HUME, 2003, seção VII.

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necessária entre causa e efeito com uma célebre passagem:

Um acontecimento segue outro, mas jamais nos é dado observar qualquer


liame entre eles. Eles parecem conjugados, mas nunca conectados. E como
não podemos ter nenhuma ideia de uma coisa que nunca se apresentou ao
nosso sentido exterior ou sentimento interior, a conclusão inevitável parece
ser que não temos absolutamente nenhuma ideia de conexão ou de poder,
e que
essas palavras acham-se totalmente desprovidas de significado quando
empregadas tanto no raciocínio filosófico quanto na vida ordinária184.

O trecho acima conclui a refutação das três hipóteses para ―candidatos‖ 185 a fontes
da representação de conexão necessária. Além disso, a passagem abre espaço para a
apresentação e desenvolvimento de uma original teoria causal. Indica Hume mais adiante:
―Mas, quando muitos casos uniformes se apresentam, e o mesmo objeto é seguido sempre
pelo mesmo resultado, a noção de causa e de conexão começa a surgir à nossa
consideração‖186.

Entretanto, poder-se-ia questionar: o que afinal diversas impressões de pares de


ocorrências sucessivas permitem depreender que já não estivesse presente em cada uma
dessas impressões particulares? Refiro-me precisamente a pares considerados semelhantes
entre si e compostos sempre por um membro anterior e por outro posterior, por conseguinte,
pensado como efeito ou resultado do primeiro. Uma resposta inicial pode ser obtida a partir

184
HUME, 2003, p. 73/112, grifo do autor.
185
Em princípio, poder-se-ia defender a possibilidade de uma quarta hipótese: o intelecto puro (ou a ―razão
pura‖). Relativamente a essa consideração, sublinho que meu artigo procura ater-se essencialmente à análise do
percurso argumentativo estruturado na seção VII da Investigação. São recusadas aí apenas as hipóteses
apontadas acima para o fundamento da ideia de conexão necessária; numa palavra, a possibilidade da opção
razão pura não está entre as três discriminadas pelo autor. Creio que a desconsideração de Hume ocorreu
simplesmente porque impressões são consideradas por ele as únicas fontes para as ideias; a questão sobre a
causa das próprias impressões é de fato um problema para a teoria humiana, mas suponho que a nota 24 é
suficientemente esclarecedora a respeito.
186
Cf. HUME, 2003, p. 78/117.

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da reflexão sobre o conceito de associação em série187, relacionado ao conceito biológico de


receptor sensorial188. Ao menos numa primeira avaliação, a referência analógica a um
processo fisiológico faz sentido, por aparentemente estar diretamente ligado à tese empirista
que subjaz ao desenvolvimento do pensamento de Hume que se anuncia. Por associação em
série entende- se neste contexto o recurso a uma sequência de padrões em que cada
elemento da sucessão é formado por um par de eventos. Nesse modelo, cada par deve
assemelhar-se ao anterior e ao subsequente. Na terminologia humiana, cada par/padrão
deve corresponder a uma impressão de uma sucessão particular de dois acontecimentos189.
Numa perspectiva biológica, cadaimpressão é formada por nossos receptores sensoriais na
superfície dos órgãos dos sentidos. Admitindo-se, por assim dizer, um par de ocorrências
―originário‖ (como padrão-base de uma possível sequência de pares semelhantes), é digno
de nota que, quando as ocorrências desaparecerem, desaparecerá igualmente a impressão
desse par, de modo que ela passará a ser acessível unicamente através da ideia
correspondente retida na memória. Tal representação constitui uma cópia que, no modelo
de associação em série, teve como fonte a impressão originária do par. Admitamos ainda
que tal cópia funcione como uma espécie de ―mapa‖, no qual uma possível sucessão futura
de padrões de estímulos estará esquematizada para nossos receptores por ocasião da
presença de novos pares (semelhantes) de eventos.

187
Não confundir com o processo de associação de ideias, descrito na seção III da Investigação, que tem
significado e função completamente distintos.
188
O termo receptor sensorial é aqui tomado de empréstimo da biologia, mais precisamente da neurociência, e
refere-se de modo genérico à parte ou à estrutura de um sistema sensorial que reconhece estímulos dados no
ambiente interno ou externo de um organismo – mais precisamente, no caso do homem, a expressão diria
respeito a elementos fisiológicos (corporais) com a função de reconhecer estímulos dados aos sentidos interno e
externo. Os receptores localizam-se nos órgãos dos sentidos e resumem-se a terminais nervosos capazes de
receber estímulos e transformá-los em impulsos nervosos. Cf. Gerd Willwacher: Fähigkeiten eines assoziativen
Speichersystems im Vergleich zu Gehirnfunktionen, In: Biological Cybernetics 24 (1976), p. 181-198. Apud
KIENZLE, 1997, p. 127.
189
HUME, 2003, seção VII.

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Uma questão essencial que deve ser posta neste momento é a seguinte: impressões
de pares de ocorrências podem ser indiscutivelmente semelhantes a outras impressões de
pares? Ora, Hume afirma que: ―[…] quando muitos casos uniformes se apresentam, e o
mesmo objeto é seguido sempre pelo mesmo resultado, a noção de causa e de conexão
começa a surgir à nossa consideração‖190. A citação sugere que a obtenção da buscada
origem da ideia de conexão necessária pressupõe a disponibilidade de várias impressões de
pares de ocorrências sucessivose semelhantes. Portanto, essa constatação parece excluir que a
―mesmidade‖ (isto é, a identidade referida) possa ser assimilada à identidade numérica191,
mas sim tão somente à identidade qualitativa. Reforçam essa interpretação duas outras
passagens em que Hume refere-se a eventos da mesma ―espécie‖: ―Mas, quando uma
espécie particular de acontecimento esteve sempre, em todos os casos, conjugada a uma
outra [...]‖192 e ―É apenas quando duas espécies de objetos se mostram constantemente
conjugadas que podemos inferir uma da outra‖193.

De fato, Hume tem de contar em sua argumentação com certo grau de variação nas
impressões de pares semelhantes. Por exemplo, duas impressões semelhantes sempre serão
interpretadas por padrões de estímulos que se diferenciam através de certos desvios
relativos à distribuição dos receptores sensibilizados – que podem se dar não apenas devido
a características fisiológicas particulares do observador, mas também por fatores como
sua posição no tempo e no espaço. Contudo, isso é apenas parte do problema, avaliado

190
HUME, 2003, p. 78/117, grifo nosso
191
Pelo denominado princípio dos indiscerníveis, cuja formulação original remete à filosofia antiga, dois objetos
(ou essências) são idênticos em sentido estrito, forte, se puderem ser considerados indiscerníveis. Trata-se neste
caso do que costuma-se chamar de identidade numérica. Diferentemente, a identidade meramente qualitativa
refere-se àquela propriedade que caracteriza meramente objetos pertencentes a uma classe de coisas semelhantes
classificadas por meio de um conceito. Assim, o conceito de mesa serve para classificar o conjunto das mesas
particulares etc. Cf. Identidade. In: TUGENDHAT. E. Propedêutica Lógico-semântica. Petrópolis: Vozes, 1997,
p. 131.
192
HUME, 2003, p. 74/113.
193
HUME, 2003, p. 148/201, grifo do autor

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numa perspectiva estritamente sensorial.

Por ora, retomemos o procedimento de produção de uma cópia. Ela deve derivar,
em princípio, da experiência de diversas impressões de pares semelhantes de ocorrências. É
importante sublinhar que a cópia obtida conterá, tanto no primeiro como no segundo
membro, conjuntos de pontos representados com maior ou menor frequência, frequência
que corresponderá precisamente àquela com que nossos receptores forem estimulados pelas
impressões dos pares. O aspecto da discussão que deve ser retido é a peculiaridade da
cópia: ela diferenciar-se-á inevitavelmente de todas as impressões particulares de pares. Em
outras palavras, a cópia conterá um padrão de distribuição de pontos em sua constituição
que não poderá ser assimilado totalmente ao padrão de pontos de nenhuma impressão
particular. Na terminologia biológica que adotamos, isto equivale a dizer que a cópia
expressa o padrão de distribuição de pontos quando todos os receptores sensoriais são
estimulados. Isto, é claro, nãoocorre necessariamente em cada impressão particular formada
ao longo da sequência.

Entretanto, é preciso sublinhar que a cópia produzida, segundo a especulação


humiana, ainda não é a ideia de conexão necessária: trata-se apenas da representação da
ligação constante de um grupo determinado de pares de acontecimentos sucessivos e
semelhantes. Reconheço que é sem dúvida sugestivo que pudéssemos alcançar a ideia de
conexão necessária entre causa e efeito a partir de um procedimento clássico de abstração.
Numa palavra, nessa hipótese, poder-se-ia esperar que, abstraindo das diferenças presentes
em diversas cópias representativas de diferentes ligações constantes de espécies distintas de
pares de ocorrências semelhantes e sucessivas, obter-se-ia como resultado a ideia ou
representação de conexão necessária. Esta suposição, entretanto, é absolutamente enganosa
e falsa. Pois as características universais obtidas nesse hipotético processo abstracionista
produziria apenas o primeiro (e provisório) conceito humiano de causa: ―Podemos,
portanto, em conformidade com essa experiência, definir uma causa como um objeto,
seguido de outro, tal que todos os objetos semelhantes ao primeiro são seguidos por

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objetos semelhantes ao segundo”194

A analogia com o modelo de associação em série funciona didaticamente para uma


melhor compreensão do trajeto argumentativo que conduz a essa definição de causa.
Entretanto, mais do que uma mera comparação, de fato, Hume ao final da seção VII
certifica essa orientação, constatando que a ideia de conexão necessária deve ser
derivada da diferença subsistente entre várias impressões de pares de eventos sucessivos e
semelhantes, e cada impressão particular de par de eventos. Ora, tal distinção foi descrita
acima através do procedimento de obtenção da cópia correspondente à representação de
ligação constante. Relativamente ao ponto que nos interessa, a saber, a origem da ideia de
conexão necessária, Hume identifica o discernimento da mencionada diferença a um
―sentimento‖ ou conexão habitual no pensamento: ―Experimentamos então um novo
sentimento ou impressão, a saber, uma conexão habitual, no pensamento ou imaginação,
entre um objeto e seu acompanhante usual, e esse sentimento é o original que estamos
buscando para aquela ideia.‖195.

Precisamente nessa conexão habitual está, portanto, a buscada fonte da ideia de


conexão necessária entre causa e efeito. Com efeito, trata-se de uma ideia cuja formação
depende de diversas experiências de pares de ocorrências semelhantes e sucessivas,
portanto, obtidas em tempos diversos. Em outros termos, a experiência da repetição de
eventos conjugados produz na mente uma expectativa (ou sentimento) assimilável a uma
impressão; nisto consistiria o ―hábito‖:

Essa conexão, portanto, que nós sentimos na mente, essa transição


habitual da imaginação que passa de um objeto para seu
acompanhante usual, é o sentimento ou impressão a partir da qual
formamos a ideia de poder ou conexão necessária196.

194
HUME, 2003, p. 76/115, grifo do autor.
195
HUME, 2003, p. 78/117, grifo do autor.
196
HUME, 2003, p. 75/113-114, grifo do autor.

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Considerações finais

A título de uma conclusão, gostaria apenas de indicar alguns problemas, que não
serão desenvolvidos no presente trabalho197. Refiro-me a determinadas dificuldades da
doutrina de Hume sobre o princípio da causalidade. A primeira delas concerne à própria
natureza da conexão habitual: o texto não deixa claro se essa expressão referir-se-ia a uma
impressão (ou sentimento) que corresponderia à ideia de conexão necessária. E também não
deixa claro como alternativa se, apenas por ocasião da conexão habitual seria produzido um
sentimento, ele próprio constitutivo da origem da ideia em questão. A segunda diz respeito
a uma hipotética contradição, subjacente ao método de associação em série: por qual
motivo deve-se aplicar o procedimento de obtenção da ideia de ligação constante a
impressões formadas a partir de diversos pares de ocorrências sucessivas e semelhantes?
Ora, privilegiar tais impressões no processo de produção da cópia parece já pressupor a
ideia de ligação constante como critério de escolha daquelas. Enfim, se esta crítica faz
sentido, haveria uma espécie de círculo lógicono princípio do próprio procedimento.

197
Sugiro, entretanto, a leitura dos artigos citados na nota 23, que aduzem algumas possibilidades para o
tratamento dessas dificuldades.

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Referências bibliográficas

BELL, M. Hume on Causation. In: The Cambridge Companion to Hume. Cambridge:


Cambridge University Press, 2009.
HESSE, H. Eindrücke und Ideen. Die Funktion der Wahrnehmung (Abschnitt II und III).
In: Klassiker Auslegen – Eine Untersuchung über den menschlichen Verstand. Berlin:
Akademie Verlag, 1997.

HUME, D. Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 1960.

HUME, D. Enquiries Concerning Human Understanding and concerning the


Principles of Morals. Oxford, 1975.
HUME, D. Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da
Moral. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
HUME, D. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

KIENZLE, B. Von der Vorstellung der notwendigen Verknüpfung. In: Klassiker Auslegen
– Eine Untersuchung über den menschlichen Verstand. Berlin: Akademie Verlag, 1997.
KULENKAMPFF, J. Einleitung. In: KULENKAMPFF, J. (org.). David Hume - Eine
Untersuchung über den menschlichen Verstand (Klassiker Auslegen). Berlin: Akademie
Verlag, 1997.

TUGENDHAT. E. Propedêutica Lógico-semântica. Petrópolis: Vozes, p. 131, 1997.

WILLWACHER, G. Fähigkeiten eines assoziativen Speichersystems im Vergleich zu


Gehirnfunktionen. In: Biological Cybernetics 24, p. 181-198, 1976.

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A ÉTICA DA CRENÇA NA ERA DAS FAKE NEWS

Matheus Brum e Darlan Campos


Resumo
Nosso objetivo consistiu em reunir reflexões epistemológicas, éticas e políticas, sobre
os problemas impostos pelas fake news, ao embate público. Construímos nossa análise
balizados pela controvérsia já clássica entre os filósofos W. K. Clifford (―A Ética da Crença‖)
e William James (―A Vontade de Crer‖), bem como de textos contemporâneos de Quassim
Cassam.
Palavras-chave: Crença. Epistemologia. Ética. Fake news.

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1. Introdução

Neste trabalho pretendemos abordar a problemática da crença e principalmente suas


consequências políticas. Para isso, vamos usar como pano de fundo a questão das fake news,
teorias da conspiração, terraplanismo, movimento anti-vacina, MMS, entre outras crenças
falsas, tudo isso visando o debate sobre em que medida é ético crer. Podemos crer sem
evidências? Quais as consequências da crença sem crítica ou investigação? existem crenças
que não podem, ou não devem ser investigadas?
Para resolver essas questões, vamos mover o debate clássico entre Clifford (A ética da
crença) e William James (A vontade de crer). E para complementar a discussão, vamos tratar
sobre alguns vícios epistêmicos descritos por Quassim Cassam.

2. Clifford VS Fake News

Imagine que um indivíduo qualquer, vamos chamá-lo de João, receba uma mensagem
via um aplicativo qualquer, com o seguinte conteúdo: ―foi encontrada a cura para o autismo e
se chama MMS198, este consiste em ser um óleo mineral que cura diversas doenças. Existem
muitos métodos de aplicação deste óleo, caso a criança com autismo não aceite via oral (o que
é comum), é possível fazer a administração via retal o que de fato os médicos indicam como
sendo o mais efetivo‖. Continuando nossa situação hipotética, João fica extremamente
animado com essa mensagem, pois tem um filho autista, ele começa, então, a pesquisar sobre
o MMS e descobre onde comprar, quanto deve ser administrado e até mesmo alguns médicos
indicando o uso do produto. João passa a utilizar o MMS em seu filho, este desenvolve uma

198
Para mais informações indico este breve artigo no site do Dr. Drauzio Varella:
https://drauziovarella.uol.com.br/pediatria/mms-a-perigosa-solucao-que-promete-a-cura-de-doencas/ e
também este vídeo do mesmo: https://www.youtube.com/watch?v=yrVvrSjHE58 [Advertência: produto
milagroso é fake news |Coluna #114]

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série de complicações gastrointestinais, acaba sendo internado em um hospital. João descobre


que na realidade o MMS era algo quimicamente próximo de um desinfetante.

Terminado nosso exemplo, algumas questões cabem ser feitas aqui: João pode alegar
que foi enganado? João tem alguma culpa por ter feito o que fez, mesmo acreditando que isso
seria o melhor para seu filho? Podemos culpar o indivíduo que enviou esta mensagem para
João? João de fato cometeu algum mal moral mesmo tendo uma boa intenção? João de fato
investigou sua crença ou apenas procurou confirmá-la? Para nos ajudar a responder essas
perguntas vamos trabalhar com o texto ―A Ética da Crença‖, uma importante obra
epistemológica, escrita pelo filósofo britânico W.K Clifford. E, sim, João e quem enviou a
mensagem para ele é culpado, mas não só isso, na visão de Clifford, ele cometeu o maior
acinte contra a humanidade, i.e., a crença não justificada, a credulidade e a bobagem.

É razoável dizer que João estava desejando o melhor para seu filho, mesmo que o
resultado tenha sido negativo para este. Podemos pensar: caso nada tenha acontecido com o
menino, ou ainda se ele tivesse de fato se ―curado‖ do autismo, João deixa de ser responsável
por sua atitude? A resposta claramente é não, pois o pai do menino não colocou sua crença
sob investigação, apenas buscou confirmá-la e, para Clifford, mesmo que uma certa ação
decorrida de uma crença não cause nada ou cause algum bem, esse bem nunca é superior ao
mal da credulidade, sobre isso afirma: ―É sempre incorreto, em todo o lado, para qualquer
pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.‖(CLIFFORD, 2010, p.
108). Isso porque o autor entende que uma ação sempre decorre de uma crença, sendo o
contrário falso:

Tão pouco é uma crença aquilo que não influencia de modo algum as ações
de quem o sustenta. Quem verdadeiramente acredita naquilo que o encoraja
a realizar uma ação, contemplou já a ação com um desejo intenso, já a
realizou no seu coração. (CLIFFORD, 2010, p. 103)

Portanto, o problema central é que a crença sem evidências sempre coloca terceiros em
risco, tendo em vista que essa sempre está envolvida em uma ação. Para além disso, por mais

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individual que seja crer, nunca é particular apenas a um homem, mas sempre ao coletivo, pois
uma crença aceita sem indícios é como um pecado contra a humanidade, porque cada homem
possui um dever em precaver que a sociedade seja tomada por falsas crenças. Parece que
Clifford entende a crença como algo fundador da sociedade, algo que permite que nós nos
desenvolvamos no público e no privado, isso fica evidente na seguinte passagem:

As nossas palavras, as nossas expressões, as nossas formas, processos e


modos de pensamento, são propriedade comum, modificados e aperfeiçoados
de época para época; um legado que cada geração sucessiva herda como um
depósito precioso e uma doação sagrada a transmitir a geração seguinte, não
sem modificações, mas alargado e depurado, com algumas marcas distintas
do seu engenho específico. Nisto, para o bem e para o mal se entretece cada
crença de cada homem que partilha a língua de seus semelhantes. É um
terrível privilégio e uma terrível responsabilidade, ajudarmos a criar o mundo
no qual viverão as gerações futuras. (CLIFFORD, 2010, p. 103)

Claro que o caso de João é deveras grave e merece um cuidado redobrado, mas
podemos pensar em casos em que uma crença não afeta negativamente um indivíduo. Por
exemplo, acreditar que homeopatia funciona, que a Terra é plana, ou que alguém se comporta
de uma determinada maneira porque tem um signo tal com um ascendente tal em uma lua tal,
não parece trazer nenhum malefício direto para si ou para coletivo. Seria vil crer sem
evidências nesses casos? Mesmo que essas crenças não exerçam nenhum afronte direto, elas
podem fomentar outros problemas tão graves quanto, a saber, a credulidade que por sua vez
acarreta uma adversidade ainda pior: a bobagem. Isso ocorre pois ―sempre que nos
permitimos acreditar por razões indignas, enfraquecemos os nossos poderes de autocontrole,
de dúvida, de avaliação imparcial e honesta de indícios‖ (CLIFFORD, 2010, p. 106), a partir
disso temos um efeito epidêmico na sociedade:

o mal que a credulidade faz num homem não se limita à estimulação de um


carácter crédulo nos outros e à decorrente defesa de crenças falsas. O hábito
de ser descuidado com aquilo em que acredito leva os outros a serem por
hábito descuidados com a verdade do que é me dito. (CLIFFORD, 2010, p.
107)

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Superficialmente falando, isso parece ser verdade, por exemplo, para aceitar que a
Terra é plana, tenho que aceitar que a gravidade não é tal como os cientistas dizem que ela é,
que o sol não é tal como usualmente acreditamos que ele seja, e que existe um conluio
internacional entre cientistas, políticos, governos, instituições que pretendem esconder essa
verdade dos pobres cidadãos e também que existe uma borda de gelo que circunda toda a
planície. Fora isso, não é difícil encontrar indivíduos que interseccionam crenças
conspiratórias ou falsas. Portanto, uma crença pode, ou causar um mal direto (uma ação) ou
um indireto (um fomento para a credulidade), João parece ter cometido o primeiro mal,
enquanto o indivíduo que o enviou a mensagem parece ter cometido o segundo mal. De
qualquer forma, a partir do momento em que o estado da bobagem é vigente e que a
investigação séria e criteriosa é esquecida, o passo seguinte é o colapso social.

Alguém entrando em contato pela primeira vez com as ideias de Clifford poderia
pensar que temos que adotar uma postura ultra cética e investigar toda crença a todo
momento. Se esse fosse o caso, viver em sociedade seria impossível, aceitamos crenças a todo
o momento, quando faço uma compra, acredito que o vendedor está me cobrando um preço
justo, que a conta em que está o meu dinheiro para fazer o pagamento não é surrupiada pelo
banco, que em uma eleição o meu voto é computado, que em um julgamento o juiz é
imparcial e assim por diante. Logo, é necessário aceitar que o testemunho da autoridade
(banco, Estado, instituições, mercado, universidade, professores, etc.) é válido. Todavia,
segundo Clifford, um testemunho legítimo e passível de crença deve cumprir dois requisitos
básicos: a veracidade e a competência.

O requisito da veracidade é cumprido quando o que é alegado pode ser verificado


pelas pessoas, sem que elas precisem transmutar-se em outra coisa para verificar a alegação.
Por exemplo, quando um astrônomo afirma que a Terra é elíptica, temos motivos para
acreditar nele, pois é possível para a humanidade sem deixar de ser humanidade confirmar
essa afirmação, seja por via de cálculos, seja visualmente. No entanto, se um outro indivíduo
afirma que a Terra é plana, mas nos parece não ser o caso, pois somos seres tridimensionais e

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somente seres quadridimensionais têm a capacidade de apreender o formato da Terra tal como
ele é, não tenho motivos para crer nisso, tendo em vista que é impossível para a humanidade
investigar esse tipo de tese.

O requisito da competência consiste no tanto que a pessoa como testemunha pode


conhecer, tem os meios para conhecer, ou conhece a verdade. Vamos imaginar o debate entre
um astrônomo e um astrólogo, acerca da veracidade da influência dos signos. O astrônomo
tem os meios para aferir essa relação, por meio de cálculos, modelos matemáticos,
observações, etc. O astrólogo possui um mapa astral e a crença corrente de que o efeito de
maré199 pode influenciar até mesmo os menores objetos, coisa que a astronomia nega com
base em estudos empíricos. Segundo Clifford, tenho motivos para acreditar no astrônomo,
mas não no astrólogo. O primeiro, tem os meios para conhecer a verdade e além disso suas
teses serão continuamente revisitadas pelos seus colegas astrônomos. Já o astrólogo, não
dispõe dos meios necessários para investigar sua crença na influência dos signos sobre os
humanos, nem seus colegas astrólogos vão procurar por essa crença em cheque, ou averiguar
em que medida ela é verdadeira, logo não só não tenho motivos para crer nesse testemunho
particular do astrólogo, como em nenhuma dos seus testemunhos subsequentes, posto que, ou
é desonesto, ou não possui os meios necessários para conhecer a verdade e, portanto, qualquer
argumento que porventura venha utilizar provavelmente será incorreto também.

Um interlocutor poderia dizer que a investigação que João fez e o testemunho dos
indivíduos que coletou obedecem, de certa forma, aos dois requisitos, no sentido de que o uso
do MMS é verificável pelo homem e que talvez até alguns médicos indiquem esse tipo de
produto, mas ―[…] nenhuma crença é real a menos que oriente minhas ações, e essas
mesmas ações fornecem um teste de sua verdade.‖ (CLIFFORD, 2010, p. 116). Portanto, ela
não obedece nem um nem outro, pois um conhecimento básico sobre o que de fato é o MMS
(que é praticamente água sanitária), em conjunto com um conhecimento pueril de biologia
deixa claro que não é o caso que esse óleo pode curar qualquer coisa. Além disso, certamente

199
Para saber sobre o que se trata, indico: http://www.if.ufrgs.br/fis02001/aulas/aulafordif.htm

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esse médico não colocou sua crença sob verificação, nem ao menos procurou refutar seus
pares que já descartaram a possibilidade milagrosa do produto. Não podemos chamar o que
João fez de investigação —i.e, ele apenas procurar confirmar sua falsa crença— nem
podemos dizer que o médico que indicou o MMS obedece aos dois requisitos do testemunho:
todo indivíduo que advoga em prol dessa causa é em todo caso desonesto.

2.1 Quassim Cassam, malevolência e descaso

Até aqui, investigamos uma certa postura do indivíduo para a crença, o dever da
investigação e a credulidade como uma espécie de tentação que deve ser negada a todo custo,
sob a pena de danar toda a humanidade ―O que pensar daquele que, por causa de um fruto
doce corresse deliberadamente o risco de trazer uma epidemia à sua família e aos seus
vizinhos?‖ (CLIFFORD, 2010, p. 106). Nesta seção, vamos investigar dois vícios epistêmicos
que são complementares ao que foi exposto na seção anterior, a saber, o descaso epistêmico e
a malevolência epistêmica200. O primeiro também revela uma certa postura do indivíduo, mas
clarifica algo que parece ser anterior à credulidade ou à própria crença, que é simplesmente
não se importar com a verdade ou a falsidade desta; o segundo traz luz a algo que Clifford não
considerou: quando há um interesse em impor falsas crenças ou ao menos dificultar conhecer
a verdade de algo, isto é, um interesse deliberado de um agente do conhecimento em erodir o
conhecimento de outrem. Ao que nos parece, as proposições desses autores, embora apartados
pelo tempo, são complementares. Cassam, parece responder a um anseio mais moderno,
porém, de forma alguma Clifford está desatualizado.

A credulidade envolve a perda endêmica da capacidade de investigação imparcial e de


assimilação dos fatos tais como são, o descaso epistêmico exposto por Cassam parece ser algo
mais fundamental que isso, como se o indivíduo em momento algum se preocupasse com a
veracidade de uma crença, ou melhor, com a crença em si mesma,

200
Optei pela tradução em Português europeu de Desidério Murcho.

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O descaso epistémico é uma postura perante a verdade, as provas ou a


investigação, uma postura que se manifesta na nossa conduta epistémica.
Implica, e é em parte constituída, por uma marcada falta de seriedade
intelectual, e pela leviandade quanto à sustentação das nossas opiniões nos
especialistas ou no que as provas mostram. É uma descontracção ou
indiferença à verdade e à necessidade de basear as nossas opiniões nos factos
relevantes. (CASSAM, 2018)

Embora possam ser assemelhados —credulidade e descaso— existe algo


fundamentalmente diferente entre eles. A credulidade parece ser algo adquirido, como um
vírus que invade nosso sistema com o nosso consentimento. Já o descaso, envolve uma
postura afetiva de desprezo em relação à verdade: ―A falta de interesse no que as provas
mostram é um elemento do descaso epistémico, mas outro dos elementos é em alguns casos o
desprezo. Há desprezo pelos factos, desprezo pelas provas e, no caso de alguns políticos,
desprezo pelo público.‖ (CASSAM, 2018)

Ou de total indiferença em relação à verdade:

Ter um descaso epistémico é ter uma atitude distintiva para com a


investigação; é considerar que a actividade de alargar o nosso conhecimento
por meio de investigações que visam responder a questões é uma labuta
entediante que não merece toda a nossa atenção. Isto faz do descaso
epistémico uma atitude epistémica, uma atitude para com a investigação.
(CASSAM, 2018)

Uma crítica que pode ser feita, em relação ao indivíduo cometer um mal moral nesse
caso, é a seguinte: como é uma postura afetiva em relação a verdade, pode se dizer que o
descaso é um reflexo daquilo que nos importa e, via de regra, não é necessariamente uma
questão de escolha racional se importar com algo. No entanto, se podemos aprender virtudes,
também podemos tentar escapar de nossos vícios. Além disso, o descaso epistêmico não é
uma postura frente a casos particulares e, sim, a investigação ou ao conhecimento em geral,
dessa forma ainda podemos dizer —à luz de Clifford—, que o indivíduo que é indiferente a
verdade comete um mal moral.

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Em um caso mais recente, o presidente Jair Bolsonaro, chamou os dados do Instituto


Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) sobre o desmatamento florestal na Amazônia de
mentirosos, questionou o método de obtenção desses dados e insinuou que Ricardo Galvão,
atual presidente do Inpe, estaria ligado a alguma ONG. O que nós vemos aqui, não parece ser
um exemplo de descaso epistêmico ou de simplesmente negar a investigação séria dos fatos,
mas algo muito mais pernicioso e problemático: a malevolência epistêmica, esta não envolve
uma postura afetiva para com a crença, mas um posicionamento, este diferentemente da
postura é algo adquirido mediante um conjunto de crenças, é algo que se adota ou se rejeita,
Cassam dá o seguinte exemplo:

[…] quando os empiristas declaram que todo o conhecimento factual tem em


última análise de derivar da experiência pode-se considerar que estão
adoptando a política de denegrir pretensões de conhecimento que não
tenham base na experiência. (CASSAM, 2018)
Logo, a malevolência epistêmica envolve uma deliberação, um conjunto de crenças
falsas que pretendem fazer erodir algum conhecimento prévio, por meio de falsas evidências,
detalhes anômalos, ou qualquer outro tipo de estratégia que tente pôr em xeque algo que já é
um fato, ou tem provas suficientes para assinalar isso. Diferentemente do descaso, o malévolo
epistemicamente tem uma preocupação urgente para com as provas e a verdade, justamente
para que possa obstruir sistematicamente a aquisição, manutenção e a divulgação dessas.

Quassim Cassam, em uma palestra recente no Tedx, usa um exemplo didático para
compreendermos melhor a malevolência, exemplo esse que vamos atualizar para nossa
realidade. Imagine que você mora no bairro Rubem Berta em Porto alegre, você tem motivos
para sair de casa e trancar as portas e janelas. E de fato, você se certifica de fazer isso todo
dia, mas por algum motivo um vizinho diz que você não fez isso hoje, que ele viu você saindo
de casa, sem fechar as portas e janelas. A partir disso ele passa a lembrar de raras ocasiões
que você de fato não as fechou. Contudo, você fechou as portas e janelas, você tem a
confiança e o direito de acreditar nisso, mas por um motivo qualquer esse vizinho está
tentando minar a confiança que você tem na sua crença, ele sistematicamente faz você duvidar
de si e planta a dúvida no seu coração. Cassam argumenta que teorias conspiratórias e fake
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news funcionam desse mesmo modo, erodindo a confiança que podemos ter em nossa crença
e plantar dúvidas sobre as certezas de como o mundo funciona, mesmo as mais fundamentais
como nos mostra a recente conferência de terraplanistas que concluiu sobre a não existência
da gravidade201.

O que Bolsonaro está tentando fazer ao criticar os dados do INPE, é justamente isso,
acabar com a confiança em dados estatísticos confiáveis e revisados em prol de um interesse
econômico escuso.

Agora nós podemos nos perguntar novamente, João realmente cometeu um mal moral
ao acreditar no MMS? Obviamente os médicos que indicam este produto e as pessoas que o
vendem são malévolas epistemicamente. João poderia argumentar que foi tolhido de sua
confiança e que por isso agiu daquele modo? Parece que há pelo menos um caso em que João
pode advogar em favor de sua inocência. Caso esses indivíduos que vendem o MMS se
aproximassem de João e o bombardeassem com informações sobre este produto e João não
possuísse nenhuma maneira de investigar, ou mesmo duvidar da veracidade dos efeitos deste
óleo, então poderíamos dizer que João realmente foi enganado e que não cometeu um mal
necessariamente, mas dificilmente é o caso em que não temos nenhum meio de investigar
algo, seja pela internet, confiando no testemunho de outra pessoa, ou pela própria experiência
empírica. Todavia, ainda podemos dizer que se não se tem os meios para investigar a
veracidade de algo, tampouco deve-se acreditar nesse algo. Há, no entanto, quem se oponha à
tese segundo a qual ―é sempre errado, em toda parte, e para qualquer pessoa, acreditar em
qualquer coisa com base em evidências insuficientes‖ e é isso que veremos com a tese
fideísta de William James.

3. James e o fideísmo

201
https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,convencao-de-terraplanistas-define-que-gravidade-nao-
existe,70002291629

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William James em seu artigo ―A vontade de crer‖ têm um intuito um pouco mais
modesto do que o de Clifford. Enquanto seu adversário busca oferecer uma regra geral pela
qual as crenças devem ser regidas, James busca mostrar que o escopo das crenças legítimas é
maior do que o que fora defendido por Clifford. Desse modo, a argumentação é começada
buscando tornar claro que algumas crenças têm apelo a nós, i.e, são, para nós, passíveis de
serem acreditadas, enquanto que outras não. Para tanto, James nos dá como exemplo a
chamada aposta de Pascal:

Nos pensamentos de Pascal, há uma célebre passagem conhecida na


literatura como a aposta de Pascal. Nela, ele tenta nos convencer a adotar o
cristianismo argumentando como se nossa preocupação com a verdade se
assemelhasse a nossa preocupação com as apostas num jogo de azar.
Traduzidas livremente, suas palavras são as seguintes: é preciso acreditar ou
não acreditar que Deus existe —o que você faria? sua razão humana não
pode dizer. Entre você e a natureza das coisas está acontecendo um jogo que,
no dia do juízo dará cara ou coroa. Pese quais seriam seus ganhos e suas
perdas se você apostasse tudo o que tem na cara, ou na existência de Deus:
se você ganhar nesse caso, o prêmio será a beatitude eterna; se perder, não
perderá absolutamente nada. Se houvesse uma infinidade de chances e
apenas uma para Deus nessa aposta, ainda assim seria aconselhável apostar
tudo em Deus, pois, embora certamente você se arriscasse a uma perda finita
por esse procedimento, qualquer perda finita é razoável, mesmo uma perda
certa é razoável, caso haja uma mínima possibilidade de ganho infinito.
(James, 2001)

A ideia de Pascal retratada por James é, de modo resumido, a seguinte: é necessário


que você escolha entre acreditar ou não na existência de Deus. Se ele existir, você tem uma
recompensa infinita, ou seja, a graça eterna e tudo o que há de melhor no pós-vida, enquanto
que, se ele não existir, você tem uma perda irrisória, isto é, você perdeu seu tempo
acreditando em fábulas e enganou-se (como tantas outras vezes). Assim, seria muito mais
razoável acreditar em Deus do que não acreditar, uma vez que qualquer perda ínfima é
aceitável diante da mera possibilidade de um ganho infinito.

Agora imagine que algum turco aborde um argentino fazendo tal proposta, a saber, a
proposta de receber a graça eterna e tudo o que há de melhor no pós-vida, a fim de que o

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argentino acredite, por exemplo, no deus Mahdi202. Nesse caso, o argentino, se não houvesse
alguma ascendência turca em sua família, muito provavelmente não sentiria qualquer apelo
pela ideia de crer em Mahdi, uma vez que a hipótese da redenção pelo Deus pregado pelo
islamismo é, para ele, uma hipótese morta, isto é, não há nele nenhuma tendência a agir com
base nela. Assim, se é o caso que a vividez de uma hipótese depende do pensador individual,
então, a discussão sobre manter uma crença por nossa própria vontade parecerá simplesmente
tola203, uma vez que estamos constantemente determinados por uma série de fatores
(psicológicos, sociais, etc) que delimitam quais as crenças que nos serão vivas, de tal sorte
que nos será impossível descobrir por nossa vontade, quais hipóteses são relevantes.

O exemplo dado poderia nos levar a concluir que Clifford estava correto ao concluir
que ―é sempre errado, em toda parte, e para qualquer pessoa, acreditar em qualquer coisa
com base em evidências insuficientes‖ pois, se buscássemos evidências para as crenças que
mantemos, reduziríamos o risco de nos deixar levar por coisas tais como nossas contingências
psicológicas e sociais. Por exemplo, se nos puséssemos a investigar se há algum Deus, ou
ainda, se há algum, qual Deus é mais digno de ser crido, nos distanciaríamos destes vieses
(i.e, das contingências psicológicas e sociais) que por vezes envenenam as nossas crenças.
Desse modo, seria bastante razoável concordar com Clifford e comprar a ideia segundo a qual
nenhuma crença pode ser correta a menos que passe por uma investigação fria que busque
evidências para a sustentação daquela crença. Não obstante, diz James, há certas crenças que
todos nós mantemos e diversas ações que realizamos sem que tenhamos justificação para
tanto.

O primeiro movimento propriamente argumentativo de James consiste em mostrar que


no caso das verdades dependentes da nossa ação pessoal, a fé baseada na vontade é
indispensável. Por exemplo, se um homem apaixonado que busca conquistar uma pessoa não

202
―Na escatologia islâmica, o mahdi (em árabe, ―aquele que é guiado por Deus‖) é o libertador
messiânico que virá no fim dos tempos para restabelecer a justiça e a equidade no mundo, restaurar a verdadeira
religião e a pureza dos costumes e anunciar uma breve idade de ouro, que durará entre sete e nove antes antes do
fim do mundo‖ 2001, p.9.
203
IDEM. p.16.
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está devidamente justificado —tal como exigiria Clifford— a declarar-se para ela, ainda seria
lícito que ele assim o fizesse, uma vez que o fato de que a pessoa para a qual o homem se
declarou ter sido conquistada, depende que esse homem tenha fé no êxito de sua investida.
Poderíamos pensar também em outro exemplo que torna um pouco mais clara a ideia segundo
a qual certos fatos dependem da fé para se concretizarem. O exemplo pode ser encontrado em
um filme lançado em 2019: ―It – Capítulo Dois‖, baseado no romance de Stephen King, onde
em um dado momento da trama os personagens precisam derrotar o monstro Pennywise e,
depois de grande dificuldade, um deles arranja uma lança, enquanto isso, seu companheiro
exclama que a lança encontrada é capaz de matar monstros, mas apenas sob a condição de que
se acredite que a lança mate monstros. Assim, neste caso, a morte de Pennywise pela lança
que foi encontrada depende, em última instância, que o indivíduo que vai manuseá-la acredite
que ela seja capaz de matar monstros.

Nesse momento, já nos é pertinente enunciar a tese fideísta de James, ela é como se
segue:

Nossa natureza passional não só pode, como deve, licitamente decidir-se por
uma opção entre proposições sempre que esta for uma opção genuína que
não possa, por sua natureza, ser decidida sobre bases intelectuais; pois dizer,
nessas circunstâncias: ‗não decida, deixe a questão em aberto‘ é, por si só,
uma decisão passional —assim como decidir sim ou não— e acompanha-se
do mesmo risco de perder a verdade.204

Antes de discuti-la, é preciso elucidar o que significa ser uma opção genuína. Assim,
pode-se dizer que uma opção é genuína sempre que ela é i) viva, ii) forçosa e iii) tentadora.
Uma hipótese é viva sempre que ela corresponde a uma possibilidade real para a pessoa a
quem ela é proposta. Como vimos no caso do homem que é exposto à proposta de crer no
Deus Mahdi, existem uma série de fatores que interferem na vivacidade das hipóteses as
quais ele é exposto, certamente algumas delas são o seu contexto cultural e familiar, sua
disposição psicológica e suas preferências, de tal modo que, como ficou evidente no começo

204
JAMES, 2001, p.22.
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da discussão, uma vez que o homem em questão é um argentino, muito provavelmente a


proposta é morta para ele, isto é, acreditar em Mahdi não corresponde a uma possibilidade
real para aquele homem. Nesse caso, em particular, se um padre da igreja católica o fizesse
uma proposta semelhante, certamente esta nova hipótese teria para aquele homem muito mais
vivacidade, uma vez que o catolicismo é a religião dominante em seu país.

