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Editorial
Sofia Miguens & Sara Bizarro
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Intelectu no 9 - Outubro de 2003
Resumo
O objectivo deste artigo é compreender como devemos abordar
as questões da racionalidade teórica, ou racionalidade nas
crenças, numa situação, como a presente, em que o
conhecimento é objecto não apenas da filosofia mas também de
várias ciências cognitivas. Para isso será necessário considerar
questões meta-epistemológicas, i.e. questões relativas à forma
de fazer epistemologia, antes de considerar questões
propriamente epistemológicas, nomeadamente questões
relativas á natureza da justificação. Os filósofos americanos A.
Goldman e S. Stich, que procuram reformular a tarefa da
epistemologia à luz das investigações sobre cognição, servem-
me de orientação. Numa primeira parte do artigo descrevo a
forma como Goldman (Goldman 1986) concebe as relações
entre epistemologia e investigações cognitivas e a sua teoria da
natureza da justificação, incluindo as concepções de Regras-J
(regras justificativas), critérios de correcção e teste do
equilíbrio reflectido. Numa segunda parte discuto um aspecto da
proposta de Goldman, a relação entre o teste do equilíbrio
reflectido e a ideia segundo a qual a tarefa epistemológica se
reporta ao conceito de justificação implícito no pensamento e
linguagem comuns. Baseando-me no ataque de S. Stich à
'epistemologia analítica' (Stich 1993), concluo que, embora a
proposta de Goldman represente um passo em frente
relativamente a um certo apriorismo da epistemologia, a ideia
de ligar definitivamente a noção de justificação com a
linguagem e o pensamento comuns choca com os princípios
dessa proposta. Numa terceira parte do artigo sugiro que a
teoria pragmática da avaliação epistémica de Stich (Stich 1993)
constitui uma melhor proposta quanto às repercussões das
investigações cognitivas no trabalho do epistemólogo.
Argumento, com base na teoria de Stich, que a epistemologia
feita à luz dos estudos científicos da cognição não deve (i)
restringir a concepção de justificação à linguagem e
pensamento comuns nem (ii) presumir que os agentes
cognitivos eles próprios querem saber se as suas crenças são
verdadeiras e os seus raciocínios racionais.
Conclusão.
Recordo o principal propósito deste artigo: tratava-se de
compreender como devemos abordar as questões da
racionalidade teórica, ou racionalidade nas crenças, numa
situação, como a presente, em que o conhecimento é objecto
não apenas da filosofia mas também de várias ciências
cognitivas. Admiti à partida que seria necessário considerar
questões meta-epistemológicas, i.e. questões relativas à forma
de fazer epistemologia, de forma a saber que tipo de
investigações deveria procurar hoje um possível interessado em
questões relativas à natureza do conhecimento, a filosofia ou a
ciência cognitiva. Contra a possível apologia da transmissão do
testemunho da filosofia para a ciência cognitiva, avancei a
hipótese de acordo com a qual a presença da ciência cognitiva
não justifica o afastamento da filosofia. Ela exige no entanto
uma reformulação da tarefa epistemológica tradicional. Antes
de mais, as investigações cognitivas revelam o irrealismo de
concepções idealizadas dos agentes cognitivos (inscritas
tacitamente tanto na tradição filosófica como em teorias formais
da cognição) e fornecem dados quanto a arquitectura e
processos cognitivos de agentes específicos, dados esses que
devem constituir o enquadramento das questões quanto a
racionalidade e justificação. As investigações cognitivas não
satisfazem só por si, no entanto, o propósito central da
epistemologia 'orquestrada pela filosofia', para usar a expressão
de Goldman. Esse objectivo é compreender o direito que os
agentes têm (ou não têm) às suas crenças, e portanto
compreender a normatividade envolvida na justificação. Dado
que o propósito da epistemologia é avaliar o direito às crenças e
dado que essas crenças devem ser consideradas como produto
de arquitecturas e processos determinados, a serem descritos
pelas investigações cognitivas, aceitei a divisão de trabalho e a
complementaridade entre ciência cognitiva e filosofia proposta
por Goldman. No entanto, a proposta de Goldman quanto à
natureza da justificação não me parece igualmente pertinente.
Penso que Stich está certo quando ao considerar a análise de
Goldman como um exemplo de epistemologia analitica,
oferecendo um resultado 'paroquial e conservador'. Mas o facto
de não restringirmos a 'justificação' ao conceito inscrito no
pensamento e linguagem comuns e revelado por procedimentos
de análise não nos impede de tentar compreender a
normatividade envolvida na justificação. O pragmatismo de
Stich é precisamente uma proposta de enquadramento para a
compreensão de tal normatividade, ao propôr como 'entrada' na
teoria da avaliação epistémica a ideia segundo a qual o que o
agente cognitivo quer com os afazeres cognitivos é atingir os
seus fins, sejam estes quais forem, e não atingir 'a verdade'.
Como seria de esperar do pragmatismo, a proposta de Stich
remete as questões da racionalidade teórica (em que devemos
acreditar?) para as as questões para a racionalidade prática (o
que valorizamos? o que nos motiva a agir?). Ressalta assim
desta incursão pelos debates meta-epistemológicos, como
conclusão geral para o Projecto de Investigação, que as
questões da racionalidade prática não podem ser dadas como
resolvidas no tratamento das questões da racionalidade teórica:
elas estão claramente em jogo na forma de conceber a própria
tarefa da epistemologia e o estatuto de uma teoria da avaliação
epistémica. A divisão habitual dos estudos da racionalidade em
racionalidade teórica e racionalidade prática mostra assim ser
mais operacional do que substancial. Um relato pragmatista
dar-nos-á uma visão totalmente diferente da forma como as
questões epistemológicas se relacionam com aquilo que nos
importa. É à luz destes princípios que devemos ver duas
conclusões finais, que dizem respeito ao enquadramento da
investigação acerca de questões da racionalidade teórica. A
primeira é a seguinte: precisamente porque a arquitectura e
processos cognitivos de agentes são fulcrais numa teoria da
avaliação epistémica, uma epistemologia que leve em
consideração os estudos científicos da cognição, embora
visando a justificação e nisso diferindo das investigações
cognitivas, não deve restringir a natureza da justificação
(justifiedness) à linguagem e pensamento comuns. A segunda é
que não podemos, pura e simplesmente assumir à partida,
apenas porque isso é vantajoso num contexto de teoria
epistemológica, que enquanto agentes cognitivos valorizamos
intrínsecamente ter crenças verdadeiras e raciocinios racionais.
Antes de nos pronunciarmos nesse sentido precisamos de saber
primeiro o que é valorizar alguma coisa e em seguida como é
que esse valorizar se relaciona com as nossas atitudes
epistémicas e os nossos inquéritos.
Notas
(1) Seria mais correcto dizer que as propostas epistemológicas
pelas quais Goldman é mais conhecido (as propostas fiabilistas)
foram também alteradas em alguns pontos. Susan Haack (cf.
HAACK 1993, 139-157, The Evidence Against Reliabilism) fala
mesmo de três versões do fiabilismo de Goldman (a versão de
What is Justified Belief?, de 1979, a versão de Epistemology
and Cognition, de 1986 e a versão de Strong and Weak
Justification, de 1988). De qualquer modo, interessa ter
presente que de acordo com o fiabilismo o estatuto epistémico
favorável de determinadas crenças se deve à sua relação com a
verdade, por exemplo devido ao facto de terem sido produzidas
por processos fiáveis (reliable). Assim sendo, segundo os
fiabilistas, o conceito de justificação é pelo menos em parte
causal e deve ser analisado em termos da quantidade ou da
ratio de crenças verdadeiras produzidas por determinados
processos psicológicos de agentes. Para alguns exemplos
importantes de teorias fiabilistas da justificação epistémica cf.
David Armstrong 1963, Belief, Truth and Knowledge, Fred
Dretske 1969, Seeing and Knowing, Fred Dretske 1971,
Conclusive Reasons e Robert Nozick Philosophical Explanations.
(2) É costume dizer, tendo em conta a definição tripartida de
conhecimento, que a condição-Justificação é a condição que
garante que, em casos nos quais consideramos existir
conhecimento, a condição-Verdade não está apenas
acidentalmente ligada com a condição-Crença: não falamos de
'conhecimento' nos casos em que algo de verdadeiro é
acreditado arbitrariamente, i.e. sem base em provas, por um
sujeito.
(3) Enquanto teóricos da verdade Dummett e Putnam defendem
respectivamente um anti-realismo e um realismo interno.
(4) Epistémica primária é a expressão que Goldman utiliza para
referir a epistemologia normativa individual, que envolve a
avaliação dos processos psicológicos, por contraste com a
epistémica secundária, que avalia não já processos mas
métodos. A distinção entre processos e métodos é importante:
processos são características psicológicas básicas da
arquitectura cognitiva dos agentes, métodos são formas
explícitas de lidar com estes processos, i.e. 'regras para a
direcção do espírito', a observar em inquéritos localizados e
controlados, por exemplo quando se faz ciência. A epistémica
dita secundária trataria assim, segundo Goldman, do tipo de
problemas metodológicos usualmente considerados como
pertencendo ao domínio da filosofia da ciência.
(5) Cf. CHERNIAK 1986, Capítulo 3, Rationality and the
Structure of Human Memory. Cherniak faz notar que até mesmo
o modelo da teia de crenças avançado por Quine em Two
Dogmas of Empiricism, fazendo supostamente parte de um
programa de naturalização da epistemologia, é cognitivamente
irrealista, ao assumir a possibilidade de reajustamento
'automático' da totalidade das crenças em caso de 'evidência
contraditória', i.e. de conflito na periferia da teia das crenças (é
verdade que Quine não está a falar de agentes cognitivos
individuais e sim da totalidade dos conhecimentos da espécie,
mas onde se supõe que estes 'residam'?). Outras formas de
'irrealismo' são, por exemplo, as suposições de que (i) um
agente extrai todas as consequências das crenças que tem, (ii)
um agente navega sem restrições na informação que tem
armazenada na memória, ou (iii) um agente dispõe de um
tempo ilimitado para computações.
(6) Considere-se por exemplo o seguinte: mesmo que o corpo
de crenças contivesse apenas 138 crenças, o que, apesar da
dificuldade em individuar as nossas crenças, parece sem dúvida
pouco..., a tabela de verdade teria 2138 linhas (Cherniak 1986:
93).
(7) Repare-se que processos no sentido de Goldman estão
totalmente fora da província da lógica e fazem, precisamente, a
psicologia 'entrar' na epistemologia.
(8) Para uma introdução à psicologia do raciocínio e a descrição
das experiências e resultados dos estudos referidos, ver por
exemplo NISBETT & ROSS 1980, KAHNEMAN & TVERSKY 1982,
BARON 1988, DAWES 1988, PIATELLI-PALMARINI 1994. Uma
busca em sites de psicologia é recomendável, por possibilitar o
contacto directo com experiências. Relativamente aos casos
concretos que Nisbett tinha em mente, eles são os seguintes. A
tarefa da selecção, um dos casos mais estudados na psicologia
do raciocínio, consiste basicamente numa situação em que
sujeitos estão perante objectos de escolha (por exemplo quatro
cartas em cima de uma mesa) e um princípio geral é fornecido
(por exemplo: 'Se uma carta tem uma vogal de um dos lados,
então tem um número ímpar no outro lado'). As faces expostas
dadas cartas revelam por exemplo E, C, 5,4. Então é proposta
uma tarefa prática: Indique que cartas têm que ser verificadas
para determinar se o princípio é verdadeiro. Uma percentagem
significativa de sujeitos falha. As experiências que foram
interpretadas como revelando a frequência da falácia da
conjunção dizem respeito a raciocínio probabilístico e consistem
basicamente no seguinte: é pedido a sujeitos que elaborem
uma lista ordenada, de acordo com as probabilidades atribuídas
à ocorrência de eventos cujas descrições são fornecidas.
Verifica-se que é muito comum que os sujeitos considerem
como mais prováveis conjunções do que frases componentes
dessas conjunções (por exemplo, 'Linda é bancária e activa no
movimento feminista' como mais provável do que 'Linda é
bancária' após uma descrição como 'Linda is 31 years old,
single, outspoken and very bright. She majored in philosophy'.
Obviamente ninguém pode ser bancária e activista no
movimento feminista sem ser bancária). O raciocínio comum
representa uma violação tão flagrante da teoria das
probabilidades, ocorrente quer em sujeitos não treinados em
estatística quer em sujeitos treinados, que clama por
explicação. Para uma explicação possível do 'mau raciocínio'
nestes casos e noutros (como aqueles em que sujeitos ignoram
probabildades prévias - por exemplo médicos fazendo
diagnósticos de doenças - e sentem excesso de confiança nas
suas próprias estimativas). cf. Samuels, Stich, & Tremoulet,
Rethinking Rationality - From Bleak Implication to Massive
Modularity, trad. port. de Tomás Carneiro no Arquivo On-Line
do Projecto.
(9) Stich também não aceita as sofisticações do equilíbrio
reflectido que são o equilíbrio reflectido amplo (i.e. que passa
por ajustamento às concepções metafísicas, éticas, etc do
agente), proposta por exemplo por J. Rawls no âmbito da teoria
da justiça, e o equilíbrio reflectido de especialistas.
