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Intelectu no 9 - Outubro de 2003

Editorial
Sofia Miguens & Sara Bizarro

Este número da revista Intelectu é dedicado ao Projecto de


Investigação Racionalidade, Desejo, Crença - a motivação para
a acção do ponto de vista da teoria da mente
(www.letras.up.pt/df/if/gfmc/filosofia_da_mente.html), que
está a decorrer com base no Instituto de Filosofia da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto (Unidade I & D 502 da FCT),
no âmbito das actividades do Gabinete de Filosofia Moderna e
Contemporânea.
Um dos objectivos maiores do Projecto é pôr em contraste
estudos da racionalidade feitos no campo da filosofia analítica e
estudos da racionalidade ligados a outras tradições filosóficas.
Os artigos aqui reunidos situam-se em geral no âmbito da
filosofia analítica, envolvendo de certa forma a ciência cognitiva.
No Arquivo On-line do Projecto
(www.letras.up.pt/df/if/gfmc/filosofia_da_mente.html) estão
disponíveis outros textos, nomeadamente os correspondentes a
conferências e seminários já realizados, alguns dos quais se
situam declaradamente fora do campo da filosofia analítica.
Os artigos incluídos neste número podem ser concebidos no
seio de um mapa de estudos sobre a racionalidade. Estes
distribuem-se em geral por tratamentos da racionalidade téorica
(racionalidade nas crenças) e da racionalidade prática
(racionalidade na acção). É assim natural que os artigos aqui
incluídos cubram assim temas que vão desde a epistemologia à
teoria da acção e à filosofia moral, passando por investigações
psicológicas (psicologia do raciocínio, psicologia evolucionista) e
questões de teoria da decisão.
O artigo de Sofia Miguens, Em que devemos acreditar? tem por
tema questões meta-epistemológicas, i.e. questões relativas à
forma de fazer epistemologia. Na situação presente são muitos
aqueles que defendem que a tradicional tarefa epistemológica
deve ser reformulada em função das investigações científicas da
cognição. As questões meta-epistemológicas surgem assim
como questões prévias às tradicionais questões epistemológicas
sobre conhecimento, justificação, verdade, racionalidade, etc. O
artigo põe em confronto as posições meta-epistemológicas
defendidas por dois filósofos americanos (aliás consultores do
Projecto) Alvin Goldman e Stephen Stich, pretendendo, por esse
meio, chegar a explicitar o estatuto de uma teoria da natureza
da racionalidade.
Os artigos de Pedro Madeira O que é a teoria instrumental da
razão prática? e O que é o modelo crença-desejo? lidam com a
racionalidade prática e têm como primeiro objectivo introduzir o
defendidas por dois filósofos americanos (aliás consultores do
Projecto) Alvin Goldman e Stephen Stich, pretendendo, por esse
meio, chegar a explicitar o estatuto de uma teoria da natureza
da racionalidade.
Os artigos de Pedro Madeira O que é a teoria instrumental da
razão prática? e O que é o modelo crença-desejo? lidam com a
racionalidade prática e têm como primeiro objectivo introduzir o
modo como os problemas desta são contemporâneamente
tratados na filosofia analítica. A teoria instrumental -
usualmente chamada humeana - é uma das principais propostas
quanto à racionalidade na acção. Ela é um teoria dos critérios
que tornam uma acção racional e não uma teoria das razões
para agir. De acordo com a teoria instrumental da razão prática,
uma acção é racional se e só se mobiliza os meios adequados
para satisfazer os desejos do agente. O modelo crença-desejo
é, por seu lado, uma proposta incontornável de teoria da acção:
o modelo visa explicar ou analisar o que constitui uma acção,
acção essa que poderá depois ser ou não considerada racional.
O artigo A objecção de Nagel ao modelo crença-desejo (e o
realismo moral), também de Pedro Madeira, explora a ligação
entre os problemas da teoria da acção e a filosofia moral. Mais
especificamente, procura mostrar como a adopção e particular
formulação de uma determinada teoria da acção (o modelo
crença-desejo) pode pesar de forma definitiva nas posições
defendidas em filosofia moral.
O artigo de Sara Bizarro é sobre Robert Nozick, e a sua
concepção evolucionista da racionalidade. Nozick, em The
Nature of Rationality, propõe uma concepção de racionalidade
baseada na teoria da evolução que representa, nas suas
palavras, uma "revolução copernicana" de Kant ao contrário, na
medida em que a racionalidade é vista não como dando forma
aos factos, mas como tendo sido moldada pelo mundo através
da selecção natural. Para além desta tese, Nozick argumenta
também que a racionalidade não deve ser vista de um ponto de
vista exclusivamente instrumentalista, sendo necessário incluir
a ideia de utilidade simbólica nas nossas escolhas racionais.
Júlio Campos apresenta uma recensão do último livro de A.
Damásio Looking for Spinoza- Joy, Sorrow and the Feeling Brain
(2003). O livro tem sido muito criticado por filósofos (por
exemplo Colin McGinn e David Papineau escreveram recensões
críticas bastante violentas). No entanto, Damásio visa uma
dimensão importante para a compreensão da natureza da
mente em geral e da racionalidade em particular: ele pretende
identificar as bases biológicas da racionalidade, a forma como
estamos desenhados para que emoções e sentimentos
influenciem o modo de pensarmos e agirmos. Ao contrário da
visão clássica segundo a qual as emoções e sentimentos se
oporiam à racionalidade, Damásio defende que eles a
'constituem'. A tese tem obviamente repercussões filosóficas,
que Damásio procura relacionar com o pensamento do filósofo
do século XVII Bento Espinosa.
Incluímos também neste número duas traduções, que nos
parecem particularmente importantes. A primeira é um
extracto, seleccionado por Pedro Madeira, do célebre texto
Truth and Probability (1926) do matemático e filósofo de
Cambridge Frank P. Ramsey (www-gap.dcs.st-
and.ac.uk/~history/Mathematicians/Ramsey.html), onde este
avança uma proposta quanto à forma de usarmos as nossas
acções para medir a força das nossas crenças. O extracto (o
Ponto 3, sobre crenças parciais) é importante para
compreender, de um ponto de vista histórico, tratamentos
quantitativos da noção de escolha que se tornaram importantes
em várias disciplinas (economia, estatística) e não apenas na
filosofia da acção.
O artigo Repensando a Racionalidade: de Implicações
Pessimistas a Módulos Darwinianos de R. Samuels, S. Stich e P.
D. Tremoulet, traduzido por Tomás Carneiro, foi originalmente
publicado em What Is Cognitive Science? (E. LePore & Z.
Pylyshyn, eds., Oxford, Blackwell, 1999) e é aqui incluído com a
permissão dos autores, que agradecemos. O texto põe à
disposição do público de língua portuguesa uma descrição do
estado actual das investigações psicológicas (psicologia
cognitiva, psicologia evolucionista) sobre racionalidade, bem
como uma perspectiva das interpretações filosóficas a que estas
têm conduzido. Algumas décadas após os estudos pioneiros de
Amos Tversky, Daniel Kahneman e outros psicólogos do
raciocínio cujas descobertas levantaram problemas à ideia
tradicional dos seres humanos como 'animais intrinsecamente
racionais', a perspectiva darwinista vem desafiar as implicações
pessimistas que na altura pareciam impôr-se.
Esperamos que a abrangência dos artigos contidos neste
número da Intelectu dê aos leitures da Revista uma noção da
variedade de tratamentos da racionalidade em curso na filosofia
analítica e na ciência cognitiva. O problema da natureza da
racionalidade é, de certa forma, tão antigo como a própria
filosofia, no entanto é um desafio específico procurar mapear e
explorar os meios conceptuais com que hoje o enfrentamos.
É uma honra para a Intelectu colaborar pela primeira vez com
um projecto independente, patrocinado por uma Unidade de
Investigação e Desenvolvimento financiada pela Fundação para
a Ciência e Tecnologia.
Por sua vez o Gabinete de Filosofia Moderna e Contemporânea
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto agradece
vivamente à Intelectu a possibilidade de aqui publicar
resultados de um dos seus Projectos.

Sara Bizarro, Intelectu


Sofia Miguens, Gabinete de Filosofia Moderna e Contemporânea
da FLUP

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Intelectu no 9 - Outubro de 2003

Em que devemos acreditar?


Questões epistemológicas e investigações cognitivas
(A. Goldman versus S. Stich)
Sofia Miguens

Resumo
O objectivo deste artigo é compreender como devemos abordar
as questões da racionalidade teórica, ou racionalidade nas
crenças, numa situação, como a presente, em que o
conhecimento é objecto não apenas da filosofia mas também de
várias ciências cognitivas. Para isso será necessário considerar
questões meta-epistemológicas, i.e. questões relativas à forma
de fazer epistemologia, antes de considerar questões
propriamente epistemológicas, nomeadamente questões
relativas á natureza da justificação. Os filósofos americanos A.
Goldman e S. Stich, que procuram reformular a tarefa da
epistemologia à luz das investigações sobre cognição, servem-
me de orientação. Numa primeira parte do artigo descrevo a
forma como Goldman (Goldman 1986) concebe as relações
entre epistemologia e investigações cognitivas e a sua teoria da
natureza da justificação, incluindo as concepções de Regras-J
(regras justificativas), critérios de correcção e teste do
equilíbrio reflectido. Numa segunda parte discuto um aspecto da
proposta de Goldman, a relação entre o teste do equilíbrio
reflectido e a ideia segundo a qual a tarefa epistemológica se
reporta ao conceito de justificação implícito no pensamento e
linguagem comuns. Baseando-me no ataque de S. Stich à
'epistemologia analítica' (Stich 1993), concluo que, embora a
proposta de Goldman represente um passo em frente
relativamente a um certo apriorismo da epistemologia, a ideia
de ligar definitivamente a noção de justificação com a
linguagem e o pensamento comuns choca com os princípios
dessa proposta. Numa terceira parte do artigo sugiro que a
teoria pragmática da avaliação epistémica de Stich (Stich 1993)
constitui uma melhor proposta quanto às repercussões das
investigações cognitivas no trabalho do epistemólogo.
Argumento, com base na teoria de Stich, que a epistemologia
feita à luz dos estudos científicos da cognição não deve (i)
restringir a concepção de justificação à linguagem e
pensamento comuns nem (ii) presumir que os agentes
cognitivos eles próprios querem saber se as suas crenças são
verdadeiras e os seus raciocínios racionais.

1. O que fazemos quando fazemos epistemologia (segundo


feita à luz dos estudos científicos da cognição não deve (i)
restringir a concepção de justificação à linguagem e
pensamento comuns nem (ii) presumir que os agentes
cognitivos eles próprios querem saber se as suas crenças são
verdadeiras e os seus raciocínios racionais.

1. O que fazemos quando fazemos epistemologia (segundo


Alvin Goldman).

Alguém que se interesse hoje pela natureza do conhecimento


deparar-se-á com um problema: o conhecimento (ou 'cognição')
é actualmente um objecto teórico quer para a filosofia quer para
a ciência cognitiva. Qual das abordagens devemos preferir?
Supondo que o nosso interesse visa as questões
epistemológicas tradicionais da filosofia - tais como será que
podemos conhecer o que quer que seja? quais são as fontes do
conhecimento? o que é inato na mente? o que é
'conhecimento'? o que conta como justificação? qual é a melhor
teoria da justificação epistémica? - que tipo de atenção
devemos conceder às investigações científicas sobre cognição?
A obra do filósofo americano Alvin Goldman é um guia possível
nesta situação. Goldman chama a atenção para a necessidade
de relacionar explicitamente as questões epistemológicas
tradicionais com os estudos científicos da cognição e procura
formular as modificações para a tradicional tarefa
epistemológica que essa relação envolve. As propostas
epistemológicas de Goldman que aqui me interessam foram
centralmente formuladas em Epistemology and Cognition
(1986) e desenvolvidas em várias obras posteriores (Goldman
1992b, Goldman 1993, Goldman 1999, Goldman 2002) (1). Ao
procurar enfrentar as alterações trazidas pelo estudo científico
da cognição às tradicionais questões da epistemologia, Goldman
acaba por ser conduzido a uma posição acerca da racionalidade.
É certo que o próprio Goldman não concebe as suas
investigações epistemológicas como dizendo centralmente
respeito à racionalidade. Ele considera 'racionalidade' um termo
de louvor epistémico bastante vago, preferindo considerar que
investiga a natureza da justificação (justifiedness). Goldman
defende de qualquer modo que a sua abordagem
epistemológica, feita à luz das investigações cognitivas, lhe
permite - por contraste com a análise da linguagem e com
teorias formais como a lógica, a teoria da decisão ou a teoria
das probabilidades - pronunciar-se acerca da natureza da
justificação.
Considerando que as investigações epistemológicas visam em
geral oferecer uma teoria do conhecimento como crença
verdadeira e justificada, temos então que das dimensões
envolvidas na definição (crença, verdade, justificação) é a
justificação que constitui o foco da epistemologia de Goldman
(2). Quanto às restantes condições para o conhecimento, a
crença e a verdade, Goldman pronuncia-se mais brevemente.
Relativamente às crenças e contra, por exemplo, posições
eliminativistas em filosofia da mente, Goldman considera-as
estados mentais reais (estados com conteúdo, i.e. com
propriedades semânticas tais como significado, referência ou
condições de verdade). Quanto à verdade, Goldman defende
uma concepção realista e não epistémica: ele pensa que quando
uma determinada asserção (que pode ser tornada verdadeira ou
falsa) é verdadeira ou falsa, aquilo que a torna verdadeira ou
falsa transcende o conhecimento e a verificação. O núcleo
essencial do realismo quanto à verdade é, para Goldman, esta
transcendência ao conhecimento e à verificação. É isso que faz
da verdade uma questão não epistémica (Goldman 1986, Cap.
7, Truth and Realism). Mas, basicamente, e é isso que me
interessa aqui, Goldman pensa que quando se trata de
desenvolver uma teoria epistemológica, a 'verdade' necessita de
menos explicação do que a 'justificação' (aliás, permitirá mesmo
compreender o que entendemos por 'justificação'). De resto,
Goldman considera que conhecidas abordagens da verdade e do
realismo, tais como as de M. Dummett e H. Putnam (3),
viraram o problema da justificação e da verdade às avessas ao
considerarem que aquilo que necessita mais de explicação em
metafísica e epistemologia é a verdade, e pressupondo que a
justificação e a racionalidade (evocadas na teoria da verdade)
não são problemáticas. Apenas uma tal postura torna legítimo
definir a verdade, como faz por exemplo Putnam em Razão,
Verdade e História (1981), como 'idealização da aceitabilidade
racional'.
À teoria da justificação que vou descrever subjazem, assim,
uma teoria realista da crença e uma teoria realista da verdade.
Obviamente, qualquer umas destas posições é polémica, e
Goldman está perfeitamente consciente disso. No entanto, não
as dicutirei aqui, uma vez que o que me interessa é a
reformulação da tarefa epistemológica devido ao contacto com
a ciência cognitiva que Goldman propõe. Procurarei portanto
antes de mais descrever a posição meta-epistemológica de
Goldman, i.e. aquilo que ele pensa que deve ser a relação entre
a epistemologia e os estudos da cognição. A situação é a
seguinte. O projecto tradicionalmente filosófico da
epistemologia envolve, como já referi, questões como será que
podemos conhecer o que quer que seja? quais são as fontes do
conhecimento? o que é 'conhecimento'? o que conta como
justificação? o que é inato na mente?. Esse projecto tem sido,
directa ou indirectamente, desafiado, nas últimas décadas,
pelos estudos científicos da cognição, que avançam com teorias
e investigações acerca de, por exemplo, percepção, memória,
raciocínio, correlatos neuronais de funções mentais, evolução
por selecção natural de módulos computacionais da mente, etc.
Tais estudos são obviamente relevantes para o tratamento das
questões filosóficas tradicionais. A sua existência constitui
mesmo um desafio para o estudo filosófico do conhecimento.
Goldman procura enfrentar esse desafio e manter - por
contraste com autores como por exemplo R. Rorty (Rorty 1979)
- um papel filosófico para a epistemologia. Mas se, de acordo
com Goldman, a epistemologia continua a ser incumbência da
filosofia, não se vendo, contrariamente ao que Quine ou Rorty
de alguma forma proclamam (Quine 1969, Rorty 1979), pura e
simplesmente afastada do seu papel tradicional pela
investigação empírica da cognição, essa incumbência não pode
continuar a ser levada a cabo da forma apriorista característica
da tradição.
É a oposição ao apriorismo característico do tratamento
tradicional das questões epistemológicas que conduz Goldman à
proposta daquilo a que chama uma 'epistémica'. A epistémica é
para Goldman um empreendimento que liga a epistemologia
tradicional com a ciência cognitiva por um lado e com disciplinas
das ciências sociais e das humanidades que exploram os
processos interpessoais e culturais que influem sobre crenças e
conhecimento por outro. A epistémica deverá ter, segundo
Goldman, duas partes, uma individual e outra social. É a parte
individual da epistémica que requer a contínua aportação da
ciência cognitiva, daquilo que esta vai descobrindo acerca da
arquitectura e dos processos da mente-cérebro.
Goldman não presume abrir, com a sua proposta, um caminho
totalmente novo na maneira de fazer epistemologia. Na verdade
ele considera como antecedentes da epistémica (mais
especificamente da epistémica primária) (4) a epistemologia
psicologista dos séculos XVII a XIX bem como a própria
proposta quineana de uma epistemologia naturalizada. Mas
embora existam antecedentes históricos, Goldman considera
que grande parte da epistemologia recente foi, por razões
várias, dominada por um espírito anti-psicologista. Essas razões
foram nomeadamente as seguintes: (i) o facto de a
epistemologia ser vista como metodologia e portanto como um
estudo anterior às ciências e autónomo relativamente a estas,
envolvendo por exemplo a lógica, a teoria das probabilidades e
a estatística, disciplinas formais nas quais não há necessidade
de levar em conta a realidade psicológica da cognição, (ii) o
facto de a epistemologia ser vista como análise puramente
filosófica de conceitos epistémicos tais como 'conhecimento',
'justificação', etc, (iii) o facto de a epistemologia ser vista como
uma dissolução wittgensteiniana de puzzles e paradoxos
conducentes ao cepticismo, (iv) o facto de a epistemologia ser
vista como normativa, por oposição ao carácter descritivo de
ciências empíricas (Goldman 1986: 2-3).
É por não aceitar nenhuma destas razões que Goldman
considera ser imperativo restruturar e redirigir o campo da
epistemologia. Isso far-se-á começando por admitir que os
resultados em ciência cognitiva são relevantes para a
epistemologia, que a epistemologia não pode fazer-se de forma
puramente apriorista e que nem áreas disciplinares formais que
oferecem os cânones usualmente evocados de racionalidade
(tais como a lógica e a teoria das probabilidades) nem
empresas aprioristas tais como a análise da linguagem comum
podem por si só delinear princípios de racionalidade ou
justificação. De acordo com Goldman, questões cognitivas
relativas à arquitectura da mente e às operações, poderes e
limitações da mesma, têm necessariamente que ser levadas em
consideração quando se procura delinear princípios de
racionalidade e crença justificada. Saber exactamente de que
arquitecturas cognitivas e de que poderes mentais falamos é
essencial para nos podermos pronunciar acerca de racionalidade
e justificação. Por esta razão, para Goldman, a maneira
pertinente de fazer epistemologia hoje consiste em procurar
cruzar os tópicos clássicos (cepticismo, noção de conhecimento,
justificação, verdade, etc) com aquilo que a ciência cognitiva
nos permite ir sabendo acerca dos processos da mente-cérebro
(relativos a percepção, memória, raciocínio, constrangimentos
representacionais, códigos internos, estruturas inatas, etc).
Mas o facto é que a caracterização da arquitectura e dos
processos da mente-cérebro recai em grande medida no âmbito
da ciência cognitiva: assuntos tais como a percepção ou a
memória ou a evolução de um módulo da mente podem ser
tratados pela ciência cognitiva sem qualquer apelo à filosofia.
Onde fica então a filosofia segundo Goldman? O que há de
específicamente filosófico no inquérito epistemológico? Para
Goldman, apesar de muitos inquéritos empíricos serem
relevantes para a problemática epistemológica, é a filosofia que
'conduz' (no sentido de 'orquestrar', pôr a trabalhar em
conjunto) o inquérito epistemológico. Isto deve-se à natureza
valorativa da epistemologia. De facto, segundo Goldman, a
epistemologia é um empreendimento de avaliação que tem por
objecto os processos de formação e revisão de crenças. Até
aqui nada de novo: não é novidade considerar que a
epistemologia está interessada em justificação epistémica nem
que a noção de justificação encontra o seu foco nas crenças de
agentes. O que é novo é o seguinte: Goldman não se limita a
considerar que a epistemologia avalia o direito dos agentes a
terem as crenças que têm. Ele dá um passo em frente e
defende a necessidade de olhar para essas crenças não como
um ponto de partida não problemático e sim como o resultado
de processos cognitivos no seio de uma arquitectura cogitiva
determinada (Goldman afirma aliás claramente que o contributo
principal da ciência cognitiva para a epistemologia consiste na
identificação dos processos básicos de (i) formação de crenças e
(ii) resolução de problemas). Nenhum empreendimento
epistemológico de avaliação pode ser levado a cabo sem
considerar descrições de arquitectura e processos cognitivos de
agentes. Quando se pergunta a um agente cognitivo 'Como é
que sabes?' é da maior importância para a avaliação de
respostas tais como 'Vi', 'Ouvi', 'Recordo-me que..', 'Inferi de A
e B que C...', saber o máximo acerca da arquitectura e
processos cognitivos desse agente.
O que significa na prática a divisão de trabalho entre filosofia e
ciência cognitiva? Tomemos a como exemplo a memória, que é
uma das principais fontes de crenças. Embora a memória não
origine crenças, processos inferenciais reais, pelos quais se
formam novas crenças, dependem da disponibilidade na
memória dos agentes de determinadas crenças de partida. Ora
o armazenamento na memória humana está sujeito a
determinadas condições (por exemplo distinções entre memória
de curto e longo prazo, estrutura compartimentalizada, um
determinando poder, uma determinada fiabilidade, etc).
Qualquer caracterização do conhecimento ou da racionalidade
que ignore estas limitações e especificações, que podem ser
empiricamente estudadas e que constrangem a disponibilidade
das crenças que constituem ponto de partida de inferências em
agentes humanos, será uma caracterização irrealista da
racionalidade. Temos assim que a ciência cognitiva faz
descrições e caracterizações, neste caso avança com modelos e
teorias da memória, e que o objectivo do epistemólogo é
compreender as repercussões epistémicas das descrições e
caracterizações (neste caso, por exemplo analisando o que
constitui evidência disponível e acessível a um particular agente
num dado momento temporal, concebendo a essa luz as
'obrigações de inferência' imputáveis ao agente, analisando o
que deve entender-se por 'reunião de evidência
epistemicamente responsável', ou mesmo reformulando o que
deve entender-se por 'crença', incluindo ou não o
armazenamento 'não-activado' de informação).
A intuição básica é a seguinte: grande parte das caracterizações
da racionalidade ao longo da história do pensamento não
consideraram as condições e limitações específicas da cognição
humana tendo sido portanto 'cognitivamente irrealistas' (5).
Autores como C. Cherniak e G. Harman (Cherniak 1986,
Harman 1999), entre outros, sublinharam este ponto e
chamaram a atenção para o facto de tarefas aparentemente tão
essenciais à racionalidade de um agente tais como a verificação
da consistência das crenças do corpo de crenças por algum
processo como tabelas de verdade ou a manutenção em
memória da evidência que conduziu originalmente a cada uma
das crenças do corpo de crenças, podem ser
computacionalmente intratáveis (6) ou cognitivamente
inexequíveis. Assim sendo, elas não são razoavelmente
exigíveis aos agentes, não devendo estes ser considerados
irracionais por não as executarem.
A ciência cognitiva obriga assim o epistemólogo ao 'realismo'
quanto a arquitectura e processos cognitivos de agentes.
Relativamente à aportação específica da epistemologia, o que
caracteriza segundo Goldman, o enfoque do epistemólogo é a
atenção à normatividade: fazer epistemologia é levar a cabo
avaliação epistémica, i.e. avaliar o direito que os agentes têm
às suas crenças, crenças que foram obtidas de maneiras
diversas. A normatividade que interessa o epistemólogo não é
no entanto a normatividade 'ideal' de disciplinas formais (como
a lógica, a teoria da decisão e a teoria das probabilidades)
precisamente porque a normatividade que o epistemólogo
procura capturar deve atender às condições reais do agente
cognitivo.
Definida esta concepção meta-epistemológica, a ideia de
Goldman acerca dos objectivos da própria epistemologia é, em
traços largos, a seguinte.
O projecto maior da epistemologia é desenvolver uma teoria da
justificação epistémica, uma teoria que explique o que
entendemos por 'justificação'. A noção comum de 'justificação'
pode ser vaga, mas Goldman pensa que existe um núcleo
comum àquilo que consideramos 'justificado' e é esse núcleo
comum que tenta capturar. A sua proposta consiste em analisar
a justificação em termos de regras. A ideia é que quando
consideramos algo 'justificado' o que estamos a fazer é
considerá-lo 'conforme com determinadas regras'. A ambição
fundamental da teoria da justificação será articular o sistema de
regras justificativas de que nos servimos ao avaliar o estatuto
de crenças e outros estados cognitivos. A estas regras
justificativas Goldman chama Regras-J.
O que são as regras-J? As Regras-J são regras que permitem ou
proibem crenças, que especificam os modos como um agente
cognitivo pode mover-se ao formar ou actualizar estados
cognitivos. As Regras-J 'permitem' e 'proibem' não no sentido
de fornecerem instrucções que um agente cognitivo voluntaria e
conscientemente deve seguir na formação de crenças (até
porque a formação e actualização de crenças não está assim tão
submetida à vontade do agente - pense-se nas crenças
perceptivas, por exemplo) mas no sentido em que (1) capturam
a semântica da linguagem de avaliação epistémica, o sabor
deôntico desta. Noutras palavras, quando dizemos que uma
crença é 'justificada' o que estamos a fazer é considerá-la um
estado cognitivo apropriado, algo a que o agente tem direito (is
entitled to). É esse 'direito a', o 'ser permitido', o 'ser
apropriado', que as Regras-J procuram formular explicitamente.
As Regras-J permitem ainda, na medida em que proporcionam
uma estrutura neutra para falar de avaliação epistémica, (2)
construir uma taxinomia das teorias da justificação epistémica
usualmente discutidas em epistemologia (fundacionalismo,
coerentismo, fiabilismo, etc). Finalmente as Regras-J permitem
(3) ter constantemente presente o paralelismo, muito
importante para Goldman, entre avaliação epistémica e
avaliação moral e social.
As regras-J que interessam o epistemólogo não são, repita-se,
'regras para a direcção do espírito', instrucções cuja aplicação
voluntária e explícita o epistemólogo aconselharia (não são
'regras do método', nos termos da diferença entre processos e
métodos explicada na nota 4). O que Goldman pretende com o
enquadramento de regras (rule framework) da sua
epistemologia é analisar ou explicar (explicate) aquilo de que
falamos quando falamos de justificação, não é 'fornecer
instrucções'.
Formular a justificação em termos de regras não significa no
entanto aceitar que estados cognitivos sancionados por regras
quaisquer são justificados: diferentes pessoas podem ter ideias
totalmente diferentes sobre os processos que geram crenças
justificadas, o que as conduz a propor conjuntos de regras-J
diferentes ou incompatíveis, ou mesmo regras-J absurdas (por
hipótese: Todas as crenças formadas à terça-feira são
justificadas, ou Todas as crenças baseadas no testemunho do
homem de preto que vive no centro da cidade C são
justificadas). As regras que o epistemólogo visa pretendem ser
as regras correctas (right). Nasce assim o problema que
consiste em saber qual sistema de regras-J, dos vários que são
fomuláveis, é o correcto. Para enfrentar esse problema
Goldman faz apelo, e esse é um dos núcleos da proposta
epistemológica de Epistemology and Cognition, a um critério de
ordem superior a que chama criterion of rightness (critério de
correcção). Um critério de correcção é um standard que
especifica condições factuais, substantivas, para um conjunto
de Regras-J ser correcto. Essas condições não podem, de
acordo com Goldman, evocar noções epistémicas. Para termos
um exemplo da forma daquilo a que Goldman chama critério de
correcção para um sistemas de regras justificativas,
consideremos um exemplo do âmbito não epistemológico mas
moral:
Um sistema R de regras morais é correcto se e só se R for um
sistema de regras morais decretado por Deus (Goldman 1986:
64).
Os critérios de correcção alternativos para um sistema R de
regras-J considerados por Goldman em Epistemology and
Cognition são os seguintes:
(i) ser derivável da lógica e teoria das probabilidades
(ii) ser escolhido por alguém que acreditasse em todas as
verdades da lógica e teoria das probabilidades e fosse ignorante
de todos os factos contingentes
(iii) ser aceite pelos jogadores do nosso jogo de linguagem
(Wittgenstein)
(iv) ser aceite pelos membros da nossa matriz disciplinar
(Kuhn)
(v) ser aceite pelos nossos pares (Rorty)
(vi) garantir um conjunto coerente de crenças
(vii) permitir atitudes doxásticas proporcionais à força da
evidência disponível
(viii) ser tal que a conformidade com R maximiza o número
total de crenças verdadeiras do agente
O problema é obviamente decidir entre estes critérios e é isso
que Goldman se propõe fazer através do que chama a
'concepção Goodman-Rawls dos juízos considerados em
equilíbrio reflectido'. Talvez seja conveniente recordar, antes de
mais, o problema para o qual o equilíbrio reflectido pretendeu
historicamente constituir uma solução. O problema era o
seguinte: como podem standards cognitivos ser descobertos e
defendidos? qual é a natureza desses standards? Como
justificamos por exemplo uma dedução? Como justificamos uma
inferência indutiva? A sugestão do proponente original do
equilíbrio reflectido, o filósofo Nelson Goodman (Fact, Fiction,
Forecast 1965), foi a seguinte. Antes de mais, a explicação da
justificação visa a análise da noção comum de inferência
justificada. Goodman descreveu depois um processo, um teste,
que forneceria essa análise e que consistia em pôr de acordo
uns com os outros juízos acerca de particulares inferências e
princípios gerais de inferência. Propôs então que toda a
justificação necessária e possível para princípios inferenciais
residia nesse acordo. J. Rawls, a quem se deve a expressão
reflexive equilibrium para nomear tal processo de ajustamento,
utilizou, na sua teoria da justiça, uma versão do processo de
Goodman para justificar princípios e juízos morais.
Recapitulemos: a ideia básica do equilíbrio reflectido é a ideia
segundo a qual (i) se explica a justificação analisando o uso
comum de 'inferência justificada', (ii) a explicação ou análise se
faz através de um teste que consiste num processo de delicados
ajustamentos mútuos entre regras gerais formuladas e
inferências particulares aceites. Uma regra que mantemos será
emendada se produzir uma inferência que não estamos
dispostos a aceitar, uma inferência será rejeitada se violar uma
regra que não estamos dispostos a emendar. Voltando a
Goodman e à formulação original do equilíbrio reflectido temos
o seguinte: dizemos por exemplo que uma dedução (uma
inferência particular) se justifica pelo facto de ser levada a cabo
conforme regras gerais de inferência dedutiva. Um argumento
que esteja de acordo com as regras é considerado válido
mesmo que a conclusão seja falsa, um argumento que viole as
regras é considerado falacioso mesmo que a conclusão seja
verdadeira. Mas o que justifica as regras elas próprias? Não é
suposto que estas sejam arbitrárias, mas sim de alguma forma
também elas válidas. Poderiamos por hipótese proclamar que as
regras são evidentes ou que elas estão inscritas na própria
natureza da mente humana. Mas Goodman pensa que a
resposta 'está mais próxima da superfície' e é aí que propõe o
equilíbrio reflectido.
A sugestão epistemológica de Goldman em Epistemology and
Cognition vem nesta linha: ele propõe-se (i) examinar sistemas
de regras-J que seriam gerados por cada um dos critérios
candidatos acima listados, (ii) reflectir sobre as implicações
desses sistemas de regras relativamente a particulares juízos de
justificação e (ii) verificar se os juízos estão de acordo com as
intuições pré-teóricas. Desta forma, um critério será fortalecido
ou enfraquecido. Note-se que, como é característico do
equilíbrio reflectido, não é suposto tomarmos as intuições como
uma última palavra, uma vez que elas podem ser ajustadas
reflectindo sobre os critérios. De qualquer forma, um sistema de
regras considerar-se-á justificado se passar o teste do equilíbrio
reflectido (convém sublinhar que Goldman diz abertamente que
este não é o nível no qual a psicologia 'é chamada' à
epistemologia - a psicologia só entra se algum dos critérios
candidatos fizer apelo a processos psicológicos).
Como afirmei, Goldman examina os critérios acima enumerados
e afasta-os por diferentes razões. As razões são basicamente as
seguinte. No caso dos Critérios (i) e (ii) a razão fundamental é a
incompletude: o máximo que regras lógicas podem fornecer é
um subconjunto das regras justificativas, com nada a dizer
acerca de inferências não dedutivas, que constituem uma
grande parte da vida cognitiva de agentes como nós. E mesmo
que a teoria das probabilidades pudesse ajudar a propor regras
justificativas para o âmbito da indução (embora a epistemologia
da teoria das probabilidades seja notoriamente problemática),
certamente nem a lógica nem a teoria das probabilidades
teriam algo a propor quanto a regras justificativas para o
âmbito da percepção e da memória, fontes essenciais das
crenças humanas. Aliás e em geral, regras lógicas e verdades
da teoria das probabilidades nada afirmam acerca de formação
de crenças, nem, de resto, acerca da realidade psicológica do
raciocínio. Os Critérios (i) e (ii) teriam ainda que lidar com os
seguintes problemas: porquê dar à lógica e à teoria das
probabilidades um estatuto especial numa teoria da
justificação? Isso quer dizer que as verdades dessas teorias são
verdades necessárias? Cognoscíveis a priori? Tudo isso é
problemático. Quanto aos Critérios (ii-v) eles partilham uma
perspectiva social e 'local', associando 'justificação' àquilo que é
aceite numa dada comunidade. Mas o que garantiria que as
regras-J admitidas pelo critério conferissem justificação?
Nomeadamente, não poderia a particular comunidade a que o
agente pertence estar errada? Quanto ao Critério (v) é duvidoso
que a coerência seja um requisito suficientemente forte para a
justificação. Quanto ao Critério (vi), a sua formulação envolve o
termo epistémico 'evidência', o que vai contra os
constrangimentos impostos pelo próprio Goldman. Quanto ao
Critério (vii), que é um critério fiabilista, formulado em termos
de número total de crenças, enfrenta a mesma objecção que
todas as teorias fiablistas ao empregar a 'verdade' para
capturar a justificação. Goldman virá no entanto a aceitar uma
versão 'afinada' de critério fiabilista como sendo o critério de
correcção que que se adapta à noção de 'justificação' envolvida
no pensamento comum ou na linguagem comum (ou no núcleo
comum à várias concepções que, segundo Goldman, encontram
um certo apoio nas nossas intuições). Goldman formula-o assim
(Goldman 1993: 106):

CRITÉRIO DE CORRECÇÃO: um Sistema R de Regras-J é


correcto se e só se R permite certos processos psicológicos
básicos e a instanciação destes processos resulta numa ratio de
verdade de crenças que satisfaz um determinado limiar
(superior a 50%)).

Goldman justifica cada elemento da sua proposta, explicando


nomeadamente o que entende por processos (ao contrário de
algoritmos, heurísticas e em geral métodos susceptíveis de
aprendizagem, processos são relativos a cadeias causais da
cognição) (7), a razão porque aceita argumentos a favor do
consequencialismo na avaliação de processos, etc. Saliento
apenas que o critério consequencialista de processos proposto
por Goldman é um truth-linked criterion (um critério ligado-à-
verdade ou fiabilista), e que as teorias fiabilistas da justificação
epistémica são frequentemente acusadas de circularidade pelo
facto de utilizarem a 'verdade' para dar conta da 'justificação'.
Depois de tratar as questões fundacionais da sua epistemologia,
Goldman pode passar à prática da epistémica primária e
portanto à análise das repercussões epistemológicas de
particulares investigações em ciência cognitiva (investigações
relativas a percepção, memória, formato de representações,
raciocínio, etc). É isso que faz na segunda parte de
Epistemology and Cognition. Mas o que me interessa aqui não
são tanto os ensaios de epistémica que Goldman tem vindo a
produzir, não apenas em Epistemology and Cognition mas ao
longo de toda a sua obra, e sim a forma como ele, apesar da
sua concepção meta-epistemológica anti-apriorista, evoca
finalmente algo que se pode considerar análise conceptual para
capturar a natureza da justificação.

2. Equilíbrio reflectido ou epistemologia analítica? A crítica de S.


Stich a A. Goldman. A epistemologia segundo S. Stich.

Fazer apelo à análise conceptual para capturar a natureza da


justificação é evidentemente uma ideia problemática. Para
Stephen Stich (Stich 1993), ela é suficiente para classificar a
epistemologia de Goldman como 'epistemologia analítica'. A
'epistemologia analítica' - o grande alvo da teoria pragmatista
da avaliação epistémica avançada por Stich - é definida da
seguinte forma: "Proponho a expressão 'epistemologia analítica'
para denotar qualquer projecto epistemológico que considera
que a escolha entre regras justificativas ou critérios de
correcção concorrentes depende de análise conceptual ou
linguística. Uma fracção substancial dos escritos
epistemológicos de língua inglesa dos últimos 25 anos constituiu
epistemologia analítica. No entanto eu penso que se a teoria
epistemológica analítica for tomada como parte de um inquérito
normativo cuja finalidade é dizer às pessoas quais processos
cognitivos são bons e quais elas devem usar, então para a
maior parte das pessoas ela mostrará ser um fracasso, além de
irrelevante" (Stich 1993: 91).
Indo direito ao ponto, a grande razão para a oposição de Stich à
epistemologia analítica é o facto de ele olhar para a questão da
avaliação epistémica como uma questão prática: trata-se de
dizer 'quais processos cognitivos são bons', 'quais processos
cognitivos as pessoas devem utilizar'. Em contrapartida para
Goldman (pelo menos aos olhos de Stich) a questão da
avaliação epistémica é uma 'questão téorica', uma questão
acerca da natureza da justificação. Mas o que é que a natureza
da justificação importaria ao agente cognitivo enquanto agente,
pergunta Stich? Que importância tem a natureza da
'justificação' quando se trata de conduzir os nossos assuntos
cognitivos? Pelo menos da perspectiva de Stich estas são
questões relevantes para o epistemólogo.
É fundamentalmente devido à sua concepção 'prática' de
epistemologia que Stich se ergue contra a ideia segundo a qual
a finalidade de uma teoria da avalição epistémica é 'revelar',
por análise, o conceito de justificação implícito no pensamento e
linguagem comuns. Para Stich uma tal concepção da teoria da
avaliação epistémcia, característica da epistemologia analítica,
faz da investigação epistemológica um empreendimento
conservador, paroquial e sem qualquer intuito prático (além do
mais, passa por cima do facto de os nossos processos cognitivos
poderem eles próprios ser avaliados instrumentalmente, como
explicarei a seguir).
O posicionamento que acabei de descrever tem paralelo na
forma como Stich olha para o campo histórico da epistemologia.
Ele considera que a epistemologia se faz tradicionalmente de
pelo menos três maneiras: (i) como avaliação dos métodos do
raciocício e do inquérito (foi o que fizeram Bacon, Descartes,
Mill, Carnap, Popper), (ii) como análise da noção de
'conhecimento' (de Platão a Gettier), (iii) como resposta aos
argumentos cépticos (de Descartes a Moore). Ora Stich pensa
que (ii) e (iii) são vias de certa forma bizarras, e que apenas (i)
tem possivelmente implicações importantes para a maneira
conduzir os nossos assuntos cognitivos comuns e científicos.
O que devemos então fazer quando fazemos epistemologia,
segundo Stich? Até certo ponto o objectivo de Stich em
epistemologia é o mesmo de Goldman: compreender a natureza
das avalições epistémicas. Mas Stich, que pretende situar a sua
investigação na 'linhagem epistemológica de avaliação dos
métodos do raciocício e do inquérito de Bacon, Descartes, Mill,
Carnap e Popper' e não nas linhagens (ii) ou (iii), avança uma
formulação mais específica: ele quer saber o que fazemos
quando consideramos determinados sistemas cognitivos
superiores a outros, ou quando consideramos que alguém está
a raciocinar mal (a ligação da epistemologia com as
investigações empíricas, nomeadamente em psicologia do
raciocínio, entronca aqui). A teoria da avaliação epistémica de
Stich, procurando responder a estas últimas questões, conduzi-
lo-á a uma posição muito diferente da de Goldman, uma
posição de acordo com a qual nós, enquanto agentes cognitivos
- não obviamente enquanto epistemólogos, filósofos da mente e
da linguagem ou psicólogos - não queremos saber se as nossas
crenças são verdadeiras e os nossos raciocínios racionais: o que
nós queremos é [que os nossos processos cognitivos nos
permitam] atingir as nossas finalidades, satisfazer os nossos
desejos.
Para Stich, processos cognitivos são como instrumentos ou
tecnologias empregues por agentes no decurso da tentativa de
satisfazer desejos e alcançar finalidades. Esses instrumentos
podem ser avaliados na prática. Avaliar na prática processos
cognitivos significa, para Stich, avaliá-los em função do sucesso
que têm a provocar estados de coisas desejados, estados que
as pessoas intrinsecamente valorizam (tais como ser capaz de
prever e controlar a natureza, ou contribuir para uma vida
interessante e cheia). Isto significa que a epistemologia de Stich
pressupõe o seguinte fundamento, admitidamente
problemático, e que relaciona a epistemologia com a teoria da
motivação e da acção: as pessoas valorizam determinadas
coisas intrinsecamente. Para Stich, estas coisas são várias, mas
elas não incluem em geral 'a justificação ou a racionalidade tais
como estas são concebidas no pensamento e linguagem
comuns'. Stich virá aliás a defender que os 'standards
epistémicos comuns' (a justificação ou a racionalidade tais como
são concebidas no pensamento e linguagem comuns, e que
constituem o foco da teoria da justificação de Goldman) são
paroquiais e culturalmente variáveis e não devem constituir o
foco da teoria da avaliação epistémica.
Nestas posições começa a desenhar-se a abordagem
pragmatista e consequencialista da avaliação epistémica
desenvolvida por Stich. É a partir de um tal ponto de vista que
Stich considera que alguns aspectos da proposta de Goldman,
apesar da sua intenção explícita de reformular o campo da
epistemologia à luz das investigações cognitivas, não passaram
ainda eles próprios por reformulação. É esse, especificamente, o
caso da ideia de remeter à análise conceptual a incumbência de
explicitar a natureza da justificação.
A crítica de Stich a esta ideia, e a proposta de uma alternativa,
é então aparentemente, uma forma de levar até às últimas
consequências o redireccionamento da epistemologia que
Goldman deseja. Vou analisar a proposta de Stich, considerando
que o que está em causa é basicamente o seguinte: será que,
mantendo a intenção de Goldman de reformular o campo da
epistemologia à luz das investigações cognitivas, é possível (i)
sustentar que uma teoria da avaliação epistémica deve
finalmente ligar a justificação com a linguagem e o pensamento
comuns e (ii) presumir que os agentes cognitivos eles próprios
querem saber se as suas crenças são verdadeiras e os seus
raciocícios racionais?
Resumirei antes de mais brevemente a forma como Stich chega
à sua teoria da racionalidade ou da avaliação cognitiva (Stich
1993). O incentivo prático imediato para o desenvolvimento
dessa teoria foi um pedido de ajuda vindo da psicologia,
nomeadamente do psicólogo Richard Nisbett. O que o psicólogo
Nisbett quis saber do filósofo Stich - e podemos pensar na
questão de Nisbett como uma questão geral que o estudo
psicológico do raciocínio coloca à filosofia - foi o que queremos
dizer quando dizemos que uma inferência é justificada. Sem
uma resposta disponível é difícil ou impossível interpretar os
resultados da psicologia do raciocinio. Nisbett tinha por trás
investigações que mostravam sistemáticas falhas na tarefa de
selecção (selection task), inicialmente estudada por P. Wason e
P. Johnson-Laird, a frequência da chamada 'falácia da
conjunção' revelada pelos estudos de A. Tversky e D.
Kahneman, a sistematicidade de 'pseudodiagnóstico' dada a
ignorância de probabilidades prévias, a perseverança de crenças
mesmo após a revelação da intenção de iludir os sujeitos da
experiência (debriefing), etc (8).
Os resultados da psicologia do raciocínio parecem revelar a
violação sistemática de 'princípios de racionalidade', por
exemplo princípios da lógica (caso da tarefa de selecção, em
que estão em causa condicionais) e da teoria das probabilidades
(falácia da conjunção). Na medida em que a lógica e a teoria
das probabilidades constituem 'cânones comuns de
racionalidade', os resultados foram interpretados como
revelando que uma grande quantidade de sujeitos é irracional
no seu raciocínio comum.
No entanto Stich, que estava inicialmente inclinado a subscrever
o veredicto de irracionalidade emitido pelos psicólogos como
interpretação de estudos deste género, não teve qualquer
sucesso ao procurar fundamentá-lo. Veio por isso a recuar na
sua posição e esta foi uma das origens da sua teoria
pragmatista e consequencialista da avaliação epistémica.
Voltemos ao problema colocado à filosofia pelas investigações
em psicologia do raciocínio. O problema é o seguinte: que
direito temos nós a afirmar que determinadas pessoas estão a
raciocinar mal em determinadas circunstâncias?
Torna-se claro que fundamentar filosoficamente a investigação
experimental em psicologia do raciocício envolve uma teoria
acerca do que faz uma inferência ser justificada. Repare-se que
perguntar o que é uma inferência justificada é muito diferente
de perguntar, do ponto de vista da lógica, o que é um
argumento válido. No último caso tudo é muito mais claro,
nomeadamente porque questões psicológicas, evidenciais e
ambientais, questões quanto a fontes de crenças, recolha de
provas, adaptação do comportamento de agentes ao mundo,
pura e simplesmente não se colocam. Isto é assim porque a
lógica simplesmente não é uma teoria do raciocínio, não nos diz
- nem tem por que dizer - em que devemos acreditar, o que
devemos tomar como premissas em argumentos, que evidência
devemos aceitar. As regras da lógica não são regras para a
formação de crenças. Nenhuma lógica nos oferece já feita uma
teoria do raciocínio. De facto não encontramos disponível
nenhuma teoria do raciocínio (Goldman diria que a estar
disponível, ela seria um ramo da epistemologia).
Voltando à questão colocada pelos psicólogos, o que faz com
que uma inferência seja justificada? Uma hipótese inicialmente
colocada pelo próprio Stich e também por muitos outros autores
- nomeadamente por Goldman como vimos atrás - é a utilização
do teste do equilíbrio reflectido para responder a essa questão.
Recordo o que isso significa: tomando como referência a noção
comum de 'justificação', atestamos o 'conteúdo' desta através
de um processo de delicados ajustamentos mútuos entre regras
formuladas e inferências aceites. Uma regra que sustentamos
será emendada se produzir uma inferência que não estamos
dispostos a aceitar, uma inferência será rejeitada se violar uma
regra que não estamos dispostos a emendar. Stich recusa no
entanto essa via. Vou procurar resumir as suas objecções.
Objecção 1: É contestável que seja possível seleccionar como
objecto de análise, no 'pensamento e linguagem comuns', uma
noção única e coerente de 'justificação'. Nada nos garante que
'o conceito comum de justificação' tenha essas características
(de resto, tanto quanto a psicologia dos conceitos nos permite
pensar, podem, por exemplo, existir na mente do agente,
exemplares prototípicos de justificação que são focalizados em
cada decisão de considerar uma inferência justificada, sem que
existam propriedades comuns a tudo o que é considerado
'justificado'). De qualquer forma isso só poderá ser descoberto
empiricamente e portanto não temos direito de assumir à
partida uma 'noção comum de justificação'.
Objecção 2: Mesmo que a análise do 'conceito comum único e
coerente de justificação' fosse possível, ela seria inútil, no
sentido em que não nos facultaria um critério defensável para
distinguir boas de más estratégias inferenciais.
Imaginemos que aceitamos a ideia do teste de equilíbrio
reflectido. O primeiro passo prático seria determinar que regras
inferenciais poderiam resultar do processo de ajustamento
mútuo entre inferências aceites pelos agentes e regras
explicitadas. Ora Stich pensa, e essa é talvez a sua objecção
fundamental, que princípios inferenciais estranhos poderiam
passar o teste do equilíbrio reflectido para um determinado
agente cognitivo e contar assim como 'justificados'. Pense-se
por exemplo na falácia do jogador. Imaginemos alguém que
pensa: 'Nas últimas 100 vezes que lancei o dado não me saiu
um 6, portanto o 6 deve estar mesmo a sair'. Temos um
indivíduo que intuitivamente julga assim. Quando se articula
explicitamente a regra 'A probabilidade de ocorrência de um
evento x aumenta com cada não-ocorrência do evento x', esse
indivíduo aceita que se trata de uma boa regra. Não podemos
afirmar a priori que tal não sucederia! A ser assim, estranhas
inferências que não queremos intuitivamente admitir como
justificadas seriam admitidas como justificadas: de acordo com
a concepção de equilíbrio reflectido se uma inferência passa o
teste do equilíbrio reflectido ela é justificada (é suposto o
equilíbrio reflectido ser constitutivo da justificação). Stich não
aceita isto e considera que a possibilidade é suficiente para
duvidarmos da ideia segundo a qual o equilibrio reflectido é
constitutivo da justificação (9).
Mas se o teste do equilíbrio reflectido não nos oferece um
critério para distinguir boas de más estratégias inferenciais (e
recordemos que isso é essencial na forma como Stich vê a
epistemologia), e nos leva mesmo a considerar como boas para
um dado agente (i.e. passando o teste do equilíbrio reflectido)
estratégias inferenciais que queremos considerar como más,
qual é a abordagem alternativa da natureza da justificação? A
alternativa ao apelo a conceitos característico da epistemologia
analítica quando se fala de justificação e racionalidade é o apelo
a consequências. Essas consequências não são no entanto
segundo Stich 'crenças verdadeiras', uma vez que Stich não vê
- à maneira fiabilista comum, que encontramos por exemplo em
Goldman - os processos cognitivos como processos-para-gerar-
verdades. Vê-os antes como tecnologias que podem ser
utilizadas para alcançar uma variedade de finalidades de
agentes. Algo que pode afirmar-se com segurança (e que diz
respeito àquilo que se entende por Agente e por Acção e não a
especulação acerca da especificidade dos desejos de Agentes) é
que os agentes se preocupam com alcançar as suas finalidades.
Podemos afirmar isso com segurança, por contraste com
afirmar que se preocupam com crenças verdadeiras ou com a
análise do conceito de justificação implicito suas práticas
inferenciais.
Olhar para os processos cognitivos como ferramentas mentais é
obviamente uma ideia pragmatista. Ela veio a ser central no
pensamento de Stich quando este se persuadiu de que o
projecto goodmaniano tinha as deficiências apontadas. É a ideia
pragmatista que leva Stich a negar que a racionalidade e a
justificação tenham em si mesmas valor para o agente
cognitivo. Poderia no entanto existir outro traço epistémico
intrinsecamente valioso, nomeadamente a verdade. Mas Stich
é, desde os seus primeiros trabalhos em filosofia da linguagem,
um céptico acerca da utilidade, ou mesmo inteligibilidade, da
noção de verdade (10).
Antes de subscrevermos críticas pouco caridosas, como as de
Susan Haack (Haack 1993), à forma como Stich trata a verdade
na sua teoria da avaliação epistémica, convem termos claro o
que Stich não está a dizer acerca da verdade. E Stich não está a
dizer que 'a verdade não interessa', apenas que a verdade não
é intrinsecamente valiosa para o agente cognitivo enquanto
agente cognitivo, não é uma finalidade da acção, não é o que o
agente visa quando age. Stich aceita perfeitamente quer muitas
pessoas diriam que valorizam o facto de ter crenças
verdadeiras. Talvez dissessem mesmo que o facto de ter
crenças verdadeiras é intrinsecamente valioso. Mas
provavelmente não chegariam a dizer nada de coerente sobre o
que é 'a verdade', i.e. seriam incapazes de dizer exactamente o
que é isso que valorizam. Isto parece natural: afinal, há muitos
séculos se discute a natureza da verdade. Do facto de as
pessoas - enquanto agentes cognitivos comuns, o que nos inclui
a todos - não conseguirem em geral dizer nada de coerente
sobre a verdade não se segue que nada se possa dizer acerca
da verdade. É possível dizer muita coisa acerca da verdade,
nomeadamente em teorias formais, em metafísica, em filosofia
da mente, etc. Imaginemos que temos - não, evidentemente,
fornecida pelos agentes cognitivos, mas elaborada por lógicos,
filosofos da linguagem e filósofos da mente - uma boa teoria
formal da verdade e uma boa teoria psicossemântica. Terão
essas teorias alguma importância para os agentes individuais
nos seus afazeres cognitivos? De acordo com Stich, obviamente
não, o que não significa de modo algum que esses afazeres
cognitivos não são importantes para o agente. Significa apenas
que o que o agente cognitivo quer com os afazeres cognitivos é
atingir os seus fins, sejam estes quais forem, e não atingir 'a
verdade'.
Vou procurar exemplificar. Se, como Stich aceita em traços
gerais para avançar com o seu ponto, espécimes de crenças são
estados cerebrais que têm valores de verdade, os quais são
plausívelmente explicáveis através do apelo a uma função de
interpretação que mapeia estados-cerebrais-de-crença numa
classe de entidades semanticamente avaliáveis (como
proposições, condições de verdade, situções, mundos possíveis,
etc), a pergunta que devemos fazer é esta: se é nisso que
consiste o facto de uma crença ser verdadeira, será que
realmente importa ao agente cognitivo que as suas crenças
sejam verdadeiras? A resposta, segundo Stich, é negativa (é
este o ponto do Cap 5 de The Fragmentation of Reason, Do We
Really Care Whether Our Beliefs are True?). Se essa é a
natureza das crenças verdadeiras, não há nada de especial,
para o agente, em ter crenças verdadeiras. Alguém pode até
declarar explicitamente que crenças verdadeiras são
intrinsecamente valiosas, mas isso será uma espécie de juízo
paroquial.
O resultado para a teoria da avaliação epistémica desta posição
acerca do valor da verdade é o total pragmatismo. De acordo
com o total pragmatismo, todo o valor cognitivo é instrumental,
não há valores cognitivos intrínsecos.