Passando para o critério seguinte, a exigência de (ii) consiste em requerer que a opção
seja do tipo exaustivo, i.e, quando não há qualquer outra opção para além das oferecidas, tal
como vimos na exposição da primeira premissa da aposta de Pascal: ―é necessário que você
escolha entre acreditar ou não na existência de Deus‖, dito de outro modo, não há uma
terceira opção para além de ―acreditar‖ e ―não acreditar‖ na existência de Deus, dado que
―acreditar‖ e ―não acreditar‖ são termos contraditórios, portanto, é necessário que se escolha
uma e somente uma das opções. E, por último, o critério segundo o qual a opção precisa ser
tentadora: uma opção é tentadora sempre que o que ela representa tem alguma relevância, e
esta relevância não é relativa. Por exemplo, se lhes oferecerem uma passagem para visitar o
planeta marte, trata-se evidentemente de uma opção tentadora.

James defende que quando estamos diante de uma opção genuína em que o uso da
razão não é capaz de decidir o que é melhor a ser feito, estamos autorizados a agir de acordo
com nossa vontade. Há uma distinção operando de modo tácito no trecho, entre aqueles
assuntos que podem ser resolvidos sobre bases intelectuais —i.e por meio da razão— e
aqueles que não podem. Ora, ser insondável pelas vias intelectuais é uma condição necessária
para que a vontade seja determinante numa certa decisão, desse modo, é imprescindível, para
James, que existam decisões cuja razão sozinha seja incapaz de tomar. Desta maneira, James
tem em mira a fé religiosa, esta que para ele, é absolutamente legítima, muito embora Clifford
não assim a considere, uma vez que não se tem evidências que justifiquem —de maneira
sólida e segundo os frios critérios cliffordianos— a crença em Deus, donde surge o
desconforto de James com a tese de Clifford, i.e, do fato de as crenças religiosas, embora
lícitas, não passem pelo critério que fora proposto. No entanto, apesar de tomar a fé religiosa

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como legítima e um assunto sobre o qual a razão não tem poder decisivo, James acaba por não
mostrar razões pelas quais isso deve ser o caso. Quanto ao trecho: ―não decida, deixe a
questão em aberto‘ é, por si só, uma decisão passional —assim como decidir sim ou não—
‖205

É assumido que suspender o juízo em alguns tipos de decisões é uma reação passional
daqueles que têm um profundo medo de se enganarem. James os compara com ―um general
informando seus soldados que é melhor manter-se para sempre fora de batalha do que se
arriscar a um único ferimento‖206; para James, não há nada de tão perigoso no engano que a
possibilidade de ganhar a verdade não se sobressaia —aqui, certamente fazendo uma
referência à aposta de pascal— e, por fim, no que se segue imediatamente, é enfatizado o
caráter contingente de algumas decisões quanto à verdade. Por exemplo, um agnóstico
cliffordiano, ao restringir-se à suspensão de juízo em assuntos religiosos por não haver
evidências suficientes para a crença em Deus, está numa situação bastante razoável se o que
ele pretende é evitar o engano, isto é, evitar uma crença falsa. Porém, supondo que a religião
seja, como acredita James, um assunto sobre o qual a razão é insuficiente para lidar e que o
critério oferecido por Clifford é inteiramente tributário do uso da razão, é impossível para
aquele agnóstico ter uma experiência religiosa.

Considerações Finais

Vimos a conhecida querela entre Clifford e James, discutimos a posição desses


filósofos a partir de dois exemplos, além disso, mostramos as dificuldades de cada uma das
posições. Também fizemos uma incursão, com a ajuda dos textos de Cassam, numa
caracterização dos agentes epistêmicos que cometem os delitos morais que descrevemos. A
partir disso, exploramos o exemplo de um indivíduo que parece satisfazer as condições de um

205
IDEM.
206
IBID. p. 32-33
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agente com disposição moral viciosa. E por fim, vimos como os restritivos critérios
cliffordianos limitam certos aspectos próprios da vida humana, e tomamos como exemplo
disso, a experiência religiosa. Ademais, é digno de nota que embora esses autores tivessem se
enganado quanto à mais correta caracterização dos critérios que eles defendem, o maior valor
de seus trabalhos —assim como o deste trabalho— estaria em mostrar, ao leitor
comprometido em agir corretamente, algumas situações em que a reflexão sobre as crenças é
exigida; não obstante, parece que teorias éticas não podem vislumbrar mais do que isso.

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Referências bibliográficas

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em: <https://criticanarede.com/descaso.html>. Acesso em: 26 jul. 2019.

CASSAM, Quassim. Epistemic Insouciance. Journal Of Philosophical Research, [s.l.], v.


43, p.1-20, 2018. Philosophy Documentation Center.
http://dx.doi.org/10.5840/jpr2018828131. Disponível em:
<https://www.pdcnet.org/8525737F00583637/file/57470D980359184D85258316006B0C15/$
FILE/jpr_2018_0043_0000_0005_0024.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2019.

CLIFFORD, William. A ética da crença. In: MURCHO, Desidério (ed.). A ética da crença.
Lisboa: Editora Bizâncio, 2010. p. 97—136.

HOLLINGER, D.A. James, Clifford and the scientific conscience. In: PUTNAM, Ruth Anna
(ed.). The Cambridge companion to William James. Cambridge: Cambridge University Press,
2005. cap. 4, p. 69-83. E-book(398 p.).

JAMES, William. A vontade de crer. Edições Loyola, 2001. 50p. ISBN 85-15-02252-4.

PARAGUASSU, Lisandra. Bolsonaro vê 'psicose ambiental' e diz que Inpe divulga dados
'mentirosos' sobre desmatamento. Extra. Rio de Janeiro, 19 jul, 2019.Disponível
em:<https://extra.globo.com/noticias/brasil/bolsonaro-ve-psicose-ambiental-diz-que-inpe-
divulga-dados-mentirosos-sobre-desmatamento-23819131.html>. Acesso em: 29 jul, 2019.

TEDXTALKS. Conspiracy Theories and the Problem of Disappearing Knowledge. 2017.


(17M 43S). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=h-eQ2bR1HFk>.
Acesso em: 27 jul. 2019.

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GENEALOGIA FILOSÓFICA OU O FILÓSOFO COMO MÉDICO DA


CIVILIZAÇÃO: UMA REFLEXÃO ACERCA DAS RELAÇÕES DE PODER EM
FOUCAULT E RANCIÈRE SOB A LUZ DA GENEALOGIA DE NIETZSCHE

Carlos Eduardo da Silva Rocha

Resumo
Este artigo tem a intenção de estabelecer um paralelo entre as relações de poder nas obras A
Verdade e as Formas Jurídicas de Michel Foucault e O Mestre Ignorante: cinco lições sobre
a emancipação intelectual de Jaques Rancière. Para tanto, o artigo usará como base para
estabelecer esse paralelo a genealogia Nietzschiana. A proposta deste artigo é apresentar a
tese do filósofo genealogista como o médico da civilização, pois o genealogista examina
sociedade e lhe dá seu diagnóstico. Nietzsche foi o primeiro a diagnosticar a sociedade de
forma genealógica através de sua tese de uma moral nobre e uma escrava e mostraremos aqui
como ele abriu o caminho para filósofos como Foucault e Rancière realizarem seus próprios
diagnósticos, pois onde houver controle sobre os corpos ou o embrutecimento das
inteligências, haverá relações de poder para serem diagnosticadas.

Palavras-chave: Genealogia, moral, poder, relação.

Abstract
This article intends to establish a parallel between the power relations in the works ―Legal
Truths and Juridical Forms‖ by Michel Foucault and ―The Ignorant Schoolmaster: five
lessons in intellectual emancipation‖ by Jaques Rancière. To this end, the artical will use
Nietzschean genealogy as a basis for establishing this parallel. The purpose of this article is
to present the thesis of the genealogist philosopher as the doctor of civilization, since the
genealogist examines society and gives it its diagnosis. Nietzsche was the first to diagnose
society in a genealogical way through his thesis of a noble and a slave morals and we will
show here how he opened the way for philosophers like Foucault and Rancière to make their
own diagnoses, because wherever there is control over the bodies or wherever the
intelligences are hardened, there will be power relations to be diagnosed.

Keywords: Genealogy, morals, power, relation.

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I. Introdução: a genealogia como martelo nos valores, em Nietzsche


Como surgiram nossos valores morais? Nossos conceitos de bom e de mau?
É sobre a emergência desses valores que Nietzsche se debruça em sua Genealogia da Moral:
uma polêmica. Porém, a genealogia de Nietzsche não é uma mera busca pela emergência dos
valores morais, mas uma ruptura com a metafísica e ao apoio que a moral deu à metafísica.
Em sua obra, o filósofo entra em um embate com os psicólogos ingleses
que, segundo Nietzsche, erraram ao considerar que as ações não egoístas eram boas e
louvadas por aqueles as quais eram feitas, mas que, no entanto, com o esquecimento da
origem do louvor, as ações não egoístas como, pelo fato de serem consideradas boas, foram
sentidas como boas como se, em si, isso fosse bom. Como podemos ver nas palavras do
próprio filósofo:
O caráter tosco de sua genealogia da moral se evidencia já no início, quando
se trata de investigar a origem do conceito de juízo de ―bom‖.
―Originalmente‖ _ assim eles decretam _ ―as ações não egoístas foram
louvadas consideradas boas por aqueles aos quais foram feitas, aqueles aos
quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do louvor, e as ações
não egoístas, pelo fato de terem sido costumeiramente tidas como boas,
foram também sentidas como boas _ como se em si fossem algo bom‖ Logo
se percebe: esta primeira dedução já contém todos os traços típicos da
idiossincrasia dos psicólogos ingleses _ temos aí ―a utilidade‖, ―o
esquecimento‖, ―o hábito‖ e por fim ―o erro‖, tudo servindo de base a uma
valoração da qual o homem superior até agora teve orgulho como se fosse
um privilégio do próprio homem. (NIETZSCHE, 1998, pp. 18-19)
Como podemos ver nas palavras do filósofo, os psicólogos ingleses erraram
ao conceberem as ações não egoístas como algo bom em si, como se fosse um privilégio para
o homem. Porém, para Nietzsche, esse orgulho deve ser humilhado207 e essa valoração
desvalorizada, pois o conceito de ―bom‖, segundo o filósofo, não foi feito aos quais se fez o
―bem‖, ao contrário, foram os nobres, os poderosos que cunharam o ―bom‖ aos seus próprios
atos se opondo a tudo aquilo que eles, os nobres, consideraram baixo e vulgar, ou seja, os
valores nasceram do que Nietzsche chamou de ―páthos da distância‖ e foi através desse

207
NIETZSCHE, Genealogia da Moral: Uma polêmica. São Paulo. Edições Loyola, 1998, p. 19

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páthos que os nobres, em seu pedestal, ou como coloca o filósofo, em sua ―estirpe
senhorial‖208 deram origem aos valores morais e aos conceitos de ―bom‖ e ―ruim‖.
Como observam Eizirik e Trevisan209as palavras ―esquecimento‖ e
―utilidade‖ estão enraizadas nos conceitos de ―bom‖ e ―ruim‖. Segundo os autores, Nietzsche
aponta que a utilidade está na raiz da constituição do ―bom‖, ou seja, o útil se liga ao bom
como se essa ligação fosse verdadeira em si e a contribuição de Nietzsche mostra como essa
teoria é simplista e não abrange a profundidade do assunto. Os autores apontam que,
etimologicamente, ―bom‖ vem do ―nobre‖, ―aristocrático‖ sendo paralelo àquilo que é
―plebeu‖, ―comum‖, ―baixo‖ que, por sua vez, irá se transmutar no ―ruim‖. Diante dessa
teoria simplista e pobre, Nietzsche usa sua genealogia como um martelo nos valores morais
afim de causar uma transvaloração entre o ―bom‖ e o ―ruim‖ entre uma moral ―nobre‖ e uma
―escrava‖. Quanto a essa transvaloração buscada por Nietzsche vejamos a seguinte passagem
da Genealogia da Moral:
A rebelião escrava começa quando o próprio ressentimento se torna criador e
gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira
reação, a dos atos, e que por apenas uma vingança imaginária obtém
reparação. Enquanto a triunfante moral nobre nasce de um triunfante Sim a
si mesma, já de início, a moral escrava diz Não a um ―fora‖, um ―outro‖, um
―não-eu‖ – e esse Não é seu ato criador. Essa intenção do olhar que
estabelece valores _ esse necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se
para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer,
para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua
ação é no fundo reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele
age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si
mesmo com ainda júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o ―baixo‖,
―comum‖, ―ruim‖, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em
relação ao conceito básico e positivo, inteiramente perpassado de vida e
paixão, ―nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes!‖ (NIETZSCHE,
1998, pp. 28-29)
Como podemos ver na passagem acima, Nietzsche, com sua filosofia do
martelo, chega à gênese do que classificou como a moral nobre e a moral escrava, sendo que

208
NIETZSCHE, Genealogia da Moral: Uma polêmica, São Paulo. Edições Loyola, 1998, p. 19
209209
EIRIZIK e TREVISAN, Da Genealogia da Moral à Moral do Ressentimento: a crueldade dos bons
costumes, In: Psicologia, Ciência e Profissão. Vol.26, n.3, pp.360-367, 2006. p. 3.

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a moral nobre é aquela que a escrava considera como inferior, pois a moral escrava, que se
coloca como aquilo que é ―bom‖, na verdade tem medo de dizer ―Sim a si mesma‖, ou seja, a
moral escrava, em sua ilusão de nobreza, tem medo de ser livre, tem medo de agir, pois sua
ação é uma reação. Aqui o filósofo chega a um conceito muito importante de sua análise: o
ressentimento. O ressentimento para Nietzsche, como aponta Reale e Antisere210, está na base
da moral dos escravos, que se travestem de ―valores morais‖ para velar seu ódio e desprezo
por tudo aquilo que é belo, feliz e livre, ou seja, o ressentimento é o que define a moral
escrava, pois o ressentido é aquele que não tem a coragem de dizer Sim a si mesmo. Com sua
genealogia, Nietzsche faz uma verdadeira transvaloração, mostrando que aquilo que se
apresentava como puro, casto e ordeiro é, na verdade, feio, podre e caótico e que busca impor
sua vontade sórdida sobre tudo aquilo que é belo, livre e verdadeiramente nobre. Como
lembra Juan Salabert,211 o senhor instaura, ao passo que o escravo deforma, o escravo nega a
interpretação do senhor por ser um reflexo de si mesmo e, ao negar aquilo que é
verdadeiramente nobre, o escravo nega a existência do senhor e dos valores que ele carrega.
Em sua reação, o escravo tenta limitar a ação do senhor, negando, em seu ressentimento, a
liberdade da moral nobre. Salabert aponta que212 ―mau‖ abrange o conjunto das virtudes
nobres como, por exemplo, a luta, força e atividade, pois estas virtudes estão ausentes no
escravo. O autor continua observando que, segundo Nietzsche, esta inversão de valores se deu
quando casta sacerdotal impôs sua vingança via cristianismo, através de uma moral de reação
210
REALE, ANTISERE, História da Filosofia, vol. 6, De Nietzsche à Escola de Frankfurt. Trad. Ivo
Storniolo. São Paulo. Paulus, 2005. P. 10.
211211
SALABERT, J. M. A moral do nobre e a do escravo como formas arquetípicas de interpretação em
Nietzsche. In; Enunciação: Revista de Filosofia da UFRRJ, Seropédica, vol. 1 n. 1, pp. 101-107. 2016.
Disponível em http://www.editorappgfilufrrj.org/enunciacao/index.php/revista/article/viewFile/21/24. Acesso
em 2020. p. 104.
212
SALABERT, J. M. A moral do nobre e a do escravo como formas arquetípicas de interpretação em
Nietzsche. In; Enunciação: Revista de Filosofia da UFRRJ, Seropédica, vol. 1 n. 1, pp. 101-107. 2016.
Disponível em http://www.editorappgfilufrrj.org/enunciacao/index.php/revista/article/viewFile/21/24. Acesso
em 2020. p. 105.

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que coloca a vida em função do negativo, como podemos ver na seguinte passagem Mauro
Sousa:
Essa história da vingança sacerdotal perdurou via cristianismo e, após dois
mil anos, continua imperando. É uma moral que estabeleceu, uma moral
religiosa. O ressentimento tornou-se criador e gerou o oposto. É uma moral
de reação, de reação como a própria vida como vigorosa. É uma moral
pálida, mas que se fortalece como vampira da vida e colocando a vida em
função de tudo o que é negativo, um negativo que essa moral criou. (...)
(SOUSA, 2014, p. 36)
Como vemos nas palavras de Sousa, a classe sacerdotal, através do
cristianismo cria uma moral religiosa que trai os valores da nobreza guerreira em prol de um
ressentimento que não alcança a pureza e a coragem de dizer o Sim a si mesma. Mas por que
o ressentimento? Por que a moral escrava tenta rebaixar os valores da moral nobre? A
resposta é simples, para tentar estabelecer seu poder. O ressentimento da moral escrava leva à
uma tentativa de estabelecer seu poder sobre a moral dos senhores, para controlar aquilo que a
moral escrava odeia, ou seja, a liberdade, a força e a ação. A dicotomia senhor e escravo na
genealogia Nietzschiana mostra uma clara relação de poder onde uma classe que, travestida
de pura e bela, tenta, a todo o custo, controlar e oprimir aquilo que é realmente belo e livre.
No entanto, embora o ressentimento possa ofuscar, a moral nobre, aquilo que é de fato forte,
ativo, belo e livre nunca poderá ser controlado pelo feio, covarde e ressentido.
Portanto, Nietzsche, em sua investigação da emergência dos valores morais,
chega à conclusão da existência de uma moral nobre forte, ativa, bela e livre capaz de dizer
Sim a si mesma, ao contrário da moral escrava que escondida detrás de uma máscara de
nobreza esconde seu ressentimento e seu ódio por tudo que é belo e bom. Mas, além disso, em
sua investigação genealógica, o filósofo descobriu uma verdadeira relação de poder na qual a
moral escrava, por meio de seu ressentimento, tenta ofuscar e rebaixar os verdadeiros
senhores, afim de impor a mediocridade de moral escrava sobre a beleza da moral nobre, mas
assim como a filosofia de Nietzsche é um martelo que bate com força, a beleza da moral
nobre também golpeia com a mesma força a moral escrava que, por mais que tente, nunca irá
ofuscar aquilo que é belo e bom.

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No entanto, qual a extensão da influência que a genealogia de Nietzsche


teve na filosofia posterior? Como a noção de uma moral nobre e uma moral escrava
influenciaram a forma como os filósofos, depois de Nietzsche, conceberam as relações de
poder? Será possível estabelecer um paralelo entre as teorias, acerca das relações de poder, de
Michel Foucault e Jaques Rancière sob a luz da genealogia Nietzschiana? Encontrar esse
paralelo será nossa jornada neste artigo.

II. O sequestro e o controle dos corpos, em Foucault


Como diz Michel Foucault ao final de sua primeira conferência de A
213
Verdade e as Formas Jurídicas, sua intenção é mostrar que as condições políticas e
econômicas não são um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas sim aquilo do que se
formam os sujeitos de conhecimento e as relações de verdade.
Em sua pesquisa acerca do sujeito de conhecimento e das relações de
verdade, Foucault aponta que214 o próprio sujeito de conhecimento e a própria verdade têm
uma história. Assim, o filósofo francês divide sua pesquisa em três eixos: 1) a história dos
domínios do saber em relação as práticas sociais, excluindo um sujeito de conhecimento
definitivamente dado; 2) a análise do discurso como jogo estratégico e polêmico; 3) Teoria do
sujeito reelaborada. Para fundamentar sua pesquisa, Foucault toma como base a insolente
desenvoltura de Nietzsche, na qual o filósofo afirma que o conhecimento é uma invenção.215
Como coloca Foucault, quando Nietzsche diz ―invenção‖, ele o faz em oposição à ―origem‖,
ou seja, ele opõe Erfindung à Ursprung, oposição essa que ocorreu, como aponta o próprio
Nietzsche, quando um animal inteligente, em um determinado ponto do tempo e em um

213
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 27.
214
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. pp. 8-9.
215
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 14.

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determinado lugar inventaram o conhecimento. Uma das evidências observadas por Foucault
acerca do conhecimento ser uma invenção está na poesia216, mostrando que, para Nietzsche,
não há origem na poesia, pelo contrário ela foi inventada no momento que alguém teve a ideia
de usar propriedades rítmicas ou musicais da linguagem para falar. Mas, por que Foucault
levanta a questão da invenção em Nietzsche? Qual a relevância da poesia ter sido uma
invenção? Ora, Foucault levanta a questão da invenção em Nietzsche para mostrar que
Erfindung nasce de uma relação de poder. Dizer que a poesia foi inventada é afirmar que ela
nasce através de obscuras relações de poder que, para Nietzsche, é, por um lado uma ruptura e
por outro algo que possui um começo mesquinho. Vejamos as palavras de Foucault acerca da
concepção nietzschiana do conhecimento como invenção:
O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer
que não tem origem. É dizer de maneira mais precisa que, por mais
paradoxal que seja, que o conhecimento não está em absoluto inscrito na
natureza humana, no apetite humano, no instinto humano, algo como um
germe do conhecimento. (FOUCAULT, 2000, p. 16)
Como vemos nas palavras de Foucault217, para Nietzsche, o conhecimento
não está inscrito na natureza humana, isto é, ele não tem origem, o que significa que foi
inventado. Foucault lembra que, para Nietzsche, o conhecimento tem relação com os
instintos, mas não esta presente neles, muito menos ser um instinto, já que o conhecimento é
o resultado de um jogo, ou seja, ele é o efeito dos instintos que estão em confronto entre si,
ele é ―uma centelha entre duas espadas‖218. Mas o que significa dizer que o conhecimento é o
resultado de um embate? Significa que o conhecimento é o resultado de uma relação de
poder. É nessa medida que Foucault se aproxima de Nietzsche, em especial de sua
genealogia, para mostrar que o conhecimento não tem origem, que ele é Erfindung e não

216
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 15.
217
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 16-17.
218
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 17.

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Ursprung, ou seja, estabelece-lo como uma relação de poder, mostrando que no


conhecimento não há amor, mas ódio, que não há unificação, mas um sistema precário de
poder.219 Foucault pretende, ao se aproximar da genealogia de Nietzsche, mostrar que, para
saber o que é o conhecimento, é preciso se aproximar não dos filósofos, mas dos políticos, já
que filósofos como Spinoza, conceberam o conhecimento como uma adequação, uma unidade
e o conhecimento não é uma harmonia, mas o resultado de um feroz duelo entre os instintos.
O conhecimento não é uma beatitude, mas uma fagulha, uma invenção.
Ao se aproximar da genealogia nietzschiana, Foucault busca fortalecer suas
pesquisas acerca das relações entre saber e poder e mostrar que os sujeitos de conhecimento e
as relações de verdade se formam através das condições políticas de existência220, ou seja,
Foucault quer mostrar que o conhecimento não é algo que existe em si, mas que é, sim, fruto
de uma relação de poder. Como diz o próprio Nietzsche:221 ―Abstenham-nos, senhores
filósofos, dos tentáculos das noções contraditórias tais como razão pura, espiritualidade pura,
conhecimento em-si‖, Nietzsche quer dizer que não há uma essência do conhecimento, mas
que ele é um resultado histórico, resultado este que Foucault interpreta como uma invenção, o
fruto de uma relação de poder.
Assim, Michel Foucault, ao se aproximar da genealogia de Nietzsche, o faz
para mostrar que o conhecimento não é algo que existe em si, não é Ursprung, mas sim
Erfindung, o que significa que o conhecimento não está inscrito na natureza humana, ele não
tem origem, pois é uma invenção, é resultado do embate entre os sentidos. Ao se aproximar
de Nietzsche, Foucault mostra que o conhecimento nada mais é que uma relação de poder
onde não impera a harmonia e o amor, mas sim a luta e o ódio. Porém, talvez possamos dizer

219
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 22.
220
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 27.
221
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 24.

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que o melhor exemplo de uma relação de poder na obra de Foucault está no Panopticon e no
sequestro dos corpos promovido pelo panoptismo.
Em sua pesquisa acerca das relações entre saber e poder, Michel Foucault
chega ao que ele denominou de sociedades disciplinares. O filósofo divide sua pesquisa em
três princípios fundamentais:222 O primeiro princípio é o que qualifica o crime no sentido
penal, o crime deixa de ser algo ligado à moral ou religião e passa a ser uma ruptura com a
lei, o que significa que para existir infração, antes é preciso que exista uma lei; o segundo
princípio rege que a lei penal tem que ser útil para a sociedade; o terceiro princípio, como
coloca Foucault, deriva dos dois primeiros e define o crime como ―um dano social‖, o seja,
algo que fere a paz social. Nasce, assim, como aponta o filósofo a figura do criminoso 223 e
com ele a primeira instituição pedagógica, isto é, a prisão. Foucault observa que o criminoso é
―o inimigo social‖224 é aquele que, através de sua contravenção rompe a estabilidade social,
devendo a lei reparar esse dano. Foucault mostra225 como a prisão não se enquadra no projeto
teórico da reforma da penalidade do séc. XVIII, pois ela não busca o que é socialmente útil,
mas sim adequar-se ao indivíduo, ou seja, busca o total controle comportamental.
Com o advento da prisão como instituição pedagógica, surge a noção de
periculosidade226 onde o indivíduo é concebido, não por seus atos, mas por sua virtualidade.
Virtualidade significa simulação, isto é, uma ilusão que se sabe que é uma ilusão, o que
significa que na instituição da prisão o controle é exercido sobre o comportamento do

222
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 80-81.
223
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 81-82
224
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 81.
225
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 84.
226
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 85.

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indivíduo, visando prever e conter aquilo que ele pode vir a cometer. Assim, como é apontado
227
por Foucault, o controle passa a ser exercido pela divisão dos três poderes formulados por
Montesquieu: judiciário, executivo e legislativo e por vários outros ―poderes laterais‖ que
estão à margem da justiça como a polícia, instituições pedagógicas, a escola, o hospital etc.
Estes ―poderes laterais‖ são as instituições pedagógicas que vão exercer o controle sobre o
comportamento dos indivíduos a nível de suas virtualidades. Essa é, como expõe Foucault, a
idade da ortopedia social, ou melhor, a idade do controle social, onde o indivíduo é adequado
às regras do pacto social. Esta é a sociedade que tem, como seu símbolo máximo, o
Panopticon.
Quanto ao Panopticon diz Foucault:
Uma forma de arquitetura que permite um tipo de poder do espírito sobre o
espírito; é uma espécie de instituição que vale para escolas, hospitais,
prisões, casas de correção, hospícios, fábricas, etc. (...) O Panopticon é a
utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade
que atualmente conhecemos _ utopia que efetivamente se realizou. (...)
vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo. (FOUCAULT, 2000,
p. 87)
Como podemos perceber nas palavras do filósofo, nós vivemos na
sociedade onde reina o panoptismo, O Panopticon é uma estrutura que estabelece relações de
poder, onde o indivíduo vira um objeto de observação. Na idade do Panopticon o controle é
exercido sobre o corpo do indivíduo, o que significa que o controle é exercido sobre tudo
aquilo que remete ao corpo, ou seja, o trabalho, a saúde, o lazer, etc., é a era onde o controle
sobre os corpos é exercido desde o nascimento, pois a família é a instituição disciplinar por
excelência. No panoptismo, os corpos estão em um processo de normalização constante, onde
o corpo é domesticado para a produção. Essa normalização constante faz com que o controle
se torne um objeto de desejo e quando o corpo deseja o controle significa que já está
totalmente rendido. Esta é a era do exame,228 isto é, da vigilância constante. Diferente do

227
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 85-86.
228
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. pp. 87-88.

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inquérito que, na prática jurídica se procurava saber o ocorrido, no exame se busca a quem
vigiar, uma vigilância sobre os indivíduos e seus corpos exercida por alguém que tem poder
sobre eles. É na era do panoptismo marcada pelo exame que as formas de saber-poder
permitirão o nascimento das chamadas ciências humanas, ou seja, a Psicologia, a Sociologia,
etc. As ciências humanas e sociais nasceram da observação dos corpos e, por sua vez,
contribuem para essa observação tendo o corpo como objeto de estudo e pesquisa.
Um bom exemplo de instituição do panoptismo, como lembra Sérgio
Ricardo Oliveira,229 é a escola, ou melhor, a escola-de-inspeção, onde o aluno é
sistematicamente vigiado pelo professor, pelos pais, colegas e até por si mesmo. Tal
instituição, como aponta Oliveira, tem o castigo como uma forma de penalização por desvios,
aqueles alunos que alcançam boas notas são considerados aptos pela instituição, ao passo que
aqueles que não atinjam as metas estabelecidas pela instituição seriam elegíveis para a
humilhação e ao rebaixamento. Oliveira ainda lembra que230 a inspeção panopticista prevê a
participação regulativa, não somente do aluno, mas de todos envolvidos no processo
panóptico como a turmas, os inspetores, pedagogos, supervisores educacionais, diretores, ou
seja, todos os envolvidos têm, cada um a seu nível, seus corpos sequestrados e controlados em
uma relação de poder. Aqui podemos estabelecer uma clara relação entre o panoptismo e a
genealogia nietzschiana, pois assim como a moral escrava, em Nietzsche busca, através do
ressentimento negar a liberdade da moral nobre por ser incapaz de dizer Sim a si mesma, o

229
OLIVEIRA, S. R. O panóptico escolar, ou o tempo disciplinar: Elementos para uma microfísica das
relações fetichistas educacionais. In: e-Mosaicos – Revista Multidisciplinar de Ensino, Pesquisa, Extensão e
Cultura do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ), Rio de Janeiro, v.5, n.9, pp. 62-
73, ISSN 2316-9303, 2016. Disponível em <http://e-publicacoes.uerj.br/index.php/e-
mosaicos/article/download/24820/17756. acesso em 2020. P. 71.
230
OLIVEIRA, S. R. O panóptico escolar, ou o tempo disciplinar: Elementos para uma microfísica das
relações fetichistas educacionais. In: e-Mosaicos – Revista Multidisciplinar de Ensino, Pesquisa, Extensão e
Cultura do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ), Rio de Janeiro, v.5, n.9, pp. 62-
73, ISSN 2316-9303, 2016. Disponível em <http://e-publicacoes.uerj.br/index.php/e-
mosaicos/article/download/24820/17756. Acesso em 2020. P. 71.

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Panopticon, em Foucault com o sequestro dos corpos busca o controle sobre estes privando-
os de sua liberdade. Relacionar a genealogia nietzschiana e o pansoptismo foucaultiano é
mostrar como a moral escrava e o panoptismo são, cada um a seu modo, uma ferramenta de
controle sobre os corpos, uma ferramenta que busca ofuscar tudo aquilo que é livre e belo.
Assim, o sequestro dos corpos é o papel desempenhado pelas instituições
pedagógicas dentro das sociedades disciplinares, pois como aponta Foucault,231 a existência
dos indivíduos se encontra controlada por estas instituições que visam, acima de tudo, o
controle sobre os corpos, sua normalização, sua docilidade, sua adequação ao pacto social.

III: A emancipação como caminho para a igualdade entre as inteligências, em Rancière

Em sua obra O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação


intelectual, Jaques Rancière questiona o modelo tradicional de educação, assim como a defesa
de que esse modelo seria o veículo que diminuiria as diferenças sociais, como defendido pelas
sociedades republicanas e progressistas.
Para o autor, uma educação verdadeira precisaria deslocar o lugar da
aprendizagem da suposta troca entre mestre e aluno, ou seja, seria necessário repensar as
relações que se dão na escola. Isto não significa acabar com a escola, mas repensa-la. Não se
trata de uma proposta de destruição do princípio pedagógico, mas de uma reinvenção das
relações pedagógicas. Segundo Rancière,232 a função essencial do mestre era explicar, isto é,
formar os alunos em uma progressão ordenada indo do simples ao complexo, visando
normatizar a instrução do indivíduo e adequá-la de forma compatível com sua destinação que
poderia ser, por exemplo, advogar ou uma carreira nas ciências. Ao se deparar com essa

231
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 119.
232
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.19.

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valoração da explicação como função do mestre, Rancière traz a figura de Joseph Jacotot 233 a
quem, como coloca o autor, teve uma súbita iluminação em seu espírito acerca da cega
evidência de todo o sistema de ensino, ou seja, a necessidade das explicações.
Mas qual o motivo dessa cega necessidade pela explicação? Vamos
responder a essa pergunta a partir da seguinte passagem de Rancière:
Essa lógica não deixa, entretanto, de comportar certa obscuridade. Eis, por
exemplo, o livro nas mãos do aluno. Esse livro é composto de um conjunto
de raciocínios destinados a fazer o aluno a compreender a matéria. Mas, eis
o que, agora, o mestre toma a palavra para explicar o livro. Ele faz um
conjunto de raciocínios para explicar o conjunto de raciocínios em que o
livro se constitui. Mas, porque teria o livro necessidade de tal assistência?
Ao invés de pagar um explicador, o pai de família não poderia,
simplesmente dar o livro, a seu filho, não poderia este, compreender,
diretamente, os raciocínios do livro? E, caso não o fizesse, por que, então,
compreenderia melhor os raciocínios que lhe explicarão aquilo que não
compreendeu? Teriam esses últimos uma natureza diferente? E não seria
necessário, nesse, caso, explicar ainda, a forma de compreendê-los?
(RANCIÈRE, 2007, p.21)
Nesta passagem, Rancière questiona qual a importância do explicador. Por
que o sistema de ensino da tanta importância ao explicador? Ora, não poderia um pai, como
aponta Rancière, comprar um livro, ao invés de contratar o explicador? O que faz do
explicador superior ao livro? Rancière observa234 que o explicador é o único juiz do ponto de
vista em que a explicação está, ela própria, explicada. Como assim? Qual a garantia que o
aluno compreendeu o conteúdo do livro? Quem poderia assegurar a compreensão do aluno
acerca do material? O pai de família? Como poderia o pai garantir a compreensão do material
pelo filho, se, muito provavelmente, nem o próprio pai compreende? É nesse aspecto, como
aponta Rancière, que o explicador supera o pai de família, pois ele, detém a arte da

233
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.20.
234
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.21.

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―distância‖235, ou seja, ele sabe reconhecer a distância entre a matéria que precisa ser ensinada
e o indivíduo que ele precisa instruir, ele detém o poder entre o aprendizado e a compreensão,
abolindo e impondo, com seu poder, a distância entre a matéria e o aluno. Na lógica do
explicador, sua explicação oral é superior, pois ela é indispensável para ruminar a explicação
escrita do livro. Porém, Rancière aponta para a falácia da posição superior do explicador
quanto ao aluno, pois uma criança é dotada de inteligência, tanto que aprendeu a falar
sozinha, sem que ninguém precisasse lhe explicar o funcionamento da língua. Assim, não
poderia a criança continuar utilizando-se de sua inteligência? Por que diante do explicador a
autonomia intelectual do aluno se torna obsoleta? A resposta para estas questões está no véu
da compreensão. Compreender, como coloca Rancière, é o que a criança não alcança sem a
explicação, explicação essa que, como observa o autor,236 se aperfeiçoa para melhor explicar,
porém sem verificar esse aperfeiçoamento de forma correspondente a dita compreensão.
Diante desse quadro, Rancière invocando a figura de Joseph Jacotot, chegou
à seguinte conclusão: ―é preciso inverter a lógica do sistema educador‖237, o autor mostra que
a explicação é o mito da pedagogia, ela não é uma necessidade, pois o dito ―incapaz‖ não tem
necessidade do explicador e sim este tem necessidade daquele, pois sem o ―incapaz‖ a função
do explicador perde seu sentido. Inverter a lógica do sistema educador não significa a
destruição do princípio pedagógico, mas reinventá-lo. Como lembra Rancière,238 o mito
pedagógico divide a inteligência em duas: uma inferior e uma superior, a primeira é a
simples, das criancinhas, já a segunda é a razão que parte do simples para o complexo. Essa
divisão é o que permite ao mestre levar seu conhecimento para o aluno e verificar se houve

235
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp. 21-22.
236
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.23.
237
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.23.
238
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.24

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compreensão por parte do aluno. Esse é para Rancière o princípio da explicação, ou melhor,
esse é para Jacotot o princípio do embrutecimento. A mudança no sistema pedagógico, visa
não a destruição da escola, mas a substituição do embrutecimento para emancipação onde a
inteligência obedece a si mesma.239
Tendo analisado a função do mestre explicador e a necessidade de repensar
o princípio pedagógico, o que dizer da suposição das sociedades republicanas e progressistas
de que a educação suprimiria as diferenças sociais fortaleceria a democracia? Supor a
igualdade como meta é garantia de não alcançar a igualdade, pois uma educação
supostamente igualitária tem por princípio a desigualdade. Colocar a escola como um
instrumento para aparar as desigualdades sociais, resulta em um paradoxo, pois é tentar abolir
a escola de algo do qual ela é fundadora. Como podemos ver na seguinte passagem:
(...) A pedagogia tradicional da transmissão neutra a saber, tanto quanto as
pedagogias modernistas do saber, quanto as pedagogias do saber adaptado
ao estado da sociedade mantêm-se de um mesmo lado, em relação à
alternativa colocada por Jacotot. Todas as duas tomam a igualdade como
objetiva, isto é, elas tomam a desigualdade como ponto de partida.
(RANCIÈRE, 2007, P. 14)
Rancière mostra240 que é atribuído a escola um poder fantasmático de
reduzir as desigualdades sociais, porém ela falha miseravelmente, pois a sociedade, como
aponta Rancière, se representa como uma grande escola que tem seus bárbaros para civilizar e
seus maus alunos para recuperar, porém como coloca o autor,241 a verdadeira tarefa desse
investimento pedagógico é a legitimação de uma oligarquia onde o governo é submetido a
autoridade dos ―melhores da turma‖ e uma oligarquia dos melhores não pode fortalecer a
democracia ou a igualdade, muito pelo contrário, apenas fez da escola a fundadora da
desigualdade. Por isso, Rancière propõe reinventar as relações pedagógicas que, como já

239
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp.32-33.
240
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo
Horizonte. Autêntica, 2007. pp.14-15.
241
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.15.

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vimos, não significa destruir a escola, mas repensá-la em um modelo emancipador. Para que
isso acontecesse, Rancière mostra que Jacotot visava colocar a igualdade longe do alcance
dos pedagogos do progresso e das mediocridades liberais, pois para Jacotot a igualdade era,
ao mesmo tempo, fundamental e ausente, atual e intempestiva. Ela depende dos indivíduos
que tem a coragem de verifica-la, de inventar suas formas de maneira individual e coletiva. A
igualdade só é possível pela emancipação, pois só através da emancipação é possível
reconhecer a igualdade das inteligências. E só há um modo do professor reconhecer a
igualdade entre sua inteligência e a de seus alunos, pelo reconhecimento de sua maior virtude:
a sua própria ignorância.
Como bem colocam Bretas e Cruz242, existem três sentidos para ignorância
em Rancière. O primeiro sentido da virtude da ignorância é ensinar aquilo que se
desconhece. As autoras lembram que Jacotot se viu obrigado a deixar de lado seu
conhecimento, pois diante da situação em que se encontrava, de nada lhe servia. Em sua
experiência com seus alunos, Jacotot percebeu que sua ignorância era uma virtude, melhor, a
maior virtude de um professor, pois a através dela o professor pode reconhecer a igualdade
entre as inteligências e, assim, participar do processo pedagógico com seus alunos como
iguais em um nível intelectual. O segundo sentido da ignorância, como apontado pelas
243
autoras, está em ensinar sem transmitir conhecimento. Mas, como o professor pode
ensinar sem transmitir conhecimento? Como mostram as autoras,244 o mestre ignorante,
através da lógica emancipadora, se apresenta como uma vontade que revela ao ignorante
aquilo que ele já possui, isto é, a capacidade de aprendizado que é inerente a todas as pessoas.
Ao se colocar como uma vontade emancipadora, o mestre ignorante transcende as limitações

242
BRETAS, CRUZ. O Mestre e Aprendiz como iguais: a potência da vontade e da inteligência Humana
em Rancière. In: Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 63, 2015. p.216.
243
BRETAS, CRUZ. O Mestre e Aprendiz como iguais: a potência da vontade e da inteligência Humana
em Rancière. In: Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 63, pp. 210-232, 2015. pp.217-218.
244
BRETAS, CRUZ. O Mestre e Aprendiz como iguais: a potência da vontade e da inteligência Humana
em Rancière. In: Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 63, pp. 210-232, 2015. p.217.