(10) Recorde-se que se Goldman não leva muito a sério na sua
teoria da justificação a questão da racionalidade, ele assume,
em contrapartida, que a verdade é qualquer coisa como 'um
valor intrínseco que procuramos alcançar com os nosso
inquéritos'. Para Goldman, como para muitos outros autores,
naturalmente nós queremos ter crenças verdadeiras. Isto é
aparentemente compatível com aceitar uma 'noção não
epistémica de verdade'. Stich não aceita um tal ponto de
partida na sua teoria da avaliação cognitiva. Podemos ver o
diferendo entre ambos como dizendo respeito ao que se deve
tomar como mais básico numa teoria da avaliação epistémica, a
verdade ou a racionalidade.
(11) Para a defesa de Goldman quanto às acusações de
circularidade endereçadas ao fiabilismo, cf. Goldman 1986:
116-121.
(12) A tendência que muitos filósofos, nomeadamente filósofos
da mente e linguagem (Quine, Davidson, Dennett, Fodor, etc),
têm de proclamar que o mau processamento cognitivo é
conceptualmente ou biologicamente impossível exaspera Stich.
Segundo Stich, se assim fosse a investigação empírica do
raciocínio e dos defeitos deste, bem como as propostas de
melhoramento, seriam impossíveis e o próprio esfoço de
articular uma teoria normativa da cognição tornar-se-ia absurdo
(da forma como Stich concebe a epistemologia, a própria
epistemologia seria impossível). Acerca deste assunto, cf.
MIGUENS 2002, Agentes racionais e irracionais - quanta
racionalidade é necessária na filosofia da mente? (Arquivo On-
Line do Projecto).
(13) Susan Haack é totalmente céptica quanto a esta ideia de
Stich, considera que ele não começa sequer a dizer em que
consistiria um tal melhoramento.
(14) Chamo psicologia evolucionária ao programa de
investigação da mente como um conjunto de módulos
darwinianos, que vieram a ser inatos através de selecção
natural e que são adaptações, embora possam não ser, no
presente, adaptativos. Os módulos que interessam a psicologia
evolucionária são estruturas cognitivas inatas e portanto traços
universais da mente humana, determinadas por factores
genéticos. Eles são mecanismos computacionais, específicos de
determinados domínios (domain-specific).
(15) Cf. SAMUELS, STICH & TREMOULET, Rethinking
Rationality, Arquivo On-Line do Projecto. Desde logo poderemos
encontrar uma forma de reinterpretar os resultados da
psicologia do raciocínio que deram lugar a conclusões
pessimistas sobre a racionalidade humana. À ideia de acordo
com a qual as pessoas não seguem regras ou princípios
normativamente apropriados para lidar com problemas como
por exemplo a tarefa de selecção poderemos contrapôr o
seguinte: a performance das pessoas melhora dramaticamente
(é isto que os resultados empíricos mostram) quando elas
enfrentam versões do mesmo problema que os nossos
ancestrais teriam enfrentado no Ambiente de Adaptação
Evolucionária (é o que aparentemente se passa por exemplo
com a 'formulação' da tarefa de selecção nos termos de
detecção de embusteiros - cheaters - em cenários sociais, por
constraste com versões abstractas como a atrás referida, com
cartas, números e letras).
Bibliografia
BARON, J, 1988, Thinking and Deciding, Cambridge, Cambridge
University Press.
CHERNIAK, C., 1986, Minimal Rationality, Cambridge, MA, MIT
Press.
DAWES, R., 1988, Rational Choice in an Uncertain World,
Orlando, Fl., Harcourt Brace.
GOLDMAN, A., 1986, Epistemology and Cognition, Cambridge,
MA, Harvard University Press.
GOLDMAN, A., 1992a, Reliabilism, in Dancy, J & Sosa, E., A
Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell, 1982.
GOLDMAN, A., 1992b, Liaisons: Philosophy Meets the Cognitive
and Social Sciences, Cambridge MA, MIT Press
GOLDMAN, A., 1993, Philosophical Applications of Cognitive
Science, Boulder, Westview.
GOLDMAN, A., 1999, Knowledge in a Social World, Oxford,
Oxford University Press.
GOLDMAN, A., 2002, Pathways to Knowledge, Private and
Public, Oxford, Oxford University Press.
GOLDMAN, A., 2003, Epistemic Folkways and Scientific
Epistemology, in P.K. Moser & A. Vander Nat, Human
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HAACK, Susan, 1993, Evidence and Inquiry - Towards
Reconstruction in Epistemology, Oxford, Blackwell.
HARMAN, G, 1999, Rationality, in Reasoning, Meaning and Mind,
Oxford, Oxford University Press.
KAHNEMAN, D., SLOVIC, P. & TVERSKY, A. (eds.), 1982,
Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases, Cambridge,
Cambridge University Press.
NISBETT, R. & ROSS, L., 1980, Human Inference: Strategies
and Shortcomings of Social Judgment, Eaglewood Cliff, NJ,
Prentice Hall.
PIATELLI-PALMARINI, M., 1994, Inevitable Illusions: How
Mistakes of Reason Rule our Minds, New York, John Wiley and
Sons.
QUINE, W, V, 1969, Epistemology Naturalized, in Ontological
Relativity and Other Essays, New York, Columbia University
Press.
RORTY, R., 1979, Philosophy and the Mirror of Nature, Princeton
NJ, Princeton University Press.
SAMUELS, R., STICH, S. & TREMOULET, P.D., no prelo,
Rethinking Rationality: From Bleak Implications to Darwinian
Modules, (trad. port. de Tomás Carneiro, in Arquivo On-Line do
Projecto de Investigação Racionalidade, Desejo, Crença, em
www.letras.up.pt/df/if/gfmc/filosofia_da_mente.html)
STICH, S., 1983, From Folk Psychology to Cognitive Science
Cambridge MA, MIT Press.
STICH, S., 1993, The Fragmentation of Reason, Cambridge MA,
MIT Press.
STICH, S., 1988, Reflective equilibrium, analytic epistemology
and cognitive diversity, Synthese 74, 391-413.
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Intelectu no 9 - Outubro de 2003
1. Princípios
Os princípios são regras gerais de acção às quais chegamos
através de razões e crenças; os princípios de cada pessoa
podem ser reconhecidos olhando para as acções passadas dessa
pessoa, e têm uma função social essencial, na medida em que
nos permitem prever o comportamento dos outros de uma
forma mais ou menos fiável. Os princípios que cada um defende
fazem parte da sua identidade e dão uma determinada
coerência à nossa vida, permitindo também a nós próprios
fazermos previsões sobre o nosso comportamento futuro. A
estas características e funções gerais dos princípios Nozick
acrescenta uma a que dá um relevo especial: os princípios
permitem-nos ultrapassar tentações quando tentamos atingir
determinados objectivos.
A racionalidade é deparada com o problema das tentações
quando existe um objectivo que se quer alcançar a longo prazo
que é incompatível com outras coisas desejáveis mais
imediatas. Alguns estudos mostram que nós preferimos muitas
vezes recompensas mais imediatas, mesmo que sejam mais
pequenas, a recompensas maiores no futuro. Nestes casos o
tempo faz alterar a atribuição de utilidade que fazemos a uma
acção menos desejada mas mais imediata quando comparada a
uma acção menos imediata mas mais desejada. Para contrariar
esta tendência utilizamos vários princípios que nos guiam na
nossa tentativa de atingir o objectivo desejado, evitando as
tentações que nos desviam desse objectivo. Uma vez adoptado
o princípio evitamos quebrá-lo, porque mesmo uma só instância
em que o princípio é quebrado pode simbolizar para nós o
abandono total do princípio. Nalguns casos é possível sucumbir
à tentação e manter o princípio de uma maneira geral, mas em
muitos casos os princípios funcionam por nos ajudarem a
excluir completamente a execução do cálculo de utilidade
perante a recompensa imediata, são uma forma de "traçar uma
linha" para lá da qual não são admitidos cálculos de utilidade.
A discussão acerca da forma como os princípios evitam
tentações leva Nozick a introduzir o tópico do valor simbólico de
determinadas acções. Algumas acções têm um valor simbólico
associado a elas, de forma que o cálculo de utilidade não pode
ser feito claramente. Acções do foro da Ética são deste tipo,
assim como em geral acções que quebram princípios, sejam
eles éticos ou não. Esta utilidade simbólica atribuída às acções
pode ter tanto resultados positivos, por exemplo no caso em
que estamos a tentar chegar a um objectivo de valor, como
resultados negativos, quando "traçamos a linha" sem
compreender as consequências e circunstâncias que nos levam
a fazê-lo. Um caso que me ocorre é o do Patriotismo, um
princípio que muitos cidadãos dos Estados Unidos hoje em dia
levam tão a peito que recusam considerar sequer uma acção
que possa ser de alguma forma apelidada de anti-patriótica.
Assim, a nossa capacidade de seguir determinados princípios
pode ser utilizada de uma forma positiva, mas também pode ser
usada de uma forma negativa.
Um princípio deve assim ser avaliado a dois níveis: a um nível
ele é bom na medida em que ajuda o indivíduo a atingir o
objectivo pretendido; a outro nível ele é bom quando se mostra
que o objectivo que se quer atingir tem também valor. Para
analisar um princípio a este nível temos de ver até que ponto o
objectivo a que ele se propõe é compatível com outros
objectivos aos quais damos valor. A forma como um princípio
foi utilizado no passado pode levar-nos a suspeitar dele e a pô-
lo de lado no futuro. Um exemplo tradicional são os princípios
de hegemonia propostos pela Alemanha Nazi, que não serão por
nós considerados como bons, independentemente do fim que se
quer atingir com eles. A história de como os princípios foram
usados no passado tem assim influência no valor e utilidade que
eles podem ter para nós no presente.
3. Regras da Racionalidade
No capítulo sobre a crença racional Nozick apresenta as
características gerais da racionalidade. A racionalidade
instrumental das acções está ligada aos objectivos que se
querem atingir com essas acções. Uma acção é racional quando
permite atingir os objectivos que se pretendem, mas isso não é
suficiente, é necessário também que os meios usados para
atingir determinados fins possam ser usados de uma forma
fiável (um objectivo pode ser atingido por acaso e isso não
torna a acção racional). Uma das formas de fazer com que os
meios sejam fiáveis é procurar a ligações causais reais entre os
meios e os fins que se pretendem atingir, ou seja procurar a
verdade. O interesse pela verdade pode ser considerado como
tendo uma origem "instrumental" na medida em que a eficácia
das crenças verdadeiras terá ajudado à adaptação do homem
ao seu meio ambiente. Esse interesse mais tarde expandiu-se
para a verdade em geral, mesmo quando não está a servir
nenhum fim determinado. A racionalidade em geral vai além da
procura da verdade e não depende de um só método ou
sistema, como a evidência empírica por exemplo. As razões são
constituídas numa rede interligadas umas às outras, de modo
que uma crença tem de ser avaliada tendo em conta não só
razões a favor e contra essa crença, mas também outras
crenças de vários níveis. A filosofia é um exemplo excelente da
racionalidade em acção, quando um filósofo propõe uma teoria
analisa razões a favor e contra, o seu poder explicativo, como
ela se encaixa noutras hipóteses comummente aceites, etc.
Estes são os traços gerais que Nozick atribui à racionalidade.
De seguida Nozick propõe seis regras da racionalidade, que
devem ser vistas como caracterizando formas fiáveis de exercer
determinados processos cognitivos racionais. Estas regras não
são para ser entendidas num sentido rígido, elas próprias estão
sujeitas a revisão, são apenas traços gerais que caracterizam os
nossos processos cognitivos racionais. Para além disso um
sistema pode ser considerado racional sem seguir todas estas
regras de uma forma perfeita. As regras propostas por Nozick
são as seguintes:
4. Razão e Evolução
A razão é apresentada por Nozick como uma capacidade
humana seleccionada pela evolução. Isto permite explicar a
racionalidade a dois níveis: por um lado as suas regras são
suficientemente maleáveis de forma a poderem adaptar-se a
um meio ambiente inconstante, por outro lado existem certos
princípios tomados como evidentes que foram eles mesmos
seleccionados, princípios como o da existência do mundo
exterior e das outras mentes são exemplos por excelência.
Estes princípios podem ser questionados pela razão, e
analisados, tal como os filósofos têm feito (sem grande
sucesso). No entanto, podemos confiar neles pelo menos na
medida em que sabemos que foram seleccionados pela sua
eficácia. Esta concepção evolucionista da racionalidade é aquilo
que Nozick chama a "revolução copernicana" de Kant ao
contrário. Isto significa que não é a razão que dá forma aos
factos como em Kant, mas são os factos, o mundo, que
formaram a racionalidade tal como nós a exercemos hoje. Esta
concepção não pretende fundar a razão, justificá-la, apenas
pretende explicar a origem do instrumento a que chamamos
racionalidade.