3. O pragmatismo e as suas dificuldades.

Outra maneira de formular a ideia pragmatista referida é dizer


que de acordo com uma teoria pragmatista da avaliação
epistémica não há virtudes epistémicas intrínsecas ('virtude
epistémica' é aquilo que faz uma estratégia de inferência ou
raciocínio ser boa). Não podemos falar portanto de estratégias
de inferência ou raciocínios 'intrinsecamente bons', mas apenas
de mecanismos cognitivos, que são instrumentos a avaliar da
mesma forma que outros instrumentos, i.e. pelas suas
consequências práticas. Um sistema de processos cognitivos
será preferível a outro se, ao usá-lo, for mais provável
atingirmos as coisas que queremos. Essas coisas podem ser
várias: é a nota pluralista da teoria.
Stich não aderiu facilmente ao pragmatismo que hoje defende.
Parecia-lhe que objecções óbvias ao pragmatismo tinham um
grande peso, nomeadamente as acusações de (i) relativismo e
(ii) circularidade. Comecemos pelo relativismo. Não se pode
negar que um relato pragmático da avaliação cognitiva é de
alguma forma relativista: a avaliação de sistemas de processos
cognitivos é sensível aos valores e circunstâncias dos agentes
que utilizam tais sistemas. Mas porque é que o relativismo é
uma coisa má? Procurando argumentos contra o relativismo o
que Stich encontra é sobretudo o medo de cair nas mãos de
'niilistas epistémicos', pessoas que desistiram de separar boas e
más estratégias cognitivas. Mas se o problema é o niilismo
epistémico assim definido, cedo se verifica que conceber a
avalição epistémica de forma pragmática não é uma posição
mais niilista do que conceber de forma pragmática estratégias
de investimento ou técnicas de engenharia. Em nenhum dos
casos se trata de encontrar O Bom Raciocínio, A Boa Opção de
Investimento, A Boa Técnica de Engenharia, mas de olhar para
processos como estratégias que podem ser mais ou menos bem
sucedidas na prossecução de finalidades e que podem ser
melhoradas.
O relativismo é habitualmente acusado de conduzir ao
cepticismo. Se sistemas de raciocínio diferentes podem ser
preferíveis para finalidades diferentes e se eles geram crenças
significativamente diferentes com base no mesmo input
sensorial, então presumivelmente pessoas diferentes podem
acabar com crenças diferentes, mesmo partindo da mesma
evidência. Stich admite que o relativismo da teoria torna
impossível defender que o bom raciocinio conduz à Verdade.
Isso não lhe parece no entanto constituir causa de preocupação,
a não ser que tenhamos alguma razão para querer que os
nossos sistemas cognitivos produzam crenças verdadeiras. Ora,
vimos que Stich pensa que não temos tal razão. Para Stich, o
cepticismo simplesmente assume a importância de um dado
'bem epistémico' (a verdade) que afirma, ao mesmo tempo
estar fora de alcance. Logo, a melhor resposta ao céptico que
mantem que não conseguimos atingir a Verdade é: e depois?
Relativamente à circularidade, Stich vem a adoptar argumentos
que serviram a Goldman em Epistemology and Cognition para
defender o fiabilismo da mesma acusação (11). Quer o
pragmatismo de Stich quer o fiabilismo de Goldman envolvem o
objecto de explicação na explicação que fornecem dos
processos cognitivos. A defesa perante a acusação segundo a
qual esse envolvimento peca por circularidade consiste em
admitir que embora na avaliação de sistemas ou processos
cognitivos (i.e. na investigação de qualquer critério de
correcção) se utilize inevitavelmente processos cognitivos, isso
não nos impedirá de concluir que determinados processos e
sistemas cognitivos são superiores.
Além da defesa contra a acusação de circularidade, Stich vê
uma outra característica decisiva na análise que Goldman faz da
justificação em Epistemology and Cognition: ele considera que
que o próprio Goldman nos mostra que o conceito de
justificação que constitui o foco da sua epistemologia é
paroquial e local (nomeadamente dado o externalismo do
critério fiabilista, que em Epistemology and Cognition é
formulado em termos de mundos normais). A partir de
Goldman, Stich defende assim a arbitrariedade e idiossincrasia
do conceito comum de justificação, que considera ser apenas
uma membro de uma família maior de noções tais. Mas como
fica então a justificação, se nos deixarmos persuadir de que o
conceito comum de 'justificação' sob análise, nomeadamente na
epistemologia de Goldman, é idiossincrático e paroquial?
Poderemos sequer querer mais do que isso? E como é que a
admissão do paroquialismo e localidade de noções de
justificação alguma vez nos permitirá responder à pergunta
colocada à filosofia pelos psicólogos do raciocínio? Stich vê
neste ponto a situação da seguinte maneira. Parece-lhe claro
que uma teoria pragmatista da avaliação cognitiva não pode dar
uma resposta geral à questão 'os sujeitos estão a raciocinar
bem ou mal?''. Mas isso não torna impossível uma teoria da
avaliação cognitiva. Porquê? Porque um relato pragmatista das
'virtudes cognitivas' é um relato comparativo: apenas é possível
dizer se um dado sistema cognitivo se está a sair melhor ou pior
do que outro sistema cognitivo relativamente a uma dada
finalidade. Não é possível dizer se esse sistema é um bom
sistema cognitivo, em abstracto.
Mas isto não nos impede de defender que um dado agente está
a raciocinar mal numa dada circunstância (12). O que temos
que fazer é ver o veredicto de mau raciocínio como a apologia
de uma alternativa possível. Mas exactamente o que constitui
uma alternativa, em termos de processo de raciocínio, para um
dado agente cognitivo? C. Cherniak chamou a atenção para o
facto de que, se seguirmos a veneranda tradição em
epistemologia que consiste em considerar o possivel como
logicamente possivel, teremos que nos haver com um espaço
vasto alternativas, muito para além do que cérebros como os
nossos poderiam utilizar. Stich segue Cherniak ao considerar
que seria perverso considerar que os sujeitos estão a fazer um
mau trabalho de raciocínio comparando as suas estratégias com
estratégias que requerem um cérebro que eles não têm. A
comparação que interessa numa avaliação epistémica é a
comparação com alternativas exequiveis. Mas como sabemos o
que são alternativas exequíveis? Para Stich, de um ponto de
vista pragmatista não podemos senão considerar que a
exequibilidade depende das finalidades do sistema e das
tecnologias disponíveis.
Podemos neste momento formular algumas conclusões de uma
teoria pragmatista da avaliação epistémica.

Conclusão 1. Questões acerca da qualidade do raciocínio não


podem ser respondidas de forma abstracta, para um agente
cognitivo qualquer, independentemente de arquitecturas e
processos cognitivos e das finalidades desse agente. A pergunta
abstracta e geral acerca de bom raciocínio faz sentido na
epistemologia tradicional mas não na epistemologia feita em
contacto com a ciência cognitiva.

Conclusão 2. Se não tem sentido colocar uma questão abstracta


quanto a racionalidade ideal, tem todo o sentido colocar uma
questão prática relativa à melhoramento das performances
cognitivas de agentes. O que se faz em epistemologia e
nomeadamente quando se analisa avaliação epistémica pode e
deve ter implicações na nossa maneira de conduzir os nossos
assuntos cognitivos (13).
Repare-se que se o melhoramento das performances cognitivas
de agentes for a nossa finalidade quando comparamos sistemas
cognitivos, então sim teremos espaço de manobra: alternativas
a considerar são aquelas que poderiamos levar agentes a
utilizar. Quais são exactamente essas alternativas não o
poderemos saber sem investigação empírica. Levar a cabo essa
investigação empírica acerca de alternativas que poderíamos
levar pessoas a utilizar parece-me ser a ideia por trás do
trabalho prático de filósofos na criação de software para
melhoramento e treino de raciocínio (veja-se por exemplo o
trabalho de Tim Van Gelder, na Universidade de Melbourne
(Reason! Research Project,
http://www.philosophy.unimelb.edu.au/reason)).
O ponto aqui é o seguinte. A obrigação de 'realismo' quanto a
arquitecturas e processos de agentes é certamente uma das
consequências importantes do cruzamento de investigações
cognitivas com questões epistemológicas Sabemos que
estratégias cognitivas muito custosas, como aquelas que
requereriam por exemplo a eliminação de toda a inconsistência
do nosso corpo de crenças ou que exigiriam que mantivessemos
a pista da evidência, ou do input, que deu origem a cada uma
as nossas crenças, estão para além daquilo que cérebros como
os nossos conseguem realizar. No entanto, o cruzamento de
investigações cognitivas com questões epistemológicas permite-
nos ver a uma nova luz as situações de limitação (limitação ao
nível dos processos, como diria Goldman): nada exclui a
possibilidade de treino e inculcação de hábitos cognitivos,
nomeadamente o aperfeiçoamento de métodos. É claro que isso
torna ainda mais importante - e essa é uma questão para a
epistemologia e para a ciência cognitiva - saber por exemplo se
padrões de inferência determinados têm estatuto de método ou
de processo no tipo de agentes cognitivos que somos. A.
Goldman nota algo de aparentemente tão óbvio como isto: "o
modus ponens não é mais válido do que outras formas válidas
de argumento. É apenas psicologicamente mais simples do que
outras" (Goldman 1986: 89). E essa constatação é importante,
não para a lógica mas para a epistemologia.
Voltando às relações entre a filosofia e a psicologia na arena da
racionalidade e do raciocínio, o resultado de tudo isto é que não
é nada claro que os criticos do psicólogo Richard Nisbett
estivessem errados quando lhe respondiam que ele não tinha
fundamento para afirmar que os sujeitos dos seus estudos
estavam a raciocinar mal. Está longe de ser óbvio que os
sujeitos estão a raciocinar mal quando 'falham' na tarefa de
selecção ou incorrem na falácia da conjunção (eles poderiam
estar, em alternativa, a utilizar estratégias heurísticas que
teriam evoluído para lidar com determinadas tarefas comuns no
ambiente da espécie e que seriam cognitivamente mais
determinantes do que as leis da lógica; investigações em
psicologia evolucionária fornecem o ponto de partida de
argumentos nesse sentido). Voltando à questão colocada pela
psicologia à filosofia, a proposta de Stich é que, se queremos
argumentar que sujeitos estão a raciocinar mal, teremos que
mostrar que existe uma estratégia para atingir as suas
finalidades que é superior e que é exequível com o equipamento
cognitivo de que dispõem.
Uma última conclusão se impõe:

Conclusão 3: É uma consequência do pragmatismo que as


questões epistemológicas tradicionais ficam com o destino
ligado a explorações empíricas de exequibilidade cognitiva, e
portanto à psicologia e à tecnologia.
Goldman tem toda a razão em defender que arquitectura e
processos cognitivos são fulcrais numa teoria da avaliação
epistémica. Mas ao olhar para arquitectura e processos
cognitivos de agentes humanos devemos olhar ao mesmo
tempo para o seu passado e para o seu futuro. Parece-me por
isso que a forma correcta de considera a Conclusão 3 é vê-la
como afirmando que (i) arquitectura e processos podem ter
'razões' evolucionárias específicas e (ii) poderão vir a ser
suplementados.
Há uma tradição em epistemologia que rejeita a dependência
das questões epistemológicas relativamente a assuntos
'impuros' tais como a psicologia e a tecnologia. Essa, no
entanto, é uma tradição que Stich considera estéril e
moribunda. Outra tradição epistemológica mais recente, ligada
aos pragmatistas J. Dewey e W. James, que Stich quer reclamar
como predecessores, considera que a epistemologia está ligada
à ciência e à tecnologia. No espírito dessa tradição,
investigações acerca de racionalidade acompanharão, por
exemplo, as investigações da psicologia evolucionária (14)
(aliás, este é um aspecto dos estudos sobre racionalidade que
tem interessado Stich mais recentemente, levando-o a propôr,
nomeadamente, que a hipótese da modularidade maciça
mudará a forma como concebemos a racionalidade (15)) e
terão todo o interesse em levar em conta 'experiências' sobre
melhoramento do raciocínio, como por exemplo aquelas levadas
a cabo no âmbito do projecto Reason! atrás referido, dirigido
pelo filósofo australiano Tim van Gelder na Universidade de
Melbourne.

Conclusão.
Recordo o principal propósito deste artigo: tratava-se de
compreender como devemos abordar as questões da
racionalidade teórica, ou racionalidade nas crenças, numa
situação, como a presente, em que o conhecimento é objecto
não apenas da filosofia mas também de várias ciências
cognitivas. Admiti à partida que seria necessário considerar
questões meta-epistemológicas, i.e. questões relativas à forma
de fazer epistemologia, de forma a saber que tipo de
investigações deveria procurar hoje um possível interessado em
questões relativas à natureza do conhecimento, a filosofia ou a
ciência cognitiva. Contra a possível apologia da transmissão do
testemunho da filosofia para a ciência cognitiva, avancei a
hipótese de acordo com a qual a presença da ciência cognitiva
não justifica o afastamento da filosofia. Ela exige no entanto
uma reformulação da tarefa epistemológica tradicional. Antes
de mais, as investigações cognitivas revelam o irrealismo de
concepções idealizadas dos agentes cognitivos (inscritas
tacitamente tanto na tradição filosófica como em teorias formais
da cognição) e fornecem dados quanto a arquitectura e
processos cognitivos de agentes específicos, dados esses que
devem constituir o enquadramento das questões quanto a
racionalidade e justificação. As investigações cognitivas não
satisfazem só por si, no entanto, o propósito central da
epistemologia 'orquestrada pela filosofia', para usar a expressão
de Goldman. Esse objectivo é compreender o direito que os
agentes têm (ou não têm) às suas crenças, e portanto
compreender a normatividade envolvida na justificação. Dado
que o propósito da epistemologia é avaliar o direito às crenças e
dado que essas crenças devem ser consideradas como produto
de arquitecturas e processos determinados, a serem descritos
pelas investigações cognitivas, aceitei a divisão de trabalho e a
complementaridade entre ciência cognitiva e filosofia proposta
por Goldman. No entanto, a proposta de Goldman quanto à
natureza da justificação não me parece igualmente pertinente.
Penso que Stich está certo quando ao considerar a análise de
Goldman como um exemplo de epistemologia analitica,
oferecendo um resultado 'paroquial e conservador'. Mas o facto
de não restringirmos a 'justificação' ao conceito inscrito no
pensamento e linguagem comuns e revelado por procedimentos
de análise não nos impede de tentar compreender a
normatividade envolvida na justificação. O pragmatismo de
Stich é precisamente uma proposta de enquadramento para a
compreensão de tal normatividade, ao propôr como 'entrada' na
teoria da avaliação epistémica a ideia segundo a qual o que o
agente cognitivo quer com os afazeres cognitivos é atingir os
seus fins, sejam estes quais forem, e não atingir 'a verdade'.
Como seria de esperar do pragmatismo, a proposta de Stich
remete as questões da racionalidade teórica (em que devemos
acreditar?) para as as questões para a racionalidade prática (o
que valorizamos? o que nos motiva a agir?). Ressalta assim
desta incursão pelos debates meta-epistemológicos, como
conclusão geral para o Projecto de Investigação, que as
questões da racionalidade prática não podem ser dadas como
resolvidas no tratamento das questões da racionalidade teórica:
elas estão claramente em jogo na forma de conceber a própria
tarefa da epistemologia e o estatuto de uma teoria da avaliação
epistémica. A divisão habitual dos estudos da racionalidade em
racionalidade teórica e racionalidade prática mostra assim ser
mais operacional do que substancial. Um relato pragmatista
dar-nos-á uma visão totalmente diferente da forma como as
questões epistemológicas se relacionam com aquilo que nos
importa. É à luz destes princípios que devemos ver duas
conclusões finais, que dizem respeito ao enquadramento da
investigação acerca de questões da racionalidade teórica. A
primeira é a seguinte: precisamente porque a arquitectura e
processos cognitivos de agentes são fulcrais numa teoria da
avaliação epistémica, uma epistemologia que leve em
consideração os estudos científicos da cognição, embora
visando a justificação e nisso diferindo das investigações
cognitivas, não deve restringir a natureza da justificação
(justifiedness) à linguagem e pensamento comuns. A segunda é
que não podemos, pura e simplesmente assumir à partida,
apenas porque isso é vantajoso num contexto de teoria
epistemológica, que enquanto agentes cognitivos valorizamos
intrínsecamente ter crenças verdadeiras e raciocinios racionais.
Antes de nos pronunciarmos nesse sentido precisamos de saber
primeiro o que é valorizar alguma coisa e em seguida como é
que esse valorizar se relaciona com as nossas atitudes
epistémicas e os nossos inquéritos.

Notas
(1) Seria mais correcto dizer que as propostas epistemológicas
pelas quais Goldman é mais conhecido (as propostas fiabilistas)
foram também alteradas em alguns pontos. Susan Haack (cf.
HAACK 1993, 139-157, The Evidence Against Reliabilism) fala
mesmo de três versões do fiabilismo de Goldman (a versão de
What is Justified Belief?, de 1979, a versão de Epistemology
and Cognition, de 1986 e a versão de Strong and Weak
Justification, de 1988). De qualquer modo, interessa ter
presente que de acordo com o fiabilismo o estatuto epistémico
favorável de determinadas crenças se deve à sua relação com a
verdade, por exemplo devido ao facto de terem sido produzidas
por processos fiáveis (reliable). Assim sendo, segundo os
fiabilistas, o conceito de justificação é pelo menos em parte
causal e deve ser analisado em termos da quantidade ou da
ratio de crenças verdadeiras produzidas por determinados
processos psicológicos de agentes. Para alguns exemplos
importantes de teorias fiabilistas da justificação epistémica cf.
David Armstrong 1963, Belief, Truth and Knowledge, Fred
Dretske 1969, Seeing and Knowing, Fred Dretske 1971,
Conclusive Reasons e Robert Nozick Philosophical Explanations.
(2) É costume dizer, tendo em conta a definição tripartida de
conhecimento, que a condição-Justificação é a condição que
garante que, em casos nos quais consideramos existir
conhecimento, a condição-Verdade não está apenas
acidentalmente ligada com a condição-Crença: não falamos de
'conhecimento' nos casos em que algo de verdadeiro é
acreditado arbitrariamente, i.e. sem base em provas, por um
sujeito.
(3) Enquanto teóricos da verdade Dummett e Putnam defendem
respectivamente um anti-realismo e um realismo interno.
(4) Epistémica primária é a expressão que Goldman utiliza para
referir a epistemologia normativa individual, que envolve a
avaliação dos processos psicológicos, por contraste com a
epistémica secundária, que avalia não já processos mas
métodos. A distinção entre processos e métodos é importante:
processos são características psicológicas básicas da
arquitectura cognitiva dos agentes, métodos são formas
explícitas de lidar com estes processos, i.e. 'regras para a
direcção do espírito', a observar em inquéritos localizados e
controlados, por exemplo quando se faz ciência. A epistémica
dita secundária trataria assim, segundo Goldman, do tipo de
problemas metodológicos usualmente considerados como
pertencendo ao domínio da filosofia da ciência.
(5) Cf. CHERNIAK 1986, Capítulo 3, Rationality and the
Structure of Human Memory. Cherniak faz notar que até mesmo
o modelo da teia de crenças avançado por Quine em Two
Dogmas of Empiricism, fazendo supostamente parte de um
programa de naturalização da epistemologia, é cognitivamente
irrealista, ao assumir a possibilidade de reajustamento
'automático' da totalidade das crenças em caso de 'evidência
contraditória', i.e. de conflito na periferia da teia das crenças (é
verdade que Quine não está a falar de agentes cognitivos
individuais e sim da totalidade dos conhecimentos da espécie,
mas onde se supõe que estes 'residam'?). Outras formas de
'irrealismo' são, por exemplo, as suposições de que (i) um
agente extrai todas as consequências das crenças que tem, (ii)
um agente navega sem restrições na informação que tem
armazenada na memória, ou (iii) um agente dispõe de um
tempo ilimitado para computações.
(6) Considere-se por exemplo o seguinte: mesmo que o corpo
de crenças contivesse apenas 138 crenças, o que, apesar da
dificuldade em individuar as nossas crenças, parece sem dúvida
pouco..., a tabela de verdade teria 2138 linhas (Cherniak 1986:
93).
(7) Repare-se que processos no sentido de Goldman estão
totalmente fora da província da lógica e fazem, precisamente, a
psicologia 'entrar' na epistemologia.
(8) Para uma introdução à psicologia do raciocínio e a descrição
das experiências e resultados dos estudos referidos, ver por
exemplo NISBETT & ROSS 1980, KAHNEMAN & TVERSKY 1982,
BARON 1988, DAWES 1988, PIATELLI-PALMARINI 1994. Uma
busca em sites de psicologia é recomendável, por possibilitar o
contacto directo com experiências. Relativamente aos casos
concretos que Nisbett tinha em mente, eles são os seguintes. A
tarefa da selecção, um dos casos mais estudados na psicologia
do raciocínio, consiste basicamente numa situação em que
sujeitos estão perante objectos de escolha (por exemplo quatro
cartas em cima de uma mesa) e um princípio geral é fornecido
(por exemplo: 'Se uma carta tem uma vogal de um dos lados,
então tem um número ímpar no outro lado'). As faces expostas
dadas cartas revelam por exemplo E, C, 5,4. Então é proposta
uma tarefa prática: Indique que cartas têm que ser verificadas
para determinar se o princípio é verdadeiro. Uma percentagem
significativa de sujeitos falha. As experiências que foram
interpretadas como revelando a frequência da falácia da
conjunção dizem respeito a raciocínio probabilístico e consistem
basicamente no seguinte: é pedido a sujeitos que elaborem
uma lista ordenada, de acordo com as probabilidades atribuídas
à ocorrência de eventos cujas descrições são fornecidas.
Verifica-se que é muito comum que os sujeitos considerem
como mais prováveis conjunções do que frases componentes
dessas conjunções (por exemplo, 'Linda é bancária e activa no
movimento feminista' como mais provável do que 'Linda é
bancária' após uma descrição como 'Linda is 31 years old,
single, outspoken and very bright. She majored in philosophy'.
Obviamente ninguém pode ser bancária e activista no
movimento feminista sem ser bancária). O raciocínio comum
representa uma violação tão flagrante da teoria das
probabilidades, ocorrente quer em sujeitos não treinados em
estatística quer em sujeitos treinados, que clama por
explicação. Para uma explicação possível do 'mau raciocínio'
nestes casos e noutros (como aqueles em que sujeitos ignoram
probabildades prévias - por exemplo médicos fazendo
diagnósticos de doenças - e sentem excesso de confiança nas
suas próprias estimativas). cf. Samuels, Stich, & Tremoulet,
Rethinking Rationality - From Bleak Implication to Massive
Modularity, trad. port. de Tomás Carneiro no Arquivo On-Line
do Projecto.
(9) Stich também não aceita as sofisticações do equilíbrio
reflectido que são o equilíbrio reflectido amplo (i.e. que passa
por ajustamento às concepções metafísicas, éticas, etc do
agente), proposta por exemplo por J. Rawls no âmbito da teoria
da justiça, e o equilíbrio reflectido de especialistas.
(10) Recorde-se que se Goldman não leva muito a sério na sua
teoria da justificação a questão da racionalidade, ele assume,
em contrapartida, que a verdade é qualquer coisa como 'um
valor intrínseco que procuramos alcançar com os nosso
inquéritos'. Para Goldman, como para muitos outros autores,
naturalmente nós queremos ter crenças verdadeiras. Isto é
aparentemente compatível com aceitar uma 'noção não
epistémica de verdade'. Stich não aceita um tal ponto de
partida na sua teoria da avaliação cognitiva. Podemos ver o
diferendo entre ambos como dizendo respeito ao que se deve
tomar como mais básico numa teoria da avaliação epistémica, a
verdade ou a racionalidade.
(11) Para a defesa de Goldman quanto às acusações de
circularidade endereçadas ao fiabilismo, cf. Goldman 1986:
116-121.
(12) A tendência que muitos filósofos, nomeadamente filósofos
da mente e linguagem (Quine, Davidson, Dennett, Fodor, etc),
têm de proclamar que o mau processamento cognitivo é
conceptualmente ou biologicamente impossível exaspera Stich.
Segundo Stich, se assim fosse a investigação empírica do
raciocínio e dos defeitos deste, bem como as propostas de
melhoramento, seriam impossíveis e o próprio esfoço de
articular uma teoria normativa da cognição tornar-se-ia absurdo
(da forma como Stich concebe a epistemologia, a própria
epistemologia seria impossível). Acerca deste assunto, cf.
MIGUENS 2002, Agentes racionais e irracionais - quanta
racionalidade é necessária na filosofia da mente? (Arquivo On-
Line do Projecto).
(13) Susan Haack é totalmente céptica quanto a esta ideia de
Stich, considera que ele não começa sequer a dizer em que
consistiria um tal melhoramento.
(14) Chamo psicologia evolucionária ao programa de
investigação da mente como um conjunto de módulos
darwinianos, que vieram a ser inatos através de selecção
natural e que são adaptações, embora possam não ser, no
presente, adaptativos. Os módulos que interessam a psicologia
evolucionária são estruturas cognitivas inatas e portanto traços
universais da mente humana, determinadas por factores
genéticos. Eles são mecanismos computacionais, específicos de
determinados domínios (domain-specific).
(15) Cf. SAMUELS, STICH & TREMOULET, Rethinking
Rationality, Arquivo On-Line do Projecto. Desde logo poderemos
encontrar uma forma de reinterpretar os resultados da
psicologia do raciocínio que deram lugar a conclusões
pessimistas sobre a racionalidade humana. À ideia de acordo
com a qual as pessoas não seguem regras ou princípios
normativamente apropriados para lidar com problemas como
por exemplo a tarefa de selecção poderemos contrapôr o
seguinte: a performance das pessoas melhora dramaticamente
(é isto que os resultados empíricos mostram) quando elas
enfrentam versões do mesmo problema que os nossos
ancestrais teriam enfrentado no Ambiente de Adaptação
Evolucionária (é o que aparentemente se passa por exemplo
com a 'formulação' da tarefa de selecção nos termos de
detecção de embusteiros - cheaters - em cenários sociais, por
constraste com versões abstractas como a atrás referida, com
cartas, números e letras).

Bibliografia
BARON, J, 1988, Thinking and Deciding, Cambridge, Cambridge
University Press.
CHERNIAK, C., 1986, Minimal Rationality, Cambridge, MA, MIT
Press.
DAWES, R., 1988, Rational Choice in an Uncertain World,
Orlando, Fl., Harcourt Brace.
GOLDMAN, A., 1986, Epistemology and Cognition, Cambridge,
MA, Harvard University Press.
GOLDMAN, A., 1992a, Reliabilism, in Dancy, J & Sosa, E., A
Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell, 1982.
GOLDMAN, A., 1992b, Liaisons: Philosophy Meets the Cognitive
and Social Sciences, Cambridge MA, MIT Press
GOLDMAN, A., 1993, Philosophical Applications of Cognitive
Science, Boulder, Westview.
GOLDMAN, A., 1999, Knowledge in a Social World, Oxford,
Oxford University Press.
GOLDMAN, A., 2002, Pathways to Knowledge, Private and
Public, Oxford, Oxford University Press.
GOLDMAN, A., 2003, Epistemic Folkways and Scientific
Epistemology, in P.K. Moser & A. Vander Nat, Human
Knowledge, Oxford, Oxford University Press, 2003.
HAACK, Susan, 1993, Evidence and Inquiry - Towards
Reconstruction in Epistemology, Oxford, Blackwell.
HARMAN, G, 1999, Rationality, in Reasoning, Meaning and Mind,
Oxford, Oxford University Press.
KAHNEMAN, D., SLOVIC, P. & TVERSKY, A. (eds.), 1982,
Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases, Cambridge,
Cambridge University Press.
NISBETT, R. & ROSS, L., 1980, Human Inference: Strategies
and Shortcomings of Social Judgment, Eaglewood Cliff, NJ,
Prentice Hall.
PIATELLI-PALMARINI, M., 1994, Inevitable Illusions: How
Mistakes of Reason Rule our Minds, New York, John Wiley and
Sons.
QUINE, W, V, 1969, Epistemology Naturalized, in Ontological
Relativity and Other Essays, New York, Columbia University
Press.
RORTY, R., 1979, Philosophy and the Mirror of Nature, Princeton
NJ, Princeton University Press.
SAMUELS, R., STICH, S. & TREMOULET, P.D., no prelo,
Rethinking Rationality: From Bleak Implications to Darwinian
Modules, (trad. port. de Tomás Carneiro, in Arquivo On-Line do
Projecto de Investigação Racionalidade, Desejo, Crença, em
www.letras.up.pt/df/if/gfmc/filosofia_da_mente.html)
STICH, S., 1983, From Folk Psychology to Cognitive Science
Cambridge MA, MIT Press.
STICH, S., 1993, The Fragmentation of Reason, Cambridge MA,
MIT Press.
STICH, S., 1988, Reflective equilibrium, analytic epistemology
and cognitive diversity, Synthese 74, 391-413.

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Intelectu no 9 - Outubro de 2003

Robert Nozick e a Natureza da Racionalidade


Sara Bizarro

No livro The Nature of Rationality Robert Nozick apresenta uma


visão evolucionista da racionalidade fazendo o que ele apelida
de uma "revolução copernicana de Kant ao contrário", na
medida em que não é a razão que dá forma aos factos, mas sim
o mundo exterior, através da selecção, que escolheu a razão
como instrumento adequado para lidar com o mundo. Esta
visão evolucionista explica a evidência imediata de certas
crenças, como a crença na existência do mundo exterior ou das
existência de outras mentes - indivíduos que não tinham estas
crenças não sobreviveram, incapazes de interagir com o mundo
e com o meio ambiente. Por outro lado, a concepção
evolucionista da racionalidade explica também a natureza
essencialmente maleável da razão, sendo que as suas
conclusões e as suas próprias regras estão sempre abertas a
escrutínio. Esta maleabilidade é necessária porque o mundo
está em alteração constante, e os elementos assumidos num
raciocínio podem ser válidos hoje e não amanhã, assim como
determinadas regras podem funcionar em certas circunstâncias
e não noutras. Por este motivo não é possível nem desejável
criar uma teoria demasiado especializada da racionalidade, nem
instituir regras demasiado fixas. A capacidade que a
racionalidade tem de se reinventar em novas circunstancias, é
uma das suas características essenciais.
Esta visão da racionalidade não implica, Nozick defende, uma
concepção instrumentalista da razão em que os meios mais
eficazes para atingir determinados fins são sempre os mais
racionais. Um dos factores essenciais sublinhado por Nozick é o
da utilidade simbólica das acções, aquilo que cada acção
simboliza para nós. Este tipo de utilidade explica como
determinadas acções podem ser escolhidas racionalmente
mesmo que não sejam as mais eficazes para o fim que se
pretende. O conceito de racionalidade de Nozick admite também
vários graus de racionalidade, sendo que um indivíduo pode ser
considerado racional, mesmo que algumas das suas escolhas
sejam "menos" racionais. Isto também faz parte da eficácia da
faculdade da racionalidade, em muitos casos seria menos eficaz
para o indivíduo, na sua interacção com o ambiente, ter que
confirmar ao pormenor a racionalidade de todas as suas
escolhas, actividade que o deixaria de certo imobilizado. Ao
incluir a utilidade simbólica no seu conceito de racionalidade
Nozick consegue analisar problemas como o Problema de
Newcomb e o Dilema do Prisioneiro de uma forma nova e
esclarecedora, ultrapassando em certa medida as dificuldades
para o indivíduo, na sua interacção com o ambiente, ter que
confirmar ao pormenor a racionalidade de todas as suas
escolhas, actividade que o deixaria de certo imobilizado. Ao
incluir a utilidade simbólica no seu conceito de racionalidade
Nozick consegue analisar problemas como o Problema de
Newcomb e o Dilema do Prisioneiro de uma forma nova e
esclarecedora, ultrapassando em certa medida as dificuldades
que uma teoria puramente instrumentalista da decisão tem com
estes problemas.
Neste texto vou fazer uma apresentação sucinta do livro de
Nozick, sublinhando os pontos que me parecem mais
interessantes. Como já referi, em The Nature of Rationality
Nozick não apresenta uma estrita "teoria" da racionalidade,
apenas propõe algumas sugestões criando uma visão original,
uma nova maneira de ver a racionalidade humana. O livro em si
é um exercício exímio do que é descrito como sendo a
racionalidade, Nozick analisa e reanalisa razões a favor e contra
a sua noção de racionalidade, a forma como outras sugestões
dão conta ou não dão conta de determinadas situações, etc.
Neste sentido o livro de Nozick é a racionalidade em acção, tal
como ela é normalmente exercida pelos filósofos, no seu estado
mais puro.
A racionalidade foi identificada pelos Gregos como a
característica essencial da espécie humana, a característica que
por excelência, separa os homens dos outros animais. Numa
concepção evolucionista da racionalidade, esta ideia é invertida,
no sentido em que a racionalidade é vista como um entre
muitos outros traços humanos seleccionados, com uma
determinada função limitada. Esta concepção vê a racionalidade
como um entre outros produtos da evolução humana e não
exclui outras formas eficazes de interagir com o meio ambiente.
Uma das críticas feitas recentemente à racionalidade é que ela é
baseada numa concepção masculina ocidental do homem, e
como tal é ela mesma parcial. Esta crítica não é aceitável nestes
termos, segundo Nozick, pois uma das funções essenciais da
racionalidade é exactamente a de evitar preconceitos e excluir
atitudes parciais. Se acusamos a racionalidade em geral de ser
parcial, então ficamos num limbo, sem instrumento para avaliar
a acusação em questão. Podemos criticar determinadas regras
usadas pela racionalidade como sendo masculinas e ocidentais,
mas temos de usar a racionalidade em geral para exercer esta
crítica, usando a metáfora de Neurath, temos de reconstruir o
barco sem o destruir, doutro modo morremos afogados.
Antes de iniciar os vários tópicos que constituem o livro, Nozick
anuncia que vai tentar evitar uma análise demasiado técnica da
racionalidade, tornando o tema acessível ao público em geral, e
não apenas aos especialistas. A forma excessivamente técnica
com que o tema da racionalidade tem sido tratado exclui o
público em geral destes debates, o que só pode ser prejudicial
para a saúde intelectual da nossa sociedade. Por esse motivo,
Nozick reduz o mais possível o recurso detalhes técnicos,
tentando manter a discussão no âmbito público. No entanto,
Nozick apresenta várias sugestões técnicas sofisticadas na área
da teoria da decisão, sugestões essas que não vou analisar
neste texto, mas que o leitor interessado deverá procurar no
livro de Nozick. Aqui vou apenas apontar alguns detalhes
interessantes da concepção de racionalidade de Nozick, de
modo a estimular a curiosidade do leitor.

1. Princípios
Os princípios são regras gerais de acção às quais chegamos
através de razões e crenças; os princípios de cada pessoa
podem ser reconhecidos olhando para as acções passadas dessa
pessoa, e têm uma função social essencial, na medida em que
nos permitem prever o comportamento dos outros de uma
forma mais ou menos fiável. Os princípios que cada um defende
fazem parte da sua identidade e dão uma determinada
coerência à nossa vida, permitindo também a nós próprios
fazermos previsões sobre o nosso comportamento futuro. A
estas características e funções gerais dos princípios Nozick
acrescenta uma a que dá um relevo especial: os princípios
permitem-nos ultrapassar tentações quando tentamos atingir
determinados objectivos.
A racionalidade é deparada com o problema das tentações
quando existe um objectivo que se quer alcançar a longo prazo
que é incompatível com outras coisas desejáveis mais
imediatas. Alguns estudos mostram que nós preferimos muitas
vezes recompensas mais imediatas, mesmo que sejam mais
pequenas, a recompensas maiores no futuro. Nestes casos o
tempo faz alterar a atribuição de utilidade que fazemos a uma
acção menos desejada mas mais imediata quando comparada a
uma acção menos imediata mas mais desejada. Para contrariar
esta tendência utilizamos vários princípios que nos guiam na
nossa tentativa de atingir o objectivo desejado, evitando as
tentações que nos desviam desse objectivo. Uma vez adoptado
o princípio evitamos quebrá-lo, porque mesmo uma só instância
em que o princípio é quebrado pode simbolizar para nós o
abandono total do princípio. Nalguns casos é possível sucumbir
à tentação e manter o princípio de uma maneira geral, mas em
muitos casos os princípios funcionam por nos ajudarem a
excluir completamente a execução do cálculo de utilidade
perante a recompensa imediata, são uma forma de "traçar uma
linha" para lá da qual não são admitidos cálculos de utilidade.
A discussão acerca da forma como os princípios evitam
tentações leva Nozick a introduzir o tópico do valor simbólico de
determinadas acções. Algumas acções têm um valor simbólico
associado a elas, de forma que o cálculo de utilidade não pode
ser feito claramente. Acções do foro da Ética são deste tipo,
assim como em geral acções que quebram princípios, sejam
eles éticos ou não. Esta utilidade simbólica atribuída às acções
pode ter tanto resultados positivos, por exemplo no caso em
que estamos a tentar chegar a um objectivo de valor, como
resultados negativos, quando "traçamos a linha" sem
compreender as consequências e circunstâncias que nos levam
a fazê-lo. Um caso que me ocorre é o do Patriotismo, um
princípio que muitos cidadãos dos Estados Unidos hoje em dia
levam tão a peito que recusam considerar sequer uma acção
que possa ser de alguma forma apelidada de anti-patriótica.
Assim, a nossa capacidade de seguir determinados princípios
pode ser utilizada de uma forma positiva, mas também pode ser
usada de uma forma negativa.
Um princípio deve assim ser avaliado a dois níveis: a um nível
ele é bom na medida em que ajuda o indivíduo a atingir o
objectivo pretendido; a outro nível ele é bom quando se mostra
que o objectivo que se quer atingir tem também valor. Para
analisar um princípio a este nível temos de ver até que ponto o
objectivo a que ele se propõe é compatível com outros
objectivos aos quais damos valor. A forma como um princípio
foi utilizado no passado pode levar-nos a suspeitar dele e a pô-
lo de lado no futuro. Um exemplo tradicional são os princípios
de hegemonia propostos pela Alemanha Nazi, que não serão por
nós considerados como bons, independentemente do fim que se
quer atingir com eles. A história de como os princípios foram
usados no passado tem assim influência no valor e utilidade que
eles podem ter para nós no presente.