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do processo explicativo e se coloca como igual aos seus alunos estimulando a capacidade de
aprendizado que estes sempre tiveram e que, através da emancipação, podem gozar, junto ao
mestre, o prazer do aprendizado de forma igualitária. O terceiro e último sentido da virtude, é
ignorar a desigualdade,245 para isso, o mestre ignorante rejeita a lógica pedagógica da
explicação e se entrega totalmente para a ignorância emancipadora, se relacionando com o
aluno reconhecendo este como indivíduo, ou seja, como seu semelhante, um semelhante o
qual o mestre não deve explicar nem fazer compreender, mas sim participar do processo de
aprendizagem de forma igualitária e emancipadora. Ao reconhecer em si os três sentidos da
ignorância, o professor deixa de ser um agente do embrutecimento para se tornar um arauto
da emancipação.
Em O Mestre Ignorante, Rancière nos mostra que, para Jacotot246, o mito
pedagógico divide a inteligência em duas: uma inferior e uma superior. A primeira remete, as
mentes simples, das criancinhas e dos homens do povo; já a segunda é que parte do simples
para o complexo, da parte para o todo. Este é o princípio da explicação, ou melhor, o
princípio do embrutecimento.
Como aponta Rancière, o embrutecedor não é um velho que enche a cabeça
de seus alunos de conhecimentos indigestos, pelo contrário ele é esclarecido, culto e de boa-
fé. É aquele que mostra quão distante está o seu saber da ignorância dos ignorantes. É aquele
que está preocupado com a compreensão do aluno. Mas o que é compreender? Compreender
significa que o indivíduo nada compreenderá, a menos que lhe seja explicado, ou seja, a
compreensão é o veículo do princípio da explicação, por isso para Rancière e para Jacotot ela
é a causadora de todo o mal e um avanço do embrutecimento. Se olharmos atentamente para o
mestre embrutecedor, a quem ele nos lembra? Quem, na história da filosofia, é culto,
esclarecido e preocupado com a compreensão de seus interlocutores? Ora, este mestre culto e

245
BRETAS, CRUZ. O Mestre e Aprendiz como iguais: a potência da vontade e da inteligência Humana
em Rancière. In: Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 63, pp. 210-232, 2015. p.218.
246
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp. 24-25.

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de boa fé que busca parir a compreensão de seus interlocutores não é outro, senão, o próprio
Sócrates. Sócrates é o modelo do mestre embrutecedor e seu método nada mais que um
embrutecimento sofisticado. Vejamos as palavras de Rancière a respeito de Sócrates:
O socratismo é, assim, uma forma aperfeiçoada do embrutecimento. Como todo o
mestre sábio, Sócrates interroga para instruir. Ora, quem quer emancipar o homem
deve interroga-lo à maneira dos homens e não à maneira dos sábios, para instruir-
se a si próprio e não para instruir um outro. (RANCIÈRE, 2007, P. 52)
Nas palavras de Rancière vemos que o verdadeiro mestre é aquele que
interroga, não à maneira dos sábios, mas à maneira dos homens, instruindo a si próprio.
Sócrates, ao contrário, como sábio que era ao aplicar sua maiêutica ao seu interlocutor se
preocupava em fazê-lo compreender suas questões e, como já vimos, a compreensão é a
causadora de todo mal, a fonte do princípio da explicação. Sócrates, como bom explicador,
conhecia as respostas para suas perguntas, o que fazia parecer que seu método era infalível e,
assim, orientava naturalmente seu interlocutor247. Como observa Rancière o segredo dos
―sábios‖ mestres está em guiar discretamente a inteligência dos alunos, fazendo-a trabalhar
sem abandoná-la a si mesma, ou seja, sem emancipa-la. Aí está a distância entre o método
socrático e o método de Jacotot, pois, como observa Rancière,248 através de suas
interrogações, Sócrates leva o escravo do diálogo Mênon a reconhecer as verdades
matemáticas que já estão nele, se trata de um caminho para o saber, mas não o da
emancipação, pois Sócrates guia o escravo constantemente preocupado com a compreensão
por parte deste, não permitindo que ele caminhe sozinho, não permitindo que ele se emancipe,
ou seja, Sócrates como todo o bom explicador precisa do incapaz para garantir sua posição de
―sábio‖. É como Rancière diz: ―Sócrates interroga um escravo que está destinado a
permanecer como tal‖.249 Na figura de Sócrates, podemos estabelecer um paralelo entre

247
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007 p.51.
248
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.52.
249
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual, Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.52.

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Nietzsche e Rancière, pois como lembram Reale e Antisere250 para Nietzsche, Sócrates foi um
erro, um equívoco, pois ele representa a racionalidade a qualquer custo, sem instintos, pelo
contrário, em contraste com os instintos. Assim, Sócrates é o exemplo da moral escrava, pois
ao se preocupar em fazer com que suas questões sejam compreendidas, o filósofo grego
cerceia a liberdade de seu interlocutor, estabelecendo uma clara relação de poder na qual a
moral escrava, na figura de Sócrates, impõe sua dominância negando ao interlocutor a
possibilidade de reconhecer sua nobreza. Ao passo que o Sócrates de Rancière, também
estabelece seu poder sobre o interlocutor ao embrutece-lo por intermédio da explicação, sem
deixar qualquer brecha para a emancipação de sua inteligência. Na figura de Sócrates vemos,
ao mesmo tempo, um símbolo da moral escrava de Nietzsche e o exemplo, por excelência, do
mestre embrutecedor de Rancière. Para ambos os filósofos, Sócrates é um agente da
dominação que, por um lado impede que seu interlocutor seja livre e diga Sim a si mesmo e
por outro impede sua emancipação ao não reconhecê-lo como indivíduo negando a igualdade
das inteligências.
A emancipação de Jacotot consiste em uma inteligência que obedece a si
251
mesma. Onde todo o homem simples, do povo possa medir sua capacidade intelectual e
usufruir livremente de seu uso e garantir sua dignidade. Aquele que ensina sem emancipar
está fadando seu aluno ao embrutecimento, condenando-o à escravidão da compreensão. O
que podemos concluir dos métodos de Sócrates e de Jacotot? Podemos concluir que Sócrates
é o início de um erro, que fora antes apontado por Nietzsche, um explicador que depende do
incapaz para garantir sua posição de sábio, embrutecendo seu aluno. Ao passo que, o bom
professor é o ignorante. O mestre ignorante não está preocupado com o compreender, mas
sim com o buscar, ele irá verificar o que o aluno buscou, julgando se ele estava atento,
exigindo de seu aluno que estude com atenção, respeitando a autonomia de sua inteligência,

250
REALE, ANTISERI. História da Filosofia, v. 6: de Nietzsche à escola de Frankfurt. Trad. Ivo Storniolo.
São Paulo. Paulus, 2005. pp. 6-7.
251
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. p.32.

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pois não há hierarquia na ignorância e tudo o que um ignorante pode todo os ignorantes
podem.252
O mestre ignorante é aquele que incentiva a busca, incentiva que seu aluno
pesquise continuamente para que ele sempre encontre algo, mesmo que não seja o que estava
buscando, mas que continue procurando por coisas novas, em uma contínua vigilância. O
mestre ignorante é aquele que mantém o aluno em contínua busca, percorrendo o caminho, de
forma solitária, independente e incessante253. Quanto ao mestre ignorante e o ensino
emancipador vejamos as seguintes palavras de Rancière:
As coisas estavam portanto muito claras: não se tratava aí de um método para
instruir um povo, mas da graça a ser anunciada aos pobres: eles podiam tudo que
pode um homem. Bastava anunciar. Jacotot decidiu consagrar-se a isso. Ele
proclamou que se pode ensinar o que se ignora e que um pai de família pobre e
ignorante é capaz de ser emancipado, de fazer a educação de seus filhos sem
recorrer a qualquer explicador. E indicou o meio de se realizar esse Ensino
Universal: aprender qualquer coisa e a isso relacionar a todo o resto segundo o
princípio de que todos os homens têm igual inteligência. (RANCIÈRE, 2007, P,
38.)
Portanto, a emancipação de Jacotot se distancia do método de Sócrates, pois
ela não visa uma relação de poder e necessidade entre o ―sábio‖ e o incapaz, pelo contrário,
visa mostrar que todos os homens são iguais na inteligência e que o papel do mestre ignorante
é estimular essa inteligência para que ela se torne cada vez mais autônoma e que busque
incessantemente por novas coisas, novas experiências, pois entre os ignorantes não há
hierarquia, há, apenas, emancipação.

Considerações finais: O Genealogista ou o Filósofo como médico da Civilização.


Como podemos aproximar as obras de Foucault e Rancière? Em que medida
estes dois autores convergem? Em que medida a filosofia de Nietzsche os aproxima? Talvez,
o ponto de convergência entre os autores esteja na pesquisa genealógica.
252
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp. 54-55.
253
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp. 56-57.

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O filósofo genealogista é o médico da civilização, o que faz com que a


genealogia seja, talvez, a tarefa fundamental da filosofia. Nietzsche em sua obra Genealogia
da Moral: uma polêmica, buscou a emergência dos valores morais, no entanto, a genealogia
de Nietzsche não é uma mera investigação da emergência dos valores morais, mas uma crítica
à metafísica e ao apoio que a metafísica deu à moral. Através de sua genealogia, Nietzsche
inspirou outros filósofos a fazer o mesmo como, por exemplo, Foucault que, diretamente
influenciado por Nietzsche, em suas conferências intituladas A Verdade e as Formas
Jurídicas, propôs uma genealogia da verdade, para desmistificar a verdade como algo
universal, mostrar que a verdade é uma criação. Por sua vez, Rancière em O Mestre
Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual, também faz uma pesquisa
genealógica acerca da emergência das relações pedagógicas, afim de propor não a destruição
do princípio pedagógico, mas, sim, repensar as relações pedagógicas. É interessante notar
que, em suas pesquisas genealógicas Foucault e Rancière se depararam com certas dicotomias
que resultam em verdadeiras relações de poder como o inquérito e o exame em Foucault e o
embrutecimento e a emancipação em Rancière.
Segundo Foucault,254 o inquérito é uma forma bem característica de verdade
em nossas sociedades. O inquérito, como apontado por Foucault, tem sua origem nas práticas
judiciárias da idade média onde apareceu como uma forma de pesquisa da verdade nas
práticas jurídicas, com a intenção de saber quem fez o quê, em quais condições e em que
momento. Foucault lembra que as técnicas de inquérito passariam a serem utilizadas como
método científico e reflexão filosófica.255 Já o exame, que está ligado a origem das ciências
humanas. No exame, que tem como sua maior expressão o Panopticon, não há mais inquérito,
mas sim vigilância, No exame não há mais a preocupação de reconstruir um acontecimento,

254
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p.12.
255
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas, Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p.12.

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mas de manter a vigilância que é exercida sobre o indivíduo por alguém que detém o poder
sobre seus corpos. Quanto o inquérito e o exame diz Foucault:256
(...) O inquérito e o exame são precisamente formas de saber-poder que vem
funcionar ao nível de apropriação de bens na sociedade feudal, e ao nível da
produção e da constituição capitalista. É nesse nível fundamental que se situam as
formas do saber-poder como o inquérito ou o exame. (FOUCAULT, 2000, p. 126)
Como podemos ver nas palavras de Foucault, tanto o inquérito quanto o
exame constituem formas de saber-poder que visam a vigilância e o controle sobre os corpos
dos indivíduos, mostrando que embora na sociedade haja a aparência da legalidade, o que
ocorre é o controle do indivíduo, onde seu corpo é domado, docilizado pela lei. Nas formas
saber-poder do inquérito e do exame ser ―normal‖ é estar de acordo com as regras impostas
pelas leis, regras de domínio e de controle sobre os corpos.
Já Rancière, em sua genealogia pedagógica se deparou com
embrutecimento, que é o princípio da explicação que tem sua base na compreensão. 257 O
embrutecimento é o domínio de uma inteligência sobre outra, onde o mestre explicador
necessita do incapaz para afirmar sua posição de ―sábio‖ e exercer o controle sobre a mente
daquele que é vítima de sua explicação. Por outro lado, a emancipação é uma inteligência que
segue a si mesma, onde um mestre ignorante incita a busca constante e mostrando que não há
hierarquia entre os ignorantes. Quanto ao embrutecimento e a emancipação diz Rancière:
(...) Há embrutecimento quando uma inteligência é subordinada a outra
inteligência. (...) Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre
as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma,
ainda que a vontade obedeça a uma outra. (RANCIÈRE, 2007, pp. 31-32)
Rancière mostra que o embrutecimento é a necessidade do controle de uma
mente por outra, ao passo que a emancipação é quando a inteligência obedece a si mesma.
Mas, porque essas noções de inquérito e exame; embrutecimento e emancipação
aproximariam as obras de Foucault e Rancière? Ora, como já vimos o filósofo genealogista é

256
FOUCAULT. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro. 2° edição. Nau,
2000. p. 126.
257
RANCIÈRE. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte. Autêntica, 2007. pp.23-24.

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o médico da civilização, pois ele a examina e lhe dá seu diagnóstico e foi, justamente isso,
que Foucault e Rancière fizeram com suas respectivas genealogias, examinaram e
diagnosticaram as relações humanas apontando as relações de poder que estão por trás delas.
Onde há relações humanas, sempre haverá relações de poder seja para o controle dos corpos,
seja para o embrutecimento das mentes ignorantes. Nietzsche foi o primeiro a diagnosticar a
sociedade de forma genealógica expondo a moral nobre e a moral escrava, mostrando que a
história humana é a história da decadência cristã e de sua moral torpe que odeia tudo o que é
belo e bom. Nietzsche pavimentou o caminho para que Foucault e Rancière pudessem fazer
seus próprios diagnósticos da sociedade e explorar as relações de poder que estão no cerne
daquilo que significa ser humano.

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A CRISE DO INDIVÍDUO NA OBRA DE FRANZ KAFKA: AS


POSSIBILIDADES INTERPRETATIVAS DE ADORNO E LUKÁCS

Gabriel Duccini

Resumo
Neste artigo, visamos apresentar a interpretação adorniana da obra de Franz Kafka, pensando
sua obra como expressão da crise de representação do indivíduo no capitalismo tardio, e como
tal processo levou a uma ruptura com a narrativa do romance de formação. Também
utilizaremos as interpretações de Gyorgy Lukács sobre a obra de Kafka e as vanguardas
literárias do século XX, como um importante contraponto à interpretação adorniana.

Palavras-chave: Franz Kafka. Gyorgy Lukács. Realismo crítico. Theodor Adorno.

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1. Introdução
Neste artigo temos como objetivo apresentar a interpretação de Theodor Adorno sobre
a obra de Franz Kafka. Abordaremos tal análise partindo do romance moderno realista e as
condições que permitem sua realização em seu contexto de formação, e as modificações
dessas condições históricas do ponto de vista da produção literária e artística no romance do
século XX. Nesse sentido, a obra de Kafka é um importante ponto para compreensão da
expressão desse momento histórico tendo em conta a relação entre a literatura e as suas
condições históricas, e da diferenciação entre o romance moderno do século XIX e o romance
do século XX, em seus fundamentos. Também consideramos importante para essa
abordagem, apontar a diferente interpretação de Gyorgy Lukács sobre Kafka, realismo e as
vanguardas literárias do século XX.
1.1. Formação do Romance Moderno

Pensando na formação do que é convencionalmente chamado de ―romance moderno‖,


Ian Watt indica que os historiadores do romance ―consideraram o ‗realismo‘ a diferença
essencial entre a obra dos romancistas do início do século XVIII e a ficção anterior‖ (2010,
p.12). Nesse sentido, seria necessária uma explicação mais profunda do próprio termo
―realismo‖, em geral utilizado como contraposto a idealismo. Para Watt, essa utilização do
termo acaba tendo:

o grave defeito de esconder o que é provavelmente a característica mais


original do gênero romance(...) certamente, procura retratar todo tipo de
experiência humana e não só as que se prestam a determinada perspectiva
literária: seu realismo não está na espécie de vida apresentada, e sim na
maneira como a apresenta. (2010, p.13)

Nesse sentido a definição dos realistas franceses se dá no sentido de estabelecer a


―correspondência entre a obra literária e a realidade que ela imita‖. Watt relaciona o
romance moderno com o cogito cartesiano: ―o romance é a forma literária que reflete mais
plenamente essa reorientação individualista e inovadora‖ (p.14). Assim como Defoe e
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Richardson ―são os primeiros grandes escritores ingleses que não extraíram seus enredos da
mitologia, da História, da lenda ou de outras formas literárias do passado‖ (p.15). Para o
romance moderno esse apego aos enredos tradicionais é abandonado, assim como as
convenções formais: afinal reside na Natureza o ―repertório definitivo da experiência
humana‖, dali deve se retirar os elementos para realização literária. Defoe nesse sentido
inaugura uma nova tendência dos enredos, nos quais a ―sua total subordinação do enredo ao
modelo da memória autobiográfica afirma a primazia da experiência individual no romance
da mesma forma que o cogito ergo sum de Descartes na filosofia‖ (p.16, grifo nosso).

O Romance moderno inaugura, portanto, esse processo da constituição do indivíduo


nas produções literárias. As formas literárias anteriores ao romance não abordavam seus
personagens como entidades ―Inteiramente individualizadas‖. Se preferiam nomes derivados
da história e nomes ―característicos‖, como afirma Aristóteles no capítulo 9 da Poética, citado
por Watt (APUD., p.20). O surgimento do romance cria essa forma própria do
desenvolvimento da individualização dos personagens e o máximo detalhe na apresentação do
ambiente.
Nesse sentido, a relação com o tempo nas formas literárias da Antiguidade também se
dava a partir da concepção platônica do caráter atemporal das Formas e Ideias, assim fazendo
refletir verdades morais imutáveis. O Romance moderno estabelece como estrutura temporal
uma causalidade de ações que condicionam o tempo presente em que se passa o enredo. O
tempo na tradição literária antiga, medieval e renascentista assume outra dimensão. A
tragédia, por exemplo, em sua restrição da ação a 24 horas, ―na verdade equivale a uma
negação da importância da dimensão temporal na vida humana‖ (p.23), se baseando em uma
concepção de tempo a-histórica. Por isso Watt apresenta a obra de Daniel Defoe como:

a primeira que nos apresenta um quadro da vida individual numa perspectiva


mais ampla como um processo histórico e numa visão mais estreita que
mostra o processo desenrolando-se contra o pano de fundo dos pensamentos
e ações mais efêmeros (p.24)
O caráter genérico e vago do espaço é sucedido pela descrição detalhada e minuciosa
do espaço e lugar na narrativa do Romance moderno. Watt aponta, citando Samuel Johnson,

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que ―Shakespeare não considera a diferença de tempo e local‖ (p.26), e as descrições físicas,
vívidas e particularizadas de Byron são fragmentadas e incidentais. Pode se identificar esse
elemento da descrição detalhada em obras como a de Homero e muitas outras, como em
autores de ficção do século XVII, contudo nessas prosas esses trechos ―são relativamente
raros e tendem a destacar-se da narrativa geral; a estrutura literária total não era orientada
no sentido do realismo formal, e o enredo (…) estava em conflito direto com suas premissas‖
(p.32). Defoe seria o primeiro dos ingleses a vislumbrar o ―conjunto da narrativa como se
esta se desenrolasse em um ambiente físico real‖ (p.26).
Tal elemento é muito forte no realismo francês de Balzac. Erich Auerbach comenta a
relação da obra de Balzac com o meio:

Balzac sentiu os meios, por mais diferentes que fossem, como unidades
orgânicas, demoníacas até e tentou transmitir essa sensação ao leitor. Ele não
só localizou os seres cujo destino contava seriamente, na sua moldura
histórica e social perfeitamente determinada, como o fazia Stendhal, mas
também considerou essa relação como necessária (…) (2004, p.423)
Citando Avant-propos à Comedie humaine, Auerbach sinaliza que Balzac interpreta
sua tarefa como uma historiografia dos costumes. Quando Balzac fala de ―história dos
costumes‖, contudo, há de se explicitar que não se trata da investigação científica do passado,
mas do presente, em termos da ―fiction‖. Se considera o presente como história e sua
atividade literária é vista por Balzac como atividade histórico-interpretativa, de natureza
histórico-filosófica (p.430).
Com Flaubert, o realismo assume sua dimensão impessoal, apartidária e objetiva
(p.432). O escritor assume o papel de ordenar o espaço e tempo da narração como se fosse um
quadro. E a narração se desenvolve sem ―interferências externas‖ ao que lhe é apresentado na
exposição dos personagens e do espaço. O que ordena o conteúdo é o material interno na
descrição do enredo, dos personagens e do local que se passa. Se diferenciando de Balzac e
Stendhal, obras em que os escritores ainda expressavam suas posições sobre os
acontecimentos e os personagens, além dos próprios personagens expressarem seus
sentimentos e percepções (permitindo a identificação do escritor com dado personagem),

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Flaubert elimina isso inteiramente, não emitindo nenhum tipo de opinião e nem leva o leitor a
se identificar com a opinião de algum personagem:

Seu papel limita-se a escolher os acontecimentos e a traduzi-los em


linguagem, e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento, e
for possível exprimi-lo limpa e integralmente, interpretaria inteiramente a si
próprio e os seres humanos que dele participassem; muito melhor e mais
inteiramente do que o poderia fazer qualquer opinião ou juízo que lhe fosse
acrescentado. Sobre esta convicção, isto é, sobre a profunda confiança na
verdade da linguagem empregada com responsabilidade, honestidade e
esmero, repousa a arte de Flaubert (p.435)
O objetivo do Romance é trazer ―seu objeto em toda a sua particularidade concreta‖,
rompendo com os cânones do estilo da prosa, que pensava não na fidelidade à retratação dos
objetos, mas, como afirma Watt, na ―sensibilidade literária com que seu estilo refletia o
decoro linguístico adequado ao assunto‖ (p.28). O romance moderno opera ―mais à
apresentação exaustiva que à concentração elegante‖ (p.30).
Watt indica o método narrativo do romance como o realismo formal258, que parte da
seguinte premissa:

um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a


obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como a individualidade
dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações –
detalhes que são apresentados através de um emprego da linguagem muito
mais referencial do que é comum em outras formas literárias (p.31)
1.2. O romance como desmanche da tradição
Walter Benjamin descreve como a atividade de narrar está cada vez mais distante do
mundo moderno urbano. Inicia utilizando, como exemplos de narração de uma tradição
baseada na oralidade, de um lado o camponês que conta as suas histórias oriundas de
tradições muito antigas, e do outro lado, o marinheiro que conta as histórias de viagem. Existe
uma íntima relação aqui com o procedimento do trabalho artesanal das corporações de ofício:

258
Ian Watt explicita o sentido do termo ―formal‖ para caracterizar esse realismo: ―(...) aqui o termo ‗realismo‘
não se refere a nenhuma doutrina ou propósito literário específico, mas apenas a um conjunto de procedimentos
narrativos que se encontram tão comumente no romance e tão raramente em outros gêneros literários(...)‖. O
―realismo formal‖ é, portanto, uma convenção formal.

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se trata de um processo lentamente produzido através de um acúmulo de várias gerações. É


digno de nota apontar que quando Benjamin utiliza o termo tradição (Überlieferung) ela pode
ser traduzida para ―transmissão‖, não se tratando apenas do passado, mas da relação entre o
passado e o presente através das gerações.
Benjamin delineia o processo de surgimento do romance moderno como o momento
de formação do individualismo burguês, e como início desse processo de desvencilhamento
da narração. O romance está em contradição com a narrativa por romper com seu elemento de
oralidade, trazendo a dependência do livro e do ócio para realização da leitura. Rompe
também com o caráter das narrações orais ligadas à tradição com fins de estabelecer um saber
prático e passar ―conselhos‖ para as próximas gerações:

O narrador retira o que ele conta da experiência: de sua própria experiência


ou da relatada por outros. E incorpora, por sua vez, as coisas narradas à
experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do
romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente
sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem
sabe dá-los. (BENJAMIN, 2014, p.217)
O Romance é nesse sentido o gênero por excelência do indivíduo descolado da
tradição, em um mundo em que ―tudo se desmancha no ar‖. Por isso a referência de Benjamin
ao Don Quixote, primeiro romance e que inaugura esse arquétipo moderno. A coragem,
generosidade, a nobreza do herói, são refratárias a qualquer conselho e expressam justamente
a relação contraditória entre passado e presente e esse processo em que a tradição se
desagrega. ―Tudo se desmancha no ar‖ e os inimigos combatidos pelo nobre herói são
moinhos de vento.
Isso se destaca nas obras de Stendhal, pois a ―literatura realista de Stendhal brotou do
seu mal-estar no mundo pós-napoleônico, assim como da consciência de não pertencer ao
mesmo e de não ter nele um lugar certo‖ (AUERBACH, 2004, p.411). Stendhal aparenta
―alguém nascido demasiado tarde, que procura em vão tornar realidade a forma de vida de
uma época passada‖, que vivencia a realidade de seu tempo como um obstáculo (p.412). O
esforço literário de Stendhal em suas obras, portanto, marca essa posição com relação ao
passado.

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2. O romance e a crise do indivíduo

Para Adorno, a posição do narrador hoje se encontra em um paradoxo: a forma do


romance exige a narração, mas ele não consegue mais narrar. O processo de formação do
individualismo moderno passa a obstaculizar a realização de uma estética realista, onde a
linguagem está conforme à realidade:
No curso de um desenvolvimento que remonta ao século XIX, e que hoje se
intensificou ao máximo, esse procedimento tornou-se questionável. Do
ponto de vista do narrador, isso é uma decorrência do subjetivismo, que
não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o
preceito épico da objetividade (2003, p.55, grifos nossos)
Adorno remete aqui ao processo de formação do indivíduo moderno e a sua crise. A
crise da forma é parte da crise geral da noção de indivíduo, que não consegue mais trazer à
tona uma totalidade e principalmente, estabelecer uma correspondência entre a linguagem e o
objeto. Portanto a crise do romance é a crise da objetividade, da tensão entre sujeito e objeto.
Ademais, o romance perdeu muito de sua função tradicional para o cinema, segundo Adorno.
Nesse processo, o romance necessita se incumbir do que não é permissível ―dar conta pelo
meio do relato‖, e cita Joyce como coerente em seu esforço de ―vincular a rebeldia do
romance contra o realismo a uma revolta contra a linguagem discursiva‖ (ADORNO, 2003,
p.56). Adorno aqui identifica tal processo como uma ―emancipação‖ do romance com relação
ao objeto. Essa ―emancipação‖ já teria ocorrido na pintura, por exemplo, mas no caso da
literatura ela acaba sendo comprimida e limitada por conta da linguagem, e por isso Adorno
está partindo de autores tais como Dostoievski, James Joyce, Samuel Beckett e Franz Kafka,
como autores que expressariam esse processo de emancipação do romance e criação de
formas literárias adequadas ao processo de crise do sujeito e do objeto.
A crise da narração assume essa dimensão de não conseguir mais narrar algo
―especial‖. Segundo Adorno, quem impede isso é ―o mundo administrado, a estandardização e
mesmice‖. O processo de apreensão da totalidade por parte do sujeito hoje não é mais
possível, nessa perspectiva. A forma do realismo no romance a partir disso apenas ―representa

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a fachada‖. O romance deve renunciar ao realismo em nome de ―dizer como realmente as


coisas são‖ (ADORNO, 2003, p.57). O estado de alienação cria um obstáculo para a
apreensão da essência das coisas: ―quanto mais densa e cerradamente se fecha a superfície
do processo social da vida, tanto mais hermeticamente esta encobre a essência como um
véu‖ (Ibid.). Vejamos Adorno:

O momento anti-realista do romance moderno, sua dimensão metafísica,


amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que os
homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendência
estética reflete-se o desencantamento do mundo (2003, p.58)
Nisso Adorno faz referência a Proust e Kafka como exemplos de romances que
correspondem adequadamente a esse período histórico. Em Proust:

O narrador parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso
no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom de
quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar(…)o mundo é
puxado para esse espaço interior – atribuiu-se à técnica o nome de monologue
intérieur – e qualquer coisa que se desenrole no exterior é apresentada
como(...)um pedaço do mundo interior, um momento do fluxo de
consciência, protegido da refutação pela ordem espaço temporal objetiva, que
a obra proustiana mobiliza-se para suspender (p.59)
Ocorre um processo de narrar os fluxos de consciência mais alongado do que as reais
circunstâncias objetivas do espaço. Também há uma confusão sobre o tempo em que se passa
a ação: não se ancora mais a narração no tempo objetivo. O contato com o presente, em ―Em
Busca do Tempo Perdido‖, é sempre objeto de frustração, e o dilema do narrador se dá no
trabalho da memória engendrando essa conjunção entre passado e presente. Aqui também
desaparece a distinção entre a ação e o comentário devido a entrelaçamento tão forte entre um
e outro. Deste modo se ataca a distância estética entre leitor e narrador. Esse procedimento se
identifica em Kafka também. Kafka em seus romances realiza um processo de choque
destruindo ―a tranquilidade contemplativa diante da coisa lida‖ (ADORNO, 2003, p.61),
assim eliminando a distância do leitor em relação ao narrador. Adorno aponta sobre o
romance de Kafka:
Seus romances, se é que de fato eles ainda cabem nesse conceito, são a
resposta antecipada a uma constituição do mundo na qual a atitude

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contemplativa tornou-se um sarcasmo sangrento, porque a permanente


ameaça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem
mesmo a imitação estética dessa situação. (p.61, grifo nosso)
Benjamin comenta sobre Kafka, levantando que sua obra é marcada por uma certa
―elipse‖, cujos focos se definem de um lado pela tradição mística (a experiência da tradição) e
do outro a experiência do homem moderno da grande cidade. Essa experiência do homem
moderno é particularmente apreensível em O Processo, onde se identifica o cidadão moderno
entregue a essa teia que é o aparelho burocrático impossível de perceber quem o executa.
Kafka percebe o mundo moderno através de sua experiência mística da tradição. Benjamin
cita em sua carta a Scholem:

A obra de Kafka representa uma doença da tradição. Quis-se ocasionalmente


definir a sabedoria como aspecto narrativo da verdade. Com isso a sabedoria
é assinalada como um patrimônio da tradição; ela é a verdade em sua
consistência hagádica. É esta consistência da verdade que se perdeu. Kafka
estava longe de ser o primeiro a se defrontar com este fato. Muitos se
adaptaram a ele aferrando-se à verdade ou àquilo que caso a caso
consideravam como sendo ela; de coração pesado ou também mais leve
renunciando à sua transmissibilidade. O genial propriamente dito em Kafka
foi ter experimentado algo inteiramente novo: ele renunciou à verdade para
se agarrar à transmissibilidade, ao elemento hagádico. As criações de Kafka
são pela própria natureza parábolas. A miséria e a beleza delas, porém, é que
tiveram que se tornar mais que parábolas. Elas não se deitam pura e
simplesmente aos pés da doutrina, como a Hagada aos pés da Halachá. Uma
vez deitadas elas levantam contra esta, inadvertidamente, uma pata de peso
(1993, p.105)
Diferente da tradição que retira doutrinas através das parábolas (―hagadá aos pés da
Halachá‖)259, a obra de Kafka não permite extrair sentido totalizante, doutrina ou moral a
partir de seus escritos e parábolas. Elas são ―pela própria natureza parábolas‖. Jeanne Marie

259
Na tradição judaica, a Hagadá (―narração‖ em hebraico) é a leitura das histórias de libertação do povo de
Israel do Egito, na Páscoa judaica (a Pessach), ao passo que a Halachá costuma ser empregada de maneira
contraposta à Hagadá por ser a tradição legal da doutrina, em alguns casos sendo compreendido como um corpo
doutrinário fixo. Benjamin, em um texto de 1931 de nome ―Franz Kafka: na construção do muro chinês‖
explica essa analogia nos termos de que à Hagadá ―chamam-se as histórias e anedotas judaicas da literatura
rabínica, que servem ao esclarecimento da doutrina – a Halachá‖ (BENJAMIN, 2014, p.159)

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Gagnebin cita a questão da parábola na obra de Kafka, diferenciando-a da alegoria da tradição


religiosa, pois:

enquanto as alegorias barrocas desvalorizam os sentidos mundanos em


oposição à inalterabilidade da Doutrina Sagrada, mesmo que esta seja
inexprimível, as parábolas de Kafka se desdobram numa estranha autonomia
de significação sem mais reenviar a uma doutrina preexistente (2016, p.8)
Essa nova relação após a desagregação da tradição assume uma dimensão de perda de
sentido, e aqui reside o fundamento da analogia com a Hagadá e Halachá. Segundo Jeanne
Marie há um elemento essencialmente religioso, e até mesmo teológico, na própria noção de
sentido. Mediante isso, a busca de sentido na obra de Kafka é algo que não se esgota.
Benjamin conclui a carta a Scholem afirmando que não se pode mais ―falar em sabedoria‖ em
Kafka. O processo de desagregação que o mundo moderno traz em seu movimento de ―tudo
se desmanchar no ar‖ traz à tona essa ausência de uma tradição que permitisse decifrar a
parábola. A obra de Kafka aqui não visa comunicar o leitor, pois se comunica o que está em
ruínas. Por isso a dificuldade de decifrar o texto em suas obras.

2.1. A interpretação de Kafka por Adorno


Adorno, em Anotações sobre Kafka, comenta essa relação da ausência de sentido:

Se o conceito de símbolo tem alguma pertinência na estética, âmbito no qual


ele é suspeito, ela se deve unicamente à afirmação de que os momentos de
uma obra de arte remetem, em virtude da força que os conecta, para além
deles mesmos: a totalidade dos momentos converge em um sentido. Nada,
porém, seria mais inadequado no que diz respeito a Kafka(...). Em nenhuma
obra de Kafka, se esclarece o horizonte. Cada frase é literal, e cada frase
significa(...)Benjamin a definiu com razão como parábola. Ela não se
exprime pela expressão, mas pelo repúdio à expressão, pelo rompimento. É
uma arte de parábolas para as quais a chave foi roubada; e mesmo quem
buscasse fazer justamente dessa perda a chave seria induzido ao erro, na
medida em que confundiria a tese abstrata da obra de Kafka, a obscuridade
da existência, com o seu teor. Cada frase diz: ‗interprete-me‘; e nenhuma
frase tolera a interpretação (1998, p.241, grifo nosso)
Deve se compreender a obra de Kafka a partir da literalidade, sem ―conceitos impostos
a partir de cima‖, pois ―a autoridade de Kafka é a dos textos‖. Esse princípio da literalidade se
relaciona com a exegese da torá. Deste modo, o leitor ―deveria se relacionar com Kafka da
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mesma forma como Kafka se relaciona com o sonho, ou seja, deveria se fixar nos pontos
cegos e nos detalhes incomensuráveis e intransparentes‖ (ADORNO, 1998, p.243). Adorno
aponta uma série de excertos da obra de Kafka onde esse princípio da literalidade atua, onde o
elemento dos gestos serve a essa dimensão ambígua dos textos de Kafka: ―'Li a carta',
começou K., 'Sabes o conteúdo?', Não', respondeu Barnabás, e seu olhar pareceu dizer mais
que as suas palavras‖ (p.244). Segundo Adorno, ―o gesto é o ‗assim é‘. A linguagem, cuja
configuração deveria ser a verdade, torna-se inverdade quando distorcida‖ (Ibid.).
Podemos aqui traçar um retorno ao fundamento do romance moderno. O romance
moderno supõe uma organicidade entre a parte e o todo, cujo desenlace é o final, que permite
realizar esse entrelaçamento onde todas as partes da obra formam uma totalidade única. Já em
Kafka a totalidade não se faz. A conexão entre as partes da obra não torna o todo transparente
e apreensível de sentido. Se o sentido não está na obra, em tese se encontraria fora dela, na
alegoria. Mas ―a autoridade é a dos textos‖. O sentido está na literalidade e a sensação da
leitura é como se tivessem roubado a chave de apreensão do sentido da parábola.
Adorno concebe Kafka como um herdeiro do expressionismo. Não apenas isso, ―ao
liquidar o sonho por sua onipresença, o épico Kafka levou o impulso expressionista tão longe
quanto os líricos mais radicais‖ (1998, p.258). Adorno cita o problema do eu alienado:

O princípio hermético é o princípio da subjetividade completamente


alienada. Não é por acaso que Kafka, nas controvérsias relatadas por Brod,
rejeita toda e qualquer integração social; se este tema foi abordado em O
Castelo, só o foi devido a esta recusa(...) A subjetividade absoluta é, ao
mesmo tempo, desprovida de sujeito. O si-mesmo vive unicamente na
alienação, como resíduo seguro do sujeito que se fecha diante do estranho,
tornando-se um cego resíduo do mundo. Quanto mais o Eu do
expressionismo volta-se sobre si mesmo, tanto mais também se assemelha ao
mundo de coisas que ele exclui. Devido a esta semelhança, Kafka obriga o
expressionismo(...) a uma épica tortuosa; a pura subjetividade,
necessariamente alienada e transformada em coisa, é levada a uma
objetividade que se exprime através da própria alienação. A fronteira entre o
humano e o mundo das coisas torna-se tênue. (pp.258-259-260)
Não apenas Kafka é um herdeiro do expressionismo, como ele é capaz de dar um
encaminhamento mais adequado a ele nesse período histórico. A busca do caminho ―de volta
para o Eu‖ se dá em uma relação conturbada entre Eu e o mundo, no qual o expressionismo
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representa uma deformação do mundo objetivo pela subjetividade afetada pela ausência da
objetividade na retratação da vida. A crise do realismo na representação engendra o mundo
esvaziado de sentido, tornando esse retorno ao Eu, a forma do Eu mais espontâneo e imediato.
Kafka se atém a uma compreensão do sujeito como um fechado em si mesmo, sem encontrar
sentido no mundo. Assim Kafka não capta o sentido dos personagens no processo da
narração. Nem dos personagens e nem do que vai além deles.
Não existe uma visão totalizante do processo que permeia a obra e o enredo, por parte
do narrador. Kafka sabe tanto quanto seus personagens sobre eles mesmos, assumindo um
horizonte limitado enquanto narrador. Essa forma que suas obras assumem deriva do processo
histórico que torna o mundo ausente de sentido. A partir disso, o retorno ao Eu torna-se o
último recurso do expressionista. O próprio sujeito aqui deixa de ser um sujeito inconformado
com a objetividade, mas ele também perde sentido e objeto e sujeito se equivalem. Na obra de
Kafka ambos são objetos. O esvaziamento de sentido do mundo impede tanto o realismo
como o Retorno ao Eu, pois tanto o mundo objetivo como o sujeito estão desprovidos de
sentido.
Segundo Adorno, a obra de Kafka é desprovida de dimensão histórica contextualizada,
pois:

tudo que Kafka narra pertence à mesma ordem. Todas as suas histórias
desenrolam-se no mesmo espaço sem espaço, e todos os buracos são tão
perfeitamente tapados que as pessoas levam um susto quando se menciona
algo que não caberia ali, como a Espanha e o Sul da França, evocados em
uma passagem de O castelo (pp.252-253)
3. A diferente abordagem da obra de Kafka por Lukács
Lukács aborda de outra maneira a obra kafkiana. Sua abordagem se dá no contexto da
caracterização das vanguardas literárias260 do século XX como ―decadentes‖. Lukács

260
Na base da noção lukacsiana de ―vanguarda‖ está o contraste entre ―obra de arte orgânica‖, realista, e a
inorgânica. À medida em que Lukács pensa a obra de arte realista como a norma estética por excelência, o
antirrealismo do universo cultural estético do século XX vai ser visto como Lukács como a expressão da
decadência da arte e também ―expressão da alienação‖ (BÜRGER, 1993, p.146)

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diferencia o ―realista crítico‖ dos escritores decadentes. No primeiro ele aponta Thomas Mann
como representante, e no segundo aponta Kafka e toda a literatura de vanguarda do século
XX. Lukács mobiliza a categoria de ―possibilidade‖, dividindo essa em ―possibilidade real‖ e
―possibilidade abstrata‖. Na primeira se desenvolve o espaço em que as personalidades agem,
ao passo que a segunda se dá o processo de subjetivação, inclusive tornando a primeira
arbitrária. A literatura realista nesse sentido, ao refletir ―de maneira fiel a realidade objetiva,
representaria as possibilidades reais e abstratas do homem em suas relações mútuas‖
(LUKACS, 1969, p.42).
Lukács aponta um princípio de seleção capaz de encontrar o concreto ―na imensa
massa dos abstratos‖, princípio este que se dá na interação viva e concreta entre o homem e o
mundo-ambiente, e por meio desta as possibilidades concretas do indivíduo podem se libertar
das possibilidades abstratas e revelar-se como realidades concretas que condicionam este
indivíduo. Para Lukács, as vanguardas rejeitam em si esse princípio de seleção, estabelecendo
o indivíduo ―em relação a si‖, excluindo o mundo, o que distorce esse gênero. Por isso a
atribuição de ―decadente‖, expressando a ―dissolução da forma objetiva em elementos
subjetivos‖ (p.44), correspondendo a um corte entre a literatura e o mundo. Nesse sentido
Lukács nota que ―uma vez que uma vez que identificamos no homem a possibilidade abstrata
e a possibilidade concreta, coloca-se desde logo como absolutamente inexplicável a
realidade objetiva do mundo em que ele vive‖. Lukács considera que em Kafka isso se
expressa de alguma forma:

Kafka, que descreve sempre os pormenores de maneira realista, concentra


todos os meios da sua arte para exprimir esta concepção angustiada que ele
próprio tem da essência do mundo como se ela constituísse efetivamente "o"
real; é o mesmo que dizer que, à sua maneira, também ele suprime o real. Na
sua obra, os pormenores realistas servem de matéria e de suporte a um irreal
fantasmagórico, a um mundo de pesadelo, que deixa assim de ser um mundo
e exprime apenas uma angústia subjetiva. Deste modo o real efetivo
transforma-se num real onírico (...) (p.45-46)
Lukács avalia Kafka como um brilhante observador: ―ele sente tão profundamente o
caráter fantasmagórico do mundo que, na sua obra, a cena mais banal da vida cotidiana se
torna uma presença desenraizante e de pesadelo‖ (p.73). Lukács diferencia Kafka dos demais
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escritores da vanguarda, por seus aspectos descritivos, que apresentam elementos realistas,
mas o princípio de representação coloca Kafka no grupo de ―decadentes‖:

Franz Kafka é o exemplo clássico do homem que se imobiliza, num medo


pânico e cego da realidade efetiva. A sua situação excepcional na literatura
de hoje deve-se a ter sabido exprimir, de maneira direta e simples, esse
sentimento em relação à vida; procuraríamos em vão, na sua obra, os
requintes formais, as técnicas amaneiradas, através das quais outros
escritores pretendem traduzir a mesma estrutura de base. É esta própria
estrutura, na sua simples imediaticidade, que determina a sua própria
maneira de escrever. Por este aspecto da sua arte, pode parecer que Kafka
pertence ao grupo dos grandes realistas(...)Kafka representa esta angústia e,
por isso mesmo, a estrutura objetiva que se lhe aparece como causa exterior
e que deve justificá-la. Se Kafka é um artista incomparável, não é de modo
nenhum porque tenha descoberto novos. meios de expressão, mas antes
porque dá ao mundo objetivo, tal como o concebe, e aos personagens que
situa em face desse mundo, uma evidência simultaneamente sugestiva e
exasperante: "O que choca, diz Adorno não é tanto a monstruosidade desse
mundo mas a sua obviedade". (p.121-122)
Nesse sentido, o que fornece os verdadeiros materiais para a obra de Kafka é o
―mundo infernal do capitalismo atual‖. Contudo, essa objetividade se expressa com:

uma autêntica ingenuidade, a ingenuidade do puro pressentimento, do


verdadeiro não-saber; e deste modo assume, na sua obra o valor de uma
―condição humana‖, que se pretende ―eterna‖ (...)Daqui resulta, na obra de
Kafka, uma surpreendente intensidade de efeitos imediatos, um muito mais
forte poder de sugestão, que não conseguem suprimir, porém, o aspecto
alegórico do hic et nunc. Porque, mesmo os detalhes mais excepcionalmente
sugestivos, referem-se sempre a uma realidade que os transcende, àquilo que
constitui a própria essência do período imperialista, intuitivamente
pressentida e estilizada em ser intemporal. Não se trata, pois, como nos
autores realistas, de fatos centrais, de nós de bifurcação, de pontos cruciais
para os conflitos que se desenrolam no presente, mas - em última análise - de
simples cifras que se referem a um inapreensível além. Tanto mais evidente,
portanto, é o seu poder imediatamente evocador, tanto mais profundo será
também o abismo, tanto mais intensa a ruptura alegórica entre o ser e o
significado. (p122).
Lukács pensa Thomas Mann como a contraparte a esse processo. Em sua obra, Mann
sempre ―mantém os pés firmes em terra‖, mesmo diante da sociedade burguesa. Coloca a
perspectiva do socialismo, mas sem permitir que sua obra dê lugar a algo próprio de outro
mundo que não a expressão do espaço e tempo em si próprios, colocando a exata proporção

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entre ―ser e devir‖. Na obra de Mann, Lukács aponta que ―cada elemento concreto do
presente move-se em direção a uma realidade concreta, e o significado humano de cada
movimento - a sua importância em função do progresso da humanidade - sobressai sempre
sem equívoco‖ (p.124). A pergunta que dá nome ao ensaio - Franz Kafka ou Thomas Mann -,
se desdobra a partir de algo que Lukács expõe como ―uma escolha decisiva entre dois termos
da alternativa presente‖: escolher entre aproximar-se da angústia ou se afastar dela. A escolha
decisiva:

o elemento decisivo é saber se o homem se desvia da realidade social, do


devenir histórico presente, para se entregar a vazias abstrações - que leva
imediatamente à segregação da angústia no Seio da consciência - ou se ele se
liga a esta realidade, a este devenir, de maneira concreta, para combater
inimigos concretos e promover aquilo que julga favorável. É claro que, antes
de escolher uma destas duas atitudes, é necessário ter resolvido uma questão
prévia: o homem concebe-se a si próprio como uma vítima desarmada de
poderes transcendentes incognoscíveis ou invencíveis ou antes como
membro ativo de uma comunidade humana, no seio da qual lhe cabe
desempenhar o seu papel, mais ou menos eficaz, mas que, à sua maneira,
influencia sempre o destino da humanidade? (p.126)
Deste modo, a pergunta entre Kafka ou Thomas Mann é sintetizada como:
―Decadência artisticamente interessante ou um realismo crítico verdadeiro como a vida? ‖
(p.133).
Adorno chega a entrar na discussão aberta com Lukács. Como vemos, é a tensão entre
sujeito e objeto do mundo contemporâneo que leva Adorno a pensar a literatura sob essa
chave. A defesa, por parte de Lukács, do realismo crítico, é considerada por Adorno como
uma ―reconciliação‖ (entre sujeito e objeto) e que apenas pode se realizar de maneira forçada
e ideológica. É nesse sentido que Adorno irá considerar Lukács um dogmático e rejeitar sua
noção de decadência:

O núcleo da teoria torna-se dogmático. A literatura moderna conjunta, na


medida em que não se adapta à fórmula – seja a do realismo crítico, seja a do
socialista – é rejeitada e a ela é imputado sem hesitação o ódio da
decadência, um insulto que encobre na Rússia, e não apenas nela, toda
atrocidade de perseguição e exclusão. O uso de tal expressão conservadora é
incompatível com a doutrina cuja autoridade, assim como os seus superiores,

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por meio desta expressão mesma queria equiparar à comunidade popular.