Segundo a teoria da evolução, os traços seleccionados são
aqueles que permitem a reprodução com sucesso, reprodução
essa que é facilitada por determinadas características. No
entanto, uma vez seleccionada, a racionalidade pode ser
utilizada para outros fins. Um exemplo semelhante é o da
curiosidade, a curiosidade pode ter sido seleccionada por ajudar
os homens pré-históricos na sua procura pela caça adequada
para alimentar a família, mas hoje é utilizada de outra forma
por cientistas, por exemplo na investigação acerca das origens
do universo. No mesmo sentido a racionalidade ajudou os
homens a descobrir causas de acontecimentos que os
afectavam e a precaver-se ou alterar esses acontecimentos,
mas hoje é utilizada por filósofos nas suas investigações sobre a
ética, metafísica, etc. Dizer que a racionalidade pode ser
explicada através da teoria da evolução não implica assim
denegrir ou limitar o seu exercício, apenas permite dar conta
das suas origens e compreender melhor algumas das suas
características.
Bibliografia:
Nozick, Robert (1993) The Nature of Rationality, Princeton
University Press, Princeton New Jersey.
Nozick, Robert (1969) "Newcomb's Problem and Two Principles
of Choice", in Essays in Honor of C. G. Hempel, ed. N. Rescher
et al., Dordrecht, Reidl, pp. 114-146
Campbell, Richmond & Sowden, Lanning eds. (1985) Paradoxes
of Rationality and Cooperation: Prisoner's Dilemma and
Newcomb's Problem, Vancouver, University of British Columbia
Press.
Lacey, Alan (2001) Robert Nozick, Princeton University Press,
Princeton New Jersey, Cap. 6 "Rationality", pp. 133-159
Schmidtz, David ed. (2002) Robert Nozick, Cambridge
University Press, Cambridge.
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Intelectu no 9 - Outubro de 2003
Resumo
Na primeira secção, explica-se que o estudo da razão prática
pode ser dividido em duas grandes áreas: a da racionalidade na
acção e a das razões para agir. Na segunda secção, expõe-se a
teoria da racionalidade na acção mais comum, a teoria
instrumental da racionalidade na acção. Na terceira secção,
argumenta-se que Hume não a defendia.
Bibliografia
Cullity & Gaut - Ethics and practical reason, Oxford University
Press, 1997
Dancy - Practical reality, Oxford University Press, 2002
Darwall - www.la.utexas.edu/~pdl/histeth/histeth.lec14.html
Hume - Treatise of human nature, Oxford University Press,
2000
Kavka, Gregory - Hobbesian moral and political philosophy,
Princeton University Press, 1992
Luce & Raiffa - Games and decisions, Dover Publications, 1989
Madeira, Pedro - "O que é o modelo crença-desejo?", Intelectu
nº 9, em www.intelectu.com
Madeira, Pedro - "A objecção de Nagel ao modelo crença-desejo
e o realismo moral", Intelectu nº9, em www.intelectu.com
Miguens, Sofia - "Blackburn e Hume, razão e paixões", Intelectu
nº7, em www.intelectu.com, Outubro de 2002
Nozick - The nature of rationality, Princeton University Press,
1995
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Intelectu no 9 - Outubro de 2003
Resumo
Na primeira secção, explica-se de que teses é composto o
modelo crença-desejo. Na segunda secção, procura-se desfazer
um erro muito fácil de cometer: o de pensar que racionalizar
uma acção é a mesma coisa que mostrar que essa acção é
racional. Na parte final da secção, dão-se mais alguns
esclarecimentos rápidos acerca de a). Na terceira secção,
explica-se em que consiste o carácter intensional das descrições
de acções. Avisa-se que é preciso não confundir "intenção" com
"intensão". Na quarta secção, reformula-se a tese b) face a
algumas conclusões a que chegámos anteriomente. Na quinta
secção, questiona-se se b) devia mesmo fazer parte da
definição canónica do modelo crença-desejo. Na sexta secção,
procura-se fazer sentido de uma ideia geral que costuma estar
associada ao modelo crença-desejo: a de que o desejo e a
crença não têm igual estatuto; o desejo é o parceiro dominante
da relação, por assim dizer. Uma maneira de expressar esta
ideia é dizer que a crença e o desejo têm diferentes direcções
de correspondência. Na última secção, recorda-se que o
ojectivo do ensaio não foi o de criticar o modelo crença-desejo,
mas sim procurar formulá-lo do modo mais preciso possível.
Bibliografia:
Branquinho - "Extensão/intensão", em Enciclopédia de termos
lógico-filosóficos, Branquinho e Murcho, Eds., Gradiva, 2001
Dancy - Practical reality, Oxford University Press, 2002
Davidson - "Actions, reasons and causes" e "Agency", ambos
em Essays on actions and events, Oxford University Press, 2001
Guttenplan, ed. - "Action (2)", "Intention" e "Reasons and
causes", todos em A companion to the philosophy of mind,
Blackwell Publishers, 2001
Searle - Rationality in action, MIT Press, 2001 (especialmente
cap. 3)
!
Intelectu no 9 - Outubro de 2003
Resumo
Na introdução, revela-se os três objectivos principais deste
ensaio: expôr a objecção de Nagel ao modelo crença-desejo;
expôr a objecção de Dancy; e explicar como é que isto pode ser
relevante para a refutação de uma objecção comum ao realismo
moral. Na segunda secção, explica-se a distinção de Nagel entre
desejos motivados e não-motivados. Sem se compreender esta
distinção, não será possível compreender a objecção de Nagel
ao modelo crença-desejo. Na quarta secção, expõe-se a
objecção de Nagel ao modelo crença-desejo. Na quinta secção,
procura-se mostrar que a objecção falha o alvo, porque acusa o
modelo crença-desejo de apoiar uma tese que não parece estar
nele incluída (ou, pelo menos, não necessariamente incluída): a
de que as crenças são causalmente inertes.Na sexta secção,
pergunta-se o que estaria, afinal, implicado numa refutação do
modelo crença-desejo. Argumenta-se que teríamos de pagar
um preço demasiado alto para a rejeitar, pelo que mais vale
não o fazer. Na sétima secção, explica-se como é que toda esta
discussão se pode revelar crucial para a refutação de uma
objecção comum ao realismo moral. Quem não estiver
grandemente interessado no assunto, pode limitar-se a ler a
última parte da secção, em que digo algumas coisas de
relevância geral acerca da tese das direcções de
correspondência.
1. Introdução
Comecemos por Nagel, então. O que é que ele acha que está
mal com o modelo crença-desejo? A gente já falará disso na
quarta secção. Antes, é necessário explicar alguma da
terminologia de Nagel, nomeadamente a distinção entre desejos
motivados e não-motivados. Sem se perceber bem esta
distinção, não será possível entender-se a objecção dele. Seria,
por isso, aconselhável que tivesse um bocadinho de paciência e
não saltasse esta secção.
De acordo com Nagel, um desejo não-motivado é um desejo de
que somos acometidos, por assim dizer. O desejo súbito de
berrar com alguém, de dar pulos de alegria, de dar um murro
na mesa, etc. Um desejo motivado é um desejo a que
chegamos após deliberação. Nós queremos dar a melhor
educação possível aos nossos filhos. Será, para isso, melhor pô-
los numa escola pública, ou numa privada? Deliberamos, e
tomamos uma decisão. Podemos supôr que chegamos à
conclusão de que o melhor é mesmo pô-los numa pública. Este
nosso desejo de os pôr numa pública não nos veio à cabeça de
repente: foi fruto de uma escolha ponderada.
Nagel parece pensar que, se um desejo não apareceu
subitamente, então é necessariamente verdade que chegámos a
ele por deliberação. Isto não é bem verdade. Há também
desejos que se insinuam perante nós, por assim dizer. São
desejos que começam gradualmente e infiltrar-se no nosso
espírito, mas não por deliberação. É um tipo de desejo que
toma progressivamente conta de nós. Pense numa pessoa que
considera a hipótese de enganar o cônjuge. A princípio, a ideia
parece-lhe maluca. Depois, alterna entre pensar que a ideia é
maluca e que não é. Finalmente, acaba por ceder à tentação.
Neste caso, não houve qualquer tipo de deliberação. A pessoa
esteve a lutar com a tentação - e perdeu. Outro exemplo de um
desejo que não apareceu subitamente, mas também não foi o
resultado de deliberação, é o da pessoa que tem sempre um
jarro com doces em cima do frigorífico. Como sempre teve o
desejo de comer doces, não é possível enfiá-lo em nenhuma
das categorias precedentes: o desejo não se foi insinuando; não
lhe chegou subitamente; nem foi, obviamente, resultado de
deliberação.
Depressa chegámos à conclusão que a distinção de Nagel entre
desejos súbitos e desejos que resultam de deliberação não
abarca todos os casos possíveis. De modo a acomodar os dois
tipos de desejos em que Nagel não pensou (nada impede que
haja mais em que eu também não tenha pensado,
evidententemente), passarei a distinguir entre desejos súbitos e
não-súbitos. Desejos súbitos já sabemos o que são. Sob a
designção de "desejos não-súbitos" estarão pelo menos
incluídos os três casos em que falei - e possivelmente outros.
Bom, mas vamos ao que nos interessa: a distinção de Nagel
entre desejos motivados e não-motivados. Como já vimos, um
dos critérios de Nagel para distinguir entre desejos motivados e
não-motivados é o de dizer que todos os desejos não-motivados
são súbitos; e que nenhum desejo motivado é súbito.
Nagel acrescenta que há outro critério para distinguir os desejos
motivados dos não-motivados. Os desejos motivados - ao
contrário dos não-motivados - podem ser explicados apelando
para outros estados mentais do agente. O caso mais comum é
aquele em que os desejos motivados podem ser explicados
apelando para outros desejos. Nesta secção, é nesse tipo de
casos em que nos vamos focar, mas há, argumentavelmente,
outros, como veremos na secção seguinte. O meu desejo de pôr
os meus filhos numa pública, por exemplo, deriva do meu
desejo de lhes dar a melhor educação possível. Os meus
desejos não-motivados, por outro lado, não podem ser
explicados pela presença de outros estados mentais. Eu quero
beber uma cerveja fresca porque sim. Não é preciso atribuir-me
um desejo mais geral, como o de beber bebidas frescas, ou de
me embebedar, ou coisa que o valha. Deu-me, simplesmente,
na cabeça para beber uma cerveja. Os desejos não-motivados
são, por assim, dizer, desejos primitivos. O facto de um desejo
ser primitivo não significa que não possa ser explicado. Claro
que pode. A minha fome pode ser explicada através da falta de
comida, por exemplo. Os desejos primitivos podem ser
explicados - mas não apelando para outros estados mentais do
agente.
Nagel tem aqui outro contratempo: a distinção entre desejos
motivados e não-motivados é, tal como está, irremediavelmente
obscura. Por uma razão simples: há desejos não-primitivos que
são súbitos; e há desejos primitivos que não são súbitos.
Lembre-se do meu desejo de dar aos meus filhos a melhor
educação possível. Como vimos, esse era um desejo motivado.
Sendo motivado, podia ser explicado apelando a outro estado
mental: neste caso, o meu desejo de lhes dar a melhor
educação possível. Este desejo, por sua vez, deriva do nosso
desejo de lhes darmos a possibilidade de ter uma vida boa no
futuro. E este desejo? Bom, este desejo parece derivar de um
desejo primitivo: o de fazermos tudo o que pudermos pelos
nossos filhos para que eles sejam felizes. Não faria sentido
continuar a perguntar: e porque é que queres que eles sejam
felizes? Chegámos ao final da linha: eu quero que eles sejam
felizes porque os amo muito. Não é possível estar a citar mais
desejos para explicar esta nossa preocupação com eles. No
entanto, este nosso desejo de que eles sejam felizes, embora
primitivo, não é um desejo súbito, que aparece do nada, como
o desejo de beber uma cerveja ao passar ao pé de uma
cervejaria. Nós não acordámos um dia e dissemos para nós
próprios: "olha que engraçado, tenho o desejo de fazer tudo o
que puder pelos meus filhos".
Suponha agora que eu estou no quarto a escrever alguma coisa
e que, de repente, fica um calor de morrer e eu levanto-me e
vou ligar a ventoinha. O desejo de me levantar para ir ligar a
ventoinha foi um desejo súbito. Poderemos, no entanto, dizer
que foi um desejo não-motivado? Não. Eu quis ir ligar a
ventoinha porque o calor me fazia sentir desconfortável e eu
tinha o desejo de não me sentir desconfortável.
A distinção que será realmente importante para a objecção de
Nagel ao modelo crença-desejo é a distinção entre desejos
primitivos e não primitivos, não a distinção entre desejos
súbitos e não-súbitos. Por isso, de agora em diante, quando
estiver a falar de desejos motivados e não-motivados, estarei a
referir-me a desejos não-primitivos e primitivos.
Bibliografia:
Dancy - Practical reality, Oxford University Press, 2002
(especialmente cap. 4)
Darwall - "Hume, 1st lecture",
www.la.utexas.edu/~pdl/histeth/histeth.lec14.html
Davidson - "Actions, reasons and causes", em Essays on actions
and events, Oxford University Press, 2001
McDowell - "Are moral requirements hypothetical imperatives?",
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Nagel, Thomas - The possibility of altruism, Princeton University
Press, 1978 (especialmente cap. 5)
Ortiz-Millán, Gustavo - "Motivating beliefs: anti-humean
strategies on practical reason",
www.andrew.cmu.edu/org/conference/oritzmillan.pdf.