2. Problema de Newcomb e o Dilema do Prisioneiro


A teoria da decisão, com a sua concepção puramente
instrumentalista da razão, depara-se com problemas como o
Problema de Newcomb e o Dilema do Prisioneiro. Estes
problemas podem ser analisados de uma forma diferente se for
tido em conta o significado simbólico das acções e não apenas o
cálculo dos resultados desejados e dos melhores meios para os
atingir.
O problema de Newcomb foi apresentado pela primeira vez em
1969 por Nozick em "Newcomb's Problem and Two Principles of
Choice". O problema consiste na seguinte situação:
apresentam-se duas caixas a um indivíduo, a da direita tem
$1,000 e a da esquerda tem $1,000,000, ou não tem nada. O
indivíduo pode escolher as duas caixas, ou escolher só a caixa
da esquerda. Depois existe um outro indivíduo que vai prever a
escolha do primeiro e se fizer a previsão de que o primeiro vai
escolher as duas caixas, então não põe nada na caixa da
esquerda, se ele prever que o indivíduo vai escolher só a da
esquerda põe lá um milhão de dólares. O que vai escolher entre
as caixas não sabe qual a previsão que foi feita. A pergunta é
então, que caixa deverá ser escolhida racionalmente?
Segundo Nozick há dois argumentos possíveis perante esta
situação. Um diz que é melhor escolher a do milhão e arriscar,
porque se escolhermos as duas de certeza que foi essa a
escolha prevista pelo outro indivíduo, mas se escolhermos só a
caixa do milhão de dólares é provável que o indivíduo tenha
previsto essa escolha e nesse caso ganhamos um milhão. O
outro argumento diz que é melhor escolher as duas caixas
porque em qualquer caso a previsão já foi feita e se se previu
que escolhíamos as duas então ganhamos ainda mil dólares,
mas se se previu que escolhíamos só a do milhão ganhamos um
milhão e mil dólares. Segundo Nozick de início as pessoas
tendem a escolher uma destas linhas de raciocínio de uma
forma mais ou menos rígida. No entanto, se depois as
confrontarmos com uma alteração dos valores que se
encontram nas caixas as suas opções alteram-se. Por exemplo,
se em vez de mil dólares estiverem 900,000 as pessoas que
usam o primeiro argumento e arriscariam a escolher
exclusivamente a caixa de um milhão desistem do risco e
escolhem as duas. Por outro lado, se em vez de mil dólares
estiver um dólar, as pessoas que seguem o segundo argumento
desistem dele e preferem arriscar num milhão. Esta mudança
de posição não faz sentido do ponto de vista da teoria da
decisão, pois ao seguir um argumento ele deveria ser válido
independentemente da diferença de valores porque mais
dinheiro esperado deveria ser sempre preferível a menos,
independentemente de quanto mais ou menos dinheiro está em
causa.
Este problema pode ser resolvido se considerarmos a utilidade
simbólica das acções, e não apenas a sua eficácia instrumental.
As escolhas em cada caso são feitas não apenas pela sua
eficácia geral, mas por aquilo que simbolizam. Para algumas
pessoas escolher só a caixa que poderá ter um milhão simboliza
que elas gostam de correr riscos para ter grandes recompensas
e essa acção reafirma a sua identidade como "aventureiras".
Mas quando os valores são alterados escolher um milhão já não
seria bem ser "aventureiro", talvez fosse ser "idiota". No caso
oposto, a escolha das duas simboliza uma certa sensatez, mas
se o valor da primeira caixa for reduzido a um dólar a sensatez
passa a ser "picuinhice". Assim, a inclusão da utilidade
simbólica das acções explica perfeitamente ambos os
comportamentos. Note-se aqui que a utilidade simbólica não é
redutível à utilidade simples, pois é difícil atribuir um valor
preciso à utilidade simbólica de uma acção. Por esse motivo a
utilidade simbólica não é apenas mais uma variante para inserir
no cálculo na previsão de acções, é uma utilidade de outro tipo
que tem de ser considerada separadamente.
O Dilema do Prisioneiro é outro problema com o qual a teoria da
decisão normalmente se confronta. No caso do dilema do
prisioneiro a situação é a seguinte: dois criminosos foram
presos por terem cometido um crime juntos, cada um está
numa cela separada sem qualquer contacto com o outro. A
polícia sugere-lhes as seguintes opções: se um confessar e o
outro não o primeiro pode sair em liberdade e o segundo tem
12 anos de prisão. Se ambos confessarem cada um tem 10
anos de prisão. Se nenhum confessar cada um cumpre 2 anos
de prisão. O problema neste caso é que para cada um dos
prisioneiros individualmente faz mais sentido confessar, pensam
assim, se o outro confessou então mais vale eu confessar senão
fico com 12 anos de prisão; por outro lado, se o outro não
confessou mais vale eu confessar e vou em liberdade. Assim, do
ponto de vista individual faz sempre mais sentido confessar. No
entanto, se ambos pensarem assim e ambos confessarem
acabam por ficar 10 anos na prisão enquanto que se ambos não
confessassem ficavam com 2 anos cada. Assim, o que parece
fazer mais sentido do ponto de vista individual acaba por
prejudicar ambos os prisioneiros.
Este paradoxo representa uma certa incompatibilidade entre
aquilo a que os filósofos chamam a escolha entre a "acção
dominante" e a "acção de cooperação". As acções dominantes,
embora possam parecer vantajosas para o indivíduo podem
acabar por ter consequências piores do que as acções de
cooperação. É nestes casos que se compreende o valor e
utilidade da Ética, ao escolhermos acções de co-operação por
princípios Éticos, estamos a por de lado o cálculo instrumental
individual simples e a incorporar outras razões nas nossas
decisões. No caso dos prisioneiros, a acção de cooperação (com
o outro prisioneiro, não confessando) pode ser preferida porque
o indivíduo tem como principio Ético não denunciar os seus
amigos, e se ambos os indivíduos tiverem este princípio, no fim
acabam por ambos beneficiar. Aqui de novo as razões Éticas
não podem ser reduzidas a um valor instrumental porque não
há forma de quantificar estes princípios, nem de saber até que
ponto os outros os vão seguir (por exemplo, se o prisioneiro
sabe que o outro não tem princípios éticos ele pode duvidar se
valerá a pena seguir o seu neste caso, mas nesta decisão ele
terá que pesar a perda do seu princípio ético contra dois anos
de prisão, será um teste para a solidez deste seu princípio).
Nestes dois exemplos Nozick mostra como a inclusão da
utilidade simbólica nas acções pode ajudar a compreender
situações como as descritas no problema de Newcomb e no
Dilema do Prisioneiro, e a explicar a "racionalidade" das várias
escolhas possíveis em cada situação. Aqui a noção de
racionalidade está a ser ampliada, o conceito de razão
instrumental está a ser abandonado por Nozick em favor de
uma concepção mais abrangente da razão.

3. Regras da Racionalidade
No capítulo sobre a crença racional Nozick apresenta as
características gerais da racionalidade. A racionalidade
instrumental das acções está ligada aos objectivos que se
querem atingir com essas acções. Uma acção é racional quando
permite atingir os objectivos que se pretendem, mas isso não é
suficiente, é necessário também que os meios usados para
atingir determinados fins possam ser usados de uma forma
fiável (um objectivo pode ser atingido por acaso e isso não
torna a acção racional). Uma das formas de fazer com que os
meios sejam fiáveis é procurar a ligações causais reais entre os
meios e os fins que se pretendem atingir, ou seja procurar a
verdade. O interesse pela verdade pode ser considerado como
tendo uma origem "instrumental" na medida em que a eficácia
das crenças verdadeiras terá ajudado à adaptação do homem
ao seu meio ambiente. Esse interesse mais tarde expandiu-se
para a verdade em geral, mesmo quando não está a servir
nenhum fim determinado. A racionalidade em geral vai além da
procura da verdade e não depende de um só método ou
sistema, como a evidência empírica por exemplo. As razões são
constituídas numa rede interligadas umas às outras, de modo
que uma crença tem de ser avaliada tendo em conta não só
razões a favor e contra essa crença, mas também outras
crenças de vários níveis. A filosofia é um exemplo excelente da
racionalidade em acção, quando um filósofo propõe uma teoria
analisa razões a favor e contra, o seu poder explicativo, como
ela se encaixa noutras hipóteses comummente aceites, etc.
Estes são os traços gerais que Nozick atribui à racionalidade.
De seguida Nozick propõe seis regras da racionalidade, que
devem ser vistas como caracterizando formas fiáveis de exercer
determinados processos cognitivos racionais. Estas regras não
são para ser entendidas num sentido rígido, elas próprias estão
sujeitas a revisão, são apenas traços gerais que caracterizam os
nossos processos cognitivos racionais. Para além disso um
sistema pode ser considerado racional sem seguir todas estas
regras de uma forma perfeita. As regras propostas por Nozick
são as seguintes:

1. Não se deve acreditar em h se existe uma asserção


alternativa a h que tem mais credibilidade.
2. Só se tem que acreditar em h se a utilidade de acreditar em
h não é menor do que a de não ter qualquer crença sobre h.
3. Deve-se acreditar em h só se o nível de credibilidade é
suficientemente elevado tendo em conta o tipo de asserção a
ser tomada em conta.
4. Deve acreditar-se em h se h não é excluído pelas três
primeiras regras.
5. Deve acreditar-se em h se o valor de decisão de acreditar em
h é pelo menos tão elevado como o de não se acreditar em h.
6. De forma a excluir a multiplicação de crenças falsas devemos
acreditar nas premissas de uma crença independentemente da
validade da sua conjunção. (pp. 85-93)
Destas seis regras as primeiras três são as básicas e as últimas
duas são tentativas de clarificar certos pontos e problemas na
teoria da decisão. Por outras palavras as primeiras regras dizem
que devemos acreditar naquilo que tem mais credibilidade, mas
que só temos que acreditar nisso se a credibilidade for
suficientemente elevada para o facto em questão e se tivermos
alguma razão ou motivo para acreditar nesse facto. Assim por
exemplo, eu não tenho que acreditar na origem extraterrestre
dos OVNIS porque mesmo que não existissem melhores
explicações para os objectos estranhos que se diz aparecerem
nos céus, se a crença em OVNIS extraterrestres não tem
qualquer influência na minha vida e nas minhas decisões, então
não sou forçada a ter ou não ter essa crença. Mas, se me
pedem para escrever um artigo sobre a credibilidade da origem
extraterrestre dos OVNIS vou ter que investigar e tomar uma
posição. O nível de prova necessário para eu admitir
extraterrestres a voar em naves com a forma de pires tem de
ser muito mais elevando do que o testemunho de pessoas cuja
sanidade mental desconheço. Assim, as regras 1 e 3 teriam de
ser aplicadas na minha investigação acerca da existência de
OVNIS (o exemplo é meu). A última regra, a regra número 6,
serve para evitar que as crenças falsas se "espalhem" pela
nossa rede de crenças, de forma que quando temos uma crença
falsa e ela se espalha e se associa com outras tornando a sua
falsidade evidente, podemos recusar-nos a assumir a nova
conjunção de crenças e parar a avalanche de crenças falsas,
deixando em suspenso as crenças duvidosas.
Estas regras não são rígidas, não determinam claramente o que
é e o que não é uma crença racional. A credibilidade que
atribuímos a uma crença, a forma como a comparamos com
outra, a utilidade que ela tem para nós, todos estes elementos
são maleáveis e podem incluir um grande leque de
possibilidades no âmbito das crenças racionais. Isto é assim
propositadamente, porque uma das funções principais da
racionalidade é a de ajudar o indivíduo a adaptar-se a um
ambiente que muda constantemente. O que hoje é considerado
inacreditável pode amanhar ser credível, o que hoje não afecta
as minhas decisões pode amanhã afectá-las. O mundo, as
circunstâncias, alteram-se constantemente, e a racionalidade é
um instrumento útil precisamente porque permite uma
adaptação a essa inconstância do mundo.
Uma das características essenciais da racionalidade é a de ser
um instrumento para identificar preconceitos e parcialidade nos
argumentos. Uma pessoa racional não aceita razões sem
considerar se elas são parciais ou imparciais, se elas são
relevantes para a situação em questão, se elas poderão ser
fabricadas, se a origem da informação nelas incorporada é
fiável, etc. Um exemplo é a credibilidade dos media, a maior
parte da nossa informação sobre o que se passa no mundo
chega-nos através dos media, mas essa informação pode ser
parcial e é necessário analisar a sua credibilidade antes de
tomar uma posição sobre um determinado acontecimento
noticiado. Uma forma de fazer isto é procurar fontes de
informação alternativas e comparar as várias notícias de forma
a ter uma visão mais imparcial dos acontecimentos.
Podem existir também vários níveis de parcialidade. No livro
The Nature of Rationality, Nozick apresenta um exemplo de um
estudo feito sobre a percentagem alta de mulheres não aceites
na universidade de Berckley nos anos 70. Nessa altura na
Universidade de Berkley eram aceites muitos mais candidatos
do sexo masculino do que candidatos do sexo feminino, no
entanto quando se analisou a situação departamento a
departamento, concluiu-se que não havia descriminação porque
cada departamento aceitava o mesmo número de homens e
mulheres. Esta conclusão não é no entanto válida, de facto não
havia descriminação a um primeiro nível, mas se olharmos para
o motivo pelo qual muito menos mulheres eram aceites
descobrimos que muitas mulheres se candidatavam para cursos
de humanidades com menos vagas do que os cursos aos quais
os homens se candidatavam. Aqui existe parcialidade a outro
nível. Porque é que os cursos aos quais tantas mulheres se
candidatam tinham tão poucas vagas? Os departamentos de
humanidades eram pequenos porque não tinham financiamento
para se expandir, muito embora existissem candidatos
interessados em seguir esses cursos, porquê então essa falta de
financiamento? Se ao investigar isso descobríssemos que as
decisões, acerca de que departamentos recebem o quê, são
feitas de uma forma discriminatória, então existiria uma
parcialidade de segundo nível. Este tipo de parcialidade passa
muitas vezes despercebida, mas uma vez identificada pode ser
rectificada.
Isto leva-nos à questão posta frequentemente pelas feministas,
a de saber se a racionalidade é ela mesma parcial. Ser racional,
diz-se, é uma característica do homem ocidental, as mulheres
são mais emocionais e os orientais mais espirituais na sua
relação com o mundo. A isto Nozick responde que a
racionalidade não exclui a emoção e a espiritualidade, até pode
criar argumentos que defendem a utilização destes
instrumentos na relação com o mundo que nos rodeia. Em
muitos casos, ser emocional é mais adequado, por exemplo na
relação com os amigos e a família, e por vezes a espiritualidade
ajuda onde a racionalidade falha. Mas a racionalidade enquanto
instrumento, tem de ser mantida, sob pena de se perder a
própria capacidade de identificar imparcialidade e
descriminação. Uma feminista pode defender que a razão do
tipo instrumental por exemplo, é um meio masculino por
excelência, mas usa a própria racionalidade nesta defesa. Em
suma, a crítica das feministas só faz sentido se for dirigida a
uma determinada forma de exercer a racionalidade, não à
racionalidade em geral.

4. Razão e Evolução
A razão é apresentada por Nozick como uma capacidade
humana seleccionada pela evolução. Isto permite explicar a
racionalidade a dois níveis: por um lado as suas regras são
suficientemente maleáveis de forma a poderem adaptar-se a
um meio ambiente inconstante, por outro lado existem certos
princípios tomados como evidentes que foram eles mesmos
seleccionados, princípios como o da existência do mundo
exterior e das outras mentes são exemplos por excelência.
Estes princípios podem ser questionados pela razão, e
analisados, tal como os filósofos têm feito (sem grande
sucesso). No entanto, podemos confiar neles pelo menos na
medida em que sabemos que foram seleccionados pela sua
eficácia. Esta concepção evolucionista da racionalidade é aquilo
que Nozick chama a "revolução copernicana" de Kant ao
contrário. Isto significa que não é a razão que dá forma aos
factos como em Kant, mas são os factos, o mundo, que
formaram a racionalidade tal como nós a exercemos hoje. Esta
concepção não pretende fundar a razão, justificá-la, apenas
pretende explicar a origem do instrumento a que chamamos
racionalidade.
Segundo a teoria da evolução, os traços seleccionados são
aqueles que permitem a reprodução com sucesso, reprodução
essa que é facilitada por determinadas características. No
entanto, uma vez seleccionada, a racionalidade pode ser
utilizada para outros fins. Um exemplo semelhante é o da
curiosidade, a curiosidade pode ter sido seleccionada por ajudar
os homens pré-históricos na sua procura pela caça adequada
para alimentar a família, mas hoje é utilizada de outra forma
por cientistas, por exemplo na investigação acerca das origens
do universo. No mesmo sentido a racionalidade ajudou os
homens a descobrir causas de acontecimentos que os
afectavam e a precaver-se ou alterar esses acontecimentos,
mas hoje é utilizada por filósofos nas suas investigações sobre a
ética, metafísica, etc. Dizer que a racionalidade pode ser
explicada através da teoria da evolução não implica assim
denegrir ou limitar o seu exercício, apenas permite dar conta
das suas origens e compreender melhor algumas das suas
características.

5. Limites da Razão Instrumental


Defender uma razão instrumental é defender que os meios mais
eficazes para atingir os fins que se pretendem são sempre os
mais racionais. A teoria da decisão utiliza a razão instrumental e
esta é útil na medida em que permite quantificar razões e fazer
cálculos na previsão das escolhas dos indivíduos. Nozick, no
entanto, defende de uma forma convincente que a racionalidade
inclui uma utilidade simbólica que não pode ser reduzida à
utilidade instrumental. Esta utilidade simbólica, o valor
simbólico das nossas escolhas, explica as várias possibilidades
em situações como o problema de Newcomb e o Dilema do
Prisioneiro, entre muitas outras situações que todos
enfrentamos diariamente. Para além da utilidade simbólica,
Nozick acrescenta também a ideia de que as nossas escolhas
são racionais dependendo daquilo que esperamos que aconteça,
por exemplo, o melhor meio para atingir um determinado fim
pode ser desconhecido para mim, e nesse caso a acção racional
é aquela que usa os conhecimentos que tenho disponíveis, e
não o meio ideal, o qual desconheço. Este tipo de casos mostra
também a necessidade de outra faculdade, a faculdade da
imaginação. Sem a imaginação o nosso conhecimento evoluiria
muito mais devagar, ela é essencial como apoio à eficácia da
racionalidade. Todas estas características estão para lá de uma
visão puramente instrumental da razão.
Outra função essencial da racionalidade é a sua vertente social.
A racionalidade permite a convivência social, a escolha de
regras suportadas por razões que a maioria está disposta a
aceitar. Neste sentido, a racionalidade funciona a um nível
público, o que justifica a preocupação de Nozick de apresentar
uma discussão da racionalidade acessível ao público em geral,
eliminando discussões técnicas desnecessárias. Foi seguindo
essa ideia que tentei apresentar o livro de Nozick de uma forma
clara e acessível - o que aqui apresentei foi o essencial da
proposta de Nozick, espero que este "cheirinho" seja suficiente
para estimular a leitura integral do The Nature of Rationality
para todos os que se interessam pelo tema da racionalidade.

Bibliografia:
Nozick, Robert (1993) The Nature of Rationality, Princeton
University Press, Princeton New Jersey.
Nozick, Robert (1969) "Newcomb's Problem and Two Principles
of Choice", in Essays in Honor of C. G. Hempel, ed. N. Rescher
et al., Dordrecht, Reidl, pp. 114-146
Campbell, Richmond & Sowden, Lanning eds. (1985) Paradoxes
of Rationality and Cooperation: Prisoner's Dilemma and
Newcomb's Problem, Vancouver, University of British Columbia
Press.
Lacey, Alan (2001) Robert Nozick, Princeton University Press,
Princeton New Jersey, Cap. 6 "Rationality", pp. 133-159
Schmidtz, David ed. (2002) Robert Nozick, Cambridge
University Press, Cambridge.
!
!
Intelectu no 9 - Outubro de 2003

O que é a teoria instrumental da razão prática?


Pedro Madeira

Resumo
Na primeira secção, explica-se que o estudo da razão prática
pode ser dividido em duas grandes áreas: a da racionalidade na
acção e a das razões para agir. Na segunda secção, expõe-se a
teoria da racionalidade na acção mais comum, a teoria
instrumental da racionalidade na acção. Na terceira secção,
argumenta-se que Hume não a defendia.

1. Quais são os assuntos estudados na área da razão prática?

Há uma disciplina filosófica a que é comum chamar-se, desde


Kant, "razão prática". Que é isso da razão prática? Uma pista
inicial é o adjectivo "prática", que significa, simplesmente,
"relativa à acção". Quando nós falamos em "ética prática", por
exemplo, estamos a referir-nos à ética relativa à acção, isto é, à
parte da ética que nos diz como agir em circunstâncias
específicas: dar ou não dar ajuda, pular ou não pular a cerca,
etc. Do mesmo modo, quando falamos em "razão prática",
estamos a referir-nos à razão relativa à acção. A expressão
"razão relativa à acção", porém, é ambígua de uma maneira
que a expressão "ética relativa à acção" não é. A única pergunta
que a ética aplicada fará em relação a uma acção será: terá
essa acção sido eticamente correcta? Poderia parecer que a
única pergunta que a razão prática faria seria: terá essa acção
sido racional? Isto não é verdade. A razão prática ocupa-se não
só dos critérios que fazem de uma acção (ou de um desejo)
racional, mas também de procurar saber o que significa ter uma
razão para agir.
Ao contrário do que à primeira vista poderia parecer, estas duas
áreas não coincidem completamente. À partida, não parece
inconsistente dizer que o facto de uma acção ser racional não
implica que tenhamos uma razão para a realizarmos. Do mesmo
modo, não parece inconsistente dizer que o facto de termos
uma razão para realizar uma acção não implica que essa acção
seja racional. Suponhamos que defendíamos que uma acção é
racional se e só se é o meio mais adequado para realizar os
nossos desejos (isto não anda muito longe da teoria humeana
que analisaremos nas secções seguintes), mas que só temos
razão para realizar acções eticamente correctas. Neste caso,
estaríamos a defender que o facto de uma acção ser racional
não nos daria necessariamente uma razão para a realizarmos e,
conversamente, que o facto de termos uma razão para a
realizar não significaria, necessariamente, que essa acção era
racional se e só se é o meio mais adequado para realizar os
nossos desejos (isto não anda muito longe da teoria humeana
que analisaremos nas secções seguintes), mas que só temos
razão para realizar acções eticamente correctas. Neste caso,
estaríamos a defender que o facto de uma acção ser racional
não nos daria necessariamente uma razão para a realizarmos e,
conversamente, que o facto de termos uma razão para a
realizar não significaria, necessariamente, que essa acção era
racional.
O tópico da racionalidade na acção e o das razões para agir não
estão, portanto, tão ligados como seria de supor. Isso dá-me
alguma margem de manobra (e também alguma justificação)
para me ocupar apenas do tópico da racionalidade da acção
neste ensaio. O das razões para agir terá que ficar para outra
altura, infelizmente, dado que ainda não é uma área em que me
sinta à vontade. Pode ser que em breve tenha oportunidade
para me debruçar sobre isso.

2. O que é a teoria instrumental da razão prática?

No título deste ensaio, fala-se da "teoria instrumental da razão


prática". Que é isso? Bom, a primeira coisa que é preciso
esclarecer é que seria mais correcto dizer "teoria instrumental
da racionalidade na acção", dado que é uma teoria acerca dos
critérios que tornam uma acção racional ou irracional. Não é
uma teoria acerca das razões para agir (embora costume vir
acompanhada de uma teoria acerca das razões para agir - mas
essa já é outra história). No entanto, como é habitual falar-se
dela como "teoria da razão prática" e não como "teoria da
racionalidade na acção", eu seguirei esse costume. Mas não se
deixe enganar: a a teoria instrumental da razão prática não é
uma teoria acerca das razões para agir.
Passemos ao que nos interessa, então. A teoria instrumental da
razão prática é uma teoria minimalista da razão prática
(explicarei mais à frente porque é que lhe chamo
"minimalista"). De acordo com ela, uma dada acção X será
irracional se e só se o agente pensa (correcta ou
incorrectamente) que há uma outra acção, chamemos-lhe Y,
que lhe está igualmente disponível, e que realizar Y realizaria
mais eficientemente os seus desejos do que realizar X e prefere,
todavia, realizar X. Pense no seguinte exemplo. Como reagiria
se eu lhe dissesse que trabalhar era o meio mais eficiente de
arranjar dinheiro para realizar os meus desejos, e acrescentasse
de seguida que, ainda assim, não queria trabalhar? Dir-me-ia,
certamente, que eu era irracional. O defensor do modelo
instrumental da razão prática dirá que vários cenários são
possíveis: ou estou a mentir quando digo que acredito que
trabalhar é o meio mais eficiente para realizar os meus desejos;
ou afinal a realização desses desejos que requerem dinheiro não
é assim tão importante para mim como dei a entender, de
forma enganadora; ou então estou mesmo a ser irracional.
Antes de prosseguir, gostaria de desfazer uma possível
confusão. Alguém poderá dizer: é estranho pensar que é
irracional termos desejos incompatíveis. Afinal, não sentimos
isso a toda a hora? Queremos ir trabalhar para ganhar dinheiro
- mas, se calhar, preferíamos ficar em casa a ler. Queremos ser
honestos - mas não há quem nunca se tivesse sentido tentado a
prevaricar. Queremos ir visitar o familiar ao hospital - mas era
tão mais agradável ir ao cinema. Exemplos deste tipo de
situação abundam. A minha resposta é a de que é óbvio que há
um sentido trivial em que todos temos desejos incompatíveis
sem por isso sermos irracionais. O que não é trivial é que seja
normal ter, ao mesmo tempo, a intenção de realizar uma acção
e a intenção de não a realizar. É mais ou menos consensual que
ter a intenção de realizar uma acção implica estar determinado
a realizá-la, e à partida pareceria que, em circunstâncias
normais, uma pessoa não estaria determinada a realizar duas
acções incompatíveis. De acordo com a teoria instrumental da
razão prática, uma pessoa que esteja determinada a alcançar
um fim, mas recuse empregar os meios necessários, é
irracional.
Creio que todos os que acham que há princípios de razão
prática concordam que empregar meios que consideramos
inadequados para a prossecução do nosso fim constitui um
exemplo claro de irracionalidade - é por isso que a teoria
instrumental da razão prática é denominada "minimalista": gera
uma base mínima de consenso. A grande cisão actual no campo
da racionalidade na acção (entre os não-cépticos, bem
entendido) dá-se entre os que dizem que devemos adoptar uma
teoria "robusta" da racionalidade, e os que defendem que não
devemos ir além da teoria minimalista.
Na prática, aquilo que distingue os proponentes da teoria
robusta dos da minimalista é o facto de que os primeiros
defendem que desejos individualmente considerados podem ser
racionais ou irracionais. Kant, por exemplo, defendia que ser
imoral era irracional, independentemente de termos ou não o
desejo de agir moralmente. Os proponentes da teoria
minimalista dirão que só seríamos irracionais caso tivéssemos,
ao mesmo tempo, a intenção de agir moralmente e a intenção
de agir imoralmente.

3. Será que Hume defendia a teoria instrumental da razão


prática?

É comum dizer-se que, enquanto Kant defendia uma teoria


robusta da racionalidade, Hume, o seu opositor, defendia a
teoria minimalista. Concordo que Kant defendia uma teoria
robusta. Todavia, não me parece correcto dizer que Hume
defendia a teoria minimalista. Para ver porquê, basta pensar
nas duas situações em que, segundo Hume, as paixões podem
ser contrárias à razão: se escolhemos meios insuficientes para o
nosso fim; ou se o objecto da nossa paixão não existe ("paixão"
é o termo que ele emprega com o sentido de "desejo"). Se
olharmos com atenção, veremos que, em ambos os casos, não
é a paixão que é contrária à razão, mas sim a crença. (Na
primeira situação, há uma crença instrumental que é falsa; no
segundo, a crença em que se baseia a paixão é falsa.) Isto
significa que, de acordo com Hume, as paixões não são
racionais nem deixam de ser: uma paixão não é o tipo de coisa
de que faça sentido perguntar-se se é racional ou não.
Olhemos, então, para as duas situações em que, segundo
Hume, as paixões podem (supostamente) ser contrárias à
razão.
Escolher meios insuficientes para um fim nunca poderia, em
bom rigor, ser praticamente irracional; só faria sentido dizer
isso se nós conscientemente escolhêssemos meios que
julgávamos ser insuficientes para o nosso fim. Todavia, tanto
quanto pude perceber, Hume não impõe essa cláusula. Por isso,
concluo que Hume dirige a sua crítica para a crença
instrumental falsa, e não para a paixão.
Detenhamo-nos agora no segundo caso. Suponha que eu
acordei hoje a suar da testa, porque sei que vou ter que entrar
na sala B9, onde creio haver um monstro. Por ter tal crença,
desejo fortemente nunca mais entrar na sala. É óbvio que não
há lá monstro nenhum - eu é que sou paranóico. Creio que
Hume diria que este seria um caso em que o objecto da minha
paixão não existia. Poderei eu ser acusado de irracionalidade
prática? Não me parece. Suponha que a minha crença de que
há um monstro na sala é mesmo justificada, embora não haja
qualquer monstro. Neste caso, muito embora o objecto da
minha paixão não existisse, não creio que Hume dissesse que a
minha paixão era contrária à razão. Por isso, concluo,
novamente, que Hume está a criticar a crença em que se baseia
a paixão, e não a própria paixão.
(Um aparte: esta segunda crítica de Hume pode ser
generalizada. Em vez de criticar as paixões cujo objecto é
inexistente, faria mais sentido que ele criticasse as paixões
fundadas em crenças falsas. Pense no seguinte exemplo: eu
quero oferecer-lhe um colar de pérolas de modo agradar-lhe.
Contudo, embora eu não o saiba, ela acha que dar jóias denota
frivolidade, pelo que agradada é que ela não ficará quando eu
lhe der o colar. Repare: tanto como o colar de pérolas, como
ela, existem. Não se pode dizer que o objecto da minha paixão
não exista; no entanto, Hume não deixaria de me criticar por eu
lhe dar o colar de pérolas. Isto significa que, em vez de dizer
que há irracionalidade caso o objecto da minha paixão não
exista, Hume devia dizer, de modo mais abrangente, que há
irracionalidade caso a paixão esteja fundada numa crença falsa.
É a situação presente: eu só tenho o desejo (a paixão) de lhe
dar o colar porque acredito, falsamente, que ela ficará
agradada.)
Portanto, de acordo com Hume, a área da racionalidade na
acção é vazia: não parece haver qualquer caso em que uma
paixão possa ser contrária à razão. Este é o bom velho Hume -
sempre um céptico.

Bibliografia
Cullity & Gaut - Ethics and practical reason, Oxford University
Press, 1997
Dancy - Practical reality, Oxford University Press, 2002
Darwall - www.la.utexas.edu/~pdl/histeth/histeth.lec14.html
Hume - Treatise of human nature, Oxford University Press,
2000
Kavka, Gregory - Hobbesian moral and political philosophy,
Princeton University Press, 1992
Luce & Raiffa - Games and decisions, Dover Publications, 1989
Madeira, Pedro - "O que é o modelo crença-desejo?", Intelectu
nº 9, em www.intelectu.com
Madeira, Pedro - "A objecção de Nagel ao modelo crença-desejo
e o realismo moral", Intelectu nº9, em www.intelectu.com
Miguens, Sofia - "Blackburn e Hume, razão e paixões", Intelectu
nº7, em www.intelectu.com, Outubro de 2002
Nozick - The nature of rationality, Princeton University Press,
1995

!
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Intelectu no 9 - Outubro de 2003

O que é o modelo crença-desejo?


Pedro Madeira

Resumo
Na primeira secção, explica-se de que teses é composto o
modelo crença-desejo. Na segunda secção, procura-se desfazer
um erro muito fácil de cometer: o de pensar que racionalizar
uma acção é a mesma coisa que mostrar que essa acção é
racional. Na parte final da secção, dão-se mais alguns
esclarecimentos rápidos acerca de a). Na terceira secção,
explica-se em que consiste o carácter intensional das descrições
de acções. Avisa-se que é preciso não confundir "intenção" com
"intensão". Na quarta secção, reformula-se a tese b) face a
algumas conclusões a que chegámos anteriomente. Na quinta
secção, questiona-se se b) devia mesmo fazer parte da
definição canónica do modelo crença-desejo. Na sexta secção,
procura-se fazer sentido de uma ideia geral que costuma estar
associada ao modelo crença-desejo: a de que o desejo e a
crença não têm igual estatuto; o desejo é o parceiro dominante
da relação, por assim dizer. Uma maneira de expressar esta
ideia é dizer que a crença e o desejo têm diferentes direcções
de correspondência. Na última secção, recorda-se que o
ojectivo do ensaio não foi o de criticar o modelo crença-desejo,
mas sim procurar formulá-lo do modo mais preciso possível.

1. A definição canónica do modelo crença-desejo

O modelo crença-desejo é uma teoria da acção composta por


duas teses:
a) Para racionalizar uma acção, é sempre necessário atribuir ao
agente (pelo menos) um desejo e (pelo menos) uma crença
relevante.
b) O par formado pelo desejo e pela crença relevante que
racionaliza a acção também constitui a causa dessa acção.
Lá para a frente veremos que é necessário reformular ambas as
teses, mas por agora podem ficar assim.

2. A diferença entre "racionalizar uma dada acção" e "mostrar


que essa acção é racional"

O resto do ensaio será dedicado a clarificar as teses a) e b).


Como veremos, não será tarefa fácil, devido ao número imenso
de erros subtis que se podem cometer. Nesta secção e na
próxima, ocupar-me da primeira tese. Nas duas seguintes, da
segunda.
Um dos meus maiores medos é o de que o estudante incauto
que essa acção é racional"

O resto do ensaio será dedicado a clarificar as teses a) e b).


Como veremos, não será tarefa fácil, devido ao número imenso
de erros subtis que se podem cometer. Nesta secção e na
próxima, ocupar-me da primeira tese. Nas duas seguintes, da
segunda.
Um dos meus maiores medos é o de que o estudante incauto
seja encaminhado para o artigo clássico de Davidson, "Actions,
reasons and causes", veja lá a expressão "racionalizar uma
acção", e pense que isso seja a mesma coisa que "mostrar que
essa acção é racional". Isto não é bem verdade. Como veremos
dentro de momentos, no entanto, é um erro fácil de cometer.
Uma teoria da acção procura dizer como é que devemos
explicar uma acção. Em geral, isso implicará atribuir certos
estados mentais (como crenças e desejos) ao agente. (As
teorias da acção que defendem que a atribuição de estados
mentais ao agente não é fulcral para explicar a sua acção, como
a teoria da acção de Dancy, são denominadas "não-
psicologistas".) Uma teoria da razão prática, por outro lado,
procura dizer em que circunstâncias é que uma acção é racional
ou irracional. (Como mencionei em "Uma objecção à teoria
instrumental da razão prática", seria mais correcto dizer "teoria
da racionalidade na acção".)
A teoria da razão prática que recolhe aprovação mais ampla é a
teoria intrumental, segundo a qual uma acção é racional se e só
se o agente pensa (correcta ou incorrectamente) que essa
acção é o meio mais adequado para realizar os seus desejos.
Os defensores do modelo crença-desejo costumam ser logo
enfiados no grupo dos que dizem que não devemos ir além da
teoria intrumental da razão prática. Esta atitude é demasiado
precipitada. Embora as teorias da acção e as da razão prática
não estejam completamente separadas, a verdade é que gozam
de um certo grau de autonomia uma em relação à outra. Não
seria inconsistente da parte de um defensor do modelo crença-
desejo opôr-se a uma teoria meramente intrumental da razão
prática.
Suponhamos que alguém defendia que qualquer acção que
pusesse em perigo a sobrevivência da espécie humana seria
irracional. Não estou a dizer que alguém tenha mesmo
defendido isto: estou simplesmente a dizer que é possível ter-se
esta posição. Não é preciso pensar muito para se chegar à
conclusão de que um defensor da teoria instrumental não pode
concordar com tal coisa. De acordo com a teoria intrumental,
uma acção é racional se o agente pensa que é o meio mais
eficiente para realizar os seus desejos; só se o agente agir,
conscientemente, de um modo que pensa não ser o mais
eficiente para realizar os seus desejos, é que estará a ser
irracional. Por isso, um humeano (ou seja, o defensor da teoria
instrumental) dirá que agir de modo a pôr em perigo a
sobrevivência da espécie humana será racional, caso o agente
queira pôr em perigo a sobrevivência da espécie humana, ou
irracional, caso ele não queira.
À partida, nada impede um defensor do modelo crença-desejo
de defender que é irracional realizar acções que ponham em
perigo a sobrevivência da espécie humana. Nesse caso, a posse
do desejo de queimar combustível e a da crença de que é
possível queimar combustível atirando um fósforo aceso para
dentro de um bidão cheio de gasolina racionalizaria a nossa
acção de queimar combustível, mas não a tornaria racional,
dado que queimar combustível seria, em última análise, mau
para a sobrevivência da espécie.
Qual é a diferença, então, entre racionalizar uma acção e
mostrar que ela é racional? A primeira coisa que há que dizer é
a que a noção de "racionalização" é meramente descritiva, ao
passo que a noção de "mostrar que é racional" é normativa. Ao
racionalizarmos um acção, não estamos, desse modo, a mostrar
que a acção se coaduna com certas regras de condutas;
estamos simplesmente a fornecer uma explicação da acção. Por
outro lado, ao dizermos que uma acção é racional ou irracional,
estamos a emitir opinião sobre se essa acção se coaduna ou
não com certas regras de conduta que todos os agentes
racionais deviam, idealmente, seguir (como acontece no
exemplo do parágrafo anterior).
Racionalizar uma acção é torná-la inteligível; é tornar claro
porque é que o agente a realizou. De acordo com o defensor do
modelo crença-desejo, isso implicará olhar para a sua acção à
luz dos seus desejos e das suas crenças relevantes e tentar
descortinar porque estaria ele interessado em realizá-la. Ao
atribuir-lhe o desejo de queimar combustível e a crença de que
é possível fazê-lo atirando um fósforo aceso para dentro de um
bidão cheio de gasolina, estamos a tornar claro porque é que
faria sentido que o agente atirasse o fósforo para dentro do
bidão, tal como atirou.

3. O carácter intensional das descrições de acções

De modo a fazer a ponte entre esta secção e a anterior,


gostaria de dar mais um exemplo de como atribuir crenças e
desejos ao agente pode ajudar a racionalizar a sua acção.
Imagine que acabo de chegar a casa. É de noite. Ao agir de
determinada maneira (já vamos ver qual), alerto o ladrão que
estava dentro da casa e ele acaba por fugir. Perante esta
situação, a minha acção não é inteligível - não dá para perceber
porque é que a realizei. Que interesse é que eu teria em alertar
o ladrão para a minha presença? À partida, nenhum. Eu devia
era querer apanhá-lo para que ele não fugisse com o saque.
O problema resolve-se da seguinte maneira: o meu objectivo
era acender a luz (lembre-se de que cheguei a casa de noite),
não alertar o ladrão da minha presença. Eu nem sequer sabia
que lá estava um ladrão. Eu tinha o desejo de acender a luz e a
crença de que poderia fazê-lo ligando o interruptor. Dada esta
explicação, a acção que realizei e que teve a consequência de
alertar o ladrão da minha presença já se nos torna inteligível, já
é racionalizada. Note como um exemplo semelhante poderia ser
construído em relação ao caso que apresentei na secção
anterior: imagine que tínhamos o tal desejo de queimar
combustível e a crença de que poderíamos fazê-lo deitando um
fósforo para dentro de um bidão cheio de gasolina. O desejo e a
crença certamente racionalizariam a minha acção de atirar o
fósforo pra dentro do bidão. No entanto, imagine agora que nós
tínhamos um desejo adicional: o de não fazer nada que pudesse
pôr em perigo a sobrevivência da espécie humana. Sem que
nós soubéssemos, ao queimar esse combustível estaríamos a
libertar nuvens de fumo tóxicas. Por isso, parece que atribuir ao
agente o desejo e a crença que lhe atribuímos não chegaria,
neste caso, para racionalizar a acção dele.
Alguém poderia expressar esta preocupação da seguinte forma,
desta vez em relação ao caso da pessoa que, sem querer, alerta
o ladrão para a sua presença:
"Então mas porque é que o desejo e a crença relevante
racionalizam a minha acção de ligar o interruptor, mas não a
minha acção de alertar o ladrão para a minha presença? Afinal,
a minha acção de ligar o interruptor e minha acção de alertar o
ladrão são a mesma acção. Não há aqui duas acções diferentes.
Como é que o desejo e a crença relevante podem, num sentido,
racionalizar a minha acção, e noutro, não? Não será isso
contraditório?"
O resto desta secção será, em grande parte, dedicado a tentar
fornecer os materiais para responder a esta dúvida.
A primeira coisa a dizer é que não é líquido que a minha acção
de ligar o interruptor e a minha acção de alertar o ladrão sejam
a mesma acção. Nem sequer é líquido que o alertar do ladrão
seja uma acção. Afinal, não alertámos o ladrão
intencionalmente, e quando fazemos uma coisa sem intenção,
não parece que tenhamos realizado uma acção. Se uma pessoa
assina um contrato sem estar ciente de uma das cláusulas, não
é claro que possamos descrever a acção dele como "assinar um
contrato com tal cláusula". Parece que a única acção que ele
realizou foi "assinar um contrato". À partida, parece que só
comportamento intencionais é que são acções. É preciso notar
que, quando digo que um agente fez algo de forma não
intencional, estou a dizer que o agente não se apercebeu do
que estava realmente a fazer, como no caso da pessoa que
assina o contrato sem saber da cláusula.
Há, no entanto, quem defenda uma noção mais abrangente de
"comportamento não-intencional". Os defensores da chamada
doutrina do duplo efeito, que pertence à área da ética aplicada,
sustentam que há certas consequências da nossa acção que são
previstas, mas não intencionadas. Deste modo, eu prevejo que
matar o líder do Hamas implicará matar vários civis, mas não
tenciono matar esses civis - eu simplesmente prevejo que eles
serão mortos. Os méritos da doutrina do duplo efeito, enquanto
teoria de ética aplicada, são bastante dúbios. Mas não quero
agora falar disso. Aquilo que me parece é que, em termos de
filosofia da acção, é um disparate dizer que não tenho a
intenção de matar os civis ao atirar uma bomba em cima do
líder do Hamas. Parece-me óbvio que tenciono matar os civis.
Posso não gostar disso, posso ficar com remorsos, posso
justificar-me dizendo que era mesmo preciso matar o terrorista
- não posso é dizer que não tencionava matar os civis.
Bom, voltemos ao nosso problema: como é que um desejo e
uma crença podem racionalizar uma acção sob certas descrições
do que aconteceu, mas não sob outras? Para tentar resolver
isto, será preciso fazer uma pequena incursão pela filosofia da
linguagem.
As expressões "Final da Taça de Portugal 2002-2003" e "jogo
que em que o Porto ganhou a sua última Taça de Portugal
2002-2003" referem-se ao mesmo jogo, pelo que são co-
extensivas (quando duas, ou mais, expressões se referem ao
mesmo objecto, nós dizemos que elas são co-extensivas, ou co-
referenciais). Todavia, mesmo sendo essas expressões co-
extensivas, eu posso não saber que são co-extensivas. Se
calhar não ligo ao futebol e não sei, nem quero saber, quem é
que ganhou a Taça de Portugal.
Outro exemplo, desta vez mais próximo daquilo que nos
interessa: se perguntarmos a Lois Lane se ela ama o Super-
Homem, ela dirá que sim. No entanto, se lhe perguntássemos
se ela amava Clark Kent, ela dir-nos-ia que não (pelo menos
antes de descobrir que eles são a mesma pessoa, o que, salvo
erro, ocorre em "Super-Homem 2"). Como nós sabemos que as
expressões "Super-Homem" e "Clark Kent" são co-extensivas,
nós pensaríamos, à partida, que são sempre inter-substituíveis
salva veritate. Dois termos são inter-substituíveis salva veritate
quando podem ser trocados um pelo outro sem alterar o valor
de verdade da frase em que ocorrem ("salva veritate" significa,
precisamente, "preservando a verdade"). Por exemplo: se é
verdade que o Super-Homem é invencível, então também é
verdade que Clark Kent é invencível. Se é verdade que o Super-
Homem tem um metro e noventa, também é verdade que Clark
Kent tem um metro e noventa.
No entanto, as coisas mudam quando estamos a falar de
contextos referencialmente opacos (ou "contextos intensionais";
é a mesma coisa). Um contexto é referencialmente opaco
quando, por exemplo, determinar a referência dos termos que
ocorrem numa frase não é suficiente para determinar o valor de
verdade dessa frase. Tome o exemplo da frase "Lois Lane ama
Clark Kent". Ora suponha que nós sabemos a quem é que os
termos "Lois Lane" e "Clark Kent" se referem e que também
sabemos o que significa o verbo "amar". Será isso suficiente
para determinar se a frase "Lois Lane ama Clark Kent" é
verdadeira? Não. Pense nas semelhanças entre "Lois Lane ama
Clark Kent" e "Lois Lane ama o Super-Homem". "Lois Lane"
refere-se à mesma pessoa em ambas as frases. "Clark Kent" e
"Super-Homem" também se referem à mesma pessoa. O verbo
"amar" tem exactamente o mesmo significado. No entanto,
parece que, de modo a determinar se cada uma das frases é
verdadeira, não basta saber a referência de "Super-Homem" e
"Clark Kent".
Isto mostra-se facilmente através do seguinte argumento. Lois
Lane sabe a referência de "Clark Kent" (ela conhece-o porque
trabalha com ele) e também sabe a referência de "Super-
Homem" (ele já a salvou umas quantas vezes), ainda que não
saiba que "Clark Kent" e "Super-Homem" são termos co-
extensivos, isto é, que Clark Kent é o Super-Homem (e vice-
versa, naturalmente). No entanto, responderia negativamente,
caso lhe perguntássemos se amava Clark Kent, e
afirmativamente, caso lhe perguntássemos se amava o Super-
Homem. Por isso, a impressão que dá é a de que, para
determinar o valor de verdade de "Lois Lane ama Clark Kent" e
"Lois Lane ama o Super-Homem", não basta saber a extensão
de "Clark Kent" e a extensão de "Super-Homem": também
temos que saber a intensão de cada um dos termos.
(Um aparte: o leitor que esteja ao corrente da controvérsia
entre Fregeanos (lê-se "Freguianos") e Millianos na filosofia da
linguagem saberá que este problema da falha de inter-
substitutividade salva veritate de termos co-extensivos em
contextos referencialmente opacos é uma grande dor de cabeça
para os Millianos.)
Agora vamos parar aqui um bocadinho para explicar o que é
isso de "intensão", porque senão isto pode tornar-se tudo muito
confuso. "Intensão" com "s" não deve ser confundida com
"intenção" com "ç". A nossa intenção é aquilo que queremos
fazer. Eu tenho a intenção de subir a escada, de abrir a porta,
etc. "Intensão" é uma coisa diferente. Para se saber o que é
"intensão", será melhor lembrar o que é a extensão. Lembra-se
de eu dizer que "Super-Homem" e "Clark Kent" eram termos
co-extensivos? Trocado por miúdos, isso quer dizer que têm a
mesma extensão. A extensão de uma expressão referencial é,
simplesmente, a coisa a que expressão se refere. A intensão é
algo que está supostamente associado a expressões
referenciais, mas que é distinto da extensão. O que essa
intensão seja, porém, é coisa altamente polémica. Há quem
diga que as intensões são significados. Há quem diga que são
descrições definidas. Hoje em dia, há uma definição mais
"janota": a intensão de um termo é uma função de um mundo
possível w para a extensão do termo.
Estas polémicas são todas muito interessantes, mas não nos
interessam para aqui. Aquilo que nos interessa é o seguinte.
Parece que, quando estamos a lidar com predicados como "...
tem um metro e noventa" e "... é invencível", a única coisa que
conta para determinar o valor de verdade das frases que
formemos, inserindo nomes próprios no espaço em branco, é a
extensão desses nomes próprios. Se é verdade que Clark Kent
tem um metro e noventa, e Clark Kent é o Super-Homem,
então é necessariamente verdade que "O Super-Homem tem
um metro e noventa". Neste caso, saber a extensão dos dois
termos basta para determinar o valor de verdade das frases.
Estamos, por isso, num contexto extensional, ou
referencialmente transparente (que é, obviamente, o oposto de
contexto intensional, ou referencialmente opaco)
Quando estamos a falar de frases como "Lois Lane ama Clark
Kent", parece que estamos a entrar num contexto
referencialmente opaco, dado que saber a extensão de "Clark
Kent" não parece ser suficiente para determinar o valor de
verdade dessa frase. Se "Clark Kent" tivesse uma intensão, e
essa intensão fosse qualquer coisa como "colega de trabalho a
quem Lois Lane dá pouca atenção", já seria possível determinar
o valor de verdade da frase "Lois Lane ama Clark Kent": seria
falsa.
Bom, suponho que o leitor já esteja um pouco perdido, nesta
altura. Aonde quero eu chegar com tudo isto, afinal? Peço
desculpa por esta incursão algo demorada pela filosofia da
linguagem, mas tinha receio de que, se não o fizesse, aquilo
que vou dizer a seguir poderia não ser entendido.
Ora voltemos um pouco atrás. Como se lembrará, a objecção
que nos estava a ser colocada era a seguinte: a minha acção de
ligar o interruptor e de alertar o ladrão são a mesma acção;
como é que pode ser possível, então, que o meu desejo de ligar
a luz e minha crença de que poderia fazê-lo simplesmente
ligando o interruptor racionalizem a minha acção de ligar o
interruptor, mas não a minha acção de alertar o ladrão?
Depois de tudo o que disse, a resposta deverá ser óbvia: ao
falarmos de descrições de acções, estamos a entrar num
contexto referencialmente opaco (ou intensional; é a mesma
coisa). Tal como pode ser verdade que "Lois Lane não ama
Clark Kent", muito embora ela ame o Super-Homem e "Clark
Kent" e "Super-Homem" sejam co-extensivos, também pode ser
verdade que "O meu desejo de ligar a luz e a minha crença de
que poderia fazê-lo simplesmente ligando o interruptor não
racionalizam a minha acção de alertar o ladrão", muito embora
racionalizem a minha acção de ligar o interruptor, e a minha
acção de ligar o interruptor e a minha acção de alertar o ladrão
sejam a mesma acção.
Tal como, para se determinar o valor de verdade de "Lois Lane
ama Clark Kent", não é suficiente saber a extensão de "Clark
Kent", também no caso de "Tal desejo e tal crença racionalizam
a minha acção de alertar o ladrão" não chega saber a extensão
de "acção de alertar o ladrão". O desejo e a crença podem
racionalizar a acção, se olharmos para ela de uma maneira, e
não a racionalizar, se olharmos para ela de outra maneira. É
nisto que consiste o carácter intensional das descrições de
acções, que mencionei no título desta secção.
Alguém que tenha lido "Actions, reasons and causes", o artigo
clássico de Davidson, poderá ter ficado com uma dúvida:
porque é que Davidson diz que as descrições de acções são
apenas semi-intensionais?
Boa pergunta. A resposta reside na definição de "contexto
intensional". Já aqui mencionei uma das características dos
contextos intensionais: os termos co-extensivos não são inter-
substituíveis salva veritate. A outra característica dos contextos
intensionais que me falta mencionar é que, neles, nada impede
um termo de ser vazio, isto é, de não ter qualquer extensão.
Tome o exemplo da frase "As crianças acreditam no Pai Natal".
O valor de verdade desta frase é completamente independente
de haver ou não um Pai Natal. Este tipo de coisas não acontece
num contexto extensional.
De acordo com Davidson, as descrições de acções não são
intensionais neste sentido, porque, mesmo que seja falso que
tal desejo e tal crença racionalizem uma dada, essa acção teve
mesmo que acontecer. Neste sentido, as descrições de acções
não são como o Pai Natal: podemos tentar racionalizá-las da
maneira que quisermos, mas elas têm que existir.
A conclusão que podemos retirar daqui é a de que, de acordo
com o modelo crença-desejo, para racionalizar uma acção não
basta atribuir ao agente um desejo e uma crença relevante - de
modo a acomodar o carácter intensional das descrições de
acções, se quisermos racionalizar uma acção teremos também
que a apresentar sob uma descrição que revele o seu carácter
intencional.
É melhor fazer aqui outra pausa antes de prosseguir, porque se
não pode haver confusão outra vez. Já expliquei em que
consiste o carácter intensional das descrições de acções: no
facto de as acções poderem ser racionalizadas, se forem
apresentadas sob uma dada descrição, e de poderem não ser
racionalizadas, se forem apresentadas sob outra descrição.
Tendo isto em mente, temos que procurar encontrar a descrição
certa da acção. Essa descrição certa será uma descrição
intencional. Porquê "intencional"? Porque deverá tornar claro
porque é que o agente teria tido a intenção de a realizar.
Lembre-se do caso da pessoa que acende a luz e alerta o
ladrão. De modo a racionalizar a sua acção, temos primeiro de
apontar para o desejo e para a crença que o levaram a agir
dessa maneira. Neste caso, estaríamos a falar do desejo de
acender a luz e da crença de que poderia fazê-lo ligando o
interruptor. De seguida, teríamos que encontrar uma descrição
intencional da sua acção: uma descrição da acção que nos
mostre que fazia sentido realizá-la, dado o seu desejo e a sua
crença. Se apresentássemos a nossa acção como "acção de
alertar o ladrão", não teríamos conseguido racionalizar a nossa
acção. Teríamos que descrever a sua acção como "acção de
ligar o interruptor".
Isto significa que a tese a) deve, portanto, ser reformulada mais
ou menos da seguinte maneira:
a) Para racionalizar uma acção, é sempre necessário atribuir ao
agente (pelo menos) um desejo e (pelo menos) uma crença
relevante e apresentar uma descrição da acção que revele o seu
carácter intencional.
Antes de avançar para a próxima secção, aproveito para dar
três esclarecimentos adicionais sobre a).
Em primeiro lugar, porque é que digo que a crença tem que ser
relevante? Nada de muito complicado: apenas que a crença tem
de ter uma relação apropriada com o desejo. Para a crença ser
relevante, tem que nos dizer como é que o agente acreditava
que o seu desejo podia ser realizado. Imagine o leitor que tinha
o desejo de ir tomar uma cerveja. De modo a racionalizar a sua
acção, temos que lhe atribuir uma crença que explique como é
que pensava poder realizar o seu desejo. Não faria, por isso,
sentido atribuir-lhe a crença de que 21 de Junho é o dia mais
longo do ano. Uma crença relevante, neste caso, seria qualquer
coisa tão banal como "creio que o empregado me dará uma
cerveja se eu lhe der 1 euro".
Em segundo lugar, as crenças relevantes não têm
necessariamente de ser instrumentais, embora geralmente o
sejam. (Uma crença instrumental tem a forma "Se eu usar tais
e tais e tais meios, conseguirei realizar o meu desejo.") No
exemplo usado, a crença necessária seria uma crença
instrumental: uma crença acerca de como podíamos arranjar
uma cerveja. Mas suponha agora que o seu desejo não era
simplesmente o de beber uma cerveja, mas sim o de beber uma
cerveja no dia mais longo do ano. De modo a poder concretizar
este desejo, continuará, naturalmente, a precisar de uma
crença acerca de qual é o meio apropriado para arranjar uma
cerveja, mas agora teremos que lhe atribuir uma crença acerca
de qual é o dia mais longo do ano. Qualquer coisa como "creio
que o dia 21 de Junho é o dia mais longo do ano". Esta crença,
tal como a crença de que o Super-Homem é Clark Kent, não é
instrumental.
Em terceiro lugar - este é um ponto importante -, nada impede
que haja mais do que um modo de racionalizar a acção do
agente, nem que uma racionalização possível da acção de um
agente não constitua a razão pela qual o agente agiu.
Tomemos o exemplo da pessoa que assina o contrato de modo
a obter um empréstimo para a casa. Se calhar, ao assinar o
contrato, a pessoa estaria a realizar dois desejos ao mesmo
tempo: ter casa própria e conquistar a sua independência, por
exemplo. Deste modo, haveria duas racionalizações disponíveis
da acção: uma composta pelo par "desejo comprar uma casa" e
"creio que o modo mais eficiente de o fazer é obter um
empréstimo"; e outra pelo par "desejo conquistar a minha
indepêndencia" e "creio que o modo mais eficiente de o fazer é
obter um empréstimo".
Suponhamos agora que, embora conquistar a nossa
independência fosse importante para nós, aquilo que
verdadeiramente nos levou a obter o empréstimo foi o desejo
de comprar casa própria. Nesse caso, embora a acção de
assinar o contrato pudesse ser racionalizado de duas maneiras,
só uma delas é que corresponde à razão pela qual o agente
agiu. Nós tinhamos dois motivos para querer pedir um
empréstimo, mas só um desses motivos, o de comprar casa
própria, suponhamos, é que nos levou a agir.