(ADORNO, 2014, p.323)

Adorno também recusa a crítica de Lukács à vanguarda como uma arte decadente e
produto de um existencialismo individualista, como uma ―capitulação‖ irracionalista diante da
alienação. Quando Adorno cita Baudelaire, ele aponta justamente o que seria contraditório na
avaliação histórica de Lukács, pois a manifestação da solidão e do abandono em sua poesia
não é uma compreensão da essência humana em geral, mas uma expressão da essência da
modernidade, dado que ―a solidão na sociedade individualista é socialmente mediada e de
conteúdo essencialmente histórico‖ (2014, p.328). Não é o ―abstrato em-si‖, mas a essência
social. Do mesmo modo, Adorno não vê o individualismo em Baudelaire, mas pensa a sua
poesia como:

a primeira a codificar o fato de que a arte, no seio da sociedade de


mercadorias totalmente desenvolvida, consegue apenas na sua impotência
ignorar essa tendência. Só ao reduzir a sua imagerie à sua autonomia é que
consegue superar o mercado da heteronomia. A arte é moderna através da
mimese do que está petrificado e alienado. (ADORNO, 1982, p.33)

À base das reflexões adornianas sobre estética e as vanguardas literárias reside suas
considerações sobre o papel do ―negativo‖ na dialética. A interrupção da busca da totalidade
não é um aspecto arbitrário das vanguardas estéticas, mas uma expressão do próprio estágio
atual do capitalismo. Adorno está pensando aqui de um lado a transição do capitalismo
baseado na livre concorrência para o que ele chama de ―sociedade administrada‖, baseada no
capitalismo monopolista, por isso a referência a Kafka é importante. Kafka é um autor que
consegue expressar a angústia da narrativa da modernidade no período do capitalismo tardio.
Uma arte ―desfetichizadora‖ para Adorno só poderia cumprir esse papel caso seja
radicalmente nova, conseguindo captar esse problema do sujeito e objeto no mundo
contemporâneo.

Kafka descreve um todo no qual aqueles que a sociedade aprisiona, e a sustentam, se


tornam supérfluos. Na leitura de Adorno, se trata de um ―criptograma da fase final e

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resplandecente do capitalismo, que Kafka exclui para determiná-la mais precisamente em sua
negatividade‖ (ADORNO, 1998, p.252), e:

nenhum mundo poderia ser mais homogêneo do que o mundo sufocante que
ele comprime em totalidade por meio da angústia do pequeno-burguês. O
sistema é lógico do início ao fim e, como qualquer sistema, desprovido de
sentido (Ibiden)
Há uma visão profética do futuro na observação do resíduo dos sistemas em Kafka,
por isso Kafka ―desmascara o monopolismo nos refugos da era liberal liquidada pelos
monopólios‖ (1998, p.253). Kafka eterniza o instante histórico e por isso evita essa dimensão
histórica:

o instante, o absolutamente transitório, é uma parábola da eternidade do


perecimento, da danação (...) Em meio a relações sociais aparentemente
estáticas, muitas vezes artesanais ou agrárias, características de uma
economia mercantil simples, o histórico é apresentado por Kafka como algo
condenado, da mesma maneira como essas relações também estão
condenadas. (p.254)
Sob esta interpretação, Kafka em América perpetuou o ―semblante hipocrático‖ do
capitalismo monopolista, ―que aniquilou o comércio e os negócios‖ (1998, p.257). O
resultado é a ―dominação disfarçada‖, ―violência cega que se reproduz infinitamente‖. A
questão passa pela não descoberta do sucessor do burguês, que agoniza com sua tradução em
arquétipos: ―a perda de seus traços individuais, a descoberta do horror existente debaixo do
monumento da cultura, marca a decadência da própria individualidade‖ (Ibiden). Adorno
faz referência dessa situação de agonização histórica com o conto de Gracchus sobre o
caçador que não é mais selvagem, incapaz de morrer. Nesse sentido se sucede com a
burguesia:

A história torna-se em Kafka o inferno, porque a salvação possível foi


perdida. Esse inferno foi inaugurado pela própria burguesia tardia. Nos
campos de concentração do fascismo aboliu-se a linha demarcatória entre a
vida e a morte, o que gerou uma situação intermediária (...). Como na épica
pelo avesso de Kafka, o que pereceu ali foi o parâmetro da experiência, a
vida vivida até o fim. Gracchus é a perfeita refutação da possibilidade
expulsa do mundo: a de morrer em idade avançada, após ter vivido
plenamente (Ibiden)

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Do mesmo modo procede a analogia da salvação. Adorno concebe a obra de Kafka


como uma teologia inversa. A oposição entre sombras e luz se mantém. Contudo, o papel do
mundo terreno enquanto vazio de sentido não se dá em termos de conceber uma ideia de
salvação. Essa dimensão de salvação é o que permite observar o inferno do mundo terreno,
como espaço da alienação absoluta. É a fonte da luz que permite apresentar as feridas do
mundo, que evidencia o vazio de sentido do mundo terreno e o concebo como o Inferno.
Essas interpretações de Adorno remetem ao elemento do negativo. Não se trata da salvação
positiva, mas o bloqueio das tendências emancipatórias se realizarem positivamente:

Segundo o testemunho da obra de Kafka, toda positividade, toda


contribuição, poder-se-ia mesmo dizer que todo o trabalho que reproduz a
vida apenas promove o intrincamento. ―Fazer o negativo é o nosso dever: o
positivo já nos foi dado‖. O único remédio contra a quase inutilidade da vida
que não vive é a inutilidade plena (1998, p.269) (grifos nossos)
Nesse sentido, Adorno aponta a alegoria de revolução na obra de Kafka, de uma
criança com uma espingarda em um manuscrito de 1917. Os resíduos da história, o elemento
do antiquado, são o estigma do presente (1998, p.254), mas apresentados às crianças, estas
lidam com ela como se fosse a história enquanto tal, ―a esperança de que ainda pode se haver
história‖. A partir disso, se estabelece esse sentimento de alguém em perigo que se alegra não
por ser salvo, pois a salvação não ocorrerá, mas porque os jovens virão, com esperança,
assumindo uma luta com ignorância do que lhes espera.

. Considerações Finais.

Peter Bürger pensa que apesar de uma disputa teórica e estética entre ambos autores,
existe um ponto em que ambas interpretações se encontram (BÜRGER, 1993, p.147). Para
Bürger, ambas acabam por partir da arte de vanguarda como a expressão máxima da arte na
sociedade moderna burguesa, se de um lado como a expressão de sua decadência, do outro
concebida como a expressão artística adequada ao período histórico. Se Adorno critica Lukács
por conceber o realismo enquanto arte legítima, Bürger vai afirmar que Adorno realiza o
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mesmo procedimento, mas partindo da arte de vanguarda, pensando a ―unidade da arte


moderna como única arte legítima do presente‖ (BÜRGER, p.136). Bürger aqui também
contrapõe a Adorno o seu próprio esforço de ―mostrar os movimentos históricos de
vanguarda como um fenômeno delimitado pela história‖ (Ibiden). Ademais, Bürger pensa
que o desenvolvimento teórico de Adorno sobre a arte de vanguarda é inaplicável, pois se
Adorno pensava o processo de ruptura com o tradicional como um desenvolvimento de uma
arte moderna adequada ao momento histórico, essa mesma vanguarda pretendia superar a
própria instituição arte. O conceito adorniano de ―novo‖ para tratar da ruptura que a arte de
vanguarda representaria também não consegue ser capaz de analisa-la adequadamente ―não
só por ser geral e inespecífico, mas também por não oferecer qualquer possibilidade de
distinguir entre a moda e a inovação historicamente necessária‖ (p.110).

Deste modo, Bürger pensa que esses pontos de referência comuns a Adorno e Lukács
fez com que ambos não pensassem o problema da vanguarda se conceber como uma ruptura
não apenas com as formas anteriores de arte mas com a própria instituição arte261, afinal
centrando e reduzindo a polêmica sobre a vanguarda aos aspectos ―do meio artístico e
alterações que produz no tipo de obra‖ (BÜRGER, p.147), não se ocupam dos próprios
ataques à instituição arte como um todo realizados pelo movimento vanguardista. Então, para
Bürger, se existe essa ruptura com a própria arte de modo geral, o problema da validade e
legitimidade das expressões artísticas da vanguarda seria um falso problema. Bürger avalia
que Lukács e Adorno, não enxergando esse problema, estariam comprometidos com um
período pré-vanguardista ainda. Essa implicação para a arte do século XX foi o significado
histórico do movimento vanguardista, ao acabar com a noção de validade geral de qualquer
tendência artística em particular, segundo Bürger.

261
Aqui seria importante esclarecer algo sobre a obra de Bürger. Bürger apresenta o desenvolvimento histórico
da vanguarda como um movimento que tem como norte justamente não um novo modo de se pensar a arte mas
uma ruptura com essa noção de arte enquanto uma instituição. Bürger está pensando o desenvolvimento desse
conceito ―instituição arte‖ como algo que surge plenamente na modernidade no processo de autonomização da
arte.

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De fato, é verdadeiro que Lukács não ocupa sua análise desse problema em geral, mas
ao invés de ser algo que Lukács não consegue reconhecer por ignorar o problema, nos parece
que se dá pela própria concepção lukacsiana de estética, que acaba por abarcar de alguma
forma esse problema. Ao analisar o problema da vanguarda como uma expressão da
decadência e da alienação da sociedade burguesa, Lukács termina seu ensaio ―A concepção
de mundo subjacente à vanguarda literária‖ apontando que a tendência do movimento
vanguardista na arte é justamente a própria ―autodestruição da estética‖ (LUKÁCS, 1969,
p.75). Apenas é possível pensar as duras avaliações de Lukács quanto à vanguarda pensando
seu problema estético como um problema ligado a certa concepção de mundo, derivado de um
certo espírito do tempo histórico presente. Em última instância Lukács pensa que ―o que há
de humano na base de uma obra de arte, a atitude que ela plasma como possível (...) é o que
decide em última instância sobre o que ela representa na história da arte e (...) da
humanidade‖ (LUKÁCS, 1966b, p.10).

É sob esta base que reside a sua preocupação com a retomada dos clássicos, não em
nome de um regresso conservador, mas em prol de uma preocupação com o estado de
alienação do tempo presente e suas consequências para a arte do século XX, rompendo com a
decadência desumanizadora do estado estético do tempo presente em defesa de uma arte em
consonância com os clássicos não em sentido de correspondência a ―certas regras formais‖
mas do fato de que a obra seja capaz ―de dar às relações humanas mais essenciais e típicas a
máxima expressão de materialização sensível, de individualização‖ (LUKÁCS, 1965, p.513).

Nessa relação com o negativo, podemos pensar a reavaliação que Lukács realiza da
obra de Kafka. Não podemos pensar que Lukács rejeitava o caráter historicamente constituído
do sentimento diante do mundo manifestado nas obras de vanguarda. Lukács, contudo, se
opunha a como expressar o elemento do negativo nessas obras, e a ―imersão impiedosa‖ de
Adorno na dialética negativa. A essa imersão inevitável no negativo, Lukács pensa na
imanência do processo histórico real recuperando a máxima hegeliana da racionalidade do
real, e rejeita a dialética negativa como um impasse insuperável, como atesta Tertulian,

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afirmando que o que marcava a interpretação lukacsiana era ―a convicção de que a pressão
invasora da alienação, apesar de suas aparências de universalidade, pode ser desfatalizada,
e que potencialidades de resistência e oposição à negatividade sempre existem na própria
imanência do processo histórico‖ (TERTULIAN, 2010, p.108). Nesse sentido que podemos
compreender a afirmação de Lukács de que a escola de Frankfurt era um hotel de luxo à beira
de um abismo, pois ao ficarem presos no momento negativo da dialética, estariam
contemplando a decadência contemporânea como um espetáculo do absurdo (LUKÁCS,
2005, pp.17-18)262.

É nessa diferenciação, antagônica, sobre as possibilidades emancipatórias da arte que


residem partes fundamentais da querela entre Adorno e Lukács no âmbito da estética. Lukács,
por sua vez, embora tenha uma avaliação antagônica da de Adorno sobre essa dimensão do
negativo, conseguiu realizar uma análise diferente sobre Kafka em sua maturidade, e
Tertulian aponta que vários dos textos de Lukács a partir da escrita de sua Estética
demonstram a admiração que Lukács tem em relação a Kafka (TERTULIAN, p.111).
Carlos Nelson Coutinho, autor insuspeito responsável por traduções de Lukács e sua
recepção no Brasil, que defende a abordagem de Lukács sobre o realismo crítico, sustentando
sua análise sobre as vanguardas, também constata, em introdução ao livro Realismo Crítico
Hoje, que Lukács teria sido injusto com Proust e Kafka por ―excessivo rigor‖, e ambos
autores não poderiam ser confundidos com a massa geral de autores oriundos da vanguarda
(COUTINHO, 1969, p.10). Na concepção de Coutinho, não é a Kafka, mas a James Joyce que
deveria ser incumbida a caracterização do mais típico representante do anti-realismo moderno
e do anti-humanismo. Para Coutinho, as análises de Lukács sobre Joyce são testemunho não
apenas da radical oposição entre Joyce e o realismo crítico, mas também entre Joyce e Kafka
e Proust. O próprio Lukács escreveria carta a Coutinho se convencendo de que é aconselhável

262
A mesma expressão foi utilizada por Lukács para se referir a Schopenhauer em sua obra Asalto a la razón
(1968)

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diferenciar Kafka da literatura posterior, e que seu estudo em Realismo Crítico Hoje não vai
suficientemente longe.
Coutinho identifica um ―humanismo vigoroso‖ presente em Kafka que se contrapõe ao
―niilismo alegórico e absurdismo impotente da vanguarda‖. Coutinho concebe que nas
―melhores produções de Kafka, que romperiam ―essencialmente‖ com a vanguarda, Kafka se
utiliza de uma forma literária mais próxima da novela do que do romance. Na novela se
verifica a representação da irrupção de um fato excepcional na vida de indivíduo, que
explicita um conflito particular elevado à tipicidade. A totalidade permanece no horizonte,
não como no Romance, mas se figura por meio da reflexão desta em um conflito específico.
Coutinho identifica isso, ―de modo claro‖ em A Metamorfose e, em ―certo sentido‖, em O
Processo:

Na primeira, a absorção de técnicas fantásticas não deve ser confundida com


o anti-realismo; trata-se, antes, de uma continuação da herança do realismo
crítico fantástico de Hoffmann e de Gogol, ou seja, da intensificação dos
processos reais para melhor romper com a crosta da alienação fenomênica e
penetrar na essência dos comportamentos reais. No segundo, através da
irrupção de um fato excepcional, mas de uma excepcionalidade que é
também a intensificação de possibilidades reais., Kafka desmistifica e critica
a falsa ideologia da "segurança" sobre a qual se apoia, em grande parte, a
manipulação burguesa das consciências e sua conservação na alienação; e
denuncia igualmente, com uma universalidade estética elevada, as formas da
alienação capitalista consubstanciadas na organização tecnoburocrática da
sociedade. (1969, p.14-15)
Coutinho concorda com a indicação de Thomas Mann, da parte de Lukács, como
modelo de literatura realista, mas identifica o equívoco de Lukács, pois a obra de Kafka ―não
pode ser confundida com. a vanguarda anti-humanista, que capitula diante das alienações ao
convertê-las em fetiches imutáveis‖ (1969, p.16), cujas melhores obras residem ―onde ele
rompe com a alegorização vanguardista em favor de um realismo sui generis‖ (Ibiden).
É interessante observarmos que Adorno chegou a comentar a mudança de análise
lukacsiana, afirmando que Lukács teria caracterizado Kafka como um escritor realista
(TERTULIAN, p.111). Adorno, contudo, afirma que essa suposta ―mudança de atitude‖ seria
demonstração do caráter frágil da estética lukacsiana e ainda desenvolve que para ser

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consequente com essa suposta revisão, ele teria que rever também o mesmo veredito sobre
Beckett e até sobre o realismo socialista como um todo (Ibiden). Tertulian considera que
essas afirmações de Adorno são uma manifestação do fato de que o autor alemão ignorava as
razões estéticas dessa mudança de julgamento da parte de Lukács, apontamento que
concordamos aqui dado que a profundidade dos escritos de Lukács sobre estética não nos
parecem manifestação de dogmatismo e arbitrariedade de sua parte. Lukács chega até mesmo
a fazer um paralelo de Kafka com o escritor irlandês Jonathan Swift:
os dois escritores teriam forjado uma imagem fantástica e profética das
tendências negativas de sua época, as parábolas de Kafka figurando a contra-
humanidade do mundo da última parte do reino de Franz Joseph, deixando
transparecer através da negatividade onipresente, a revolta contra a
aberração (TERTULIAN, 2010, p.112)
Tertulian, portanto, pensa que uma suposta mudança de atitude para com Samuel
Beckett não seria coerente com a concepção estética lukacsiana. O próprio filósofo húngaro
teria oposto, em sua Estética, O Processo de Kafka à obra Molly do dramaturgo irlandês. O
grito de revolta de Kafka contra o absurdo do mundo através de uma negatividade onipresente
se distingue da obra de Beckett em que ocorre a ―autossatisfação da particularidade
fetichizada e absolutizada‖, e a sua ―aparente profundidade‖ é um ―apego estático a certos
sintomas de uma superfície imediata que o capitalismo de nossos dias oferece‖ (LUKÁCS,
1966a, p.484).
Essa avaliação de Coutinho sobre a injustiça feita por Lukács ao categorizar Kafka ao
lado dos autores vanguardistas, bem como a destacável maturidade do próprio filósofo
húngaro em reavaliar a obra de Kafka a distanciando da ―decadência‖ do tempo presente nos
parece a chave para uma interpretação mais adequada da obra kafkiana, bem como sobre a
atualidade dos apontamentos de Lukács sobre o problema da obra de arte para pensar o
mundo estético como expressão de certo espírito de uma época histórica.

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__________. Teoria estética. Trad. Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
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ed. Perspectiva, 2004.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 8ª ed, 2014.
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CEBRAP (São Paulo), n.35, março, 1993. Tradução do alemão e nota de Modesto Carone.
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Trad. Ernesto Sampaio. Lisboa: Vega, 1993.
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Coordenada Editora de Brasília, 1969.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Deslocamentos e deformações em Kafka. Viso: Cadernos de estética
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______________. Problemas del Realismo. México: Fondo de Cultura Economica, 1966b.
______________. Realismo Crítico hoje. Trad. Ermínio Rodrigues. Brasília: Coordenada Editora de
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TERTULIAN, Nicolas. Lukács/Adorno: a reconciliação impossível. Tradução de Carla
Cavalcanti e Silva e Leandro Candido de Souza. Verinotio, n. 11, Ano VI, abr./2010.

WATT, Ian. A ascensão do Romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Ed.
Cia das Letras, 2010.
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A FILOSOFIA MORAL DE DAVID HUME: UMA RESPOSTA AO


EGOÍSMO MORAL PELA PERSPECTIVA DA NATUREZA HUMANA

Daniel Nascimento de Almeida


Assim como as faces humanas riem com as que
riem, também choram com as que choram.
(Horácio)

Resumo
Neste artigo, pretende-se oferecer uma breve apresentação dos argumentos de David Hume
(1711-1776) contra a concepção egoísta na filosofia moral. Para tal, uma compendiosa
explanação do contexto da filosofia moral britânica dos séculos XVII e XVIII tornar-se-á
fundamental. Os adeptos do egoísmo moral defendem a tese de que o interesse próprio é a
fonte de todas as boas ações e que a benevolência não passa de mera hipocrisia. Hume, por
sua vez, opõe-se a essa tese à medida que enfatiza o caráter benevolente e inventivo da
espécie humana.
Palavras-chave: David Hume. Egoísmo Moral. Filosofia Moral Britânica. Natureza Humana.

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1. Introdução

Os séculos XVII e XVIII ofereceram circunstâncias favoráveis para a discussão da


moral. Pode-se dizer que isso está mais diretamente relacionado às principais características
da modernidade – marcada pela exploração do novo mundo, graças à expansão marítima; e
pelo desenvolvimento da ciência, devido à revolução científica. A expansão marítima
ofereceu aos pensadores modernos certa consideração pela variedade de costumes existentes
no mundo263, o que foi suficiente para intensificar a crise na qual a moral europeia (que tinha
seu maior alicerce na imagem da Igreja Católica) já estava mergulhada264. A revolução
científica, por seu turno, trouxe à tona as exigências do método experimental. Na linha do que
argumenta Jacqueline Taylor em seu livro Reflecting Subjects: Passion, Sympathy, & Society
in Hume‘s Philosophy: ―Como Geoffrey Cantor apontou, a linguagem do experimento
funciona no início do período moderno como um discurso de poder, na medida em que
delimita o que conta como legítimo em ciência‖ (2015, p. 1, tradução nossa)265.

263
Jaimir Conte, em sua tese de doutorado intitulada A natureza da moral de Hume, enfatiza alguns pontos
acerca da moral no contexto moderno ao enfatizar os Ensaios de Montaigne. Segundo Jaimir, é justamente nessa
obra que o filósofo abre margem ao relativismo moral em muitas passagens relacionadas às leis e aos costumes.
264
É conveniente ressaltar que a redescoberta das obras de Sexto Empírico trouxe à modernidade muito do
espírito pirrônico que há muito não se ouvia falar. Evidentemente, o desenvolvimento do espírito cético - em um
contexto já muito turbulento - era mais uma preocupação para a Igreja e um ponto importante a ser levado em
conta nas discussões filosóficas da modernidade. Plínio Junqueira Smith desenvolve um trabalho sobre esse
assunto em seu livro O Método Cético de Oposição na Filosofia Moderna. Além disso, os movimentos de
reforma e contrarreforma também tiveram profunda importância neste contexto (Michele Federico Sciacca
apresenta um panorama geral consentâneo sobre esse tema no contexto da filosofia moderna em seu livro
História da Filosofia II: Do Humanismo a Kant).
265
―As Geoffrey Cantor has pointed out, the language of experiment functioned in the early modern period as a
‗discourse of power‘, insofar as it delimits what counts as legitimate science.‖

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Com isso, deve-se ter em mente que o contexto moderno estava marcado por grandes
controvérsias. Dois pontos importantíssimos devem ser ressaltados nesta conjuntura: (1) a
discussão de novas teorias morais impulsionadas pela diversidade de costumes e perspectivas
que se chocaram com a instabilidade da tradição; e (2) o estabelecimento do método
experimental como critério de validade para a ciência. Logo, era de se esperar que houvesse
uma considerável mudança na abordagem do estudo da moralidade. Nesse sentido, ainda na
direção apontada acima, ao levar em conta o lugar que o método experimental ocupava para
os filósofos modernos, não parece ser um absurdo total considerar que o estudo da moral
também pudesse ser auxiliado pelo método experimental. Evidenciar esse ponto consiste em
tornar mais coerente o modus operandi declarado pelos filósofos da Grã-Bretanha266. É
justamente isso que Hume aponta já na introdução do Tratado da natureza humana:

Assim como a ciência do homem é o único fundamento sólido para as outras


ciências, assim também o único fundamento sólido que podemos dar a ela
deve estar na experiência e na observação. Não é de espantar que a aplicação
da filosofia experimental às questões morais tenha tido que esperar todo um
século desde sua aplicação à ciência da natureza. Na verdade, sabemos que o
mesmo intervalo separou a origem dessas ciências: o tempo transcorrido
entre TALES e SÓCRATES é quase igual ao que transcorreu entre LORD
BACON e alguns filósofos recentes da Inglaterra, que deram início à
construção de uma nova base para a ciência do homem, atraindo a atenção e
despertando a curiosidade do público (2009, p. 22).

Mesmo depois de reconhecer o desenvolvimento que o método experimental trouxe às


ciências da natureza, Hume sabia que a aplicação do mesmo método às ciências morais não

266
Jonh L. Mackie apresenta uma breve introdução ao contexto moral britânico em seu livro Hume‘s Moral
Theory. Assim, dentre os predecessores de Hume estão: Thomas Hobbes (1588-1679), Lord Shaftesbury (1671-
1713), Samuel Clarke (1675-1729), William Wollaston (1659-1724), Bernard Mandeville (1670-1733), Francis
Hutcheson (1694-1746) e Joseph Butler (1692-1752). Nesse aspecto, vale ressaltar que a editora Unicamp
publicou recentemente a segunda edição de uma coletânea de textos intitulada Filosofia Moral Britânica: textos
do século XVIII. Textos selecionados de Shaftesburry, Clarke, Wollaston, Mandeville, Hutcheson e Butler
podem ser encontrados na coletânea em questão.

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poderia ser conduzida da mesma forma. Isso se deve ao fato de que quando a referência é a
natureza de um experimento necessariamente considera-se a possibilidade de poder repeti-lo
quantas vezes for necessário, isto é, até que aquilo que está sendo especulado por meio da
observação dos fatos seja comprovado. Tratando-se de objetos inanimados, a possibilidade de
reproduzir o mesmo experimento inúmeras vezes, sem nenhuma alteração significativa, é
factível. Em contrapartida, o mesmo não se aplica a situações que envolvem seres humanos,
pois segundo Hume, o comportamento das pessoas poderia ser minimante alterado caso
soubessem que estão sujeitas a um experimento, a saber, as pessoas não agiriam normalmente
sob as mesmas condições. Nesse aspecto, Hume apresenta o seguinte ponto ao final da
introdução do Tratado da natureza humana:

É verdade que a filosofia moral tem uma desvantagem peculiar, que não se
encontra na filosofia da natureza: ela não pode reunir experimentos de
maneira deliberada e premeditada, a fim de esclarecer todas as dificuldades
particulares que vão surgindo. Quando não sou capaz de conhecer os efeitos
de um corpo sobre outro em uma dada situação, tudo que tenho a fazer é pôr
os dois corpos nessa situação e observar o resultado. Mas se tentasse
esclarecer da mesma forma uma dúvida no domínio da filosofia moral,
colocando-me no mesmo caso que aquele que estou considerando, é evidente
que essa reflexão e premeditação iriam perturbar de tal maneira a operação
de meus princípios naturais que se tornaria impossível formar qualquer
conclusão correta a respeito do fenômeno. Portanto, nessa ciência, devemos
reunir nossos experimentos mediante a observação cuidadosa da vida
humana, tornando-os tais como aparecem no curso habitual do mundo, no
comportamento dos homens em sociedade, em suas ocupações e em seus
prazeres (2009, p. 24).

O ponto ressaltado na passagem acima funciona como se fosse uma espécie de


orientação de estudo da moral pela perspectiva da experiência. O trecho de Hume envolve
algumas questões centrais debatidas entre os moralistas modernos: a origem da sociedade, a
discussão sobre o comportamento dos homens nessa sociedade e a natureza de suas
condutas267. A produção de histórias conjecturais268 por parte de filósofos como Thomas

267
Para uma discussão mais profunda acerca do que Hume entende por conduta, necessidade e comportamento,
veja o capítulo VII do livro Hume, de Barry Stroud.

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Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) parece


evidenciar isso de maneira suficiente: seja no Leviatã, em Do cidadão, no Segundo tratado do
Governo ou em Do contrato social. A questão é que destrinçar a natureza humana e,
consequentemente, buscar pelos fundamentos da moralidade era um dos principais objetivos
dos moralistas modernos.
Resumidamente, pode-se dizer que quatro grandes teorias morais tiveram maior
destaque entre o final do século XVII e o início do século XVIII269: (1) a teoria do direito
natural ou jusnaturalismo; (2) o racionalismo; (3) o egoísmo; e (4) a teoria do senso moral ou
sentimentalismo. Em linhas gerais, a filosofia moral de Hume pretende dar uma resposta aos
problemas levantados por estas correntes morais baseada no método experimental. Não é o
objetivo deste ensaio dissertar sobre os mínimos detalhes que envolvem todas as correntes
morais apresentadas acima, ao contrário, pretende-se evidenciar apenas os argumentos de
Hume contra a concepção egoísta. Na direção do que foi apresentado até o momento, é
conveniente destacar um ponto salientado por Jacqueline Taylor em seu artigo Hume‘s Later
Moral Philosophy:

Na Seção 2 e no Apêndice 2, o foco é a genuinidade de nossas disposições e


afecções benevolentes. De fato, o problema de reconhecer o quão egoísta nós
somos por natureza é indiferente para a prática da moral, pois na vida
comum nós reconhecemos amizade e gratidão reais, e distinguimos entre a
pessoa que obviamente nos faz uma boa ação por interesse próprio daquela
que realmente deseja o nosso bem estar. Mesmo assim, a questão do
egoísmo universal ‗é certamente relevante na ciência especulativa da
natureza humana‘. Hume tem dois alvos aqui: (1) estes que pensam ‗que
toda benevolência é mera hipocrisia‘, uma justa distinção por meio da qual
podemos manipular os outros para servir aos nossos próprios interesses; e (2)

268
Os filósofos aqui apontados são expoentes do que é conhecido hoje por contratualismo clássico. Hume, por
sua vez, apesar de abordar temas relacionados à origem do governo, sociedade civil e justiça, não é considerado
um contratualista. Ao contrário, Hume é um dos seus principais opositores. Gabriel Bertin de Almeida apresenta
uma discussão sobre o assunto em seu artigo David Hume contra os contratualistas de seu tempo.
269
Jaimir Conte, em sua tese de doutorado, faz referência à passagem de uma edição da Investigação sobre os
princípios da moral de Tom L. Beauchamp ao empregar os termos citados aqui.

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estes que pensam que toda ação generosa é feita por amor próprio (EPM
App. 2.1-5). O trabalho de Bernard Mandeville foi considerado como uma
instância do primeiro tipo de teoria egoísta. Hume identifica Epicuro,
Hobbes e Locke como expoentes do segundo tipo (2009, p. 317, tradução
nossa)270.

Jacqueline Taylor faz referência especificamente à Seção 2 e ao Apêndice 2 da


Investigação sobre os Princípios da Moral. É justamente nas passagens em questão que
Hume formula suas respostas mais incisivas contra a tese egoísta. Um dos principais
problemas da teoria egoísta é que ela representa a natureza humana da forma mais grotesca
possível. Aqui não há espaço para a predominância da generosidade, humanidade, compaixão,
gratidão, amizade, fidelidade ou quaisquer outras qualidades que constituem o caráter
benevolente dos seres humanos – o que Hume classifica como virtudes naturais. Ao reduzir
toda boa ação à satisfação de interesses próprios, os teóricos egoístas não deixam espaço para
a humanidade: sem o estabelecimento de leis positivas, não há relações estáveis entre os seres
humanos; a noção de virtude é incitada pelos sábios e políticos e ganha maior adesão do povo
à medida que é relacionada com o elogio. É justamente contra esses pontos que Hume se
volta. Para Hume, o ser humano em sua natureza não é nem essencialmente egoísta, nem
essencialmente bom, mas sim parcial. A parcialidade exerce sua influência tanto sobre as
virtudes naturais quanto sobre os vícios naturais271 dos seres humanos. De outra forma, para
lidar com tal parcialidade, os homens tiveram que criar o artifício: a justiça, o respeito pela

270
―In Section 2 and Appendix 2, the focus is on the genuineness of our benevolent dispositions and affections.
In fact, the issue of how selfish we are by nature is immaterial to moral practice since in common life we
recognize real friendship and gratitude, and distinguish between the person who obviously does us a good turn
out of self-interest and one who genuinely desires our well-being. Nevertheless, the question of universal
selfishness ‗is certainly of consequence in the speculative science of human nature‘. Hume has two targets here:
those who think ‗that all benevolence is mere hypocrisy‘, a fair disguise by means of which we can manipulate
others to serve our own interests, as well as those who think that all generous actions are done out of self-love
(EPM App. 2.1–5). Bernard de Mandeville‘s work was regarded as an instance of the first kind of selfish theory,
and Hume identifies Epicurus, Hobbes, and Locke as among the second.‖
271
Dentre os vícios naturais estão: a ingratidão, a crueldade, a vilania ou a baixeza e a desumanidade.

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propriedade e o cumprimento das promessas, por exemplo – o que Hume classifica como
virtudes artificiais.
Foram apresentados acima quatro expoentes da teoria egoísta, porém a discussão do
ensaio será direcionada mais propriamente contra dois deles: Thomas Hobbes (1588-1679) e
Bernard Mandeville (1670-1733). Grosso modo, a tese de Hobbes com respeito à natureza
humana pode ser resumida da seguinte maneira: ―Os homens possuem desejos e aversões,
mas seus motivos são inteiramente egoístas. Bem e mal são palavras que expressam apenas a
relação das coisas com os desejos do falante‖ (MACKIE, 1980, p. 7, tradução nossa)272.
Quanto à tese de Mandeville: ―Um extraordinário animal egoísta e obstinado, bem como
astuto, por mais que possa ser subjugado por um poder superior, é impossível, apenas pela
força, torná-lo tratável (...)‖ (2017, p 42). Ao referir-se a Mandeville, John L. Mackie
sustenta: ―(...) ele é bem próximo de Hobbes em espírito; mas suas concepções são até mais
cínicas que as de Hobbes‖ (1980, p. 23, tradução nossa)273. A declaração de Mackie consiste
em um tipo de comparação entre as formas como Mandeville e Hobbes concebem a natureza
humana. A fim de tornar o suposto cinismo de Hobbes e Mandeville mais evidentes, será
apresentada brevemente neste artigo a forma como Hume entende o egoísmo moral e as suas
principais objeções.
Para tal, inicialmente, tornar-se-á essencial esboçar uma breve apresentação da
concepção egoísta de Hobbes e Mandeville. Em seguida, o modo como Hume entende a
moralidade e, posteriormente, como a benevolência e a simpatia exercem seus respectivos
papéis no arranjo teórico de Hume. Assim, ao fornecer uma representação da natureza
humana que está devidamente baseada na experiência, o artigo aqui em questão estará
cumprindo com a sua proposta inicial de fornecer uma resposta ao egoísmo moral segundo a
perspectiva de David Hume.

272
―Men have desires and aversions, but their motives are entirely selfish. ‗Good‘ and ‗evil‘ are words which
express only the relation of things to the speaker‘s desires‖.
273
―(...) he is close in spirit to Hobbes; but his views are even more cynical than those of Hobbes‖.

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2. Hobbes e Mandeville: uma breve apresentação do egoísmo moral

No Apêndice 2 da Investigação sobre os princípios da moral, Hume tem a pretensão de


dar continuidade à defesa da benevolência já iniciada na Seção 2 da mesma obra, conforme
aponta os absurdos defendidos pelos teóricos do egoísmo moral. Aqui parece haver um tipo
de distinção no que tange à crítica de Hume – algo na linha daquilo que foi destacado na
introdução deste artigo ao enfatizar a posição de Jacquiline Taylor. Portanto, pode-se dizer
que a primeira passagem do Apêndice 2 é direcionada a Mandeville:

Há um princípio que se supõe prevalecer e que é totalmente incompatível


com qualquer virtude ou sentimento moral; e como só pode proceder do
mais pervertido temperamento, tende, por sua vez, a encorajar ainda mais
essa perversão. Esse princípio afirma que toda benevolência é mera
hipocrisia, a amizade um engodo, o espírito público uma farsa, a fidelidade
um ardil para angariar crédito e confiança; e que todos nós, ao perseguir no
fundo apenas o nosso próprio interesse privado, vestimos esses belos
disfarces para apanhar os outros desprevenidos e submetê-los a nossas
imposturas e maquinações (2004, p. 379).