Searle - Rationality in action, MIT Press, 2001
Nota posterior - como não definir o modelo crença-desejo
Há uma maneira comum de definir o modelo crença-desejo que
está subtilmente errada e que pode facilmente induzir em erro.
Podia ter falado disto a propósito do ensaio anterior ("O que é o
modelo crença-desejo?"), mas decidi não o fazer porque uma
das consequências infelizes deste erro só pode ser plenamente
entendida depois de se ler este terceiro ensaio.
*
Costuma dizer-se que Hume foi, historicamente falando, o
primeiro proponente do modelo crença-desejo. Temos paixões
(termo que Hume usa em vez de "desejos"), e o papel da Razão
é o de descobrir o modo mais eficaz de as satisfazer. Seguindo
a terminologia de Hume, há por vezes quem diga que a acção
humana resulta da cooperação entre as paixões e a Razão. Em
sentido estrito, não me parece haver nada de errado com isto.
No entanto, é preciso ter cuidado com duas coisas.
Em primeiro lugar, há que não hipostasiar a "Razão". A "Razão"
não é uma coisa; é, potencialmente, uma característica de
processos (de formação de crenças, de deliberação, etc) e do
resultado de tais processos (crenças, acções, etc). Caso haja
universais, talvez haja um universal a que podemos chamar
"Razão", tal como haveria o "Vermelho", e a "Justiça"; no
entanto, o meu problema não é o de que, ao se falar em Razão,
se está a pressupor que existem universais. A origem do meu
desconforto reside em frases como a seguinte: "o papel da
Razão é o de representar o mundo tal como ele é". Há um
sentido em que esta frase é verdadeira e outro em que é falsa.
A frase é verdadeira no sentido de que os processos conduzidos
de modo racional descreverão, em princípio, com mais
fidelidade, o mundo. Mas é falsa caso se esteja a dizer que a
razão é, ela própria, uma representação do mundo. O termo
"representar" é ambíguo. Tanto pode referir-se ao acto de criar
uma representação, como ao facto de que um qualquer objecto
representa alguma coisa. A frase "O papel de um pintor
figurativo é o de representar o mundo tal como ele é" é
ambíguo da mesma maneira. É verdadeira caso por ela se
entenda que o papel do pintor figurativo é o de criar
representações tanto quanto possível fiéis do mundo. É falsa,
obviamente, caso por ela se entenda que o pintor deve, ele
próprio, ser uma representação do mundo!
Em segundo lugar, como já se percebeu, pôr "Razão" em vez de
"crenças" não é uma mudança inócua de terminologia. Alguém
poderia ter a tentação de dizer que de modo a que as nossas
acções sejam bem sucedidas, devemos ter crenças que
representem de modo fiel o mundo. Isto é verdadeiro no
sentido de que "dá jeito" termos crenças verdadeiras. Mas é
falso no sentido de que as crenças não são, propriamente
falando, representações; quanto muito, serão descrições. Em
princípio, uma representação terá que ser uma reprodução de
alguma coisa, como um desenho ou uma escultura, por
exemplo. Por isso, nem a "Razão" nem as crenças são
representações. O mais correcto seria dizer que as crenças
almejam a ser descrições do mundo, e que a "Razão" tem por
objectivo produzir essas tais descrições do mundo a que
chamamos crenças, entendendo-se por "Razão" um conjunto de
processos fiáveis (note-se como agora somos obrigados a usar
"Razão" para nos referirmos ao conjunto de processos
racionais). É por isso agora fácil ver porque está ligeiramente
incorrecto dizer que a acção resulta da cooperação entre
paixões e "Razão". Seria mais apropriado dizer que resulta da
cooperação entre paixões e crenças. Para além do mais, há um
erro gravíssimo que é fácil cometer-se ao se falar da
cooperação entre "Razão" e paixões: o de pensar que, como
Hume pensava que a "Razão" era inerte, também pensava que
as crenças são inertes. Erro! Quando os humeanos dizem que a
"Razão" é inerte, a única coisa que com isso querem dizer é que
não faz sentido dizer, de paixões, que são racionais ou
irracionais. O que querem, porém, dizer com "as crenças são
inertes"? Acho que podem querer dizer duas coisas: ou que as
crenças não levam ninguém a agir sem que estejam também
presentes desejos; ou que as crenças são causalmente inertes.
É muito fácil derrapar de "a Razão é inerte" para "as crenças
são causalmente inertes". Como já vimos, nem o próprio Hume
parecia acreditar que as crenças são causalmente inertes. É
caso para dizer: não sejamos mais humeanos que Hume!
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Intelectu no 9 - Outubro de 2003
Repensando a Racionalidade:
de Implicações Pessimistas a Módulos Darwinianos (1)
Richard Samuels, Stephen Stich & Patrice D. Tremoulet
Conteúdos
1. Introdução
2. Explorando o Raciocínio e o Juízo Humanos
3. Implicações Pessimistas
4. O Desafio da Psicologia Evolucionista
5. A Psicologia Evolucionista Aplicada ao Raciocínio
6. Modularidade Maciça, Implicações Pessimistas e
Interpretação Panglossiana
1. Introdução
Existe uma respeitável tradição filosófica que encara os seres
humanos como seres intrinsecamente racionais. Contudo, até o
mais entusiástico defensor deste ponto de vista admitirá que
em determinadas circunstâncias as decisões e os processos
mentais das pessoas podem ser deveras irracionais. Quando
alguém está extremamente cansado, embriagado, ou à beira de
um ataque de nervos, por vezes raciocina e procede de um
modo totalmente irracional. Há cerca de trinta anos, Amos
Tversky, Daniel Kahneman e outros psicólogos apresentaram
algumas descobertas que sugeriam a existência de problemas
bem mais profundos relativamente à ideia tradicional que
encara os seres humanos como animais intrinsecamente
racionais. Estes estudos demonstraram que mesmo em
circunstâncias normais, onde o cansaço, as drogas e as
emoções fortes não são factores a ter em conta, a forma como
as pessoas raciocinam e tomam decisões viola
sistematicamente, e numa grande variedade de problemas, os
cânones familiares de racionalidade. Esses primeiros e
surpreendentes estudos desencadearam o crescimento de uma
importante tradição de investigação cujo impacto se fez sentir
em áreas tão afastadas da ciência cognitiva como a economia, a
teoria política e a medicina. Na Secção 2 esboçaremos algumas
das descobertas experimentais mais conhecidas nesta área.
Escolhemos estas descobertas em particular porque elas
desempenharão um importante papel num ponto mais avançado
deste ensaio. Para os leitores interessados numa abordagem
mais profunda e sistemática desta fascinante e inquietante
investigação acerca do raciocínio e do juízo já existem
teoria política e a medicina. Na Secção 2 esboçaremos algumas
das descobertas experimentais mais conhecidas nesta área.
Escolhemos estas descobertas em particular porque elas
desempenharão um importante papel num ponto mais avançado
deste ensaio. Para os leitores interessados numa abordagem
mais profunda e sistemática desta fascinante e inquietante
investigação acerca do raciocínio e do juízo já existem
excelentes textos e antologias disponíveis (Nisbett & Ross 1980;
Kahneman, Slovic & Tversky 1982; Baron 1988; Piatelli-
Palmarini 1994; Dawes 1988; Sutherland 1994).
Apesar de se saber que os resultados das experiências são
sólidos e podem ser prontamente reproduzidos, existe um
grande debate acerca daquilo que estas experiências
verdadeiramente indicam sobre a racionalidade intrínseca das
pessoas comuns. Uma interpretação dos resultados amplamente
discutida afirma que elas têm "implicações pessimistas"
relativamente à racionalidade do homem e da mulher comuns.
Aquilo que os estudos demonstram, de acordo com esta
interpretação, é que as pessoas comuns carecem da
competência subjacente básica para lidarem com um tão vasto
leque de tarefas de raciocínio e, como tal, têm de explorar um
conjunto de simples estratégias heurísticas que frequentemente
conduzem a conclusões verdadeiramente contra-normativas.
Aqueles que advogam esta interpretação reconheceriam,
obviamente, que existem algumas pessoas que dominam as
regras ou os procedimentos correctos para se lidar com alguns
destes problemas. No entanto, sustentam eles, este
conhecimento é difícil de adquirir e difícil de usar. Não é o tipo
de conhecimento que a mente humana adquira facilmente e
espontaneamente em ambientes normais, e mesmo aqueles
que o possuem muitas vezes não o usam a menos que façam
um esforço nesse sentido. Na Secção 3 aprofundaremos esta
interpretação e explicaremos a noção técnica de competência
que ela invoca.
A interpretação pessimista das descobertas experimentais tem
sido desafiada de muitas maneiras. Um dos mais recentes e
intrigantes destes desafios chega-nos do emergente campo
interdisciplinar da psicologia evolucionista. Os psicólogos
evolucionistas defendem uma concepção altamente modular da
arquitectura mental que nos diz que a mente é composta por
um grande número de órgãos ou "módulos" especializados no
processamento de informação, moldados pela selecção natural
por forma a lidarem com o tipo de problemas de processamento
de informação com que os nossos antepassados caçadores-
recolectores frequentemente se confrontavam. Dado que uma
boa performance numa multiplicidade de tarefas de raciocínio
seria algo de que os nossos antepassados do Pleistoceno
tirariam vantagem, os psicólogos evolucionistas admitem a
hipótese de termos desenvolvido módulos mentais por forma a
lidarmos adequadamente com essas tarefas. Contudo, também
defendem que os módulos devem estar bem adaptados ao
género de informação que estava disponível nos ambientes que
antecederam e acompanharam os primeiros homens. Como tal,
supõem eles, quando a informação é apresentada de maneira
adequada, a performance das tarefas de raciocínio deverá
melhorar dramaticamente. Na Secção 4 apresentaremos um
esboço mais detalhado do quadro amplamente modular da
mente avançado pelos psicólogos evolucionistas, e da noção de
módulo mental que desempenha um papel fundamental nesse
quadro. Também nos debruçaremos brevemente sobre os
diferentes tipos de argumentos avançados pelos psicólogos
evolucionistas ao procurarem demonstrar que a mente é
maciçamente modular. Em seguida, na Secção 5, teremos em
consideração vários estudos recentes que parecem confirmar a
predição dos psicólogos evolucionistas: Quando a informação se
nos apresenta de uma maneira que teria sido importante na
nossa história evolutiva, a performance nas tarefas de raciocínio
melhora. Embora os argumentos e as provas empíricas
avançadas pelos psicólogos evolucionistas sejam aliciantes, é
muito pouco provável que constituam um caso convincente para
a teoria dos psicólogos evolucionistas sobre a mente e as suas
origens. Mas uma crítica detalhada dessa teoria estaria muito
para além do âmbito deste ensaio. Em vez disso, aquilo a que
nos propomos na secção final, é fazermos uma pergunta
hipotética. Se se descobrir que a descrição dos psicólogos
evolucionistas está no caminho certo, que implicações isso teria
para as questões acerca da natureza e do alcance da
racionalidade ou da irracionalidade humanas?
Agradecimentos
Notas
(1) A versão inglesa original deste texto ("Rethinking
Rationality: From Bleak Implications to Darwinian Modules") foi
inicialmente publicada em What Is Cognitive Science?, E. LePore
& Z. Pylyshyn (eds.), Oxford, Blackwell, 1999 (pp. 74-120). O
texto foi também publicado em K. Korta, E. Sosa & X. Arrazola
(eds.), Cognition, Agency, and Rationality, Proceedings of the
Fifth International Colloquium on Cognitive Science (ICCS-97),
Dordrecht, Kluwer, 1999 (pp. 21-62).
(2) Se bem que pelo menos um filósofo já tenha argumentado
que esta aparência é ilusória. Num importante e extensamente
debatido artigo, Cohen (1981) oferece uma análise do que é
para uma de regra de raciocínio ser normativamente correcta, e
segundo a sua descrição a capacidade de raciocínio de uma
pessoa normal tem de ser normativamente correcta. Assim,
segundo a opinião de Cohen, as pessoas normais podem fazer,
e na verdade fazem, muitos erros de performance tanto no
raciocínio como na linguagem, mas não existem, em nenhum
desses domínios, erros de competência. No entanto, um grande
número de críticos, incluindo um dos autores deste artigo,
afirmam que a descrição de Cohen daquilo que é, para uma
regra de raciocínio, ser correcta está errada. (Stich, 1990,
Ch.4). Para a resposta de Cohen, ver Cohen (1986), e para um
análise bem informada do debate, ver Stein (1996).