4. Uma reformulação necessária de b)

Até agora, estive só a falar da tese a). A tese b) andou um


pouco esquecida. A tese b) era, lembre-se,
b) O par formado pelo desejo e pela crença relevante que
racionaliza a acção também constitui a causa dessa acção.
Como dissemos no final da secção anterior, pode haver mais do
que um par de desejos e crenças a racionalizar a acção. Como
também dissémos, alguns desses pares poderiam servir para
racionalizar a acção, mas não constituiram, efectivamente, a
razão pela qual o agente a realizou. A tese b) deve ser
reformulada de modo a acomodar estes pontos. Talvez do
seguinte modo:
b) Alguns dos pares formados por um desejo e por uma crença
relevante que racionalizam a acção também constituiram a
causa dessa acção.
Esta definição parece acomodar os dois pontos que mencionei.
Em primeiro lugar, abre a porta para mais de um par de desejos
e crenças relevantes poderem ter constituído a causa da acção.
Em segundo lugar, não afirma que todos os pares que poderiam
racionalizar a acção fizerem parte da causa da acção.

5. Precisará o modelo crença-desejo de b)?

Impõe-se um esclarecimento em relação a b). Que quero eu


dizer com "causa"? O que é que significa dizer que a crença e o
desejo constituiram a causa da acção?
O termo "causa" está a ser usado no sentido aristotélico de
"causa eficiente". Uma causa eficiente é uma causa no sentido
comum do termo. A bola de bilhar mexeu-se porque eu lhe dei
uma tacada. A minha tacada foi a causa eficiente de a bola se
mexer. Do mesmo modo, de acordo com o modelo crença-
desejo, o desejo e a crença constituem a causa eficiente da
minha acção.
Há quem olhe para este modo de formular b) com alguma
suspeição. Não é de estranhar: intuitivamente, não diríamos
que a minha tacada causou o movimento da bola no mesmo
sentido em que o meu desejo e a minha crença "causaram" a
minha acção.
Historicamente, há quem tenha levado esta ideia muito a sério
e passado a falar de "causalidade do agente" ("agent
causation") , que é, supostamente, um tipo de causalidade
diferente do modo como a minha tacada causou o movimento
da bola. Não tenciono falar disto agora, mas parece-me que
essa ideia não passa de uma grande confusão. (Veja-se a crítica
de Searle em Rationality in action, por exemplo.)
O que gostaria de frisar é que não me parece que concordar
com b) seja essencial para se acreditar no modelo crença-
desejo. Acho que o cerne do modelo crença-desejo reside em a)
- b) é, por assim dizer, descartável. Com isto não estou,
obviamente, a dizer que b) é falsa; estou simplesmente a dizer
que não é essencial para o modelo crença-desejo.
Como é que b) terá arranjado maneira de ter lugar cativo na
definição canónica do modelo crença-desejo, então?
Cá para mim, essa intromissão deve-se a duas coisas. Em
primeiro lugar, ao medo generalizado de que, se uma acção não
foi causada, então surgiu espontâneamente, o que ainda deixa
menos lugar para a liberdade, como os compatibilistas (os
filósofos que dizem que a liberdade e o determinismo são
compatíveis) costumam agoirar. As minhas ideias em relação à
disputa entre compatibilistas e incompatibilistas não são muito
claras, pelo que não tenho, verdadeiramente, opinião sobre se o
facto de uma acção ter sido causada significa que não foi livre.
No entanto, dou comigo a pensar: porque haveria a nossa
definição do modelo crença-desejo de estar dependente de
avanços nesta área? Isso não parece fazer muito sentido.
Parece-me claro que a única posição em relação à liberdade que
estaríamos "proibidos" de ter caso defendêssemos o modelo
crença-desejo seria a de que as acções ocorrem
espontâneamente. Caso tivéssemos essa posição, seria tempo
perdido andar a descobrir formas de racionalizar as acções das
pessoas. Mas ninguém nos diz que, caso recusemos aceitar que
todas as acções são espontâneas, estaremos forçados a aceitar
que estão determinadas. Caso haja uma terceira via, parecida à
da teoria da "causalidade do agente" (e que, para além do
mais, tenha a vantagem de ser verdadeira, coisa que essa
teoria não é), não vejo porque não pudessemos continuar a
defender o modelo crença-desejo.
Suspeito que a segunda razão pela qual b) se intrometeu na
definição canónica do modelo crença-desejo é a de ter sido
explicitamente defendida por Davidson, que é, talvez, o mais
importante defensor do modelo crença-desejo desde Hume. A
influência de Davidson na filosofia moderna é avassaladora,
mas temos que saber resistir-lhe. Não podemos partir logo do
princípio de que o modelo crença-desejo tem, obrigatoriamente,
de incorporar a segunda tese só porque Davidson a defende.
Se queremos vencer, temos de saber quem são os nossos
inimigos. Não adianta andar a disparar para o ar para ver se
acertamos em alguém - podemos acabar por acertar nos
nossos. Isto é tão verdadeiro para a guerra, como para a
filosofia. Penso que a inclusão de b) na definição canónica do
modelo crença-desejo só tem como resultado afugentar
possíveis aliados, ou seja: pessoas que pensam que precisamos
sempre de desejos e crenças para racionalizar acções, mas que
não gostam de pensar em desejos e crenças como causas
eficientes da acção.
Os grandes inimigos do modelo crença-desejo são os que
defendem um modelo não-psicologista da acção, ou que
defendem um modelo psicologista da acção, mas que, das duas,
uma: ou dizem que as crenças chegam para motivar; ou então
que os desejos chegam para motivar. Estes três é que são os
verdadeiros inimigos - é para lá que o defensor do modelo
crença-desejo deve apontar os canhões.

6. Uma relação desigual?

Há ainda uma ideia geral que anda associada ao modelo crença-


desejo, mas que é difícil de formular com precisão. É a ideia de
que, embora a crença e o desejo sejam ambos necessários para
haver acção, a importância deles é desigual: o desejo é, de
certa forma, o parceiro dominante da relação.
Uma tese que capta bem esta ideia é a das "direcções de
correspondência". É comum dizer-se, desde Anscombe, que o
desejo e a crença têm diferentes direcções de correspondência.
O desejo tem uma direcção de correspondência mente-mundo;
a crença, uma direcção de correspondência mundo-mente.
Porquê esta diferença? Porque o desejo tem por objectivo criar
uma alteração no mundo - daí ter a direcção de
correspondência mente-mundo; a crença, por outro lado, tem
por objectivo representar o mundo de forma de forma exacta -
daí ter a direcção de correspondência mundo-mente.
Há quem pareça pensar que a diferença entre desejos e crenças
não é apenas de função, mas também de poder causal. No
próximo ensaio, terei oportunidade de falar sobre isso.
7. Conclusão

Como foi visível, o meu objectivo neste ensaio não foi o de


apresentar críticas ao modelo crença-desejo, mas somente o de
formular da forma mais precisa possível as teses de que ele é
composto, tendo sempre o cuidado de o demarcar de outras
teorias que por vezes se metem à mistura. Espero que tenha
ficado com uma ideia mais clara sobre o que é o modelo crença-
desejo (ou que, pelo menos, não tenha ficado mais confuso do
que já estava!)
Ficou com curiosidade acerca de qual poderá ser a tese segundo
a qual crença e desejo são causalmente desiguais? Então não
há como enganar: leia o próximo artigo.

Bibliografia:
Branquinho - "Extensão/intensão", em Enciclopédia de termos
lógico-filosóficos, Branquinho e Murcho, Eds., Gradiva, 2001
Dancy - Practical reality, Oxford University Press, 2002
Davidson - "Actions, reasons and causes" e "Agency", ambos
em Essays on actions and events, Oxford University Press, 2001
Guttenplan, ed. - "Action (2)", "Intention" e "Reasons and
causes", todos em A companion to the philosophy of mind,
Blackwell Publishers, 2001
Searle - Rationality in action, MIT Press, 2001 (especialmente
cap. 3)
!
Intelectu no 9 - Outubro de 2003

A objecção de Nagel ao modelo crença-desejo (e o realismo


moral)
Pedro Madeira

Resumo
Na introdução, revela-se os três objectivos principais deste
ensaio: expôr a objecção de Nagel ao modelo crença-desejo;
expôr a objecção de Dancy; e explicar como é que isto pode ser
relevante para a refutação de uma objecção comum ao realismo
moral. Na segunda secção, explica-se a distinção de Nagel entre
desejos motivados e não-motivados. Sem se compreender esta
distinção, não será possível compreender a objecção de Nagel
ao modelo crença-desejo. Na quarta secção, expõe-se a
objecção de Nagel ao modelo crença-desejo. Na quinta secção,
procura-se mostrar que a objecção falha o alvo, porque acusa o
modelo crença-desejo de apoiar uma tese que não parece estar
nele incluída (ou, pelo menos, não necessariamente incluída): a
de que as crenças são causalmente inertes.Na sexta secção,
pergunta-se o que estaria, afinal, implicado numa refutação do
modelo crença-desejo. Argumenta-se que teríamos de pagar
um preço demasiado alto para a rejeitar, pelo que mais vale
não o fazer. Na sétima secção, explica-se como é que toda esta
discussão se pode revelar crucial para a refutação de uma
objecção comum ao realismo moral. Quem não estiver
grandemente interessado no assunto, pode limitar-se a ler a
última parte da secção, em que digo algumas coisas de
relevância geral acerca da tese das direcções de
correspondência.

1. Introdução

No ensaio anterior (que seria aconselhável ler antes de passar


para este), tentei explicar de forma detalhada o que era o
modelo crença-desejo. O modelo crença-desejo é, de longe, a
teoria da acção mais amplamente aceite, mas há quem dela
discorde. Um dos seus mais acérrimos opositores é Thomas
Nagel. A primeira coisa que pretendo fazer neste ensaio é expôr
a sua objecção ao modelo crença-desejo. A segunda será dar
conta da resposta de Jonathan Dancy, e explicar porque é que
concordo, de forma geral, com ela. A terceira será mostrar
como é que esta discussão toda se pode revelar crucial para a
refutação de uma objecção comum ao realismo moral (posição
segundo a qual pelo menos algumas afirmação morais têm
valor de verdade).

2. Desejos motivados e desejos não-motivados


conta da resposta de Jonathan Dancy, e explicar porque é que
concordo, de forma geral, com ela. A terceira será mostrar
como é que esta discussão toda se pode revelar crucial para a
refutação de uma objecção comum ao realismo moral (posição
segundo a qual pelo menos algumas afirmação morais têm
valor de verdade).

2. Desejos motivados e desejos não-motivados

Comecemos por Nagel, então. O que é que ele acha que está
mal com o modelo crença-desejo? A gente já falará disso na
quarta secção. Antes, é necessário explicar alguma da
terminologia de Nagel, nomeadamente a distinção entre desejos
motivados e não-motivados. Sem se perceber bem esta
distinção, não será possível entender-se a objecção dele. Seria,
por isso, aconselhável que tivesse um bocadinho de paciência e
não saltasse esta secção.
De acordo com Nagel, um desejo não-motivado é um desejo de
que somos acometidos, por assim dizer. O desejo súbito de
berrar com alguém, de dar pulos de alegria, de dar um murro
na mesa, etc. Um desejo motivado é um desejo a que
chegamos após deliberação. Nós queremos dar a melhor
educação possível aos nossos filhos. Será, para isso, melhor pô-
los numa escola pública, ou numa privada? Deliberamos, e
tomamos uma decisão. Podemos supôr que chegamos à
conclusão de que o melhor é mesmo pô-los numa pública. Este
nosso desejo de os pôr numa pública não nos veio à cabeça de
repente: foi fruto de uma escolha ponderada.
Nagel parece pensar que, se um desejo não apareceu
subitamente, então é necessariamente verdade que chegámos a
ele por deliberação. Isto não é bem verdade. Há também
desejos que se insinuam perante nós, por assim dizer. São
desejos que começam gradualmente e infiltrar-se no nosso
espírito, mas não por deliberação. É um tipo de desejo que
toma progressivamente conta de nós. Pense numa pessoa que
considera a hipótese de enganar o cônjuge. A princípio, a ideia
parece-lhe maluca. Depois, alterna entre pensar que a ideia é
maluca e que não é. Finalmente, acaba por ceder à tentação.
Neste caso, não houve qualquer tipo de deliberação. A pessoa
esteve a lutar com a tentação - e perdeu. Outro exemplo de um
desejo que não apareceu subitamente, mas também não foi o
resultado de deliberação, é o da pessoa que tem sempre um
jarro com doces em cima do frigorífico. Como sempre teve o
desejo de comer doces, não é possível enfiá-lo em nenhuma
das categorias precedentes: o desejo não se foi insinuando; não
lhe chegou subitamente; nem foi, obviamente, resultado de
deliberação.
Depressa chegámos à conclusão que a distinção de Nagel entre
desejos súbitos e desejos que resultam de deliberação não
abarca todos os casos possíveis. De modo a acomodar os dois
tipos de desejos em que Nagel não pensou (nada impede que
haja mais em que eu também não tenha pensado,
evidententemente), passarei a distinguir entre desejos súbitos e
não-súbitos. Desejos súbitos já sabemos o que são. Sob a
designção de "desejos não-súbitos" estarão pelo menos
incluídos os três casos em que falei - e possivelmente outros.
Bom, mas vamos ao que nos interessa: a distinção de Nagel
entre desejos motivados e não-motivados. Como já vimos, um
dos critérios de Nagel para distinguir entre desejos motivados e
não-motivados é o de dizer que todos os desejos não-motivados
são súbitos; e que nenhum desejo motivado é súbito.
Nagel acrescenta que há outro critério para distinguir os desejos
motivados dos não-motivados. Os desejos motivados - ao
contrário dos não-motivados - podem ser explicados apelando
para outros estados mentais do agente. O caso mais comum é
aquele em que os desejos motivados podem ser explicados
apelando para outros desejos. Nesta secção, é nesse tipo de
casos em que nos vamos focar, mas há, argumentavelmente,
outros, como veremos na secção seguinte. O meu desejo de pôr
os meus filhos numa pública, por exemplo, deriva do meu
desejo de lhes dar a melhor educação possível. Os meus
desejos não-motivados, por outro lado, não podem ser
explicados pela presença de outros estados mentais. Eu quero
beber uma cerveja fresca porque sim. Não é preciso atribuir-me
um desejo mais geral, como o de beber bebidas frescas, ou de
me embebedar, ou coisa que o valha. Deu-me, simplesmente,
na cabeça para beber uma cerveja. Os desejos não-motivados
são, por assim, dizer, desejos primitivos. O facto de um desejo
ser primitivo não significa que não possa ser explicado. Claro
que pode. A minha fome pode ser explicada através da falta de
comida, por exemplo. Os desejos primitivos podem ser
explicados - mas não apelando para outros estados mentais do
agente.
Nagel tem aqui outro contratempo: a distinção entre desejos
motivados e não-motivados é, tal como está, irremediavelmente
obscura. Por uma razão simples: há desejos não-primitivos que
são súbitos; e há desejos primitivos que não são súbitos.
Lembre-se do meu desejo de dar aos meus filhos a melhor
educação possível. Como vimos, esse era um desejo motivado.
Sendo motivado, podia ser explicado apelando a outro estado
mental: neste caso, o meu desejo de lhes dar a melhor
educação possível. Este desejo, por sua vez, deriva do nosso
desejo de lhes darmos a possibilidade de ter uma vida boa no
futuro. E este desejo? Bom, este desejo parece derivar de um
desejo primitivo: o de fazermos tudo o que pudermos pelos
nossos filhos para que eles sejam felizes. Não faria sentido
continuar a perguntar: e porque é que queres que eles sejam
felizes? Chegámos ao final da linha: eu quero que eles sejam
felizes porque os amo muito. Não é possível estar a citar mais
desejos para explicar esta nossa preocupação com eles. No
entanto, este nosso desejo de que eles sejam felizes, embora
primitivo, não é um desejo súbito, que aparece do nada, como
o desejo de beber uma cerveja ao passar ao pé de uma
cervejaria. Nós não acordámos um dia e dissemos para nós
próprios: "olha que engraçado, tenho o desejo de fazer tudo o
que puder pelos meus filhos".
Suponha agora que eu estou no quarto a escrever alguma coisa
e que, de repente, fica um calor de morrer e eu levanto-me e
vou ligar a ventoinha. O desejo de me levantar para ir ligar a
ventoinha foi um desejo súbito. Poderemos, no entanto, dizer
que foi um desejo não-motivado? Não. Eu quis ir ligar a
ventoinha porque o calor me fazia sentir desconfortável e eu
tinha o desejo de não me sentir desconfortável.
A distinção que será realmente importante para a objecção de
Nagel ao modelo crença-desejo é a distinção entre desejos
primitivos e não primitivos, não a distinção entre desejos
súbitos e não-súbitos. Por isso, de agora em diante, quando
estiver a falar de desejos motivados e não-motivados, estarei a
referir-me a desejos não-primitivos e primitivos.

3. Como é que Nagel tenta refutar o modelo crença-desejo?

Na segunda secção, vimos que Nagel estabelecia uma distinção


entre desejos motivados e não-motivados. Como também
vimos, a distinção, tal como ele a estabelecia, estava confusa.
Decidiu-se, portanto, definir os desejos motivados como desejos
não-primitivos, e os não-motivados como primitivos. Lembra-se
de que, na altura, definimos um desejo não-primitivo como um
desejo cuja presença podia ser explicada apelando a outros
estados mentais do agente? De modo a simplificar as coisas,
falámos apenas de casos de desejos que podiam ser explicados
apelando a outros desejos. Mas parecem haver outros casos. O
caso que interessa a Nagel é aquele em que parece que um
desejo pode ser explicado apelando somente a crenças do
agente. Este seria, de acordo com a terminologia de Nagel, um
desejo "não-motivante". Um desejo "não-motivante" não é
primitivo, nem tem outros desejos por trás. (Caso um desejo
seja primitivo ou tenha outros desejos por trás, chamar-lhe-
emos "motivante".) Estas divisões todas de desejos que Nagel
faz podem ser sumarizadas através do seguinte esquema:
Agora que já temos toda esta maquinaria no lugar, o argumento
de Nagel é simples: a existência de desejos não-motivantes, ou
seja, desejos que não são primitivos, nem têm por trás outros
desejos, constitui uma refutação do modelo crença-desejo.

4. Será que Nagel consegue refutar o modelo crença-desejo?


A primeira coisa que é preciso dizer é que Nagel concede que,
na maior parte dos casos, as acções seguem o modelo crença-
desejo. O que ele defende é que há excepções. Essas excepções
são os casos em que está presente um desejo não-motivante.
Pode dizer-se, por isso, que ele defende uma teoria mista da
acção.
O que é que há de tão especial em relação aos desejos não-
motivantes que lhes permita escapar às garras do modelo
crença-desejo? Ao fazermos esta pergunta, estamos a entrar no
coração do argumento de Nagel. Caso o leitor tenha lido o meu
artigo precedente sobre o modelo crença-desejo (como
aconselhei), lembrar-se-á de uma ideia que ficou por
esclarecer: a ideia de que, de acordo com o modelo crença-
desejo, a relação entre a crença e o desejo é desigual; o desejo
é, por assim dizer, o parceiro dominante da relação. Vimos que
uma das maneiras possíveis de expressar com clareza este
pensamento era a tese das direcções de correspondência,
segundo a qual desejo e crença têm diferentes direcções de
correspondência. O desejo tem uma direcção de
correspondência mente-mundo, porque tem por objectivo
mudar o mundo; a crença, uma direcção de correspondência
mundo-mente, porque tem por objectivo representar o mundo.
O desejo procura fazer o mundo corresponder à mente; a
crença procura fazer a mente corresponder ao mundo.
Teremos oportunidade, mais à frente, de voltar a falar acerca
da tese das direcções de correspondência. Por agora, vamos
concentrar-nos noutro modo de expressar a ideia de que a
relação entre crença e desejo é desigual: a tese da inércia
causal das crenças, segundo a qual as crenças não têm
qualquer poder causal. Só os desejos é que têm.
À partida, esta tese é inconsistente com a definição do modelo
crença-desejo. Afinal, não fazia parte da definição canónica do
modelo crença-desejo que o desejo e a crença constituem a
causa eficiente da acção? Se a crença não tem poder causal,
como é que pode constituir a causa da acção?
Este é o primeiro sintoma de estranheza que teremos ao tentar
conjugar o modelo crença-desejo com a tese da inércia causal
das crenças. Este problema não é insolúvel, no entanto. Aquilo
que alguém que defenda as duas coisas poderá dizer é que,
embora a crença não cause a acção, é condição necessária para
a realização da acção.
Talvez o seguinte exemplo ajude a clarifcar as coisas. Como
sabe, são precisos três elementos para haver um fogo: algo que
possa arder, como uma folha de papel; uma faísca; e oxigénio.
De acordo com a tese da inércia causal das crenças, a acção
será como a folha de papel a arder, a faísca como o desejo, e a
crença como o oxigénio. O oxigénio é indispensável para que
haja fogo, dado que o fogo se alimenta de oxigénio, por assim
dizer - mas não poderia jamais constituir a causa de um
incêndio. Eu costumo chamar a esta visão das crenças a "visão
presidencial". Isto porque dá a ideia de que, no que toca à
acção, as crenças são sempre precisas, tal como os presidentes
portuguêses são precisos, mas são-lhes atribuídas, na prática,
funções de importância menor.
A crítica de Dancy à objecção de Nagel é muito simples: parece
que Nagel está a atacar um espantalho. Porque raio é que o
apoiante do modelo crença-desejo estaria obrigado a defender a
tese da inércia causal das crenças? De onde é que Nagel tirou
essa ideia? Quem é que alguma vez disse que isso tinha que ser
assim? E que vantagem é que teríamos em defender tal coisa?
Ao que parece, nem Hume, historicamente o mais famoso
proponente do modelo crença-desejo, a defendeu. (Ver o texto
de Darwall indicado na bibliografia.) Há que dizer que essa tese
da inércia "anda no ar", por assim dizer, mas é difícil encontrar
quem a tenha explicitamente defendido. A resposta que se deve
dar à objecção de Nagel é, portanto, concisa: é irrelevante.
Parte da suposição infundada de que os apoiantes do modelo
crença-desejo estariam obrigados a defender algo que não
estão mesmo obrigados a defender.
É preciso levar em conta o seguinte: o modelo crença-desejo é
uma teoria da acção, não uma teoria acerca da natureza das
interacções causais entre crenças e desejos. Essa já é outra
conversa. O modelo crença-desejo é, neste sentido, uma tese
minimalista: diz apenas que tem sempre que haver uma crença
e um desejo que constituiram a causa da acção e que servem
para a racionalizar. De resto, qualquer tipo de promiscuidade
causal entre desejos, entre crenças, e entre crenças e desejos é
permitida (ou, pelo menos, não é excluída à partida). O
humeano não está forçado a dizer que os desejos causados por
crenças foram "concebidos em pecado", por assim dizer.
Vou agora tentar mostrar que ser contra a tese da inércia
causal das crenças é consistente com dar-se apoio às duas
teses que compõem a definição canónica do modelo-crença.
Suponhamos então que defendêmos o modelo crença-desejo,
mas repudiamos a tese da inércia causal das crenças. Esta
posição permite-nos (mas não nos obriga a) defender a tese de
McDowell de que é impossível acreditar (genuinamente) que
fazer X seria eticamente correcto sem nos sentirmos motivados
para realizar X. Uma crença moral causa sempre um desejo
apropriado. Não falarei muito disto agora, até porque este
tópico reaparecerá na próxima secção. Todavia, vale a pena
ilustrar esta situação com mais um exemplo. Suponha que eu
estou a jogar futebol. A bola está parada e vou marcar um livre.
Avanço para a bola, chuto, e marco golo. Foi o meu chuto que
fez com que bola se mexesse de modo a entrar na baliza. No
entanto, há um sentido perfeitamente natural em que se pode
dizer que foi a trajectória e a força da bola que constituiram a
causa de ela ter entrado na baliza. Do mesmo modo, há um
sentido perfeitamente natural em que se pode dizer que,
embora tenha sido a minha crença de que X é bom que causou
o meu desejo de realizar X, o meu desejo de causar X não foi
meramente ocioso no processo causal que culminou com a
realização da acção. Por isso, admitir que as crenças têm poder
causal em nada interfere com a aceitação de que o desejo
constitui, juntamente com a crença relevante, a causa eficiente
da acção.
Tentar conciliar a atribuição de poder causal às crenças com a
tese de que são precisos um desejo e uma crença para
racionalizar a acção do agente poderá parecer mais difícil.
Afinal, parece que, para tornar a acção inteligível, bastaria
atribuir ao agente uma crença moral. Atribuir-lhe um desejo
seria desnecessário, dado que a atribuição da crença garante
desde logo a presença de um desejo. ("Então os casos de
fraqueza de vontade ficam excluídos à partida?" Não - calma, já
falaremos disso mais à frente.) Aquilo que o defensor do
modelo crença-desejo dirá é que não devemos devemos
confundir a conveniência de por vezes se omitir o desejo em
racionalizações (de modo a evitar o pedantismo), com a
completa irrelevância dos desejos em tentativas de
racionalização de uma acção. Lá porque, ocasionalmente, é
conveniente omitir o desejo numa racionalização de uma acção,
isso não significa que ele não seja importante na racionalização
dessa acção. O exemplo que Davidson dá (em "Actions, reasons
and causes") é o seguinte. Nós damos uma bebida a um amigo.
Ele pergunta-nos porque é que fizémos isso. Responder-lhe
implicará providenciar uma racionalização da nossa acção. Nós
justificamo-nos, dizendo: "toma lá, que isso vai acalmar-te os
nervos". Esta parece uma justificação perfeitamente adequada
para o contexto. Uma racionalização completa seria
inevitavelmente pedante: eu tenho o desejo de que acalmes os
nervos; e acredito que o melhor meio de o conseguir é fazer
com que bebas um copo. Embora nada haja de errado com esta
racionalização, é completamente desajustada para o contexto.
Note como, por vezes, os desejos e as crenças que temos que
atribuir aos agentes de modo a racionalizar as suas acções são
bastante triviais. Neste caso, a nossa crença de que dar um
copo ao nosso amigo é o modo mais apropriado para lhe
acalmar os nervos parece suficiente para racionalizar a nossa
acção. Não é preciso estarmos a acrescentar que tinhamos o
desejo de lhe acalmar os nervos. Lembre-se agora do exemplo
que dei em "O que é o modelo crença-desejo?" da pessoa que
quer beber uma cerveja. De modo a racionalizar a acção dele de
dar 1 euro ao empregado, basta-nos citar o desejo de beber
uma cerveja. Não temos que estar a citar a crença dele de que
dar 1 euro ao empregado seria o modo mais eficiente de
arranjar uma cerveja.
E com isto espero ter mostrado que rejeitar a tese da inércia
causal das crenças não é inconsistente com a aceitação das
duas teses de que é composta a definição canónica do modelo
crença-desejo.
Só para fechar esta secção, gostaria de acrescentar que, como
será claro para quem tenha lido o artigo precedente sobre o
modelo crença-desejo, eu iria até um pouco mais longe do que
Dancy no ataque a Nagel. Dancy nota que os apoiantes do
modelo crença-desejo não têm nada que defender a tese da
inércia causal das crenças - só a defendem se quiserem. Eu
diria que os apoiantes do modelo crença-desejo não têm nada
que defender a tese de que os desejos e as crenças relevantes
constituem a causa eficiente da acção - só a defendem se
quiserem. Na quinta secção de "O que é o modelo crença-
desejo?", tento explicar porque é que esta tese causal se
"colou" ao modelo crença-desejo e argumento a favor da ideia
de que não tem nada que estar colada - pode ser defendida,
sim, mas isso é opcional.

5. O que constituiria uma refutação do modelo crença-desejo?

Após ler o capítulo precedente, o leitor é capaz de ter ficado


com uma dúvida a atazaná-lo: afinal, o que é que teríamos que
fazer para argumentar contra o modelo crença-desejo? Dá a
ideia de que o defensor do modelo crença-desejo consegue
sempre arranjar forma de encaixar todas as objecções.
Eu também partilho desta perplexidade, sinceramente. Mesmo
os (aparentemente) mais ferrenhos opositores do modelo
crença-desejo admitem que, nalguma acepção de "desejo",
todas as acções requerem um desejo. Haverá, naturalmente,
discordâncias quanto ao que este desejo será. Nagel diz que
isso varia consoante o tipo de desejo de que estivermos a falar.
Um desejo não-motivado é um estado mental com direito a
existência própria. Um desejo motivado com uma crença por
detrás, no entanto, parece ser uma criatura misteriosa, que ele
nunca chega bem a explicar o que é. Ele diz que o eu ter esse
desejo é uma consequência lógica de ter dada crença. Ele
também diz que esse desejo motivado é uma condição
necessária de haver acção, mas que não tem qualquer papel
causal.
A não ser que esteja a interpretar Nagel de forma pouco
caridosa, acho que não percebo. Pense no meu exemplo da
marcação do livre. A bola entrou na baliza porque eu lhe dei um
chuto. No entanto, há um sentido em que é perfeitamente
natural dizer que foi a trajectória e a força da bola que fizeram
com que ela entrasse na baliza. Do mesmo modo, há um
sentido em que é perfeitamente natural dizer que o desejo
causou a acção, muito embora o desejo tenha, por sua vez, sido
causado por uma crença. Nagel, pelo contrário, parece estar
dizer que um desejo não-motivado só lá está para enfeitar.
Lembra-se do exemplo do fogo, que dei a propósito da tese da
inércia causal das crenças? Nessa altura, comparei a crença ao
oxigénio: é uma condição necessária da acção, mas não a
causa. A impressão que agora me dá é a de que Nagel está a
dizer que os desejos motivados são como o oxigénio: são uma
condição necessária da acção, mas não a causam. Podíamos
chamar a isto, ironicamente, a tese da inércia causal dos
desejos motivados. Se é isto que Nagel está a dizer, então
parece-me que ele está errado. Ele parece estar a dizer
qualquer coisa como: sem bolas não se marcam golos, mas o
facto de haver uma bola é apenas uma consequência lógica de
haver golos. Não consigo fazer sentido disto.
Outro problema que eu aqui vejo com a teoria de Nagel é o
facto de ser uma teoria mista de explicação da acção. Já que ele
diz que as crenças são coisas tão maravilhosas que conseguem,
de vez em quando, dar origem a acções sem o auxílio de
desejos, então para que é precisamos de desejos, afinal? Não
nos "amanhamos" só com crenças? Esta dificuldade é agravada
pelo facto de, como Dancy nota, Nagel e McDowell pensarem
que as mesmas crenças dão, umas vezes, origem a desejos, e
outras não, pelo que têm de ser suplementadas com um desejo.
McDowell diz que as crenças morais, no caso das pessoas não-
virtuosas, precisam de um desejo independente de modo a dar
origem a uma acção. Isto é no mínimo muito estranho. Será
que as crenças só conseguem dar origem a acções quando
bebem um bocadinho da poção mágica do Astérix?
Cada vez estou mais convencido de que, para se argumentar
contra o modelo crença-desejo, teríamos que adoptar uma
visão epifenomenal dos desejos. Obtém-se uma visão
epifenomenal dos desejos ao combinar a ideia de que eles são
causalmente inertes com a ideia de que estão presentes quando
há uma acção. Dizer que os desejo são epifenomenais seria
estar a compará-los ao apito de um barco: sempre que o barco
está a chegar, ele apita, mas o apito não é a causa de o barco
estar a chegar - é um sinal de que o barco está a chegar.
Também podíamos dizer que, de cada vez que David Beckham,
o famoso jogador do Real Madrid, toca na bola, há uma fã
(possivelmente asiática) que desmaia. O desmaio da fã é
epifenomenal - em nada influencia a prestação do jogador. Do
mesmo modo, a ocorrência de um desejo seria um sinal de que
de que uma acção teria ocorrido, mas o desejo teria sido
epifenomenal - não foi o desejo que causou a acção.
Se por acaso eu estou certo e o preço a pagar para
abandonarmos o modelo crença-desejo é defendermos que os
desejos são epifenomenais, então parece-me que mais vale não
o abandonarmos.

6. A relevância da doutrina da inércia causal das crenças para o


realismo moral

A primeira questão que temos que nos colocar quando nos


encontramos face a uma tese é: o que é que isso quer dizer? A
segunda pergunta é, naturalmente: será que é verdadeira? A
terceira pergunta será: porque é essa tese interessante? Porque
é que é importante descobrir se é verdadeira ou falsa?
No ensaio precedente, "O que é o modelo crença-desejo?",
tentei responder à primeira questão. Neste ensaio, até agora,
procurei responder à segunda questão (tendo chegado, na
secção anterior, à conclusão de que parece fazer mais sentido
responder afirmativamente). Falta a terceira. Uma resposta
óbvia seria a de que perceber exactamente o que é o modelo
crença-desejo é algo importante em si mesmo, dado ser uma
tese tão corrente em filosofia da acção. Mas mentiria se
dissesse que esse é o meu motivo principal para estar
interessado na questão de saber se o modelo crença-desejo é
verdadeiro ou não.
A área da filosofia por que mais me interesso é, talvez, a
metaética, que trata de algumas das questões mais abstractas
da ética. Uma dessas questões é a de saber se o realismo
moral, isto é, a tese de que (pelo menos) algumas afirmações
morais têm valor de verdade, é verdadeiro ou não. Uma das
objecções mais comuns é a de que o realismo moral é
juntamente inconsistente com o modelo crença-desejo e com
outra tese, denominada "internalismo motivacional". De acordo
com a versão mais plausível de internalismo motivacional,
embora nem sempre ajamos de acordo com as nossas crenças
morais, não podemos deixar de nos sentir motivados para agir
de acordo com as nossas crenças morais. Isto deve responder
às suas ânsias acerca de se estar a deixar espaço para a
possibilidade de fraqueza de vontade. Um internalista
motivacional dirá que a fraqueza de vontade é possível. O que
não é possível é não nos sentirmos motivados para fazer aquilo
que pensamos estar certo. E se não nos sentimos motivados,
perguntará? Bom, nesse caso, responderá o internalista
motivacional, isso quer dizer que as nossas crenças morais não
são genuínas.
Agora que já definimos o modelo crença-desejo, o realismo
moral e o internalismo motivacional, podemos expôr a dita
objecção comum ao realismo motivacional. A estrutura geral é a
seguinte.
1. O internalismo não pode ser verdadeiro a não ser que os
nossos juízos morais incluam um desejo, ou que as crenças
sejam capazes de dar origem a uma acção sem o auxílio de um
desejo. 2. Caso os nossos juízos morais incluissem um desejo, o
realismo moral seria falso, porque, de acordo com o realismo
moral, os nossos juízos morais são meramente crenças (ou
"estados cognitivos", como costuma dizer-se).
3. Caso as crenças fossem capazes de dar origem a uma acção
sem o auxílio de um desejo, o modelo crença-desejo seria falso,
porque defende, tal como se sabe, que são sempre necessários
uma crença e um desejo para que haja uma acção.
4. O internalismo motivacional é verdadeiro.
5. O modelo crença-desejo é verdadeiro.
6. Logo, o realismo moral é falso.
Antes de dizer o que penso estar mal com este argumento,
gostaria de analisar as premissas uma por uma de modo a
certificar-me de que o leitor entende bem o que se está a
passar. É natural que, numa primeira leitura, não tenha
percebido alguma coisa aqui ou ali, dado que o argumento é
muito abstracto. Vamos lá ver se consigo remediar isso.
1. O internalismo motivacional não pode ser verdadeiro a não
ser que a) nossos juízos morais incluam um desejo, ou que b)
as crenças sejam capazes de dar origem a uma acção sem o
auxílio de um desejo.
Lembre-se da definição de internalismo motivacional. De acordo
com o internalismo motivacional, nós sentimo-nos sempre
motivados para agir de acordo com os nossos juízos morais. Um
juízo moral comum tem a forma "eu creio que realizar X seria
bom". O internalista dirá que é impossível acreditarmos
honestamente nisso sem nos sentirmos motivados para realizar
X. Podemos até não acabar por realizar X, por cedermos a
alguma tentação, claro, mas isso não significa que não
estivéssemos motivados para seguir (aquilo que julgamos ser) o
nosso dever.
Aquilo que a primeira premissa diz é que o internalismo
motivacional só poderá ser verdadeiro caso a) os nossos juízos
morais incluam um desejo, ou b) as crenças morais sejam
capazes de dar origem a uma acção sem o auxílio de um
desejo.
Os emotivistas, como Blackburn, costumam defender a),
porque, para eles, qualquer juízo moral do tipo "eu creio que
realizar X seria bom deve ser parafraseado do seguinte modo:
"eu aprovo X". (É óbvio que o emotivismo é mais complicado do
que isto, mas a ideia fundamental está lá: os juízos morais não
são, em bom rigor, juízos. São formas encobertas de expressar
desejos, por assim dizer.)
Os defensores da tese de que os desejos são epifenomenais
apoiariam b).
2. Caso os nossos juízos morais incluissem um desejo, o
realismo moral seria falso, porque, de acordo com o realismo
moral, os nossos juízos morais são meramente crenças (ou
"estados cognitivos", como costuma dizer-se).
Aquilo que a segunda premissa diz é que, caso a) fosse
verdadeira, ou seja, se os emotivistas estivessem certos, o
realismo moral estaria errado, porque defende que os nossos
juízos são estados cognitivos puros, ou seja, estados cognitivos
em que não está incluído qualquer desejo. ("Estado cognitivo" é
um termo janota usado para designar crença.) Como já
dissémos, as crenças têm uma direcção de correspondência
mundo-mente: a sua função é representar o mundo. Se a única
função das crenças é representar o mundo, como é que numa
crença podia estar "escondido", por assim dizer, um desejo
qualquer? Como o realista moral (tal como quase toda a gente)
aceita a tese das direcções de correspondência, e aceita a tese
de que os nossos juízos morais são estados cognitivos, ele
parece estar obrigado a aceitar a ideia de que é impossível que
os nossos juízos morais incluam um desejo.
3. Caso as crenças fossem capazes de dar origem a uma acção
sem o auxílio de um desejo, o modelo crença-desejo seria falso,
porque defende, tal como se sabe, que são sempre necessários
uma crença e um desejo para que haja uma acção.
Esta premissa diz, simplesmente, que, se b), ou seja, a doutrina
do epifenomenalismo dos desejos fosse verdadeira, então o
modelo crença-desejo seria falso.
4. O internalismo motivacional é verdadeiro.
Temos de partir do princípio de que o internalismo motivacional
é verdadeiro. Lembre-se de que a objecção era a de que o
realismo moral era juntamente inconsistente com o modelo
crença-desejo e o internalismo motivacional. De modo a que o
adversários do realismo moral possa mostrar o seu ponto,
temos que conceder-lhe que tanto o internalismo motivacional
como o modelo crença-desejo são verdadeiros.
5. O modelo crença-desejo é verdadeiro.
Ver comentário à premissa anterior.
6. Logo, o realismo moral é falso.
Como vimos, o realismo moral era a tese de que (pelo menos)
algumas afirmações morais têm valor de verdade, pelo que a
conclusão diz que nenhuma afirmação moral tem valor de
verdade. O argumento é válido, pelo que a conclusão se segue
dedutivamente das premissas.
Ficou com uma ideia geral do argumento? Vou dar-lhe uma
ajudinha, fazendo uma espécie de resumo dos pontos
principais:
Partamos do princípio de que o internalismo motivacional é
verdadeiro, ou seja, que nos sentimos sempre motivados para
agir de acordo com os nossos juízos morais. Nesse caso, das
duas uma: ou os nossos juízos morais incluem um desejo, ou
não incluem. Se incluem, o realismo moral é falso (e o modelo
crença-desejo é verdadeiro). Se não incluem, o modelo crença-
desejo é falso (e o realismo moral é verdadeiro). Os nossos
juízos morais incluem um desejo. Logo, o realismo moral é
falso.
Espero que tenha ficado, pelo menos, com uma ideia geral do
que se está a passar.Vamos agora olhar lá para o argumento.
Em primeiro lugar, como já disse, é válido, pelo que, se
quisermos recusar a conclusão, teremos de recusar pelo menos
uma das premissas.
Eu estou a ver duas que quero recusar. Uma delas é a segunda:
acho que é falso que os realistas morais tenham que dizer que
os juízos morais são estados cognitivos. Explicar porquê levar-
me-ia para fora do âmbito deste trabalho, pelo que não vou
fazê-lo. (Verdade seja dita, também ainda não pensei o
suficiente sobre isto.) A premissa em que vou focar as atenções
é a primeira, que penso ser falsa. Nesta altura do campeonato,
já terá percebido porquê: porque incorre numa das falácias
mais comuns: a falácia de ignorar alternativas. As únicas
alternativas que são apresentadas são, recordêmo-nos: ou os
juízos morais incluem um desejo, ou então as crenças são
capazes de motivar sem o auxílio de um desejo (tese do
epifenomenalismo dos desejos). Desde que no modelo crença-
desejo não incluamos a tese de que as crenças são causalmente
inertes, podemos incluir uma terceira alternativa: os juízos
morais são meramente estados cognitivos, mas estados
cognitivos que causam sempre um desejo apropriado. Esta
alternativa difere da primeira, porque defende que não há
qualquer desejo incluído no juízo moral. Também difere da
segunda, porque nunca chega a dizer que as crenças são
capazes de dar origem por si só a uma acção.
Por outras palavras: se trocarmos
1. O internalismo motivacional não pode ser verdadeiro a não
ser que a) os nossos juízos morais incluam um desejo, ou que
b) as crenças sejam capazes de dar origem a uma acção sem o
auxílio de um desejo,
por
1* O internalismo motivacional não pode ser verdadeiro a não
ser que a) os nossos juízos morais incluam um desejo, b) as
crenças sejam capazes de dar origem a uma acção sem o
auxílio de um desejo, ou c) as crenças não sejam capazes de
dar origem a uma acção sem o auxílio de um desejo, mas
causem sempre um desejo apropriado,
o argumento deixará de ser válido. Se o argumento usar 1*,
teremos que acrescentar uma premissa adicional para puxar a
conclusão para a frente: a de que o modelo crença-desejo inclui
a tese da inércia causal das crenças. Como já vimos, não há
qualquer razão para que os defensores do modelo crença-
desejo estejam forçados a defender tal coisa. Logo, o
argumento não funciona e o realismo moral está safo - por
agora.
Uma objecção que já vi ser expressa insistentemente é a de que
termos crenças a causar desejos vai contra a tese das direcções
de correspondência, porque implica que as crenças podem ter
as duas direcções de correspondência: mundo-mente e mente-
mundo. As crenças morais, por exemplo, visariam representar o
mundo, e, ao mesmo tempo, mudá-lo. Parece-me que se está
aqui a fazer uma tempestade num copo de água. Ninguém disse
que as crenças tinham de ter as duas direcções. Nada disso.
Concordo que as crenças só têm a direção de correspondência
mundo- mente. O facto de dizer que uma crença moral causa
sempre um desejo apropriado não é a mesma coisa que estar a
dizer que a crença está a fazer as vezes do desejo. Vamos lá
ver se esclarecemos isto de uma vez por todas: estou a
concordar que crença e desejo são estados mentais distintos,
cada um com a sua direcção de correspondência. Mudar o
mundo não é algo que esteja abrangido pelas competências da
crença.
Talvez o seguinte exemplo apresente o meu ponto de forma
mais eficaz. Imagine que eu marco um livre, e que a bola vai ao
poste. Acha que atirar uma bola ao poste é a mesma coisa que
dar um pontapé no poste? É óbvio que não. Se eu desse um
pontapé no poste, partia o pé. Do mesmo modo, dizer que uma
crença causou um desejo não é equivalente a dizer que a
crença "passou à frente na fila" e causou ela própria a acção.
Dar um pontapé no poste é doloroso - haver crenças a causar
acções sem o auxílio de desejos é, parece-me, impossível.
Em jeito de conclusão, pode dizer-se que a objecção que tentei
refutar tem sido uma grande pedra no sapato do realismo moral
pelo menos desde a década de 30, com a publicação de "The
language of morals", de Stevenson, e talvez até antes disso.
Como já vimos, o argumento só funciona se partirmos do
princípio de que o modelo crença-desejo inclui a tese de que as
crenças são causalmente inertes. Estando claro que o defensor
do modelo crença desejo não tem que defender tal coisa,
parece-me que o paradoxo se dissolve e, consequentemente, os
opositores do realismo moral irão ter que ir procurar outra
brecha na muralha - esta aqui já está tapada. Isso significa que
o realista moral já não está "com a corda na garganta", por
assim dizer, pelo que agora ficará com o caminho livre para
poder atacar o modelo crença-desejo (coisa que eu próprio não
desejo fazer), se o assim decidir, sem ter medo de ser acusado
de estar a querer livrar-se de uma objecção.