A segunda passagem, por sua vez, de maneira mais clara, é direcionada a Epicuro,
Hobbes e Locke:

(...) que seja qual for o afeto que alguém possa sentir ou imaginar que sente
pelos outros, nenhuma paixão é, nem pode ser, desinteressada; que a mais
generosa amizade, mesmo quando sincera, é somente uma modificação do
amor de si mesmo; e que, ainda que não o saibamos, sempre estamos
buscando nossa própria satisfação, mesmo quando parecemos
profundamente envolvidos em planos para a liberdade e felicidade do gênero
humano. Por um viés da imaginação, por uma sutileza de reflexão, por um
entusiasmo da paixão, parecemos compartilhar dos interesses dos demais e
imaginamo-nos isentos de qualquer consideração egoísta; mas, na realidade,
o patriota mais desprendido e o mais mesquinho usuário, o herói mais
corajoso e o mais abjeto covarde têm, em todas suas ações, exatamente o
mesmo interesse pela própria felicidade e bem-estar (2004, p. 380).

A fim de trabalhar melhor as duas passagens, uma curta digressão a respeito da posição
de Hobbes e Mandeville quanto à forma como ambos descrevem a natureza humana no que

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diz respeito à constituição da sociedade civil torna-se necessária. Desse modo, a concepção
egoísta dos dois filósofos ficará muito mais clara.
Thomas Hobbes retrata sua própria história conjectural tanto no Leviatã quanto em Do
cidadão. Não é o objetivo aqui distinguir as minúcias existentes entre ambas as obras, já que a
estrutura básica permanece a mesma, segundo Renato Jaime Ribeiro, na apresentação de Do
cidadão: ―(...) de uma oposição entre o estado de natureza e o estado civil, entre a desordem
e a sociedade‖ (2002, p. 30). Nesse aspecto, é famosa a máxima de Hobbes ao descrever a
vida dos homens no estado de natureza, expressa em Do cidadão274: ―(...) nada mais é que
uma simples guerra de todos contra todos, na qual todos os homens têm igual direito a todas
as coisas, e, a seguir, que todos os homens tão cedo chegam a compreender essa odiosa
condição, desejam libertar-se de tal miséria‖ (HOBBES, 2002, p. 16). Hobbes discorre a
respeito de algumas leis da natureza no capítulo XV da parte 1 do Leviatã para explicar seu
sistema. Uma dessas leis da natureza diz respeito ao seguinte ―Que os homens cumpram os
pactos que celebram‖ (HOBBES,1983, p. 86). Com base nesses pontos, para Hobbes, pode-se
dizer que a liberdade daquela condição miserável do estado de natureza só é possível por meio
do pacto.
A partir do que foi mostrado acima, Hobbes demonstra que sem a existência de um
pacto, ou melhor, de leis positivas, a convivência dos homens em sociedade seria impossível.
Isso porque, para Hobbes, o governo é instituído apenas pelo contrato. A questão aqui,
portanto, consiste no seguinte: seria a humanidade incapaz de conviver até mesmo em
pequenas sociedades? Se a resposta for sim, não resta alternativa a não ser curvar-se ao
egoísmo de Hobbes e afirmar de uma vez por todas que tudo que é feito tem em vista o
interesse próprio daqueles que executam as ações. Por outro lado, se a resposta for não – o
que é mais condizente com a experiência –, mais próximo da posição de Hume poder-se-ia
permanecer. Segundo Russell Hardin, em seu livro David Hume: Moral and Political
Theorist, no capítulo 6, intitulado Justice as Order, Hobbes parece não admitir que uma tribo
ou sociedade pequena funcione sem que conflitos sejam constantes:

274
No Leviatã pode ser encontrada no capítulo XIII.

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(...) ele não entende a força da convenção e das normas de grupos no


contexto de uma sociedade pequena. Se eu concordar em fazer alguma coisa
por você, você pode impor-me alguma consequência maligna através da
sanção de poder de nossa comunidade (HARDIN, 2007, p. 135, tradução
nossa)275.

Melhor dizendo, Hobbes tenta forjar outra origem para os ditos caracteres benevolentes
da natureza humana ao dar ênfase à satisfação do interesse próprio:

Um epicurista ou um hobbesiano admite prontamente que existe no mundo a


amizade, sem hipocrisia ou disfarce, embora possa tentar, por uma química
filosófica, como que reduzir os elementos dessa paixão aos da outra, e
explicar todas as afecções como se fossem fruto do amor de si mesmo (...)
(HUME, 2004, p. 381).

Hobbes não pode sustentar, portanto, que os seres humanos sejam capazes de conviver
uns com os outros sem o estabelecimento de leis positivas, nem mesmo em uma sociedade
pequena, pois o amor de si mesmo sempre estaria à frente de qualquer coisa. Ao mostrar que
tal convivência é possível – mais especificamente o caso de uma sociedade pequena –,
demonstrar-se-á o quanto o egoísmo está equivocado ao representar a natureza humana de
uma forma tão grotesca.
Já em Uma investigação sobre a origem da moral, Bernard Mandeville expõe alguns de
seus principais argumentos em favor da concepção egoísta. No texto em questão, Mandeville
explica a origem da moral a partir de uma espécie de história conjectural, a saber, num
primeiro momento, descreve o homem no seu estado vulgar de natureza; em seguida, pinta
nas cores mais vivas a forma como a natureza humana pode ser manipulada por meio de seus
próprios caracteres a fim de estabelecer a sociedade civil. A título de discussão, a exposição
de um de seus principais argumentos torna-se indispensável: a divisão das duas classes de

275
―(…) he does not grasp the force of convention and group norms in the context of a small society. If I agree to
do something for you, you can inflict ‗some evil consequence‘ on me through the sanctioning power of our
community.‖

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seres humanos. Primeiramente, Mandeville argumenta que a espécie humana foi dividida em
duas classes muito diferentes uma da outra: 1ª) ―(...) pessoas abjetas, execráveis, que, sempre
correndo atrás de um prazer imediato, seriam completamente incapazes de abnegação, sem
nenhuma consideração pelo bem dos outros e nenhum objetivo mais elevado que seu próprio
benefício‖ (2017, p. 53); e 2ª ―(...) criaturas imponentes e altivas que, livres do egoísmo
sórdido, estimavam os progressos da mente como a sua mais bela aquisição; e estabelecendo
um justo valor para si, não tinham prazer senão em embelezar aquela parte em que consistia
sua excelência (...)‖ (2017, p. 53-54). O objetivo dessa divisão, segundo Mandeville, foi
estimular os homens em seus afazeres em prol do bem comum e do desenvolvimento da
sociedade.
Pode-se dizer, de forma resumida, que o que distingue os membros da primeira classe
dos membros da segunda é justamente a falta de capacidade de abnegação. Abnegação essa
que consiste na capacidade de deixar os seus próprios interesses de lado em vista do bem
comum. A abnegação, portanto, parece estar relacionada a um tipo de artifício e, por
conseguinte, não pode ser dita natural em sentido estrito. Pela perspectiva de Mandeville, a
abnegação e todas as outras características da segunda classe seriam incitadas pelos sábios e
políticos a fim de tornar a conquista de seus interesses mais factíveis. Não só isso, os próprios
homens são suscetíveis ao resultado destas práticas ditas virtuosas conforme recebem elogios
por isso: ―Não há homem, por mais capaz ou inteligente que seja, completamente à prova do
encantamento da bajulação se esta é engenhosamente realizada e ajustada às suas
habilidades‖ (MANDEVILLE, 2017, p. 59). Logo, a prática destas ações virtuosas não tem o
seu fim nelas mesmas. Isto posto, toda ação humana tem em vista o interesse próprio – até
mesmo aquelas executadas pelos membros da segunda classe –, a benevolência é mera
hipocrisia e a noção de virtude não passa de algo contrário à natureza humana e,
consequentemente, fruto de uma invenção que não está em conformidade com tal natureza. O
vício é natural e a virtude é artificial.

3. A moral pela perspectiva de Hume

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Antes mesmo de contrapor a posição de Hume à posição dos teóricos do egoísmo moral,
é imprescindível realizar uma sucinta exposição da moral pela perspectiva de Hume. O
filósofo dedicou dois de seus escritos exclusivamente ao estudo da moral: o Livro III do
Tratado da natureza humana e a Investigação sobre os princípios da moral. Ademais,
também é possível encontrar alguns pontos a respeito desse tema em seus Ensaios morais,
políticos e literários – destaque aos ensaios: Da dignidade e fraqueza da natureza humana e
Da origem do governo. Por consequência, vale frisar que os textos citados anteriormente
serão as principais fontes primárias deste artigo.
Apesar de a primeira exposição sobre o tema da moralidade ser mais propriamente no
Livro III do Tratado da natureza humana, é no primeiro parágrafo da Seção 1 da Investigação
sobre os princípios da moral que Hume faz um tipo de crítica mais explícita à tese egoísta –
paralelamente à crítica ao racionalismo moral. O filósofo opõe-se àqueles que se aferram em
disputas concernentes às controvérsias morais ao expor dois tipos específicos de filósofos
neste momento: os dogmáticos ―homens que se aferram teimosamente a seus princípios‖
(2004, p. 225); e os disputadores insinceros ―que não acreditam de fato nas opiniões que
defendem, mas envolvem-se na controvérsia por afetação, por um espírito de oposição ou por
um desejo de mostrar espirituosidade e inventividade superiores às do restante da
humanidade‖ (2004, p. 225). Por dogmáticos, imagina-se que sejam aqueles que fazem uso
de termos abstratos para explicar a moral, ou seja, aqueles que pensam que a moral é uma
matéria de verdade e pode ser provada como a matemática. Tais características podem ser
consideradas como marcas do dito racionalismo moral (comentado anteriormente). Nos textos
de Samuel Clarke (1675-1729)276 e William Wollaston (1659-1724)277 podem ser encontrados

276
A obra de Clarke é intitulada Um discurso sobre a religião natural. O texto pode ser encontrado na coletânea
Filosofia moral britânica: Textos do século XVIII publicada pela editora Unicamp.
277
A obra de Wollaston é intitulada A religião da natureza: Um esboço. O texto também pode ser encontrado na
coletânea Filosofia moral britânica: Textos do século XVIII.

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argumentos que contemplam estas características e, consequentemente, sustentam a tese de


que eles eram expoentes do racionalismo moral.
Quanto aos disputadores insinceros, muito indica que são os egoístas morais. Ao
afirmar que o bem e o mal são apenas palavras que expressam relações com os desejos do
falante, Hobbes parece sustentar que as distinções morais não correspondem a um tipo de
juízo moral desinteressado. A posição de Mandeville também é curiosa neste caso: ―E quanto
mais de perto examinarmos a natureza humana, mais estaremos convencidos de que as
virtudes morais são a prole política que a bajulação engendra no orgulho‖ (MANDEVILLE,
2017, p. 59). Aparentemente, isso se justifica conforme Hume faz alguns comentários no que
diz respeito às distinções morais no segundo parágrafo da Seção 1 da Investigação sobre os
princípios da moral:

Aqueles que negam a realidade das distinções morais podem ser


classificados entre os contendores insinceros, pois não é concebível que
alguma criatura humana pudesse seriamente acreditar que todos os caracteres
e ações fossem igualmente dignos de estima e consideração de todas as
pessoas. A diferença que a natureza estabeleceu entre um ser humano e outro
é tão vasta e, além disso, tão mais ampliada pela educação, pelo exemplo e
pelo hábito que, quando consideramos simultaneamente os extremos
opostos, não pode existir ceticismo tão meticuloso nem certeza tão inflexível
que negue absolutamente toda distinção entre eles. Por mais insensível que
seja um homem, ele será frequentemente tocado pelas imagens do certo e do
errado, e, por mais obstinados que sejam os seus preconceitos, ele deve
certamente observar que outras pessoas são suscetíveis às mesmas
impressões (...) (2004, p. 225-226).

A passagem acima traz à tona um dos principais argumentos oferecidos por Hume tanto
no Tratado da natureza humana quanto na Investigação sobre os princípios moral. O
argumento consiste na reivindicação do princípio da cópia: ―(...) todas as nossas ideias
simples, em sua primeira aparição, derivam de impressões simples, que lhes correspondem e
que elas representam com exatidão‖ (2009, p. 28). Em outras palavras, a partir do mesmo
princípio defendido por Hume na discussão sobre o conhecimento – no Livro I do Tratado da
natureza humana e na Seção 2 da Investigação sobre o entendimento humano –, o filósofo

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propõe o alicerce sobre o qual a discussão moral deve ser estabelecida. Pode-se formular o
argumento da seguinte maneira:

P1. Tudo que está presente à mente são as suas percepções278.


P2. As percepções da mente humana se reduzem a dois tipos: impressões e ideias.
C. Logo, deve ser por meio das ideias ou das impressões que são feitas as distinções
morais.

De antemão, deve-se destacar que Hume descarta a possibilidade de os juízos morais e,


decorrentemente, as distinções morais serem fundados nas ideias279. O filósofo também acaba

278
Tanto no início do Livro 1 quanto no início do Livro 2 do Tratado da natureza humana, Hume enfatiza a
distinção entre os tipos de percepção. Segundo Hume, uma percepção pode ser definida como tudo aquilo que
está presente à mente ou mesmo qualquer ação exercida por ela. Nesse sentido, existem percepções que se
apresentam à mente de forma mais forte e outras que se apresentam à mente de forma mais fraca. Por exemplo,
suponha que neste momento Pedro tem um lápis em mãos. Este lápis, enquanto está em suas mãos, confere a sua
mente uma percepção forte e vívida do mesmo (o que Hume denomina impressão). Por outro lado, mais tarde,
quando Pedro está pronto para dormir, ele dirige o olhar para a sua mesa de estudos e, então, vem à cabeça o
lápis que estava usando mais cedo para fazer algumas anotações. Ao contrário da situação que ocorreu mais
cedo, agora a percepção é fraca e apática devido ao fato de não ter o lápis presente a nenhum de seus sentidos,
pois apenas o representa em sua mente (O que Hume define como ideia). De modo mais claro, Hume argumenta
que as impressões são equivalentes ao sentir, e as ideias ao pensar. Ademais, pode-se entender que as impressões
são como que causas das ideias, ou seja, não existe nenhuma ideia que não seja derivada de uma impressão - o
que é frequentemente caracterizado pelos comentadores de Hume como princípio da cópia. Em outras palavras, o
empirismo de Hume exprime-se em uma teoria das ideias fundada na prioridade das impressões sobre as ideias;
esta teoria estabelece uma relação dupla: (a) as ideias são cópias ou imagens das impressões, como dados
sensoriais imediatos e (b) as ideias não são descobertas sem impressões correspondentes. Por meio do princípio
da cópia, Hume desafia os filósofos que empregam termos genéricos e abstratos, e aconselha seus leitores a
perguntar de que impressão é derivada aquela suposta ideia discutida pelos seus interlocutores. Para uma
exposição mais detalhada acerca da constituição da mente humana na visão de Hume, veja o livro de Angela
Coventry publicado pela Editora Vozes (intitulado: Compreender Hume) – que nada mais é que uma tradução
para o português do original Hume: A Guide for the Perplexed.
279
Discorrer sobre isto neste momento ocuparia muito espaço e poderia desviar o objetivo da discussão. Na
verdade, ao descartar a fundação dos juízos morais nas ideias, Hume está tecendo uma dura crítica à tese dos
racionalistas morais: se adequar ao comando da razão é virtuoso, porém, ao ser contrário às suas ordens, o
indivíduo torna-se vicioso. Grosso modo, é assim que é caracterizado o racionalismo moral. Hume argumenta de
modo a nos mostrar que a razão sozinha, seria incapaz de tamanha soberania e poder. Dessa maneira, ele
reivindica a concorrência de outros princípios paralelamente à razão (o sentimento). Disso o filósofo retira uma
espécie de máxima: os seres humanos são afetados por juízos morais à medida que estes desencadeiam certa
influência sobre suas ações e afetos. A moralidade tem influência sobre as ações e os afetos. A razão sozinha não
pode nunca ter qualquer influência. Logo, a moral não pode ser derivada da razão: ―A razão é, e deve ser,
apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas‖ (HUME,
2009, p.451). Assim sendo, ao levar em conta somente as ideias, isto é, considerando apenas relações,
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de pôr em xeque a sua origem nas impressões – mais precisamente nas impressões de
sensação280. Isso porque as paixões e os afetos são como que realidades originais, ou seja, não
são nada além do que são. Não há nada neles que possa afetar as impressões de sensação:
―Como quer que a tomemos, encontraremos somente certas paixões, motivos, volições e
pensamentos. Não há nenhuma questão de fato neste caso‖ (HUME, 2009, p. 508). Logo, a
noção de vício ou virtude atrelada às ações não pode ser identificada nelas por meio das
impressões de sensação. Tudo isso implica na busca por outra fonte para os juízos morais.
É nesse sentido que Hume argumenta em favor do sentimento, ou seja, das impressões
de reflexão281. Segundo o filósofo, quando uma ação é aprovada ou reprovada por alguém,
isso não é feito com respeito à ação mesma, mas sim quanto ao caráter do agente de que a
ação é o sinal. Assim, pode-se dizer que Hume defende a tese de que os seres humanos já
possuem uma espécie de constituição mental natural que os faz aprovar ou desaprovar algo.

justaposições e comparações de ideias, pode-se dizer que as mesmas relações que ocorrem entre os objetos
imateriais também são dignas de censura ou louvor. Por exemplo, a comparação da relação da árvore nova que
sobrepuja e destrói aquela que lhe deu origem com a relação do filho (Nero) que mata a mãe (Agripina) reproduz
o argumento apresentado no Tratado da natureza humana (HUME, 2009, p. 506). A diferença é justamente que,
no caso das árvores, não experimentamos nenhum sentimento de repúdio e horror – que prova que o juízo moral
de condenação não está baseado na relação de ideias, mas no sentimento moral. Segundo, não é possível nutrir
nenhum tipo de sentimento quanto às relações no caso delas estarem ocorrendo entre objetos ou seres que não
são humanos. Rachel Cohon desenvolve algumas discussões sobre a perspectiva do racionalismo moral em
alguns de seus escritos como, por exemplo, em seu artigo Hume and Humeanism in Ethics e na seção 1 da
primeira parte de seu livro Hume‘s Morality: Feeling and Fabrication.
280
As impressões de sensação não são nada mais que as sensações apreendidas pelos sentidos – é por isso que o
seu caráter externo deve ser destacado. É justamente neste aspecto que Hume descarta a possibilidade de a fonte
dos juízos morais serem as impressões de sensação, pois elas não fornecem nada além do que aparece aos
sentidos.
281
É necessário ressaltar que no Livro 2 do Tratado da natureza humana Hume se aprofunda em sua
explicação. E é exatamente este ponto que merece destaque agora, afinal, só assim será possível atingir uma
melhor compreensão acerca da distinção entre as percepções anteriormente expostas e a forma como elas
exercem sua influência sobre o funcionamento das engrenagens do sistema moral humeano. Isso implica dar
ênfase a um ponto pertinente a respeito das impressões de reflexão, pois o papel dessas impressões é
significativo na moral. Elas são dividas em: emoções calmas e paixões violentas. As primeiras, segundo Hume,
são o sentimento do belo e do feio nas ações, composições artísticas e objetos externos; e as segundas, são as
paixões de amor e ódio, pesar e alegria, orgulho e humildade. As paixões violentas, por sua vez, ainda podem ser
classificadas como paixões diretas e paixões indiretas. Hume argumenta que as paixões diretas surgem
imediatamente do bem e do mal, da dor e do prazer; enquanto as paixões indiretas procedem dos mesmos
princípios, mas pela conjugação de outras qualidades.
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Por isso, quando Hume se refere a esse ponto ele relaciona tal perspectiva com a forma como
as qualidades secundárias282 são concebidas na filosofia moderna, a saber, como meras
qualidades existentes somente na mente das pessoas e não nos objetos propriamente ditos:

Tomemos qualquer ação reconhecidamente viciosa: o homicídio voluntário,


por exemplo. Examinemo-la sob todos os pontos de vista, e vejamos se
podemos encontrar o fato, ou a existência real, que chamamos de vício.
Como quer que a tomemos, encontraremos somente certas paixões, motivos,
volições e pensamentos. Não há nenhuma outra questão de fato neste caso. O
vício escapa-nos por completo, enquanto consideramos o objeto. Não o
encontraremos até dirigirmos nossa reflexão para nosso próprio íntimo e
darmos com um sentimento de desaprovação, que se forma em nós contra
essa ação. Aqui há um fato, mas ele é objeto de sentimento [feeling], não da
razão. Está em nós, não no objeto. Desse modo, quando declaramos que uma
ação ou caráter são viciosos, tudo que queremos dizer é que, dada a
constituição de nossa natureza, experimentamos uma sensação ou sentimento
[feeling or sentiment] de censura quando os contemplamos. O vício e a
virtude, portanto, podem ser comparados a sons, cores, calor, frio, os quais,
segundo a filosofia moderna, não são qualidades nos objetos, mas
percepções na mente (2009, p. 508).

Nesse aspecto, Hume quer mostrar que as ações só podem ser executadas tendo em vista
um sentimento último de prazer ou dor, agrado ou desagrado, que as direcione e constitua seu
fim último, desejado em si mesmo. Só as paixões, portanto, podem desencadear tais
sentimentos. De acordo com este sentimento, o vício está para um tipo peculiar de dor assim

282
A tese da distinção entre as qualidades primárias, secundárias e terciárias é mais bem discutida por Locke em
sua famosa obra Ensaio sobre o entendimento humano (mais precisamente no livro 2, capítulo 8). De forma bem
resumida, as três podem ser entendidas da seguinte forma: 1ª) Qualidades que se referem ao tamanho, forma,
medida, posição e movimentação de outras partes sólidas de corpos (segundo Locke, existem no mundo
independente de nós); 2ª) Qualidades que se referem aos poderes que os corpos possuem, por meio das
qualidades primárias, de afetar nossos sentidos, ou seja, o tato, o paladar, a audição, a visão e o olfato (segundo
Locke, existem no mundo, não categoricamente, mas disposicionalmente, a saber, são apenas poderes ou
disposições para produzir sob condições apropriadas experiências aos nossos sentidos) ; e 3ª) Qualidades que
basicamente se referem às mudanças existentes nos corpos, portanto, têm estreita relação com as qualidades
primárias.

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como a virtude está para um tipo peculiar de prazer. Por consequência, grosso modo, é assim
que Hume entende a moralidade e discorre a respeito dos juízos morais283.

4. Hume e a noção de benevolência: o contraste com a concepção egoísta

Como ficou estabelecido anteriormente, para Hume, as distinções morais são efetuadas
com base na sensibilidade. Nesse sentido, no início do Livro 3 do Tratado da natureza
humana (HUME, 2009, p. 508; e HUME, 2009, p. 510), enquanto discorre sobre a origem da
moral e a forma como as distinções morais são estabelecidas, Hume enfatiza a relação do
vício e da virtude com os sentimentos de aprovação e desaprovação incitados pela dor e pelo
prazer: ―O vício escapa-nos por completo, enquanto consideramos o objeto. Não o
encontraremos até dirigirmos nossa reflexão para nosso próprio íntimo e darmos com um
sentimento de desaprovação, que se forma em nós contra essa ação (2009, p. 508); e, um
pouco mais adiante: ―Por que uma ação, sentimento ou caráter é virtuoso ou vicioso? Porque
sua visão causa um prazer ou desprazer de um determinado tipo‖ (2009, p. 510). Tal relação
fica ainda mais estreita quando as paixões indiretas284 são levadas em consideração, pois o
orgulho e o amor se assemelham pelas impressões ou sensações agradáveis; enquanto a
humildade e o ódio se assemelham pelas impressões ou sensações desagradáveis

283
É pertinente ressaltar que – no geral – alguns pontos daquilo que entendemos por moralismo britânico não
foram suficientemente apresentados aqui. James Fieser, por exemplo, oferece um panorama geral conveniente
em seu artigo: David Hume Moral Theory. A distinção entre os três sujeitos morais (agente, paciente e
observador) apresentada por Fieser em seu artigo tem um papel importantíssimo para a tradição dos moralistas
britânicos (o que inclui o próprio Hume).
284
Dentre as paixões indiretas estão: o orgulho, a humildade, a ambição, a vaidade, o amor, o ódio, a inveja, a
piedade, a malevolência, a generosidade, e todas as outras que dependem delas. Hume trabalha as paixões de
forma mais bem detalhada no Livro 2 do Tratado.

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A tese de Hume vai ao encontro daquela que alguns de seus predecessores britânicos já
anunciavam285: a capacidade dos seres humanos de perceber qualidades agradáveis e
desagradáveis. A saber, é comum encontrar na tradição britânica (mais precisamente nos
teóricos do senso moral ou sentimentalismo) um discurso que expressa mais ou menos o
seguinte: os seres humanos têm uma faculdade de percepção moral – algo que pode ser
comparado com as faculdades de percepção dos sentidos. Não é possível ser indiferente ao
que provoca prazer ou desprazer, por isso, na perspectiva de Hume, não haveria motivo para
rejeitar a existência das distinções morais – o próprio Hume insiste nisso logo no início da
Seção 5 da Investigação sobre os princípios da moral. Assim sendo, a capacidade de perceber
tais distinções seria possível mesmo sem a presença de leis positivas, e é neste ponto que a
discussão a respeito das virtudes e vícios naturais começa a ganhar espaço.
Ao dissertar sobre o tema das virtudes e dos vícios naturais, Hume tem como um de
seus principais objetivos, por conseguinte, opor-se ao egoísmo moral. Quando o egoísmo
rejeita a existência da benevolência e reduz todas as boas ações à satisfação do interesse
próprio, joga a natureza humana, por assim dizer, no abismo mais profundo. Para Hume,
rejeitar a existência de caracteres benevolentes é o mesmo que afirmar que os seres humanos
não são capazes de sentir afeição genuína uns pelos outros, ou seja, que todos os sentimentos
de caráter humanitário não são naturais. Hume inicia o texto da Seção 2 da Investigação sobre
os princípios da moral afirmando que:

Pode parecer uma tarefa supérflua provar que as afecções benevolentes ou


mais gentis são estimáveis e que, onde quer que apareçam, grajeiam a
aprovação e a boa vontade dos seres humanos. Os epítetos ―sociável‖, ―de
boa índole‖, ―humano‖, ―compassivo‖, ―grato‖, ―amistoso‖, ―generoso‖,
benfasejo‖, ou seus equivalentes, são conhecidos em todas as linguagens e
expressam universalmente o mais alto mérito que a natureza humana é capaz
de atingir (2004, p. 233).

285
Por exemplo, Lord Shaftesbury (1671-1713) e Francis Hutcheson (1694-1746), que são considerados
expoentes da teoria do senso moral ou sentimentalismo.

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Ao abrir a Seção 2 dessa forma, Hume pretende reivindicar o estatuto dos juízos
morais – o mesmo que foi invocado por ele no início da Seção 1. Ao mesmo tempo, Hume
também pretende defender a benevolência e, consequentemente, uma diferente representação
da natureza humana com base na simpatia. Com isso, torna-se inevitável não recorrer ao
modo como o filósofo constitui a crítica ao egoísmo moral. Como já foi exposto antes, Hume
utiliza o princípio da cópia a fim de desafiar os filósofos que empregam termos genéricos e
abstratos, e aconselha seus leitores a questionar de que impressão é derivada a suposta ideia
que seus interlocutores defendem com tanto fervor. Dessa maneira, Hume se posiciona de
forma contundente contra os teóricos egoístas no ensaio Da dignidade e fraqueza da natureza
humana:

Encontramos poucas disputas que não se fundamentam em alguma


ambiguidade na expressão; e estou persuadido de que a presente disputa a
respeito da dignidade e fraqueza da natureza humana não está mais isenta
dela do que qualquer outra. Pode, portanto, valer a pena considerar o que é
real e o que é apenas verbal nesta controvérsia (DM 3, Mil 81, tradução
nossa)286.

Para Hume, os egoístas não podem ser tão insensíveis a ponto de rejeitar a distinção
entre os juízos morais. Muito menos argumentar que aquilo que é tomado como bom
(virtuoso) ou mau (vicioso) é mero fruto do interesse próprio287 ou da bajulação política que a
prole engendra no orgulho288. Pintar os seres humanos como criaturas predominantemente
maléficas e prontas para colocar em prática as maiores barbaridades a qualquer instante e a
qualquer custo, incapazes de executar qualquer tipo de ação que tenha o próprio fim em si
mesma, sem levar em conta todas as qualidades que constituem o caráter benevolente do
gênero humano, é entendido por Hume como um dos maiores absurdos já empregados em
286
―We find few disputes, that are not founded on some ambiguity in the expression; and I am persuaded, that
the present dispute, concerning the dignity or meanness of human nature, is not more exempt from it than any
other. It may, therefore, be worth while to consider, what is real, and what is only verbal, in this controversy.‖
287
Hobbes.
288
Mandeville.

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toda a história da filosofia: ―Quão perversa deve ser uma filosofia que não concede à
amizade e aos sentimentos humanitários os mesmos privilégios que, de modo inconteste,
atribuem-se às sombrias paixões da inimizade e do ressentimento‖ (2004, p. 387-388); além
disso, o filósofo ainda aponta o modo equivocado como os egoístas descrevem a natureza
humana: ―Uma filosofia como essa é antes uma sátira que uma genuína representação ou
descrição da natureza humana (...)‖ (2004, p. 388).

5. Hume e a defesa da natureza humana: o papel da simpatia

Fazer uma breve discussão acerca da noção de simpatia em contraste com a posição
egoísta de Hobbes e Mandeville apresentadas ao longo deste artigo é conveniente neste
momento. Desse modo, ficará mais fácil compreender como a tese de Hume difere da tese
egoísta.
Hobbes, ao argumentar, por exemplo, que sem o estabelecimento de um pacto, o
homem não pode viver uma vida em sociedade, certamente nunca tomou conhecimento de
uma tribo indígena. Em uma tribo, pelo fato de a população não ser muito numerosa e todos
conhecerem uns aos outros, um indivíduo pode vigiar as ações do outro e, assim, fazer com
que as leis ali estabelecidas pelo costume sejam aplicadas. No geral, a justiça no sentido
humeano do termo, como uma virtude artificial289, não se faz necessária nesse caso, pois as
virtudes naturais suprem todas as necessidades das pessoas da tribo290.

289
As virtudes artificiais constituem um sistema de regras ou convenções que são necessárias para que as
pessoas possam se conformar com o bem público. O sistema geral destas regras ou convenções é útil para a
sociedade como um todo, e a longo prazo, mesmo que a aplicação de regras a este ou àquele caso individual
possa ser considerada prejudicial.
290
O ponto de Hume consiste em destacar o quanto as virtudes perdem sua influência sobre os membros de uma
sociedade ao levar em conta a condição humana. O apreço pela justiça, por exemplo, não poderia vir de outro
lugar senão da utilidade: ―A história, a experiência e a razão nos instruem suficientemente sobre esse progresso
natural dos sentimentos humanos e sobre a gradual ampliação de nosso respeito pela justiça à medida que nos
familiarizamos com a vasta utilidade dessa virtude‖ (HUME, 2004, p. 253).

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O problema advém quando o número de indivíduos de uma determinada sociedade é


demasiado grande – como acontece no contexto das sociedades civis. Já que o número de
pessoas é grande, muitas não se conhecem e a diferença de vida levada entre elas também
aumenta na mesma proporção. No caso em questão, as virtudes naturais não satisfazem toda a
demanda, pois certas circunstâncias são necessárias para sua manifestação, assim, a
parcialidade dos homens toma o seu lugar. Por isso, no ensaio político Da origem do governo,
Hume expõe a necessidade de estabelecer cargos que possam assegurar o cumprimento das
normas. O estabelecimento destes cargos é necessário justamente porque o ser humano,
segundo Hume, coloca comumente o seu próprio interesse à frente dos interesses dos outros,
isto é, geralmente é muito parcial e tende a beneficiar seus amigos, familiares ou pessoas
conhecidas em detrimento daqueles que não conhece: ―Mas muito mais frequente é os
homens serem distraídos de seus principais interesses, mais importantes mas mais
longínquos, pela sedução de tentações presentes, embora muitas vezes totalmente
insignificantes. Esta grande fraqueza é incurável na natureza humana‖ (HUME, 1999,
p.193). A partir disso, Hume defende a necessidade da criação do artifício – uma marca da
inventividade humana –, não como algo a parte desta natureza humana, mas sim como algo
que decorre dela291.
Neste ponto, torna-se conveniente abordar de forma breve a noção de simpatia a fim de
elucidar o que está em jogo nessa discussão. Na perspectiva do que foi ressaltado acima, a
simpatia tem um papel importantíssimo no que tange a consideração geral prestada às
virtudes, pois: ―Baseando-nos nisso, podemos supor que é ela (Hume se refere à simpatia,
grifo do autor) também que dá origem a muitas outras virtudes, e que certas qualidades
obtêm nossa aprovação em virtude de sua tendência para promover o bem da humanidade‖
(HUME, 2009, p.617). Ademais, Hume admite que algumas relações filosóficas como a
semelhança e a contiguidade no tempo e no espaço – relações que estão diretamente
relacionadas ao princípio de associação de ideias ou fantasia – influenciam de forma

291
Derivam da natureza humana e, portanto, são nesse sentido classificadas como naturais, mas essas virtudes
eram desconhecidas pelos humanos em seu estágio primário, a saber, ―em sua condição rude e mais natural‖
(HUME, 2009, p. 520).
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considerável a simpatia e, consequentemente, as relações que uns têm com os outros em


determinada sociedade. Por isso, é comum um indivíduo considerar muito mais um amigo ou
um familiar do que um estranho, porque os dois primeiros têm uma relação mais próxima com
ele. Contudo, isso não impede que alguém sinta simpatia por um desconhecido, porque,
apesar disso, ainda o considera humano acima de tudo.
Para Hume, a simpatia pode ser entendida como a capacidade de colocar-se no lugar do
outro, de modo a sentir com ele prazer ou dor, felicidade ou tristeza292. Por exemplo, quando
acontece o furto de um objeto, imediatamente uma emoção desagradável toma conta do
observador. Essa emoção desagradável é provocada por causas distintas: a perversidade do
agente e o sofrimento do paciente. Tem-se, assim, aversão pelo primeiro e tristeza junto com
o segundo. O observador compartilha com a pessoa prejudicada – por reflexão – as dores de
seu infortúnio. Da mesma forma como ambos (observador e paciente) compartilham o mesmo
sentimento de aversão pelo agente. O mesmo vale para uma ocasião de felicidade e prazer em
que alguém se regozija diante daquilo que a proporcionou.
Quando uma pessoa tem algum tipo de relação com outras – se for um amigo, familiar
ou conterrâneo –, a simpatia exerce sua influência sobre ela de forma mais significativa. Em
contrapartida, quando não há nenhum tipo de relação entre elas – se for um desconhecido ou
estrangeiro –, a simpatia se manifesta em um grau menos elevado. Em outras palavras, quanto
ao primeiro caso, a pessoa é tomada por impressões ou sensações mais vívidas, pois os
princípios de associação (semelhança, contiguidade e até mesmo a causalidade) funcionam de
modo mais fácil e impulsionam a relação de ideias e a relação de impressões ou emoções
naturalmente: ―Todas as relações, quando unidas, levam a impressão ou consciência de
nossa própria pessoa à ideia dos sentimentos ou paixões das outras pessoas, fazendo com que
os concebamos da maneira mais forte e vívida‖ (HUME, 2009, p.353). Todavia, o mesmo
não acontece no segundo caso, afinal, aqueles mesmos princípios não estão presentes como
antes e isso já é o suficiente para enfraquecer a relação. Por conseguinte, acontece que no

292
Isto porque a simpatia consiste no espelhamento de estados mentais, propiciado pela semelhança básica que
os seres humanos possuem entre si.

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primeiro caso, por influência das relações filosóficas de semelhança e contiguidade sobre as
relações de ideias e relações de impressões ou emoções, a parcialidade ganha espaço sobre os
juízos. De outro modo, no segundo caso, por não sofrer tanta influência daquelas relações, os
juízos tendem a ser menos parciais.
A partir do que foi evidenciado acima, percebe-se que até mesmo a generosidade está
circunscrita a certas situações e aspectos bem restritos. Ou seja, a resposta de Hume ao
egoísmo não consiste simplesmente em colocar os caracteres benevolentes (virtuosos) sobre
os egoístas (viciosos). Ao contrário, pode-se dizer que a sua intenção está mais próxima de
um tipo de moderação entre ambos, de modo que nem um nem outro pode jamais prevalecer
de maneira absoluta – apesar de as situações que propiciam o vício serem mais contiguidade
que aquelas que incitam a virtude. Logo, a natureza humana293 não carrega uma conotação de
algo essencialmente bom, nem mau. De outro modo, Hume reconhece que a educação e o
costume podem sim influenciar a conduta, mas ele também defende que existe nos seres
humanos um tipo de sentido moral que exerce influência considerável sobre a forma como a
moralidade é concebida. Tal posição é defendida por Hume ainda no Livro 2 do Tratado:

Comecemos com o VÍCIO e a VIRTUDE, que são causas mais óbvias dessas
paixões (aqui Hume se refere ao orgulho e à humildade, grifo do autor).
Seria inteiramente alheio a meu propósito presente entrar na controvérsia,
que nos últimos anos vem despertando tanto a curiosidade do público, se
essas distinções morais se fundam em princípios naturais e originais ou se
nascem do interesse e da educação. Reservo o exame dessa questão para o
próximo livro; por ora, tentarei mostrar que meu sistema se sustenta em

293
No Livro III do Tratado da natureza humana, Hume argumenta que a noção de Natureza ―(...) vem a ser a
mais ambígua e equívoca que existe‖ (2009, p.513). Neste momento, o filósofo faz uma pequena análise sobre
os modos como o vício e a virtude podem ser entendidos no que diz respeito às noções do que é natural e
artificial. Assim, Hume divide a análise em três partes: 1ª) Vício e virtude como oposição de natureza a milagre;
2ª) Vício e virtude como aquilo que é raro e inabitual; e 3ª) Vício e virtude como artifício ou oposição. Ao
apresentar tais pontos, o filósofo pretende apontar que a distinção entre natural e não-natural não pode delimitar
o limite entre vício e virtude. Inclusive, as três perspectivas oferecem noções diferentes sobre o modo como o
vício e a virtude são entendidos.

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qualquer das duas hipóteses – o que constitui uma forte prova de sua solidez
(HUME, 2009, p. 329)294.

A partir desses pontos, uma possível resposta à posição de Mandeville pode ser
apresentada. Lembrando que Mandeville descreve os seres humanos como criaturas que não
são naturalmente sociáveis e que só deixam os vícios naturais de lado devido à influência de
sábios e políticos. Para Hume, tal posição é insustentável, pois além de oferecer uma visão
nefasta da natureza humana, também rejeita o lugar das virtudes naturais como partes dessa
natureza. Além disso, se os seres humanos não fossem suscetíveis a certos sentimentos de
aprovação ou reprovação, o discurso de políticos ou sábios não faria qualquer efeito sobre o
povo. Nesse sentido, Hume coloca o seguinte: ―(...) e as palavras louvável, elogiável,
condenável e odioso seriam tão pouco inteligíveis como se pertencessem a uma língua
inteiramente desconhecida de nós, como já observamos‖ (2009, p. 618).

Considerações finais

Tendo em vista os pontos ressaltados ao longo do artigo, entende-se que os teóricos do


egoísmo moral reduzem ou até mesmo descartam o papel da benevolência na natureza
humana, à medida que aumentam de forma desproporcional os vícios naturais sobre as
virtudes naturais. Nesse seguimento, talvez os teóricos egoístas pudessem argumentar que
existe certo tipo de inocência por parte de Hume ao tentar tecer outra representação da
natureza humana que não aquela proposta por eles. Todavia, Hume poderia muito bem se
sobressair neste caso, pois sua defesa da natureza humana não consiste em ignorar

294
É justamente neste ponto que Hume demonstra de forma mais clara a sua pretensão de investigar como se dão
as distinções morais: (1) Se são traçadas com base no interesse próprio ou nos preconceitos da educação (o que
implicaria que a moral não está fundada na natureza); ou (2) Se estão fundadas em princípios naturais e originais
(o que implicaria que a moral é algo real, essencial, e fundada na natureza). Como foi demonstrado, o sistema de
Hume se sustenta nas duas vias. A distinção entre as virtudes e vícios naturais e as virtudes e vícios artificias
parece assegurar a coerência da posição de Hume. David Fate Norton discute essa problemática em seu artigo:
The Foundations of Morality in Hume‘s Treatise.