(3) Numa passagem frequentemente citada, Kahneman e
Tversky escrevem: "Ao fazerem previsões e juízos, as pessoas,
quando inseguras, não parecem seguir o cálculo de
probabilidades ou a teoria estatística da previsão. Em vez disso,
confiam num número limitado de estratégias heurísticas que por
vezes produzem juízos razoáveis e outras vezes conduzem a
erros graves e sistemáticos." (1973, p.237) Mas isto não os
compromete com a afirmação de que as pessoas não seguem o
cálculo de probabilidades ou a teoria estatística da previsão
porque estas características não fazem parte da sua
competência cognitiva. E num artigo mais recente reconhecem
que em alguns casos as pessoas são guiadas por regras
normativas apropriadas. (Kahneman e Tversky, 1996, p. 587)
Como tal, não pensam que as pessoas não conhecem as regras
adequadas, mas apenas que muitas vezes não as utilizam
quando devem.
(4) Para alguns estudos empíricos pioneiros sobre esta assunto,
ver Nisbett, Fong, Lehman e Cheng (1987), Lehman, Lempert e
Nisbett (1988) e Lehman e Nisbett (1990).
(5) Apesar de não podermos aprofundar este assunto aqui, não
vemos por que razão a noção de módulo computacional
conexionista - i.e. um sistema computacional conexionista de
domínio específico - não poderá ser uma noção teoricamente
interessante. Para uma primeira tentativa de desenvolver
módulos conexionistas deste género, ver Tanehaus et al.
(1987).
(6) Aqui estão algumas das características que Fodor atribui aos
módulos: 1) Fechamento à Informação: Um módulo tem pouco
ou nenhum acesso a informação que não esteja contida na sua
própria base de dados. Isto não deve ser confundido com o tipo
de acesso limitado característico de um módulo
chomskyano/computacional, onde a informação a que um
módulo computacional tem acesso não está disponível para os
outros componentes do sistema; 2) Obrigatoriedade: Não
podemos controlar se um módulo se aplica ou não a
determinado input; 3) Velocidade: Comparados com os
sistemas não modulares, os módulos processam a informação
muito rapidamente; 4) Superficialidade: Os módulos só nos dão
uma caracterização preliminar de input; 5) Localização
Neuronal: Os mecanismos neuronais estão associados a uma
arquitectura neuronal fixa; 6) Susceptibilidade a Degradação
Característica: Como os módulos estão associados a uma
arquitectura neuronal fixa, eles exibem padrões de degradação
característicos (Fodor, 1986, p.15); 7) Inacessibilidade de
outros processos às suas representações intermédias: Os outros
sistemas têm um acesso limitado ao que se está a passar
dentro de um módulo.
(7) É esta a sua teoria de como as pessoas atribuem estados
mentais umas às outras e os usam para prever
comportamentos.
(8) Para uma das primeiras tentativas de desenvolver uma
descrição da mente completamente modular, ver Gardner
(1983)
(9) Para mais alguma discussão sobre a Hipótese da
Modularidade Maciça, ver Pinker, 1997, Capítulo 1, pp. 27-8.
(10) Para outros argumentos teóricos a favor da ideia de mente
enquanto maciçamente modular, ver Marr (1983, p. 102),
Cosmides e Tooby (1987, 1992, 1994), Pinker (1994, 1997) e
Sperber (1994). Para alguns argumentos contra a HMM, ver
Fodor (1983, Parte IV, Karmiloff - Smith (1992, Cap.1), Quartz
e Sejnowski (1994). Para uma análise mais sistemática do
debate, ver Samuels (em preparação a).
(11) Cosmides e Tooby chamam `hipótese frequencista´ à
"hipótese dos nossos mecanismos de raciocínio indutivo terem
sido concebidos para actuarem com representações
frequencistas e para produzirem essas representações." (p. 21),
e afirmam que Gerd Gigerenzer foi o primeiro a formular esta
hipótese. Ver, por exemplo, Gigerenzer (1994, p.142).
(12) Cosmides e Tooby usam o termo "bayesiano" com um "b"
minúsculo para caracterizar qualquer procedimento cognitivo
que produza respostas que satisfaçam a regra de Bayes.
(13) Este é o texto usado nas experiências E2 - C1 e E3 - C2 de
Cosmides e Tooby.
(14) Numa outra versão do problema, Cosmides e Tooby
procuraram saber se uma percentagem ainda maior daria a
resposta bayesiana correcta se os inquiridos fossem obrigados a
"construir activamente uma representação frequencista visual
concreta da informação do problema." (34) Naquela versão do
problema, 92% dos inquiridos deram a resposta bayesiana
correcta.
(15) Slovic et. al., 1976, p. 174.
(16) Gigerenzer (1991 e 1994, Gigerenzer & Murray, 1987)
afirma que em muitos casos os erros putativos não são de todo
erros, e que aqueles que pensam que o são estão a confiar em
teorias normativas de raciocínio erradas ou demasiado
simplistas. O desafio de Gigerenzer levanta muitas questões
importantes e interessantes acerca da natureza da racionalidade
e da análise do raciocínio. Uma discussão detalhada destes
assuntos levar-nos-ia muito para além dos limites deste
capítulo.
(17) Ver, por exemplo, Pinker (1997), p.345.
(18) Ver, por exemplo, Goldman 1986, e Stich 1990.
(19) Ver, por exemplo, Godfrey-Smith (1994), Neander (1991)
e Platinga (1993).
Bibliografia
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Graus de crença
O tema da nossa investigação é a lógica das crenças parciais, e
não penso que possamos levá-la longe a não ser que tenhamos,
pelo menos, uma noção aproximada do que é uma crença
parcial, e de que maneira pode ser medida (se é que pode ser
medida). Não será muito esclarecedor dizerem-nos que em tais
e tais circunstâncias seria racional acreditar numa proposição
com um grau de 2/3, a não ser que saibamos o que significa ter
tal tipo de crença. Portanto, devemos tentar desenvolver um
método puramente psicológico de medir as crenças. Não é
suficiente medir a probabilidade; de modo a adequar a nossa
crença à probabilidade, devemos também ser capazes de medir
a nossa crença.
É uma posição comum que as crenças e outras variáveis
psicológicas não são mensuráveis, e, se isto é verdade, a nossa
investigação será em vão; e também toda a teoria da
probabilidade concebida como uma lógica das crenças parciais;
porque se a expressão "uma crença com dois terços de
confiança" não tem significado, um cálculo cujo único objectivo
seja o de recomendar tais crenças não terá, igualmente,
qualquer significado. Portanto, a não ser que estejamos
preparados para dizer que isto é tudo uma má ideia e
abandonar o projecto inteiro, estamos forçados a defender que
as crenças podem, até certo ponto, ser medidas. Se
seguíssemos a analogia da análise das probabilidades do senhor
Keynes, diríamos que algumas crenças eram mensuráveis, e
outras não: mas esta não me parece ser a posição correcta em
relação a esta questão: não estou a ver como possamos traçar
uma divisão precisa entre crenças que ocupam uma posição na
escala numérica e outras que não ocupam. Penso, porém, que
as crenças diferem, em termos de mensurabilidade, de duas
maneiras. Em primeiro lugar, algumas crenças podem ser
medidas com mais exactidão que outras. Em segundo lugar, a
outras não: mas esta não me parece ser a posição correcta em
relação a esta questão: não estou a ver como possamos traçar
uma divisão precisa entre crenças que ocupam uma posição na
escala numérica e outras que não ocupam. Penso, porém, que
as crenças diferem, em termos de mensurabilidade, de duas
maneiras. Em primeiro lugar, algumas crenças podem ser
medidas com mais exactidão que outras. Em segundo lugar, a
medição das crenças é, quase de certeza, um processo ambíguo
que conduz a uma resposta que varia consoante o modo como a
medição foi conduzida. O grau de uma crença é, neste aspecto,
como o intervalo de tempo entre dois acontecimentos; antes de
Einstein, partia-se do princípio de que todas as maneiras
comuns de medir um intervalo de tempo conduziam ao mesmo
resultado, desde que realizadas como deve ser. Einstein
mostrou que isto não era verdade; e o intervalo de tempo não
pode mais ser visto como uma noção clara, devendo ser
descartada de todas as investigações exactas. No entanto, o
intervalo de tempo e o sistema newtoniano são suficientemente
exactos para muitos fins e mais fáceis de aplicar.
Argumentarei, mais tarde, que o grau de uma crença é tal como
um intervalo de tempo; não tem qualquer significado preciso a
não ser que especifiquemos mais precisamente como é que
deve ser medido. Mas, para muitos fins, podemos partir do
princípio de que as maneiras alternativas de medir os graus de
crença conduzem ao mesmo resultado, embora isto seja apenas
aproximadamente verdade. As discrepâncias resultantes são
mais flagrantes em relação a algumas crenças do que a outras,
e estas parecem, portanto, menos mensuráveis. Ambos os tipos
de problema na mensurabilidade - com origem,
respectivamente, na dificuldade em obter uma medição
suficientemente exacta, e numa ambiguidade importante na
definição do processo de medição - ocorrem também na física,
pelo que não são dificuldades exclusivas do nosso problema; o
que é exclusivo é que é difícil formar qualquer opinião sobre
como a medição deva ser conduzida, como uma unidade deva
ser obtida, e por aí adiante.
Consideremos, então, o que está implicado na medição de
crenças. Um sistema satisfatório deve, em primeiro lugar,
atribuir a qualquer crença uma magnitude ou grau que tenha
uma posição definida numa escala de magnitudes; crenças que
sejam do mesmo grau que uma terceira crença deverão ter
ambas o mesmo grau, e por aí adiante. É claro que isto não
pode ser realizado sem introduzir uma certa quantidade de
hipóteses ou ficção. Nem na física nós podemos afirmar que as
coisas que são iguais a uma terceira coisa são iguais uma à
outra, a não ser que tomemos "igual" não como "sensivelmente
igual", mas como uma relação fictícia ou hipotética. Não
pretendo discutir a metafísica ou a epistemologia deste
processo; apenas notar que, se é permissível em física, também
é permissível em psicologia. A simplicidade lógica que é
característica das relações com que se lida numa ciência jamais
é atingida pela natureza sem a intromissão de alguma ficção.
Mas construir uma série ordenada de graus não constitui a
totalidade da nossa tarefa; também temos que atribuir números
a esses graus de alguma maneira inteligível. É claro que
podemos explicar facilmente que designamos crença total por 1,
crença total na contraditória por 0, e crenças iguais numa
proposição e na sua contraditória por 1/2. Mas não é assim tão
fácil dizer o que se quer dizer com uma crença com 2/3 de
confiança, ou uma crença na proposição ser duas vezes mais
forte que a crença na sua contraditória. Esta é a parte mais
difícil da tarefa, mas é absolutamente necessária; porque nós
calculamos, efectivamente, probabilidades numéricas, e de
modo a que elas correspondam a graus de crença, temos que
descobrir alguma maneira definida de associar números a graus
de crença. Em física, nós associamos frequentemente números
através da descoberta de um processo físico de soma
(Campbell, 1920, p. 277): os números-medida de
comprimentos não são atribuídos arbitrariamente, estando
apenas sujeitos à condição de que o maior comprimento deva
ter a maior medida; eles também são determinados ao decidir-
se um significado físico para a soma; o comprimento obtido ao
se juntar dois comprimentos deve ter por medida a soma
dessas medidas. Um sistema de medição no qual nada há de
correspondente a isto é imediatamente reconhecido como
arbitrário, por exemplo a escala de dureza de Mohs (Campbell,
1920, 271), na qual 10 é arbitrariamente atribuído ao diamante,
o material mais duro conhecido, 9 ao seguinte em termos de
dureza, e por aí adiante. Temos, por isso, que encontrar um
processo de soma de graus de crença, ou algum substituto para
isto que seja igualmente adequado para determinar uma escala
numérica.
Este é o nosso problema: como havemos de o resolver? Penso
que há dois lados por onde podemos começar. Podemos, em
primeiro lugar, supor que o grau de uma crença é algo
perceptível pelo seu possuidor. Podemos supor, por exemplo,
que as crenças diferem na intensidade de um sentimento pelo
qual se fazem acompanhar, o qual pode ser denominado
"sentimento-de-crença" ou "sentimento-de-convicção", e que
por "grau de crença" nos referimos à intensidade deste
sentimento. Esta posição seria bastante inconveniente, dado
que não é fácil atribuir números às intensidades dos
sentimentos; mas, sem contar com isto, parece-me
comprovadamente falsa, dado ser frequente que as crenças em
que depositamos mais confiança não vêm acompanhadas por
qualquer sentimento que seja; ninguém crê com muita
vivacidade em coisas que ele toma por certas.
Nós somos conduzidos, portanto, para a segunda suposição de
que o grau de uma crença é uma propriedade causal dessa
crença, que pode ser expressa vagamente como o ponto até ao
qual estaríamos preparados para agir com base nela. Esta é
uma generalização da posição bem conhecida de que o que
diferencia as crenças é a sua eficácia causal, posição essa que é
discutida pelo senhor Russell no seu Analysis of mind. Ele aí
rejeita-a por duas razões, uma das quais parece falhar
completamente o alvo. Ele argumenta que, no decurso de
pensamentos, acreditamos em muitas coisas que não conduzem
à acção. Esta objecção é, porém, irrelevante, dado que não é
afirmado que uma crença é uma ideia que leva realmente à
acção, mas uma ideia que levaria à acção em circunstâncias
apropriadas; tal como um bocado de arsénico é chamado
venenoso não porque efectivamente tenha matado ou matará
alguém, mas porque mataria qualquer pessoa que o comesse. O
segundo argumento do senhor Russell é, todavia, ainda mais
incrível. Ele nota que não é possível supor que as crenças
difiram das outras ideias apenas nos seus efeitos, porque se
elas fossem idênticas no resto, os seus efeitos seriam, também,
idênticos. Isto é inteiramente verdadeiro, mas poderá dar-se
ainda o caso de que a natureza da diferença entre as causas
seja inteiramente desconhecida, ou conhecida muito
superficialmente, e que aquilo de que queiramos falar seja a
diferença entre os efeitos, que é prontamente observável e
importante.
