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HISTORIA CONTEMPORANEA Asistencia y Caridad como Estrategias de Intervencidn Social: Iglesia, Estado y Comunidad is. XV Xi Laurinda Abreu (editora) Repressio e controlo da mendicidade no Portugal Moderno! Laurinda Abreu ‘Universidade de EvoraCIDEHUS A historiografia sobre a assisténcia aos pobres e & pobreza tem sido alvo de um investimento renovado por parte dos investigadores nacionais®, num progressivo e continuo alargamento das éreas de trabalho e perspectivas de anélise’. O que propomos neste texto é um olhar mais demorado sobre 0 lugar reservado a um grupo que tem sido menos considerado até 20 presente em termos de anélise histérica: 0 dos mendigos e vadios. Gente que, por uma qualquer incapacidade ou por se recusar a trabathar, fazia da mendicidade o seu modo de vida, O que tentarei demonstrar, nema andlise de longa dura- Gio, & que as politicas sociais que se exprimiram através da actividade legis- "Uma primeira versio deste texto foi apresentada come introdugio a0 livro Monitoring health stants ad vdnerable groups in Europe: past and presen (pro). Desenvalvemos au ‘Meiase concetos que nfo tinbam perinéncia no enguacranento do primeir texto, sem, 0 etanto,eonsideraemos ¢ trabalho poe coneluido. Devo sida um pobvico agradecimenta 0s Professores Angela Boroto Xavier e José Pero Paivs pel letra critica que eeram 8 versio anterior esugestoes que apresentaran, 2 Para evtar repetiges de listagensbibliogrficasrealizadas aneriorment,refiroalgumas sisertagdes de doutoramento que versivam o tema —Laurada Abrev, Memérias da Alma ¢ {do Corpo. A Miseriaraia de Seal na Modernidade, Vise, Palmage Editres, 1999: Maria ‘Marta Lobo de Ara, Dar aos pobrese emprestara Deus: as Miseiedrdias de Vila Vigasa e Ponte de Lina (Séculos «+x. Baceles, SCMVV: SCMEL, 2000; Maria Anténia daSilva Figueiredo Lopes, Pobreza, asssténiae controlo social em Coimbra (1750-1850), Vise, Pa- Jimage, 2000 bem como ts brat de Istbel dos Guimaries S, Quando o rico sf pobre Misericdrdios, caridade e poder no inpério portugues, 1500-1800, Lishoa, CNCDP. 1997; ‘As Misericdndias Portyguesas de D. Manuel 1a Pomba, Lisboa, Livros Horizonte, 2001; de Joaquim Verisimo Serio, A Misericdrdia de Lishoa. Ouinkentos anos de hstiria, Lisboa, Lvios Hortzome, 1998; de Ivo Carneiro de Sousa, Da descosera da misericdat funda das misericdrias (1498-1525), Porto, Granta Bitores e Limeitos, 1999; ea coless0 Port- faliae Monunenta Misercordiaran, Lisboa, Universidade CatlicalUnito das Misericérdias Portguesas, 2002 (..). Para uma informagio mais compet, mas ndo exaustva, verse 1 nota I do nosso artigo, «Misercérdas:parimonializaedc e conroo regio (séculos 301 © ult, Ler Historia, 44 3003), pp 5-24 ® Nomeadamente as que reavaliam © papel da Igreja mis préticas asistencais, Alguns texemplos podem encontrar-se em Igreja¢ assstncia na Peninsla Ibéica (sees. XVI), TLaurinda Abreu (ed), Bdigbes ColfbtUCIDEHUS, 2008 95 lativa em momento algum toleraram estes grupos. Perseguidos, condenados e punidos desde a longinqua Idade Média, os «pobres mendigos» foram alvo de perseguigio e repressio por parte da Coroa e dos seus agentes, que da- vam voz, segundo 0s textos, 2 queixas dos povos, para quem mendicidade significava oviosidade e vagabundagem*. Basicamente, interessa-nos aqui destacar as continuidades ¢ as permanéncias encontradas no discurso norma- tivo sobre o fendmeno da mendicidade, bem como as adaptagdes realizadas tem fungo da evolugio das circunstancias econémicas e sociais. Tomando (0 conceitos apresentados por Angela Barreto Xavier no seu texto Amores ¢ desamores pelos pobres®, procurarei destacar as atitudes e as solugdes propostas por uma emergente economia politica —num tempo e numa socie- dade dominadas pelos prinefpios da economia moral—, para fazer face a um problema social que adquitia dimensGes avassaladoras, ‘A semelhanga do que a sociedade ¢ o poder politico fizeram no s lo xvi, introduziremos nesta andlise um grupo que, apesar da sua especifici- dade étnica, foi incluido nestas mesmas politicas: 0 dos ciganos. 6 sobre eles que nos debrugaremos na segunda parte deste texto. Para além de procurar- mos acompanhar 0 itinerdrio legislativo das medidas contra cles tomadas, deter-nos-emos particularmente no momento em que a lei introduziu uma componente nova no discurso, assumindo a questdo dos ciganos como uma questo de indole cultural de onde decorriam os problemas sociais de que ceram acusados. Finalmente, importa referir que, & parte o facto de este ser um trabalho ainda em desenvolvimento, cle esté quase exclusivamente assente nos textos legais. Estamos conscientes, como 6 dbvio, de que a «realidade vivida pode- ri ter caminhado em sentidos diferentes daqueles que o legislador delineou, Toclavia, a repeticZo dos mesmos argumentos contra a mendicidade © a vaga- bundagem a0 longo de varios séculos, a articulacdo entre o poder central e as utoridades locais sobre esta questo, a recorreate readaplagio dos mecanis- mos de repressio controle as proprias mutagées da sociedade, a constante referéncia a atitudes sociais de perseguicZo e repressio contra os oci0sos, a sua quase auséncia das Tistas dos «pobres» que usufrufram de formas inst tucionalizadas de assisténcia, s2o, entre outros, indicadores suficientemente fortes para evitar a sua marginalizago em termas historiograficos. O presen- te estudo demonstrara que © modo como Portugal geriu este fenémeno social no deferiu, na sua esséncia, das préticas correntes na restante Europa’ “Para dade Meili, vejam-se os pionsrostrabalhos de Humberto Baquero Moreno, Mar- sinaidode econfltossocais em Portugal nos sécwlos Xu? e xv. Esudos de Hist, Lisboa, aitrial Preseng, 985 ede Maria lose Fero, Pobreza e Morte em Portugal ma Idade Meda, Lisboa. Ed. Presenga, 1989, "Angela Barreto Xavier, «Amores e desamores peles pobres», Lastania Sacra, 2* s&- rie, 1, 1999, pp. 59-85, "Sto vévige as obras que o referem, S6 para citar algumas, Broislaw Gereme A Pleda dee 4 Forea ~Hlistdria do Misra e da Caridade na Europa, Lisboa, 1985, pp. 59.60 (este 96 E aqueles que «servir nom quiserem, sejam agoutados com pregom, e deitados fora de nossos regnos» A queixa apresentada pelo povo nas cortes de Lisboa de 1371 contra a inefiesein das autoricadles no. cumprimenta das penas de degredo previsias para os «que som andantes»’, conforme citacio acima, expressa nio s6 a preocupagio da populacio contra os que deambtlavam sem raizes nem obri- ‘gages sociais, mas remete também para priticas persecut6rias em relacio ‘este grupo que ja entao estavam consignadas ra lei. Pela mesma altura, os homens de Santarém designavam de vadios aqueles que «nem querem filhar mester, nem viver com outrem*, presumindo «que vivem de mal fazer»? e da mendicidade, citicando severamente os que «som em idade e desposigom dos corpos tall que muy bem poderyam servir e viver com alguns senhores € fingen-sse seer doentes ¢ alejados por Ihes dareri esmollas e porque nom he servigo de Deus tazes como estes viverem per as esmollas outrassy>" Apesar dos antecedentes legais, a resposta politica mais estruturada © consistente a este problema data de 1375 ¢ intzgra a Lei das Sesmarias! Especialmente conhecida como uma tentativa de promogtio do desenvolvi ‘mento do pais através da recuperagio da agricultura, abandonada ¢ com falta de mio-de-obra em consequéncia da Peste Negra ¢ das