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características como: a ingratidão, a crueldade, a vilania ou a baixeza e a desumanidade – os


vícios naturais. Muito pelo contrário, Hume também reconhece tais características como parte
da natureza dos seres humanos, mas não as considera como os egoístas o fazem, ou seja,
como características que se destacam no gênero humano. No ensaio Da dignidade e fraqueza
da natureza humana, Hume sustenta: ―Se nossos princípios egoístas e viciosos fossem tão
predominantes acima de nossos princípios sociais e virtuosos, como afirmam alguns
filósofos, deveríamos, sem dúvida, nutrir uma noção desprezível pela natureza humana‖ (DM
8, Mil 84, tradução nossa)295. Ao enfatizar isso, Hume não faz mais que criticar o equívoco
dos filósofos que representam a natureza humana de forma bárbara, sem considerar as
virtudes naturais como partes tão essenciais quanto os vícios naturais o são na natureza
humana.
Pelo que foi apresentado neste artigo, Hume faz uma análise da natureza humana e da
moral sem deixar de lado o método experimental de raciocínio – assim, satisfazendo a
exigência moderna daquilo que pretende o método científico. É justamente com o auxílio
desse método que o filósofo constitui seus argumentos em defesa da natureza humana e da
moral, isto é, ―(...) deduzindo máximas gerais a partir de uma comparação de casos
particulares‖ (HUME, 2004, p. 231); ou mesmo: ―(...) reunindo nossos experimentos
mediante a observação cuidadosa da vida humana, tornando-os tais como aparecem no curso
habitual do mundo, no comportamento dos homens em sociedade, em suas ocupações e em
seus prazeres‖ (Hume, 2009, p.24). Nessa perspectiva, Hume faz uso de situações reais para
sustentar a veracidade de seus argumentos, recorrendo à experiência do cotidiano e a
exemplos da história humana para sustentar seus argumentos de forma simples e objetiva. A
simplicidade, por sinal, é característica marcante do método utilizado por Hume296: ―A causa

295
―Were our selfish and vicious principles so much predominant above our social and virtuous, as is asserted by
some philosophers, we ought undoubtedly to entertain a contemptible notion of human nature.‖
296
João Paulo Monteiro destaca um tópico pertinente a este respeito em seu livro Hume e a epistemologia, no
capítulo 5, intitulado Parcimônia e desígnio: ―O princípio científico de simplicidade – uma versão moderna da

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mais simples e mais óbvia que se pode atribuir a um fenômeno é provavelmente a sua
verdadeira causa‖ (2004, p. 384).
Ao levar em consideração a experiência e, por meio dela, a forma como o
comportamento dos homens se apresenta, Hume deduz que a natureza humana não pode ser
representada da maneira como os egoístas fazem questão de ressaltar. Não existem impressões
no mundo que podem garantir a tese egoísta. Assim sendo, se não satisfaz as exigências do
princípio da cópia, a tese egoísta não deve ser levada em conta nesse contexto. No fim das
contas, as pessoas se importam com seus amigos, familiares e conterrâneos – isso é um fato.
Ademais, além de sentir simpatia por pessoas tão próximas, também sentem o mesmo por
pessoas desconhecidas enquanto seres humanos – apesar de a semelhança e a contiguidade no
espaço e no tempo exercer certa influência nesse caso.
Em vista disso, não pode ser o amor de si mesmo – como sustenta Hobbes – ou somente
os efeitos da educação e do elogio – como emprega Mandeville – a fonte destes sentimentos
morais e a consideração prestada a eles. A experiência ensina uma coisa: é impossível não
sentir desprazer ao presenciar uma situação de completo sofrimento de outro ser humano sem
que isso não desperte um enorme desconforto. Ao frequentar um velório, por exemplo, é
natural se compadecer por todos que ali estão. O ranger de dentes, o profundo suspiro e choro
dos amigos e familiares do morto fazem com que a imaginação ou fantasia entre em ação e
―ela nos faz participar de sentimentos que não nos pertencem de forma alguma, e só podem
nos interessar em virtude da simpatia‖ (HUME, 2009, p. 629). O mesmo pode ser dito
quanto à situação contrária, porque é comum as pessoas encherem-se de alegria e euforia ao
presenciar o sorriso de felicidade de um amigo que conquistou o seu objetivo; assim também
como se divertem em conversas com estranhos quando esses expressam sentimentos ou
expressões relacionas à felicidade. É nesse sentido que Hume cita Horácio: ―Assim como as
faces humanas riem com as que riem, também choram com as que choram‖ (HUME, 2004, p.
286).

navalha de Occam, a qual por sua vez era a retomada de um princípio aristotélico – deve ser considerado um
terreno comumente partilhado por Fílon, Cleanto e o próprio David Hume‖ (MONETEIRO, 2009, p. 141).

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Pode-se dizer, então, que a verdadeira representação da natureza humana não pode
condizer com aquela pintada pelos teóricos egoístas. Ao recorrer à experiência o argumento
de Hume se mantém de forma irrefutável, isto é, características benevolentes ou virtuosas
existem assim também como existem características egoístas ou viciosas. Por outro lado,
argumentar em favor da predominância das últimas sobre as primeiras não seria nem um
pouco condizente com a índole de um disputador que se pretende sincero.

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A CONDIÇÃO DO SOLITÁRIO E SUA RELAÇÃO COM A MORAL E A


LINGUAGEM NA FILOSOFIA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Caique Nakayama Guimarães

Resumo
O tema da solidão nas obras de Jean-Jacques Rousseau é mais recorrente em seus textos
autobiográficos. Sendo assim, o presente artigo pretende assegurar a possibilidade de associar
os conceitos do arcabouço filosófico do autor e a condição solitária vivida no âmbito de sua
vida. Portanto, o artigo tem como proposta entender a solidão como um conceito filosófico
que dialoga com problemáticas do campo da moral e da linguagem.
Palavras-Chave: Linguagem. Moral. Sociedade. Solidão.

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1. Introdução

A trajetória da literatura crítica que se traçou desde o século das Luzes acerca da obra
de Jean-Jacques Rousseau se articulou entre diversas interpretações. No percorrer da
Revolução Francesa, revolucionários e contrarrevolucionários tomavam sua obra e defendiam
posicionamentos sobre ela que, pela contraditoriedade, nem parecia se tratar do mesmo autor.
Não se via uma coligação entre um escrito que tomava como perspectiva discursiva o âmbito
individual, caso do Discurso Sobre a Origem da Desigualdade, e seu texto Do Contrato
Social, que se posicionava a favor da obrigatoriedade da participação de todos para a decisão
da vida coletiva. A dificuldade interpretativa não se esgotou apenas ao debate político, mas
abrangeu os demais escritos de Rousseau: seus romances, peças teatrais, textos acerca da
música, botânica e, sobretudo, dos escritos conhecidos como autobiográficos.

Algumas possibilidades de avaliar a unidade da obra de Rousseau foram propostas


pela literatura crítica do autor a partir do século XX297 e, dentre elas, há a de Jean Starobinski,
que defende a união da vida e da obra de Rousseau ao perceber que:

Com ou sem razão, Rousseau não consentiu em separar seu pensamento e


sua individualidade, suas teorias e seu destino pessoal. É preciso considerá-
lo tal como se apresenta, nessa fusão e nessa confusão da existência e das
ideias. Assim, somos levados a analisar a criação literária de Jean-Jacques
como se ela representasse uma ação imaginária, e seu comportamento, como
se ele constituísse uma ficção vivida. (STAROBINSKI, 2011, p. 9)
A leitura de Starobinski dos textos de Rousseau se propõe ―simplesmente em
descobrir a ordem e desordem interna dos textos que interroga, os símbolos e as ideias
segundo os quais o pensamento do escritor se organiza‖ (STAROBINSKI, 2011, p. 10). Essa
interpretação viabiliza investigar os escritos autobiográficos de Rousseau correlacionados

297
Para um comentário aprofundado sobre interpretações que defendiam contradições na obra de Jean-Jacques
Rousseau, ver GAY, PETER. Introdução. Trad. Jézio Gutierre. In: CASSIRER, Ernst. A Questão Jean-Jacques
Rousseau. São Paulo: Editora UNESP, 1999 e, para uma exposição das diferentes concepções de unidade em sua
obra, ver a introdução de RADICA, Gabrielle. L‘histoire de la Raison: Antrophologie, morale et politique chez
Rousseau. Paris: Honoré Champion, 2008.

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com seu arcabouço filosófico e compreender o autor como um sujeito que defende sua
filosofia ao ponto de fundamentar sua ação no mundo por meio dela.

Desse modo, estabelecemos terreno seguro para traçarmos a investigação acerca do


tema solidão, o qual aparece com maior predominância em textos que pertencem ao conjunto
conhecido como autobiográfico de sua obra. Dentre eles, poderíamos ter direcionado nossa
atenção aos Devaneios de um Caminhante Solitário (2017), mas o contexto da escrita dessas
reflexões não nos favorece para compreender a deliberação do autor para uma vida solitária
pois, a partir da publicação do Emílio ou Da Educação em 1762, suas obras foram queimadas
em praça pública e em 18 de junho foi expedido um mandado de prisão, que o fez viver
fugitivo até o fim de sua vida. Em sua Carta a Christophe de Beaumont, Arcebispo de Paris,
Rousseau demonstra sua insatisfação e seu sentimento frente ao acontecido: ―O cidadão de
Genebra nada deve a magistrados injustos e incompetentes que, com base em uma acusação
caluniosa, não o convocam, mas decretam sua prisão. [...] Ele [Rousseau] abandona,
suspirando, sua amada solidão‖ (ROUSSEAU, 2005, p. 43).

Em janeiro do mesmo ano, Rousseau escreve as Quatro Cartas ao Senhor Presidente


de Malesherbes (2005) cujo subtítulo explicita os objetivos presente nessas cartas: ―contendo
o verdadeiro quadro de meu caráter e os verdadeiros motivos de toda minha conduta‖
(ibidem, p. 19). De seus contemporâneos, críticos ou amigos, estranharam e não puderam
entender o motivo de Jean-Jacques Rousseau ter se afastado da vida palaciana, do grupo dos
enciclopedistas, dos grandes espetáculos teatrais, dentre outras atividades comuns à
aristocracia francesa do século XVIII para viver aos arredores de Paris, em um casebre
simples, pequeno, longe do luxo e das riquezas que bem poderia aproveitar. Acusaram-no de
ser um misantropo, além de alegar que um homem como ele, voltado ao mundo das letras e
da música, nada agregaria à vida campestre e nela não seria nada mais que um inútil para a
sociedade. De todo caso, concluíam que a vida de Rousseau na região de Montmorency se
resumia em infelicidade e melancolia. Seu posicionamento nas Quatro Cartas, dirigindo-se
ao seu amigo Chrétien-Guillaume Lamoignon de Malesherbes, direciona-se em defesa dessas
acusações e do elogio à vida solitária.
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Logo em sua primeira carta suas motivações são expostas: ―nasci com um amor
natural pela solidão que só fez aumentar conforme conhecia melhor os homens‖
(ROUSSEAU, 2005, p. 20). Acrescenta ainda que existe dentro de si uma paixão que fomenta
a vontade da vida solitária desde sempre no âmbito de sua individualidade e, conforme tomou
contato com as injustiças da vida cotidiana e demais maldades, o seu desejo de reclusão se
intensificou. Verificamos uma causa primeira que acentua essa paixão: o contato recorrente
da injustiça e dos vícios vividos e observados empiricamente nas ocasiões da vida social. Em
defesa da sua condição solitária, Rousseau apresenta ao seu interlocutor de maneira resumida
as principais consequências positivas que seu modo de vida tem em relação à vida em
sociedade:

Foi-me demonstrado pela experiência que o estado em que me encontro é o


único que o homem pode ser bom e feliz, pois é o mais independente de
todos e o único em que jamais nos encontramos na necessidade de prejudicar
os outros para nossa própria vantagem (ROUSSEAU, 2005, p. 25-6)
O trabalho aqui realizado tem em vista investigar o conceito de bondade e suas
conexões com a felicidade e a linguagem para compreender o estado de solidão experienciado
pelo autor. Assim sendo, pretendemos identificar o sentimento da solidão como um conceito
filosófico condizente com seu sistema de pensamento.

Para tal finalidade, será preciso estabelecer o conceito de bondade apresentado na


Profissão de Fé do Vigário de Sabóia, presente no Livro IV do Emílio, e sua correlação com
a hipótese histórica contida no Discurso Sobre a Desigualdade. De maneira complementar, a
condição do solitário se relaciona e se articula conjuntamente com uma linguagem própria
que conceituaremos a partir do Ensaio Sobre a Origem das Línguas.

2. Ordem e Desordem: a concepção do mal e do bem na filosofia de Rousseau

Jean-Jacques Rousseau e os demais filósofos iluministas foram diretamente


influenciados pelos pensadores do século anterior, responsáveis pelo advento da filosofia
moderna. Passados os séculos da idade medieval e de seu pensamento filosófico vinculado

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com as questões teológicas, a Idade Moderna se dedicou em separar o campo da razão do


campo da fé. O Século das Luzes pôde observar a ruptura entre uma cosmovisão organicista e
teleológica para uma visão mecanicista, com a possibilidade de investigar possíveis leis gerais
à natureza.

Uma imagem assimilada pelos pensadores e que demonstra essa cosmovisão é a de


que o universo é organizado por leis tal qual um relógio possui suas engrenagens, molas,
parafusos, e Deus é concebido como o relojoeiro responsável pela perfeita harmonia entre as
peças.

Para os debates do domínio epistemológico e da ciência tais concepções abriram um


caminho fértil a ser cultivado. Todavia, como se pensar a condição do homem uma vez que
ele está imerso neste universo regido por leis? O problema da liberdade do homem se
apresenta junto do problema existencial – uma vez que não temos mais um fim pré-
determinado pela visão organicista – e, desse modo, surge a necessidade de investigar quais
as relações entre o domínio das leis físicas e naturais e o da moral, visando identificar sob
qual estatuto podemos firmar a ação boa e a má.

Na Profissão de Fé do Vigário de Sabóia, Rousseau traçará sua discussão tendo este


cenário em vista, apresentando-nos a possibilidade de pensar a liberdade do homem sem
negar a ordem do mundo físico.

2.1 Os três artigos de fé da Profissão de Fé do Vigário de Sabóia

Nesta conhecida passagem do Emílio, o Vigário se defronta com a dificuldade de


apresentar as verdades e pautas religiosas ao Emílio, que agora está na puberdade. Evitando
demonstrar dogmas estabelecidos pelas diversas religiões, Rousseau, através da voz do
Vigário, se prontifica a estabelecer verdades fundamentais para o entendimento do universo,
da moral e da religião de maneira independente, duvidando das opiniões que tinha,
suspendendo o juízo acerca de toda verdade anterior a fim de ter tais verdades asseguradas
por seu processo próprio de construção do conhecimento, e não por uma tradição.
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Apesar da influência cartesiana no quesito da dúvida, a motivação que leva o Vigário


a duvidar não é a mesma da Descartes. O francês propunha metodicamente construir
racionalmente o edifício do conhecimento, enquanto que para o Vigário sua causa se refere ao
descontentamento no campo existência, com os preconceitos, a hipocrisia dos homens e os
dogmas religiosos e, desse modo, afirma ―Eu [Vigário] estava nessas disposições de
incerteza e de dúvida que Descartes exige para a procura da verdade‖ (ROUSSEAU, 2017,
p. 312). Mais à frente no texto, o Vigário se pergunta: ―Mas quem sou eu? Que direito tenho
eu de julgar as coisas e o que determina meus julgamentos?‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 314),
essa pergunta tem como intenção refletir sobre a liberdade do homem, o que o leva a
assegurar a inversão do cogito cartesiano: ―Existo e tenho sentidos pelos quais sou afetado‖ e,
em seguida, reforça seu posicionamento muito mais voltado ao empirismo que ao
racionalismo: ―concebo claramente, portanto, que minha sensação, que sou eu, e sua causa
ou seu objeto, que está fora de mim, não são a mesma coisa‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 315).
Como ressalta o comentador Bento Prado Jr, a inversão do cogito demonstra desde o início a
distinção entre o campo que o genebrino visa desbravar em sua reflexão que se difere do de
Descartes, isto é, de que René Descartes se voltava ao campo do Saber e, por outro lado,
Jean-Jacques Rousseau se volta para o campo do Poder visando refletir acerca da liberdade,
do bem e do mal (cf. PRADO JUNIOR, 2018, p. 142).

O Vigário, para estabelecer tais verdades fundamentais, toma como contraponto


argumentativo o materialismo francês do século XVIII, representados principalmente pela
filosofia de Denis Diderot, La Mettrie e o Barão d‘Holbach. Uma concepção comum a estes
autores estava na defesa da matéria como única substância e, em respeito ao movimento dos
corpos, de que a matéria possui em si a capacidade de se movimentar de forma autônoma (cf.
FERREIRA JUNIOR, 2017, p.203). Através da observação dos corpos, o Vigário percebe que
sua condição natural é permanecer em repouso, não conseguindo pensar como objetos tais
como pedras, galhos, dentre outros corpos pudessem sair desta condição por si próprios e,
assim, desconsidera a veracidade do argumento materialista. Mas o Vigário não nega que o
movimento exista e estabelece dois tipos de movimentos: movimentos espontâneos e

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movimentos comunicados. Os espontâneos acontecem por meio de corpos que possuem em si


princípios ativos e sua ação decorre de uma vontade; os comunicados acontecem em corpos
que são inativos e só se movem por consequência da ação dos corpos com princípio ativo. A
partir da existência de corpos que possuem princípios ativos, logo, possuem vontade,
Rousseau interpreta que para isso é preciso existir uma vontade superior que anima os corpos
ativos. Este é tido como o primeiro artigo que fé:

Em suma, todo movimento que não é produzido por outro somente pode vir
de um ato espontâneo, voluntário; os corpos inanimados agem apenas pelo
movimento, e não há verdadeira ação sem vontade. Eis meu primeiro
princípio. Acredito, portanto, que uma vontade move o universo e anima a
natureza. Eis meu primeiro dogma, ou meu primeiro artigo de fé.
(ROUSSEAU, 2017, p. 319)
Um segundo argumento defendido pelos materialistas se refere ao movimento ser
necessário à matéria. Entretanto, todo movimento precisa de uma direção ao qual se dirige
para se transportar no espaço e o Vigário questiona: ―em que sentido, portanto, a matéria se
movimenta necessariamente? Toda a matéria em corpo possui um movimento uniforme ou
cada átomo tem seu próprio movimento?‖ (ibidem, p. 320). Se o primeiro caso for verdade, o
mundo deve formar uma unidade indivisível, sólida, com uma única direção; se tomássemos a
segunda ideia como verdade, deveríamos assumir a fluidez, sendo impossível de verificar se o
átomo se movimenta para esquerda ou direita, para baixo ou para cima e, independente de
cada caso for o correto – ou todos os casos serem válidos – , teríamos infinitos problemas se
tentássemos defender tal posicionamento298.

O Vigário não se convence pelos argumentos materialistas e não pode negar a


constatação que sua observação do mundo lhe fornece: que o movimento procede

298
O Vigário atesta a impossibilidade desse processo: ―Dar à matéria o movimento por abstração é pronunciar
palavras que não significam nada, e dar-lhe um movimento determinado é supor uma causa que o determine.
Quanto mais multiplico as forças particulares, mais causas novas tenho para explicar, sem nunca encontrar
nenhum agente em comum. Longe de poder imaginar alguma ordem no concurso fortuito dos elementos, sequer
posso imaginá-los em combate, e o caos do universo me é mais inconcebível que sua harmonia‖ (ROUSSEAU,
2017, p. 320).

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inteligentemente, ou melhor, constantemente, sendo possível extrair da natureza as leis pelos


quais determinados fenômenos são regidos. Assim, o segundo artigo de fé atesta a ordem da
natureza e, consequentemente, a existência daquele que a ordena:

Se a matéria movida me mostra uma vontade, a matéria movida segundo


certas leis me mostra uma inteligência – é meu segundo artigo de fé. Agir,
comparar e escolher são operações de um ser ativo e pensante. Logo, esse
ser existe. (ROUSSEAU, 2017, p. 320-1)
Os dois primeiros artigos de fé do Vigário constatam a existência de universo
ordenado e a existência de um Ser inteligente que forneceu a harmonia do movimento dos
corpos ativos do mundo, que ao nosso olhar, quando compreendidas, nomeamos de leis da
natureza. Não apenas, esse Ser ―não se contentou em estabelecer a ordem; tomou medidas
certas para que nada pudesse perturbá-la‖, pois suas leis garantem a manutenção saudável
do relógio, uma vez que suas peças estão perfeitamente posicionadas, impedindo a imprecisão
de sua operação. Melhor dizendo, na voz do Vigário, ―[...] não vejo nada que não seja
ordenado no mesmo sistema e não concorra para o mesmo fim – a saber, a conservação do
todo na ordem estabelecida.‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 322-3). A esse Ser, damos o nome de
Deus.

O olhar do Vigário para a formulação dos dois artigos de fé esteve inscrito dentro do
campo objetivo da física, estacionado em debates de ordem ontológica se posicionando frente
ao materialismo francês de seu século. O terceiro e último artigo de fé se dá na volta ao olhar
subjetivo, de maneira semelhante àquela do início da Profissão de Fé cujo foco foi estabelecer
seus pressupostos e método299.

299 O método apresentado pelo Vigário preliminarmente é demonstrado da seguinte maneira: ―Carregando,
portanto, em mim o amor à verdade como única filosofia e, como único método, uma regra fácil e simples que
me dispensa da sutileza fútil dos argumentos, retomo, com base nessa regra, o exame dos conhecimentos que me
interessam, decidido a admitir como evidentes todos aqueles a que, na sinceridade de meu coração, não puder
recusar meu consentimento, e como verdadeiros todos os que me parecerem ter uma ligação necessária com os
primeiros, e a deixar todos os demais na incerteza, sem rejeitá-los nem admiti-los e sem me atormentar a
esclarecê-los quando não conduzem a nada de útil na prática‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 314).

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Apesar de estar convencido de que suas verdades são inquestionáveis, o Vigário


parece perceber que existem dois domínios em que a vida acontece. No domínio da natureza,
a ordem é inquestionável e nos é apresentada evidentemente, conforme atestado pelos dois
primeiros artigos de fé, sendo possível fazer verificações de diversas regularidades de
fenômenos e movimento de corpos. Entretanto, no mundo dos homens, no domínio da vida
social, não nos parece tão verdadeiro que isso se siga necessariamente das mesmas condições
que a natureza dispõe. ―Onde está a ordem que eu observara?‖, indaga o Vigário e, não
somente, explicita o contraste entre os dois domínios: ―o quadro da natureza me oferecia
apenas harmonia e proporções, o do gênero humano me oferece apenas confusão e
desordem! [...] Os animais são felizes, apenas o seu rei é miserável!‖ (ROUSSEAU, 2017, p.
324).

Frente a esse cenário aparentemente contraditório, Rousseau, na voz do Vigário de


Sabóia, nos apresenta sua concepção de sujeito, que se percebe ora capaz de seguir sua
vontade e decidir entre o querer e o não querer, ora direcionado pelo impulso das paixões,
dizendo ser ao mesmo tempo escravo e livre300. No âmbito corpóreo, as impressões que
recebemos e como agem conosco são independentes de nossa vontade e, neste aspecto, nós
somos passivos. Entretanto, as ideias provenientes de impressões sensíveis e todo o processo
de comparação e divisão de ideias, e consequentemente nossa decisão de ação no mundo,
provém da atividade de nossa razão. Somos, ao mesmo tempo, passivos e ativos, e essa é a
concepção de sujeito tida por Rousseau. Podemos conter ou ceder ao fluxo das paixões,

300
A formulação do sujeito passivo, no âmbito do corpo, no momento de receber impressões do mundo, e ativo
no processo de julgar as ideias simples recebidas sensivelmente nos é fornecido preliminarmente no momento
que Rousseau faz a inversão do cogito cartesiano, no primeiro momento da Profissão de Fé. Entretanto, vemos a
importância argumentativa dessa premissa no momento que o autor irá sustentar o terceiro artigo de fé. Para uma
apresentação da concepção de sujeito em Rousseau, ver FERREIRA JUNIOR, P. Une philosophie pour moi:
Rousseau leitor de Descartes contra o materialismo. Contemplação, Marília, n. 15, v. 1, p. 199-220, 2017.

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recusar, resistir, consentir, impor limites às tentações, em poucas palavras, ―tenho sempre o
poder de querer, não a força de executar‖ (ROUSSEAU, p. 326).

Em nosso processo ativo do juízo, temos o entendimento e sempre escolhemos aquilo


que entendemos como o bom ou melhor para nossa conservação. O autor não vê como
possível que tenhamos a liberdade de escolher o pior para nós e, caso fizéssemos escolhas que
nos prejudicassem, sua causa estaria no juízo equivocado. A constatação do terceiro artigo de
fé visa estabelecer que o homem tem o único princípio ativo livre, diferentemente do caso de
animais que agem institivamente, a liberdade do homem ―consiste nisto mesmo: que eu
somente possa querer aquilo que me é conveniente ou que eu considere como tal, sem que
nada que me seja estranho me determine‖ (ROUSSEAU, p. 327). Aqui nos deparamos com
um paradoxo que envolve a existência histórica do ser humano, a saber, de que somos livres
em nossa decisão, principalmente para agir contra nossa própria natureza, uma vez que,
imaginando nos ser bom, tenhamos escolhido aquilo que nos fosse danoso. Mas a
Providência, defende o Vigário, não permite que a desordem no mundo dos homens afete o
domínio da natureza e, desse modo, temos de forma precisa a ordem física, boa porque se
mantém ordenada, e a ordem moral, no espectro humano, que se dirige na contramão da
natureza e por isso desordenada.

2.2 O mal como invenção humana

A frase que inicia o Livro I do Emílio ―Tudo é bom ao sair das mãos do Autor das
coisas; tudo degenera entre as mãos do homem‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 41) se faz mais clara
depois que observamos o desenvolvimento dos três artigos de fé. O mal, portanto, só existe no
âmbito da moralidade, reflete apenas no homem e sua causa está nele mesmo. Rousseau nos
havia demonstrado anos antes em seu Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade entre os Homens (1756), ao expor o processo imaginário da saída do homem
em seu estado de natureza à condição social que a origem da desigualdade e,
consequentemente, a maldade tem como único responsável o homem.

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A concepção de homem natural que Rousseau defende se articula com os preceitos


expostos em sua Profissão de Fé. Nesta condição o homem está inserido no sistema ordenado
da natureza e se segue como uma peça pertencente ao conjunto harmônico. Seu corpo é a
única ferramenta que utiliza para superar os obstáculos da natureza e poucas são as
finalidades de sua ação: ele busca se alimentar, repousar e reproduzir; foge das experiências
que lhe causaram dor e da fome. De todo caso, nesse momento todos os seus apetites são
atendidos imediatamente visando sua conservação e vive isolado, pois contém em si todos os
recursos para atingir esse fim: seus braços e suas pernas são apropriadas para a vida na
natureza, consegue escalar lugares, caçar sua presa e escapar de algum predador se for
preciso.

Esse homem imerso na natureza em igual condição frente aos seus semelhantes tinha
como condutor de sua ação a vontade que era atendida imediatamente em resposta aos
apetites. O sujeito natural possui uma unidade entre seu ser e sua ação, ou melhor, seu ser se
apresenta transparente, atendendo o pedido de sua natureza em todas ocasiões da vida. A
concepção do homem naturalmente bom se dá na conformidade entre a natureza e sua
atividade no mundo, no domínio da bondade e ordem física, uma vez que não há norma
estabelecida para interpretarmos seus gestos moralmente.

Duas são as virtudes naturais que o homem natural tem como guia para a conduta
imediata: o amor de si e a piedade. O primeiro faz com que o homem satisfaça seus apetites
naturais sem ultrapassá-los como, por exemplo, comer ou repousar para além daquilo que o
corpo pede; estes excessos só se encontram nas sociedades. O amor de si segue, portanto, a
máxima da bondade natural: ―Alcança teu bem com o menor mal possível‖ (ROUSSEAU,
2000, p. 79). Dito isso, a piedade é paixão que se direciona para o exterior e visualiza a
condição que outros estão, estendendo o amor de si para todos os seres levando a
―conservação mútua de toda a espécie‖ (ROUSSEAU, 2000, p. 78-9). Esta paixão faz com
que o homem, ao se deparar com alguma situação de dor e sofrimento de outro ser vivo, sinta
uma empatia e que o impulsione a socorrê-lo. Tal paixão esclarece o significado da máxima
anterior, entendendo que em condições naturais não há excessos, come na medida que sua
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fome o provoca e impossibilita casos de satisfação pela dor de outros. Vejamos, então, o
percurso resumido que o autor nos fornece acerca da condição natural do homem:

Concluamos que, errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem
domicílio, sem guerra e sem ligação, sem nenhuma necessidade de seus
semelhantes, bem como sem nenhum desejo de prejudica-los, talvez, sem
sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem selvagem, sujeito
a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os
sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas
verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de
ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do que a vaidade. [...]
Então não havia nem educação, nem progresso; as gerações se
multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto,
desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a
espécie já era velha e o homem continuava sempre criança (ROUSSEAU,
2000, p. 82).
Para que o ser humano deixasse a condição de viver isolado e passasse a viver em
conjunto, na dependência mútua de outros, foi preciso alguma ocorrência natural, como
inundações, terremotos ou escassez de recursos, que fez com que todos esses seres
independentes fossem forçados a habitar um espaço comum e, consequentemente, com o
contato mais recorrente, fossem obrigados a estabelecer relações. Num primeiro momento,
apenas caçavam em conjunto visando a atingir mais facilmente o seu objetivo. Conforme
muitos séculos e a aproximação mais frequente, surge a estrutura da família. Neste percurso,
tendo passado o tempo suficiente para que as famílias tenham se desenvolvido e aumentado
em números, possibilitou uma nova organização a partir da junção de algumas famílias,
originado as tribos e, com isso, surgiram costumes que regem o modo de vida de cada tribo
particular e, principalmente, constituem-se as primeiras línguas comuns. Na perspectiva de
Rousseau, a humanidade só se desenvolveu desta maneira porque foram forçados a viverem
juntos.

Jean-Jacques Rousseau, imaginando como seria essa vida, percebe que a desigualdade
que encontramos em sociedade não tem sua causa na natureza do homem. A desigualdade
física – altura, peso, cor de cabelo, olhos, entre outros – não legitima a desigualdade social,
uma vez que, em um ambiente com recursos para todos, cabe ao mais forte vencer uma

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disputa e o perdedor segue em uma outra direção, isto é, a variedade em questão física não
pode servir de justificativa. No âmbito moral e psicológico, o homem encontrava-se na
mesma condição e, desse modo, não também não é valido qualquer argumento que utilize
esses dois campos para legitimar a desigualdade acontecida em sociedade. Qual seria, então,
sua causa? Rousseau dedica-se em demonstrar como a desigualdade, não tendo origem
natural, tem sua causa na própria ação humana.

Rousseau julga esse estado vivido pelo homem como a ―época mais feliz e a mais
duradoura‖ da espécie, a qual teria sido ―a verdadeira juventude do mundo‖ (ROUSSEAU,
2000, p. 93), em que o homem teria passado a olhar o seu semelhante e querer ser olhado em
momentos em que o grupo realizava atividades em conjunto, como a dança, o canto, dentre
outras ocupações de lazer que a vida em tribo possibilitava. Tal momento iniciou o
distanciamento do homem de seus princípios naturais da piedade e amor de si, e a necessidade
de ser olhado ―foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício‖, mas,
não obstante, ―os homens começaram a apreciar-se mutuamente e se lhes formou no espírito a
ideia de consideração [...] saíram daí os primeiros deveres de civilidade‖ (ROUSSEAU, 2000,
p. 92). A duração deste estado intermediário entre a bondade natural do homem isolado e a
vida social, como diz o autor, deve ter tido uma grande duração, mas o que retirou desta
condição? Rousseau no certifica que:

Enquanto só se dedicaram a obras que um único homem podia criar, e as


artes que não solicitavam o concurso de várias mãos, viveram tão livres,
sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, e continuaram
a gozar entre si das doçuras de um comércio independente; mas, desde o
instante em que um homem sentiu necessidade do socorro mútuo de outro,
desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois,
desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se
necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que
se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e
a miséria germinarem e crescerem com as colheitas (ROUSSEAU, 2000, p.
94)
A revolução desse modo vida se deu a partir da invenção da agricultura e da
metalurgia. Na medida em que o homem se dedicava nestas duas atividades e o aumento
populacional foi possível organizar a vida de maneira que realizasse a troca do ferro por
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comida e vice-versa. Cada qual com sua função em sua tribo, o homem se viu tendo uma
relação diferente com a terra, uma vez que, fixado um local para a produção de alimentos, e
―dando ao cultivador um direito sobre o produto da terra que ele trabalhou‖ fez ―por
determinar tal fato uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade‖
(ROUSSEAU, 2000, p. 96). Logo, a pretensão de tomar o espaço de cultivo para si e remover
da utilização de todos a terra, próprio da vida em estado de natureza, implicará na invenção
do que chamamos de sociedade civil: : ―o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o
primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas
suficientemente simples para acreditá-lo‖ (ROUSSEAU, 2000, p. 87).

Por sua vez, tendo tomado para si, verificamos que a propriedade privada é inventada
e, por consequência, inventou-se a sociedade. A propriedade privada, portanto, é a motivação
para que seja preciso firmar o contrato social. Pois, se antes havia um modo de vida em que
estaria presente um grande compartilhamento de alimentos, terra, dentre outros recursos
necessários à vida, quando retirado do uso comum a todos, certamente causaria problemas
para a convivência e, assim, a humanidade teria tido um período conflitos pela disputa
daquilo que foi usurpado do uso comum. Neste conflito a única garantia do usurpador seria a
sua força para manter a propriedade privada e, para cessar os conflitos e garantir a sua
manutenção, o contrato social foi instaurado e com ele a força física que era empregada para
proteger a propriedade privada é formalizada e assegurada pela força da lei. Dessa forma, a
passagem do estado de natureza para o estado civil tem como fundamentação a legalidade da
propriedade privada e, por consequência, toda convivência social é fundamentada pela
desigualdade instituída:

Se seguirmos o processo da desigualdade nessas diferentes revoluções,


verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e
do direito de propriedade; a instituição da magistratura, o segundo; sendo o
terceiro e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário.
Assim, o estado de rico e de pobre foi autorizado pela época; o de poderoso
e de fraco pela segunda; e, pela terceira, o de senhor e de escravo, que é o
último grau da desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem,
até que novas revoluções dissolvam completamente o Governo ou o
aproximem da instituição legítima (ROUSSEAU, 2000, p. 110)

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Por meio da invenção da propriedade privada, o homem sofre uma alteração em sua
relação consigo e com o mundo: não age mais em conformidade seu ser, não há mais unidade
entre o que somos e o que fazemos, pois o amor de si deixa de ser condutor da ação imediata
e é trocado pelo amor-próprio, guia mediato entre os meios para obtenção de fins pessoais e,
com ele, todos os vícios humanos surgem, ou melhor, ―ser e parecer tornaram-se duas coisas
totalmente diferentes‖ (ROUSSEAU, 2000, p. 97). A condição de igualdade se perde e com
ela a possibilidade de agir segundo a natureza, o espaço em que haveria uma correspondência
entre natureza e vida humana se torna um espaço artificial que torna possível o luxo, o
excesso e os demais vícios que observamos na sociedade. O homem em sociedade, por sua
vez, estará em conflito ao sentir o amor de si e a piedade convocando sua ação e, não podendo
executar por inúmeras questões sociais, estas virtudes inatas serão sufocadas e o homem é
obrigado a conviver num mundo cujas condições de relação são estabelecidas pela injustiça e
desigualdade.

2.3. A corrupção da natureza como produto social

Explicitado o argumento de Rousseau, verificamos que existe um sujeito primeiro que,


ao sair das mãos da natureza, possui virtudes inatas que servem de norte para que sua vontade
livre escolha o melhor para si, que é transformado ao inventar a sociedade, alterando sua
transparência pela artificialidade e aparência, negando o amor de si e afirmando o amor-
próprio. O mesmo movimento acontece em cada ser humano nascido em sociedade: se
observarmos a educação tida na infância, a maldade e corrupção ontológica são ensinadas
uma vez que são necessárias para a conservação da vida em sociedade.

Vemos isso no próprio relato de Jean-Jacques nas Confissões, em que recorda como
foi sua primeira infância no início da obra. Com poucos anos de idade teve que morar com
seu tio, Ministro Lambercier, e era uma criança inocente, fazia suas travessuras como
qualquer outra, mas nunca com a intenção ou entendimento de que seu gesto afetaria alguém
negativamente. Pergunta-se o autor: ―e como me tornaria mau, se só tinha sob a vista

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exemplos de doçura, e ao redor de mim as melhores criaturas do mundo?‖ (ROUSSEAU,


2008, p. 34). Sua condição de existência se altera a partir da incidência de uma injustiça
sofrida, conhecida como o caso do pente. A senhora Lambercier encontra seu pente quebrado
e atribui a culpa ao pequeno Rousseau que tentava se defender da acusação, mas de nada
adiantou: ―o senhor e a senhorita Lambercier reuniram-se, exortaram-me, apertaram-me,
ameaçaram-me‖ (ROUSSEAU, 2008, p. 40). Acontece, nesse momento, uma ruptura
semelhante à da invenção da propriedade privada, em que ―o malefício da aparência, a
ruptura entre as consciências põe fim à unidade feliz do mundo infantil‖ (STAROBINSKI,
2011, p. 20). Foi neste momento que Rousseau toma contato com a primeira maldade e é
apresentado à lógica presente nas relações da vida social. Tal injustiça provoca na criança
uma reação que o faz repetir a maldade:

O afeto, o respeito, a intimidade, a confiança não mais ligavam os alunos aos


mestres; não os olhávamos mais como a deuses que nos liam o coração;
envergonhávamo-nos menos de proceder mal e tínhamos mais medo de ser
acusados. Começamos a nos esconder, a birrar, a mentir. Todos os vícios da
idade nos corrompiam a inocência e nos afeavam os brinquedos
(ROUSSEAU, 2008, p. 42)
Desse modo, a maldade, corrupção do homem, é perpetuada por meio da educação
visando à conformidade do sujeito ao modo de vida que se articula a partir da aparência, da
disputa e dos vícios.

3. Modo de vida solitário: condições de possibilidade para a linguagem e a ética.

Ao retomar as Cartas ao Senhor Presidente de Malesherbes, encontramos os


apontamentos dos dois modos de ser demonstrados no Discurso sobre a Desigualdade e nas
Confissões no momento em que o autor salienta a infelicidade sentido ao estar em Paris, da
preguiça de realizar as formalidades da vida aristocrática e sua exigência até mesmo nas
relações entre amigos. Ao passo que as regras de conduta e o sentimento de censura que o
reprimem passam a ser mais recorrentes, seu desejo de solidão aumentava. Quando a
encontra, atesta que a data de sua saída da vida parisiense é o momento inicial de sua vida:

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―só comecei a viver em 9 de abril de 1756‖ (ROUSSEAU, 2005, p. 27). A partir desta
afirmação metafórica entendemos que desfrutar do sentimento de solidão, isolado do meio
social, serve como tentativa de reconciliação com sua essência.

O entendimento de uma história como declínio desemboca em Paris como o ápice da


deturpação da humanidade até então. Este processo, enquanto, por um lado, nos afastávamos
da natureza, o desenvolvimento cognitivo também progrediu. À primeira vista podemos
entender que Rousseau foi um crítico da razão na sua totalidade, mas não é o caso. A razão é
criticada pelo autor no momento que seu produto, o raciocínio, propaga e mantém as relações
injustas. Mas é somente ela, a ―razão que conduz o homem ao conhecimento de seus deveres‖
(ROUSSEAU, 2017, p. 448) e ela ―é a faculdade de ordenar todas as faculdades de nossa
alma de forma adequada à natureza das coisas e a suas relações conosco‖ (ROUSSEAU,
2005, p. 149). Desse modo, a razão não deve se dedicar às questões que não pode resolver e
deve, por sua vez, se submeter à consciência: a atividade racional é aquela que pode decidir
entre as diversas possibilidades aquela que corresponde à nossa natureza quando ela nos
convoca:

Há, portanto, no fundo das almas um princípio inato de justiça e de virtude,


com base no qual, a despeito de nossas próprias máximas, julgamos nossas
ações e a de outrem como boas ou más, e é a esse princípio que dou o nome
de consciência (ROUSSEAU, 2017, p. 336)
Assim, a consciência torna-se o guia mais seguro para uma ação transparente do
sujeito na relação com os outros, é a maneira pela qual mais próximo se assemelha à
capacidade imediata da ação pela natureza e, logo, constitui a ação boa. Portanto, fazer a
consulta à nossa essência para encontrar os princípios universais da bondade nos fornece
parâmetros para o julgamento das más ações.

Encontramos duas problemáticas para a consciência em sociedade. A primeira é que,


mesmo que no campo individual o autor consiga fazer o uso correto da racionalidade, ele é
obrigado a assumir riscos ao realizar essa ação, uma vez que diverge da conduta comum da
lógica do amor-próprio Há, também, um segundo empecilho para a própria ação da
consciência em um sociedade, uma vez que é mais comum se adequar à totalidade dos vícios
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que ao agir por virtude ser condenado por seus contemporâneos. Rousseau, então, identifica a
causa de seu problema:

Depois de ter descoberto ou acreditado descobrir nas opiniões falsas dos


homens a fonte de suas misérias e de sua maldade, senti que somente essas
opiniões podiam tornar-me infeliz, e que meus males e meus vícios
provinham bem mais de minha situação do que de mim mesmo
(ROUSSEAU, 2005, p. 25)
A partir destas condições, percebemos que todas as relações que atravessam a vida
têm como mediação o uso da linguagem através da palavra ou do gesto. A fim de
complementar as problemáticas da vida em sociedade, vejamos como a própria linguagem
sofre a corrupção e inviabiliza que a natureza seja expressa pela voz.