Assim que passamos a pensar nas crenças quantitativamente,
esta parece-me a única posição que podemos tomar em relação
a elas. Poderia perfeitamente ser defendido que a diferença
entre acreditar e não acreditar reside na presença ou ausência
de crenças introspeccionáveis. Mas quando procuramos saber
qual é a diferença entre acreditar mais firmemente e menos
firmemente, não podemos continuar a pensar que consiste em
ter alguns sentimentos observáveis em maior ou menor
quantidade; eu pessoalmente, pelo menos, não consigo
descobrir tais sentimentos. Parece-me que a diferença reside
em até que ponto é que nós agiríamos com base nestas
crenças: isto pode estar dependente do grau de algum
sentimento ou sentimentos, mas não sei exactamente que
sentimentos e não vejo que seja indispensável que saibamos. O
mesmo se passa em física; foi descoberto que um fio, imerso
em ácido, ligando chapas de zinco e cobre, repelia uma agulha
magnetizada que se encontrava nas redondezas. Consoante a
agulha fosse mais ou menos repelida, dizia-se que o fio
transportava uma corrente maior ou menor. Acerca da natureza
desta "corrente", podia apenas conjecturar-se: o que era
observado e medido eram simplesmente os seus efeitos.
Será, sem dúvida, objectado que nós sabemos quão firmemente
acreditamos nas coisas, e que só podemos saber isto se
medirmos as nossas crenças através da introspecção. Isto não
me parece necessariamente verdade; penso que, em muitos
casos, o nosso julgamento acerca da força da nossa crença é,
na verdade, um julgamento acerca de como devíamos agir em
circunstâncias hipotéticas. Será respondido que nós apenas
podemos saber como devíamos agir observando o sentimento
de crença actual que determina como devíamos agir;
novamente, duvido da solidez do argumento. É possível que o
que quer que seja que determina como devemos agir também
nos leva, directa ou indirectamente, a ter a opinião correcta
sobre como devemos agir, sem nunca nos apercebermos disso
conscientemente.
Suponhamos, no entanto, que estou errado acerca disto e que
nós podemos decidir através da introspecção a natureza das
crenças e medir o seu grau; direi, ainda assim, que o tipo de
medição das crenças com o qual a probabilidade está
relacionada não é este tipo, mas uma medição das crenças
enquanto base da acção. Penso que isto pode ser mostrado de
duas maneiras. Em primeiro lugar, atendendo à escala de
probabilidades entre 0 e 1, e à maneira em que a usamos,
chegaremos à conclusão de que é muito apropriada para a
medição das crenças enquanto base da acção, mas não está, de
modo algum, relacionado com a medição de um sentimento
introspeccionado. Porque as unidades em termos das quais tais
sentimentos ou sensações são medidos são sempre, parece-me,
diferenças [sic] que são simplesmente perceptíveis: não há
qualquer outra maneira de obter unidades. Mas não vejo
qualquer fundamento para supor que o intervalo entre uma
crença de grau 1/3 e outra de grau 1/2 tenha tantas mudanças
simplesmente perceptíveis como acontece entre uma crença de
grau 2/3 e outra de grau 5/6, ou que uma escala baseada em
diferenças simplesmente perceptíveis tenha qualquer relação
simples com a teoria da probabilidade. Por outro lado, a
probabilidade de 1/3 está claramente relacionada com o tipo de
crença que levaria a uma aposta de 2 para 1, e mais à frente
mostrar-se-á como generalizar esta relação de modo a aplicá-la
à acção em geral. Em segundo lugar, os aspectos quantitativos
das crenças como a base da acção são, evidentemente, mais
importantes que as intensidades dos sentimentos-de-crença.
Esses sentimentos-de-crença são, sem dúvida, interessantes,
mas podem variar muito de indivíduo para indivíduo, e o seu
interesse prático é inteiramente devido à sua posição como as
causas hipotéticas das crenças enquanto base da acção.
É possível que alguém diga que o ponto até ao qual nós
agiríamos com base numa crença em circunstâncias apropriadas
é uma coisa hipotética e, consequentemente, impossível de ser
medida. Mas dizer tal coisa é simplesmente revelar ignorância
em relação às ciências físicas que lidam constantemente com
quantidades hipotéticas e que as medem. Por exemplo: a
intensidade eléctrica num dado ponto é a força que exerceria
sobre uma carga unitária se fosse colocada nesse ponto.
Tentemos agora encontrar um método de medir crenças como
base de acções possíveis. É evidente que estamos preocupados
com crenças disposicionais, não crenças actuais; ou seja, não
com crenças no momento em que estamos a pensar nelas, mas
com crenças tal como a minha crença de que a terra é redonda,
em que raramente penso, mas que conduziria a minha acção
em qualquer situação para a qual fosse relevante.
A maneira tradicional de medir a crença de uma pessoa é
propor-lhe uma aposta, e ver qual o rácio de oportunidade mais
baixo que aceita. Penso que este método está
fundamentalmente certo; mas tem o problema de ser
insuficientemente geral, e necessariamente inexacto. É inexacto
em parte por causa da utilidade marginal decrescente do
dinheiro, em parte porque a pessoa pode ter uma vontade
enorme de apostar ou relutância em apostar, porque ele gosta
ou não gosta do risco, ou por qualquer outra razão; para fazer
um livro, por exemplo [sic]. À dificuldade é semelhante à que se
encontra na separação de duas forças diferentes, mas
cooperantes. Para além do mais, a simples proposta de uma
aposta poderá alterar, inevitavelmente, o estado de opinião da
pessoa; do mesmo modo, nem sempre podemos medir a
intensidade eléctrica introduzindo efectivamente a carga e
vendo a que força a carga está sujeita, porque a introdução da
carga mudaria a distribuição a ser medida.
Por isso, de modo a construir uma teoria das quantidades de
crença que seja, ao mesmo tempo, mais exacta e geral,
proponho tomar como base uma teoria psicológica geral que é
hoje universalmente rejeitada, mas que, no entanto, me parece
chegar bastante perto da verdade no tipo de casos com que
estamos mais preocupados. Refiro-me à teoria de que nós
agimos da maneira que pensamos ser a mais adequada para
realizar os objectos dos nossos desejos, de modo que as acções
de uma pessoa são completamente determinadas pelos seus
desejos e pelas suas opiniões. Esta teoria não consegue
adequar-se a todos os factos, mas parece-me uma aproximação
útil à verdade, particularmente no caso da nossa vida
autoconsciente ou profissional, e é pressuposta por grande
parte do nosso pensamento. É uma teoria simples e que muitos
psicologistas gostariam, obviamente, de manter através da
introdução de desejos inconscientes e opiniões inconscientes de
modo a harmonizá-la melhor com os factos. Não tento julgar
até que ponto tais ficções alcançarão o resultado pretendido;
apenas reclamo para o que se segue verdade aproximada, ou
verdade em relação a este sistema artificial de psicologia, que
penso que, tal como a mecânica newtoniana, pode ser usado
com proveito ainda que se saiba ser falso.
Deve dizer-se que esta teoria não é para ser identificada com a
psicologia dos utilitaristas, na qual o prazer ocupava uma
posição dominante. A teoria que proponho adoptar é a de que
nós procuramos coisas que queremos, que poderá ser o nosso
prazer ou o de outras pessoas, ou o que quer que seja, e as
nossas acções são as que pensamos ter mais probabilidade de
obter esses bens. Mas esta não é uma formulação exacta,
porque uma formulação exacta da teoria só pode ser feita
depois de introduzirmos a noção de quantidade de crença.
Chamemos às coisas que uma pessoa deseja "bens", e
partamos, a princípio, do pressuposto de que eles são
numericamente mensuráveis e podem ser somados. Isso é
mesmo que dizer que se ele prefere intrinsecamente duas horas
de natação a uma hora de leitura, ele preferirá duas horas de
natação a uma hora de natação e uma hora de leitura. No
exemplo dado, isto é obviamente absurdo, mas isto é porque
nadar e ler não são bens supremos, e porque não conseguimos
imaginar uma segunda hora de natação que seja precisamente
igual à primeira, por causa do cansaço, etc.
Comecemos por supor que o nosso sujeito não tem dúvidas
acerca de nada, mas certas opiniões acerca de todas as
proposições. Então podemos dizer que ele escolherá sempre a
acção que conduzirá, na sua opinião, à maior soma de bem.
Devo frisar que, neste ensaio, "bem" e "mal" não são para ser
entendidos em qualquer sentido ético. Designam,
simplesmente, aquilo por que uma pessoa sente desejo ou
aversão.
Aparece então a questão de como havemos de modificar este
sistema simples de modo a levar em conta os graus variáveis
de certeza nas suas crenças. Sugiro que introduzamos como
uma lei da psicologia que o seu comportamento é regido pela
chamada expectativa matemática; isso é o mesmo que dizer
que se p é uma proposição acerca da qual ele está duvidoso,
então quaisquer bens ou males para cuja realização p seja, na
sua opinião, condição necessária e suficiente, entram nos seus
cálculos multiplicados pela mesma fracção, que é chamada
"grau da sua crença em p". Deste modo, definimos o grau de
crença de uma maneira que pressupõe o uso da expectativa
matemática.
Podemos pôr isto de forma diferente. Suponha que o seu grau
de crença em p é m/n; então a acção dele é tal que ele a
escolheria caso tivesse que a repetir exactamente n vezes, em
m das quais p era verdadeiro, e, nas outras, falso. [Aqui talvez
seja necessário supor que em cada uma das n vezes ele não
tinha memória das vezes precedentes.]
Isto também pode ser tomado como uma definição do grau de
crença, e pode facilmente ver-se que é equivalente à definição
anterior. Dêmos um exemplo do tipo de caso que poderia
acontecer. Eu estou numa encruzilhada e não sei o caminho;
mas parece-me que um dos dois caminho é o caminho certo.
Proponho, então, ir nessa direcção, mas ficar alerta para o caso
de aparecer alguém a quem perguntar; se agora vejo alguém a
meia milha nos campos, o eu ir lá perguntar-lhe ou não
dependerá da inconveniência relativa de sair do meu caminho
para atravessar os campos, ou de continuar na estrada errada,
caso esta seja a estrada errada. Mas também dependerá de
quão confiante estou de que estou certo; e, evidentemente,
quanto mais confiante estiver acerca disto, menor é a distância
que estarei disposto a desviar-me da estrada para confirmar a
minha opinião. Proponho, então, que se use a distância que eu
estaria disposto a percorrer como uma medida da confiança na
minha opinião; e o que disse há bocado explica como é que isto
deve ser feito. Podemos pôr a coisa do seguinte modo: suponha
que a desvantagem de percorrer x jardas para perguntar é f(x),
a vantagem de chegar ao destino certo é c, e a de chegar ao
destino errado é e. Então se eu apenas estivesse disposto a
percorrer uma distância d para perguntar, o grau da minha
crença de que estou no caminho certo seria dado por
f (d)
p = 1 ------- .
c-e
Porque tal acção é uma acção que me seria proveitoso realizar,
se tivesse que agir da mesma maneira n vezes, em np das
quais eu estivesse no caminho certo, mas nas outras não. O
bem total resultante de nunca se perguntar de cada vez seria
= npc + n(1 - p)e
= ne + np(c - e),
e o bem total resultante de se perguntar sempre, percorrendo,
de cada vez, uma distância x, seria
= nc - nf(x), [Eu agora vou sempre pelo caminho certo.]
Esta quantidade será maior que a precedente, desde que
f(x) < (c - e) (1 - p),
conclusão: a distância crítica d está ligada com p, o grau de
crença, através da relação f(d) = (c - e) (1 - p)
f (d)
ou p = 1 -------
c-e
como já se mencionou.
É fácil ver que esta maneira de medir crenças dá resultados que
estão de acordo com ideias comuns; em todo o caso, na medida
em que a crença total é denotada por 1, a crença total na
contraditória por 1/2, e crenças iguais nas duas por 1/2. Para
além do mais, esta maneira de medir crenças vê a prontidão em
apostar como um meio de medir crenças. Ao propor uma aposta
em p, nós pomos perante o sujeito uma acção possível da qual
tanto bem adicional resultará para ele caso p seja verdadeiro, e
tanto mal adicional caso p seja falso. Supondo que a aposta é
em bens e males, em vez de ser a dinheiro, ele aceitará uma
aposta com qualquer rácio de oportunidade superior ao seu
estado de crença; com efeito, o seu estado de crença é medido
através do rácio de oportunidade que ele esteja disposto a
aceitar; mas, como já foi explicado, isto está viciado, pelo amor
ou pelo ódio do risco, e pelo facto de que a aposta é a dinheiro
e não em bens e males. Dado que é universalmente aceite que
o dinheiro tem uma utilidade marginal decrescente, se é para se
usar apostas em dinheiro, é óbvio que a parada deverá ser a
menor possível. Mas a medição será novamente perturbada
com a introdução do novo factor da relutância em nos
preocuparmos com ninharias.