desordens sociais ue provocou, a Lei das Sesmarias dé importantes orientagées em relacio a0 fenémeno da mendicidade. Nao s6 condenando-a e impelindo os mendigos para o trabalho, como € por demais conhecido, mas também dotando-a de ‘um conjunto de regras e de medidas de represséo e controlo que uma andlise de tempo longo revela terem servido de matriz as leis Quinhentistas e Sei centistas contra a mendicidade e a vagabundagem” fapresentao caso de Nuremberga— ume situagao muito préxima da legisla régin qunhen- {sta portuguesa) mas também Robert Jute, Poverty and Deviance In Early Modern Europe, 2nd ed, Cambridge, 1996. Especiticamente para a realdade ingles. vejam-se os wabalhos de PIA Slack, sobretito, Pavery and Policy in Tudor and Start England, London, 1988, Para Espanha, as eis da Novisina Recopilacion de las leys de Expat, Impresaen Madrid, 1805 © para Fraga, Olven Hutton, «legging, vagrancy, vagabondage and the law: na aspect of the problem of poverty in Eighienth century France», Eopeav Studies Review, 2, 1972 7 Cotes de Lisboa, 8 de Agosto de 1371, citado em Porugeliae Monumenta Misereorda run, (doravante PNM), Lisboa, Universidade Callica/Unio das Misericddas Portusess, ol. 2, 2003, doc. 62, p. 125, § Ordenagdes Aonsinas, Lisboa, Funda Calouste Gulbenkian, 1984, vol. TV, pp. 41- 1991 ou 1406). ® Contes de Lisboa de 1410, citudo em PAM, ct, vol 2, doe. 64, p. 126, "© Cayees de Santarém, 1418, Mem, Piden, doe 6, p. 126, " Ordenagdes Afonsnas, lv TV, Das Sesiarias, lo LXXXI, 1375, p, 281-308 "2 Merece desiaquo 0 Enfase dado & identfeagio das stuagoes que configuravam Sbvias fagas a trabalho ral. A preferéncia dos «manoshor» pea aeupacto como crisdos por set ‘metoeremunerada e menos exigente —deixando-Thes temo live para pstieas cits, 00, Dior qu isso, ast presenta, faudulena, como eriador de grandes senhores © & conta des" Se esatuto cometerem erimes sem serem unio, ou, ainda, @vadiagem pratieada por quem ” Usando a argumentagio de carécter religiose que Juan Luis Vives em- pregaria 150 anos mais tarde, a lei defendia o trabalho como principal valor ‘moral, social e econémico", Rigorosa na seleccan dos mendigos, a Lei das Sesmarias ditava que todos as que fossem «catados» pelas justicas locais deveriam ser alvo de uma inspeegio que avalingse a sua idade & capacielade para o trabalho. Controlo que se estenderia aos que indevidamente andassem pedindo com habitos religiosos. Os considerados culpados seriam agoitados, em privado, e depois publicamente, seguindo-se a expulsio do reino no caso dos reincidentes. O rigor da lei estendia-se igualmente aos deficientes ditan- do orientagées que também fariam norma para ¢ futuro em relacdo 0 seu acesso A pritica da mendicidade: avaliagao pelas autoridades e encaminha- mento para o mundo do trabalho conforme o grav de deficiéneia, de forma a ' (© cumprimento das determinagdes expressas na lei era acometido a um corpo policial criado para 0 efeito que supunha um relativamente ‘elaborado sistema de informadores que localmente eram encarregues de inguirir a ocupagdo e meios de sobrevivéncia dos habitantes. Recolhida 1 informacdo, a mesma devia seguir uma escala hierdirquica pré-estabele- cida, que a faria chegar a0 topo, ou seja, aos agentes superiores do poder central, responsaveis pelas autorizacdes para mendigar e condenagdes a degredo", outa hibitos le reigiosose se reunia em acongregagies» no autorizadas pelt gre, ‘regimentando outs para com eles «soba fegura de religinsos e da santa vida andam pelas terms podindo», abandonando os seus oficios e meses, estavam entre as actividades mals conden, " ePorgue a vids dos homees nom deve seer oucioss, ea esmola nom deve ser daa se ‘nom a aguele qu a per sy nom pode saancar nem mercer per sevigo de seu compo, pet gue ‘Se manientia, © sezndo odio das sabedorese dos santos dcuores, mai usta cousa he cast- ‘aro pedinte sem necessidad e que pode escusaro pedir fazsdo agua outa obra provetosa, ‘ce Ihe dra esmola, que se deve ser da outros pabres, que nom podem fazer outa obra de ‘Strigoe, Ondemagdes Afonsinas, p. 287-288, " Consretamente «em algum parte dos membros coepoaaes Saja minguados, ero com toda essa mingua podem fazer algun quslguer serigo, Kem, Pier, p. 288, "= tgem, dem, p. 289. 1 Sera liderado por dois homens bons, escolhids ente os melhores cidados, que em ‘cada comireae provincia das comes seria encaregues de faze olevantamento ds popu- Tago, inguirind a ocupagio de cada um e confizmando se as que usavar hibitoseeligiosos ‘eam de facto para alem de identiicarem a herdades que Go estavam a ser lavrads © pro- ‘idenciar sun explorcio, Teiam a ajuda dos «vinancres, que seriam nomeados =puar- adores das freiguesias © das ruase des pragass, infrmando 08 mencionados homens bons ‘das porsoas que fossem encontradas a tansgreit, devendo remet-os & lavoura dos campos. em, iden pp. 289-292. 98 Das alteragdes que os reis seguintes fizeram a estes capitulos da Lei «das Sesmarias merece destaque a especificagio ardenada por D. Afonso V, quando refere que «quanto he 20 que em a dita ley falla dos pedintes, mandamos que todo o homem ou molher poss geeralmente pedir esmolas hhonde e quando Ihe aprouver. salvo aquelles que d’antigamente, por usanga ‘gceral ou Hordenagooes do Regno custumérom pedir e aver pera ello nossa ‘utoridade>. No entanto, o que & partida poderie parecer um retrocesso em termos do controlo da mendicidade era salvaguardado no mesmo pardgrafo ao indicar que se manteriam as condigdes pare. a concessio das licengas nos termos em que as Ordenagdes 0 estabelecian. E estas, no seu titulo 34, ratificavam a deciséo que D. Jodo I tomara nas zortes de Evora: quem nfo tivesse oficio de que viver ou amo para quem trabalhasse, que fosse preso e constrangido 2o trabalho, sendo publicamente agoitado em caso de recusa Segundo a confirmacao da lei apensa por D. Afenso V pode ler-se, referin- do-se ao anterior, «porque nos parece seer muito justo € proveitoso pera a terran”. Em boa verdade, a lei de 1375 representa uma sistematizaglo das medi- {as de combate & mendicidade e repressio dos pedintes apostando no traba- Iho compulsério como medida correctora dos desvios sociais que empurra- vam para a ociosidade e vagabundagem. Configurando, igualmente, um dos pilares do discurso Moderno no tocante as priticas de caridade e assisténcia: quele que distinguia 0 pobre merecedor, que a sceiedade aceitava e apoiava, «©08 outros, aqueles que «adam pedindo desenvergoncadamente>, exclutdos, até de algumas manilestagdes privadas de caridaze", e para quem as cortes pediam a expulsio do reino” Embora se conhegam inlervengées idénticas noutros espagos europeus no sentido de interditare limitar a mendicidade, como ocorreu, por exemplo, ‘em Nuremberga também no século Xv, a maioria foi de inicativa munici- pal, limitando-se, portanto, a dreas geogréficas circunscritas. E certo que @ Inglaterra elabora em 1349 a Statue of Labourers também com 0 objectivo de fixar 0s trabalhadores & terra. A.diferenca é que em Portugal todas us leis relativas a mendicidade e vagabundagem posteriores & Lei das Sesmarias a tiveram como matriz, como atrés se referiu, adaptando-a, é certo, mas sem Ihe alterar a espirito primitivo. Creio mesmo que a mais importante incorpo- ragho que Ihe foi fita, logo no inicio do século seguinte, foi a que determi nou a possiblidade de os mendigos nao auiorizados cafrem numa situacao de quase eseravatura, evendo servir quem os solicitasse sem diteito a qualquer OrdenagdesAfonsinas isto 1, th. XXXIV pp. 141-12. "= Em 1349, Gongalo Esteves de Tavares e Leonor Rodigue de Vasconcelos profbin-nos ‘de entrar no hogpital que fundavam em Cortega, por tstamento de 25 de Janeiro de 1349, Ci- ‘ado em PMN, vo. 2p. 138. "Cotas de Sanarém do 1410, citado em PMM, vol. 2, de. 64. 