Bibliografia:
Dancy - Practical reality, Oxford University Press, 2002
(especialmente cap. 4)
Darwall - "Hume, 1st lecture",
www.la.utexas.edu/~pdl/histeth/histeth.lec14.html
Davidson - "Actions, reasons and causes", em Essays on actions
and events, Oxford University Press, 2001
McDowell - "Are moral requirements hypothetical imperatives?",
em Mind, value, & Reality, Harvard University Press, 2001
Nagel, Thomas - The possibility of altruism, Princeton University
Press, 1978 (especialmente cap. 5)
Ortiz-Millán, Gustavo - "Motivating beliefs: anti-humean
strategies on practical reason",
www.andrew.cmu.edu/org/conference/oritzmillan.pdf.
Searle - Rationality in action, MIT Press, 2001
Nota posterior - como não definir o modelo crença-desejo
Há uma maneira comum de definir o modelo crença-desejo que
está subtilmente errada e que pode facilmente induzir em erro.
Podia ter falado disto a propósito do ensaio anterior ("O que é o
modelo crença-desejo?"), mas decidi não o fazer porque uma
das consequências infelizes deste erro só pode ser plenamente
entendida depois de se ler este terceiro ensaio.
*
Costuma dizer-se que Hume foi, historicamente falando, o
primeiro proponente do modelo crença-desejo. Temos paixões
(termo que Hume usa em vez de "desejos"), e o papel da Razão
é o de descobrir o modo mais eficaz de as satisfazer. Seguindo
a terminologia de Hume, há por vezes quem diga que a acção
humana resulta da cooperação entre as paixões e a Razão. Em
sentido estrito, não me parece haver nada de errado com isto.
No entanto, é preciso ter cuidado com duas coisas.
Em primeiro lugar, há que não hipostasiar a "Razão". A "Razão"
não é uma coisa; é, potencialmente, uma característica de
processos (de formação de crenças, de deliberação, etc) e do
resultado de tais processos (crenças, acções, etc). Caso haja
universais, talvez haja um universal a que podemos chamar
"Razão", tal como haveria o "Vermelho", e a "Justiça"; no
entanto, o meu problema não é o de que, ao se falar em Razão,
se está a pressupor que existem universais. A origem do meu
desconforto reside em frases como a seguinte: "o papel da
Razão é o de representar o mundo tal como ele é". Há um
sentido em que esta frase é verdadeira e outro em que é falsa.
A frase é verdadeira no sentido de que os processos conduzidos
de modo racional descreverão, em princípio, com mais
fidelidade, o mundo. Mas é falsa caso se esteja a dizer que a
razão é, ela própria, uma representação do mundo. O termo
"representar" é ambíguo. Tanto pode referir-se ao acto de criar
uma representação, como ao facto de que um qualquer objecto
representa alguma coisa. A frase "O papel de um pintor
figurativo é o de representar o mundo tal como ele é" é
ambíguo da mesma maneira. É verdadeira caso por ela se
entenda que o papel do pintor figurativo é o de criar
representações tanto quanto possível fiéis do mundo. É falsa,
obviamente, caso por ela se entenda que o pintor deve, ele
próprio, ser uma representação do mundo!
Em segundo lugar, como já se percebeu, pôr "Razão" em vez de
"crenças" não é uma mudança inócua de terminologia. Alguém
poderia ter a tentação de dizer que de modo a que as nossas
acções sejam bem sucedidas, devemos ter crenças que
representem de modo fiel o mundo. Isto é verdadeiro no
sentido de que "dá jeito" termos crenças verdadeiras. Mas é
falso no sentido de que as crenças não são, propriamente
falando, representações; quanto muito, serão descrições. Em
princípio, uma representação terá que ser uma reprodução de
alguma coisa, como um desenho ou uma escultura, por
exemplo. Por isso, nem a "Razão" nem as crenças são
representações. O mais correcto seria dizer que as crenças
almejam a ser descrições do mundo, e que a "Razão" tem por
objectivo produzir essas tais descrições do mundo a que
chamamos crenças, entendendo-se por "Razão" um conjunto de
processos fiáveis (note-se como agora somos obrigados a usar
"Razão" para nos referirmos ao conjunto de processos
racionais). É por isso agora fácil ver porque está ligeiramente
incorrecto dizer que a acção resulta da cooperação entre
paixões e "Razão". Seria mais apropriado dizer que resulta da
cooperação entre paixões e crenças. Para além do mais, há um
erro gravíssimo que é fácil cometer-se ao se falar da
cooperação entre "Razão" e paixões: o de pensar que, como
Hume pensava que a "Razão" era inerte, também pensava que
as crenças são inertes. Erro! Quando os humeanos dizem que a
"Razão" é inerte, a única coisa que com isso querem dizer é que
não faz sentido dizer, de paixões, que são racionais ou
irracionais. O que querem, porém, dizer com "as crenças são
inertes"? Acho que podem querer dizer duas coisas: ou que as
crenças não levam ninguém a agir sem que estejam também
presentes desejos; ou que as crenças são causalmente inertes.
É muito fácil derrapar de "a Razão é inerte" para "as crenças
são causalmente inertes". Como já vimos, nem o próprio Hume
parecia acreditar que as crenças são causalmente inertes. É
caso para dizer: não sejamos mais humeanos que Hume!

!
!
Intelectu no 9 - Outubro de 2003

Repensando a Racionalidade:
de Implicações Pessimistas a Módulos Darwinianos (1)
Richard Samuels, Stephen Stich & Patrice D. Tremoulet

(Tradução de Tomás Carneiro)

Conteúdos
1. Introdução
2. Explorando o Raciocínio e o Juízo Humanos
3. Implicações Pessimistas
4. O Desafio da Psicologia Evolucionista
5. A Psicologia Evolucionista Aplicada ao Raciocínio
6. Modularidade Maciça, Implicações Pessimistas e
Interpretação Panglossiana

1. Introdução
Existe uma respeitável tradição filosófica que encara os seres
humanos como seres intrinsecamente racionais. Contudo, até o
mais entusiástico defensor deste ponto de vista admitirá que
em determinadas circunstâncias as decisões e os processos
mentais das pessoas podem ser deveras irracionais. Quando
alguém está extremamente cansado, embriagado, ou à beira de
um ataque de nervos, por vezes raciocina e procede de um
modo totalmente irracional. Há cerca de trinta anos, Amos
Tversky, Daniel Kahneman e outros psicólogos apresentaram
algumas descobertas que sugeriam a existência de problemas
bem mais profundos relativamente à ideia tradicional que
encara os seres humanos como animais intrinsecamente
racionais. Estes estudos demonstraram que mesmo em
circunstâncias normais, onde o cansaço, as drogas e as
emoções fortes não são factores a ter em conta, a forma como
as pessoas raciocinam e tomam decisões viola
sistematicamente, e numa grande variedade de problemas, os
cânones familiares de racionalidade. Esses primeiros e
surpreendentes estudos desencadearam o crescimento de uma
importante tradição de investigação cujo impacto se fez sentir
em áreas tão afastadas da ciência cognitiva como a economia, a
teoria política e a medicina. Na Secção 2 esboçaremos algumas
das descobertas experimentais mais conhecidas nesta área.
Escolhemos estas descobertas em particular porque elas
desempenharão um importante papel num ponto mais avançado
deste ensaio. Para os leitores interessados numa abordagem
mais profunda e sistemática desta fascinante e inquietante
investigação acerca do raciocínio e do juízo já existem
teoria política e a medicina. Na Secção 2 esboçaremos algumas
das descobertas experimentais mais conhecidas nesta área.
Escolhemos estas descobertas em particular porque elas
desempenharão um importante papel num ponto mais avançado
deste ensaio. Para os leitores interessados numa abordagem
mais profunda e sistemática desta fascinante e inquietante
investigação acerca do raciocínio e do juízo já existem
excelentes textos e antologias disponíveis (Nisbett & Ross 1980;
Kahneman, Slovic & Tversky 1982; Baron 1988; Piatelli-
Palmarini 1994; Dawes 1988; Sutherland 1994).
Apesar de se saber que os resultados das experiências são
sólidos e podem ser prontamente reproduzidos, existe um
grande debate acerca daquilo que estas experiências
verdadeiramente indicam sobre a racionalidade intrínseca das
pessoas comuns. Uma interpretação dos resultados amplamente
discutida afirma que elas têm "implicações pessimistas"
relativamente à racionalidade do homem e da mulher comuns.
Aquilo que os estudos demonstram, de acordo com esta
interpretação, é que as pessoas comuns carecem da
competência subjacente básica para lidarem com um tão vasto
leque de tarefas de raciocínio e, como tal, têm de explorar um
conjunto de simples estratégias heurísticas que frequentemente
conduzem a conclusões verdadeiramente contra-normativas.
Aqueles que advogam esta interpretação reconheceriam,
obviamente, que existem algumas pessoas que dominam as
regras ou os procedimentos correctos para se lidar com alguns
destes problemas. No entanto, sustentam eles, este
conhecimento é difícil de adquirir e difícil de usar. Não é o tipo
de conhecimento que a mente humana adquira facilmente e
espontaneamente em ambientes normais, e mesmo aqueles
que o possuem muitas vezes não o usam a menos que façam
um esforço nesse sentido. Na Secção 3 aprofundaremos esta
interpretação e explicaremos a noção técnica de competência
que ela invoca.
A interpretação pessimista das descobertas experimentais tem
sido desafiada de muitas maneiras. Um dos mais recentes e
intrigantes destes desafios chega-nos do emergente campo
interdisciplinar da psicologia evolucionista. Os psicólogos
evolucionistas defendem uma concepção altamente modular da
arquitectura mental que nos diz que a mente é composta por
um grande número de órgãos ou "módulos" especializados no
processamento de informação, moldados pela selecção natural
por forma a lidarem com o tipo de problemas de processamento
de informação com que os nossos antepassados caçadores-
recolectores frequentemente se confrontavam. Dado que uma
boa performance numa multiplicidade de tarefas de raciocínio
seria algo de que os nossos antepassados do Pleistoceno
tirariam vantagem, os psicólogos evolucionistas admitem a
hipótese de termos desenvolvido módulos mentais por forma a
lidarmos adequadamente com essas tarefas. Contudo, também
defendem que os módulos devem estar bem adaptados ao
género de informação que estava disponível nos ambientes que
antecederam e acompanharam os primeiros homens. Como tal,
supõem eles, quando a informação é apresentada de maneira
adequada, a performance das tarefas de raciocínio deverá
melhorar dramaticamente. Na Secção 4 apresentaremos um
esboço mais detalhado do quadro amplamente modular da
mente avançado pelos psicólogos evolucionistas, e da noção de
módulo mental que desempenha um papel fundamental nesse
quadro. Também nos debruçaremos brevemente sobre os
diferentes tipos de argumentos avançados pelos psicólogos
evolucionistas ao procurarem demonstrar que a mente é
maciçamente modular. Em seguida, na Secção 5, teremos em
consideração vários estudos recentes que parecem confirmar a
predição dos psicólogos evolucionistas: Quando a informação se
nos apresenta de uma maneira que teria sido importante na
nossa história evolutiva, a performance nas tarefas de raciocínio
melhora. Embora os argumentos e as provas empíricas
avançadas pelos psicólogos evolucionistas sejam aliciantes, é
muito pouco provável que constituam um caso convincente para
a teoria dos psicólogos evolucionistas sobre a mente e as suas
origens. Mas uma crítica detalhada dessa teoria estaria muito
para além do âmbito deste ensaio. Em vez disso, aquilo a que
nos propomos na secção final, é fazermos uma pergunta
hipotética. Se se descobrir que a descrição dos psicólogos
evolucionistas está no caminho certo, que implicações isso teria
para as questões acerca da natureza e do alcance da
racionalidade ou da irracionalidade humanas?

2. Explorando o Raciocínio e o Juízo Humanos: Quatro Exemplos

2.1. A Tarefa de Selecção

Em 1966, Peter Wason descreveu as primeiras experiências a


fazerem uso de um conjunto de problemas de raciocínio que se
vieram a chamar Tarefa de Selecção. Um manual recente
versando o problema do raciocínio descreveu essa tarefa como
"o problema mais intensivamente estudado na história da
psicologia do raciocínio" (Evans, Newstead & Byrne, 1993,
p.99). Um exemplo típico de um problema Tarefa de Selecção
parece-se com isto:
O que Wason e muitos outros investigadores descobriram foi
que os inquiridos normalmente têm pontuações muito baixas
em questões deste género. A maior parte dos inquiridos
responde, correctamente, que é o cartão E que deve ser virado,
mas muitos também acham que é o cartão 5 que deve ser
virado, e isto apesar do cartão 5 não poder falsificar a
afirmação independentemente daquilo que esteja do outro lado.
Da mesma forma, uma grande maioria dos inquiridos acha que
o cartão 4 não precisa de ser virado, contudo, se não o
virarmos não conseguiremos saber se tem uma vogal do outro
lado. E, como é óbvio, caso tenha uma vogal do outro lado a
frase não pode ser verdadeira. Seja como for, não é verdade
que os inquiridos tenham fracas pontuações em todos os
problemas que envolvem tarefas de selecção. Já se
experimentaram bastantes variações ao modelo básico, e em
algumas versões do problema uma muito maior percentagem
de inquiridos responde correctamente. Estes resultados
constituem um padrão desconcertante, uma vez que não existe
nenhuma característica (ou conjunto de características) óbvia
que separe as versões em que os inquiridos são bem sucedidos
das versões em que são mal sucedidos. Como veremos na
Secção 5, alguns psicólogos evolucionistas procuraram
demonstrar que estes resultados podem ser facilmente
explicados se nos concentrarmos nos mecanismos mentais que
teriam sido cruciais para os processos de raciocínio relativos aos
intercâmbios sociais (ou "altruísmo recíproco") nos ambientes
dos nossos antepassados hominídeos. O que estes
investigadores defendem é que as versões da tarefa de selecção
em que nós somos bons seriam precisamente aquelas para as
quais os referidos mecanismos mentais teriam sido concebidos.
Mas, como também veremos na Secção 5, esta explicação não
está livre de contestação.

2.2 A Falácia da Conjunção

Ronald Reagan foi eleito Presidente dos Estados Unidos da


América em Novembro de 1980. No mês seguinte, Amos
Tversky e Daniel Kahneman, aplicaram um questionário a 93
inquiridos que não tinham tido qualquer formação em
estatística. As instruções do questionário eram as seguintes:
Neste questionário pedir-lhe-emos que avalie a probabilidade de
ocorrência de vários acontecimentos durante o ano de 1981.
Cada acontecimento inclui quatro possíveis acontecimentos. A
sua tarefa será ordenar estes acontecimentos segundo a sua
probabilidade, atribuindo o número 1 ao acontecimento mais
provável, 2 para o segundo, 3 para o terceiro e 4 para o
acontecimento menos provável.
Aqui está uma das questões apresentadas aos inquiridos:
Por favor ordene os seguintes acontecimentos segundo a sua
probabilidade de ocorrência em 1981:
a) Reagan efectuará cortes orçamentais na ajuda federal aos
governos locais.
b) Reagan concederá apoio federal às mães não casadas.
c) Reagan aumentará o orçamento da defesa em menos de 5%.
d) Reagan concederá apoio federal às mães não casadas e
efectuará cortes orçamentais na ajuda federal aos governos
locais.
Os resultados mostraram-se perturbadores aos revelarem que
68% dos inquiridos indicaram (d) como mais provável que (b),
apesar de (d) não poder acontecer a menos que (b) aconteça
(Tversky & Kahneman, 1982). Noutra experiência, que desde
então se tornou bastante famosa, Tversky e Kahneman (1982)
apresentaram aos inquiridos a seguinte tarefa:
Linda tem 31 anos, é solteira, tem uma forte personalidade e é
muito inteligente. Licenciou-se em filosofia. Enquanto estudante
interessou-se profundamente por assuntos como a
discriminação e a justiça social e também participou em
manifestações anti-nuclear.
Classifique as seguintes afirmações pela sua probabilidade,
atribuindo o número 1 à mais provável e 8 à menos provável.
a) Linda é professora primária
b) Linda trabalha numa livraria e tem aulas de Yôga.
c) Linda participa activamente no movimento feminista.
d) Linda trabalha como psiquiatra na assistência social.
e) Linda é membro da Liga da Mulheres Votantes
f) Linda é bancária.
g) Linda é agente de seguros
h) Linda é bancária e participa activamente no movimento
feminista
Num grupo sem qualquer formação em probabilidade e
estatística, 89% dos inquiridos indicaram que a afirmação (h)
era mais provável que a afirmação (f). Quando a mesma
questão foi apresentada a inquiridos com preparação académica
em estatística - estudantes de pós-graduação do programa de
ciência da decisão da Stanford Business School - descobriu-se
que 85% tinham a mesma opinião!
Resultados como este, em que os inquiridos afirmam que um
acontecimento ou estado de coisas composto tem mais
probabilidade de acontecer que um dos componentes desse
composto, têm sido repetidamente observados desde os
estudos pioneiros de Kahneman e Tversky.

2.3. Negligência das Taxas-Básicas (base-rate)

Segundo a conhecida descrição bayesiana, a probabilidade de


uma hipótese sobre um determinado conjunto de dados
depende, em parte, das probabilidades prévias. Contudo,
Kahneman e Tversky demonstraram, numa série de elegantes
experiências, que os inquiridos muitas vezes subestimam
seriamente a importância das probabilidades prévias. Uma
destas experiências apresentou a metade dos inquiridos a
seguinte história fictícia:
Um painel de psicólogos entrevistou e administrou testes de
personalidade a 30 engenheiros e a 70 advogados, todos bem
sucedidos nas suas respectivas áreas. Com base nesta
informação foram escritas breves descrições dos 30 engenheiros
e dos 70 advogados. Nos seus formulários encontrará cinco
descrições, escolhidas aleatoriamente das 100 descrições
disponíveis. Indique, por favor, para cada descrição e numa
escala de 0 a 100, a probabilidade de a pessoa descrita ser um
engenheiro.
A outra metade dos inquiridos recebeu o mesmo texto, mas
onde se trocaram as "taxas básicas". Foi-lhes dito que o teste
de personalidade tinha sido administrado a 70 engenheiros e a
30 advogados. Algumas das descrições fornecidas foram
concebidas por forma a se compatibilizarem com os
estereótipos de engenheiro partilhados pelos inquiridos, mas
não com os seus estereótipos de advogado. Outras foram
concebidas para encaixarem no estereótipo de advogado, mas
não no estereótipo de engenheiro. E uma pretendeu-se que
fosse neutra, não oferecendo aos inquiridos qualquer
informação que lhes facilitasse a tomada de decisão. Aqui estão
dois exemplos de descrições. A primeira pretendeu assemelhar-
se à de um engenheiro. A segunda pretendeu ser neutra.
Jack é um homem de 45 anos. É casado e tem quatro filhos. É
de um modo geral conservador, cuidadoso e ambicioso. Não
demonstra qualquer interesse em assuntos políticos ou sociais e
gasta a maior parte dos seus tempos livres com os seus muitos
passatempos, que incluem carpintaria, vela e puzzles
matemáticos.
Dick tem 30 anos. É casado e não tem filhos. É um homem
competente e motivado, que promete vir a ser muito bem
sucedido no seu ramo. É muito popular entre os colegas.
Como era de esperar, os inquiridos de ambos os grupos
consideraram que a probabilidade de Jack ser engenheiro era
bastante alta. Além disso, e no que parece ser uma clara
violação dos princípios Bayesianos, as diferenças nas histórias
fictícias atribuídas aos dois grupos de inquiridos não tiveram
influência alguma. A negligência no que toca à informação
acerca dos "taxas básicas" foi ainda mais evidente no caso de
Dick. Esta descrição foi formulada de forma a não dar qualquer
informação acerca da profissão de Dick. Como tal, a única
informação útil que os inquiridos possuíam, era a informação
acerca de taxas-base fornecida no texto. Porém, essa
informação foi totalmente ignorada. A probabilidade média,
estimada em ambos os grupos de inquiridos, foi de 50%.
Contudo, os inquiridos de Kahneman e Tversky não eram
completamente insensíveis à informação de partida.
Reportando-se às cinco descrições no seu formulário, os
inquiridos encontraram as seguintes descrições "neutras" (null):
Suponha agora que não lhe é dada nenhuma informação acerca
de um determinado indivíduo escolhido da amostra ao acaso.
A probabilidade deste homem ser um dos 30 engenheiros [ou,
para o outro grupo de inquiridos: um dos 70 engenheiros] na
amostra de 100 é de __%.
Neste caso os inquiridos confiaram inteiramente nos taxas
básicas; a estimativa média era de 30% para o primeiro grupo
de inquiridos e de 70% para o segundo. No seu debate acerca
destas experiências, Nisbett e Ross propõem a seguinte
interpretação.
A conclusão que se pode tirar deste contraste entre as
condições "não informativas" e as condições "totalmente não
diagnósticas", parece óbvia. Quando não é fornecido nenhum
dado em concreto acerca do caso a estudar, as probabilidades
prévias são utilizadas adequadamente; quando os dados
fornecidos não têm qualquer valor específico, as probabilidades
prévias podem ser, em grande medida, ignoradas e as pessoas
reagem como se não houvesse qualquer base que lhes
permitisse presumir certas diferenças onde encontram algumas
verosimilhanças. A capacidade das pessoas compreenderem a
relevância da informação concernente às taxas básicas deve ser
muito fraca, pois, uma vez expostas a informações inúteis muito
facilmente deixam de ter aquela em consideração. (Nisbett &
Ross, 1980, pp. 145-6)
Antes de abandonarmos o tema da negligência das taxas
básicas, queremos ainda dar mais um exemplo que ilustra a
maneira como este fenómeno pode muito bem ter sérias
consequências práticas. Aqui está um problema que Casscells
et. al. (1978) apresentaram a um grupo de docentes e alunos
do quarto ano da Harvard Medical School.
Se um teste para detectar uma doença, cuja incidência é de
1/1000, tem uma taxa de falsos positivos de 5%, qual é a
probabilidade de uma pessoa que apresente um resultado
positivo no teste ter de facto a doença, partindo do princípio
que você não sabe nada acerca dos sintomas ou da história
clínica dessa pessoa? __%
Segundo a interpretação mais credível do problema, a resposta
bayesiana correcta é 2%. Mas apenas dezoito por cento das
pessoas do auditório de Harvard deram uma resposta próxima
dos 2%. Quarenta e cinco por cento das pessoas deste distinto
grupo ignoraram completamente a informação base e
responderam 95%.

2.4. Excesso de Confiança

Um dos conjuntos de fenómenos mais profundamente


investigados e que mais preocupa os psicólogos interessados no
raciocínio e nos juízos está relacionado com o grau de confiança
que as pessoas têm nas suas respostas a perguntas concretas -
perguntas como:
Considere os seguintes pares de cidades. Qual delas tem mais
habitantes?
(a) Las Vegas (b) Miami
(a) Sydney (b) Melbourne
(a) Hyderabad (b) Islamabad
(a) Bonn (b) Heidelberg
Considere os seguintes pares de factos históricos. Qual deles
aconteceu primeiro?
(a) A assinatura da Magna Carta (b) O nascimento de Maomé
(a) A morte de Napoleão (b) A compra da Louisiana
(a) O assassinato de Lincoln (b) O nascimento da Rainha Vitória
Depois de cada resposta pergunta-se aos inquiridos:
Que grau de confiança tem na sua resposta?
50% 60% 70% 80% 90% 100%
Numa experiência com perguntas relativamente difíceis é
comum verificar que, nos casos em que os inquiridos dizem
estar 100% confiantes, apenas 80% das suas respostas estão
correctas; nos casos em que dizem estar 90% confiantes,
apenas cerca de 70% das suas respostas estão correctas; e nos
casos em que dizem estar 80% confiantes, apenas cerca de
60% das suas respostas estão correctas. Esta tendência para a
confiança excessiva parece ser muito forte. Avisar os inquiridos
de que as pessoas são frequentemente demasiado confiantes
não tem qualquer efeito significativo. Oferecer-lhes dinheiro (ou
garrafas de champagne francês) como recompensa para a sua
exactidão, também não. Além disso, este fenómeno já foi
demonstrado numa grande variedade de inquiridos, incluindo
estudantes ainda não licenciados, licenciados, médicos e até
mesmo analistas da CIA. (Para uma revisão da bibliografia ver
Lichtenstein, Fischoff & Philips, 1982.)

3. Implicações Pessimistas: Deficiências na nossa Capacidade


de Raciocínio

Os resultados experimentais que temos vindo a relatar assim


como os muitos outros resultados que podemos encontrar na
extensa bibliografia relacionada com esta área são, pensamos
nós, intrinsecamente inquietantes. Eles são ainda mais
alarmantes se, conforme foi ocasionalmente demonstrado, os
mesmos padrões de raciocínio e de juízo forem encontrados
fora do laboratório. Ninguém quer ser diagnosticado por um
médico que ignore informações fidedignas acerca de "taxas
básicas". Da mesma forma, não queremos ver os nossos
governantes rodeados por analistas e conselheiros
excessivamente confiantes. Os resultados experimentais, por si
só, não implicam quaisquer conclusões acerca da natureza ou
do estatuto normativo dos mecanismos cognitivos subjacentes
ao raciocínio e juízo humanos. Mas um grande número de
autores alega que estes resultados garantem um apoio
considerável à hipótese pessimista relativa a esses mecanismos,
uma hipótese que pode ser ainda mais inquietante do que os
próprios resultados. Segundo este ponto de vista, os exemplos
de raciocínios e juízos defeituosos que esboçamos atrás não são
meros erros de performance. Pelo contrário, indicam que a
subjacente capacidade de raciocínio da maior parte das pessoas
é irracional ou, pelo menos, normativamente problemática. Para
clarificarmos este ponto de vista teremos de recuar um pouco e
explicar a distinção, um tanto ou quanto técnica, entre
competência e performance.
A distinção competência / performance, conforme a iremos
caracterizar, foi pela primeira vez introduzida na ciência
cognitiva por Chomsky, que a utilizou em linguística, na sua
descrição da estratégia explicativa das teorias em linguística
(Chomsky, 1965, Ch. 1; 1975; 1980). Ao testarmos teorias
linguísticas, as "intuições" ou juízos irreflectidos, que os falantes
de uma língua fazem sobre a gramaticalidade de uma frase e
sobre as suas várias propriedades (ex: Esta frase é ambígua?) e
relações linguísticas (ex: Esta expressão é o sujeito daquele
verbo?), são uma importante fonte de informação. Para explicar
estas intuições, e também para explicar como é que os falantes
comuns produzem e compreendem frases na sua linguagem,
Chomsky e os seus seguidores propuseram algo que se veio a
tornar uma das mais importantes hipóteses acerca da mente na
história da ciência cognitiva. O que esta hipótese afirma é que
um falante de uma linguagem possui uma representação
interna da gramática dessa língua - um conjunto integrado de
regras e princípios generativos que ocasionam um número
infinito de possibilidades linguísticas. A cada uma das infinitas
frases na linguagem do falante, a gramática internamente
representada atribui gramaticalidade; a cada frase ambígua na
linguagem do falante, a gramática atribui ambiguidade, etc.
Quando os falantes de uma língua fazem o tipo de juízos a que
chamamos intuições, normalmente acedem e confiam em
informações da gramática internamente representada, apesar
de nem este processo nem a gramática internamente
representada poderem ser acedidos conscientemente. Uma vez
que a gramática internamente representada desempenha um
papel central na produção das intuições linguísticas, essas
intuições podem ser uma importante fonte de informação para
os linguistas que tentam especificar quais as regras e os
princípios da gramática internamente representada.
Contudo, as intuições de um falante não são uma fonte de
informação infalível acerca da gramática da linguagem do
falante, pois a gramática, por si só, não consegue produzir
intuições linguísticas. A produção de intuições é um processo
complexo no qual a gramática internamente representada tem
de interagir com uma variedade de outros mecanismos
cognitivos, incluindo aqueles ligados à percepção, à motivação,
à atenção, à memória a curto prazo e, talvez, ainda a muitos
outros. Em algumas circunstâncias, a influência de algum
destes mecanismos pode levar alguém a fazer um juízo acerca
de uma frase que não se coaduna com o que a gramática
realmente diz acerca dessa frase. O mecanismo de atenção
oferece um exemplo muito claro deste fenómeno. É muito
provável que a gramática internamente representada pelos
falantes de língua inglesa indique que um número infinito de
frases do tipo:
A disse a B que p, e B disse a C que q, e C disse a D que r, e ...
são gramaticalmente correctas na língua do falante. No entanto,
se se pedisse aos autores deste texto para julgarem a
gramaticalidade de uma frase contendo algumas centenas
destes conjunções, ou mesmo apenas algumas dúzias, seria
muito provável que a nossa opinião não reflectisse o que a
nossa gramática indica, uma vez que em casos como este a
nossa atenção facilmente se perde. A memória a curto prazo
dá-nos um exemplo mais interessante da maneira como um
juízo gramatical pode não reflectir a informação realmente
contida na gramática. Existem provas bastante fortes que
indicam que o nosso mecanismo de memória a curto prazo tem
dificuldades em lidar com estruturas centrais embebidas. Deste
modo, pode dar-se o caso de as nossas gramáticas
internamente representadas indicarem que a seguinte frase é
gramatical:
What what what he wanted cost would buy in Germany was
amazing
(O que o que o que ele queria custa iria comprar na Alemanha
era fantástico)
apesar de as nossas intuições sugerirem, ou antes, bradarem
aos céus que não é.
De acordo com o jargão introduzido por Chomsky, as regras e
os princípios da gramática interna de um falante constituem a
competência linguística do falante; os juízos que um falante faz
acerca de determinadas frases, juntamente com as frases que o
falante produz, fazem parte da performance linguística do
falante.
Além disso, como acabamos de ver, algumas das frases que o
falante produz e alguns dos juízos que o falante faz acerca das
frases, não reflectirão de um modo exacto a sua competência
linguística. Nestes casos, o falante está a cometer um erro de
performance.
Existem algumas analogias óbvias entre os fenómenos
estudados na linguística e os estudados por cientistas cognitivos
interessados no raciocínio. Em ambos os casos existe um
processamento espontâneo e amplamente inconsciente de uma
classe aberta de inputs; somos capazes de compreender
inúmeras frases e de fazer deduções a partir de inúmeras
premissas. Também, em ambos os casos, somos capazes de
fazer juízos intuitivos e espontâneos acerca de inúmeras classes
de casos - juízos acerca da gramaticalidade, ambiguidade, etc.,
no caso da linguística, e juízos acerca da validade,
probabilidade, etc. no caso do raciocínio. Dadas estas analogias,
é aceitável que se explore a ideia de que o mecanismo que
subjaz à nossa capacidade de raciocinar é semelhante ao
mecanismo subjacente à nossa capacidade de processar
linguagem. E se Chomsky está correcto no que diz respeito à
linguagem, a hipótese análoga acerca do raciocínio reivindicaria
a ideia de que as pessoas possuem uma representação interna
de um conjunto de regras e princípios de raciocínio integrados -
uma "psico-lógica", conforme tem sido chamada - aos quais as
pessoas normalmente acedem e confiam sempre que procuram
inferir ou ajuizar acerca deles. Como no caso da linguagem,
seria de esperar que nem os processos envolvidos nem os
princípios da psico-lógica internamente representada sejam
prontamente acessíveis à consciência. Também será de esperar
que os nossos juízos e inferências não sejam um guia infalível
para o que a psico-lógica subjacente realmente implica no que
se refere à validade ou plausibilidade de uma dada inferência.
Pois aqui, como no caso da linguagem, as regras e princípios
interiormente representados deverão interagir com muitos
outros mecanismos cognitivos - incluindo a atenção, a
motivação, a memória a curto prazo e muitos outros. A
actividade destes mecanismos pode originar erros de
performance - inferências ou juízos que não reflectem a psico-
lógica que constitui a nossa capacidade de raciocínio.
Existe, contudo, uma importante diferença entre o raciocínio e a
linguagem, mesmo que partamos do principio que uma
descrição ao estilo de Chomsky do mecanismo subjacente está
correcta em ambos os casos. No caso da linguagem, não faz
qualquer sentido procurar uma avaliação normativa da
competência de uma pessoa comum. As regras e os princípios
que constituem a competência linguística de um falante do
francês são consideravelmente diferentes das regras e
princípios que subjazem ao processamento linguístico de uma
falante de língua chinesa. Mas se nos perguntarem qual dos
sistemas é o melhor ou qual deles é o mais correcto, nós
simplesmente não compreenderíamos a pergunta. Assim, nesta
analogia, do lado da linguagem existem erros de performance
mas não existem erros de competência ou competência
normativamente problemática. Dando-se o caso de duas
pessoas comuns terem diferentes competências linguísticas,
concluímos simplesmente que elas falam línguas diferentes, ou
diferentes dialectos. Do lado do raciocínio as coisas são
bastante diferentes. Não se sabe muito bem se existem
diferenças significativas, individuais e de grupo, quanto às
regras e princípios que subjazem à performance das pessoas
em tarefas de raciocínio, análogas às que claramente existem
quanto às regras e princípios subjacentes à performance
linguística. Mas se realmente existirem diferenças interpessoais
quanto à nossa capacidade de raciocínio, parece que faz todo o
sentido perguntarmos se um sistema de regras e princípios é
melhor do que outro(2). Se a psico-lógica de Pedro ignora taxas
básicas, deixa-se levar pela falácia da conjunção e aprova-a
confirmando as suas consequências, enquanto Ana não o faz,
pelo menos no que diz respeito a este caso, parece natural dizer
que a capacidade de raciocínio de Ana é melhor que a de Pedro.
E mesmo que todos os seres humanos partilhem a mesma
psico-lógica, mesmo assim, continua a fazer sentido perguntar
pela sua racionalidade. Se a nossa psico-lógica comum contém
regras que falham em algumas versões da tarefa de selecção,
nesse caso poderemos muito bem concluir que existe uma
deficiência normativa partilhada por todos.
Estamos agora, finalmente, em posição de explicar a hipótese
pessimista que alguns autores avançaram para o tipo de
resultados experimentais esboçados na Secção 2. De acordo
com esta hipótese, os erros que os inquiridos cometem nestas
experiências são muito diferentes dos erros de raciocínio que as
pessoas cometem quando estão demasiado fatigadas
mentalmente, ou quando estão desconcentradas. Também são
diferentes dos erros que as pessoas cometem quando estão
cansadas, bêbedas ou cegas de raiva. Todos estes são
exemplos de erros de performance - erros que as pessoas
cometem quando agem de um modo que não é aprovado pela
sua própria psico-lógica. No entanto, os tipos de erros descritos
na Secção 2 são erros de competência. Nestes casos, as
pessoas estão a raciocinar e a ajuizar de um modo que está de
acordo com a sua psico-lógica. Os inquiridos destas
experiências não utilizam as regras adequadas porque não têm
acesso a elas; elas não fazem parte da capacidade de raciocínio
internamente representada do sujeito. O que eles têm, por sua
vez, é uma compilação de regras mais simples, ou "heurísticas",
que podem frequentemente conseguir a resposta correcta,
apesar de, também frequentemente, não a conseguirem.
Então, de acordo com esta hipótese pessimista, os inquiridos
cometem erros porque a sua psico-lógica é normativamente
defeituosa; as regras de raciocínio interiorizadas não são
plenamente racionais. Não é de todo claro que Kahneman e
Tversky aprovariam esta interpretação dos resultados
experimentais, apesar de um grande número de outros
investigadores importantes claramente a aprovarem (3). Por
exemplo, de acordo com Slovic, Fischhoff e Lichtenstein
"Segundo parece, as pessoas não têm os programas adequados
para muitas tarefas de raciocínio importantes... Não tivemos a
oportunidade de desenvolver um intelecto capaz de lidar
conceptualmente com a incerteza" (1976, p. 174).
Suponha que muitos dos erros cometidos nas experiências de
raciocínio são, de facto, erros de competência. Certamente que
esta não é uma explicação lisonjeira, e não contribui de modo
algum para a opinião tradicional que vê o homem como um
animal racional. Mas até que ponto seria uma conclusão
pessimista? Em parte a resposta depende da dificuldade que
teríamos em melhorar as nossas performances, e isso, por sua
vez, depende da dificuldade que teríamos em melhorar a nossa
capacidade de raciocínio. De momento sabemos muito pouco
acerca disso (4). Contudo, ao invocar a evolução como
explicação para a nossa competência defeituosa, Slovic,
Fischhoff e Lichtenstein não nos soam muito optimistas, uma
vez que as características e as limitações atribuíveis à evolução
são frequentemente inatas e as limitações inatas não são fáceis
de ultrapassar. A analogia com a linguagem aponta na mesma
direcção. Pois se Chomsky tem razão naquilo que diz acerca da
linguagem, embora, como é óbvio, aquelas pessoas que falam
línguas diferentes tenham interiorizado diferentes gramáticas, o
número de gramáticas que os humanos conseguem interiorizar
e incorporar no seu mecanismo de processamento da linguagem
é bastante restrito e uma parte significativa da competência
linguística de um adulto é inata. Se a capacidade de raciocínio
for semelhante à competência linguística, nesse caso muitos
melhoramentos não são psicologicamente possíveis porque,
muito simplesmente, as nossas mentes não foram desenhadas
para raciocinar bem acerca deste tipo de problemas. Esta
interpretação profundamente pessimista dos resultados
experimentais tem sido corroborada por muitos autores
conhecidos, incluindo Stephen J. Gould que, no seu modo muito
peculiar, nos diz:
Gosto particularmente do exemplo de Linda, pois eu sei que a
conjunção é menos provável, contudo, um pequeno homúnculo
continua a saltitar para cima e para baixo na minha cabeça
gritando-me - "mas ela não pode ser apenas caixa de um
banco; lê a descrição." ... Por que é que constantemente
cometemos este simples erro lógico? Tversky e Kahneman
afirmam, correctamente julgo eu, que as nossas mentes não
foram construídas (por qualquer motivo) para trabalhar
segundo as regras da probabilidade (1992, p. 469).
É importante que sejamos claros quando afirmamos que
melhorar a nossa capacidade de raciocínio pode ser
"psicologicamente impossível". No que se refere à linguagem,
nós realmente aprendemos a usar linguagens artificiais como o
BASIC e o LISP que violam muitos dos princípios que, segundo
um chomskyano, todas as linguagens naturais deverão
satisfazer. Contudo, nós não aprendemos nem usamos a
linguagem BASIC da mesma forma que aprendemos ou usamos
o Inglês ou o Árabe. É necessário esforço e treino específicos
para aprender essa linguagem e aqueles que a dominam apenas
a usam em circunstâncias especiais. Ninguém "fala" BASIC,
nem usa essa linguagem da mesma forma que as outras
linguagens naturais são usadas. Da mesma forma, com algum
esforço específico poderá ser possível aprender certas regras de
raciocínio que violem alguns dos princípios "naturais" ou
"psicologicamente possíveis", e usar essas regras em
circunstâncias específicas. Porém, confrontado com a miríade de
desafios intelectuais com que diariamente nos deparamos,
alguém que dominasse uma regra não natural (mas
normativamente superior) iria, de um modo geral, usar uma
regra "heurística" menos exigente e mais natural. É este o
ponto que Gould torna claro, ao evocar o pequeno homúnculo
saltitante na sua cabeça, e isso pode explicar o facto, de outro
modo surpreendente, de estudantes de pós-graduação de um
prestigiado programa de ciência da decisão não serem melhores
do que o resto de nós no que toca a evitar a falácia da
conjunção.
Conforme referimos na Introdução, houve muitas tentativas de
desafiar a interpretação pessimista dos resultados
experimentais dos estudos acerca do raciocínio. Nas duas
secções que se seguem iremos concentrar-nos numa das mais
arrojadas e mais intrigantes dessas tentativas, o desafio da
psicologia evolucionista. Se os psicólogos evolucionistas
estiverem correctos, as regras e os princípios de raciocínio que
as pessoas comuns têm à sua disposição são muito melhores
que a hipótese das "Implicações Pessimistas" nos faria prever.

4. O Desafio da Psicologia Evolucionista

Ao procurar explicar o desafio da psicologia evolucionista


deveremos, em primeiro lugar, dizer o que é a psicologia
evolucionista, sendo que tal não é uma tarefa fácil uma vez que
este campo interdisciplinar ainda é demasiado novo para já ter
desenvolvido um corpo de doutrinas preciso e consensual. No
entanto, existem duas ideias básicas que são claramente
essenciais à psicologia evolucionista. A primeira é a de que a
mente é constituída por um grande número de sistemas
especializados - a que se chama "módulos" ou "órgãos
mentais". A segunda é a de que estes sistemas, da mesma
forma que outros sistemas no corpo humano, foram
configurados pela selecção natural para desempenharem
funções específicas ou para resolverem problemas de
processamento de informação que eram importantes no
ambiente em que os nossos antepassados hominídeos
evoluíram. Nesta secção iremos proceder da seguinte maneira.
Em primeiro lugar, no ponto 4.1, abordaremos algumas das
maneiras como a noção de "módulo" foi usada na ciência
cognitiva, concentrando-nos nos tipos de módulos a que os
psicólogos evolucionistas normalmente se referem. No ponto
4.2, distinguiremos a descrição maciçamente modular de mente
dos psicólogos evolucionistas de outra concepção de mente
amplamente discutida segundo a qual os módulos
desempenham apenas um papel periférico. No ponto 4.3,
examinaremos um exemplo do tipo de considerações teóricas
que os psicólogos evolucionistas apresentaram a favor da sua
posição de que a mente é constituída por um grande número de
módulos - e talvez nada mais do que isso. Finalmente, no ponto
4.4, faremos um pequeno esboço da estratégia de investigação
da psicologia evolucionista.

4.1. O que é um Módulo Mental

Apesar de o termo "módulo" ser bastante utilizado na ciência


cognitiva contemporânea, aparentemente, diferentes autores
utilizam-no de diferentes maneiras. Nesta secção delinearemos
alguns destes usos procurando obter uma noção mais clara
daquilo que os psicólogos evolutivos entendem - e não
entendem - por "módulo". As noções de modularidade
discutidas nesta secção não esgotam os diferentes significados
que o termo "módulo" adquire na ciência cognitiva
contemporânea. Para um exame mais aprofundado ver Segal
(1996).
Ao falarem de módulos, os cientistas cognitivos normalmente
referem-se a estruturas mentais ou componentes da mente que
podem ajudar a explicar várias capacidades cognitivas. Além
disso, é geralmente aceite que os módulos são de domínio-
específico (ou funcionalmente específicos) por oposição a serem
aplicáveis a todos os domínios (de domínio-geral). Muito por
alto, isto significa que os módulos se dedicam a resolver classes
restritas de problemas em domínios particulares. Por exemplo,
o facto de existir um módulo da visão implica que existam
estruturas mentais que entram em jogo no domínio do
processamento visual e que não são recrutadas para lidar com
outras tarefas cognitivas. Mais à frente nesta secção
discutiremos com mais detalhe a noção de especificidade do
domínio. De momento pretendemos concentrar-nos no facto de
que o termo "módulo" é utilizado para referir dois tipos de
estruturas mentais fundamentalmente diferentes. (i) Por vezes
é utilizado para referir sistemas de representações mentais. (ii)
Noutras ocasiões o termo "módulo" é utilizado para falar de
mecanismos computacionais. Aos primeiros chamaremos
módulos chomskyanos e aos segundos módulos
computacionais.