Descartemos agora a suposição de que os bens são
imediatamente mensuráveis e podem ser somados, e tentar
chegar a um sistema com tão poucas suposições quanto
possível. Para começar, partiremos do princípio de que, tal
como antes, o nosso sujeito tem certas crenças acerca de tudo;
então ele agirá de modo a que as consequências totais da sua
acção sejam as que ele pensa serem as melhores possíveis. Se
tivéssemos, então, o poder do Todo-Poderoso, e
conseguíssemos convencer o sujeito do nosso poder, nós
poderíamos descobrir como ele colocava todos os estados
possíveis do mundo por ordem de mérito, oferecendo-lhe
opções. Deste modo, todos os mundos possíveis seriam
ordenados pelo valor, mas não teríamos qualquer maneira
definida de os representar através de números. A afirmação de
que a diferença de valor entre e era igual à diferença de
valor entre e seria completamente destituída de sentido.
[Aqui e no resto do ensaio, usaremos letras do alfabeto grego
para representar as diferentes totalidades possíveis de
acontecimento entre os quais o nosso sujeito escolhe - as
unidades orgânicas supremas.]
Suponha agora que o sujeito é capaz de ter dúvidas; então
poderíamos testar o seu grau de crença nas diferentes
proposições fazendo-lhe ofertas do seguinte género. Preferias
ter o mundo de certeza; ou o mundo se p é verdadeiro, e o
mundo se p é falso? Se, então, estivéssemos certos de que p
era verdadeiro, ele limitar-se-ia a comparar e e escolher
entre eles como se não houvesse quaisquer outras
condicionantes; mas se ele estivesse com dúvidas, a sua
escolha não seria decidida tão simplesmente. Proponho assentar
axiomas e definições relativamente aos princípios que regem
escolhas deste tipo. Esta é, obviamente, uma versão muito
esquemática da situação na vida real, mas parece-me ser mais
fácil analisá-la sob esta forma.
Há, em primeiro lugar, uma dificuldade com que devemos lidar;
as proposições como p, no caso anterior, que são usadas como
condicionantes nas opções oferecidas poderão ser tais que a sua
verdade ou falsidade seja um objecto de desejo para o sujeito.
Isto complicará o problema, e temos que assumir que há
proposições para as quais este não é o caso, às quais
chamaremos eticamente neutras. De modo mais preciso, uma
proposição atómica p é denominada eticamente neutra se dois
mundos que diferem apenas no valor de verdade de p são
sempre de igual valor; e uma proposição não-atómica p é
denominada eticamente neutra se todos os seus argumentos de
verdade atómicos (1) são eticamente neutros.
Nós começamos por definir o grau de crença numa proposição
eticamente neutra como sendo de 1/2. Dir-se-á que o sujeito
tem grau de crença 1/2 em tal proposição p caso não tenha
qualquer preferência entre as opções (1) se p é verdadeiro,
se p é falso, e (2) se p é verdadeiro, se p é falso, mas
tem simplesmente uma preferência entre e . Supomos
através de um axioma que se isto é verdadeiro de um par ,
é verdadeiro de todos os pares em circunstâncias
semelhantes (2). Isto significa mais ou menos que se define o
grau de crença 1/2 como o grau de crença que leva a
indiferença no que toca a apostar de um modo ou de outro,
sendo a parada a mesma.
Uma crença de grau 1/2 como foi definida pode ser usada para
medir valores numericamente da seguinte maneira. Nós temos
que explicar o que significa dizer que a diferença de valor entre
e é igual à diferença de valor entre e ; e nós definimos
isto do seguinte modo: se p é uma proposição eticamente
neutra acreditada com grau 1/2, o sujeito não tem qualquer
preferência entre as opções (1) se p é verdadeiro, se p é
falso, e (2) se p é verdadeiro, se p é falso.
Esta definição pode constituir a base de um sistema de medição
de valores da seguinte maneira:
Chamemos a qualquer conjunto de mundos igualmente
preferíveis a um dado mundo um "valor" [sic]: nós supomos
que se o mundo é preferível a , qualquer mundo com o
mesmo valor que é preferível a qualquer mundo com o
mesmo valor que , e diremos que o valor de é maior que o
de . Esta relação "maior que" ordena valores numa série.
Daqui em diante, usaremos para designar tanto um mundo
como o seu valor.
Axiomas
1. Há uma proposição eticamente neutra, p, acreditada com
grau 1/2.
2. Se p e q são proposições eticamente neutras e a opção [ se
p, se não-p] é equivalente a [ se p, se não-p], então [
se q, se não-q] é equivalente a [ se q, se não-q].
Def. No caso acima mencionado, dizemos que
= .
Teoremas. Se = ,
Então = , = ,e = .
2a. Se = , então > é equivalente a
> e = é equivalente a = .
3. Se a opção A é equivalente à opção B, e a B é equivalente à
C, então a A é equivalente à C.
Teorema. Se = e = ,
então = .
4. Se = , = , então = .
5. ( , , ). E! ( )( = ).
6. ( , ). E! ( )( = ).
7. Axioma da continuidade: qualquer progressão tem um limite
(ordinal).
8. Axioma de Arquimedes.
Estes axiomas permitem que os valores sejam associados um-
para-um com números reais, de modo que se 1 corresponde
a , etc.
, = . . 1- 1= 1- 1.
Daqui em diante, usaremos também a para o número real
correspondente 1.
Tendo assim definido uma maneira de medir o valor, nós
podemos agora derivar uma maneira de medir crenças em
geral. Se a escolha de com certeza é indiferente em relação à
escolha de [ se p é verdadeiro, se p é falso](3), nós
podemos definir o grau de crença do sujeito em p como o rácio
da diferença entre e e a diferença entre e (temos que
supor que é o mesmo rácio para todos os , e que
satisfaçam as condições). Isto tem mais ou menos o resultado
de definir o grau de crença em p como o rácio de oportunidades
sob o qual o sujeito apostaria em p, a aposta sendo conduzida
em termos das diferenças de valor tal como definido. A
definição só se aplica a crenças parciais e não inclui certas
crenças; para uma crença de grau 1 em p, com certeza é
indiferente em relação a [ se p e qualquer se não-p].
Também temos que definir uma nova ideia que é muito útil - "o
grau de crença em p dado q". Isto não representa o grau de
crença em "se p, então q", ou em "p implica q", ou o grau de
crença que o sujeito teria em q se conhecesse p, ou o que teria
em p se conhecesse q, ou o grau de crença que devia ter. [NT:
No texto original parece haver uma gralha: "... that which the
subject would have in p if he knew q, or that which the subject
would have in p if he knew q..."] O "grau de crença em p dado
q" expressa aproximadamente o rácio de oportunidades sob o
qual o sujeito apostaria agora em q, sendo a aposta válida
apenas caso p seja verdadeiro. Apostas condicionais deste tipo
eram feitas frequentemente no século dezoito.
O grau de crença em p dado q é medido da seguinte forma.
Suponha que o sujeito é indiferente entre as opções (1) se q
é verdadeiro, se q é falso, e (2) se p é verdadeiro e q é
verdadeiro, se p é falso e q é verdadeiro, se q é falso.
Então o grau da sua crença em p dado que q é o rácio da
diferença entre e e a diferença entre e , que temos que
supor que é o mesmo para todos os , , e que
satisfaçam as condições apresentadas. Isto não é a mesma
coisa que o grau no qual ele acreditaria em p, caso acreditasse
totalmente em q; porque o conhecimento de q poderia, por
razões psicológicas, alterar profundamente todo o seu sistema
de crenças.
Cada uma das nossas definições tem sido acompanhada de um
axioma de consistência, e, na medida em que isto é falso, a
noção do grau de crença correspondente torna-se inválida. Isto
apresenta alguma analogia com a situação relativa à
simultaneidade acima discutida.
Não trabalhei a lógica matemática disto em pormenor, porque
me parece que isso seria como descobrir a sétima casa decimal
de um resultado apenas válido para duas. A minha lógica não
pode ser vista como dando mais do que o tipo de maneira em
que isto poderia resultar.
A partir destas definições e destes axiomas é possível provar as
leis fundamentais das crenças prováveis (os graus de crença
situam-se entre 0 e 1):
1. Grau de crença em p + grau de crença em não-p = 1.
2. Grau de crença em p dado q + grau de crença em não-p
dado q = 1.
3. Grau de crença em (p e q) = grau de crença em p x grau de
crença em q dado p.
4. Grau de crença em (p e q) + grau de crença em (p e não-q)
= grau de crença em p.
Os dois primeiros axiomas são imediatos. (3) é provado da
seguinte maneira.
Seja o grau de crença em p = x, e em q dado p = y.
Então com certeza = + (1 - x)t se p é verdadeiro, - xt
se p é falso, para qualquer t.
+ (1 - x) t se p é verdadeiro
_
| + (1 - x) t +(1 - y) u se "p e q" é
verdadeiro,
|_ + (1 - x) t - yu se p é verdadeiro e q é
falso; para qualquer u.
Escolhamos u de modo a que + (1 - x) t - yu = - xt,
isto é, deixemos que u = t/y (y 0)
Então com certeza
_
| + (1 - x) t + (1 - y) t/y se "p e q" é
verdadeiro
|_ - xt caso contrário,
Se y = 0, tomemos t = 0.
Então com certeza
se p é verdadeiro, se p é falso
+ u se p é verdadeiro, e q verdadeiro; se p é falso, e q
falso;
se p é falso + u, pq verdadeiro; pq falso.
grau de crença em pq = 0.
(4) segue-se de (2) e (3) da seguinte maneira:
Grau de crença em pq = grau de crença em p X grau de crença
em q dado p, por (3). De modo semelhante, grau de crença em
p não-q = grau de crença em p X grau de crença em não-q
dado p soma = grau de crença em p, por (2).
Estas são as leis da probabilidade, que provámos ser
necessariamente verdadeiras de qualquer conjunto consistente
de graus de crença. Qualquer conjunto definido de graus de
crença que as quebrasse seria inconsistente no sentido de que
violava as leis da preferência entre opções, tais como a de que
a preferibilidade é uma relação assimétrica transitiva, e que se
é preferível a então com certeza não pode ser preferível
a [ se p, se não-p]. Se a condição mental de alguém
violasse estas leis, a sua escolha dependeria da forma precisa
sob a qual as opções lhe eram oferecidas, o que seria absurdo.
Poderia ser feito um livro contra ele por um apostador astuto, e
ele perderia em qualquer caso.
Nós descobrimos, portanto, que uma explicação precisa da
natureza das crenças parciais revela que as leis da
probabilidade são leis de consistência, uma extensão da lógica
formal, a lógica da consistência, às crenças parciais. O
significado das leis da probabilidade não está dependente de
qualquer grau de crença numa proposição ser precisamente
determinado como o grau racional; elas apenas distinguem
aqueles conjuntos de crenças que lhes obedecem como
conjuntos consistentes.
Ter qualquer grau de crença definido implica um certo grau de
consistência, nomeadamente disposição para apostar numa
dada proposição sob o mesmo rácio de oportunidades por
qualquer parada, sendo a parada medida em termos de valores
supremos. Ter graus de crença a obedecer às leis da
probabilidade implica um grau adicional de consistência,
nomeadamente consistência entre a probabilidade aceitável em
relação a diferentes proposições de modo a que se evite que um
livro seja feito contra nós.
Talvez não seja despropositado deixar algumas notas em jeito
de conclusão. Em primeiro lugar, esta secção é
fundamentalmente baseada em apostas, mas isto não parecerá
insensato quando se vê que, de certa maneira, nós passamos
toda a nossa vida a apostar. Sempre que vamos para a estação,
estamos a apostar que um comboio passará por lá, e se não
tivéssemos um grau de crença suficientemente alto nisto,
rejeitaríamos a aposta e ficaríamos em casa. As opções que
Deus nos dá estão sempre dependentes de nós adivinharmos se
uma dada proposição é verdadeira. Em segundo lugar, baseia-
se na ideia da expectativa matemática; a insatisfação
frequentemente sentida com esta ideia é devida,
principalmente, à medição inexacta de bens. É evidente que
expectativas matemáticas em termos de dinheiro não são guias
de conduta adequados. Ao julgar o meu sistema, deve ser
lembrado que nele o valor é, na verdade, definido através da
expectativa matemática no caso das crenças de grau !, e pode,
por isso, esperar-se que seja adequadamente ordenado para a
aplicação válida da expectativa matemática também no caso de
outros graus de crença.