126, estipéndio, Uma medida que comegou por nio se aplicar aos estrangeiros mas que em 1427 se tomou de aplicagao geral ‘Acompanhar o discurso régio a partir das respostas as reivindicagses dos povos em cortes & de resto, um exercicio que permite seguir a forma como evoluiu a atitude do poser central em relacio aos mendigos ¢ aos vagabun- dos. E desde 0 segundo quartel do século xv a direcgio € exclusivamente @ do endurecimento das punigdes que passim a abringer todos aqueles que fossem coniventes com «os homeens que andam per a terra vagabundos». Em todo o reino, escrevem os legisladores, «nom more homem que nom ou- ver prisom ou alguum mester per que pos viver sem sospeita ou senhor que per el posa ou deve responder a nos se alguum mal fezer ou se taes fiadores nom der per que seja correito o mal se o fier», levando a ocultacio dos fal- tosos & perda de terras doadas pelo monarca” ‘A continuago destas politicas conduziria ao diploma de 8 de Julho de 1500 que incluia nas competéncias das recém-criadas Misericérdias 0 con- trolo da mendicidade e a tarefa de separacio dos pobres entre «verdadeiros ¢ falsos»®2. Agora, sim, a mudanga era significativa uma vez. que 0 monarca acometia @ uma instituigao de caridade responsabilldades que até af perten- ciam 2s autoridades politicas®™, 0 privilégio do monopstio dos peditérios em deserminadas freas geogrd- ficas que a monarquia concedeu as Santas Casas nio pode, alids, deixar de ser relacionado com esta mesma questi. Se o seu objectivo principal era 0 de angariar receitas para as confrarias, & importante ndo perder de vista que ‘a redugio do mimero de pedinies, mesmo os encartados, era um alvo ha mui- to perseguido pelos monarcas. E dai o apertado controlo exercido sobre as licengas concedidas®. maior rigor imposto aos mamposteiros das Miseri- 2 Armindo de Sousa, As cores medievais portguesas (1 vol Ip. 280, 51 PM, vol. 2, doe. 31, pp. 60-61. A mendicidade nio autrizade podia mesmo desence ear eacgdesvilents por pate das populages, conform se iaere do documento de D.Pe- ‘ro que confirma os privlégios concedidos por D. Afonso V penmtino wa0s gnfos andantes> pedir esmolas nas cidadesevilas do reno, poe serem pobres& no possurem utes formas de Sistento. (PHIM, vol 2,p. 141 e também de. 80, pp. 208-209), ™ Alirma o decumento que «tos lugares em que ouver a confaia da Mieriordia os of cies dela engeminem os pobrestejados, velhos e daenes que Jevem pedir para se mantrem das esmolaspublicas eos que ties nom forem deta foran ° Aida que, provevelmente a Misericérdias no teaham chegado a exercer esta compe- ""Mesmo as destindas uo culto,confrme se pode constata jf para 0 reinado de D. Afoa- 0 V.CE PAM, vol 2, pp. 168-169, nomeadamente a confirma regis h nomeacio feta por fei Manuel Goncalves, comendador da Ordem de Santa Maria Je Ropcesvales, de oito ma- posters espalhaos pelos diferentes acebispados do pls), colaando-os a salvo da piso. AS Festiges avulsas encontzadas nos séculos anteriores daviam lugar a uma medida de caricar ‘ger, inserita nas Ordenapbes do Reino: «que ninhua pessoa nom Sea tam ousada que pega ‘amoiss pera invocagam de elguum sanct, senom agueles que mostatem nosss cartes sea tas do nosso selow. Comedia na atribuigo de licenas, ali previa &exisncia de um nico 85.1490), Porto, INIC, 1990, 100 ala c6rdias —com a sua drea geogritia de acco perfeitamente delimitada?® e 0 nidmero de mamposteiros previamente definidos™, idemtficados e registados cm livros camaritios— devia-se, sobretudo, & quantidade e tipo de privilé- tos que dispunham e que, na prética, constitufam pesados 6nus para os con- celhos, que assim viam reduzido o niémero de contribuintes ¢ de servidores dos cargos piblicos", Nao surpreendem, pois, as tenses existentes*, quan- do nio o desrespeito pelas cartas négias que os mamposteiros deveriam trans- pportar consigo autorizando-os a pedir esmolas para as confrarias”. Numa sociedade onde dominava o privilégio e a excepeio, as situacdes «espe criadas pela propria Coroa em nada terio facilitado a gestio dos benefi isengdes que assistiam aos «pedidores» das Santas Casas", Pelas evidéncias documentais apresentadas parece poder concluir-se que, pelo menos nos finais da Idade Média, a mendividade e a vagabundagem estavam longe de serem fendmenos socialmente bem aceites. Pelo contritio, @ ainda que nao conceptualizada desta forma, a definicao social dos pobres merecedores encontrava-se jé interiorizada pelas populagbes. Deste grande ‘grupo faziam parte, como bem se sabe, os doentes, 0s velhos, os pobres en- ‘vergonhados. Mas também os peregrinos e aqueles que nao tinham trabalho, as criangas abandonadas, as vitivas, os 6rffos. Alguns presos e, seguramente, ‘mampostiro por bspado, devidamenteencarado, para ped a dias esmolas, sarrecadar as confers» dat cata de indulgéncas. Os faltosos deverian sex presos, erdendo 0 dinheiro {que transportssem consigo e 56 poderiam ser libertos cor autorizagio répia. (Ordenagdes ‘Mayuelinas, Lisboa, Fundagao Calouste Gllonian, lio Vt CHL, pp. 304-305, ° ‘So virios os exemplos que se encontram no vol. I da Poriugal Monumenta Misericor- larune, Nompeadamente, para Senne; Lanteg0; Lei e Alkobaca 5356 nio encontrimos essa referencia para Coimbra. CF. PMM, vol. 2, doe. 157 p. 283 ® A difculdade em encontae quem exereese 0 eargo deerminava Conrapartias («pee- neon), iguais aos dos mamposteirs dos catives, como refere a Misricédia de Lisboa em 1512 (PMM, vol Ill, doc. 166, pp. 290-291, 21 de Abril de 1512). Pouco depois &situapio cstendia-se a ouras Misricérdias do pats, nomeadamente & da Covi (doe. 168,10 de Maia {8 1512, p. 292) ede Santarém (do. 180, pp. 903-304, 7 de Janeiro de 1514), te. 3 0 que nio era exclusive das Clmaras, como se depresnde da carta enviada pelo ace- bispo de Brags, em 1546 aos abades,priores, cues eretows da Comarca de Ene Lima e Minho, solctando-thes que recebessem, ratassem benignarente e deixassem pedi esos ‘0s mamposeios da Miseridedia de Viana do Castelo na wa ines © conventon. (PMA, vol IV. doe. 10, pp 47-48). » algumas razes os asistam, Basa verifiar, por exemplo, que ene 1561 © 1568 2 ‘Camara de Braga reconhoceu e roystou de prvigis, tod eles individalizados e nowt natives, apresentados por mampestetes para Miserieddia de Braga ou para a remissio dos ativan Sapateiro, lvradores,qarves e mercadores, culos, sertaetts,fesvanaesen ‘etentores dak wliberdadeseprivilegioe»ierentes aos cargos (P&M, val. 3, doc. 102 250, 7 de Agosto de 1501), quase sempre a excepeuo de uma refertncia enconirada pars Cascais (em, Ibid, doc. 29 1861, Agosto 28) por tempo indetermnado S'Ndo sendo muito Frequent, ainda assim possivel encontrar orientagées de sentido ‘posto, conforme se refere no documento que rm Dezembro de 1514 atorzava a Misricér dia da Coviha a colocar mampostios até ses lguas depos do termo da via: «E esto sem embargo de quaesquer alvaraes que inhamos dado enguane pera gue te nin comsentehace Dyttorios» (PAM, vo. 3, doe. 187, p- 308). 