4.1.1. Módulos Chomskyanos

Um módulo chomskyano é um domínio específico de


conhecimentos ou informações mentalmente representados que
é tido como uma capacidade cognitiva. Como o nome sugere, a
noção de módulo chomskyano teve a sua origem no trabalho de
Chomsky em linguística. Conforme vimos na secção 3, Chomsky
afirma que a nossa competência linguística consiste na posse de
uma representação interna da gramática da nossa linguagem
natural. Esta gramática é um exemplo paradigmático daquilo
que queremos dizer quando falamos de módulos chomskyanos.
Mas, é claro, Chomsky não é o único pensador a afirmar a
existência daquilo a que chamamos módulos chomskyanos.
Psicólogos do desenvolvimento como Susan Carey e Elizabeth
Spelke demonstraram que as crianças têm teorias mentalmente
representadas - sistemas de princípios - que são específicas a
um domínio, como a física, a psicologia e a matemática (Carey
e Spelke, 1994). Estruturas psicológicas em forma de teoria
(theory-like) como as propostas por Carey e Spelke são um
importante género de módulo chomskyano. No entanto, se
partirmos do pressuposto de que uma teoria é um sistema de
representações com um determinado valor de verdade, i.e. um
sistema sobre o qual podemos perguntar se as suas
representações são verdadeiras ou falsas, nesse caso nem
todos os módulos chomskyanos podem ser considerados
teorias. Também podem existir módulos chomskyanos que
consistam inteiramente em sistemas de representações sem
qualquer valor de verdade. Podem existir, por exemplo,
módulos chomskyanos que codifiquem conhecimento de
domínio específico sobre como executar determinadas tarefas -
por exemplo, como jogar xadrez, como fazer raciocínios
dedutivos, ou como detectar batoteiros em relações sociais.
Como já referimos, uma estrutura mental de domínio-específico
é uma estrutura dedicada a resolver problemas num domínio
restrito. No caso dos módulos chomskyanos, normalmente
pressupõe-se que se comportam assim por uma razão
específica: o conteúdo das representações que constituem um
determinado módulo chomskyano apenas representa
propriedades e objectos que pertençam a um domínio
específico. Assim, por exemplo, se considerarmos a física um
domínio, nesse caso um módulo chomskyano para a física
apenas conterá informação acerca de propriedades físicas e de
objectos físicos. Do mesmo modo, se considerarmos a
geometria um domínio, nesse caso um módulo chomskyano
para a geometria apenas conterá informação acerca de objectos
e propriedades geométricas.
Deparam-se-nos muitos problemas quando tentamos
caracterizar a noção de módulo chomskyano em termos mais
precisos. Como é óbvio, não queremos fazer passar qualquer
grupo de representações mentais de domínio específico por um
módulo chomskyano, uma vez que isso tornaria a noção
teoricamente desinteressante. Não queremos, por exemplo,
tratar as crenças de uma criança acerca de dinossáurios robots
como um módulo. Consequentemente, é necessário impor
limitações adicionais por forma a desenvolver uma noção útil de
um módulo chomskyano. Duas limitações comuns são (i) o seu
caracter inato e (ii) restrições ao fluxo de informação. Assim,
por exemplo, de acordo com Chomsky, a Gramática Universal é
um sistema de representações mentais inato e a maior parte da
informação contida na Gramática Universal não é acessível à
consciência. (Ver Segal (1996) para um aprofundamento destes
pontos.) Não pretendemos levar mais longe o tema das
limitações, contudo, conforme veremos mais à frente, quando
os psicólogos evolucionistas falam de módulos estão
normalmente a referir-se a outro tipo de módulos - os módulos
computacionais.

4.1.2. Módulos Computacionais.

Os módulos computacionais são uma espécie de instrumentos


computacionais. Como primeiro passo, podemos caracterizá-los
como instrumentos computacionais de domínio-específico. No
entanto, há uma série de pontos que devemos elaborar e
clarificar. Em primeiro lugar, geralmente pressupõe-se que os
módulos computacionais são computadores clássicos, i.e.
dispositvos de manipulação de símbolos (ou representações)
que recebem representações na forma de inputs e manipulam-
nas de acordo com regras formalmente especificáveis com o fim
de gerarem representações (ou acções) na forma de outputs.
(Para uma discussão mais detalhada sobre a noção de
computação clássica ver Haugeland (1985) e Pylyshyn (1984).)
Os computadores clássicos deste tipo contrastam nitidamente
com certos tipos de sistemas computacionais conexionistas que
não podem ser vistos como instrumentos manipuladores de
símbolos (5).
Em segundo lugar, é comum supor-se que os módulos
computacionais apenas se dedicam a resolver problemas de um
domínio específico porque só são capazes de processar um
restrito leque de inputs, nomeadamente representações das
propriedades e dos objectos encontrados num domínio
particular (Fodor, 1983, p. 103). Assim, por exemplo, se a
fonologia for considerada um domínio, então nesse caso um
módulo computacional fonológico apenas fornecerá análises de
inputs relativos a objectos e propriedades fonológicas. Do
mesmo modo, se a aritmética for considerada um domínio,
então nesse caso um módulo computacional aritmético apenas
dará soluções para problemas aritméticos.
Em terceiro lugar, normalmente crê-se que os módulos
computacionais são componentes da mente relativamente
autónomos. Apesar de receberem e enviarem sinais de e para
outras estruturas ou processos cognitivos, eles processam a sua
própria informação internamente, indiferentes a quaisquer
sistemas externos. Por exemplo David Marr afirma que os vários
módulos computacionais, nos quais algumas partes do processo
visual são implementadas, "são quase tão independentes uns
dos outros quanto a tarefa global o permita." (Marr, 1982, p.
102)
Em quarto lugar, queremos realçar o facto de que os módulos
computacionais são um tipo de estrutura mental muito diferente
dos módulos chomskyanos. Os módulos chomskyanos são
sistemas de representações. Por contraste, os módulos
computacionais são instrumentos de processamento -
manipulam representações. Seja como for, os módulos
computacionais podem coexistir com os módulos chomskyanos.
Na verdade, pode acontecer que os módulos chomskyanos,
sendo corpos de informação, sejam frequentemente
manipulados por módulos computacionais. Assim, por exemplo,
um analisador gramatical pode ser entendido como um módulo
computacional que utiliza o conteúdo de um módulo
chomskyano dedicado à informação linguística por forma a
gerar representações sintácticas e semânticas da estrutura
física das frases (Segal, 1996, p.144). Além disso, alguns
módulos chomskyanos podem ser acessíveis apenas por um
único módulo computacional. Quando um módulo chomskyano e
um módulo computacional estão ligados desta forma é natural
que se pense nos dois como um só, algo a que podemos
chamar módulo chomskyano / computacional. Mas também é
importante notar que a existência de módulos chomskyanos não
implica a existência de módulos computacionais, uma vez que é
possível que uma mente contenha módulos chomskyanos sem
conter qualquer módulo computacional. Por exemplo, nós, seres
humanos, podemos possuir sistemas de conhecimento de
domínio-específico para a física ou para a geometria, mas daí
não se segue que necessariamente possuamos mecanismos
computacionais de domínio-específico para processar
informação acerca de objectos físicos ou propriedades
geométricas. Pode muito bem dar-se o caso de que tal
conhecimento de domínio-específico seja utilizado por sistemas
de raciocínio de domínio-geral.
Um último ponto que vale a pena focar é que a noção de
módulo computacional tem sido elaborada de diversas formas
na literatura das ciências cognitivas. Fodor (1983) desenvolveu
de maneira notável uma concepção de módulos enquanto
mecanismos computacionais de domínio específico que são ao
mesmo tempo (1) fechados à informação, (2) obrigatórios, (3)
rápidos, (4) superficiais, (5) localizados ao nível neuronal (6)
susceptíveis a uma degradação característica, e (7)
amplamente inacessíveis a outros processos (6). Apesar da
noção fodoriana de módulo em todo o seu esplendor ter tido
grande influência na ciência cognitiva (Garfield 1987), os
psicólogos evolucionistas não aderiram grandemente à sua
concepção de módulos. Por exemplo Simon Baron-Cohen, no
seu mais recente livro, Mindblindness, nega explicitamente a
ideia de que os módulos envolvidos na sua teoria de "leitura da
mente" (7) tenham de ser fechados à informação, ou tenham
de ter outputs superficiais. (Baron-Cohen, 1994, p.515)

4.1.3. Módulos Darwinianos

Então, a que é que os psicólogos evolucionistas se referem


quando utilizam o termo "módulo"? Infelizmente a resposta é
tudo menos clara, dado que os psicólogos evolucionistas não
procuram estabelecer nenhuma caracterização exacta de
modularidade e raramente se preocupam em distinguir as
várias noções de módulo que apresentamos nesta secção.
Apesar disso, tendo em conta o que eles realmente dizem
acerca da modularidade, julgamos ser possível descrever aquilo
que propomos chamar de Módulo Darwiniano, que pode ser
visto como uma espécie de protótipo da noção de modularidade
dos psicólogos evolucionistas. Os módulos darwinianos têm um
conjunto de características, e quando os psicólogos
evolucionistas falam de módulos estão normalmente a falar de
algo que tem todas ou quase todas as características desse
conjunto.
A primeira característica dos módulos darwinianos é serem de
domínio-específico. De acordo com Cosmides e Tooby, que são
talvez os mais conhecidos proponentes da psicologia
evolucionista, as nossas mentes são constituídas
essencialmente por "uma constelação de mecanismos
especializados que têm procedimentos de domínio-específico,
que operam sobre representações de domínio-específico, ou
ambas." (Cosmides e Tooby, 1994, p.94)
A segunda característica dos módulos darwinianos é serem
mecanismos computacionais. Conforme a descrição original de
Tooby e Cosmides, "a nossa arquitectura cognitiva assemelha-
se a uma confederação de centenas ou milhares de
computadores funcionalmente empenhados (normalmente
conhecidos por módulos)..." (Tooby e Cosmides, 1995, p. xiii).
Por conseguinte os módulos darwinianos não são módulos
chomskyanos mas antes uma espécie de módulos
computacionais. Seja como for, os psicólogos evolucionistas
supõem também que muitos módulos darwinianos, quando
fazem computações ou resolvem problemas, utilizam sistemas
de conhecimento de domínio-específico (ou seja, módulos
chomskyanos), e que em alguns casos este conhecimento de
domínio-específico apenas é acessível a um único módulo
darwiniano. Como tal, alguns módulos darwinianos são uma
espécie de módulos computacionais / chomskyanos. O módulo
da "teoria da mente", proposto por bastantes autores actuais
pode dar-nos um exemplo. Pressupõe-se que este módulo, ao
prever certos comportamentos, emprega geralmente
conhecimento inato de domínio-específico acerca de estados
psicológicos, e muita dessa informação pode não ser acessível a
outros sistemas na mente.
Uma terceira característica dos módulos darwinianos é serem
estruturas cognitivas inatas cujas propriedades características
são em grande medida, se não mesmo totalmente,
determinadas por factores genéticos. Além disso, os psicólogos
evolucionistas afirmam que muitos dos módulos darwinianos
que predominam na nossa arquitectura cognitiva são resultado
da selecção natural. Eles são, de acordo com Tooby e Cosmides,
"algo inventado pela selecção natural durante a evolução das
espécies com o objectivo de produzir resultados adaptáveis ao
ambiente natural das espécies." (Tooby e Cosmides, 1995, p.
xiii; ver também Cosmides e Tooby, 1992) Assim, os psicólogos
evolucionistas não se comprometem apenas com a afirmação de
que os módulos são inatos, eles também se comprometem com
uma teoria acerca de como os módulos se tornaram inatos - a
saber, via selecção natural. Apesar dos módulos darwinianos
não serem necessários para melhorar a capacidade reprodutiva
nos ambientes actuais, eles apenas existem porque de facto
melhoraram essa capacidade no ambiente dos nossos avoengos
do Pleistoceno. Ou, para dizer exactamente o mesmo mas no
jargão dos psicólogos evolucionistas, apesar dos módulos
darwinianos já não necessitarem de ser adaptativos, eles são
adaptações. Esta explicação acerca das origens destes módulos
é, claro está, a razão pela qual escolhemos chamá-los
"darwinianos", e conforme veremos na secção 4.4 o facto de os
módulos darwinianos serem adaptações desempenha um
importante papel na estruturação do programa de investigação
que os psicólogos evolucionistas perseguem.
Por fim, os psicólogos evolucionistas frequentemente insistem
em dizer que os módulos darwinianos são características
universais da mente humana e como tal é de esperar que todos
os seres humanos normais possuam o mesmo conjunto
específico de módulos. Então, de acordo com os psicólogos
evolucionistas, a selecção natural não só desenhou uma mente
humana rica em mecanismos computacionais de domínio-
específico inatos, mas também nos deu a todos mais ou menos
o mesmo design. (Para uma crítica interessante a este
argumento, ver Griffiths (1997), Cap. 5)
Resumindo, um módulo darwiniano (protótipo) é um mecanismo
computacional inato, resultante de selecção natural,
funcionalmente específico e universal, que pode ter acesso
(eventualmente acesso único) a um sistema de conhecimento
de domínio-específico do género dos que temos vindo a chamar
de módulos Chomskyanos.

4.2. Modularidade Maciça "versus" Modularidade Periférica

Até muito recentemente, mesmo os proponentes mais fiéis da


modularidade confinavam-se normalmente ao argumento de
que a mente é modular na sua periferia (8). Assim, por
exemplo, apesar de a discussão acerca da modularidade,
conforme se estrutura actualmente na ciência cognitiva, derivar
em grande medida dos argumentos de Jerry Fodor em The
Modularity of Mind (1983), Fodor insiste que muita da nossa
cognição é auxiliada por sistemas não modulares. De acordo
com Fodor, só os sistemas de input (responsáveis pela
percepção e pelo processamento da linguagem) e os sistemas
de output (responsáveis pela acção) são possíveis candidatos à
modularidade. Por outro lado, os "sistemas centrais" (os
sistemas responsáveis pelo raciocínio e pela fixação de crenças)
serão com maior probabilidade não modulares. Como observou
Dan Sperber:
Apesar de, provavelmente, isto não ter sido planeado e não ter
sido muito comentado, a "modularidade da mente" foi um título
paradoxal, pois, de acordo com Fodor, a modularidade só
poderá ser encontrada na periferia da mente... No seu âmago, a
mente de Fodor é, decididamente, não modular. Os processos
conceptuais - ou seja, pensar devidamente - são apresentados
como um aglomerado holístico que não possui pontos de ligação
onde se possa cinzelar. (Sperber, 1994, p.39)
Os psicólogos evolucionistas rejeitam a afirmação de que a
mente é apenas perifericamente modular, a favor de uma ideia
de mente grandemente ou mesmo totalmente composta por
módulos darwinianos. Chamaremos a esta tese a Hipótese da
Modularidade Maciça (HMM). Tooby e Cosmides elaboram a
Hipótese da Modularidade Maciça da seguinte forma:
A nossa arquitectura cognitiva assemelha-se a uma
confederação de centenas ou milhares de computadores
funcionalmente empenhados (normalmente conhecidos por
módulos) desenhados para resolver problemas de adaptação
dos nossos antepassados caçadores-colectores. Cada um destes
instrumentos tem a sua própria agenda de actividades e impõe
a sua própria organização a diferentes fragmentos do mundo.
Existem sistemas especializados em indução gramatical, em
identificação de caras, em calcular a posição de objectos que
vêm pelo ar, na análise de objectos e no reconhecimento de
emoções nas expressões faciais. Existem mecanismos para
detectar a animalidade, a direcção do olhar e para detectar
fraudes. Existe um módulo da "teoria da mente"... uma
variedade de módulos de deduções sociais... e um grande
número de outras elegantes máquinas. (Tooby e Cosmides,
1995, p. xiv)
De acordo com a HMM "as capacidades centrais também podem
ser divididas em módulos de domínio-específico." (Jackendorf,
1992, p.70). Assim, por exemplo, o linguista e neurocientista
cognitivo Steven Pinker sugeriu que não existem apenas
módulos para a percepção, para a linguagem e para acção, mas
também podem existir módulos para muitas das tarefas
tradicionalmente classificadas de processos centrais, incluindo:
Mecanismos intuitivos: percepção dos movimentos, das forças e
das deformações por que os objectos passam... Biologia
intuitiva: compreensão do modo como as plantas e os animais
funcionam... Psicologia intuitiva: capacidade de predição do
comportamento das outras pessoas a partir das suas crenças e
desejos... [e] Auto-Avaliação: recolhimento e organização de
informação acerca do valor que temos para as outras pessoas, e
consequente "venda" dessa informação a outros. (Pinker, 1994,
p.420)(9).
Como tal, de acordo com esta hipótese, "a mente humana...
não é um computador com um objectivo genérico, mas antes
uma colecção de instintos adaptados à resolução de problemas
evolutivamente importantes - a mente como um Canivete
Suíço." (Pinker, 1994) .

4.3. Argumentos a favor da Modularidade Maciça

Estará correcta a Hipótese da Modularidade Maciça? A mente


humana é constituída em grande parte, ou mesmo
inteiramente, por módulos Darwinianos? Esta pergunta está a
tornar-se rapidamente num dos problemas centrais da ciência
cognitiva contemporânea. De uma maneira geral, podemos
encontrar dois tipos de argumentos a favor da HMM, a que
daremos o nome de "teóricos" e "empíricos". Os argumentos
teóricos confiam fortemente em argumentos bastante gerais
acerca da natureza da evolução, cognição e computação,
enquanto que os argumentos empíricos focam essencialmente
os resultados experimentais que, conforme é defendido,
sustentam a HMM acerca da mente. Apesar de uma análise
sistemática dos argumentos avançados a favor da HMM estar
para além do âmbito deste ensaio, consideramos importante
que os leitores tomem algum contacto com eles. Como tal
iremos apresentar nesta secção um breve esboço de um dos
argumentos teóricos propostos por Cosmides e Tooby, e
avançaremos uma das possíveis críticas a esse argumento (10).
Na secção 5 examinaremos alguns dos resultados empíricos
acerca dos processos de raciocínio que são tidos como
corroborando a HMM.
O argumento de Cosmides e Tooby está centrado na noção de
problema de adaptação que pode ser definido como um
problema evolutivo recorrente cuja solução fomentou a
reprodução, não importa quão prolongada ou indirecta tenha
sido a cadeia pela qual o faz (Cosmides e Tooby, 1994, p.87).
Por exemplo, para se reproduzir, um organismo tem de
encontrar um parceiro. Assim, encontrar um parceiro é um
problema de adaptação. Da mesma forma, para se reproduzir,
um organismo deve evitar ser comido por predadores antes de
acasalar. Como tal, evitar predadores é também um problema
de adaptação. De acordo com Cosmides e Tooby, ao avaliarmos
o modo como a selecção natural actua e os problemas
específicos de adaptação que os seres humanos enfrentaram no
Pleistoceno, concluiremos que existem boas razões para pensar
que a mente possui um grande número de diferentes
mecanismos modulares. Ao desenvolverem o argumento,
Cosmides e Tooby procuraram, em primeiro lugar, justificar a
ideia de que, no que toca a resolver problemas de adaptação,
podemos esperar que as pressões da selecção natural produzam
mecanismos cognitivos altamente especializados - i.e. módulos.
...Diferentes problemas de adaptação exigem frequentemente
diferentes soluções, e diferentes soluções podem, na maioria
dos casos, ser implementadas por diversos mecanismos
funcionalmente distintos. Velocidade, segurança e eficiência
podem inscrever-se em mecanismos especializados pois não há
necessidade de se inventar um compromisso entre os diferentes
requisitos das tarefas. (Cosmides e Tooby, 1994, p.89)
Pelo contrário,
...aquele que domina todos os ofícios não pode de maneira
alguma ser mestre em nenhum deles, pois a generalidade
apenas é alcançada sacrificando a eficiência. (Cosmides e
Tooby, 1994, p.89)
Por outras palavras, ao passo que um mecanismo especializado
pode ser rápido, fidedigno e eficiente pois dedica-se a resolver
um problema de adaptação específico, um mecanismo geral que
resolva muitos problemas de adaptação com requisitos de
tarefas concorrentes apenas obterá a generalidade às custas do
sacrifício das mencionadas virtudes. Consequentemente:
(1) É uma regra que, quando dois problemas de adaptação
apresentam soluções que são incompatíveis ou simplesmente
diferentes, uma só solução será inferior a duas soluções
especializadas. (Cosmides e Tooby, 1994, p.89)
Repare que a citação anterior não é somente acerca de
mecanismos cognitivos. Antes, é suposto que se aplique de um
modo geral a todas as soluções apresentadas a diferentes
problemas de adaptação. Não obstante, de acordo com
Cosmides e Tooby, aquilo que se aplica de um modo geral a
soluções apresentadas a diferentes problemas de adaptação
também se aplica ao caso específico de mecanismos cognitivos
destinados a resolver problemas de adaptação. Por conseguinte,
afirmam, temos boas razões para crer que os mecanismos
cognitivos de tarefa específica ou de domínio específico são
melhores soluções para os problemas de adaptação que os
sistemas de domínio geral. Além disso, uma vez que é de
esperar que a selecção natural favoreça as melhores soluções
para os problemas de adaptação em detrimento das piores,
Cosmides e Tooby concluem que no que se refere à resolução
de problemas de adaptação:
(2) ... é de se esperar que os mecanismos cognitivos de
domínio-específico superem sistematicamente (e por esse
motivo excluindo e substituindo) os mecanismos mais gerais.
(Cosmides e Tooby, 1994, p.89)
Até aqui vimos que Cosmides e Tooby afirmam que é de
esperar que as pressões da selecção natural produzam
mecanismos cognitivos de domínio específico - módulos - que
resolvam problemas de adaptação. Mas apenas isto não é
suficiente para fundamentar a afirmação de que a mente possui
um grande número de módulos. Os nossos antepassados
também se devem ter visto confrontados com um grande
número de problemas de adaptação que apenas puderam ser
resolvidos por mecanismos cognitivos. Como tal, Cosmides e
Tooby insistem que:
(3) Para sobreviverem e se reproduzirem, os nossos
antepassados do Pleistoceno tinham de ser muito bons a
resolver uma grande quantidade de problemas de adaptação -
problemas esses que derrotariam qualquer sistema de
inteligência artificial moderno. Uma pequena amostragem inclui
procurar comida, navegar, escolher um parceiro, tratar da
prole, relacionar-se socialmente, lidar com agressões, evitar
predadores, evitar contaminações, evitar as toxinas de algumas
plantas, evitar o incesto e assim por diante. (Cosmides e Tooby,
1994, p.90)
No entanto, se isto é verdade, e se também é verdade que
quando é necessário resolver problemas de adaptação, os
mecanismos cognitivos de domínio específico excluem ou
substituem os mecanismos cognitivos mais gerais, nesse caso
podemos concluir que:
(4) A mente humana deve conter um grande número de
diferentes mecanismos de domínio específico.
E isto, obviamente, é tudo o que a Hipótese da Modularidade
Maciça requer.
Este argumento não deve ser considerado uma prova dedutiva
da modularidade maciça da mente. Em vez disso é proposto
como um argumento de plausibilidade. Presume-se que este
argumento nos assegura que a mente contém muitos módulos.
(Cosmides e Tooby, 1994, p.89). Contudo, se a conclusão do
argumento for interpretada como uma afirmação de que a
mente contém uma data de módulos darwinianos-protótipo,
nesse caso suspeitamos que o argumento afirma mais do que
aquilo que é suposto afirmar. Pois mesmo que admitamos que a
selecção natural conseguiu prover a mente humana com um
grande número de soluções especializadas para problemas de
adaptação, daí não resulta que estas soluções especializadas
sejam módulos darwinianos prototípicos. Em vez de conter um
grande número de instrumentos computacionais especializados,
pode dar-se o caso de a mente possuir um grande número de
itens inatos de conhecimento de domínio específico, e que estes
sejam empregues na resolução de diversos problemas de
adaptação. Assim, em vez de explorarem módulos darwinianos,
as nossas mentes podem, na verdade, conter uma grande
quantidade de módulos chomskyanos inatos. E dizer que a
informação contida dentro de tais módulos é utilizada apenas
por instrumentos computacionais de domínio-geral e, como tal,
não modulares, é perfeitamente consistente com a afirmação de
que possuímos módulos chomskyanos para a resolução de
problemas de adaptação. Além disso, a afirmação de que a
selecção natural prefere certos tipos de especializações
adaptáveis a outras - isto é, módulos computacionais
darwinianos a módulos chomskyanos - seguramente que não
resulta da afirmação genérica de que as soluções mais
especializadas (de qualquer tipo) normalmente suplantam as
mais gerais. Assim em vez de ter produzido módulos
darwinianos como soluções para os problemas de adaptação, a
selecção natural pode ter providenciado soluções especializadas
na forma de conhecimento inato de domínio- específico, que é
utilizado por um mecanismo computacional de domínio-geral.
De forma a tornar credível a afirmação de que a mente contém
um grande número de módulos darwinianos, devemos procurar
demonstrar que é de prever que a selecção natural prefira
instrumentos computacionais de domínio-específico a corpos de
informação de domínio-específico como soluções para os
problemas de adaptação. E, actualmente, estamos longe de
saber como se desenharia tal argumento.

4.4. O Programa de Investigação da Psicologia evolucionista

Um dos objectivos centrais da psicologia evolucionista é


construir e testar hipóteses acerca dos módulos darwinianos
que, conforme a teoria sustenta, compõem grande parte da
mente humana. Em busca deste objectivo a investigação pode
avançar por duas etapas bastante diferentes. A primeira, a que
chamaremos análise evolutiva, tem como objectivo a produção
de hipóteses verosímeis relativas a módulos darwinianos. Uma
análise evolutiva procura estudar o melhor possível os
problemas de processamento de informação com que os nossos
antepassados se confrontaram naquilo que normalmente se
chama o ambiente de adaptação evolutiva ou AAE - o ambiente
em que o Homo Sapiens se desenvolveu. A análise centra-se, é
claro, nos problemas de adaptação cuja solução tenha
contribuído directa ou indirectamente para o êxito da
reprodução. Em alguns casos estes problemas de adaptação
eram causados por características físicas dos AAE, noutros
casos eram causados por características biológicas, e ainda
noutros casos eram causados pelo meio social em que os
nossos antepassados viviam. Uma vez que existem tantos
factores implicados na determinação dos diferentes tipos de
problemas de processamento de informação com que os nossos
antepassados se confrontavam nos AAE, este tipo de análise
evolutiva é um exercício altamente interdisciplinar. Podem ser
encontradas pistas em diferentes tipos de investigações, desde
o estudo de clima no período Plistocénico até ao estudo da
organização social nas poucas culturas de caçadores-colectores
ainda existentes. Uma vez que um problema de adaptação
tenha sido caracterizado, o investigador pode admitir a hipótese
da existência de um módulo que eficazmente resolveria esse
problema no AAE.
Uma parte importante do esforço de caracterização destes
problemas de processamento de informação recorrentes é a
especificação dos diferentes constrangimentos que afectam o
mecanismo destinado a resolver o problema. Se, por exemplo,
a informação necessária para resolver um problema fosse quase
sempre apresentada num determinado formato específico,
nesse caso o mecanismo não necessitaria de saber lidar com
informações apresentadas noutros formatos distintos. Poderia
"pressupor" que a informação lhe seria apresentada no formato
típico. Da mesma forma, se fosse necessário ser capaz de
detectar pessoas ou objectos com uma determinada
característica dificilmente observável, e se, no AAE, essa
característica estivesse correlacionada com uma outra
característica mais fácil de detectar, o sistema poderia muito
facilmente supor que as pessoas e os objectos com a
característica detectável também possuíam a característica
difícil de observar.
É importante ter em mente que as análises evolucionistas só
podem ser usadas como forma de sugerir hipóteses plausíveis
acerca dos módulos mentais. As análises não conseguem, por si
só, assegurar a veracidade dessas hipótese. Dizer que a aptidão
dos nossos antepassados teria melhorado se estes tivessem
desenvolvido um módulo que resolvesse um determinado
problema não garante que eles tenham de facto desenvolvido
esse módulo, uma vez que podem existir muitas outras razões
para a selecção natural e os outros processos de evolução não
terem produzido um mecanismo que melhorasse a aptidão.
(Stich, 1990, Ch. 3)
Uma vez que a análise evolucionária seja capaz de avançar com
uma hipótese plausível, o próximo passo da estratégia de
pesquisa da psicologia evolucionista será testar essa hipótese
procurando provas de que os seres humanos contemporâneos
efectivamente possuem um módulo com as propriedades em
questão. Aqui, como anteriormente, o projecto é altamente
interdisciplinar. As provas podem vir de estudos experimentais
sobre os processos de raciocínio dos seres humanos normais
(Cosmides, 1989; Cosmides e Tooby, 1992, 1996; Gigerenzer,
1991; Gigerenzer e Hung, 1992), de estudos respeitantes ao
aparecimento e desenvolvimento de capacidades cognitivas
(Carey e Spelke, 1994; Leslie, 1994; Gelman e Brenneman,
1994), ou do estudo de deficiências cognitivas em algumas
populações não-normais (Baron-Cohen, 1995). Também
podemos recolher importantes provas dos estudos de
antropologia cognitiva (Barkow, 1992; Hutchins, 1980),
história, e até mesmo de áreas tão insuspeitas como o estudo
comparativo de tradições legais (Wilson e Daly, 1992). Quando
as provas recolhidas em algumas destas áreas apontam numa
mesma direcção, podemos argumentar que a hipótese sugerida
pela análise evolucionária a favor da existência de um módulo
mental se torna cada vez mais sólida.

5. A Psicologia Evolucionista Aplicada ao Raciocínio: Teoria e


Resultados

Nesta secção teremos em consideração duas linhas de


investigação relativas aos processos de raciocínio nos seres
humanos em que se prosseguiu a estratégia de duas etapas
descrita na secção anterior. Apesar da interpretação dos
estudos que iremos esboçar ser motivo de grande controvérsia,
foi sugerido por bastantes autores que esses estudos indicam a
existência de algo profundamente errado com a hipótese
"pessimista" exposta na secção 3. Segundo essa hipótese as
pessoas não têm regras ou princípios normativos adequados
para raciocinarem acerca de problemas como os expostos na
secção 2. No entanto, quando observamos variações desses
problemas que os podem aproximar do tipo de problemas com
que os nossos antepassados se terão confrontado nos seus AAE,
as performances melhoram dramaticamente. E isto, diz-se,
prova a existência de pelo menos dois módulos darwinianos
normativamente sofisticados, um concebido para lidar com
raciocínios probabilísticos quando a informação é apresentada
em formato de frequência relativa, o outro concebido para lidar
com raciocínios relativos a fraudes em contextos de intercâmbio
social.

5.1. A Hipótese Frequencista

As experiências analisadas nas secções 2.2 - 2.4 indicam que as


pessoas são, frequentemente, muito más em raciocínios de
probabilidade, e a interpretação pessimista destes resultados
afirma que as pessoas utilizam métodos heurísticos simples
("rápido e sujos") quando lidam com estes problemas, e isto
porque os seus sistemas cognitivos não têm acesso a princípios
de raciocínio probabilísticos mais adequados. Porém, numa série
de recentes e provocadores artigos, Gigerenzer (1994,
Gigerenzer e Hoffrage, 1995) e Cosmides e Tooby (1996)
afirmam que de um ponto de vista evolucionário este seria um
resultado surpreendente e paradoxal. "Da mesma forma que o
acaso anda à solta no mundo," observam Cosmides e Tooby,
"os animais tiveram que tomar decisões baseados na incerteza."
(Cosmides e Tooby, 1996, p.14; até ao fim desta secção todas
as citação serão de Cosmides e Tooby, 1996, salvo indicação
em contrário.) Deste modo, efectuar juízos quando
confrontados com informações probabilísticas colocava
problemas de adaptação a todo o tipo de organismos, incluindo
os nossos antepassados hominídeos, e "se um problema de
adaptação persistir por bastante tempo e se for suficientemente
importante, nesse caso os mecanismos com alguma
complexidade podem evoluir por forma a resolvê-lo." (p.14) No
entanto, conforme vimos na secção anterior, é de esperar uma
conjugação entre o desenho dos nossos mecanismos cognitivos,
a estrutura dos problemas de adaptação que eles procuram
resolver, e os ambientes característicos onde eles foram
concebidos para actuar - ou seja, nos ambientes onde eles se
desenvolveram." (p.14) Como tal, ao avançarem com a sua
análise evolucionária o primeiro passo de Cosmides e Tooby é
perguntar: "que género de informação probabilística estaria
disponível para quaisquer mecanismos de raciocínio indutivo
que possamos ter desenvolvido?" (p.15)
Hoje em dia somos confrontados com informação estatística que
nos é apresentada de muitas maneiras: os boletins
meteorológicos dizem-nos a probabilidade de haver chuva
amanhã, os jornais desportivos dão-nos as estatísticas dos
melhores marcadores, e estudos bastante divulgados dizem-nos
que as probabilidades de contrairmos cancro no cólon depois
dos 50 são menores se tivermos uma dieta rica em fibra. No
entanto, informação acerca da probabilidade de acontecimentos
únicos (como chuva no dia seguinte) e informação expressa em
termos percentuais teria sido rara ou inexistente nos AAE.
Aquilo que estava disponível no ambiente em que evoluímos era
a frequência com que realmente nos deparávamos com
determinados acontecimentos - por exemplo, quando tínhamos
sido bem sucedidos 5 vezes das últimas 20 que caçámos no
desfiladeiro norte. Os nossos antepassados hominídios estavam
submersos num imenso fluxo de acontecimentos observáveis
que podiam ser usados para aperfeiçoar as suas decisões.
Assim, se temos adaptações para o nosso raciocínio indutivo,
elas devem ter como input a frequência da informação. (pp.15-
16)
Depois de um sistema cognitivo registar a informação acerca da
frequência de determinados acontecimentos, poderá então
converter essa informação num outro formato qualquer. Se, por
exemplo, o sistema tiver observado que 5 das últimas 20
caçadas no desfiladeiro norte foram bem sucedidas, poderá
então deduzir e armazenar a conclusão de que a probabilidade
de uma caçada no desfiladeiro norte ser bem sucedida é de
25%. Contudo, Cosmides e Tooby defendem que, "as
representações frequencistas trazem vantagens para o
armazenamento e funcionamento pois guardam informações
importantes que seriam perdidas pela conversão numa
probabilidade de acontecimento-único. Por exemplo, ... o
número de acontecimentos em que a decisão se baseou seria
perdido na conversão. Quando o n desaparece, o índice de
confiança na informação também desaparece." (p.16)
Estas e outras considerações acerca do ambiente em que os
nossos sistemas cognitivos se desenvolveram conduziram
Cosmides e Tooby a admitir a hipótese de que os nossos
antepassados "desenvolveram mecanismos que aceitavam a
frequência de acontecimentos como inputs, mantinham essa
informação como representações frequencistas e usavam essas
representações frequencistas como base de dados para um
raciocínio indutivo eficaz." (11). Uma vez que os psicólogos
evolucionistas esperam que a mente contenha muitos módulos
especializados, Cosmides e Tooby estão preparados para
encontrar outros módulos envolvidos no raciocínio indutivo que
trabalhem de outras maneiras.
Não estamos a colocar a hipótese de que todos os mecanismos
cognitivos que envolvam indução estatística operam
necessariamente sobre princípios frequencistas, apenas dizemos
que pelo menos um deles o faz, e que isto faz dos princípios
frequencistas uma característica importante do modo como os
seres humanos intuitivamente se comprometem com a
dimensão estatística do mundo. (p.17)
Porém, embora esta análise evolucionária não exclua a
existência de mecanismos indutivos não centrados na
frequência de acontecimentos, ela na verdade sugere que
quando um mecanismo que opera sobre princípios frequencistas
está envolvido, ele fará certamente um bom trabalho, e, como
tal, as deduções probabilísticas que ele efectua serão, de um
modo geral, aquelas que são normativamente apropriadas. Isto,
é claro, está em completo contraste com a hipótese das
implicações pessimistas que afirma que nesta área as pessoas
simplesmente não têm acesso a estratégias normativamente
adequadas.
Da sua hipótese, Cosmides e Tooby retiram uma série de
previsões:
(1) A performance em raciocínio indutivo irá variar consoante
for perguntado aos inquiridos para avaliarem a frequência ou a
probabilidade de um acontecimento único.
(2) A performance nas versões frequencistas dos problemas
será superior à performance nas versões não frequencistas
(3) Quanto mais os sujeitos puderem ser mobilizados para
formar uma representação frequencista, melhor será a
performance.
(4) ...Nos problemas frequencistas a performance irá satisfazer
alguns dos constrangimentos que o cálculo de probabilidades
especifica, tal como a regra de Bayes. Isto aconteceria porque
alguns mecanismos de raciocínio indutivo na nossa arquitectura
cognitiva incorporam aspectos de um cálculo de probabilidades.
(p.17)
Para testar estas previsões Cosmides e Tooby efectuaram uma
série de experiências elaboradas à volta do problema do
diagnóstico médico que Casscells et al. usaram para demonstrar
que mesmo os inquiridos mais sofisticados ignoram informação
relativa a taxas básicas. Na sua primeira experiência Cosmides
e Tooby reproduziram os resultados de Casscells et. al.
utilizando exactamente o mesmo texto transcrito na secção 2.4.
Dos 25 estudantes universitários da Universidade de Stanford
inquiridos nesta experiência, apenas 3 ( = 12%) deram a
resposta bayesiana normativamente adequada de "2%",
enquanto que 14 inquiridos ( = 56%) responderam "95%" .
Conforme referimos em 2.3., os inquiridos da Harvard Medical
School do primeiro estudo de Casscells et. al. estiveram
ligeiramente melhor; 18% desses inquiridos deram respostas
perto dos "2%" e 45% deles responderam "95%" (12).
Noutra experiência, Cosmides e Tooby apresentaram a 50
estudantes de Stanford um problema semelhante onde se
realçavam frequências relativas em vez de percentagens e
probabilidades de acontecimento único. A versão "frequencista"
do problema foi assim apresentada:
1 em cada 1000 Americanos tem a doença X. Foi desenvolvido
um teste para detectar a doença X numa pessoa. Sempre que o
teste é efectuado a uma pessoa com a doença X, o teste dá
positivo. Mas por vezes o teste também dá positivo quando é
efectuado a alguém perfeitamente saudável. Na verdade, em
cada 1000 pessoas perfeitamente saudáveis, 50 acusam
positivo no teste.
Imagine que reunimos uma amostra aleatória de 1000
Americanos. Foram escolhidos por um sorteio. Aqueles que
dirigiram o sorteio não tinham qualquer informação acerca do
estado de saúde de qualquer uma destas pessoas.
Tendo em conta a informação que lhe demos:
em média, quantas pessoas que acusaram positivo no teste
estarão realmente doentes? __ de __(13).
Neste problema os resultados foram completamente diferentes.
38 dos 50 inquiridos ( = 76%) deram a resposta bayesiana
correcta (14). .
Num esforço para descobrir quais os factores que tinham maior
influência nos resultados, foram efectuadas mais experiências
que exploraram as diferenças entre o problema utilizado por
Casscells, et. al. e os problemas nos quais os inquiridos tiveram
uma boa performance. Apesar de serem muitos os factores que
afectam a performance, dois deles são predominantes.
"Perguntar pela resposta como uma frequência produz o melhor
efeito, seguido de muito perto pelo apresentar da informação do
problema como uma frequência." (p.58) A conclusão mais
importante que Cosmides e Tooby querem retirar destas
experiências é que "as representações frequencistas activam
mecanismos que produzem raciocínios bayesianos, e é isto que
explica o nível muito alto de performances bayesianas extraídas
dos problemas frequencistas puros que nós testamos." (p. 59)
Para corroborar ainda mais esta conclusão, Cosmides e Tooby
citam vários resultados surpreendentes relatados por outros
investigadores. Num estudo em particular, Fiedler (1988)
investigando algumas descobertas interessantes de Tversky e
Kahneman (1983), demonstrou que a percentagem de
inquiridos que cometem a falácia da conjunção pode ser
drasticamente reduzida se o problema for apresentado em
termos frequencistas. No exemplo da "mulher bancária", Fiedler
contrastou o texto descrito em 2.2. com o seguinte problema:
Linda tem 31 anos, é solteira, sincera, e muito inteligente.
Licenciou-se em filosofia. Enquanto estudante Linda
interessava-se profundamente por assuntos relacionados com a
discriminação e a justiça social, além disso participava em
manifestações anti-nuclear.
Existem 200 pessoas que encaixam na supradita descrição.
Quantas delas são:
bancárias?
bancárias e participantes activas em movimentos feministas?
...
Na reprodução de Fiedler utilizando a formulação original do
problema, 91% dos inquiridos afirmaram que a opção "bancária
feminista" era mais provável que a opção simplesmente
"bancária". Contudo, na versão frequencista apenas 22% dos
inquiridos afirmaram que haveria mais bancárias feministas do
que bancárias. Ainda noutra experiência, Hertwig e Gigerenzer
(1994; descrito em Gigerenzer, 1994) disseram aos inquiridos
que existiam 200 mulheres encaixando na descrição de "Linda",
e pediram-lhes uma estimativa do número de bancárias,
bancárias feministas, e feministas. Apenas 13% cometeram a
falácia da conjunção.
Para apoiar a hipótese frequencista, foram efectuados alguns
estudos acerca do excesso de confiança. Num deles Gigerenzer,
Hoffrage e Kleinbölting (1991) anunciaram que o tipo de
excesso de confiança descrito na secção 2.4 poderá
"desaparecer" fazendo com que os inquiridos respondam a
perguntas formuladas em termos de frequências. Gigerenzer e
os seus colegas deram aos inquiridos listas de 50 perguntas
semelhantes às descritas na secção 2.4, no entanto, desta vez,
além de terem que classificar os seus níveis de confiança depois
de cada resposta (que, na verdade, lhes pede que avaliem a
probabilidade desse acontecimento em particular), os inquiridos
tinham que, no final, responder a uma pergunta acerca da
frequência das respostas correctas: "Em quantas destas 50
respostas acha que acertou?" Em duas experiências, a
percentagem média de excesso de confiança era de 15%,
enquanto que a confiança em acontecimentos únicos era
comparada com as frequências relativas reais das repostas
correctas, reproduzindo as mesmas descobertas que esboçamos
na secção 2.4. Contudo, o confronto entre as "frequências
estimadas pelos inquiridos com as frequências reais das
respostas correctas fez com que o `excesso de confiança´
desaparecesse... As frequências estimadas eram praticamente
idênticas às frequências reais, até mesmo com uma pequena
tendência para alguma subestimação. A `ilusão cognitiva´ tinha
desaparecido." (Gigerenzer, 1991, p.89)
Tanto os estudos experimentais que temos vindo a analisar
como as conclusões que Gigerenzer, Cosmides e Tooby querem
deles retirar provocaram uma certa celeuma. Tendo em conta
os nossos objectivos, as críticas mais incómodas são
provavelmente aquelas que demonstram o aparecimento de
vários padrões de raciocínio normativamente problemáticos,
mesmo quando um problema é colocado em termos de
frequências. Por exemplo, no seu estudo detalhado sobre a
falácia da conjunção, Tversky e Kahneman (1983) descreveram
uma experiência na qual foi pedido aos inquiridos (falantes de
língua inglesa) que fizessem uma estimativa tanto do número
de "palavras com sete letras na forma de `-----n-´ num texto
de quatro páginas", como o "número de palavras com sete
letras na forma de `----ing´ num texto de quatro páginas." A
estimativa média para as palavras terminadas em `----ing´ foi
cerca de três vezes mais elevada do que para as palavras com
"n" na penúltima letra. Conforme observaram Kahneman e
Tversky (1996), este parece ser um contra-exemplo bastante
claro face à pretensão de Gigerenzer, que afirma que a falácia
da conjunção desaparece em juízos de frequência.
Kahneman e Tversky, citando um estudo de Gluck e Bower
(1998), lançam outro desafio à ideia de que as representações
de frequência eliminam a negligência dos taxas básicas. Nesse
estudo pedia-se aos inquiridos que aprendessem a diagnosticar
se um paciente tinha uma doença rara (25%) ou uma doença
comum (75%) numa base de 250 testes em que lhes eram
apresentados 4 padrões de sintomas. Depois de cada
apresentação os inquiridos procuravam adivinhar que doença
tinha o paciente, e de seguida era-lhes imediatamente dito se o
seu palpite estava certo ou errado. Apesar dos inquiridos se
depararem com a doença comum com mais frequência (3 vezes
mais) que com a doença rara, ignoraram largamente esta
informação de padrão-base e agiram como se as duas doenças
fossem igualmente prováveis.
Existe também um conjunto substancial de trabalhos que
demonstra que as expectativas podem conduzir as pessoas a
comunicarem correlações ilusórias quando lhes é dada
informação acerca de uma sequência de casos. Num estudo
conhecido e muito inquietante, Chapman e Chapman (1967,
1969) confrontaram os inquiridos com uma série de cartões em
que cada um era suposto reproduzir o desenho de uma pessoa
feito por um doente psiquiátrico. Cada cartão também fornecia
o diagnóstico desse paciente. Os inquiridos, segundo os
próprios, encontravam correlações "intuitivas" (por exemplo,
desenhos com uns olhos peculiares e diagnósticos de paranóia)
mesmo quando não existiam tais correlações na informação que
lhes era dada. Noutro estudo amplamente discutido, Gilovich,
Vallone e Tversky (1985) demonstraram que as pessoas "vêem"
correlações positivas entre o resultado de cestos sucessivos
num jogo de basketball (provocando desse modo a ilusão de o
jogador estar "com a mão quente") mesmo quando não existe
essa correlação na informação disponível.
Segundo o nosso ponto de vista, aquilo que estas críticas
demonstram é que a versão da hipótese frequencista sugerida
por Gigerenzer, Cosmides e Tooby é demasiado simplista. Nem
todas as representações frequencistas activam mecanismos que
produzam bons raciocínio bayesianos, da mesma forma que a
apresentação de informação num formato sequencial, a partir
do qual a distribuição da frequência pode facilmente ser
retirada, nem sempre activa mecanismos que façam um bom
trabalho na detecção de correlações. Será preciso mais trabalho
experimental para que se consiga determinar os factores que
permitem a activação de bons raciocínio bayesianos e que
possibilitam uma boa detecção de correlações. E também será
necessária uma análise evolucionária mais subtil que explique
porque é que estes complexos estímulos evoluíram. Contudo,
apesar das polémicas, existe algum consenso entre os
psicólogos evolucionistas e os seus críticos. Ambos os lados
acreditam que as pessoas têm de facto mecanismos mentais
que podem ajudar bastante os raciocínios bayesianos, e ambos
acreditam também que a apresentação dos problemas de uma
forma que evidencie a frequência da informação pode contribuir
para activar esses mecanismos. Ambos os lados acreditam
também que as pessoas têm outros mecanismos mentais que
exploram estratégias de raciocínio bastante diferentes, apesar
de haver pouco consenso quanto à forma de caracterizar estas
estratégias não-bayesianas, aos factores as accionaram, ou às
razões por que evoluíram. O cerne da questão, na nossa
opinião, é que as experiências que demonstram que as pessoas
por vezes são excelentes nos seus raciocínios bayesianos, são
um importante factor de refutação da melancólica hipótese
esboçada na Secção 3. A tese de Gould de que "as nossas
mentes não são construídas... para trabalhar segundo regras de
probabilidade" é demasiado pessimista. Os nossos sistemas
cognitivos têm claramente acesso a estratégias de raciocínio
que estão de acordo com as regras de probabilidade, apesar de
nós nem sempre as usarmos. Também pensamos que a prova
analisada nesta secção é compatível com a hipótese que diz que
os bons raciocínios probabilísticos, quando ocorrem, são
ajudados por um ou mais módulos darwinianos, se bem que
esta prova também seja compatível com muitas outras
hipóteses alternativas.