Em terceiro lugar, nada foi dito acerca de graus de crença
quando o número de alternativas é infinito. Sobre isto nada
tenho de útil para dizer, excepto que duvido que a mente seja
capaz de contemplar mais que um número finito de
alternativas. Pode considerar questões para as quais um
número infinito de respostas são possíveis, mas de modo a
considerar as respostas deverá agrupá-las num número finito
de grupos. A dificuldade torna-se relevante em termos práticos
quando se discute a indução, mas nem aí me parece haver
necessidade de a introduzir. Nós podemos discutir se as
experiências passadas conferem um grau elevado de
probabilidade ao sol nascer amanhã, sem nos maçarmos sobre
que probabilidade confere ao sol nascer cada manhã para todo
o sempre. Por este motivo, não posso deixar de sentir que a
discussão que o senhor Ritchie faz do problema (4) é
insatisfatória; é verdade que podemos concordar que as
generalizações indutivas não têm que ter uma probabilidade
finita, mas expectativas particulares mantidas com base em
considerações indutivas têm, indubitavelmente, uma
probabilidade numérica alta na mente de todos nós. Todos
estamos mais certos de que o sol nascerá amanhã de que eu
não tirarei um 12 com dois dados logo à primeira, isto é, que
teremos uma crença de grau mais elevado que 1/2 nisso. Se a
indução alguma vez precisar de uma justificação lógica, será em
relação à probabilidade de um acontecimento como este.
Notas:
(1) Estou aqui a assumir a teoria das proposições de
Wittgenstein; seria provavelmente possível dar uma definição
equivalente em termos de qualquer outra teoria.
(2) Deve supor-se que a e b são tão vagos quanto necessário
para que cada um deles seja compatível com p e não-p.
(3) Aqui, b tem de incluir a verdade de p, e g a sua falsidade; p
já não precisa de ser eticamente neutra. Mas temos de partir do
princípio de que há um mundo com um valor indexado no qual
p é verdadeiro, e outro no qual p é falso.
(4) D. Ritchie (1926), p. 318). "A conclusão da discussão
precedente pode ser apresentada de forma simples. Se o
problema da indução for: como é que generalizações indutivas
podem adquirir uma grande probabilidade numérica?, então
este é um pseudoproblema, porque a resposta é: não podem.
Esta resposta não é, contudo, uma negação da validade da
indução, mas uma consequência directa da natureza da
probabilidade. Nada diz sobre o verdadeiro problema da
indução, que é: como é que a probabilidade pode ser
aumentada?, e não faz avançar a discussão do senhor Keynes
sobre este ponto."
[Notas do tradutor
No artigo usa-se a expressão "rácio de oportunidades". Que
quer isso dizer? Simples: imagine que a probabilidade de um
acontecimento é 2/7. Nesse caso, o rácio de oportunidades
seria 2 para 5, o que significa, simplesmente, que há 2
acontecimentos favoráveis para cada 5 acontecimentos
desfavoráveis. Descobrir o rácio de oportunidades dada a
probabilidade de um acontecimento é fácil. Há 7
acontecimentos possíveis. Se 2 são favoráveis, então 5 são
desfavoráveis. É indiferente falar em termos de probabilidades
ou de rácio de oportunidades - é uma questão de conveniência.
("Rácio de oportunidades" é a tradução de "odds". Após várias
buscas na internet, esta proposta de tradução que acabei por
empregar pareceu-me a mais sensata.)
*
Quando Ramsey fala em "fazer um livro", ele está a referir-se a
livros de apostas.
*
Intelectu no 9 - Outubro de 2003
Recensão
António Damásio publica a sua terceira obra, após O Erro de
Descartes (1994) e O Sentimento de Si (1999), numa
continuação temática, orientada para um tipo de comunicação
ao grande público, dentro de motivações tributárias a um teor
científico-cultural geral de divulgação, e que se inserem
perifèricamente pela Teoria da Mente, suas qualificações e
natureza.
As primeiras obras abordam respectivamente o papel das
Emoções no campo da Racionalidade e a corporeidade na Mente
como agente para a criação da Identidade humana. A presente
obra tem como objecto específico as Emoções e Sentimentos,
seus mecanismos e seu papel no comportamento e vivência
humanas. Através do relevo destas facetas psicológicas, através
também de uma contextualização neurofisiológica e
neuropatológica, segura e suficientemente desenvolvida,
Damásio entra, numa teorização pretendidamente inovadora,
por terrenos de uma teoria científica, orgânicofuncional, da
Mente e também por terrenos da Filosofia da Mente. Tudo isto
num esforço de conotação com o sistema filosófico de Espinosa,
pelo menos com a parcela relativa ao problema Mente-Corpo, e
mais fugazmente, com a parcela relativa ao sistema
antropológico de dignificação pela solução salvacionista.
A obra inclui ainda uma apresentação, predominantemente
decorativa, de dados biográficos deste filósofo, associada a uma
revisão airosa de factos histórico-sociais, de aspectos religiosos,
científicos, geográficos, etc., da época, com certo pendor para
as referências ao Judaísmo e sua importância em Portugal e na
Holanda nesse tempo.
Podemos perpassar pelos Capítulos do livro, e encontramos: No
Capítulo 1, "Enter Feelings", introduz-se esta estrutura,
(des)articulada: 'Emoções-Corpo proprioceptivo / Damásio-
emocionado-com-Espinosa / Espinosa emocionado-com-a-sua-
vida'. A obra vai prosseguir nesta linha, numa heterogénea e
algo heterodoxa composição, numa miscelânea que é, apesar
de tudo, a maior atracção do livro (para se falar pouco na
impressão paralisante que o seu estilo literário inexpressivo
causa, embora mais 'vivo' em Inglês do que nas traduções
portuguesas).
O segundo capítulo, "Of Appetites and Emotions", apresenta o
conjunto de dados mais consistente da obra, percorrendo vários
dados médico-científicos sobre funções e disfunções cerebrais e
sobre mecanismos que se correlacionam com estados mentais
impressão paralisante que o seu estilo literário inexpressivo
causa, embora mais 'vivo' em Inglês do que nas traduções
portuguesas).
O segundo capítulo, "Of Appetites and Emotions", apresenta o
conjunto de dados mais consistente da obra, percorrendo vários
dados médico-científicos sobre funções e disfunções cerebrais e
sobre mecanismos que se correlacionam com estados mentais
afectivos. Mesmo assim, qualquer cientista neurofisiologista
desiludir-se-ia facilmente se esperasse uma massa de dados
crua, de números, estatísticas e precisas conclusões acerca de
correlações de estrutura, Histologia, Fisiologia das redes e
sequências neuronais, activações axono-dendríticas, actuações
de áreas funcionais, exemplares, dinâmicas de
neurotransmissão e neurosecreção, aplicação das técnicas de
imagem funcional. Estes dados aparecem, mas são prescritos
em 'doses ligeiras', emoldurados. Damásio não se esquece do
grande público, não se dirigindo à comunidade científica. No
entanto, apresenta em primeira, e se calhar única, mão a sua
proposta inovadora de Teoria da Mente. A comunidade científica
não fica apesar de tudo completamente esquecida, como é
visível pelas referências a vários trabalhos nestes campos, da
sua equipa em Iowa e de outros investigadores.
O Capítulo quarto, "Ever Since Feelings", tem o mesmo sentido
que o terceiro Capítulo ("Feelings"), mas elabora mais esta
configuração. Vigoram conceitos sempre virados para uma
estipulação psicológica, contendo noções como "Homeostase"
(acrescente-se 'fisiológico-mental'), Sentimentos-Feelings de
tipo social, uma ética de fundo neurobiológico.
No Capítulo 5, "Body, Brain and Mind", especifica-se e avança-
se para uma abordagem filosófica, com tangentes ao problema
Mente-Corpo, e à natureza da Consciência e da Mente, com
alusões às propostas cartesiana, kantiana e espinosiana, e
referências a James, Aristóteles, Einstein, entre outros.
No capítulo 6, "A Visit to Spinoza", transita-se não em temática
mas no espaço-tempo para, não tanto a época, mas a vida
pessoal de Bento-Baruch Espinosa, incluindo apreciações da sua
personalidade, pontuadas de indícios de veneração pelo seu
papel histórico-filosófico. Encontra-se menos uma descrição
suficientemente abrangente das obras e sistema de pensamento
de Espinosa.
Perante este caleidoscópio de informação, o inventivo (só no
título "Who's There?") último Capítulo esquece-se de ser uma
conclusão, para se constituir num repositório de parte dos
dados prévios, soltamente apresentados, apenas reforçados por
citações d'A Ética, algumas das quais marcantes, que
transportam inesperadamente as propostas de Damásio para a
boca e pena de Espinosa.
Toda a apresentação deste livro é, assim, (sem dúvida
voluntariamente), desmembrada em várias áreas, (sem dúvida)
interligadas, e que constituem (com certa dificuldade) um todo
que se vislumbra dirigir-se para uma tese monista do Homem
neuromental, em que as Emoções e Sentimentos estabelecem
uma ligação dupla da res extensa à Mente, numa fórmula
Corpo-Mente-Corpo (Constituição periférica-Mente-Cérebro).
Este todo pode ser apreciado em três aspectos.
O aspecto científico-médico, já referido, com as propostas de
correlações psicológico-neuronais, é interessante, consistente e
inatacável directamente, constituindo um conjunto de
descrições de valor biológico inestimável.
O segundo aspecto é o núcleo do livro, e a sua tese (supõe-se).
É (curiosamente) apresentado mais declaradamente nos
primeiros três capítulos e timidamente reiterado no final. A ideia
é que as Emoções e os Sentimentos são a completa base
originária, com estímulos variados, numa adopção behaviorista
típica, nas reacções primárias e mais sofisticadas dos órgãos
sensoriais e internos. É nesta base que se chega à
(desinflamada) conclusão que a Mente é uma espécie de
manifestação da luta pela sobrevivência, centrada no
comportamento instintivo e emocional, como nas reacções de
medo e prazer. Melhor será a conclusão de cariz filosófico, que
o leitor poderá tirar da inacabada teorização do autor.
O terceiro aspecto é constituído pelo percurso cheio de escolhos
pela Filosofia de Espinosa, um pouco toscamente conotado com
as teorias e observações de Damásio, se não se falar das
apreciações biográficas e elogiosas. A abordagem é suave, mas,
pode-se temer, desviada da temática espinosiana mais
profunda, por uma visão insuficiente, e tendente (tendenciosa?)
para articular as teses do filósofo português setecentista com as
do cientista português do século XXI.
Se este tom geral da obra deixa um resto de sabor adocicado,
mas não nutritivo, a verdade é que vários destes aspectos
acabam por, bem pesquisados, permitir várias asserções de boa
consistência e utilidade. Um deles é a divulgação correcta de
aspectos importantes da filosofia espinosiana, nomeadamente a
proposta monista e a importância antropológica do seu sistema,
com a proposta de uma Ética de bases racionalistas, mas com
uma coloração sentimentalista, que reforça a importância do
valor da vida e da salvação humana, através do importante
objectivo de felicidade pelo amor intellectualis Dei. Este aspecto
é claramente apresentado em "Spinoza's Solution", no sétimo
Capítulo. Outra questão muito pertinente é a acentuação da
problemática da Filosofia da Mente no campo monista.
Damásio teria muito a explicar do sistema de Espinosa. Mesmo
assim, a obra em análise é, embora velada e marginalmente,
um contributo para a ideia que a Mente tem quase tudo a ver
com o funcionamento complexo e evoluído do Cérebro, através
de um sui generis funcionamento computacional, bem
documentado pelas reprodutivas acções coerentes dos mapas e
redes neuronais, nucleares e multiorgânicas centrais (Amígdala,
Hipotálamo, Sistema Límbico, Córtexes Cingulado, Préfrontais,
Ventromedial Frontal, Cerebelo, núcleos da Base, vários).
Mas dentro disto, não se deve, finalmente, deixar de referir que
a insistência (progressivamente evanescente) de Damásio numa
articulação sistemática corpo periférico-Cérebro na instituição
do componente mental das Emoções é uma tese pelo menos
excessiva, improvada, e possivelmente falsa. Refira-se, por
exemplo, os comentários simples e claros de Colin McGinn na
sua recensão deste livro no New York Times de 23 de Fevereiro
de 2003 ("Looking for Spinoza: the Source of Emotion"),
quando acentua que os estados mentais não são todos
percepções do corpo nem acerca do corpo: "Quando eu vejo um
pássaro à distância, a minha Retina e Córtex ficam alterados em
relação com isso; contudo, isso não significa que eu não veja
realmente o pássaro, mas /veja/ apenas a minha Retina e
Córtex". O clamar de Damásio de que o Corpo é a origem do
conteúdo da Mente esquece que só as imagens e percepções
primárias, numa elaboração aceite genericamente, são dados
mais próximos do orgânico, e que a Mente constitui o seu
mundo provavelmente na complexização autónoma, numa
dinâmica extensa que vai da percepção básica à abstracção
filosófica, à conceptualização científica quase só acessível ao
génios, ou à êxtase artística - embora não se negando afinal a
associação e participação talvez inquestionável e essencial que
existe nas funções eléctricas das 'celulazinhas cinzentas'.
Júlio Campos
Médico
Hospital de S. João, Porto