101 os cativos. Gente efectivamente vulnerdvel, que a sociedade © as suas aulo- ridades reconheciam como frégeis. Para eles fundaram hospitais ¢ erigiram confrarias, distribuiam regularmente alimentos, ronpa e dinheiro, ¢, no me- nos importante, concediam acompanhamento espiritual. Mas em paralelo a estas percepcdes ¢ atitudes, o logro e o embuste eram condenados. E tinham rosto: eram os mendigos errantes, ou, nas palavras do povo, os pedintes ‘aque So andantes». O adjectivo usado para os identificar —«andantes» — & elucidativo do estigma que Thes impunham e da representacdo social que 0 suportava. E era a propria sociedade que thes tragava o perfil: gente que se recusava a trabalhar, mesmo tendo condigdes para o fazer, sendo por isso de presumir que vivessem enganando as populagées, roubando e mendigando apenas por preguica. ‘A descrigio do mendigo em permanente deslocago como um estranho ‘que procurava ter acesso aos recursos das comunidades, sem contribuir para a economia local, e, além do mais, como um agente de desorganizagio do ‘quotidiano, no sofreria alterac3o nos séculos seguintes. Como niio se alte- raria, de um modo geral, o sistema de «classificagio» dos pobres ainda que em contextos de crise econémica fossem as proprias autoridades a terem @ percepeio de que o limiar entre a pobreza e a mendicidade era facilmente transponivel ¢ que devia ser tido em conta, Mendigos e vagabundos no Portugal Moderno - entre Vives e Giginta A rede de Misericérdias que a partir do inicio do século xvt cobriu ex- tenses cada mais densas do territ6rio nacional contribuiu para uma certa uniformizacdo das priticas caritativas © assistenciais, ao mesmo tempo que dava apoio a um erescente nimero de necessitados. Todavia, o incentivo da Coroa 2 ctiagIo de misericérdias ndo alterou a pelitica do poder central no ue concerme aos mendigos e aos vagabundos. Antes, se assistiu a um reforgo da intervengio régia nesta drea, assente nos pressupostos tedricos formulados no século xiv. AS novas orientagdes do exercicio do poder politico, tendentes um maior controlo do espaco e dos seus habitantes, eram cada vez menos compativeis com a deambulago constante e com o desenraizamento das po- pulagties. Sem residéncia fixa, escapavam ao emergente Estado Moderno os Contribuintes e os homens para a guerra. Si, alids, esses valores que esto em destaque em vérias medidas ad- ministrativas tomadas por D. Jodo IIT, No que ao: mendigos e vagabundos diz respeito, hé dois diplomas que merecem particular destaque: um de 1538 e um outro de 1544. Em ambos os casos era uma maior eficdcia da aplicagdo da lei, especialmente em relagio & cidade de Lisboa, o objectivo perseguido, Na continuagao da Lei das Sesmarias, 0 alvaré de 1538 penalizava de forma particularmente severa a ociosidade, ou, 14s palavras do diploma, 102 qualquer «pessoa sad e sem aleijio tendo disposigfio para poder trabalhar, ou que tivesse beens e fazenda para razoadamente se poder manteer, pe- disse esmola publicamente». As penas indicadas para os embusteiros sio exemplificativas do espirito que animava o legislador: se 0 mendigo fosse ceseravo e mendigaste com © consentimento do seu senhor, este perdia-the 0 direito de propriedade, que passaria para o denunciante. Se actuasse sem © seu consentimento, seria acoitado publicamente com barago e prego pela localidade onde andasse mendigando. Se fosse homem livre dissimu- lando doenga, deveria servir o denunciante durante cinco anos, tendo ape- nas direito A ‘alimentagio vestuério. O seu proprietério —porque eta de luma quase escravatura que se tratava— poderia transaccioné-lo como bem. centendesse Mais ousado e completo seria 0 alvard de 4 de Novembro de 1544”, Reunindo varias leis dispersas, o poder central c'iava agora uma espécie de «Regimento dos Mendigos», que D. Sebastido identificaria como «Lei dos ‘Vadios». Sumatiando um documento que se esiende por varias paginas, 0 seu contetido pode organizar-se em duas grandes linhas de intervencao. Uma primeira dedicada as punigdes e uma outra que icentifiea 0s parfimetros para concessio de licencas para mendigar. ‘AS penas a aplicar aos prevaricadores aparecem numa hierarquia cumu- lativa, descrita de forma clara e bastante simpies: a primeira vez que os iransgressores fossem apanhados deviam ser presos, agoitados publicamen- te e expulsos da localidade onde fosse cometido 0 delito. A segunda vez seriam degredados perpetuamente para fora do reino. A terceita o degredo tinha o Brasil como destino, por um perfodo de 10 anos. A perda de bens, se existissem, a prisio ¢ os acoites, eram inerentes a cada uma destas puni- (ies. Um pouco mais complexo era 0 proceso conducente & concessio de licengas para mendigar. O modelo continuava a ser o medieval, desenvolven- do dois tépicos bastante antigos: a limitagdo do némero de pedintes, mesmo nite 0s deficientes e estropiados, ¢ a aposta na auto-subsisténcia dos indivi- duos através do trabalho. Candidatos imediatamente excluidos eram 9s que tinham algo de seu («fazenda») ou conhecimento de algum oficio. Nao importava se entre eles havia cegos, doentes, ou aleijados, impedidos de trabalhar pela sua situagio fisica, A merecer relevo a forma como a lei idava com os fisicamente dimi- ruidos, destituides de qualquer de propriedade. A repressio juntava-se a pe- . Situago igual se passaria com as mulheres, sea crianga tivesse mais de tiés anos. S6 os cegos portadores de licencas poderam ser acompanhados por um menino que os guiasse. ‘Ao restito grupo dos autorizados a mendigarem a licenca s6 seria con- cedida depois de apresentado certificado de que se tinham confessado. Com uum ano de validade, findo esse periodo o interessaco deveria desencadeat rovamente todos § procedimentos mencionados, reavaliando-se se havia condigdes para a concessio de nova autorizagio. Sera condicao de rejeigto ‘0 desconhecimento do Pai-Nosso, Ave-Maria, Credo ¢ Salve-Rainha, apenas aceite aquando da primeira licenea O elevado grau de burocratizagdo e controlo do >rocesso previa a exis: téncia de uma eserita propria, que registasse todos os dads que identificas- sem o pedinte: nome, idade, morada, naturalidade, enfermidade ou causa que justficase a atribuigdo da licenga. Regist-se, todavia, que em nenlnum caso seria possivel conceder licengas a estrangeiros, mesmo se as suas necessia- des fossem consideradas reais ¢as justficacdes «aceitiveis> ‘Mas nem s6 de coaretagées se compunha 0 diploma de 1544: a confraria da corte, encarregue da implementagio destas medidzs, deveria providenciar instalagdes —iluminadas € aguecidas—, onde os ped:ntes encartados pudes- sem pemoitar se assim o desejassem. Enire algumas particularidades dignas de registo, 0 facto de a difusio das directrizes constantes na lei se fazer aravés dos proprios pedintes —entre a 10 a 12 esecthidos para o efeito—, 0 forte incentivo & populagdo para que denunciasse todos aqueles que no ccumprissem as regras determinadas. ‘A procura da eficdcia das medidas mencionadas foi acompanhada pelo reforgo da aegio policiadora dos oficias régios, sobretudo em relagdo a Lis- 104 boa" —onde aos vadios portugueses se juntavam os estrangeiros, ciganos incluidos**, Mais protegidos estavam os que possuiam uma profissa0 e a qui- sessem exercer's. Menos de trés meses depois, nova ordem régia incumbia 0s corregedores do crime de Lisboa de devassarem, de seis em seis meses, 0s vadios sem officio», prondendo-os ¢ procedendo contra eles