5.2. A Hipótese da Detecção do Batoteiro

Na Secção 2 reproduzimos uma versão da tarefa de selecção de


Wason com quatro cartões na qual a maioria dos inquiridos teve
uma má performance, e assinalamos que, enquanto que em
muitas outras versões da tarefa de selecção os inquiridos têm
também uma má performance, em algumas versões as
performances melhoram drasticamente. Aqui está um exemplo
de Griggs e Cox (1982).
De um ponto de vista lógico este problema é estruturalmente
idêntico ao problema apresentado na Secção 2.1, porém o
conteúdo dos problemas tem claramente um importante efeito
na performance das pessoas. Cerca de 75% dos estudantes
universitários inquiridos responderam correctamente a esta
versão da tarefa de selecção, enquanto que apenas 25% tinham
respondido correctamente à outra versão. Apesar de já
existirem dezenas de estudos que exploram estes "efeitos de
conteúdo" numa tarefa de selecção, os resultados têm sido, e
continuam a ser, deveras intrigantes dado que não existe
nenhuma propriedade ou conjunto de propriedades evidentes
partilhadas pelas versões da tarefa em que as pessoas têm
boas performances. Contudo, em diversos artigos recentes
bastante debatidos, Cosmides e Tooby argumentaram que uma
análise evolucionária permite-nos ver um padrão surpreendente
nestes (de outra forma desconcertantes) resultados. (Cosmides,
1989, Cosmides e Tooby, 1992)
O ponto de partida da sua análise evolucionária é a constatação
de que no ambiente em que os nossos antepassados evoluíram
( e também no mundo moderno) é frequente que indivíduos
sem qualquer ligação familiar encetem trocas de "resultado-
não-zero", em que os benefícios para o receptor (medidos em
termos de capacidade reprodutiva) são significativamente
maiores que os custos do dador. Por exemplo, numa sociedade
de caçadores-colectores, por vezes acontece que o caçador teve
sorte num determinado dia e tem comida em abundância,
enquanto que outro caçador não teve tanta sorte e arrisca-se a
morrer de fome. Se o caçador que teve sorte der alguma da sua
carne ao caçador que não teve sorte em vez de a guardar para
si mesmo, tal acção poderá ter um pequeno efeito negativo na
forma física do dador, pois a quantidade extra de gordura
corporal que ele iria ganhar poderia vir a ser útil no futuro, mas
os benefícios imediatos para o receptor são muito maiores.
Mesmo assim existe algum custo para o dador; ser-lhe-ia
melhor não ajudar indivíduos com quem não mantivesse laços
familiares. Apesar disso é bastante claro que as pessoas por
vezes ajudam de facto aqueles que não lhes são chegados, e
existem provas que indicam que os primatas não humanos (e
até mesmo os morcegos) também o fazem. À primeira vista,
este tipo de "altruísmo" parece criar um enigma evolucionário,
pois se numa determinada população surgisse um gene que
tornasse um organismo menos dado a ajudar indivíduos não
aparentados, aqueles que possuíssem esse gene seriam
ligeiramente mais aptos, e como tal o gene espalhar-se-ia
gradualmente pelo resto da população.
Robert Trivers (1971) propôs uma solução para este enigma ao
observar que apesar do altruísmo de uma via ser uma má ideia
do ponto de vista evolucionário, o altruísmo recíproco é algo
completamente diferente. Quando dois caçadores (sejam
humanos ou morcegos) podem contar com a ajuda um do outro
(por exemplo, quando um tem carne em abundância e o outro
não tem nada) ambos podem tirar benefícios a longo prazo
dessa reciprocidade. Deste modo os organismos com um gene
ou conjunto de genes que os incline a encetar trocas recíprocas
(ou "trocas sociais" como por vezes são chamadas) com não
familiares seriam mais aptos que os membros da sua espécie
sem esses genes. Mas, é claro, estas trocas recíprocas estão
sujeitas a alguma trapaça. Neste negócio de maximização das
suas capacidades os indivíduos sairão beneficiados se aceitarem
a ajuda que lhes é oferecida sempre que precisarem, mas
nunca retribuírem quando é a vez dos outros precisarem de
ajuda. Isto sugere que se existem trocas sociais estáveis, os
organismos envolvidos devem ter mecanismos cognitivos que
lhes permitam detectar batoteiros, e que evitem que se os
ajude de futuro. E uma vez que, ao que parece, os seres
humanos são capazes de encetar trocas sociais estáveis entre
eles, esta análise evolucionária conduz Cosmides e Tooby à
hipótese de que temos um ou mais módulos darwinianos cuja
função é reconhecer trocas recíprocas e detectar batoteiros que
aceitam os benefícios dessas trocas mas não pagam os seus
custos. Resumindo, a análise evolucionária conduz Cosmides e
Tooby a admitir a existência de um ou mais módulos de
detecção de batoteiros. Chamamos a esta hipótese a hipótese
da detecção do batoteiro.
Se esta hipótese está correcta deveremos ser capazes de
encontrar provas da existência destes módulos nos raciocínios
dos seres humanos actuais. É aqui que entra em cena a tarefa
de selecção. Pois de acordo com Cosmides e Tooby, algumas
versões da tarefa de selecção utilizam os módulos mentais
desenhados para detectar batoteiros em situações de trocas
sociais. E uma vez que é de esperar que estes módulos mentais
façam o seu trabalho cuidadosa e eficientemente, as pessoas
têm uma boa performance nessas versões da tarefa de
selecção. Outras versões da tarefa não accionam os módulos de
detecção de batoteiros e de trocas sociais. Uma vez que não
temos módulos mentais desenhados para lidar com esses
problemas, as pessoas acham-nos muito mais difíceis, e a sua
performance é bastante pior. O problema do segurança no bar
de Boston, apresentado anteriormente, é um exemplo de uma
tarefa de selecção que acciona o mecanismo de detecção do
batoteiro. O problema que utilizava vogais e números ímpares
apresentado na Secção 2 é um exemplo de uma tarefa de
selecção que não acciona um módulo de detecção de batoteiros.
Em apoio da sua teoria, Cosmides e Tooby reuniram um
impressionante corpo de provas. Para começar, afirmam que a
hipótese da detecção do batoteiro exige que as trocas sociais,
"ou contratos sociais", dêem origem a boas performances nas
tarefas de selecção e que isto permite-nos ver um padrão bem
definido naquilo que era, antes da formulação da sua hipótese,
uma confusa literatura experimental. Quando começamos esta
pesquisa em 1983 a literatura acerca da tarefa de selecção de
Wason estava cheia de relatos sobre uma enorme quantidade
de resultados, e não havia uma única teoria satisfatória ou
generalização empírica que explicasse esses mesmos
resultados. Quando nós classificamos estes resultados em
termos de se adaptarem ou não a contratos sociais, surgiu
imediatamente um surpreendente padrão. Apenas se
encontraram resultados sólidos e replicáveis em regras que
estabeleciam uma relação entre termos reconhecíveis como
benefícios e custos/requisitos na forma de um contrato social
standard... Nunca nenhuma regra temática que não fosse um
contrato social produziu resultados que fossem ao mesmo
tempo sólidos e replicável... Ao todo, para os problemas de
contrato não social, houve 3 experiências que produziram
resultados substanciais, 2 produziram resultados fracos e 14
não produziram qualquer efeito. Os poucos resultados
encontrados não se repetiram. Em contraste, 16 das 16
experiências que encaixavam no critério dos contratos sociais
standard... produziram resultados substanciais. (Cosmides e
Tooby, 1992, p.183) Desde a formulação da hipótese da
detecção do batoteiro, foram desenvolvidas algumas
experiências suplementares para testar a hipótese e excluir
alternativas. Entre as mais convincentes estão algumas das
experiências de Gigerenzer e Hug (1992). Num grupo destas
experiências, estes autores pretendem demonstrar que,
contrariamente a uma proposta anterior de Cosmides e Tooby,
somente entender a regra como um contrato social não era
suficiente para accionar o mecanismo cognitivo que conduz a
boas performances na tarefa de selecção, e que era necessário
insinuar a possibilidade de haver batota. Para fazer isto criaram
duas histórias contextuais diferentes sobre regras de contratos
sociais. Uma das histórias pedia aos inquiridos que prestassem
atenção à possibilidade de haver batota, enquanto que na outra
história a batota não era relevante. Entre as regras de contratos
sociais por eles usadas está a seguinte regra que, afirmam, é
muito conhecido entre os montanhistas nos Alpes.
(i.) Se alguém quiser passar a noite na cabana terá de levar
consigo uma pilha de madeira do vale.
A primeira história contextual, a que os investigadores chamam
"a versão batoteira", explica:
Existe uma cabana a grande altitude nos Alpes Suíços, que os
montanhistas usam como abrigo nocturno. Àquela altitude as
temperaturas são muito baixas e, além disso, na cabana não
existe lenha para a fogueira. Como tal, a regra diz que cada
montanhista que vá passar a noite à cabana deve levar consigo
o seu quinhão de madeira. Existem rumores de que a regra
nem sempre é respeitada. Aos inquiridos pediu-se que se
pusessem no papel de um guarda que verifica se algum dos
nossos montanhistas violou a regra. Os quatro montanhistas
eram representados por quatro cartões com as inscrições
"pernoita na cabana", "não levou lenha", "levou lenha", e "não
pernoita na cabana".
A outra história contextual, a versão "não batoteira",
pediu aos inquiridos que se colocassem na pele de um membro
da Associação Alpina Alemã que visita a cabana e procura
descobrir como é que o Clube Alpino Suíço local a gere. Ele
repara que as pessoas trazem lenha para a cabana, e um amigo
sugere-lhe como explicação a conhecida regra de
pernoitamento. A história contextual também menciona uma
explicação alternativa: em vez dos montanhistas poderão ser os
membros do Clube Alpino Suíço, que não pernoitam na cabana,
quem leva a lenha. A tarefa dos inquiridos seria analisar as
quatro pessoas (os mesmos quatro cartões) para descobrir se
alguém violou a regra de pernoitamento sugerida pelo amigo.
(Gigerenzer e Hug, 1992, pp.142-143)
A hipótese da detecção do batoteiro prevê que os inquiridos
terão melhores resultados na versão batoteira que na versão
não batoteira, e essa previsão foi confirmada. Na versão
batoteira, 89% dos inquiridos deu a resposta correcta,
enquanto na versão não batoteira, apenas 53% responderam
correctamente
Noutro conjunto de experiências, Gigerenzer e Hug mostraram
que quando as regras de contratos sociais possibilitam a batota
em ambos os lados, influenciar os inquiridos para uma
perspectiva ou para a outra pode ter uma enorme influência na
performance dos problemas de selecção de tarefas. Uma das
regras utilizadas que possibilita a batota bilateral foi a seguinte:
(ii.) Se um empregado trabalha ao fim de semana deve ter
direito a um dia de folga durante a semana.
Também aqui se formularam duas histórias contextuais
diferentes, uma das quais foi elaborada para levar os inquiridos
a assumir a perspectiva do empregado, enquanto a outra foi
formulada para os levar a assumir a perspectiva do patrão.
A versão do empregado afirmava que trabalhar ao fim de
semana é um benefício para o patrão, pois a empresa pode
fazer uso das suas máquinas tornando-se assim mais flexível.
Trabalhar ao fim de semana, por outro lado, é um prejuízo para
o empregado. A história contextual era sobre um empregado
que, até aí, nunca tinha trabalhado ao fim de semana, mas que
agora está a pensar em trabalhar aos Sábados de vez em
quando, dado que ter um dia de folga durante a semana é um
benefício que faz esquecer os prejuízos de trabalhar ao Sábado.
Existem rumores que a regra já foi violada algumas vezes. A
tarefa dos inquiridos era analisar a informação disponível sobre
quatro colegas para verificar se a regra foi violada. Os quatro
cartões tinham escrito: "trabalhou durante o fim de semana",
"não recebeu um dia de folga", "não trabalhou ao fim de
semana", "recebeu um dia de folga".
Na versão do patrão foi dada a mesma explicação. Foi pedido ao
inquirido que se pusesse na perspectiva de um patrão que
suspeita que a regra já foi violada algumas vezes. A tarefa dos
inquiridos era a mesma da outra perspectiva [a saber, analisar
a informação disponível sobre quatro empregados para verificar
se a regra foi violada]. (Gigerenzer & Hug, 1992, p.154)
Nestas experiências, cerca de 75% dos inquiridos que
assumiram a perspectiva do empregado escolheram as
primeiras duas cartas ("trabalhou durante o fim de semana",
"não recebeu um dia de folga"), enquanto que menos de 5%
escolheram as outras duas cartas. Os resultados dos inquiridos
que assumiram o ponto de vista do patrão foram radicalmente
diferentes. Mais de 60% dos inquiridos escolheram as duas
últimas cartas ("não trabalhou ao fim de semana", "recebeu um
dia de folga") enquanto que menos de 10% escolheram as
primeiras duas.
A análise evolucionária, que fundamenta a hipótese da detecção
do batoteiro, defende que a capacidade de encetar trocas
sociais não poderia ter evoluído se os indivíduos envolvidos não
tivessem algum mecanismo para detectar batoteiros. Contudo,
os nossos antepassados hominídios não teriam tido qualquer
necessidade de desenvolver mecanismos para a detecção de
"altruístas puros" que ajudam os outros mas não esperam
qualquer ajuda em troca. Se existissem indivíduos assim teria
sido, isso sim, útil reconhecê-los para então os poder
prontamente explorar. Contudo, altruístas deste género ficariam
sujeitos a custos de adaptação sem quaisquer benefícios
compensatórios e, como tal, uma análise evolucionária sugere
que seriam preteridos pelo processo de selecção. Dado que os
indivíduos altruístas terão sido raros ou mesmo inexistentes,
não terá havido qualquer pressão selectiva para a formação de
um mecanismo de detecção de altruístas. Estas reflexões
levaram Cosmides e Tooby a teorizar que as pessoas, numa
tarefa de selecção, são melhores a detectar batoteiros que a
detectar altruístas. Para testar esta teoria elaboraram três pares
de problemas. As duas histórias de cada par são bastante
semelhantes, mas enquanto que numa versão os inquiridos
devem procurar batoteiros, na outra devem procurar altruístas.
Num dos pares, ambos os problemas começam com o seguinte
texto:
Você é um antropólogo estudando os Kaluame, um povo
Polinésio que vive em pequenas tribos hostis nas Ilhas Maku no
Pacífico. Você está interessado na forma como o "grande
homem" - chefe da tribo - Kaluame exerce o poder.
O "Grande Kiku" é um grande homem Kaluame conhecido pela
sua crueldade. Como sinal de lealdade, obriga os seus súbditos
a tatuarem a cara. Os membros das outras tribos Kaluame não
têm tatuagens na cara. Grande Kiku fez tantos inimigos nas
outras tribos Kaluame que ser apanhado noutra aldeia com uma
tatuagem na cara é, literalmente, levar um beijo da morte.
Quatro homens de diferentes tribos chegaram aos tropeções,
famintos e desesperados, à aldeia de Grande Kiku. Foram
expulsos das suas respectivas aldeias devido a inúmeros delitos
que aí cometeram, e vieram ter com Grande Kiku pois
precisavam desesperadamente de comida. Grande Kiku oferece
a cada um a seguinte proposta:
"Se fizeres uma tatuagem na cara ofereço-te raiz de mandioca."
A raiz de mandioca é um alimento muito revigorante que o povo
de Grande Kiku cultiva. Os quatro homens estão esfomeados e
então concordam com a proposta de Grande Kiku. Grande Kiku
diz que as tatuagens devem estar prontas nessa mesma noite,
mas que as raízes de mandioca só serão servidas na manhã
seguinte.
Neste ponto os dois problemas divergem. A versão batoteira diz
o seguinte:
Você descobre que Grande Kiku odeia alguns destes homens
por estes uma vez o terem traído.
Você suspeita que Grande Kiku os irá enganar traindo alguns
deles. Como tal, esta é uma oportunidade perfeita para verificar
em primeira mão a forma como Grande Kiku exerce o poder.
Os seguintes cartões contêm informação acerca do destino dos
quatros homens. Cada cartão representa um homem. Um dos
lados do cartão diz-nos se o homem sempre fez a tatuagem na
cara nessa tarde e o outro lado do cartão diz-nos se Grande
Kiku deu ou não ao homem a raiz de mandioca na manhã
seguinte.
Grande Kiku conseguiu enganar algum destes homens? Indique
apenas os cartões que precisa de virar para saber se Grande
Kiku não cumpriu a sua palavra com algum destes quatro
homens.
Já a versão altruísta diz o seguinte:
Você descobriu que Grande Kiku odeia alguns destes homens
por estes uma vez o terem traído. Você suspeita que ele os irá
enganar traindo alguns deles. Contudo, você também ouviu
dizer que por vezes Grande Kiku, surpreendentemente,
demonstra uma enorme generosidade para com os outros - que
por vezes ele é bastante altruísta. Como tal, esta é uma
oportunidade perfeita para verificar em primeira mão a forma
como Grande Kiku exerce o poder.
Os seguintes cartões contêm informação acerca do destino dos
quatros homens. Cada cartão representa um homem. Um dos
lados do cartão diz-nos se o homem sempre fez a tatuagem na
cara nessa tarde e o outro lado do cartão diz-nos se Grande
Kiku deu ou não ao homem a raiz de mandioca na manhã
seguinte.
Grande Kiku comportou-se altruisticamente em relação a algum
destes quatro homens? Indique apenas os cartões que precisa
de virar para saber se Grande Kiku se comportou
altruisticamente em relação a algum destes quatro homens. Os
quatro cartões, idênticos em ambas as versões, eram os
seguintes:
Na versão do problema que pede aos inquiridos que detectem
batoteiros, Cosmides (1989) descobriu que 74% dos inquiridos
responderam correctamente. Contudo, na versão do problema
que pede aos inquiridos que detectem altruístas, apenas 28%
responderam correctamente. (Cosmides e Tooby, 1992, pgs.
93-97)
Estas experiências, juntamente com muitas outras analisadas
por Cosmides e Tooby (1992), são compatíveis com a hipótese
que diz que temos um ou mais módulos darwinianos concebidos
para lidarem com trocas sociais e para detectar batoteiros. No
entanto, esta hipótese é muito controversa. Para explicarem a
informação obtida, muitos outros autores propuseram hipóteses
alternativas, e em alguns casos chegaram mesmo a apoiar
estas hipóteses com provas experimentais suplementares. Uma
das mais discutidas destas alternativas é a abordagem dos
esquemas de raciocínio pragmático defendido por Cheng,
Holyoak e seus colegas. (Cheng e Holyoak, 1985 & 1989;
Cheng, Holyoak, Nisbett e Oliver, 1986). Segundo esta
explicação, o raciocínio é explicado por uma activação de
conjuntos de regras de domínio específico (chamadas
"esquemas") adquiridas ao longo da vida de um indivíduo
através de mecanismos indutivos gerais. Estas regras ajudam
as pessoas nos raciocínios deontológicos (autorizações,
obrigações, etc.) que possam ser usados na sua cultura. Regras
de raciocínio relativas a trocas sociais são apenas uma espécie
de esquema de raciocínio. Uma virtude desta teoria é a
possibilidade de explicar o facto das pessoas terem um bom
desempenho em problemas como o do "segurança no bar de
Boston" que não se adaptam facilmente ao modelo das trocas
sociais recíprocas. No entanto, e conforme argumenta Cummins
(1996), existem poucas provas que permitam afirmar que os
esquemas envolvidos nos raciocínios acerca de autorizações e
obrigações são aprendidos, e, por outro lado, é sugerido por um
grande número de provas que a capacidade de efectuar
raciocínios deontológicos surge relativamente cedo na infância.
Tudo isto, juntamente com uma série de outras provas, levou
Cummins a propor uma intrigante hipótese que integra ideias
tanto da teoria das trocas sociais com da teoria dos esquemas
de raciocínio pragmático. Segundo a hipótese de Cummins, os
raciocínios acerca de "autorizações, obrigações, proibições,
promessas, ameaças e avisos" (p. 166) são ajudados por um
módulo de domínio específico inato, dedicado exclusivamente a
conteúdos deontológicos. Este módulo de raciocínio "evoluiu
para o propósito muito importante de resolver problemas que
frequentemente surgem no interior de uma hierarquia de
dominância - a estrutura social que caracteriza a maior parte
das espécies de mamíferos e de aves." (p. 166) Cummins
defende que um componente central do módulo de raciocínio
deontológico é um mecanismo cujo trabalho é a detecção de
violações. "Para pensar eficazmente acerca de conceitos
deontológicos, é necessário reconhecer o que constitui uma
violação, responder a essa violação adequadamente (algo que
muitas vezes depende do estatuto das partes envolvidas), e
avaliar a necessidade de adoptar uma estratégia de detecção de
violações sempre que se encontre uma situação deontológica."
(p. 166) Em relação aos resultados de outras tarefas de
selecção foram também propostas outras hipóteses por
Oaksford e Chater (1994), Manktelow e Over (1995) e Sperber,
Cara e Girotto (1995).
Este não é o local mais indicado para analisarmos todas essas
teorias, nem sequer arriscaremos um juízo - nem mesmo um
palpite- acerca de qual das teorias é a mais promissora.
Vivemos numa época muito movimentada e emocionante para
aqueles que estudam o raciocínio humano, e, como é óbvio,
está ainda muita coisa por descobrir. Acreditamos que aquilo
que é possível concluir com segurança, a partir dos estudos
relatados nesta secção, é que a hipótese que diz que grande
parte dos raciocínios humanos são ajudados por um conjunto de
módulos darwinianos de domínio específico merece ser levada
muito a sério. Independentemente de, em última análise, se
provar que esta hipótese está certa ou errada, a imagem
altamente modular dos mecanismos que subjazem o raciocínio
deu origem a uma grande quantidade de impressionantes
pesquisas e prevê-se que continue a fazê-lo de futuro. Como
tal, seria bom que começássemos a analisar quais seriam as
implicações para as várias ideias de racionalidade humana se se
vier a descobrir que a Hipótese da Modularidade Maciça está
correcta. Na última secção deste artigo começaremos esta
análise perguntando pelas implicações que a Hipótese da
Modularidade Maciça poderá ter na interpretação que a hipótese
das "Implicações Pessimistas" faz dos estudos experimentais
sobre o raciocínio.

6. Modularidade Maciça, Implicações Pessimistas e


Interpretação Panglossiana

Uma das respostas possíveis à Hipótese da Modularidade Maciça


- chamar-lhe-emos interpretação Panglossiana - defende que se
a HMM estiver correcta a interpretação que a hipótese das
Implicações Pessimistas faz dos estudos experimentais acerca
da racionalidade é completamente insustentável. De acordo com
esta interpretação, os diferentes tipos de resultados
experimentais analisados na Secção 2 reflectem deficiências na
capacidade de raciocínio dos seres humanos. Nessas
experiências, as pessoas lidam com os problemas tirando
partido de métodos heurísticos normativamente problemáticos,
e fazem-no porque não têm nada melhor disponível. "Não
possuem os programas adequados para muitas das tarefas de
raciocínio importantes" (15) pois, como defende Gould, "as
nossas mentes não foram construídas... para trabalhar segundo
regras de probabilidade." (Gould, 1992, p. 469) Mas, de acordo
com a interpretação Panglossiana isto é, muito simplesmente, a
interpretação errada. Se a Hipótese da Modularidade Maciça
está correcta a mente contém " um grande número de...
elegantes máquinas." (Cosmides e Tooby, 1995, p. xiv) Existem
módulos darwinianos que raciocinam de maneiras
normativamente adequadas acerca de probabilidades, trapaças
e ameaças, cálculo da posição de objectos que vêm pelo ar,
mecânica intuitiva, biologia intuitiva, psicologia intuitiva e muito
mais. Como tal, os seres humanos têm de facto acesso a
programas adequados a importantes tarefas de raciocínio, as
nossas mentes possuem módulos darwinianos construídos para
"trabalhar segundo regras de probabilidade," e os seres
humanos, "afinal de contas, são bons estatísticos intuitivos." Os
erros denunciados na literatura experimental, se forem
realmente erros (16), são simplesmente erros de performance,
e a hipótese das Implicações Pessimistas deverá ser rejeitada.
Não estamos de todo seguros que alguém defenda esta versão
muito forte da interpretação Panglossiana, apesar de
suspeitarmos que muita gente aprovaria uma versão mais vaga
e cautelosa (17). Não acreditamos que se possa defender algo
do género da versão forte da interpretação Panglossiana, no
entanto pensamos que se pode aprender muita coisa analisando
os erros desta interpretação.
Uma objecção bastante clara à interpretação Panglossiana
começa por observar que a literatura experimental sobre o
raciocínio humano documentou muitos tipos diferentes de
problemas em que os inquiridos tiveram um mau desempenho.
Aqueles problemas estudados na Secção 2 são uma amostra
pequena e muito selectiva. Se a interpretação Panglossiana
estiver correcta as pessoas deverão ter módulos darwinianos
capazes de tratar de uma forma normativamente adequada
todos os problemas em que os inquiridos tenham um mau
desempenho, mesmo que, por uma razão ou por outra, a
performance dos inquiridos não espelhe a sua competência
subjacente. Esta é, obviamente, uma pretensão muito forte,
muito mais forte do que aquilo que as provas actualmente
disponíveis poderão corroborar. Nem sequer existe qualquer
argumento evolucionário plausível que indique que a selecção
natural nos tenha provido de módulos darwinianos capazes de
lidar com todos estes casos. Como tal, a interpretação
Panglossiana apoia-se numa arrojada suposição com
relativamente pouco apoio empírico ou teórico. Mas mesmo que
ponhamos tudo isto de lado e nos concentremos naqueles casos
em que existem algumas provas da existência de um módulo
darwiniano, continuam, ainda assim, a existir sérios problemas
com a ideia Panglossiana de que todos os erros são erros de
performance.
Para nos concentrarmos nestes problemas comecemos por
tomar em consideração o problema da "palavra de sete letras"
de Kahneman e Tversky, discutido na Secção 5.1. Nesse
problema não se perguntava aos inquiridos acerca da
probabilidade de um acontecimento em particular. Em vez
disso, era-lhes pedido que fizessem uma estimativa da
frequência de palavras na forma de "----ing" e de palavras na
forma de "-----n-" num texto de quatro páginas. Todavia,
apesar de lhes ter sido pedido que fizessem uma estimativa das
frequências, a maior parte dos inquiridos disse que o número de
palavras "----ing" era maior que o número de palavras "------n-
". Se, como os defensores da HMM argumentam, temos um ou
mais módulos darwinianos que fazem bons raciocínios
probabilísticos quando os problemas são apresentados em
termos de frequências, como é que se pode explicar o erro
cometido por estes inquiridos? Uma hipótese aceitável é que em
vez de utilizarem os seus módulos de raciocínio probabilístico,
os inquiridos confiam naquilo que Kahneman e Tversky chamam
"disponibilidade heurística." Procuram na memória exemplos de
palavras na forma de "----ing" e também de palavras na forma
de "------n-" e, devido à maneira como a nossa memória desses
factos está organizada, saem dessa busca com muito mais das
primeiras que das últimas. Mas perguntemos agora por que é
que os inquiridos (ou os seus sistemas cognitivos) lidam com os
problemas desta maneira. Por que é que não utilizam um
módulo de raciocínio probabilístico que, presumivelmente, não
produziria respostas que violam a regra da conjunção? É
possível que, para um defensor da HMM, a hipótese mais
natural seja a existência dum mecanismo na mente (ou talvez
mais do que um) cuja função é determinar quais dos muitos
módulos de raciocínio e regras heurísticas disponíveis numa
mente Modular Maciça são chamados para resolver um
determinado problema, e que este mecanismo, que
chamaremos de mecanismo de distribuição, está a encaminhar
o problema para o componente errado do sistema de raciocínio.
Se isto estiver correcto, e se além disso supusermos que esta
má distribuição é o resultado de características persistentes e
sistemáticas do mecanismo de distribuição, parecerá natural
concluir que o mecanismo de distribuição é, ele mesmo,
normativamente problemático. Produz erros de raciocínio
enviando os problemas para o sítio errado.
Se esta especulação estiver correcta - se certos erros de
raciocínio são realmente gerados por um mecanismo de
distribuição normativamente problemático - nesse caso
parecerá estranho dizer que os erros daí resultantes são "erros
de performance." Pois ao contrário dos erros de performance
que resultam de fadiga, álcool ou stress emocional, neste caso
não são factores externos ao sistema de raciocínio que
interferem com o seu normal funcionamento obrigando-o a
funcionar de uma forma que normalmente não funciona. Ao
lidar com problemas como o da "palavra de sete letras", o
mecanismo de distribuição funciona de uma maneira
perfeitamente normal. O erro de raciocínio acontece porque
essa maneira normal de funcionar envia problemas como este
para o sítio errado. Isto também não se assemelha aos erros de
performance produzidos pelo processamento linguístico como
resultado de uma memória de curto prazo limitada. Nenhum
recurso se esgota nestes casos de má distribuição, nenhum
parâmetro é excedido. O inquirido dá a resposta errada porque
os princípios que regulam o funcionamento do sistema de
distribuição são, eles mesmo, normativamente defeituosos.
Existe (conforme temos vindo a dizer) um módulo darwiniano
capaz de resolver o problema e o mecanismo de distribuição
não lhe envia o problema. Neste ponto, um defensor da
interpretação Panglossiana poderá insistir que, como as regras
indicadas para lidar com estes casos de raciocínios defeituosos
estão disponíveis na mente dos inquiridos, os erros não
resultam de uma competência defeituosa e, como tal, os erros
de distribuição devem ser mais um género de erros de
performance. Este argumento supõe que existem apenas dois
tipos de erros cognitivos - erros de performance e erros de
competência - e que qualquer erro que não seja de um tipo terá
de ser forçosamente do outro. Mas esta não é uma suposição
que sejamos obrigados a aceitar. Dado que os erros de má
distribuição não são entendidos nem como erros de
competência, nem como erros de performance, inclinamo-nos a
pensar que uma das lições que podemos retirar de exemplos
como este é que numa Mente Maciçamente Modular a distinção
erro de performance / erro de competência não esgota todas as
possibilidades.
Viremo-nos agora para a versão original do problema da
bancária feminista (Sec. 2.2) e para a versão original do
problema da "Harvard Medical School" de Casscells et. al. (Sec.
2.3). Em ambos os casos os inquiridos tiveram um mau
desempenho. Como é que um defensor da Hipótese da
Modularidade Maciça explica este mau desempenho? Uma
hipótese é a de estes problemas serem mais alguns exemplos
de erros de distribuição e que existe um módulo de raciocínio
que os teria resolvido correctamente se eles tivessem sido
dirigidos para lá. Mas existe também uma possibilidade muito
diferente a ser explorada. Os módulos darwinianos são
concebidos pela selecção natural para lidarem com problemas
recorrentes de processamento de informação. Para permitir que
um módulo trate eficazmente os problemas, uma das
estratégias que a selecção natural poderá explorar será a de
conceber o módulo de maneira a que este apenas lide com êxito
com um problema se o problema lhe for apresentado no
formato adequado ou num sistema de representação adequado.
Como tal, Gigerenzer afirma que uma vez que os formatos
frequencistas desempenharam o papel mais importante nos AAE
seria de esperar que os módulos mentais que tratam dos
raciocínios probabilísticos fossem concebidos para "esperar"
esse formato e que fossem incapazes de resolver os problemas
com êxito quando estes lhes são apresentados noutro formato
qualquer. Se Gigerenzer tem razão, os módulos que facilitam os
bons raciocínios bayesianos simplesmente não conseguem
resolver problemas colocados em termos de probabilidades de
acontecimento único. Mas nesse caso, os erros dos inquiridos na
versão original do problema da "Harvard Medical School" e no
problema da bancária feminista não podem ser tratados como
erros de distribuição, dado que o sistema de distribuição não os
enviou para o sítio errado. Não tem qualquer sítio bom para os
enviar. Nos inquiridos comuns não existe qualquer módulo ou
componente do sistema de raciocínio que possua os algoritmos
adequados para lidar com o problema conforme foi colocado.
Se estas especulações estiverem correctas, poderá ser tentador
concluir que os erros são erros de competência e que, por
conseguinte, a interpretação das Implicações Pessimistas
conquistou uma posição firme mesmo no interior da imagem
Maciçamente Modular da mente. No entanto, embora esta
questão possa ser em grande medida terminológica, não
estamos completamente à vontade com a conclusão que diz que
estes erros são erros de competência. Pois apesar de ser
verdade que os pressuposto módulos darwinianos não contêm
algoritmos capazes de lidar com os problemas conforme foram
colocados, também é verdade que os módulos contêm
algoritmos para lidar com versões reformuladas dos problemas.
Como tal, é possível melhorar a performance das pessoas
nestes problemas sem modificar a sua competência e
enriquecendo os algoritmos de raciocínio que a mente põe à
disposição. Pois é possível ensiná-las a reformular os
problemas, apresentando-os num formato que os seus módulos
darwinianos sejam capazes de processar. Como a distinção
entre aqueles erros que podem e aqueles que não podem ser
evitados reformulando o problema é potencialmente muito
importante, julgamos que os erros evitáveis merecem uma
categoria própria. Chamar-lhes-emos erros de formulação.
Um dos argumentos centrais da interpretação Panglossiana diz
que todos os erros relatados na literatura experimental são
meramente erros de performance. Mas acabamos de ver duas
razões distintas para suspeitarmos desse argumento. Se a
Hipótese da Modularidade Maciça estiver correcta é provável
que alguns dos erros de raciocínio sejam erros de má
distribuição, enquanto que outros podem ser erros de
formulação. Segundo o nosso ponto de vista, a conclusão a
retirar da Hipótese da Modularidade Maciça não é a de que
todos os erros são erros de performance, mas antes a de que
existem muitos tipos de erros importantes que não podem ser
facilmente caracterizados quer como erros de performance quer
como erros de competência. Se a HMM estiver correcta, a
suposição de que todos os erros de raciocínio são somente erros
de performance ou de competência terá de ser abandonada.
O outro argumento central avançado pela interpretação
Panglossiana diz que a mente está bem provida de módulos
darwinianos que raciocinam de maneiras normativamente
adequadas. Nas restantes páginas deste capítulo teremos em
consideração alguns dos problemas que confrontam esta
componente da interpretação Panglossiana. O primeiro
problema assenta naquilo que se poderá chamar teoria
normativa geral do raciocínio uma teoria que especifica os
padrões pelos quais qualquer mecanismo de inferência ou
estratégia de raciocínio deverá ser avaliada. Na filosofia existe
um grande debate acerca das teorias normativas gerais
concorrentes (18). Alguns teóricos defendem explicações
fiabilistas nas quais a obtenção de crenças verdadeiras
desempenha um papel central. Outros defendem explicações
em que a obtenção de objectivos pragmáticos como a saúde e a
felicidade são centrais. Outros ainda, alegam que as estratégias
de raciocínio deveriam ser avaliadas apelando às nossas
intuições reflexivas acerca do que é e do que não é racional.
Este não é o local indicado para analisar os argumentos a favor
e contra estas teorias normativas gerais. Em vez disso,
presumiremos, como temos vindo a fazer ao longo deste
capítulo, que alguma versão do fiabilismo está correcta e que a
verdade desempenha um papel central na avaliação dos
mecanismos de inferência. Um mecanismo de inferência é
melhor que outro se desempenhar melhor o seu papel na
obtenção da resposta correcta. Mas mesmo supondo que o
fiabilismo é a teoria geral normativa do raciocínio correcta, a
especificidade de domínio dos módulos darwinianos coloca um
conjunto de problemas novos e invulgares que a epistemologia
tradicional ainda não estudou.
Tenha em consideração, por exemplo, o módulo que auxilia o
raciocínio sobre contratos sociais. Podemos supor que este
módulo é relativamente bom a responder a perguntas acerca de
fraudes e violações contratuais. Mas existem também muitos
mais problemas - por exemplo, problemas de aritmética
elementar, problemas de "teoria da mente" sobre as crenças e
os comportamentos das pessoas em determinadas situações -
para os quais o módulo dos contractos sociais não produz a
resposta certa; na verdade, não produz qualquer resposta. Mas
certamente que não estaria correcto criticar o módulo dos
contratos sociais por este não conseguir resolver problemas
matemáticos. Isto seria um pouco como criticar uma torradeira
por esta não poder ser usada como uma máquina de escrever.
Para avaliarmos uma torradeira devemos ter em conta a sua
performance no leque de tarefas que se lhe adequam e,
manifestamente, escrever uma carta não é uma delas. Do
mesmo modo, para avaliarmos o módulo dos contractos sociais
devemos ter em conta a sua performance no leque de tarefas
que se lhe adequam, e resolver problemas matemáticos não é
uma delas. A moral desta história parece bastante óbvia: as
avaliações normativas dos módulos de domínio específico
devem ser relativas a um domínio específico ou a um leque
específico de problemas. Mas esta conclusão levanta
imediatamente outro problema: Se as avaliações normativas
dos módulos de domínio específico devem ser relativas a um
domínio, que domínio deverá ser esse?
Uma hipótese é que o domínio adequado é aquele a que
Sperber (1994) chama o domínio real. O domínio real para um
dado módulo de raciocínio é "toda a informação no ambiente do
organismo que (uma vez processado por módulos perceptuais
e, possivelmente, por outros módulos conceptuais) satisfaz as
condições de input do módulo." (p. 52) Por "condições de input"
Sperber entende aquelas condições que têm de ser satisfeitas
para que o módulo seja capaz de processar uma determinada
parcela de informação. Assim, por exemplo, se um módulo
requer que um problema seja colocado num determinado
formato, qualquer informação que não seja colocada nesse
formato não satisfaz as condições de input do módulo.
Uma hipótese bastante diferente é a que diz que o domínio
aplicável à avaliação dos módulos de domínio específico é o que
Sperber chama de domínio próprio, e que caracteriza como
"toda a informação cuja função biológica do módulo é
processar." (p. 52) O domínio próprio é aquela informação que
a selecção natural destinou o módulo a processar.
Recentemente, muitos filósofos da biologia têm vindo a
considerar a noção de função biológica como uma noção
particularmente escorregadia (19). Para o que nos interessa
neste momento podemos confiar na seguinte caracterização: As
funções biológicas de um sistema são as actividades ou efeitos
do sistema em virtude dos quais este permaneceu uma
característica sólida de uma espécie estável.
Em alguns casos o domínio real de um módulo darwiniano
poderá coincidir com o seu domínio próprio. Mas também é
provável que em muitos casos os dois domínios não sejam
idênticos. Por exemplo, podemos supor que o domínio próprio
dos módulos da "psicologia popular" apenas incluem o tipo de
informação relativa aos estados mentais dos seres humanos, e
ao comportamento causado por esses estados, que teria sido
útil aos nossos antepassados do Pleistoceno. Mas é muito
provável que o módulo também processe informação acerca de
muitas outras coisas incluindo actividades de animais não
humanos, personagens de banda desenhada, e até mesmo
objectos físicos sem consciência como as árvores e os corpos
celestes. Se isto estiver correcto, uma avaliação normativa de
um módulo relativamente ao seu domínio próprio é capaz de ser
bem mais favorável que uma avaliação normativa de um
módulo relativamente ao seu domínio real. Suspeitamos que os
teóricos que se sentem inclinados para a interpretação
Panglossiana, que descrevem os módulos darwinianos como
"máquinas elegantes", estão a assumir tacitamente que a
avaliação normativa deverá ser relativa ao domínio próprio,
enquanto que aqueles que avançam com uma apreciação mais
pessimista da racionalidade humana estão tacitamente a
relacionar as suas avaliações com o domínio real que, no mundo
moderno, contém uma grande quantidade de desafios ao
processamento de informação totalmente diferentes daqueles
com que os nossos antepassados do Pleistoceno tiveram que se
confrontar.
Então, que domínio deveremos utilizar para avaliar o módulo, o
domínio próprio ou o domínio real? Qual destes é o domínio
correcto? Na nossa opinião não existe, neste caso, apenas uma
resposta correcta. Em vez disso afirmamos que as pretensões
normativas relativas aos módulos darwinianos ou aos
algoritmos que estes incluem não fazem qualquer sentido até
que sejam explicita ou implicitamente relacionadas com um
domínio particular. Além do mais, o dilema com que nos
confrontamos é, na verdade, muito mais complexo do que
aquilo que foi sugerido até agora. Pois tanto os domínios reais
como os domínios próprios são mais bem compreendidos se
forem encarados como opções de famílias e não como opções
singulares. Existem diferentes maneiras de analisar tanto a
noção de domínio próprio como a noção de domínio real e estas
diferenças fazem diferença, em alguns casos uma grande
diferença, no resultado de apreciações normativas relativizadas.
(Ver Samuels, em preparação) Nem deveremos supor que os
domínios reais e os domínios próprios são as duas únicas
famílias de opções a ter em consideração. As apreciações
normativas podem servir diferentes propósitos e para alguns
destes poderá ser adequado relacioná-los a um domínio que
não seja nem real nem próprio.
Como tal, concluímos que nem a interpretação Panglossiana
nem a interpretação das Implicações Pessimistas nos dão uma
resposta satisfatória à Hipótese da Modularidade Maciça. Se é
verdade que as nossas mentes contêm um grande número de
módulos darwinianos, e que esses módulos auxiliam a maior
parte dos nossos raciocínios quotidianos, então muitas das
categorias e distinções que os filósofos e os cientistas cognitivos
têm utilizado para descrever e analisar o conhecimento terão de
ser reavaliadas ou abandonadas. Se a Hipótese da Modularidade
Maciça estiver correcta, teremos que repensar o significado do
termo "racionalidade".

Agradecimentos

Versões anteriores de algum deste material serviram de base


para conferências na City University of New York (Graduate
Center), Canterbury University em Christchurch New Zealand,
Rutgers University e no 5º Colóquio Internacional sobre Ciência
Cognitiva em San Sebastian, Espanha. Agradecemos os muitos
comentários e críticas apresentados nestas ocasiões. É devido
um agradecimento especial a Kent Bach, Michael Bishop,
Margaret Boden, Derek Browne, L. Jonathan Cohen, Jacj
Copeland, Stephen Downes, Mary France Egan, Richard Foley,
Gerd Gigerenzer, Daniel Kahneman, Ernie LePore, Brian
McLaughlin, Brian Scholl, e Ernest Sosa.

Notas
(1) A versão inglesa original deste texto ("Rethinking
Rationality: From Bleak Implications to Darwinian Modules") foi
inicialmente publicada em What Is Cognitive Science?, E. LePore
& Z. Pylyshyn (eds.), Oxford, Blackwell, 1999 (pp. 74-120). O
texto foi também publicado em K. Korta, E. Sosa & X. Arrazola
(eds.), Cognition, Agency, and Rationality, Proceedings of the
Fifth International Colloquium on Cognitive Science (ICCS-97),
Dordrecht, Kluwer, 1999 (pp. 21-62).
(2) Se bem que pelo menos um filósofo já tenha argumentado
que esta aparência é ilusória. Num importante e extensamente
debatido artigo, Cohen (1981) oferece uma análise do que é
para uma de regra de raciocínio ser normativamente correcta, e
segundo a sua descrição a capacidade de raciocínio de uma
pessoa normal tem de ser normativamente correcta. Assim,
segundo a opinião de Cohen, as pessoas normais podem fazer,
e na verdade fazem, muitos erros de performance tanto no
raciocínio como na linguagem, mas não existem, em nenhum
desses domínios, erros de competência. No entanto, um grande
número de críticos, incluindo um dos autores deste artigo,
afirmam que a descrição de Cohen daquilo que é, para uma
regra de raciocínio, ser correcta está errada. (Stich, 1990,
Ch.4). Para a resposta de Cohen, ver Cohen (1986), e para um
análise bem informada do debate, ver Stein (1996).
(3) Numa passagem frequentemente citada, Kahneman e
Tversky escrevem: "Ao fazerem previsões e juízos, as pessoas,
quando inseguras, não parecem seguir o cálculo de
probabilidades ou a teoria estatística da previsão. Em vez disso,
confiam num número limitado de estratégias heurísticas que por
vezes produzem juízos razoáveis e outras vezes conduzem a
erros graves e sistemáticos." (1973, p.237) Mas isto não os
compromete com a afirmação de que as pessoas não seguem o
cálculo de probabilidades ou a teoria estatística da previsão
porque estas características não fazem parte da sua
competência cognitiva. E num artigo mais recente reconhecem
que em alguns casos as pessoas são guiadas por regras
normativas apropriadas. (Kahneman e Tversky, 1996, p. 587)
Como tal, não pensam que as pessoas não conhecem as regras
adequadas, mas apenas que muitas vezes não as utilizam
quando devem.
(4) Para alguns estudos empíricos pioneiros sobre esta assunto,
ver Nisbett, Fong, Lehman e Cheng (1987), Lehman, Lempert e
Nisbett (1988) e Lehman e Nisbett (1990).
(5) Apesar de não podermos aprofundar este assunto aqui, não
vemos por que razão a noção de módulo computacional
conexionista - i.e. um sistema computacional conexionista de
domínio específico - não poderá ser uma noção teoricamente
interessante. Para uma primeira tentativa de desenvolver
módulos conexionistas deste género, ver Tanehaus et al.
(1987).
(6) Aqui estão algumas das características que Fodor atribui aos
módulos: 1) Fechamento à Informação: Um módulo tem pouco
ou nenhum acesso a informação que não esteja contida na sua
própria base de dados. Isto não deve ser confundido com o tipo
de acesso limitado característico de um módulo
chomskyano/computacional, onde a informação a que um
módulo computacional tem acesso não está disponível para os
outros componentes do sistema; 2) Obrigatoriedade: Não
podemos controlar se um módulo se aplica ou não a
determinado input; 3) Velocidade: Comparados com os
sistemas não modulares, os módulos processam a informação
muito rapidamente; 4) Superficialidade: Os módulos só nos dão
uma caracterização preliminar de input; 5) Localização
Neuronal: Os mecanismos neuronais estão associados a uma
arquitectura neuronal fixa; 6) Susceptibilidade a Degradação
Característica: Como os módulos estão associados a uma
arquitectura neuronal fixa, eles exibem padrões de degradação
característicos (Fodor, 1986, p.15); 7) Inacessibilidade de
outros processos às suas representações intermédias: Os outros
sistemas têm um acesso limitado ao que se está a passar
dentro de um módulo.
(7) É esta a sua teoria de como as pessoas atribuem estados
mentais umas às outras e os usam para prever
comportamentos.
(8) Para uma das primeiras tentativas de desenvolver uma
descrição da mente completamente modular, ver Gardner
(1983)
(9) Para mais alguma discussão sobre a Hipótese da
Modularidade Maciça, ver Pinker, 1997, Capítulo 1, pp. 27-8.
(10) Para outros argumentos teóricos a favor da ideia de mente
enquanto maciçamente modular, ver Marr (1983, p. 102),
Cosmides e Tooby (1987, 1992, 1994), Pinker (1994, 1997) e
Sperber (1994). Para alguns argumentos contra a HMM, ver
Fodor (1983, Parte IV, Karmiloff - Smith (1992, Cap.1), Quartz
e Sejnowski (1994). Para uma análise mais sistemática do
debate, ver Samuels (em preparação a).
(11) Cosmides e Tooby chamam `hipótese frequencista´ à
"hipótese dos nossos mecanismos de raciocínio indutivo terem
sido concebidos para actuarem com representações
frequencistas e para produzirem essas representações." (p. 21),
e afirmam que Gerd Gigerenzer foi o primeiro a formular esta
hipótese. Ver, por exemplo, Gigerenzer (1994, p.142).
(12) Cosmides e Tooby usam o termo "bayesiano" com um "b"
minúsculo para caracterizar qualquer procedimento cognitivo
que produza respostas que satisfaçam a regra de Bayes.
(13) Este é o texto usado nas experiências E2 - C1 e E3 - C2 de
Cosmides e Tooby.
(14) Numa outra versão do problema, Cosmides e Tooby
procuraram saber se uma percentagem ainda maior daria a
resposta bayesiana correcta se os inquiridos fossem obrigados a
"construir activamente uma representação frequencista visual
concreta da informação do problema." (34) Naquela versão do
problema, 92% dos inquiridos deram a resposta bayesiana
correcta.
(15) Slovic et. al., 1976, p. 174.
(16) Gigerenzer (1991 e 1994, Gigerenzer & Murray, 1987)
afirma que em muitos casos os erros putativos não são de todo
erros, e que aqueles que pensam que o são estão a confiar em
teorias normativas de raciocínio erradas ou demasiado
simplistas. O desafio de Gigerenzer levanta muitas questões
importantes e interessantes acerca da natureza da racionalidade
e da análise do raciocínio. Uma discussão detalhada destes
assuntos levar-nos-ia muito para além dos limites deste
capítulo.
(17) Ver, por exemplo, Pinker (1997), p.345.
(18) Ver, por exemplo, Goldman 1986, e Stich 1990.
(19) Ver, por exemplo, Godfrey-Smith (1994), Neander (1991)
e Platinga (1993).