3.1 Origem da Língua e suas conexões com a moral


Em sua obra publicada postumamente intitulada Ensaio sobre a origem das línguas o
autor traça, a partir do processo histórico imaginário que vimos anteriormente, os motivos
para o surgimento da língua, como a primeira convenção humana. Seu surgimento se deu a
partir da necessidade do homem de expressar seu sentimento e seu pensamento para outros
seres humanos através de sinais sensíveis. Esses sinais poderiam ser expressos pelo
movimento ou pela voz; o primeiro exigia menos artifícios em seu uso e diz mais por menos
tempo porque a visão toma a coisa diretamente e, assim, o imagético ou figurativo se torna o
meio de comunicação mais direito; por outro lado, o veículo da voz tem sua expressão
vinculada à expressão dos sentimentos do sujeito que emite o som, estes acentos penetram o
coração do ouvinte, emocionando-o e inflando suas paixões.

O genebrino analisa as línguas da sua origem até seu ápice na construção de uma
gramática estruturante da fala e tal movimento deve ter demorado séculos. O grito – que são
vogais e grandes acentos, exclamações vivas e inarticuladas - foi a primeira maneira de
comunicação que tivemos, em que não se distinguiria a fala do canto: ―Cantar-se-ia em lugar
de falar, a maioria das palavras radicais seria feita de sons imitativos, de acentos das

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paixões ou de efeitos dos objetos sensíveis: a onomatopeia far-se-ia sentir continuamente‖


(ROUSSEAU, 2015, p. 108).

Com o desenvolvimento das luzes, os acentos vogais são trocados por novas
consoantes e as ideias assumem o lugar da expressão dos sentimentos, falando mais à razão
que ao coração, e isso se deve à invenção da escrita. O desenvolvimento da linguagem se
expressa em três diferentes maneiras de escrita: os selvagens, aqueles que pintavam objetos
em sua escrita, deveriam ter uma língua apaixonada com vogais acentuadas e inarticuladas,
com suas necessidades e a sociedade formadas pela paixão; os povos bárbaros já deveriam ter
firmado um pacto social e viviam sob leis comuns, aqui ―se pintam os sons e falam aos
olhos‖, isto é, ainda há uma prioridade da voz à escrita; por último, os povos civilizados
decompõem a voz e criam palavras para ter caracteres comuns entre línguas diferentes, em
outras palavras, possuem alfabeto, a escrita que até hoje perdura se segue pela análise e
construção de palavras, sendo um processo estritamente racionalizado, entendido pelo autor
como uma articulação: ―a escrita, que parece fixar a língua, é precisamente o que a altera;
ela não muda suas palavras mas seu gênio; ela substitui a exatidão à expressão‖
(ROUSSEAU, 2015, p. 115-6).

Em paralelo, o processo de transformação da linguagem por meio da racionalização


prosseguiu em conjunto de dois outros conceitos: a melodia e a harmonia, uma vez que
inicialmente a linguagem se associava ao canto: ―Assim, a cadência e os sons nascem com as
sílabas: a paixão faz falar todos os órgãos e confere à voz todo o seu brilho; assim, os versos,
os cantos, a palavra, têm uma origem comum‖ (ROUSSEAU, 2015, p. 145).

O processo de imitação retira da beleza da natureza e cria sua representação a partir


dela, acrescentando a expressão apaixonada de quem o faz, tocando quem escuta ou vê. Tal
imitação confere ―vida e alma‖ e vem ―sensibilizar as nossas [almas]‖ (ROUSSEAU, 2015,
p. 149) emocionando o interlocutor. Esse processo recebe o nome de melodia e nele
conseguimos expressar imagens com movimento, sentimentos, pois, diferentemente da
imitação em desenho, o som consegue transgredir o limite do visível.

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A racionalização da melodia, ou melhor, o acréscimo convencional àquilo que já é


perfeito, recebe o nome de harmonia e ela se fez presente à musica distinguindo as
linguagens, sendo a ruptura fundamental entre o canto e a fala: teríamos, então, a linguagem
melódica, apaixonada, modificada pela glote e a linguagem harmônica, modificada pela
língua e palato:

Uma língua que possui somente articulações e vogais possui portanto apenas
a metade de sua riqueza: ela exprime ideias, é verdade, porém para exprimir
sentimentos, imagens, precisa ainda ter ritmo e sons, isto é, melodia; eis o
que possuía a língua grega e o que falta à nossa (ROUSSEAU, 2015, p. 146)
Dado este quadro geral do entendimento do percurso de uma língua, que iniciaria
melódica e onomatopaica expressando paixões e necessidades até uma língua escrita
organizada por um alfabeto e harmônica, temos um desenvolvimento da discussão sobre a
linguagem não a partir de uma problemática epistemológica, mas moral, visto que se conclui
com o progresso da escrita e a subordinação da linguagem a ela que:

Todas as línguas escritas devem mudar de caráter e perder força ganhando


clareza; que, mais tentamos aperfeiçoar a gramática e a lógica, mais
aceleramos tal progresso e que, para tornar rapidamente uma língua fria e
monótona, basta estabelecer academias entre o povo que a fala
(ROUSSEAU, 2015, p. 121)
Visando enfatizar o conceito de força, importante à discussão aqui proposta, a
música:

Imita os acentos das línguas e as expressões ligadas em cada idioma, a certos


movimentos da alma. [...] Eis onde nasce a força das imitações musicais; eis
onde nasce o domínio do corpo sobre os corações sensíveis (ROUSSEAU,
2015, p. 155)
A linguagem se insere dentro do campo da discussão moral quando o conceito de
força passa a ser abordado, mais precisamente em seu texto Rousseau juiz de Jean-Jacques ou
Diálogos (1772). Ao início do texto, após Rousseau ter falado acerca de um indivíduo que o
tenha feito maldades, o francês – seu interlocutor do diálogo – menciona que esse indivíduo
falava com tanto fausto. Rousseau corrige o francês dizendo que sua fala não era faustosa, e
sim de força e, portanto, nos apresenta uma distinção entre essas duas linguagens: ―[a
linguagem faustosa] não excita mais que uma admiração fria e estéril, e, certamente, jamais
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me encantaria. Os escritos que elevam a alma e inflamam o coração merecem uma outra
palavra‖ (ROUSSEAU, 1969, p. 667).

Para esclarecer a questão, Rousseau expõe um mito em que supõe a existência de um


mundo ideal, com as mesmas qualidades do nosso, mas que os homens ali teriam uma
sensibilidade maior com a ordem da natureza:

Como aqui [em nosso mundo real], as paixões são, nele, o móvel de toda
ação, mas são ali mais vivas, mais ardentes, ou talvez apenas mais simples e
mais puras; e por isso mesmo assumem um caráter totalmente diferente.
Todos os primeiros movimentos da natureza são bons e corretos. Eles
tendem o mais diretamente possível à nossa conservação e nossa felicidade,
mas tão logo lhes falte força para prosseguir em sua direção original através
de tanta resistência, eles se deixam defletir por mil obstáculos que,
desviando-os do verdadeiro fim, fazem-nos tomar caminhos oblíquos em que
o homem esquece sua destinação original. O erro de julgamento, a força dos
preconceitos, ajudam muito a nos fazer tomar esse desvio, mas esse efeito
provém principalmente da fraqueza da alma que, seguindo frouxamente o
impulso da natureza, é desviada pelo choque com um obstáculo do mesmo
modo que uma bola toma a trajetória de ângulo de reflexão, ao passo que
aquele que segue mais vigorosamente seu rumo não se desvia, mas, como
uma bala de canhão, vence pela força o obstáculo, ou se amortece e tomba
ao ir de encontro a ele (ROUSSEAU, 1959, p. 668-9)
Aqui temos diferentes maneiras com que a paixão se encontra com os objetos do
mundo. De maneira reta, segue fielmente a natureza e a força o fará ultrapassar os obstáculos
atingindo seu fim de conservação e felicidade, ou irá tombar com o obstáculo e não seguirá
em frente. O caminho oblíquo será aquele em que a paixão irá se desviar do guia da natureza
ao se encontrar com os obstáculos e, com isso, se esquecerá de sua finalidade natural. Tanto o
fausto quanto a força pertencem a uma linguagem reta da natureza, seu dizer não escapa
moralmente daquilo que seria o guia bom e correto. Por outro lado, o movimento oblíquo da
linguagem escapa do guia que a natureza fornece ao sujeito e por isso lhe falta virtude.

Quando Rousseau estabelecia as características da primeira linguagem musical e a


comparava com a linguagem gramatical e estruturada, conferia à primeira que ―em lugar de
argumentos teria sentenças; persuadiria sem convencer e pintaria sem raciocinar‖
(ROUSSEAU, 2015, p. 109), em outra passagem o autor afirma que ―ao cultivar a arte de

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convencer, perdeu-se a de emocionar‖ (ROUSSEAU, 2015, p. 131). Daqui temos o


argumento que aquilo que é pintado na representação possuindo uma finalidade é direto e sua
finalidade é convencimento daquele que o escuta; já as sentenças expressas pelo sujeito são
isentas de uma finalidade que o motive a dizer. Há, então, uma representação indireta que
persuade o receptor de maneira a encantá-lo.

De modo geral a música ―não representará diretamente essas coisas, mas excitará
na alma os mesmos sentimentos que experimentamos ao vê-las‖ (ROUSSEAU, 2015, p. 164)
e para isso tem-se a importância da interpretação, como assinala Bento Prado Junior, que
tanto para o músico bem representar como o ouvinte ser tocado pela audição ambos devem ter
tido uma experiência daquilo que a representação imita.

Ao movimento oblíquo se relaciona a linguagem vinculada à harmonia, que


acrescenta artificialidades ao que é natural; o movimento reto, por sua vez, se relaciona com a
melodia. Vemos, portanto, três níveis pelos quais o sujeito emite a linguagem e sua
diferenciação é precisamente moral: o primeiro que possui a vontade de convencer que está
presente na vida social, ambiente que gera e transmite o vício da corrupção da natureza do
homem, principal obstáculo que desvia o indivíduo desde o seu processo educacional até ser
consolidado em cidadão e que, assim, rege a estrutura linguística comum; o segundo seria a
da linguagem faustosa, esta que ainda que não tenha uma vontade de convencimento, segue o
movimento reto da natureza mas o sujeito ainda não é capaz de mover a alma de seu ouvinte,
se caracteriza por ser uma ―mera elevação de grau que pode provocar uma admiração fria e
estéril mas que é incapaz de encantar‖ (PRADO JUNIOR, 2018, p. 131); por fim, a
linguagem que possui força demonstra um indivíduo que detém a capacidade de encantar, isto
é, ―aquele que é capaz de pintar os encantos e a beleza do Bem é necessariamente virtuoso
[...] e a diferença da linguagem é, imediatamente uma diferença moral‖ (PRADO JUNIOR,
2018, p. 131).

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3.2 A incapacidade do uso da consciência em sociedade


Uma vez que a imitação depende de ter tido contato com a natureza para representá-
la, a linguagem com força deve utilizar a consciência como guia, pois, por meio dela, pode se
articular conforme o amor de si e a piedade. Entretanto, não são todos que conseguem nortear
suas ações segundo a consciência e, ao passo que ela é a cada momento deixada de lado,
conforme constata o Vigário de Sabóia, ―ela finalmente se desencoraja, à força de ser
repelida‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 339): tal é a circunstância que o homem se formula e se
corrompe à linguagem oblíqua. Assim, ―não basta que esse guia exista, é preciso saber
reconhecê-lo e segui-lo‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 339) e esta é a maior dificuldade para a força
da linguagem.

Rousseau, em uma de suas passagens das Confissões, afirma ter lido alguns de seus
livros em público, expondo-se de maneira transparente aos seus semelhantes e que, ao
finalizar sua leitura, percebeu ter gerado engodo na plateia. Bento Prado Junior comenta esse
caso, reforçando a dificuldade do uso da consciência em um ambiente tomado pelo amor-
próprio:

Além da teoria, no espaço da experiência vivida da fala, alguma coisa torna


impotentes as palavras e as condena ao equívoco. Longe de ser o
maravilhoso espelho da Razão, o lugar da verdade, a linguagem seria sempre
o lugar do mal-entendido e do engodo, um biombo interposto entre os
homens (PRADO JUNIOR, 2018, p. 111)
Para que essa experiência fuja de tal dificuldade é preciso uma condição
aparentemente utópica da linguagem, do falante e do ouvinte se relacionarem de maneira
transparente, ambos em condição de virtude norteados pela natureza.

É para a resolução desta dificuldade que encontramos no Segundo Prefácio do


romance Júlia ou a Nova Heloísa (1761) a ideia de linguagem do solitário. Rousseau,
contestado por seu interlocutor do diálogo acerca da expressão dos sentimentos dos
personagens, que desfrutam da solidão, diz que é daí que provém o poder da imaginação e a
capacidade de expressar a linguagem com força: ―e como exprime todos os seus sentimentos
em imagens, sua linguagem é sempre figurada‖ (ROUSSEAU, 1994, p. 29) e, rebatendo seu

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editor, diz que ―se a força do sentimento não nos choca, sua verdade nos toca, e é assim que
o coração sabe falar ao coração‖ (ROUSSEAU, 1994, p. 28). Dada a situação de dois
personagens solitários, vemos Rousseau expor a possibilidade da transparência da linguagem,
e, assim se segue o que diz ser a linguagem do solitário.

Considerações Finais
A atitude tomada por Jean-Jacques Rousseau de isolar-se da sociedade serve como
resposta no âmbito físico, em questão de referenciar um espaço que distingue sociedade e
aquele em que não se estrutura das mesmas diretrizes que esta, ou melhor dizendo, que o
ambiente doméstico e campestre habitado pelo autor tem como função limitar dentro do que é
possível individualmente a localidade segura não fundamentada na desigualdade. Assim
como a natureza habitada pelo homem em estado de natureza, condição de possibilidade para
a liberdade e, por consequência, da igualdade, sua casa serve a esse propósito. Na
simplicidade viva ele, sua esposa Thérèse, seu cão e sua criada e estabelecia-se a relação de
igualdade, conforme o genebrino nos relata em suas Quatro Cartas:

Ceava com muito apetite junto a minha pequena criadagem, nenhuma


imagem de servidão e de dependência perturbava a benevolência que a todos
nos unia. Meu próprio cachorro era meu amigo, não meu escravo; tínhamos
sempre as mesmas vontades, mas jamais ele me obedeceu (ROUSSEAU,
2005, p. 30)
Assim como a sociedade é uma invenção do homem, o espaço do solitário também o
é. Sua criação visa fornecer todas as condições que possibilitem a vida virtuosa sem o medo
de ser penalizado por isso e, dessa maneira, a condição de existência solitária não serve como
um projeto político com a finalidade de resolver os problemas da vida social, mas que se
basta na resolução das angústias individuais do autor e, para nós, leitores, como discussão de
como construímos espaços em que sejam possíveis relações saudáveis.

Por sua vez, o sentimento de solidão não é permanente e pode ser abalado a qualquer
contato com os homens que escapam às regras da transparência. A exemplo disto temos o
caso do hóspede presente na casa de Rousseau enquanto o autor escrevia sua terceira carta no
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dia 26 de janeiro de 1762, dizendo que ―um corpo que sofre tira ao espírito sua liberdade, de
agora em diante, não estou mais sozinho, tenho um hóspede que me importuna, preciso
livrar-me dele para pertencer a mim mesmo‖ (ROUSSEAU, 2005, p. 31). Este hóspede é o
suficiente para que toda ordenação do espaço entrasse em colapso, tirando o equilíbrio de
quem antes estava ali, pois uma vez que um corpo entra em contato novamente com a doença,
todas as relações são tornadas oblíquas.

A partir desses apontamentos encontramos na filosofia de Rousseau modos pelos


quais o sujeito tem uma mudança ontológica. A unidade entre ser e parecer presente na
condição de existência do homem natural é perdida a partir do surgimento do Estado e da
sociedade à medida em que o parecer prevalece sobre nossa essência. Do ponto de vista
moral, junto da aparência trocamos o amor de si pelo amor-próprio e todos os vícios se
camuflam de virtude na vida social e regulam nossas relações com os outros. Frente a isso, a
construção de outro espaço artificial contraposto à sociedade serve de possibilidade da
reconciliação ontológica e, consequentemente, a ética e a linguagem são viabilizadas entre os
sujeitos pertencentes a esse espaço.

Como nos assegura o Vigário de Sabóia: ―Ó, sejamos primeiramente bons, e depois
seremos felizes‖ (ROUSSEAU, 2017, p. 329). A felicidade para Jean-Jacques Rousseau se
refere diretamente à possibilidade realizar a ação segundo as noções de bondade, ou seja, sua
noção de felicidade está vincula-se com o campo da moral defendida em sua filosofia. O autor
lançou-se na busca pela felicidade em sua trajetória pessoal e diz a ter encontrado na
experiência da condição de solidão.

Demonstramos, portanto, como a noção de solidão que se caracteriza por ser a


condição em que é possível ao homem ser bom e feliz que nos é apresentada em suas obras
autobiográficas é consistentemente articulada em conjunto com conceitos filosóficos que
abrangem diversos temas e, em especial, o campo da moral e sua articulação com a
linguagem.

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Editora Unesp, 1999.
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GAY, P. Introdução. Trad. Jézio Gutierre. In: CASSIRER, Ernst. A Questão Jean-Jacques
Rousseau. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

MARTINS, C. A. A. Rousseau e o seu discurso: variações entre o eu e as justificações.


Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 26, n. 51, p. 71-80, 2012.
RADICA, Gabrielle. L’histoire de la Raison: Antrophologie, morale et politique chez
Rousseau. Paris: Honoré Champion, 2008
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______. Confissões. Bauru: Edipro, 2008.
______. Ensaio sobre a origem das línguas. Campinas: Editora Unicamp, 2015.
______. Quatro cartas ao Senhor Presidente de Malesherbes. In: José Oscar de Almeida
Marques (Org). Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral.
São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
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______. Oeuvres Complètes. Bernard Gagnebin e Marcel Raymond (orgs). Paris: Pléiade-
Gallimard, 1959, v. 1.
PRADO JUNIOR, B. A retórica de Rousseau e outros ensaios. São Paulo: Editora Unesp,
2018.
STAROBINSKI, J. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. Trad. Maria
Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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TEORIA DE TROPOS E O PROBLEMA DO REGRESSO

Odilon Rodrigues

Resumo

A Teoria de Tropos fornece uma visão alternativa acerca da natureza das propriedades;
essas não seriam universais, mas particulares. Soluções para o problema dos universais
precisam responder ao problema do regresso ao infinito. Por postular metarrelações —
semelhança e copresença — a teoria de tropos também precisa lidar com essa crítica. Neste
artigo, discuto como o problema do regresso afeta essa teoria. Em geral, há na literatura várias
maneiras de analisar esse problema e algumas dessas são discutidas neste trabalho.

Palavras-chave: Regresso. Tropos. Universais.

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1.Introdução.

A ontologia procura descrever a realidade e suas estruturas, investiga o ser enquanto


ser. Nessa investigação, há várias ontologias; a clássica, por exemplo, defende duas
categorias, a saber, substância e propriedade. Neste artigo, pretendo apresentar a ontologia de
categoria única, no caso, tropos, e como essa trata o problema do regresso. Esse problema
persiste em diferentes teorias ontológicas. Realismo é definido como a admissão de entidades
universais; Nominalismo como a rejeição dessas entidades. Ambas as teorias podem ser
divididas em diversos subtipos.

O Realismo pode ser classificado em Realismo Imanente e Transcendente. Enquanto


Aristóteles defendia o primeiro: universais existiriam apenas nas coisas, Platão defendia o
segunda: universais teriam completa independência ontológica do mundo sensível.
Historicamente, Aristóteles fez várias críticas ao Realismo Platônico. Uma dessas constitui
um argumento de regresso ao infinito: o argumento do terceiro homem. Armstrong (1974,
p.197) apresenta esse problema e como ele está conectado com a questão mais geral sobre
regresso ao infinito. Como problema geral, soluções nominalistas e realistas sofrem desse
problema.

Armstrong apresenta o argumento do Terceiro Homem, criado para combater a Teoria


das Formas. Esse argumento diz que cada F é F pois participa da Forma de F, sendo essa
diferente dos particulares. Porém se a Forma de F também é um F, aplicando o mesmo
princípio é criada a necessidade de uma segunda Forma F, diferente dos particulares e da
Forma F inicial, e assim por diante. Armstrong (1974, p.198) tem o regresso do Terceiro
Homem como frágil, pois esse necessita da suposição da auto-predicação, no caso, que a
Forma de F é um F. Além disso, é restrita a um tipo de Realismo.

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Existe o argumento do Terceiro Homem Restrito que é mais consistente que o Terceiro
Homem comum. Podemos descrever o restrito do seguinte modo: as Formas possuem algo em
comum, todas são Formas. Disso retiramos a Formalidade que está em todas as Formas.
Porém, a Formalidade também é uma Forma, que precisa ter uma nova forma comum com a
forma anterior, e assim ao infinito. Nesse argumento vemos a auto-predicação se consolida
em todas as análises relacionais segundo Armstrong (1974, p.199).

O problema do regresso também aparece quando tentamos explicar a existência dos


universais aceitos pelos realistas. O problema dos universais surge quando tentamos
responder o que há de similar entre dois particulares. O realista dirá que é um universal. O
teórico de tropos, por sua vez, argumenta que esse universal é uma classe de tropos similares.

Do regresso que aparece da semelhança dos tropos há diversas formas de tratá-lo.


Como uma relação de fundação segundo Simons (1994, p.559). Através da assimetria
proveniente da natureza do tropo em relações que envolvam posição como mostra Campbell
(1991, pp.64-65). Outra forma é analisando a virtuosidade do regresso como Maurin (2007,
pp.19-21). Desta forma, observamos que teoria dos tropos sobressai diante das outras
ontologias a respeito do problema do regresso, devido sua natureza proporcionar maior
consistência nos argumentos.

Inicialmente tratarei do problema do regresso, quais os seus tipos e como eles


aparecem nas diferentes teorias nominalistas. Em um segundo momento apresentarei o
Problema dos Universais e a Teoria de Tropos, e como essa apresenta argumentos
consistentes solucionando aquele. Em um terceiro momento, explano como a Teoria de
Tropos procede com o problema do regresso, ressaltando argumentos de diversos filósofos
com diferentes abordagens.

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2.O Problema do Regresso.

Podemos definir universal como sendo aquilo em comum entre muitos, e esses muitos
seriam os particulares. Armstrong (1974, p.191) explana as classificações das análises
relacionais como possíveis soluções, sendo que essas investigam a circunstância em que a tem
a característica F, uma vez que a tem alguma relação, R, com alguma entidade Φ e podem ser
divididas em nominalista e realista. Sendo que, na visão nominalista o que existe são
particulares e na realista a existência de universais é aceita. Encontramos as seguintes
subdivisões nominalistas: de predicado, de conceito, de classe e de semelhança. Em seguida,
apresenta argumentos de regresso ao infinito contra essas soluções.

Além desses argumentos, Armstrong (1974, p.196) apresenta o argumento de Russell


contra a análise de semelhança. Para este, a análise de semelhança cai devido sua necessidade
de pares de particulares, como pré-requisito para estabelecer a semelhança. Sendo que, essa
semelhança de particulares, nada mais é do que um Universal. E mesmo que o defensor da
análise de semelhança argumente que a semelhança de um par para outro difere, eles são
obrigados a aceitar que essas semelhanças se assemelham, e essa nova semelhança mais uma
vez prova a existência do Universal. Caso contrário, o defensor da semelhança cairá em um
regresso.

As teorias na elucidação do problema dos universais são as seguintes:

1. Realismo: a é F em virtude de a participar do universal ou forma F.

2. Nominalismo de predicado: a cai sob o predicado F.

3. Nominalismo de conceito: a cai sob o conceito F.

4. Nominalismo de classe: a é um membro da classe dos F‘s,

5. Nominalismo de semelhança: a se assemelha a cada membro de um


determinado conjunto de informações de paradigma de maneira apropriada,

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Armstrong (1974, p. 197) nos mostra que devido a natureza própria do universal na
análise realista para solução ao problema dos universais não se aplica o argumento de
regresso de objetos. No entanto, como a participa da Forma F, e tratando participação como
situação, toda participação participa da Forma participação, novas situações de participação
aparecerão, efetivando assim o regresso de relação.

Segundo Armstrong (1974, p. 193) no Nominalismo de predicado, devido a


necessidade de que F cai em um tipo de predicado ‗F‘, tem-se o problema de explicar o
porquê um token de predicado é de um tipo ‗F‘. Sendo token e tipo uma forma de distinção,
que em um entendimento realista, o token seria o particular e tipo o universal, segundo
Armstrong (2018, pp. 1-2). Desta forma o token é uma instância de um determinado tipo.

Como tipo não é um particular, é preciso que o token caia sob outro predicado ‗(‗F‘)‘,
porém esse predicado também é um tipo, mais uma vez é aplicado outro predicado, desta vez
‗(‗(‗F‘)‘)‘ e assim por diante. Para Armstrong (1974, p.193) seria melhor ter mantido o tipo
primitivo F do que recorrer a outros tipos. Sendo essa a regressão de objetos. Para
Armstrong, a análise relacional de predicado também sofre com regresso de relação, pois ao
analisarmos a caindo sob o predicado ‗F‘, encontramos um tipo de relação, que pode ser
expressa com o par ordenado <a , ‗F‘>. Porém, como já mencionado, tipo não é um particular,
desta forma é necessário que <a , ‗F‘> cai sob ‗caindo sob‘ e essa queda não terá fim.

De acordo com Armstrong (1974, p.194) o regresso de objetos e de relação é


encontrado de forma semelhante na análise de conceito. Já no Nominalismo de classe, para
que o argumento do regresso de objetos seja aplicado, classe de F deve ser tratado como tipo
de coisa. Desta forma, devemos achar a classe da classe dos F, sendo esta classe, na qual o
membro é a classe dos Fs. No entanto, Armstrong nos informa que para existir um tipo deve
haver mais de um símbolo deste tipo, o que não acontece no caso da classe. Sendo assim,
classe é um particular ‗abstrato‘ e o regresso de objetos não se aplica.

No entanto, para Armstrong (1974, p.195) o argumento de regressão de relação é visto


no Nominalismo de classe. Tendo a um membro da classe F , encontramos um tipo de

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relação, que é expressa pelo par ordenado < a, classe de F >, sendo este membro da classe de
todos os pares ordenados, na qual, o primeiro elemento dos pares ordenados, é um objeto que
possui propriedade e o segundo uma classe de objetos que possui essa tal propriedade.
Armstrong questiona se essa relação é diferente a de primeira ordem, no caso, a um membro
da classe F, ou é igual. Se for igual, a análise permanece a mesma, exigindo sempre a
concepção de associação de classe. Porém, se a relação for diferente, temos um regresso ao
infinito que procura um tipo relação não analisada.

No Nominalismo de Semelhança, o regresso de objetos pode ser evitado. Segundo


Armstrong (1974, p.195), o regresso é evitado encontrando a propriedade F de um objeto
paradigmático, no caso sua F-dade. Essa é detectada na semelhança adequada desse objeto
com todo membro de outra classe de objetos paradigmáticos. No entanto, temos uma
desvantagem, a F-dade de paradigma F parece diferir da F-dade de um não-paradigma F. Mas
apesar dessa desvantagem o regresso de objetos é bloqueado.

Armstrong (1974, p.196) mostra que temos um regresso de relação, pois a semelhança
proveniente de um objeto e o paradigma é uma relação, sendo que essa relação se assemelha
com um paradigma de semelhança, estabelecendo uma nova relação essa última relação
também se assemelha com outro paradigma de semelhança, gerando uma nova relação e
assim sucessivamente.

3.O Problema dos Universais e a Teoria de Tropos.

Universal pode ser entendido como algo que está presente em diversos objetos, esses
são conhecidos como instâncias do universal, sendo que o número de instâncias não
influencia o universal, isso com base Campbell (1991, p.12). Para Campbell (1991, pp. 28-29)
a expressão ‗o problema dos universais‘ poderia ser substituída por: ‗existe universais, esse
algo em comum entre muitos?‘ Para os teóricos de Tropos, a resposta é não, pois haveria

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apenas particulares. Maurin (2002, p.60) mostra que o problema dos universais pode ser
expresso pela linguagem através dos tipos de palavras. Termos singulares, designando os
particulares, os muitos, e predicado, como o comum entre muitos, o um. Podemos explanar o
problema dos universais em duas perguntas: (1) O que há nessa coisa em virtude de ser
vermelha? E (2) O que há nessas duas coisas em virtude do que ambas são vermelhas? É
habitual pensar que essas perguntas possuem respostas paralelas segundo Campbell (1991,
p.29). Respondendo a primeira questão, Campbell (1991, p.30) afirma ser a natureza do tropo.
Para questão 2, o autor apresenta a teoria de semelhança entre tropos como elucidação. Para
um filósofo de tropos o que há são dois tropos vermelhos, sendo que são do tipo vermelho
devido a semelhança entre eles, na qual essa é proveniente da natureza do tropo.

Segundo Maurin (2002, p.59) o problema não é dos universais, mas da


universalização, este questiona a necessidade de universalização de tropos para a verdade em
proposições atômicas tais como ‗a e b são o mesmo F‘. O problema da universalização, para
Maurin (2002, p.63) pode ser respondido com uma solução a questão (2). Para chegar a essa
solução ela utiliza a semelhança, e consequentemente ao solucionar o problema da
universalização ela também dar uma resolução a questão da universalidade. Desta forma,
Maurin e Campbell concordam que o caminho da explicação da universalidade está na
semelhança de tropos.

Como objeções a teoria de semelhança, Campbell (1991, pp.32-40) apresenta os


seguintes argumentos. O que aconteceria se houvesse apenas um objeto no mundo, desta
forma não podendo aplicar a semelhança? A resposta a essa objeção é a mesma da questão
(1), no caso, a natureza do tropo. A segunda objeção é proveniente da proposta de Carnap.
Esse estipula círculos de particulares concretos, a proximidade desses no círculo estabelece a
semelhança. Segundo Campbell(1991, p.33) Goodman em seu livro The Structure of
Appearance afirma que a impossibilidade dessa é os obstáculos da coextensão e comunidade
imperfeita. Na coextensão duas propriedades que seriam diferentes são as mesmas. Já a
comunidade imperfeita acontece, pois um elemento pode possuir muitas propriedades,
impedindo a similaridade nos membros do círculo. Para Campbell (1991, pp.33-34)
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substituição dos particulares concretos por tropos evitaria os obstáculos mencionados


anteriormente. No caso da coextensão teríamos grupos de tropos distintos, e essa distinção
que os tropos proporcionam, também evita o problema da comunidade imperfeita.

Campbell (1991, pp.38-39) tem semelhança como uma relação derivada, ela é
fundamentada na existência de uma identidade parcial entre dois particulares ou universais.
Descrevendo-a temos a e b são semelhantes pois possuem uma parte em comum.
Aparentemente encontramos uma economia na análise, porém essa redução vai contra o que a
teoria da semelhança postula, que é a não-identidade de partes de particulares semelhantes.

Maurin (2002, pp.92-93) trata a semelhança entre tropos como sendo exata, essa é
proveniente da natureza dos tropos. Sendo assim, o simples fato dos tropos existirem já
proporciona semelhança. A identidade dos tropos que se assemelham não depende da
semelhança. Desta forma, não há uma dependência existencial dos tropos com a semelhança
segundo Maurin (2002, pp.92-93).

4.Como a Teoria de Tropos trata o Problema do Regresso.

O problema do regresso, explana que relação de semelhança de tropos nos leva a um


regresso infinito vicioso, pois a semelhança entre os tropos constituintes daquela relação
também é um tropo. Campbell (1991, p.35) nos dá o exemplo de três itens que ele denomina
de a, b e c, e estabelece que a semelhança entre eles gera novos tropos, no caso d, e e f,
porém, mais uma vez a semelhança desses novos tropos geram outros tropos g, h e j e assim
por diante, resultando em uma regressão infinita viciosa. Segundo Campbell (1991, pp.35-37)
o filósofo de tropos responde que a regressão não é viciosa, pois os elementos subsequentes
não são desnecessários, sendo assim não temos viciosidade.

O realista também sofre com a regressão, devido a necessidade de instanciação dos


universais, dessas instâncias segue a mesma lógica com os tropos. E a superveniência
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existente na teoria da semelhança não gera uma ampliação ôntica. Desta forma, os itens d, e e
f são supervenientes a a, b e c, e os tropos de semelhança gerados a partir daqueles, são
supervenientes a eles e assim por diante. Maurin (2002, p. 110) trata a superveniência como
sendo uma pseudo-adição. Isso porque a definição de superveniência é bem complexa e
muitos filósofos, incluindo Campbell, concordam que tendo superveniência não existe uma
adição ôntica.

Com a pseudo-adição apresentada por Maurin (2002, p.110) o problema do regresso


pode ser observado de duas formas: (1) Não há regressão, pois sendo uma pseudo-adição não
tem porque regredir. (2) Se o regresso existir será virtuoso, pois a dependência existencial é
nos seres anteriores no regresso e não nos posteriores.

Maurin (2002, p.105-108) apresenta como forma de análise realista, o empate. Dessa é
proveniente uma nova entidade, chamada laço, esse seria o responsável por juntar a instância
ao universal. Porém esse laço é não-relacional e nem qualitativa, evitando assim um regresso.
O teórico de tropo não pode aceitar essa alternativa, pois consequentemente aceitaria a
existência do universal.

Em resposta a crítica de Hochberg, Campbell (1991, p. 62) mostra uma forma


em que o teórico de tropo aborda o problema do regresso. A crítica utiliza uma relação
assimétrica, na qual procura-se estabelecer a ordem de antecedência entre irmãos gêmeos.
Podemos denominar estes como b1 e b2 elementos da relação A. A relação e seus elementos,
sendo que b1 é relacional, formam o complexo (A, b1, b2). Na visão realista a assimetria é
evidente e evita a necessidade de uma ocorrência relacional para estabelecer b1 no início da
relação A. A é considerado um universal, não tendo como o complexo em que ele participa ser
o elemento inicial da relação com b1. Para Hochberg o teórico de tropos enfrenta uma
regressão viciosa na mesma relação.

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Campbell (1991, pp.64-65) nos mostra que essa assimetria também aparece na teoria
de tropos. Utilizando uma relação de posição podemos estabelecer o seguinte exemplo: Crato
ao sul de Juazeiro do Norte. Definindo Crato como c1, ao sul de como S e Juazeiro do Norte
como c2 constituímos o complexo (c1, S, c2), sendo necessário uma ocorrência relacional p1
para estabelecer o elemento c1 o primeiro no complexo. Chegamos então a seguinte relação
(c1, p1(c1, S, c2)) de acordo com Campbell (1991, p.65) para provar a assimetria com (p1,
c1(c1, S, c2)) e consequentemente evitar um regresso, devemos utilizar parte da teoria de
níveis de Russell. Essa estabelece níveis para elementos em relações. Com isso, a ocorrência
relacional p1 é um nível acima de c1, podendo possuir c1 que é logicamente de nível inferior.
Como uma ocorrência de nível inferior não pode possuir uma de nível superior a assimetria
aparece evitando o regresso.

Simons (1994, p.558) nos apresenta a relação de copresença como forma de unir
particulares em um feixe. Essa relação seria análoga a de semelhança exata. Porém a relação
primitiva interna que estabelece a semelhança exata e evita um regresso, não encontramos na
relação de copresença. Nessa é possível a existência de tropos nesse feixe, que ao se
substituírem por outros tropos, demonstra que a relação de copresença não é proveniente da
natureza dos tropos, possibilitando assim regresso ao infinito vicioso.

Uma solução para esse regresso gerado pela característica da relação de copresença é
apresentada por Simons (1994, p.559) que é a relação fundação de Husserl. Nessa fraqueza da
fundação de um tropo C com relação a outro, torna a existência do tropo C dependente da
existência desse outro tropo de que ele é fundado. Outra interpretação explanada é que C
funda-se de maneira forte em outro tropo, se a fraca fundação de C com esse outro tropo e
esse não integra C. Husserl explica a relação de fundação devido a espécie do tropo, esse
necessita de um tropo de extensão.

Esse regresso proveniente da relação de copresença é conhecido como regresso


Bradley. Com base em Maurin (2010, pp.321-323) a solução desse regresso está em admitir

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que os tropos que constituem um objeto, isso inclui o tropo de copresença, podem existir sem
a necessidade que o objeto exista. Porém a existência do objeto depende da existência desses
tropos. Estabelecendo uma assimetria na relação dos tropos constituintes e o objeto
constituído.

Com base em Maurin (2007, pp.19-21) devemos nos preocupar com a virtuosidade ou
viciosidade do regresso, essa distinção é possível através do sentido da dependência
existencial do regresso. Se a partir da etapa inicial do regresso as etapas seguintes dependem
desta para existir, o regresso é virtuoso, mas se a dependência é das etapas posteriores o
regresso é vicioso. Segundo Maurin (2007, pp.22-23) ao usarmos essa forma de analisar, no
regresso da semelhança, observamos que com tropos o regresso é virtuoso pois a etapa inicial,
no caso os tropos d e f que se assemelham, são necessários para a existência do respectivo
tropo de semelhança g.

Considerações Finais.

A respeito do problema dos universais, vimos que os filósofos da teoria de tropos,


argumentam por diferentes perspectivas, mas concordam que o universal na verdade é a
semelhança entre tropos, sendo essa semelhança primitiva.

Observamos que nas diversas formas que os teóricos de tropos explanam uma análise
sobre o regresso, o que se destaca entre elas é a natureza peculiar dos tropos. Essa por ter uma
característica primitiva, faz com que os argumentos utilizados sejam consistentes e de difícil
refutação.

Além do que, ao constatarmos que o regresso não acontece nas análises, não há uma
adição ôntica. Ou caso exista o regresso, isso não é um problema, mas sim sua viciosidade,
nesse caso, podemos estabelecê-la com base no sentido em que a regressão segue ou da sua
dependência do objeto inicial do regresso.

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Referências bibliográficas

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Sydney: Australian Journal of Philosophy, v.52, n.3, 1974.
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Press. Focus Series, 2018.
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MAURIN, A-S. If Tropes. Dordrecht: Springer Science+Business Media. 2002.
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Petersson, J. Josefsson e D. Egonsson, 2007. Disponível em:
<https://www.fil.lu.se/hommageawlodek/site/papper/MaurinAnnaSofia.pdf>. Acesso em: 26
ago. 2020.
______.Trope theory and the Bradley regress. Lund: Synthese, v.175, n.3, pp.311-
326, aug.2010
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UM FORMAR QUE DEFORMA: CAMINHOS E POSSIBILIDADES


PARA UMA EDUCAÇÃO QUE PROPORCIONA A AUTONOMIA.
Gilmara Damasceno

Resumo
O presente texto tem por objetivo realizar uma análise sobre a educação e os elementos que a
estruturam. Theodor Adorno será o teórico central dessa pesquisa, pois através de seus
conceitos e visões será trilhado um caminho para se chegar a uma educação para a
emancipação e autonomia. Nesse sentido, entender os conceitos de Razão Instrumental e
Indústria Cultural é de suma importância para perceber os impactos causados na educação
contemporânea.

Palavras-chave: Educação. Emancipação. Padronização. Razão instrumental.

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1. Introdução:
Buscar compreender a importância de uma educação que conduz a autonomia para
a sociedade contemporânea é um fator que precisa urgentemente ser discutido. É nesse
sentido que o trabalho em questão vai abordar a educação e os mecanismos que a comandam.
Ao longo do texto será percebido que, em uma sociedade onde o progresso econômico é
colocado acima dos sujeitos, a educação que vigora é uma educação de manipulação e
aprisionamento dos corpos. O que há é um caminho vasto para a barbárie.

Educação crítica, reflexiva e que leve os sujeitos para uma emancipação é o


caminho que precisa ser trilhado. No entanto, será percebido que, com o avanço e expansão
do capitalismo, grandes foram os impasses trazidos para a educação. Na concepção de
Theodor Adorno (1903 – 1969), a educação alemã serviu para conduzir os indivíduos a uma
barbárie, a mesma se instalou por toda a sociedade e passou a agir de determinada maneira
que o sujeito era dominado em todas as esferas do núcleo social, inclusive em seu lazer. Tal
afirmação está presente em uma de suas obras chamada Indústria Cultural e Sociedade.

A domesticação dos corpos, a criação de sujeitos dóceis e passivos, foi o que a


educação gerou, uma vez que a mesma se encontra guiada por uma razão que é controladora.
Essa razão instrumental tirava todas as forças dos sujeitos, impossibilitando-os de realizarem
qualquer ação autônoma e consciente. Dessa maneira, a passividade e o conformismo
predominavam de maneira alarmante. Mas afinal, a educação hoje em dia é diferente da
analisada por Theodor Adorno? Ver-se-á ao longo da discussão que a educação
contemporânea precisa ser modificada e renovada para que de fato haja uma real formação de
cidadãos presentes na sociedade.