conforme as COrdenagdes*. O monarca actuava, lia-se no diploma, respondendo, uma vez ‘mais, 2 solicitagio dos povos, neste caso, dos representados nas cortes de Al- rmeitim, de 1544, que inclusivamente haviam sugerido como castigo a prisdo seguida de degredo para o Brasil”. Fosse por iniciativa régia, fosse por pressio das populagies, certo € que se exigia cada vez mais a0s funcionérios judivicis®, que viam as suas com- ppeténcias repressivas serem progressivamente alargadas™, Recuperava-se 0 prinefpio da Lei das Sesmarias da existéncia de uma rede de funcionérios ¢ informadores que (agora) deviam vigiar os baits, cada um dos pedintes € todos 0s locais que pudessem acolher vadios ¢ estrangeiros* ‘A pressdo social que as grandes cidades, e muito especificamente Lis- boa, sofriam com as vagas migratorias que a elas se dirigiam com maior intensidade em conjunturas de crise justficava, em parte, 0 agravamento das ‘medidas repressivas contra «os mendigos € 0s vagabundos», De acordo com a carta régia de 30 de Marco de 1546 os mocos jue da Beira ¢ Alentejo che- ‘gavam A capital, ecusavam-se a trabalhar, vagueando sem sentido, «@ se ffa- em ladroes ¢ tafues ¢ outros maiios costumes». Bem conhecidos eram os de- ‘sacalos que ocorriam nas tendas da Ribeira, onde pernoitavam, e que bastas vezes acabavam em prisio, onerando a Misericsrdia com gastos excessivos ‘com a sua alimentagao e despesas judiciais, E, de resto, a consciéncia de que 1 solugzo do problema da mendicidade e da vagibundagem podia nio passar ‘exclusivamente pela repressio, que se assiste em Lisboa a primeira de varias tentativas de criagio de instituigSes que reformassem pelo trabalho, Um pro- jecto que previa que a Miseriedrdia acolhesse e cuidasse dos mogos até aos "dem biden, primeira part, tuo X, lei. 32, (alvarde 1 de Fevereiro de 1545). pecar de extarem proibidos de entarem no reino, Mem, Tidem,quarta part,‘ to XI, les lp, 155, (Bei 24 das eortes, 1538). A carta de 6 de Novembro de 1558 concedia aos estrangetoe 20 dis para abandonaren o local onde fssem apanhads © 30 dis para sa rem do rein, Inn, iden, li IV pp. 157-15 "Yin 1563, pr alvard de [4 de Agosto, precsava-se definigto de estrngeiro: qualquer pessow ue snow tjos, ings © mos, paregio ser Armenss, Grego, Arabios, Pers ou t= Fras nagdes que so subjects 0 Turco det, idem ep 138 “Idem biden, primeira parte, ito X le Mp. 32, (evar de | de Fevereio de 1545) 2 Edad Fire de Oliveita, Elements para qhistdria do municipio de Lisboa, Lisboa, ‘Typographia Univeral, tomo I p. 546, nota | (do Livo I do Provimento ’ffsios). Ps [dem, bide. pp. 545546, (30.de Margo de 1546), (Tamm Duarte Nunes do Lio, op cit, quart prt lo XI, lei Ip, 137-15B%, cata de 6 4e Novernbro de 1558). io Date Nones do Lilo, op lt, guarta parte, ilo IH, lei IV p. 157-188, (arta de 6 de Novembro de 1358). ‘aro Fei le Oliveira, op ct, tomo I, pp. 69-70, 105 12 anos de idade sendo os mais velhos recolhidos e eolocados sob a tutela de ‘quem os acompanhasse no trabalho, castigando «os mal acostumados»" Jgnoramos se os mogos de Ribeira foram alvo ce acompanhamento so- cial e profissional por parte das insttuigies sugeridas. Pelo contririo, nao hi qualquer divide quanto ao endurceimento das leis contra 03 vadios © mendigos ao tempo de D. Sebastio. A fixagio das pessons 0 seu local de frigem toma-se uma quase obsessio legislativa, Repete-se que 0s que Va- ‘gueavam sem tomar amo ou trabalhar em oficio certo niio © poderiam fazer ‘por mais de vinte dias. E mesmo os pedintes encartados s6 eram autorizados a mendigar nos seus locais de origem ou reas de resdéncia. Querendo dai sai, teriam de se submeter 2 inspeceao camara, A identificagio dos acom- panhantes dos «cegos ou aleijados de tal aleijo que nfo possio andar sem trazer consigo alguma pessoa que os guie» voltava a ser exigida. A lei deter- Iminava agora que essas fungdes $6 poderiam ser executadas por pessoas do ‘mesmo sexo, abrindo excepydo para as mulheres, autorizadas & companhia dos seus filhos, desde que nao ultrapassassem a idade de catorze anos. Toda- via, mesmo na posse da licenga da edilidade, a drea g2ogrfica de deslocagio 10 poderia ir além das vine Iéguas.. ‘Nao eta s6 a restrigfo & mendicidade que se tomava mais apertada mas também as penalizagdes procuravam ser mais dissucsoras: quem fosse apa- ‘nhado a infringir a lei pela primeira vez seria publizamente agoitado e de- gredado por um ano para fora do lugar e termo de orde andasse a mendigat. 4 segunda vez, além dos agoites, estavaclhe reservado 0 degredado por um ano para Africa, A terceira, 0 degredo para 0 Brasil por 5 anos. No caso de se tratarem de estrangeiros, eram-Ihes concedidos 20 dias desde a publicagao do diploma régio para abandonarem o sitio onde fessem capturados, e em 30 dias deveriam sair do reino. Se fossem presos depois desse tempo sofee- riam as penas acima referidas, excepto no caso de possuirem oficio e traba- Tharem nele, uma questo recorrente nesta legislagio. No mesmo sentido da repressiio da mendicidade e vagabundagem ia a cordem para que os juizes, meirinhos e alcaides de todas as cidades, vilas € lugares do reino inspeccionassem, de 15 em 15 dias, as estalagens, hospitais as, verificando se neles se recolhiam algumas das pessoas com as sticas acima mencionadas. Em caso afirmativo, a priso deveria ser executada com base em testemunhos de «como os achario pedindo ot vax gando», que, no entanto, poderiam ser substituidos pelas perguntas directas 08 suspeitos®, Por alvard de 14 de Agosto de 1563 proibia © monarea que entrassem ‘os seus reinas pessoas que «nos trajos, lingoa e modo, paregiio ser Arme- nios, Gregos, Arabios, Persas ou outras nagdes que sio subjectas ao Turco Idem, tidem, tomo pp. 545-54 Duarte Nunes do Lio, op. ct, quarta pane lo XI, leiTV, pp. 157-158 (ear de 6 {e Noverbro de 1558) 106 Que fossem presas até se saber ao que vinham, que negécios pensavam tra- tar e quanto tempo pretendiam ficar, Se no fossem considerados espias ov vadios, ou acusados de algum crime, devia ser-thes concedido algum tempo para tratarem de seus negécios, sendo presos e degredados para as galés se 0 Excedessem, Da mesma forma, estavam Impedicos de mendigar © publicar indulgéncias autorizadas por breves ou bulas papais sem uma prévia andlise aos documentos de que eram portadores®, Exemplos prticos: os casos de Lisboa e ivora © hiiato legislative em matéria de vadios ¢ mendigos que se segue a0 final do reinado de D. Henrique € preenchido per noticias dispersas, e nada pacificas, de pestes e fomes sucessivas e de degradagio das condigdes de vida, num cendrio que é comum 2 generalidade da Europa dos finais do sécu- To xvi. E é procisamente em conjunturas de crise que se assiste a uma maior intervengo dos podetes locais no sentido de encontrar o equilibrio entre as directtizes gerais que emanavam da Coroa ¢ a necessidade de enfrentar espeeificas situagdes sociais. Nvio quer isto dizer que as autoridades locais ficassem mais sensiveis e tolerantes para com os mendigos e os vagabundos. © que parece ter existido foi uma a percepedio de que crises agudas, como as {que se Viviam no tltimo quartel de Quinhentos, empurravam para a mendici- dade gente que a cla nio recorreria em situagdes econdmicas mais estiveis. E esse sentimento que se colhe na missiva que Camara de Lisboa enviou ao rei em 1598: de todo 0 reino chegavam a Lisboa «companhias de homen: molheres € mininos, de