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Intelectu no 9 - Outubro de 2003


Intelectu no 9 - Outubro de 2003

Verdade e probabilidade (excerto)


Frank Ramsey, Trad. Pedro Madeira

Quando estão perante a nossa mente várias hipóteses que


cremos serem mutuamente exclusivas e exaustivas, mas acerca
das quais nada mais sabemos, nós distribuímos a nossa crença
igualmente entre elas.... Sendo isto aceite como uma descrição
da maneira pela qual nós realmente distribuímos a nossa crença
em casos simples, a totalidade da teoria seguinte segue-se
como uma dedução da maneira pela qual devemos distribuir a
nossa crença em casos complexos de modo a sermos
consistentes. - W. F. Donkin.

Graus de crença
O tema da nossa investigação é a lógica das crenças parciais, e
não penso que possamos levá-la longe a não ser que tenhamos,
pelo menos, uma noção aproximada do que é uma crença
parcial, e de que maneira pode ser medida (se é que pode ser
medida). Não será muito esclarecedor dizerem-nos que em tais
e tais circunstâncias seria racional acreditar numa proposição
com um grau de 2/3, a não ser que saibamos o que significa ter
tal tipo de crença. Portanto, devemos tentar desenvolver um
método puramente psicológico de medir as crenças. Não é
suficiente medir a probabilidade; de modo a adequar a nossa
crença à probabilidade, devemos também ser capazes de medir
a nossa crença.
É uma posição comum que as crenças e outras variáveis
psicológicas não são mensuráveis, e, se isto é verdade, a nossa
investigação será em vão; e também toda a teoria da
probabilidade concebida como uma lógica das crenças parciais;
porque se a expressão "uma crença com dois terços de
confiança" não tem significado, um cálculo cujo único objectivo
seja o de recomendar tais crenças não terá, igualmente,
qualquer significado. Portanto, a não ser que estejamos
preparados para dizer que isto é tudo uma má ideia e
abandonar o projecto inteiro, estamos forçados a defender que
as crenças podem, até certo ponto, ser medidas. Se
seguíssemos a analogia da análise das probabilidades do senhor
Keynes, diríamos que algumas crenças eram mensuráveis, e
outras não: mas esta não me parece ser a posição correcta em
relação a esta questão: não estou a ver como possamos traçar
uma divisão precisa entre crenças que ocupam uma posição na
escala numérica e outras que não ocupam. Penso, porém, que
as crenças diferem, em termos de mensurabilidade, de duas
maneiras. Em primeiro lugar, algumas crenças podem ser
medidas com mais exactidão que outras. Em segundo lugar, a
outras não: mas esta não me parece ser a posição correcta em
relação a esta questão: não estou a ver como possamos traçar
uma divisão precisa entre crenças que ocupam uma posição na
escala numérica e outras que não ocupam. Penso, porém, que
as crenças diferem, em termos de mensurabilidade, de duas
maneiras. Em primeiro lugar, algumas crenças podem ser
medidas com mais exactidão que outras. Em segundo lugar, a
medição das crenças é, quase de certeza, um processo ambíguo
que conduz a uma resposta que varia consoante o modo como a
medição foi conduzida. O grau de uma crença é, neste aspecto,
como o intervalo de tempo entre dois acontecimentos; antes de
Einstein, partia-se do princípio de que todas as maneiras
comuns de medir um intervalo de tempo conduziam ao mesmo
resultado, desde que realizadas como deve ser. Einstein
mostrou que isto não era verdade; e o intervalo de tempo não
pode mais ser visto como uma noção clara, devendo ser
descartada de todas as investigações exactas. No entanto, o
intervalo de tempo e o sistema newtoniano são suficientemente
exactos para muitos fins e mais fáceis de aplicar.
Argumentarei, mais tarde, que o grau de uma crença é tal como
um intervalo de tempo; não tem qualquer significado preciso a
não ser que especifiquemos mais precisamente como é que
deve ser medido. Mas, para muitos fins, podemos partir do
princípio de que as maneiras alternativas de medir os graus de
crença conduzem ao mesmo resultado, embora isto seja apenas
aproximadamente verdade. As discrepâncias resultantes são
mais flagrantes em relação a algumas crenças do que a outras,
e estas parecem, portanto, menos mensuráveis. Ambos os tipos
de problema na mensurabilidade - com origem,
respectivamente, na dificuldade em obter uma medição
suficientemente exacta, e numa ambiguidade importante na
definição do processo de medição - ocorrem também na física,
pelo que não são dificuldades exclusivas do nosso problema; o
que é exclusivo é que é difícil formar qualquer opinião sobre
como a medição deva ser conduzida, como uma unidade deva
ser obtida, e por aí adiante.
Consideremos, então, o que está implicado na medição de
crenças. Um sistema satisfatório deve, em primeiro lugar,
atribuir a qualquer crença uma magnitude ou grau que tenha
uma posição definida numa escala de magnitudes; crenças que
sejam do mesmo grau que uma terceira crença deverão ter
ambas o mesmo grau, e por aí adiante. É claro que isto não
pode ser realizado sem introduzir uma certa quantidade de
hipóteses ou ficção. Nem na física nós podemos afirmar que as
coisas que são iguais a uma terceira coisa são iguais uma à
outra, a não ser que tomemos "igual" não como "sensivelmente
igual", mas como uma relação fictícia ou hipotética. Não
pretendo discutir a metafísica ou a epistemologia deste
processo; apenas notar que, se é permissível em física, também
é permissível em psicologia. A simplicidade lógica que é
característica das relações com que se lida numa ciência jamais
é atingida pela natureza sem a intromissão de alguma ficção.
Mas construir uma série ordenada de graus não constitui a
totalidade da nossa tarefa; também temos que atribuir números
a esses graus de alguma maneira inteligível. É claro que
podemos explicar facilmente que designamos crença total por 1,
crença total na contraditória por 0, e crenças iguais numa
proposição e na sua contraditória por 1/2. Mas não é assim tão
fácil dizer o que se quer dizer com uma crença com 2/3 de
confiança, ou uma crença na proposição ser duas vezes mais
forte que a crença na sua contraditória. Esta é a parte mais
difícil da tarefa, mas é absolutamente necessária; porque nós
calculamos, efectivamente, probabilidades numéricas, e de
modo a que elas correspondam a graus de crença, temos que
descobrir alguma maneira definida de associar números a graus
de crença. Em física, nós associamos frequentemente números
através da descoberta de um processo físico de soma
(Campbell, 1920, p. 277): os números-medida de
comprimentos não são atribuídos arbitrariamente, estando
apenas sujeitos à condição de que o maior comprimento deva
ter a maior medida; eles também são determinados ao decidir-
se um significado físico para a soma; o comprimento obtido ao
se juntar dois comprimentos deve ter por medida a soma
dessas medidas. Um sistema de medição no qual nada há de
correspondente a isto é imediatamente reconhecido como
arbitrário, por exemplo a escala de dureza de Mohs (Campbell,
1920, 271), na qual 10 é arbitrariamente atribuído ao diamante,
o material mais duro conhecido, 9 ao seguinte em termos de
dureza, e por aí adiante. Temos, por isso, que encontrar um
processo de soma de graus de crença, ou algum substituto para
isto que seja igualmente adequado para determinar uma escala
numérica.
Este é o nosso problema: como havemos de o resolver? Penso
que há dois lados por onde podemos começar. Podemos, em
primeiro lugar, supor que o grau de uma crença é algo
perceptível pelo seu possuidor. Podemos supor, por exemplo,
que as crenças diferem na intensidade de um sentimento pelo
qual se fazem acompanhar, o qual pode ser denominado
"sentimento-de-crença" ou "sentimento-de-convicção", e que
por "grau de crença" nos referimos à intensidade deste
sentimento. Esta posição seria bastante inconveniente, dado
que não é fácil atribuir números às intensidades dos
sentimentos; mas, sem contar com isto, parece-me
comprovadamente falsa, dado ser frequente que as crenças em
que depositamos mais confiança não vêm acompanhadas por
qualquer sentimento que seja; ninguém crê com muita
vivacidade em coisas que ele toma por certas.
Nós somos conduzidos, portanto, para a segunda suposição de
que o grau de uma crença é uma propriedade causal dessa
crença, que pode ser expressa vagamente como o ponto até ao
qual estaríamos preparados para agir com base nela. Esta é
uma generalização da posição bem conhecida de que o que
diferencia as crenças é a sua eficácia causal, posição essa que é
discutida pelo senhor Russell no seu Analysis of mind. Ele aí
rejeita-a por duas razões, uma das quais parece falhar
completamente o alvo. Ele argumenta que, no decurso de
pensamentos, acreditamos em muitas coisas que não conduzem
à acção. Esta objecção é, porém, irrelevante, dado que não é
afirmado que uma crença é uma ideia que leva realmente à
acção, mas uma ideia que levaria à acção em circunstâncias
apropriadas; tal como um bocado de arsénico é chamado
venenoso não porque efectivamente tenha matado ou matará
alguém, mas porque mataria qualquer pessoa que o comesse. O
segundo argumento do senhor Russell é, todavia, ainda mais
incrível. Ele nota que não é possível supor que as crenças
difiram das outras ideias apenas nos seus efeitos, porque se
elas fossem idênticas no resto, os seus efeitos seriam, também,
idênticos. Isto é inteiramente verdadeiro, mas poderá dar-se
ainda o caso de que a natureza da diferença entre as causas
seja inteiramente desconhecida, ou conhecida muito
superficialmente, e que aquilo de que queiramos falar seja a
diferença entre os efeitos, que é prontamente observável e
importante.
Assim que passamos a pensar nas crenças quantitativamente,
esta parece-me a única posição que podemos tomar em relação
a elas. Poderia perfeitamente ser defendido que a diferença
entre acreditar e não acreditar reside na presença ou ausência
de crenças introspeccionáveis. Mas quando procuramos saber
qual é a diferença entre acreditar mais firmemente e menos
firmemente, não podemos continuar a pensar que consiste em
ter alguns sentimentos observáveis em maior ou menor
quantidade; eu pessoalmente, pelo menos, não consigo
descobrir tais sentimentos. Parece-me que a diferença reside
em até que ponto é que nós agiríamos com base nestas
crenças: isto pode estar dependente do grau de algum
sentimento ou sentimentos, mas não sei exactamente que
sentimentos e não vejo que seja indispensável que saibamos. O
mesmo se passa em física; foi descoberto que um fio, imerso
em ácido, ligando chapas de zinco e cobre, repelia uma agulha
magnetizada que se encontrava nas redondezas. Consoante a
agulha fosse mais ou menos repelida, dizia-se que o fio
transportava uma corrente maior ou menor. Acerca da natureza
desta "corrente", podia apenas conjecturar-se: o que era
observado e medido eram simplesmente os seus efeitos.
Será, sem dúvida, objectado que nós sabemos quão firmemente
acreditamos nas coisas, e que só podemos saber isto se
medirmos as nossas crenças através da introspecção. Isto não
me parece necessariamente verdade; penso que, em muitos
casos, o nosso julgamento acerca da força da nossa crença é,
na verdade, um julgamento acerca de como devíamos agir em
circunstâncias hipotéticas. Será respondido que nós apenas
podemos saber como devíamos agir observando o sentimento
de crença actual que determina como devíamos agir;
novamente, duvido da solidez do argumento. É possível que o
que quer que seja que determina como devemos agir também
nos leva, directa ou indirectamente, a ter a opinião correcta
sobre como devemos agir, sem nunca nos apercebermos disso
conscientemente.
Suponhamos, no entanto, que estou errado acerca disto e que
nós podemos decidir através da introspecção a natureza das
crenças e medir o seu grau; direi, ainda assim, que o tipo de
medição das crenças com o qual a probabilidade está
relacionada não é este tipo, mas uma medição das crenças
enquanto base da acção. Penso que isto pode ser mostrado de
duas maneiras. Em primeiro lugar, atendendo à escala de
probabilidades entre 0 e 1, e à maneira em que a usamos,
chegaremos à conclusão de que é muito apropriada para a
medição das crenças enquanto base da acção, mas não está, de
modo algum, relacionado com a medição de um sentimento
introspeccionado. Porque as unidades em termos das quais tais
sentimentos ou sensações são medidos são sempre, parece-me,
diferenças [sic] que são simplesmente perceptíveis: não há
qualquer outra maneira de obter unidades. Mas não vejo
qualquer fundamento para supor que o intervalo entre uma
crença de grau 1/3 e outra de grau 1/2 tenha tantas mudanças
simplesmente perceptíveis como acontece entre uma crença de
grau 2/3 e outra de grau 5/6, ou que uma escala baseada em
diferenças simplesmente perceptíveis tenha qualquer relação
simples com a teoria da probabilidade. Por outro lado, a
probabilidade de 1/3 está claramente relacionada com o tipo de
crença que levaria a uma aposta de 2 para 1, e mais à frente
mostrar-se-á como generalizar esta relação de modo a aplicá-la
à acção em geral. Em segundo lugar, os aspectos quantitativos
das crenças como a base da acção são, evidentemente, mais
importantes que as intensidades dos sentimentos-de-crença.
Esses sentimentos-de-crença são, sem dúvida, interessantes,
mas podem variar muito de indivíduo para indivíduo, e o seu
interesse prático é inteiramente devido à sua posição como as
causas hipotéticas das crenças enquanto base da acção.
É possível que alguém diga que o ponto até ao qual nós
agiríamos com base numa crença em circunstâncias apropriadas
é uma coisa hipotética e, consequentemente, impossível de ser
medida. Mas dizer tal coisa é simplesmente revelar ignorância
em relação às ciências físicas que lidam constantemente com
quantidades hipotéticas e que as medem. Por exemplo: a
intensidade eléctrica num dado ponto é a força que exerceria
sobre uma carga unitária se fosse colocada nesse ponto.
Tentemos agora encontrar um método de medir crenças como
base de acções possíveis. É evidente que estamos preocupados
com crenças disposicionais, não crenças actuais; ou seja, não
com crenças no momento em que estamos a pensar nelas, mas
com crenças tal como a minha crença de que a terra é redonda,
em que raramente penso, mas que conduziria a minha acção
em qualquer situação para a qual fosse relevante.
A maneira tradicional de medir a crença de uma pessoa é
propor-lhe uma aposta, e ver qual o rácio de oportunidade mais
baixo que aceita. Penso que este método está
fundamentalmente certo; mas tem o problema de ser
insuficientemente geral, e necessariamente inexacto. É inexacto
em parte por causa da utilidade marginal decrescente do
dinheiro, em parte porque a pessoa pode ter uma vontade
enorme de apostar ou relutância em apostar, porque ele gosta
ou não gosta do risco, ou por qualquer outra razão; para fazer
um livro, por exemplo [sic]. À dificuldade é semelhante à que se
encontra na separação de duas forças diferentes, mas
cooperantes. Para além do mais, a simples proposta de uma
aposta poderá alterar, inevitavelmente, o estado de opinião da
pessoa; do mesmo modo, nem sempre podemos medir a
intensidade eléctrica introduzindo efectivamente a carga e
vendo a que força a carga está sujeita, porque a introdução da
carga mudaria a distribuição a ser medida.
Por isso, de modo a construir uma teoria das quantidades de
crença que seja, ao mesmo tempo, mais exacta e geral,
proponho tomar como base uma teoria psicológica geral que é
hoje universalmente rejeitada, mas que, no entanto, me parece
chegar bastante perto da verdade no tipo de casos com que
estamos mais preocupados. Refiro-me à teoria de que nós
agimos da maneira que pensamos ser a mais adequada para
realizar os objectos dos nossos desejos, de modo que as acções
de uma pessoa são completamente determinadas pelos seus
desejos e pelas suas opiniões. Esta teoria não consegue
adequar-se a todos os factos, mas parece-me uma aproximação
útil à verdade, particularmente no caso da nossa vida
autoconsciente ou profissional, e é pressuposta por grande
parte do nosso pensamento. É uma teoria simples e que muitos
psicologistas gostariam, obviamente, de manter através da
introdução de desejos inconscientes e opiniões inconscientes de
modo a harmonizá-la melhor com os factos. Não tento julgar
até que ponto tais ficções alcançarão o resultado pretendido;
apenas reclamo para o que se segue verdade aproximada, ou
verdade em relação a este sistema artificial de psicologia, que
penso que, tal como a mecânica newtoniana, pode ser usado
com proveito ainda que se saiba ser falso.
Deve dizer-se que esta teoria não é para ser identificada com a
psicologia dos utilitaristas, na qual o prazer ocupava uma
posição dominante. A teoria que proponho adoptar é a de que
nós procuramos coisas que queremos, que poderá ser o nosso
prazer ou o de outras pessoas, ou o que quer que seja, e as
nossas acções são as que pensamos ter mais probabilidade de
obter esses bens. Mas esta não é uma formulação exacta,
porque uma formulação exacta da teoria só pode ser feita
depois de introduzirmos a noção de quantidade de crença.
Chamemos às coisas que uma pessoa deseja "bens", e
partamos, a princípio, do pressuposto de que eles são
numericamente mensuráveis e podem ser somados. Isso é
mesmo que dizer que se ele prefere intrinsecamente duas horas
de natação a uma hora de leitura, ele preferirá duas horas de
natação a uma hora de natação e uma hora de leitura. No
exemplo dado, isto é obviamente absurdo, mas isto é porque
nadar e ler não são bens supremos, e porque não conseguimos
imaginar uma segunda hora de natação que seja precisamente
igual à primeira, por causa do cansaço, etc.
Comecemos por supor que o nosso sujeito não tem dúvidas
acerca de nada, mas certas opiniões acerca de todas as
proposições. Então podemos dizer que ele escolherá sempre a
acção que conduzirá, na sua opinião, à maior soma de bem.
Devo frisar que, neste ensaio, "bem" e "mal" não são para ser
entendidos em qualquer sentido ético. Designam,
simplesmente, aquilo por que uma pessoa sente desejo ou
aversão.
Aparece então a questão de como havemos de modificar este
sistema simples de modo a levar em conta os graus variáveis
de certeza nas suas crenças. Sugiro que introduzamos como
uma lei da psicologia que o seu comportamento é regido pela
chamada expectativa matemática; isso é o mesmo que dizer
que se p é uma proposição acerca da qual ele está duvidoso,
então quaisquer bens ou males para cuja realização p seja, na
sua opinião, condição necessária e suficiente, entram nos seus
cálculos multiplicados pela mesma fracção, que é chamada
"grau da sua crença em p". Deste modo, definimos o grau de
crença de uma maneira que pressupõe o uso da expectativa
matemática.
Podemos pôr isto de forma diferente. Suponha que o seu grau
de crença em p é m/n; então a acção dele é tal que ele a
escolheria caso tivesse que a repetir exactamente n vezes, em
m das quais p era verdadeiro, e, nas outras, falso. [Aqui talvez
seja necessário supor que em cada uma das n vezes ele não
tinha memória das vezes precedentes.]
Isto também pode ser tomado como uma definição do grau de
crença, e pode facilmente ver-se que é equivalente à definição
anterior. Dêmos um exemplo do tipo de caso que poderia
acontecer. Eu estou numa encruzilhada e não sei o caminho;
mas parece-me que um dos dois caminho é o caminho certo.
Proponho, então, ir nessa direcção, mas ficar alerta para o caso
de aparecer alguém a quem perguntar; se agora vejo alguém a
meia milha nos campos, o eu ir lá perguntar-lhe ou não
dependerá da inconveniência relativa de sair do meu caminho
para atravessar os campos, ou de continuar na estrada errada,
caso esta seja a estrada errada. Mas também dependerá de
quão confiante estou de que estou certo; e, evidentemente,
quanto mais confiante estiver acerca disto, menor é a distância
que estarei disposto a desviar-me da estrada para confirmar a
minha opinião. Proponho, então, que se use a distância que eu
estaria disposto a percorrer como uma medida da confiança na
minha opinião; e o que disse há bocado explica como é que isto
deve ser feito. Podemos pôr a coisa do seguinte modo: suponha
que a desvantagem de percorrer x jardas para perguntar é f(x),
a vantagem de chegar ao destino certo é c, e a de chegar ao
destino errado é e. Então se eu apenas estivesse disposto a
percorrer uma distância d para perguntar, o grau da minha
crença de que estou no caminho certo seria dado por
f (d)
p = 1 ------- .
c-e
Porque tal acção é uma acção que me seria proveitoso realizar,
se tivesse que agir da mesma maneira n vezes, em np das
quais eu estivesse no caminho certo, mas nas outras não. O
bem total resultante de nunca se perguntar de cada vez seria
= npc + n(1 - p)e
= ne + np(c - e),
e o bem total resultante de se perguntar sempre, percorrendo,
de cada vez, uma distância x, seria
= nc - nf(x), [Eu agora vou sempre pelo caminho certo.]
Esta quantidade será maior que a precedente, desde que
f(x) < (c - e) (1 - p),
conclusão: a distância crítica d está ligada com p, o grau de
crença, através da relação f(d) = (c - e) (1 - p)
f (d)
ou p = 1 -------
c-e
como já se mencionou.
É fácil ver que esta maneira de medir crenças dá resultados que
estão de acordo com ideias comuns; em todo o caso, na medida
em que a crença total é denotada por 1, a crença total na
contraditória por 1/2, e crenças iguais nas duas por 1/2. Para
além do mais, esta maneira de medir crenças vê a prontidão em
apostar como um meio de medir crenças. Ao propor uma aposta
em p, nós pomos perante o sujeito uma acção possível da qual
tanto bem adicional resultará para ele caso p seja verdadeiro, e
tanto mal adicional caso p seja falso. Supondo que a aposta é
em bens e males, em vez de ser a dinheiro, ele aceitará uma
aposta com qualquer rácio de oportunidade superior ao seu
estado de crença; com efeito, o seu estado de crença é medido
através do rácio de oportunidade que ele esteja disposto a
aceitar; mas, como já foi explicado, isto está viciado, pelo amor
ou pelo ódio do risco, e pelo facto de que a aposta é a dinheiro
e não em bens e males. Dado que é universalmente aceite que
o dinheiro tem uma utilidade marginal decrescente, se é para se
usar apostas em dinheiro, é óbvio que a parada deverá ser a
menor possível. Mas a medição será novamente perturbada
com a introdução do novo factor da relutância em nos
preocuparmos com ninharias.
Descartemos agora a suposição de que os bens são
imediatamente mensuráveis e podem ser somados, e tentar
chegar a um sistema com tão poucas suposições quanto
possível. Para começar, partiremos do princípio de que, tal
como antes, o nosso sujeito tem certas crenças acerca de tudo;
então ele agirá de modo a que as consequências totais da sua
acção sejam as que ele pensa serem as melhores possíveis. Se
tivéssemos, então, o poder do Todo-Poderoso, e
conseguíssemos convencer o sujeito do nosso poder, nós
poderíamos descobrir como ele colocava todos os estados
possíveis do mundo por ordem de mérito, oferecendo-lhe
opções. Deste modo, todos os mundos possíveis seriam
ordenados pelo valor, mas não teríamos qualquer maneira
definida de os representar através de números. A afirmação de
que a diferença de valor entre e era igual à diferença de
valor entre e seria completamente destituída de sentido.
[Aqui e no resto do ensaio, usaremos letras do alfabeto grego
para representar as diferentes totalidades possíveis de
acontecimento entre os quais o nosso sujeito escolhe - as
unidades orgânicas supremas.]
Suponha agora que o sujeito é capaz de ter dúvidas; então
poderíamos testar o seu grau de crença nas diferentes
proposições fazendo-lhe ofertas do seguinte género. Preferias
ter o mundo de certeza; ou o mundo se p é verdadeiro, e o
mundo se p é falso? Se, então, estivéssemos certos de que p
era verdadeiro, ele limitar-se-ia a comparar e e escolher
entre eles como se não houvesse quaisquer outras
condicionantes; mas se ele estivesse com dúvidas, a sua
escolha não seria decidida tão simplesmente. Proponho assentar
axiomas e definições relativamente aos princípios que regem
escolhas deste tipo. Esta é, obviamente, uma versão muito
esquemática da situação na vida real, mas parece-me ser mais
fácil analisá-la sob esta forma.
Há, em primeiro lugar, uma dificuldade com que devemos lidar;
as proposições como p, no caso anterior, que são usadas como
condicionantes nas opções oferecidas poderão ser tais que a sua
verdade ou falsidade seja um objecto de desejo para o sujeito.
Isto complicará o problema, e temos que assumir que há
proposições para as quais este não é o caso, às quais
chamaremos eticamente neutras. De modo mais preciso, uma
proposição atómica p é denominada eticamente neutra se dois
mundos que diferem apenas no valor de verdade de p são
sempre de igual valor; e uma proposição não-atómica p é
denominada eticamente neutra se todos os seus argumentos de
verdade atómicos (1) são eticamente neutros.
Nós começamos por definir o grau de crença numa proposição
eticamente neutra como sendo de 1/2. Dir-se-á que o sujeito
tem grau de crença 1/2 em tal proposição p caso não tenha
qualquer preferência entre as opções (1) se p é verdadeiro,
se p é falso, e (2) se p é verdadeiro, se p é falso, mas
tem simplesmente uma preferência entre e . Supomos
através de um axioma que se isto é verdadeiro de um par ,
é verdadeiro de todos os pares em circunstâncias
semelhantes (2). Isto significa mais ou menos que se define o
grau de crença 1/2 como o grau de crença que leva a
indiferença no que toca a apostar de um modo ou de outro,
sendo a parada a mesma.
Uma crença de grau 1/2 como foi definida pode ser usada para
medir valores numericamente da seguinte maneira. Nós temos
que explicar o que significa dizer que a diferença de valor entre
e é igual à diferença de valor entre e ; e nós definimos
isto do seguinte modo: se p é uma proposição eticamente
neutra acreditada com grau 1/2, o sujeito não tem qualquer
preferência entre as opções (1) se p é verdadeiro, se p é
falso, e (2) se p é verdadeiro, se p é falso.
Esta definição pode constituir a base de um sistema de medição
de valores da seguinte maneira:
Chamemos a qualquer conjunto de mundos igualmente
preferíveis a um dado mundo um "valor" [sic]: nós supomos
que se o mundo é preferível a , qualquer mundo com o
mesmo valor que é preferível a qualquer mundo com o
mesmo valor que , e diremos que o valor de é maior que o
de . Esta relação "maior que" ordena valores numa série.
Daqui em diante, usaremos para designar tanto um mundo
como o seu valor.
Axiomas
1. Há uma proposição eticamente neutra, p, acreditada com
grau 1/2.
2. Se p e q são proposições eticamente neutras e a opção [ se
p, se não-p] é equivalente a [ se p, se não-p], então [
se q, se não-q] é equivalente a [ se q, se não-q].
Def. No caso acima mencionado, dizemos que
= .
Teoremas. Se = ,
Então = , = ,e = .
2a. Se = , então > é equivalente a
> e = é equivalente a = .
3. Se a opção A é equivalente à opção B, e a B é equivalente à
C, então a A é equivalente à C.
Teorema. Se = e = ,
então = .
4. Se = , = , então = .
5. ( , , ). E! ( )( = ).
6. ( , ). E! ( )( = ).
7. Axioma da continuidade: qualquer progressão tem um limite
(ordinal).
8. Axioma de Arquimedes.
Estes axiomas permitem que os valores sejam associados um-
para-um com números reais, de modo que se 1 corresponde
a , etc.
, = . . 1- 1= 1- 1.
Daqui em diante, usaremos também a para o número real
correspondente 1.
Tendo assim definido uma maneira de medir o valor, nós
podemos agora derivar uma maneira de medir crenças em
geral. Se a escolha de com certeza é indiferente em relação à
escolha de [ se p é verdadeiro, se p é falso](3), nós
podemos definir o grau de crença do sujeito em p como o rácio
da diferença entre e e a diferença entre e (temos que
supor que é o mesmo rácio para todos os , e que
satisfaçam as condições). Isto tem mais ou menos o resultado
de definir o grau de crença em p como o rácio de oportunidades
sob o qual o sujeito apostaria em p, a aposta sendo conduzida
em termos das diferenças de valor tal como definido. A
definição só se aplica a crenças parciais e não inclui certas
crenças; para uma crença de grau 1 em p, com certeza é
indiferente em relação a [ se p e qualquer se não-p].
Também temos que definir uma nova ideia que é muito útil - "o
grau de crença em p dado q". Isto não representa o grau de
crença em "se p, então q", ou em "p implica q", ou o grau de
crença que o sujeito teria em q se conhecesse p, ou o que teria
em p se conhecesse q, ou o grau de crença que devia ter. [NT:
No texto original parece haver uma gralha: "... that which the
subject would have in p if he knew q, or that which the subject
would have in p if he knew q..."] O "grau de crença em p dado
q" expressa aproximadamente o rácio de oportunidades sob o
qual o sujeito apostaria agora em q, sendo a aposta válida
apenas caso p seja verdadeiro. Apostas condicionais deste tipo
eram feitas frequentemente no século dezoito.
O grau de crença em p dado q é medido da seguinte forma.
Suponha que o sujeito é indiferente entre as opções (1) se q
é verdadeiro, se q é falso, e (2) se p é verdadeiro e q é
verdadeiro, se p é falso e q é verdadeiro, se q é falso.
Então o grau da sua crença em p dado que q é o rácio da
diferença entre e e a diferença entre e , que temos que
supor que é o mesmo para todos os , , e que
satisfaçam as condições apresentadas. Isto não é a mesma
coisa que o grau no qual ele acreditaria em p, caso acreditasse
totalmente em q; porque o conhecimento de q poderia, por
razões psicológicas, alterar profundamente todo o seu sistema
de crenças.
Cada uma das nossas definições tem sido acompanhada de um
axioma de consistência, e, na medida em que isto é falso, a
noção do grau de crença correspondente torna-se inválida. Isto
apresenta alguma analogia com a situação relativa à
simultaneidade acima discutida.
Não trabalhei a lógica matemática disto em pormenor, porque
me parece que isso seria como descobrir a sétima casa decimal
de um resultado apenas válido para duas. A minha lógica não
pode ser vista como dando mais do que o tipo de maneira em
que isto poderia resultar.
A partir destas definições e destes axiomas é possível provar as
leis fundamentais das crenças prováveis (os graus de crença
situam-se entre 0 e 1):
1. Grau de crença em p + grau de crença em não-p = 1.
2. Grau de crença em p dado q + grau de crença em não-p
dado q = 1.
3. Grau de crença em (p e q) = grau de crença em p x grau de
crença em q dado p.
4. Grau de crença em (p e q) + grau de crença em (p e não-q)
= grau de crença em p.
Os dois primeiros axiomas são imediatos. (3) é provado da
seguinte maneira.
Seja o grau de crença em p = x, e em q dado p = y.
Então com certeza = + (1 - x)t se p é verdadeiro, - xt
se p é falso, para qualquer t.
+ (1 - x) t se p é verdadeiro
_
| + (1 - x) t +(1 - y) u se "p e q" é
verdadeiro,
|_ + (1 - x) t - yu se p é verdadeiro e q é
falso; para qualquer u.
Escolhamos u de modo a que + (1 - x) t - yu = - xt,
isto é, deixemos que u = t/y (y 0)
Então com certeza
_
| + (1 - x) t + (1 - y) t/y se "p e q" é
verdadeiro
|_ - xt caso contrário,
Se y = 0, tomemos t = 0.
Então com certeza
se p é verdadeiro, se p é falso
+ u se p é verdadeiro, e q verdadeiro; se p é falso, e q
falso;
se p é falso + u, pq verdadeiro; pq falso.
grau de crença em pq = 0.
(4) segue-se de (2) e (3) da seguinte maneira:
Grau de crença em pq = grau de crença em p X grau de crença
em q dado p, por (3). De modo semelhante, grau de crença em
p não-q = grau de crença em p X grau de crença em não-q
dado p soma = grau de crença em p, por (2).
Estas são as leis da probabilidade, que provámos ser
necessariamente verdadeiras de qualquer conjunto consistente
de graus de crença. Qualquer conjunto definido de graus de
crença que as quebrasse seria inconsistente no sentido de que
violava as leis da preferência entre opções, tais como a de que
a preferibilidade é uma relação assimétrica transitiva, e que se
é preferível a então com certeza não pode ser preferível
a [ se p, se não-p]. Se a condição mental de alguém
violasse estas leis, a sua escolha dependeria da forma precisa
sob a qual as opções lhe eram oferecidas, o que seria absurdo.
Poderia ser feito um livro contra ele por um apostador astuto, e
ele perderia em qualquer caso.
Nós descobrimos, portanto, que uma explicação precisa da
natureza das crenças parciais revela que as leis da
probabilidade são leis de consistência, uma extensão da lógica
formal, a lógica da consistência, às crenças parciais. O
significado das leis da probabilidade não está dependente de
qualquer grau de crença numa proposição ser precisamente
determinado como o grau racional; elas apenas distinguem
aqueles conjuntos de crenças que lhes obedecem como
conjuntos consistentes.
Ter qualquer grau de crença definido implica um certo grau de
consistência, nomeadamente disposição para apostar numa
dada proposição sob o mesmo rácio de oportunidades por
qualquer parada, sendo a parada medida em termos de valores
supremos. Ter graus de crença a obedecer às leis da
probabilidade implica um grau adicional de consistência,
nomeadamente consistência entre a probabilidade aceitável em
relação a diferentes proposições de modo a que se evite que um
livro seja feito contra nós.
Talvez não seja despropositado deixar algumas notas em jeito
de conclusão. Em primeiro lugar, esta secção é
fundamentalmente baseada em apostas, mas isto não parecerá
insensato quando se vê que, de certa maneira, nós passamos
toda a nossa vida a apostar. Sempre que vamos para a estação,
estamos a apostar que um comboio passará por lá, e se não
tivéssemos um grau de crença suficientemente alto nisto,
rejeitaríamos a aposta e ficaríamos em casa. As opções que
Deus nos dá estão sempre dependentes de nós adivinharmos se
uma dada proposição é verdadeira. Em segundo lugar, baseia-
se na ideia da expectativa matemática; a insatisfação
frequentemente sentida com esta ideia é devida,
principalmente, à medição inexacta de bens. É evidente que
expectativas matemáticas em termos de dinheiro não são guias
de conduta adequados. Ao julgar o meu sistema, deve ser
lembrado que nele o valor é, na verdade, definido através da
expectativa matemática no caso das crenças de grau !, e pode,
por isso, esperar-se que seja adequadamente ordenado para a
aplicação válida da expectativa matemática também no caso de
outros graus de crença.
Em terceiro lugar, nada foi dito acerca de graus de crença
quando o número de alternativas é infinito. Sobre isto nada
tenho de útil para dizer, excepto que duvido que a mente seja
capaz de contemplar mais que um número finito de
alternativas. Pode considerar questões para as quais um
número infinito de respostas são possíveis, mas de modo a
considerar as respostas deverá agrupá-las num número finito
de grupos. A dificuldade torna-se relevante em termos práticos
quando se discute a indução, mas nem aí me parece haver
necessidade de a introduzir. Nós podemos discutir se as
experiências passadas conferem um grau elevado de
probabilidade ao sol nascer amanhã, sem nos maçarmos sobre
que probabilidade confere ao sol nascer cada manhã para todo
o sempre. Por este motivo, não posso deixar de sentir que a
discussão que o senhor Ritchie faz do problema (4) é
insatisfatória; é verdade que podemos concordar que as
generalizações indutivas não têm que ter uma probabilidade
finita, mas expectativas particulares mantidas com base em
considerações indutivas têm, indubitavelmente, uma
probabilidade numérica alta na mente de todos nós. Todos
estamos mais certos de que o sol nascerá amanhã de que eu
não tirarei um 12 com dois dados logo à primeira, isto é, que
teremos uma crença de grau mais elevado que 1/2 nisso. Se a
indução alguma vez precisar de uma justificação lógica, será em
relação à probabilidade de um acontecimento como este.

Notas:
(1) Estou aqui a assumir a teoria das proposições de
Wittgenstein; seria provavelmente possível dar uma definição
equivalente em termos de qualquer outra teoria.
(2) Deve supor-se que a e b são tão vagos quanto necessário
para que cada um deles seja compatível com p e não-p.
(3) Aqui, b tem de incluir a verdade de p, e g a sua falsidade; p
já não precisa de ser eticamente neutra. Mas temos de partir do
princípio de que há um mundo com um valor indexado no qual
p é verdadeiro, e outro no qual p é falso.
(4) D. Ritchie (1926), p. 318). "A conclusão da discussão
precedente pode ser apresentada de forma simples. Se o
problema da indução for: como é que generalizações indutivas
podem adquirir uma grande probabilidade numérica?, então
este é um pseudoproblema, porque a resposta é: não podem.
Esta resposta não é, contudo, uma negação da validade da
indução, mas uma consequência directa da natureza da
probabilidade. Nada diz sobre o verdadeiro problema da
indução, que é: como é que a probabilidade pode ser
aumentada?, e não faz avançar a discussão do senhor Keynes
sobre este ponto."

[Notas do tradutor
No artigo usa-se a expressão "rácio de oportunidades". Que
quer isso dizer? Simples: imagine que a probabilidade de um
acontecimento é 2/7. Nesse caso, o rácio de oportunidades
seria 2 para 5, o que significa, simplesmente, que há 2
acontecimentos favoráveis para cada 5 acontecimentos
desfavoráveis. Descobrir o rácio de oportunidades dada a
probabilidade de um acontecimento é fácil. Há 7
acontecimentos possíveis. Se 2 são favoráveis, então 5 são
desfavoráveis. É indiferente falar em termos de probabilidades
ou de rácio de oportunidades - é uma questão de conveniência.
("Rácio de oportunidades" é a tradução de "odds". Após várias
buscas na internet, esta proposta de tradução que acabei por
empregar pareceu-me a mais sensata.)
*
Quando Ramsey fala em "fazer um livro", ele está a referir-se a
livros de apostas.
*
Intelectu no 9 - Outubro de 2003

Looking for Spinoza, Joy, Sorrow and the Feeling Brain


por António Damásio
Júlio Campos

Recensão
António Damásio publica a sua terceira obra, após O Erro de
Descartes (1994) e O Sentimento de Si (1999), numa
continuação temática, orientada para um tipo de comunicação
ao grande público, dentro de motivações tributárias a um teor
científico-cultural geral de divulgação, e que se inserem
perifèricamente pela Teoria da Mente, suas qualificações e
natureza.
As primeiras obras abordam respectivamente o papel das
Emoções no campo da Racionalidade e a corporeidade na Mente
como agente para a criação da Identidade humana. A presente
obra tem como objecto específico as Emoções e Sentimentos,
seus mecanismos e seu papel no comportamento e vivência
humanas. Através do relevo destas facetas psicológicas, através
também de uma contextualização neurofisiológica e
neuropatológica, segura e suficientemente desenvolvida,
Damásio entra, numa teorização pretendidamente inovadora,
por terrenos de uma teoria científica, orgânicofuncional, da
Mente e também por terrenos da Filosofia da Mente. Tudo isto
num esforço de conotação com o sistema filosófico de Espinosa,
pelo menos com a parcela relativa ao problema Mente-Corpo, e
mais fugazmente, com a parcela relativa ao sistema
antropológico de dignificação pela solução salvacionista.
A obra inclui ainda uma apresentação, predominantemente
decorativa, de dados biográficos deste filósofo, associada a uma
revisão airosa de factos histórico-sociais, de aspectos religiosos,
científicos, geográficos, etc., da época, com certo pendor para
as referências ao Judaísmo e sua importância em Portugal e na
Holanda nesse tempo.
Podemos perpassar pelos Capítulos do livro, e encontramos: No
Capítulo 1, "Enter Feelings", introduz-se esta estrutura,
(des)articulada: 'Emoções-Corpo proprioceptivo / Damásio-
emocionado-com-Espinosa / Espinosa emocionado-com-a-sua-
vida'. A obra vai prosseguir nesta linha, numa heterogénea e
algo heterodoxa composição, numa miscelânea que é, apesar
de tudo, a maior atracção do livro (para se falar pouco na
impressão paralisante que o seu estilo literário inexpressivo
causa, embora mais 'vivo' em Inglês do que nas traduções
portuguesas).
O segundo capítulo, "Of Appetites and Emotions", apresenta o
conjunto de dados mais consistente da obra, percorrendo vários
dados médico-científicos sobre funções e disfunções cerebrais e
sobre mecanismos que se correlacionam com estados mentais
impressão paralisante que o seu estilo literário inexpressivo
causa, embora mais 'vivo' em Inglês do que nas traduções
portuguesas).
O segundo capítulo, "Of Appetites and Emotions", apresenta o
conjunto de dados mais consistente da obra, percorrendo vários
dados médico-científicos sobre funções e disfunções cerebrais e
sobre mecanismos que se correlacionam com estados mentais
afectivos. Mesmo assim, qualquer cientista neurofisiologista
desiludir-se-ia facilmente se esperasse uma massa de dados
crua, de números, estatísticas e precisas conclusões acerca de
correlações de estrutura, Histologia, Fisiologia das redes e
sequências neuronais, activações axono-dendríticas, actuações
de áreas funcionais, exemplares, dinâmicas de
neurotransmissão e neurosecreção, aplicação das técnicas de
imagem funcional. Estes dados aparecem, mas são prescritos
em 'doses ligeiras', emoldurados. Damásio não se esquece do
grande público, não se dirigindo à comunidade científica. No
entanto, apresenta em primeira, e se calhar única, mão a sua
proposta inovadora de Teoria da Mente. A comunidade científica
não fica apesar de tudo completamente esquecida, como é
visível pelas referências a vários trabalhos nestes campos, da
sua equipa em Iowa e de outros investigadores.
O Capítulo quarto, "Ever Since Feelings", tem o mesmo sentido
que o terceiro Capítulo ("Feelings"), mas elabora mais esta
configuração. Vigoram conceitos sempre virados para uma
estipulação psicológica, contendo noções como "Homeostase"
(acrescente-se 'fisiológico-mental'), Sentimentos-Feelings de
tipo social, uma ética de fundo neurobiológico.
No Capítulo 5, "Body, Brain and Mind", especifica-se e avança-
se para uma abordagem filosófica, com tangentes ao problema
Mente-Corpo, e à natureza da Consciência e da Mente, com
alusões às propostas cartesiana, kantiana e espinosiana, e
referências a James, Aristóteles, Einstein, entre outros.
No capítulo 6, "A Visit to Spinoza", transita-se não em temática
mas no espaço-tempo para, não tanto a época, mas a vida
pessoal de Bento-Baruch Espinosa, incluindo apreciações da sua
personalidade, pontuadas de indícios de veneração pelo seu
papel histórico-filosófico. Encontra-se menos uma descrição
suficientemente abrangente das obras e sistema de pensamento
de Espinosa.
Perante este caleidoscópio de informação, o inventivo (só no
título "Who's There?") último Capítulo esquece-se de ser uma
conclusão, para se constituir num repositório de parte dos
dados prévios, soltamente apresentados, apenas reforçados por
citações d'A Ética, algumas das quais marcantes, que
transportam inesperadamente as propostas de Damásio para a
boca e pena de Espinosa.
Toda a apresentação deste livro é, assim, (sem dúvida
voluntariamente), desmembrada em várias áreas, (sem dúvida)
interligadas, e que constituem (com certa dificuldade) um todo
que se vislumbra dirigir-se para uma tese monista do Homem
neuromental, em que as Emoções e Sentimentos estabelecem
uma ligação dupla da res extensa à Mente, numa fórmula
Corpo-Mente-Corpo (Constituição periférica-Mente-Cérebro).
Este todo pode ser apreciado em três aspectos.
O aspecto científico-médico, já referido, com as propostas de
correlações psicológico-neuronais, é interessante, consistente e
inatacável directamente, constituindo um conjunto de
descrições de valor biológico inestimável.
O segundo aspecto é o núcleo do livro, e a sua tese (supõe-se).
É (curiosamente) apresentado mais declaradamente nos
primeiros três capítulos e timidamente reiterado no final. A ideia
é que as Emoções e os Sentimentos são a completa base
originária, com estímulos variados, numa adopção behaviorista
típica, nas reacções primárias e mais sofisticadas dos órgãos
sensoriais e internos. É nesta base que se chega à
(desinflamada) conclusão que a Mente é uma espécie de
manifestação da luta pela sobrevivência, centrada no
comportamento instintivo e emocional, como nas reacções de
medo e prazer. Melhor será a conclusão de cariz filosófico, que
o leitor poderá tirar da inacabada teorização do autor.
O terceiro aspecto é constituído pelo percurso cheio de escolhos
pela Filosofia de Espinosa, um pouco toscamente conotado com
as teorias e observações de Damásio, se não se falar das
apreciações biográficas e elogiosas. A abordagem é suave, mas,
pode-se temer, desviada da temática espinosiana mais
profunda, por uma visão insuficiente, e tendente (tendenciosa?)
para articular as teses do filósofo português setecentista com as
do cientista português do século XXI.
Se este tom geral da obra deixa um resto de sabor adocicado,
mas não nutritivo, a verdade é que vários destes aspectos
acabam por, bem pesquisados, permitir várias asserções de boa
consistência e utilidade. Um deles é a divulgação correcta de
aspectos importantes da filosofia espinosiana, nomeadamente a
proposta monista e a importância antropológica do seu sistema,
com a proposta de uma Ética de bases racionalistas, mas com
uma coloração sentimentalista, que reforça a importância do
valor da vida e da salvação humana, através do importante
objectivo de felicidade pelo amor intellectualis Dei. Este aspecto
é claramente apresentado em "Spinoza's Solution", no sétimo
Capítulo. Outra questão muito pertinente é a acentuação da
problemática da Filosofia da Mente no campo monista.
Damásio teria muito a explicar do sistema de Espinosa. Mesmo
assim, a obra em análise é, embora velada e marginalmente,
um contributo para a ideia que a Mente tem quase tudo a ver
com o funcionamento complexo e evoluído do Cérebro, através
de um sui generis funcionamento computacional, bem
documentado pelas reprodutivas acções coerentes dos mapas e
redes neuronais, nucleares e multiorgânicas centrais (Amígdala,
Hipotálamo, Sistema Límbico, Córtexes Cingulado, Préfrontais,
Ventromedial Frontal, Cerebelo, núcleos da Base, vários).
Mas dentro disto, não se deve, finalmente, deixar de referir que
a insistência (progressivamente evanescente) de Damásio numa
articulação sistemática corpo periférico-Cérebro na instituição
do componente mental das Emoções é uma tese pelo menos
excessiva, improvada, e possivelmente falsa. Refira-se, por
exemplo, os comentários simples e claros de Colin McGinn na
sua recensão deste livro no New York Times de 23 de Fevereiro
de 2003 ("Looking for Spinoza: the Source of Emotion"),
quando acentua que os estados mentais não são todos
percepções do corpo nem acerca do corpo: "Quando eu vejo um
pássaro à distância, a minha Retina e Córtex ficam alterados em
relação com isso; contudo, isso não significa que eu não veja
realmente o pássaro, mas /veja/ apenas a minha Retina e
Córtex". O clamar de Damásio de que o Corpo é a origem do
conteúdo da Mente esquece que só as imagens e percepções
primárias, numa elaboração aceite genericamente, são dados
mais próximos do orgânico, e que a Mente constitui o seu
mundo provavelmente na complexização autónoma, numa
dinâmica extensa que vai da percepção básica à abstracção
filosófica, à conceptualização científica quase só acessível ao
génios, ou à êxtase artística - embora não se negando afinal a
associação e participação talvez inquestionável e essencial que
existe nas funções eléctricas das 'celulazinhas cinzentas'.

Júlio Campos
Médico
Hospital de S. João, Porto

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