O trabalho pretende realizar um panorama que sai desde a fundação da Escola de


Frankfurt, passando pela concepção de Theodor Adorno sobre a Razão Instrumental, dialética
do esclarecimento e a Indústria Cultural. Partindo disso, um dos tópicos presentes no artigo
vai tratar justamente de uma educação que apenas guia o sujeito para ser padronizado e para o
conformismo, oferecendo, ao invés de uma formação, uma semiformação. Nesse sentido, o

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caminho que precisa ser traçado é analisar o que conduz a essa educação de semiformação
para assim pensar em uma educação para a emancipação.

Assim, o pensador brasileiro Paulo Freire será abordado na medida em que vai
pensar também na educação como um fator capaz de oferecer a emancipação e gerar
transformações na sociedade. A educação conduzirá o sujeito para a ação, este precisa ser
engajado politicamente e socialmente de maneira consciente, pois dessa forma poderá se
construir e transformar a sua realidade.

2. A teoria crítica: Uma forma de superação do esclarecimento que proporcionou o


obscurantismo da razão humana.
Criada com o intuito de compor uma teoria crítica da sociedade em geral, a
Escola de Frankfurt surgiu na Alemanha em 1924 – filiada ao instituto de pesquisas sociais de
Frankfurt (1923) – visando o declínio de uma razão instrumental que privava o sujeito de sua
autonomia e do exercício da real racionalidade. A Escola de Frankfurt foi composta por um
grupo de intelectuais que obtinham em comum a preocupação de estudar os vários aspectos da
vida social, de forma a compor uma teoria crítica da sociedade como um todo. Para isso
analisaram os campos da história, economia, psicologia e Antropologia.

Os principais representantes da Escola de Frankfurt foram Theodor Adorno


(1903), Max Horkheimer (1895), Herbert Marcuse (1898), Walter Benjamin (1892), Erich
Fromm (1900) e Jürgen Habermas (1929). Esta Escola está inserida no contexto do
Nazifascismo e a mesma teve como ponto de partida reflexões sobre a teoria marxista e a
teoria freudiana. Dessa maneira, ―A proposta básica da Escola de Frankfurt era fazer uma
análise crítica da sociedade burguesa, que desse conta das questões suscitadas pelo advento
do fascismo, no campo capitalista, e do stalinismo, no campo socialista.‖ (SGRILLI, 2008,
p.310)

A teoria crítica vai buscar compreender o papel que a racionalidade passa a ocupar
na sociedade, enfatizando que, com o advento do Iluminismo, o que passa a vigorar é uma

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razão instrumental e controladora que possui como objetivo padronizar os sujeitos. Sendo
assim, para alguns teóricos pertencentes à Escola de Frankfurt, o Iluminismo trouxe consigo
um esclarecimento que é totalitário e dominador. Com isso, tornar os sujeitos prisioneiros de
uma razão técnica e instrumental foi um dos males que essa razão provocou à humanidade.

Um dos questionamentos que surgem ao estudar sobre a teoria crítica é: até que
ponto a tecnologia pode ser benéfica para a humanidade? Pois com a tecnologia surgem
possibilidades e caminhos para combater diversos impasses que circundam o núcleo social,
como, por exemplo, a fome, mas o contrário disso acontece. O que deveria ―salvar‖, gerar
sujeitos autônomos e livres fez completamente o oposto. Existe nesse contexto uma sociedade
que é feita de marionete pela força dominante. A razão que visava ao progresso social e à
emancipação dos indivíduos levou a uma maior dominação em virtude do desenvolvimento
das indústrias.

O que a Escola de Frankfurt pretendia era analisar a sociedade presente, na qual o


avanço tecnológico era instalado visando à manutenção e à reprodução da lógica capitalista.
Dessa maneira, segundo à guisa de introdução de Educação e emancipação escrita por
Wolfgang Leo Mar, ―A função da teoria crítica seria justamente analisar a formação social
em que isto se dá, revelando as raízes deste movimento — que não são acidentais — e
descobrindo as condições para interferir em seu rumo‖. (ADORNO, 1995, p. 11). Havia a
necessidade de transformação dessa sociedade reprodutivista.

Nesse sentido, Adorno descreve sobre a questão do esclarecimento em uma de suas


importantes obras escritas com Max Horkheimer, chamada Dialética do Esclarecimento,
publicada pela primeira vez no ano de 1947. Segundo os autores, o intuito de escrever a obra
era justamente analisar o caminho que a racionalidade moderna ofereceu para a humanidade.
Em suas palavras, ―O que nos propuséramos era, de facto, nada menos do que descobrir por
que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se
afundando em uma nova espécie de barbárie.‖ (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 05).
Dessa forma, vão realizar investigações para entender o papel que a razão iluminista

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desenvolveu e desenvolve na sociedade, vão questionar por que a razão que deveria tornar
todos iguais trilhou outro caminho.

Conhecer é ter consciência de algo para um determinado fim, mas quem diria que
o propósito do conhecimento da razão moderna fosse enclausurar e domesticar os sujeitos. Há
uma contradição no que se refere ao conhecimento no mundo hoje, pois para onde o
desenvolvimento da humanidade a levou? O objetivo primeiro era fazer uso da razão para
tornar-se um sujeito ―iluminado‖, consciente e conhecedor dos fenômenos naturais e sociais.
No entanto, é possível perceber que o pretendido teve um efeito completamente oposto. A
tecnologia deveria ser empregada como um fator essencial para a melhoria da humanidade,
mas o percebido é totalmente contrário. Ainda na introdução de Educação e emancipação
escrita por Wolfgang Leo Mar:

O que dizer, por exemplo, de um mundo em que a fome é avassaladora,


quando a partir de um ponto de vista científico-técnico já poderia ter sido
eliminada? Ou, o inverso: como pode um mundo tão desenvolvido
cientificamente apresentar tanta miséria? Este é o problema central, insiste o
nosso autor: o confronto com as formas sociais que se sobrepõem às
soluções racionais. (ADORNO, 1995, p. 11).

A razão advinda do Iluminismo na concepção de Adorno não tornou a


humanidade melhor e mais igual. Diferente disso, a mesma caminhou para a barbárie, foi
implantado uma racionalidade que se tornou responsável pela ignorância em massa, onde
todos eram guiados para atender a um determinado fim, pois com ela toda subjetividade foi
ignorada. O sujeito não é percebido na sua individualidade, este só pode ser se for para
―somar‖ e contribuir para a manutenção da ordem vigente. Toda reflexão crítica é anulada.

O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para


dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a
menor consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu
cautério o último resto de sua própria autoconsciência. Só o pensamento que
se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos.
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 05).

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Ao obter controle sobre a natureza, ao invés de produzirem um mundo mais justo


com possibilidades de mais igualdade, acabaram por acentuar a desigualdade social. O efeito
foi reverso, o progresso que seria imprescindível para o desenvolvimento da condição humana
não aconteceu. A razão é controladora, instrumental e busca sempre dominar tanto a natureza
quanto os seres humanos. A racionalidade técnico-instrumental encaminhou a sociedade para
um estado de profunda alienação. Percebe-se nesse sentido uma razão que é absolutamente
controladora, ―E, assim, o esclarecimento, que deveria ser visto como um processo de
emancipação, em sua forma positivista, acaba por fazer do homem um ser dominado.‖
(SGRILLI, 2008, p.313).

Contrário às concepções de Theodor Adorno, para Kant a razão iluminista


obtinha o poder de emancipar os sujeitos e de tirá-los da situação de menoridade, na qual
encontra-se um sujeito que era incapaz de pensar por si mesmo, de tomar suas próprias
decisões e de tornar-se um sujeito de si. Dessa maneira, a racionalidade moderna possibilitava
a saída desse estado de menoridade para o estado de maioridade, onde o indivíduo era
autônomo para pensar e para decidir os rumos de sua vida, isso porque, o mesmo escolheu
ousar a conhecer.

Esclarecimento é a saída do homem da menoridade pela qual é o próprio


culpado. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio entendimento
sem direção alheia. O homem é o próprio culpado por esta incapacidade,
quando sua causa reside na falta, não de entendimento, mas de resolução e
coragem de fazer uso dele sem a direção de outra pessoa. Ousa fazer uso de
teu próprio entendimento! Eis o lema do Esclarecimento. (KANT, 2009, p.
01).

No entanto, observa-se na contemporaneidade que a grande maioria dos sujeitos estão


presos em sua menoridade, vivendo em um estado de inércia e enclausurados numa alienação
sem fim.

Fica claro, nesse sentido, que a razão advinda do Iluminismo trouxe consigo
aspectos totalitários e dominantes e o objetivo central foi articular meios para domesticar e
padronizar os sujeitos. Esta é uma questão clara e que fica explícita quando Adorno expõe o
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conceito de Indústria cultural, relatando sobre os mecanismos usados pela classe dominante
para manter-se no poder. Francis Bacon (1561 – 1626) alega que conhecimento é poder e este
poder servirá para dominar os fenômenos naturais para melhor benefício da humanidade.
Entretanto, este conhecimento foi utilizado para dominar não só a natureza, mas todos os
indivíduos.

3. Indústria Cultural e a padronização dos corpos.


Com a indústria cultural, a cultura passa a servir como um mecanismo para que a
classe dominante se mantenha no poder. É nesse sentido que a mesma produz uma cultura e a
transforma em mercadoria, cujo objetivo é a obtenção de lucro. A finalidade da cultura é ser
submetida à lógica do sistema capitalista. Esse conceito foi pensado por Theodor Adorno para
fazer menção à forma com que a cultura passa a ser tratada e como esta faz uso dos meios de
comunicação visando a padronizar e domesticar os corpos, impedindo-os de exercer
autonomia, reflexão crítica e liberdade. Na introdução de Educação e emancipação, escrita
por Wolfgang Leo Mar, ele afirma,

A indústria cultural determina toda a estrutura de sentido da vida cultural


pela racionalidade estratégica da produção econômica, que se inocula nos
bens culturais enquanto se convertem estritamente em mercadorias; a própria
organização da cultura, portanto, é manipulatória dos sentidos dos objetos
culturais, subordinando-os aos sentidos econômicos e políticos e, logo, à
situação vigente. (ADORNO, 1995, p. 20).

Há uma penetração no inconsciente de cada indivíduo, os meios de comunicação


são utilizados para ludibriar os sujeitos e torná-los alienados frente a realidade, tornar todos
um só, ou seja, homogeneizá-los é o objetivo primeiro da cultura propagada pela classe
dominante. O intuito é transformar a cultura em uma cultura de massas para, através da
persuasão e alienação, obter lucro com ela. Nesse sentido, é uma cultura para dominar, na

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qual o ―senhor‖ domina os proletariados em seu lazer, tornando-os marionetes para estar a seu
serviço, não questionando, não revidando e aceitando tudo que é imposto e propagado.

A cultura padroniza e os sujeitos são domesticados em todos os âmbitos da


sociedade. Absorver todas as consciências é o pretendido pelo sistema capitalista. Assim, a
televisão, os rádios, revistas, cinemas e outros meios de comunicações, são utilizados para
homogeneizar os comportamentos individuais. Observa-se mais uma vez que o
desenvolvimento da técnica se encontra a serviço da dominação e manutenção do sistema
dominante. Através da manipulação das massas o sujeito vai se tornando cada vez mais
desumano e sem resquício de atividade intelectual crítica e autônoma. Segundo Wolfgang Leo
Mar ao introduzir Educação e emancipação:

A indústria cultural expressa a forma repressiva da formação da identidade


da subjetividade social contemporânea. Marx já assinalara como pela
educação os trabalhadores aceitam ser classe proletária, interiorizando a
dominação, por exemplo, nos seus hábitos. Agora vemos como esta
aceitação se dá objetivamente no capitalismo tardio. (ADORNO, 1995, p.
19).

A cultura que deveria levar os sujeitos a tornarem-se mais críticos e sabedores,


com a Indústria Cultural ela possui uma finalidade completamente oposta. Para Adorno a
cultura que é guiada pela Indústria Cultural aliena e padroniza os sujeitos, ―Assim, a
dimensão crítica da cultura, que deveria garantir a emancipação, cede lugar à
semiformação, em que predomina a racionalidade instrumental voltada para a adaptação e o
conformismo à situação vigente.‖ (GOMES, 2010, p. 292). Originar um ser passivo é o que
essa cultura faz, uma vez que a Indústria Cultural reprime e arranca do sujeito sua identidade
e subjetividade. É essa cultura que Adorno vai em busca de combater.

A técnica, a razão e o esclarecimento estão sendo usados para dominar a


sociedade, a cultura é usada estrategicamente como uma mercadoria e a mesma age
implantando controle. Os indivíduos são persuadidos para agir, vestir, ouvir e sair de uma
determinada maneira, é tudo tão enraizado que se torna difícil sair dessa ―caixinha‖
orquestrada e planejada. Assim, é de incomensurável importância relatar que a Indústria
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cultural está intimamente atrelada ao consumismo. Os meios de comunicação de massa


propagam uma mercadoria e os indivíduos são instantaneamente levados a consumir. A
essência da cultura é perdida, porque nesta sociedade todos costumam relacionar lazer e
diversão a consumo.

―A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o


carácter compulsivo da sociedade alienada de si mesma.‖ (ADORNO; HORKHEIMER,
1985, p. 57). A racionalidade torna os sujeitos alienados e presos em si, a ideologia dominante
articula maneiras para entreter ―o povo‖, pois assim esses estariam desligados dos problemas
existentes no núcleo social. Não criticar e ser incapaz de exercer reflexão sobre qualquer tipo
de problema para não questionar, o intuito é entreter para dominar. Nesse sentido, segundo a
introdução de Wolfgang Leo Mar,

Enfim: a indústria cultural reflete a irracionalidade objetiva da sociedade


capitalista tardia, como racionalidade da manipulação das massas. A
indústria cultural obscurece por razões objetivas, aparecendo como uma
função pública da apropriação privada do trabalho social. Na continuidade
de seu próprio desenvolvimento, o esclarecimento se inverte em
obscurantismo e ocultamente Para Adorno, a indústria cultural corresponde à
continuidade histórica de condições sociais objetivas que formam a
antecâmara de Auschwitz, a racionalização da linha de produção industrial
— seja fordista, seja flexível — do terror e da morte. (ADORNO, 1995, p.
20).

4. Educação para dominação: a razão instrumental e o controle dos sujeitos.


Educação nem sempre pressupõe emancipação. Em uma sociedade na qual
prevalecem regimes ditatoriais, totalitários, e que não trabalha constantemente com o
desenvolvimento da criticidade dos sujeitos que nela estão inseridos, não é válido afirmar que
vigora uma educação que possua como fim último a emancipação. Quando o que é propagado
é uma educação rígida, fixa e totalmente objetiva, nela não resta espaço para o
desenvolvimento da autonomia e reflexão crítica. Qual a chance existente para que ainda
assim ocorra uma atividade intelectual autônoma e emancipatória?

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A educação precisa incondicionalmente ser desprendida de qualquer tipo de


dominação, o fim último dela certamente será abalado se o que estiver regendo-a for algum
interesse de dominar. No livro, Paidéia a formação do homem grego, Werner Jaeger afirma,
―Os Gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de
construção consciente‖ (JAEGER, 1989, p. 09). Nesse sentido, uma má formação cultural e
educacional levará a humanidade à barbárie. O que teoricamente proporcionaria a
emancipação teve um efeito reverso, gerou a bestialidade. Esse foi o caminho ―aberto‖ pela
razão instrumental.

A educação não está desvencilhada do regime vigente. Educação e produção,


segundo Adorno, estão intimamente relacionadas. O capitalismo tardio (termo utilizado pelo
filósofo para fazer menção à sociedade industrial) gerou uma racionalidade produtivista.
Nesse sentido, todo e qualquer tipo de formação está direcionado para atender somente as
demandas do capitalismo e de sua produtividade. Mas, afinal, o que é cabível esperar de um
modelo econômico que faz uso de uma racionalidade instrumental para perpassar a
dominação? Segundo à guisa de introdução de Educação e emancipação escrita por Wolfgang
Leo Mar,

A crise do processo formativo e educacional, portanto, é uma conclusão


inevitável da dinâmica atual do processo produtivo. A dissolução da
formação como experiência formativa redunda no império do que se
encontra formado, na dominação do existente. (ADORNO, 1995. p. 18).

É válido analisar que inúmeras são as dificuldades para que haja uma formação
educativa crítica. A autonomia e a subjetividade são completamente sufocadas pelas forças de
produção do processo capitalista e isso acontece de forma estrutural. Dessa forma, contrário a
uma formação (Bildung)301, há uma semiformação dos sujeitos. Encontra-se impregnado uma
―formação‖ que na verdade visa a deformar a subjetividade, uma vez que a formação está em
função da produção e reprodução da ideologia dominante.

301
Palavra alemã que significa formação completa ou integral do indivíduo. Essa palavra passa a obter muita
relevância no contexto da Modernidade.
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A barbárie deveria ser evitada, mas em uma sociedade na qual a ciência e a


técnica são colocadas a serviço da manutenção da lógica capitalista, o esclarecimento e os
conhecimentos também se tornam técnicos. Dominação e progresso estão relacionados, mas é
um progresso para quê e para quem? É um progresso para os que estão no poder visando à
manutenção do mesmo, pois, em questão de esclarecimento e autorreflexão, a modernidade
trouxe consigo um declínio. Como, em um mundo globalizado e tecnológico, é possível que
haja tanta miséria? Eis aí um desenvolvimento que não conduz à emancipação, o que há de
fato é um pseudoconhecimento. Na introdução de Educação e emancipação Wolfgang Leo
Mar afirma,

O filósofo alerta os educadores em relação ao deslumbramento geral, e em


particular o relativo à educação, que ameaça o conteúdo ético do processo
formativo em função de sua determinação social. Isto é, adverte contra os
efeitos negativos de um processo educacional pautado meramente numa
estratégia de esclarecimento da consciência, sem levar na devida conta a
forma social em que a educação se concretiza como apropriação de
conhecimentos técnicos. (ADORNO, 1995, p. 10).

Quando a educação é controladora o sujeito se torna apenas mais uma peça para
que o todo possa funcionar corretamente e para que a classe dominante se mantenha no poder.
Nesse sentido, houve a instalação, desde o Iluminismo, de uma razão que não tinha como
objetivo ―iluminar‖ os sujeitos. Muito pelo contrário, a razão instrumental não proporciona
uma reflexão objetiva sobre os fins do conhecimento, a ciência é um instrumento, cujo
propósito é dominar. Eles tiram o direito de ser, de pensar e de agir. Instaura-se uma
massificação.

A produção em série, como organização de trabalho humano é,


possivelmente, dos mais instrumentais fatores de massificação do homem no
mundo altamente técnico atual. Ao exigir dele comportamento mecanizado
pela repetição de um mesmo ato, com que realiza uma parte apenas da
totalidade da obra, de que se desvincula, ―domestica-o‖. Não exige atitude
crítica total diante de sua produção. Desumaniza-o. Corta-lhe os horizontes
com a estreiteza da especialização exagerada. Faz dele um ser passivo.
Medroso. Ingênuo. (FREIRE, 1967, p. 89).

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Eis aí uma das grandes contradições advindas do Iluminismo: como é possível ter
ocorrido um efeito completamente reverso, por que a razão, que deveria emancipar, aprisiona?
Isso acontecia por falta de

Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua


problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o advertisse dos
perigos de seu tempo, para que, consciente deles, ganhasse a força e a
coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição de seu
próprio ―eu‖, submetido às prescrições alheias. (FREIRE, 1967, p. 89).

Na educação usada como mecanismo para a manipulação das massas, não existia uma
relação entre esclarecimento e liberdade, razão e emancipação, ambas caminhavam em
direções opostas. Segundo Wolfgang, na introdução da obra Educação e emancipação, ―A
razão também seria caracterizada em termos sociais objetivos, e não teoricamente, no plano
da consciência ou do esclarecimento, ou seja, do conhecimento por oposição à ignorância
etc.‖(ADORNO, 1995. p. 18).

É perpassada uma ―consciência‖ adaptada e voltada para o conformismo, a


formação se converteu em semiformação. Isso ocorre de maneira estratégica para dispersar os
indivíduos de questões sociais e políticas. Nesse contexto de uma pseudoformação, o que
ocorre na verdade é uma desumanização dos sujeitos. Essas são as ―contribuições‖ para a
educação proporcionada pela racionalidade instrumental. Dessa maneira, os atributos
implantados por essa semiformação tem reflexo presente na sociedade hoje, pois inúmeros são
os obstáculos para a emancipação, uma vez que:

A ―sociedade totalmente esclarecida‖ não passa de uma ―sociedade


administrada‖, e nessa, os indivíduos se vêem completamente anulados em
face do poder econômico, da visão utilitária e da racionalidade técnico-
instrumental, que impinge à sociedade a sua condição de alienação e
enclausuramento. (GOMES, 2010, p. 291).

A racionalidade se resumiu a e se transformou em instrumento de dominação, a


razão que pretendia levar o sujeito à emancipação e à autonomia apresentou exatamente o
contrário. Tornar os indivíduos em objetos (passivos, conformados e incapazes de exercer
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autonomia e reflexão crítica) foi o seu objetivo central. A classe dominante obteve êxito em
seu projeto de coisificar e desumanizar a humanidade. Dessa forma, o progresso está atrelado
ao desaparecimento da autonomia do sujeito.

Em uma sociedade na qual a educação não é crítica, os sujeitos individuais e


subjetivos são ludibriados, não restando outra solução a não ser se enquadrar na totalidade,
deixando de lado sua subjetividade e capacidade de exercer autorreflexão. A classe dominante
implanta meios de perdurar sua dominação, pois quando massificados os sujeitos se tornam
mais maleáveis e suscetíveis para modelar. Nesse sentido, a instituição escolar (educação),
que deveria proporcionar capacidade de reflexão crítica e de reconhecimento do outro, acaba
por fazer completamente o oposto.

A razão instrumental oferece uma educação apenas de semiformação e essa crise


na formação precisa ser sanada, mas como mudar a consciência dos indivíduos se o sistema
instaurado ainda é o mesmo e o pretendido é formar consciências para contribuir com a sua
manutenção? É perceptível que a má formação cultural constitui a característica da
humanidade. A racionalidade dominante é como uma ―teia de aranha‖ construída para
capturar e raptar toda e qualquer liberdade e autonomia dos indivíduos e isso acontece em
todos os âmbitos e todas as relações do núcleo social.

Para Freire, um dos objetivos centrais da educação é preparar o educando para a


autonomia e consciência da realidade. Dessa maneira, a escola deveria proporcionar uma
educação de formação completa para o sujeito, pois somente assim eles poderiam analisar,
entender e transformar o mundo a sua volta. Precisa-se de uma educação que vise à formação
integral do indivíduo, uma vez que ela certamente o conduzirá para o exercício da real
racionalidade e de sua autonomia enquanto sujeito individual, integrando-se ao todo para
gerar transformações no meio social.
Em contrapartida, as escolas, em sua grande maioria, ofertam um conhecimento
para a semiformação. Por exemplo, segundo Hooks, ―De repente o conhecimento passou a se
resumir à pura informação. Não tinha relação com o modo de viver e de se comportar‖

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(HOOKS, 2017, p. 12). Percebe-se que esse tipo de educação que visa somente o perpassar de
informações e de conhecimentos prontos e acabados não proporciona uma visão crítica e
reflexiva da realidade, as consciências são ―roubadas‖ e os sujeitos são guiados para a
reprodução de ações e comportamentos.
A escola precisa ser um local atrativo e chamativo para os educandos, pois é nela
que ocorre o processo de ensino-aprendizagem,

―A escola é a instituição criada com o objetivo de socializar saberes e


conhecimentos historicamente acumulados, mas também de construir outros.
Assim ela tem o papel de criar condições para os (as) estudantes se
apropriarem da cultura, até mesmo reinventando-a. Nesse sentido, o
aprendizado é a apropriação individual da cultura ensinada, ao passo que o
ensino é o trabalho das educadoras e dos educadores para facilitar a
aprendizagem dos (as) estudantes. Precisamente, portanto, nas escolas se
realiza o processo de ensino aprendizagem‖. (CARA, 2019, p. 25)

Para haver nas escolas uma educação que tenha como intuito a formação, é necessária
uma formação para autonomia. Nesse sentido, cabe ao educador instigar na sala de aula a
participação de cada estudante, mostrando para eles que suas histórias e vivências são cruciais
para o processo de ensino-aprendizagem na obtenção de conhecimento.
Nesse sentido, é necessário, em primeiro lugar quando se fala em educação para
formação e emancipação dos sujeitos, entender que o aluno precisa participar ativamente do
processo de ensino-aprendizagem. Com a participação dos educandos há possibilidades do
surgimento de novos conhecimentos. Para isso o professor não pode ver o (a) estudante
somente como um ser vazio que não carrega bagagens e conhecimentos consigo.
É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes saberes indispensáveis, que o
formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora,
assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença
definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua produção ou a sua construção. (FREIRE, 1996,
p.12)

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Se o intuito da educação for a formação, a mesma defenderá que a escola é um espaço


de criação de conhecimentos mútuos, não havendo um detentor de todos os saberes e não
sendo propagado um conhecimento pautado na memorização e acumulação.

5. Educar para emancipar: o caminho que precisa ser percorrido.


A educação precisa incondicionalmente ser entendida como um motor que conduz
a emancipação e formação completa para o sujeito, ―Emancipação significa o mesmo que
conscientização, racionalidade.‖ (ADORNO, 1995, p. 142). Com o advento da racionalidade
instrumental e da Indústria cultural, tornou-se claro que é imprescindível haver uma dimensão
crítica da cultura e da realidade, precisa-se com urgência de uma educação que tenha como
objetivo central a autorreflexão crítica que seja capaz de libertar os indivíduos que vivem
enclausurados em uma sociedade na qual prevalece a razão instrumental.

O conformismo advindo da indústria cultural está impregnado na mente e nos


corpos dos sujeitos. Há uma padronização dos corpos, o bom sujeito é o sujeito modelado de
acordo com o que é pedido e exigido. A sociedade em geral se torna alheia a questões sociais
e políticas. Dessa maneira, trata-se de uma educação que foi convertida em forças produtivas,
na qual existe apenas a reprodução e alienação dos indivíduos. O indivíduo não é emancipado
e nem sujeito de si, a emancipação, a liberdade e a razão crítica estão mortas, o capitalismo
com o seu sistema de dominação as matou.

Nesse sentido, a questão agora é trilhar e ―iluminar‖ de fato um caminho que


conduza o homem a tornar-se um ser autônomo. Ao pensar a educação, é necessário não a
analisar somente como um mecanismo que possibilita a formação, mas acima de tudo, de
transformação. Para isso, a educação precisa ser olhada sobre uma outra perspectiva, pois ela
é o que pode possibilitar a saída dos indivíduos de uma razão cega e não reflexiva. Em seu
livro, Educação e Emancipação, Adorno afirma, ―porém existem dados da sociologia da
educação indicando que, onde a educação política é levada a sério e não como simples
obrigação inoportuna, ela provoca um bem maior do que normalmente se supõe.‖
(ADORNO, 1995, p. 44).
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Uma educação que tenha como principal objetivo criar sujeitos autônomos e
críticos é o que precisa prevalecer na sociedade contemporânea, a razão instrumental não
pode mais predominar sobre a capacidade de pensar por si só. Precisa-se pensar em uma outra
ideia de educação. A transformação no âmbito educacional deve advir da estrutura, a mesma
precisa ser reorganizada para que assim deixe de estar somente a serviço de um sistema
dominante com a finalidade de gerar produção e reprodução de mercadorias. A educação deve
ser entendida sob uma perspectiva cultural que tenha como objetivo a formação completa de
cada indivíduo.

Entende-se que antes de qualquer questão a se tratar é imprescindível analisar o


fato de que a educação deve levar em conta a subjetividade de cada sujeito, estes de forma
nenhuma podem ser pensados como unos, pois cada um possui uma história, uma vivência e
uma realidade. Tentar anular as subjetividades sempre foi e continua sendo um dos principais
impasses da educação. Quando as subjetividades são ignoradas e os indivíduos são obrigados
a se adaptar ao ―total‖, a educação deixa de ter uma formação para a emancipação, ―Pelo fato
de o processo de adaptação ser tão desmesuradamente forçado por todo o contexto em que os
homens vivem, eles precisam impor a adaptação a si mesmos de um modo dolorido,
exagerando o realismo em relação a si mesmo, e, nos termos de Freud, identificando-se ao
agressor.‖ (ADORNO, 1995, p. 144)

A educação é hostil ao ignorar e ter dificuldades para aceitar as individualidades,


o sistema educacional engloba a todos utilizando apenas uma tática. Por exemplo, as aptidões
de cada aluno em sala de aula não são levadas em consideração, este só precisa se adequar e
seguir à risca tudo o que é proposto, se fugir disso vai sofrer punições e sansões. A
modelagem começa de fora para dentro realizando então o aprisionamento e anulação total de
qualquer criatividade que possa ser desenvolvida pelos sujeitos. O sistema é montado, as
disciplinas são ofertadas e quem não se adequar ficará de fora.

A educação precisa urgentemente ser repensada, os mecanismos utilizados estão


para atender demandas do Estado e da sociedade, mas o sujeito em si é ignorado. Percebe-se

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na contemporaneidade alunos cada vez mais alheios a questões sociais e políticas, mas isso
ocorre porque os mesmos entendem o núcleo escolar como um lugar que os aprisiona e que os
obriga a agir de uma determinada maneira e a seguir o modelo que já está posto. A escola
precisa manter um diálogo com a sociedade e com os alunos, a educação precisa trabalhar
para possibilitar a formação completa do cidadão. Em um de seus trabalhos, Juarez Dayrell302
redigi:

Ele foi excluído da escola na 5a série do ensino fundamental, não retomando


os estudos desde então. A escola é lembrada como um espaço que não o
envolvia, distante dos seus interesses e necessidades: ―A escola não me
cativava, não me despertava interesse, era um saco… aí eu fui
desinteressando pelo estudo...‖ (DAYRELL, 2003, p. 45).

A escola se torna um lugar apático para os alunos, ela é vista como uma obrigação
que é preciso suportar todos os dias, um lugar que não oferece nada de atrativo. Este é um
problema desenvolvido desde o primeiro contato que o aluno tem com a escola, ele passa a
perceber e com o passar do tempo a enxergar o espaço educativo como um lugar que não o vê,
a escola se torna indiferente ao aluno. Este é mais um exemplo a ser percebido de que a razão
instrumental e a Indústria Cultural estão tão presentes quanto no momento em que Adorno fez
suas críticas à sociedade da qual fez parte.

Afinal, para onde a educação pretende conduzir os sujeitos? Para Adorno o que é
urgente questionar é, para onde a educação deve conduzir, ―Quando sugeri que nós
conversássemos sobre: ‗Formação — para quê?‘ ou ‗Educação — para quê?‘ a intenção não
era discutir para que fins a educação ainda seria necessária, mas sim: para onde a educação
deve conduzir?‖ (ADORNO, 1995, p. 139). Isso é o que precisa ser repensado atualmente,
teoricamente a educação deveria formar o sujeito em seu desenvolvimento pessoal e para a
qualificação no mercado de trabalho, mas percebe-se que a relação entre teoria e prática
andam por caminhos opostos, pois o que prevalece é apenas o último: cada sujeito é formado
para ser apenas mais uma peça para a grande máquina chamada Estado.
302
Pensador contemporâneo que desenvolve trabalhos acerca da cultura, educação, movimentos sociais e
juventude.
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Na constituição brasileira de 1988, no capítulo III (Da cultura, da educação e do


desporto) Secção I, estão expostas as atribuições que a educação deve oferecer e desenvolver.
Art. 205, ―A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.‖ (BRASIL,
2016, p. 123). No entanto, há uma discrepância entre o que está no papel e a realidade, pois é
possível perceber essa formação plena da pessoa? De acordo com o que foi já foi exposto,
não. Nesse sentido, é na formação crítica que a educação deve focar, ela deve ter como
centralidade a educação para a liberdade.

A educação deve formar sujeitos críticos e ela deve sempre prezar pelo
aprimoramento da consciência de sujeitos individuais. Segundo Adorno,

Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não


temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não
a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já
foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira.
Isto seria inclusive da maior importância política; sua idéia, se é permitido
dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever
de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda de
pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada
enquanto uma sociedade de quem é emancipado. (ADORNO, 1995, p. 141).

A educação é um dos recursos principais para possibilitar uma sociedade mais igual,
com menos injustiça social e, principalmente, ser uma forma de vencer e eliminar a barbárie,
pois ela precisa ser superada.

Fugir de uma educação manipuladora e controladora é o essencial neste momento


de tanta calamidade. As pessoas não são educadas para pensar, mas para reproduzir, elas
vivem um processo de semiformação, processo esse que é implantado de forma bruta e cruel,
uma vez que o ser é sempre perdido no meio do caminho. Então, de antemão é válido afirmar
que a educação deve formar para emancipar, para criar e não para somente reproduzir. É nesse
sentido que a educação deve possuir como centralidade o desenvolvimento da criticidade de
cada sujeito.
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Despertar e fazer viver um sujeito crítico é o essencial, mas como fazer para
despertar a criticidade? O papel central para essa tarefa é da educação. Ela, através de suas
práticas pedagógicas, deverá formar um indivíduo de ação, pois é somente com a ação que se
obtém a transformação do meio social. A escola formará o sujeito para a sociedade, um sujeito
engajado e consciente. ―O engajamento é também um indicador de mudanças políticas e
culturais na sociedade‖. (GOHN, 2019, p.36). As massas precisam ser conscientizadas, uma
vez que só é livre o sujeito que é engajado e que participa das decisões do núcleo social de
forma consciente. No entanto, ao engajar-se precisam ser críticos, pois se apenas fizerem
parte de um coletivo sem nenhuma criticidade a barbárie ainda estará presente e cada vez com
mais força.

A passividade faz a barbárie tornar-se mais forte, para Adorno ―Ao contrário:
esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente, apenas uma forma da
barbárie, na medida em que está pronta para contemplar o horror e se omitir no momento
decisivo.‖ (ADORNO, 1995, p. 163). O sujeito que não questiona, que não se integra e que
está de fora de toda decisão da sociedade é apenas um objeto que é manuseado e domesticado
por uma força maior. Nesse sentido, a ação deve constituir e fazer parte do ser de cada sujeito,
eles precisam ser educados para agir e transformar. Através da ação e do engajamento as
pessoas são educadas para reagir ao que é imposto.

Conscientizar as massas para a ação e criar sujeitos capazes de modificar a sua


realidade é o objetivado. O sujeito que age se torna responsável por construir a sua vida e é
responsável por modificar a sua realidade. Ter consciência é perceber que não é responsável
somente por si, mas por toda a humanidade. É nesse sentido que há a necessidade de estar
engajado em questões políticas e sociais, pois assim sua liberdade torna-se de fato efetiva, é
livre o sujeito que é consciente.

Nessa perspectiva, a escola precisa desenvolver nos alunos desde o primeiro


contato a preparação para a ação, pois somente assim eles poderão transformar a sociedade de
que fazem parte. Para Adorno, ―Penso que o mais importante que a escola precisa fazer é

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dotar as pessoas de um modo de se relacionar com as coisas.‖ (ADORNO, 1995, p. 163). Os


alunos precisam saber se relacionar com as coisas e com o mundo. É somente com essa
relação que a realidade poderá ser transformada, o principal é ter o objetivo de criar uma
consciência verdadeira. Por que, afinal, isso não é de fato o que a educação deveria fazer?

Dessa maneira, no primeiro momento deve haver o despertamento de uma


consciência verdadeira, ou seja, uma consciência que induza sempre à criticidade e à
emancipação do sujeito para que então este possa fazer parte e intervir no núcleo social.
Tendo esse despertamento a transformação é adquirida. Por exemplo, as manifestações
realizadas ao logo da história do povo brasileiro deixam claro que ainda existem sujeitos que
pensam e que almejam por transformações. As manifestações e os movimentos sociais podem
ser analisados como uma das formas de possibilitar a emancipação para os indivíduos, pois
elas servem para demostrar que nem todos são instrumentos e máquinas desse sistema que é
imposto. Os que buscam por transformações e melhorias na sociedade são normalmente
sujeitos que tiveram uma educação diferenciada e que obtinha como objetivo formar para
transformar.

Educar para emancipar, chega de uma educação que ―educa‖ somente visando o
progresso, o necessário é:

Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua


problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o advertisse dos
perigos de seu tempo, para que, consciente deles, ganhasse a força e a
coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição de seu
próprio ―eu‖, submetido às prescrições alheias. Educação que o colocasse
em diálogo constante com o outro. (FREIRE, 1967, p.90).

Toda a estrutura social precisa ser modificada para que de fato seja possível pensar em
uma educação para a emancipação, pois, da forma que se encontra, se a mudança não
acontecer ―da raiz‖ ou melhor, se a raiz do problema não for cortadam o que continuará
existindo é uma educação controladora e tendenciosa.

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Considerações finais.

Fica claro, portanto, que, para romper com o processo educativo que tem por
finalidade apenas domesticar e padronizar os sujeitos, é necessário antes de tudo mudar a base
da educação que vigora hoje, as salas de aula, os projetos políticos e pedagógicos, a forma de
relação existente entre professor e aluno e a própria forma que a escola aprisiona os sujeitos,
pois ela os prepara para somente reproduzir e não questionar. Dessa maneira, é imprescindível
que a escola seja um espaço atrativo, um ambiente onde os alunos queiram estar, ―O primeiro
paradigma que moldou a minha pedagogia foi a ideia de que a sala de aula deve ser um
lugar de entusiasmo, nunca de tédio.‖ (HOOKS, 2017, p.16). Mudar a forma do aluno
perceber a escola certamente mudará e facilitará o seu aprendizado.

Além disso, para que haja de fato um processo de formação para a emancipação,
os indivíduos precisam não serem mais vistos como passivos e conformados. É preciso antes
de tudo proporcionar uma formação para engajar os sujeitos, pois, engajados e conscientes de
suas lutas e desafios, com certeza serão agentes de transformações das mazelas que existem
na sociedade, como a desigualdade, as injustiças e a falta de assistências para as camadas
menos favorecidas. A educação pode mudar o quadro de uma vida, de uma família e de uma
sociedade inteira.

Para que haja uma educação emancipadora, os alunos precisam ser olhados em
sua individualidade. Perceber que uma sala de aula é um local que abriga diversas
subjetividades e reconhecer a importância de cada um para o processo de formação é central
para eliminar o quadro de semiformação.

Para começar, o professor precisa valorizar de verdade a presença de cada


um. Precisa reconhecer permanentemente que todos influenciam a dinâmica
da sala de aula, que todos contribuem. Essas contribuições são recursos.
Usados de modo construtivo, eles promovem a capacidade de qualquer
turma de criar uma comunidade aberta de aprendizado. (HOOKS, 2017,
p.18).

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Para transformar, o sistema educacional precisa enxergar no aluno não apenas mais
uma mão para o mercado de trabalho e sim como mais uma mente capaz de trazer melhorias
para a realidade à sua volta. Lutar por uma sociedade mais igual e mais justa requer uma
formação. Formar para emancipar e para transformar. A educação ainda tem chances de
mudar, se bem ofertada ela criará sujeitos livres e capazes de ir em busca de melhores
oportunidades, de mais justiça e de mais igualdade.

O intuito do artigo foi justamente realizar uma reflexão desde a fundação da


Escola de Frankfurt, passando pela questão do Esclarecimento, Razão Instrumental e Indústria
Cultural. Nesse sentido, o tópico quatro mostrou que, em uma sociedade na qual impera uma
racionalidade técnica e produtivista, a mesma tende a proporcionar uma educação para a
reprodução e memorização, na qual os sujeitos não são entendidos como seres subjetivos e
nem como agentes de transformações da realidade. Com esse tipo de educação a condução à
barbárie continua sendo o principal caminho, uma vez que o ofertado é uma educação que
leva a uma semiformação.
Dessa maneira, quando a educação tem como intuito a Bildung, os indivíduos são
guiados para o exercício da autonomia e reflexão crítica sobre a realidade. No entanto, foi
percebido que grandes são os impasses para que essa formação completa se faça presente,
pois a razão instrumental e a indústria cultural precisam ser superadas e o caminho para essa
superação é a educação. Educar para emancipar é o caminho que precisa ser percorrido.
Conclui-se que a educação não pode perpassar a noção de que o conhecimento é
algo pronto e acabado, assim como não pode gerar nos educandos a ideia de não
pertencimento ao âmbito educacional. Ela precisa estar presente na vida de todos, mostrando
que cada um é crucial para o processo de ensino-aprendizagem, logo, da construção do
conhecimento. A escola deve utilizar práticas pedagógicas adequadas para trazer o educando
para pertencer, agir e se reconhecer enquanto sujeito de ação capaz de realizar
transformações.

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· Rio de Janeiro · Março 2021


Revista Aproximação · ISSN: 2175-7534 ·VOLUME 16 Edição 2020.1
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