que por virem mantides d’hervas e outros mant ‘mentos de tam fraca sustancia e ma calidade adoecio tantos, que jai 0s no podia curar 0 hospital real de todos os sanctos»“*, Nao siio il «os bandos de Mogos» que se passeavam pela Ribeira recusando-se a trabalhar, como fora registado em 1546, mas gente a quem a fome forcara a abandonar as suas terras e a procurar as grandes freas urbanas onde estavam concentrados os recursos em termos de cuidados de saide e de assisténcia social, ressionada a encontrar uma solucdo para o problema, até pela reconhe~ cida incapacidade de a Misericsrdia receber mais pobres no seu hospital, a edilidade, sem rendas, propde duas saidas: recorter ao aumento dos impos- tos, que prometia circunscrever a trés meses —um real por arritel de carne & dois por canada de vinho—, e a construczo de um hospital temporiio, utii- zando para o efeito trés mil cruzados que havian sobrado das obras da égua do tocio. Como medida preventiva, sugeria & Coroa que assim que chegasse pilo do estrangeiro (0 que havia na capital nfo sapria as necessidades de um dem, idem, bei V, p. 158 4 uno Freive de Oliveira, op lt, tomo Tl, (carta da emara de 18 de Abril de 159). pp. 100-108 107 més), providenciasse o seu envio & provincia tenando desta forma reter 0 fluxo migratério que, por certo, iria aumentar quando se soubesse que em Lisboa havia um espago que fornecia abrigo e pio aos pobres. ‘A maior preocupagio da Camara em relacio 4 esta gente que «em ma- nnadas anda por esta cidade pedindo esmola», nao era tanto 0 desassossego social que provocava —tanto mais que tinha por hébito entrar nas casas alheias—. mas porque, para além disso, represensava um perigo acrescido em termo de propagagio da peste. Poderd ter sido. na verdade, essa @ raziio invocada pelos médicos para fundamentar a opelc pelo hospital temporirio como se ter feito em 1575, acrescentam— em detrimento da expulsio que, por certo, teria maiores custos socias. Se as propostas da Camara foram do agrado geral dos governantes, 0 ‘mesmo nio se ter passado com o povo, sobre quem iia recair, afinal, 0 6nus do novo imposto, duplamente penalizado uma vez que se Ihe pedia que pro- vesse a0 sustento de pobres que, teoricamente, ni eram seus". Na pratica, se-lhe que pagasse pela sua seguranga e Satie. (© aumento dos protestos da poptlacio, de que Freire de Oliveira dé por- ™menorizadas noticias, a extensdo da epicemia, 0 ndmero de «gente pobre» que em Lisboa vagueava «sem remedio, e muitos meninos sem pais, € que ‘ao desamparo e fome morrem», e a incapacidade de a Camara providenciar a cringio do anteriormente referido hospital, levou o monarca, por carta de 12 de Janeiro de 1599, a propor nova altemativa: que se recolhesse toda aquela gente numa rua ou bairro de onde ndo pudesse sai, alimentando-os a custa dda fazenda real. Juntando-Ihe, se tal nao bastasse, o dinheiro que sobrara das mencionadas obras da canalizaeo bem como as ésmnolas da populagio, A so- lugiio seria transit6ria porque o mais «conveniente> seria embarcé-los «para © brazil levalos a povoar a terra que enire a parahiba e o rio grande, que se fora conquistou, ou a outra parte que melhor Ihe parecer». Limpos, e de ves tes novas, deveriam ser desembarcados em lugares onde niio pudessem co- ‘municar com os habitantes até se tera certeza de que estavam desimpedidos: fora da metiSpole a sua utilidade era incontestavel: «serdo de proveito depois para a povoar ¢ cultivar, lisboa ficaré desaliviada desta cargua»*®. Como antes, «desaliviar» os povos destas indesejiveis margens sociais continuava aser 0 objectivo perseguid, ‘Talver. por ser mais pequena ¢ os problemas terem outra escala demo- fica e social, ou talvez porque possufa um arcedispo com caracteristicas especificas no quadro portugués, Evora ensaiava, desde a década anterio aquilo que Lisboa se mostrava ineapaz de concretizar: a reclusao dos pobres ©. sua reeducagio pelo trabalho. O mentor da ideia tinha sido Miguel de Giginta, autor do Tratado de Remedio de Pobres, convidado pelo Arcebispo D, Teot6nio de Braganga para estudar o problema da mendicidade e da vaga- Idem, Pde, pp 106-107 ° Idem, sbidem: pp. 120-121, 108, bundagem em Evora. Do pensamento de um e da aeeio de outro nasceria, em 1589, « Irmandade e hospedaria da Piedade, ao que supomos, a primeira casa de reclusio de pobres existente em Portugal”. Foi no seguimento da fundacio da Piedade que em I de Junho de 1590 1D, Teoténio de Brigunca recebia un alvaré t6gi9 que no 36 repetia os seus argumentos como os de Giginta: os vadios e 0s mendigos causavam grande prejuizo aos povos e, apesar das penas previstas nas OrdenagGes, era preo- Cupante a «vastdo com que creciio neste Reino» semelhantes grupos. Um problema maior em Evora, devido ao transiomno que causava & Hospedaia a Piedade, porquanto tal sigificava uma reduyio nas esmolas que eram a sua base de sustentagio. A coneordincia do monara espanol com a legisla- ¢o anterior € evidente, por isso mesmo chama os corredores do crime © um aeaide responsablizando-os directamente pela exccugzo das referidas les. ‘Ales competia fazer «todas as dilgencis, e prises necessarias, e tocantes 20s ditos culpados>, estando previsias penalizagdes para o descuido na sua aplicagio". De uma forma muito directa 0 monarca apoiava a intervengao de , Teotsnio de Braganga que, por diploma de 31 de Julho de 1599, renova © corpo de «pididores» e alarga a sua érea geosrifica de actuagao®. Depois deste, seria a ver do alvari régio de 9 de Janeito de 1604, trasladado em Evora a 4 de Marco, fancionar como norma de enquadramento da actuagio, de D. Teoténio ¢ de outras autoridades locais que com ele parilhavam idénti- cas preocupactes. Identificado como Sobre os pobres que ande pedi, 0 diploma de 1604 comegava como quase todos os que o antevederam: apesar de as Ondenagdes determinarem os procedimentos a seguir contra quem mendigava sem as respectivas licengas, 0 nlimero «dos vadios e pedintes vaj em crescimento © em grande danno ¢ prejuizo dos moradores dos Lugares deste Reino espe- cialmente das cidades © majores pouoagois onde elles mais comcorrerem>. ‘A conjuntura impunha medidas mais eficazes ¢ limitativas. Reafirmava-se, {assim, a total proibigio da mendicidade sem licenga, mas acometia-se a sua concessio aos Corregedores ¢ Ouvidores das somarcas, ¢ aos provedores nos lugares em que os corregedores e ouvidores no entrassem. Seriam eles ‘0s responsveis por, em cada localidade, anunciarem por pregao piiblico 0 fexame a realizar aos candidatos a uma licenca de mendicidade, informando- 0s do dia e local definios para a realizagdo do referido acto. $6 0s cegos, 08 aleijados 0s velhos, impossibilitados de trabalhar, poderiam receber uma li- + Sobre 0 Hospici da Piedide, vd o nosso estudo, «Recluse e controle dos pobre: o lado esconhecido dt ssistencia em Portugal», Revista Portygueva de Histria, tomo XXXVI, ‘ol, Coimbra 2002/2003, pp. 527-540 ‘8 Biblioteca Pablica de Evora (doravante BPE), cod. C1X/2-8, 1°99. BPE, cod. CIX27.n°11 5 Jost ust de Andrade e Silva, Coleco Clvonelogica da Legislapdo Pormguect, Lisboa, Impeasa de J. JA. Silva, 1854, 1603-1612 p40. 5° BPE, cod, CXIX/-13 16. 61-655, cconca. Restrita a seis meses de duragiio ¢ a ser usada nos lugares e termos das localidades onde fossem concedidas. Depois desse tempo, a certidao poderia ser reformada desde que a situagio fosse avaliada e os pobres apresentassem comprovativo de que se tinham confessado na Quaresma anterior ‘Quem nao possuisse a licenga oito dias depois do anuincio do exame pi- blico e continuasse mendigando, seria preso pelos meirinhos, aleaide e qua- drilheiros. A punicdo, assente num processo sumrio, seguia os procedimen- tos comuns: condenaco com barago © pregio, agoites piblicos e degredo para 10 léguas do local onde fossem presos. Para melhor sucesso da lei, os ‘ulgadores» poderiam tomar, em cada comarca, um dos eserives da correi- ‘glo e provedoria, «dos mais diligentes e de confianga», para que os acompa- rnhasse. As demais justicas —meirinhos alcaides e quadrilheiros— deveriam «corter € vigiar> 08 lugares onde exercessem fungées, prendendo os prevari- ccadores. Se ndo cumprissem as suas fungOes com a responsabilidade ¢ dili- géncia que Ihes era exigida, deveriam ser suspensos das suas fungdes durante seis meses, «sem apelo nem agravon. ‘Uma breve andilise comparativa com a legislaedo anterior detecta trés novidades de alguma importincia na lei de 1604: a Coroa voltava a chamar asi a competéncia de fiscalizagio da mendicidade e atribuicao de licengas, tal como estava previsto na Lei das Sesmarias; o tempo da vigéncia das certidées era reduzido de um ano para seis meses; e, finalmente, previa-se a penalizago dos oficiais de justiga nao eficientes. ‘A par destas alteragbes, a reforma da justiga que estava em marcha re- distribufa, em Lisboa, a vigilincia dos bairros para um melhor controlo dos indesejaveis, entre os quais se inclufam os mendigos. No ponto 13 do regu- Jamento que antecedeu a Lei da Reformactio da Justiga especificava-se que 6s julgadores deveriam ter particular cuidado «de saber dos pobres do seu bairro, que pedem esmola, e proceders cada um delles, assi os corregedotes da corte e da cidade, como os juizes do crime, contra os que pedirem sem licenca, e em tudo 0 mais que se contem em uma provisdo minha, feita em 9 de Janeiro de 1604». Da mesma forma, deve-iam inspeccionar os que pediam com caixinhas e imagens e para santos, cettificando-se de que esta- ‘vam munidos das autorizagdes necessdrias mas, também, se viviam bem, se {inham oficio e nfo usavam dele porque preferiam mendigar, ese utilizavam as esmolas recothidas em beneficio préprio em vez de as entregarem a quem de direito. ‘A fome grassava pelo pais e a pauperizacio atingia niveis de grandes ddimensdes mobilizando as autoridades civis e eclesidsticas™. Os estrangeiros ® Callecgo Chronologca de Les Exramaganes posterio‘es & nove compilago do reno las Ordenages do Reino, publicadas em 1603, tome |, Com, na Real prensa da Unive- Sade, 1818, pp. 87-100. Como aeonteceria em Tomar, em 16 1627, 73), (sé Justine de Andrade e Silva, op. et, 1620- Ho ‘que acortiam a Lisboa tornavam-se alvos privilegiados da ira do poder mu- nicipal*, Numa carta da Camara ao governo certral, a edilidade fazia saber ‘que a cidade estava cheia de pobres estrangeiros que representavam, segun- do os médicos, um perigo para a satide publica uma vez que escapavam as inspecgoes. Dada a gravidade da situago, informava que iria repor a lei que obrigava os estrangeiros pobres a submeterem-se a0 exame do provedor mor dda satide, sob pena de prisdo e acoitamento, E conclufa informando que que- ria mandar apregoar a postura em causa para The dar execugtio, mas «porque hha muito se nao pratica, e nfo pareca novidade, avisamos a Vossas Senhorias, para que, quando isto Ié chegar, estejam V. S. Inteirados do que se passa, © n’esta conformidade devem ordenar aos corregedores da cérte ¢ mais justicas ‘a que tocar, déem outrosim execuedo é lei que sonre isso han. Na verdade é uma accio de forea politica, esta que a Ciara de Lisboa protagoniza e que a Coro aceita sem contestagio. Todavia, dois anos de- pois, o municipio assume, de novo, o insucesse das medidas anteriormente propostas. A repressio continuava sem conseguir alcangar os resultados pretendidos e os projectos de reformacdo pelo trabalho sucumbiam sem fi- hanciamento, O nimero de mogos vadios que vagueavam por Lisboa, «sem ordem nem ocupagdo de vida», erescia continuamente, nao tendo sido «bas- tantes os remedios que a camara d’antes usava»*, Nao desistia a Camara que apresentou & Coroa um novo projecto, A formacio profissional continuava a ser a suta ideia estraturadora —tanto mais que 0 reino precisava de mio~de- ‘obra— e a seu favor tinha o exemplo bem sucedidio de Madrid e da sua casa ‘cdos desamparados», onde homens desocupados aprendiam diversos oficios {que depois aproveitavam a repiblica, Resumindo, a Cimara propunha-se oferecer as instalagdes para a referida instituigo solicitando que © monarca providenciasse os meios de sustento dos rapazes. O edificio, que considerava de «muito capazm, tinha servido de casas de satide ao tempo da peste, e situava-se em S. Bento. Possufa, além dda quina, uma ermida —a Ermida de S. Braz—, que colocava & disposicio dos ditos mogos para que af Ihes ser ministrada a doutrina crista ¢ os bons costumes necessérios & formagiio de bons cidados. Entre as artes que ali po- deriam ser ensinadas, recomendavam as da artiltaria e de marear, o que hes permitiria, depois de acabada a aprendizagem, embarcé-los como marinhei- ros e grumetes. 5 Fuduardo Freie de Oliveira, op cit. tomo I, pp. 69-70, S [A postura cm causa, que Freire de Oliveira localiza ene 1578-80, por altura ds peste ‘at um pooco aes, resulta de um acordo entre a Canara e 0 referido Provedor Mo dt Sade determinando, pesiarens «obrgatoriedade do exame mencionao, sob pens de pi- ‘Soe ogltamentpablia tas as vezes que os estrngets fossem apanhados. Aproveitava Sind, para ftere gue destino iatico esta rservado as naturais do eino que incrressein bo mesmo deli, undo Fire de Oliveira, ap cit, tomo Ith, pp. 18184, um Contas feitas, 0 investimento da Cimara contabilizaria os 200 000 sis, aanuais. Tratava-se agora de encontrar formas de financiamento do seminério, para além do suposto contributo régio. Ora, sende a obra tio pia e necesséia, considerava a edilidade que o rei poderia indiear aos atcebispos, bispos ¢ ceabidos que direccionassem as suas esmolas anucis para a nova instiuigao” © mesmo deveria acontecer com o sobejo das rendas da Universidade de Coimbra. ‘Mas se em relagio & Academia a Camara nfio aduz, argumentos que justi- ficassem a sua contribuigao financeira, © mesmo nio acontecia com a Iereja, sendo duas as razées apresentadas para demonstrar a l6gica da sua proposta. Uma de ordem econémica, outra de natwreza morale religiosa. Em primeiro lugar, a proveniéncia geogrtica dos utentes do Seminsrio, que seriam, nas suas palavras, «de todo o reino». Daf que chamar os bispos e 0s arcebispos ‘a contribuir mais no eta do que acometer a cads «districto» a obrigagao de sustentarem as suas gentes. As principais receitas deste grupo provinham, ‘como bem se sabia, dos dizimos. Esta seria uma forma de, em pate, os fazer voltar As populagdes contribuintes. A segunda razio assentava, como nio po- dia deixar de ser, nos princfpios ideolégicos que sustentavam as praticas da assisténcia: a caridade ¢ a instrugdo na f6, argumentos bastantes «t que nio podem os prelados deixar de acudir, como d’elles se espera». Bem vistas as coisas, a proposta de seminésio apresentada por Lisboa combinava a reclusio com o degredo, ou melhor com uma nova variante de degredo, este mais especializado, A auséncia de gplguer referencia a Miguel de Giginta ou até a0 Hospicio da Piedade de Evora demonstrava também quio curta era a mem6ria dos homens e das insttuigdes. Desconhecemos em absoluto 0 percurso deste projecto mas & provével ue ndo tivesse passado de mais uma utopia, No dia | de Abril de 1631 a cidade disponibilizava mil cruzados em milho e centeio para serem repar- tidos pelos seus pobres ¢ voltava a insistir para que os curas das freguesias fizessem listas dos necessitados para que a distribuigio fosse realizada com ‘maior racionalidade e justiga. Rois que serviriam: também para entregar As pessoas nobres e ricas aos mosteiros para que baseassem neles as esmolas {que voluntariamente costumavam dar’. O discurso estava a mudar, como fac cilmente se conclui. Um més depois, em «aperto de fome e peste», a Camara voltava a langar o repto & Misericérdia pedindo-Ihe que fosse ela a fazer a referida distribuigio, até porque os mogos desamparados e de pouca idade que pululavam pela cidade estavam a adoecer de Febres malignas acabando © Sugeram sinda qu as esmoas as condenagées dos desembargudores da Casa da Supl- caste do jugar ges, gue coma cram pias 0 Obs pis, psusen er éanalizadas pas este seminsro, 1 auardo Freire de Oliveira, op cit tomo IL. pp. 422-423, Nu auséncia desta listagens Para o século x00 estamos neste momento a wabala, para Setscenos, a Relagdo Universal «das Pessoas Pobres,Reclhidase Bem Morigeadas, que moran nas Parvoguias desta Cidade de Lisboa, Lisboa, Na Oficina de Antinio Rodrigues Galhand, 1786, por morrer no seu hospital. Enquanto isso, a Coroa insistia na repressdo: era necessério ndo descuidar o controle visitar amitide eas casas de jogo e ‘utras partes aonde costumam acudir homens vadins, que no tern occupagso conveniente, nem estio assentados por soldados», arendendo os prevaricado- res e degredando-os para a india’, A.questiio dos ciganos Tendo provavelmente entrado em Portugal 2a mesma altura em que chegaram a Castela, ou seja, jf para os finais do século xv, sao da década de 20 do séeulo seguinte as primeiras referencias literdrias™ e legislativas de o monarca zelar pela ‘ordem plilica, Ou seja, 6 argumento usado nas leis que promulgava contra 2 dem, idem, pp 436-537, ‘© Bxeepto se fossem ofciais mecdnicos, uma ver que esses deviam fica no sino, CF. Joss Susting de Andrade Silv, o,f, 160-164, p. 16 1 Gil Vicente, Faysa das Ciganas, 1521 041525, 43 0s vadios. Das queixas das populagées contra os ciganos apenas a referencia as «muitas feiticarias que fingem saber, em que 0 povo recebe muita perda ¢ fadiga®, sobressain das que, pelo menos desde 0 século xiv, 0 rei recebia contra os «andantes». A lei seguinte, a de 1538, que precede e prepara o jé Telerido «Regimento dos Mendigos», ao especificer que as suas determina- ‘ges, para além dos falsos mendigos, também visavam os ciganos, introduz tim elemento novo: e «outras pessoas de qualquer nagZo que andassem) ow Vivessem como ciganos»®. Apesar de subtil, esta a teracao no discurso pres- supunha que o legislador reconhecia o nomadismo como um tipo de vida ccaracteristico dos ciganos. E a este ja hi muito que as populagdes tinham associado um conjunto de actividades desteguladoras do seu quotidiano, Do- ravante, todos 0s diplomas condenando a vadiagem teriam igualmente como alo, «os que vivessem como ciganos» ‘Na segunda fase —que basicamente se situa na segunda metade do sécu- lo xvi— sem que se alterem os pressupostos anteriores, &, todavia, a questo religiosa que mais se realca. O problema central era 0 do avango do império Otomano que, sob o comando de Solimao, o Magnifico, temtava tomar a Eu- ropa. A volta do Papa, 2 Santa Liga procurava combater 0 «infiel» e a Espa- nha tomava-se paladina da luta contra o Isiao, que culminaria com a Batalha do Lepanto, em 1571, considerada a mais importante vit6ria dos cristios desde a conquista de Granada, em 1492. Nao estranha por isso que ap6s 0 diploma de D. Joao III (1538), 0 de 14 de Agosto de 1563, condenando a falsa mendicidade e a vadiagem, especifique que, em caso algum, seriam autorizados a entrar no reino indi- viduos provenientes da Arménia, Grécia, Arabia, érsia, «ou outras nagoes que sao sujeitas ao Turco». A estes, 0 diploma de 1604 juntaria os «mou- riseos de Granada», reflex, por certo, dos receies dos reis espanhéis que temiam desde 1565 uma insurreigio mourisca sinoronizada com uma inva- siio turea, na sequéncia da rebeliao contra os cristdos, igrejas e sacerdotes de Granada ‘Nos dois diplomas, 1563 e 1604, os ciganos marcavam presenga, lids, por bula de 1568, 0 Papa Pio V proibira-os nos territrios da Igreja, Catélica. Provenientes de terras dominadas pelos Turcos, os ciganos eram agora considerados um potencial problema religioso que se juntava aos conhecidos problemas sociais. As deportagdes de ciganos que a Espanha @ a Franca ordenam para as colsnias por esta altara devem, precisamente, ser contextualizadas no ambito da eruzada contra os infigis que ameagavam © Mediterraneo. A situagio religiosa nao anulava, contudo, a questo s0- "Joel Sertlo (coord), Diiondrio de Hiséria de Portugal Livasia Figustinhas Porto, ‘fa, yo Il, woesbulo wciganos» '®Duaite Nunes do Lio, op. ct, quart parte, ule XI, le I, p. 185, (lei 24 das eon 1538), Idem, siden. eV, p. 158 (alvari de 14 de Agosto de 1563), ua cial: a referéneia nos mesmos documentos aos mendigos portugueses que vivessem como ciganos indicia que a deambulacio e o modo de vida a ela associada continuavam a ser centrais. Tanto mais que a conjuntura econé- mica depressiva, potenciada por pestes sucessives que flagelavam 0 pais ‘desde 08 anos 70, aumentava 6 medo clas populagoes, que se sentiam cada vez mais ameagadas. Nesse sentido, a lei de 28 d> Agosto de 1592 que dé 405 ciganos quatro meses para sairem de Portugal ou se fixarem num lugar, proibindo-os, sob pena de morte, de viverem em ranchos ou quadrilhas, prenuncia ja a tltima fase do relacionamento institucional com os ciganos. Anda que saibamos que as quesides religiosas continuaram a ter importan- cia, elas ngo voltariam a ser sugeridas. De futuro, a lei, como as popula- des, dividir-se-ia entre periodos de violenta repressio contra os ciganos e hipoieses de integragao social. E certo que se assiste, no inicio do século Xvi, a um agravamento das penas contra os ciganos. Contudo, quando analisidas em detalhe, elas nao diferem substancialmente das que 0 Regimento dos Mendigos estipulara, em 1544, para os que insistissem em mendigar sem licenca para o fazer. O que distingue as duas situagdes sociais —a dos mendigos e vadios «que viviam ‘como ciganos» e os ciganos propriamente ditos~ & facto de as autoridades assumirem que estes dispunham de solidariedades grupais muito fortes que ‘0 protegiam das justigas régias. A que se juntava, segundo os documentos oficiais, a conivéncia de algumas autoridades que Ites passavam falsas cartas de residéncia, permitindo-Ihes permanecer no pais quando na realidade nto possuiam morada fixes Reconhecendo que as penas anteriores nao tinkam sido suficientes para 6s incentivar a sair de Portugal, a lei de 1606 fez com que 0 degredo pas- sasse & ter efeito logo na primeira priso, subindo a sua duragi a cada nova detengio: de trés anos para seis anos se fossem capiurados pela segunda vez, ddez anos &terceira. O monarca apelava a répida actwagio das justigas porque, eserevia, assim 0 exigia

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