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mera Descolonizé Primeira Edigao, Editora Brasiliense, 1979 © 1997 Alfredo Naffah Neto Todos os direitos reservados Proibida a reprodugao no todo ou em partes, por qualquer meio, sem autorizagao do Editor __ Assessoria Grafica: URUPES Editora e Comunicagao Ltda. Capa e diagramagao: Diana Mindlin, sobre desenho de Degas Revisao: Fernanda Spinelli Digitagao: Renata Menegatti Editoragao: Plexus Editora Ltda. Direitos exclusivos desta edigdo reservados pela Plexus Editora Ltda. Naffah Neto, Alfredo Psicodrama : descolonizando o imaginario / Alfredo Naffah Neto. - Sdo Paulo : Plexus Editora, 1997 304 p. Bibliografia ISBN 85-85689-29-3 1. Psicodrama CDD 159 Av. Manoel dos Reis Aratijo, 1154 04664-000 - Sao Paulo - SP Tel.: (O11) 524-5301 Impressao ¢ acabamento Palas Athena SUMARIO Prologo de Dalmiro M. Bustos. INTRODUGAO 1 - Oque é Psicodrama O caso da senhorita A O relato de uma sessdo de A . Una tentativa de leitura da sesso de A, segundo os conceitos teéricos de JL. Moreno ...........2.2.-00... 18 a) Aquecimento inespecifico . b) Aquecimento especifico e dramatizacao. Comentarios... Algumas observagdes sobre a leitura da sessiio de A, segundo os conceitos morenianos... 2- A primeira posigdo ante os conceitos morenianos €. PYOPOSIA le PeSQUISA ........cssscsseesseesesessssiesssesecnsenssensonsnieesstensese 30 CAPITULO I DA ESPONTANEIDADE E SEU NUCLEO CONSTITUINTE 1 - A espontaneidade como expresséio da relagdio de compromisso com o mundo; uma critica a nogdo de adequaca 2 - Exspontaneidade e temporalidade: uma revisaio a NOGGO dO MOMENI .....c.sccceseseccsesseceseesesseteseescesetisecieesseantieesssesemeesseenn Dd, 3 - Dos dois niveis de espontaneidade: uma andlise das relagGes entre espontaneidade e instinto .. 4 - Do processo de aquecimento e dos iniciadore: wna reviséo critica....... CAPITULO I 1 - Do movimento criador e seus (Os: consideragdes iniciais 2-Do e do ato-criador com revel iio da existéncia: uma tentativa de andlise a partir do concei de encarnacado 3 - Criagéio versus repeti¢iio: o lugar do inconsciente na teoria psicodramatica 1 - Do projeto socionomico: consideracées gerais .. 2- ~ Da pesquisa-acao insitue 1 in vivo. descaminhos | i 3-A teoria dos papéis, a ‘aed doe oO Siege eat da teoria e da pritica 4- Da sociatria: as patologias e as terapias CONCLUSOES _1- Da proposta de uma re-leitura da sesséio de A 2 - Da posigdo sociométrica e sociodinémica de A no interior do grupo familiar... 3-De como A atinge wna primeira revelagao de sua real posigtio de mundo, pelo psicodrama ... Posficio de Marilena de S. Chen. Bibliografia ... ial com direitos autorais Prélogo Compreender ¢ aprofundar a filosofia de Moreno: cis um trabalho que deveria ser enfrentado por todos os psicodramatistas. Geralmente significa 0 final de um caminho ou, talvez, sua verdadeira entrada. De modo geral, um terapeuta comega consubstanciado com seu medo provocado pelo contato com seres humanos que sofrem. O apoio fornecido por teorias e técnicas, dissociadas e dogmaticas, ajuda-nos a suportar essa etapa. E partindo dessa posigao que “descobrimos”, com um alivio enorme, que aquele choro desesperado e incontido, que nos deixava penalizados, era uma HISTERIA. Que tranqililidade, era “isso”! E por “isso”, “ele” ou “ela” nos rejeitava. Compreendemos. Na verdade, néo haviamos compreendido nada, mas, como nao sabiamos, ficavamos tranqdilos. Muitos permanecem estagnados nesse ponto. Felizmente, muitos outros continuam crescendo, penetram no choro e aceitam-no como uma verdade, nio como uma mentira: € toda a verdade que o sujeito consegue exprimir no momento. A partir dai, entram em contato com o homem total, contemplam o seu trabalho, refletem sobre a sua verdade, seus limites. Poem em davida, questionam, recriam, reformulam. O que uma terapia faz com relagao 4 esséncia do homem? Como uma dramatizac&o age sobre o protagonista? Distancia-o ou aproxima-o de sua esséncia? Nessa etapa surge, entfo, o questionamento mais profundo: o filosofico. Somente dentro da filosofia pode-se pensar na filosofia. Do contrario, apenas “filosofamos”. Toda formulagdo moreniana é totalizadora: inclui 0 psicoldégico, 0 biolégico, o social. Nesse sentido, € existencial. Toda a compreensio do socius e da psyché se faz no plano da totalidade. Ha poucos dias, numa supervisdo relativa a um paciente em crise maniaca, percebi que seu terapeuta tentava, sem Psicodrama: descolonizando 0 imaginario resultado, demonstrar-lhe que sua “verdadeira” situagdo era a depressao subjacente. O paciente resistia. E com razao. Porque sua “mania” é também a sua verdade, porque também é ele. Mas é apenas parte da verdade. Somente quando compreendemos a totalidade que ele é, deixando de reduzir uma dimensdo vital de sua existéncia a um mero mecanismo de defesa, é que podemos aproximar-nos, com menos medo, da depressio. Moreno formula essa totalidade, basicamente, quando nos fala do encontro, centro da proposta existencial psicodramatica. Tal encontro se dé numa dimensdo temporal que aparece formulada, pela primeira vez, na filosofia. Esta dimensdo é 0 momento. Um tempo nao compartimentado em passado, presente e futuro, o tinico tempo existencial real, porque se desdobra nos trés simultaneamente. Ai se distancia de Bergson, excede a Saunders Pierce, precede a Martin Buber. Em Las palabras del padre, livro que expressa 0 apogeu de seu pensamento, Moreno formula outro aspecto fundamental: “Deus é espontaneidade; portanto, o mandamento é: Sé espontaneo!”. O “eu- Deus” também requer uma andlise profunda e n&o deve ser repudiado com um rétulo de parandéia. Encontrar o Deus em cada um, em sua forga criadora, falar e atuar baseados nisto: eis a sua proposta. Estes sao aspectos basicos de sua filosofia. E Moreno viveu essa filosofia. Cada encontro com ele foi um momento unico que preservei num conjunto de vivéncias que, mesmo hoje, varios anos depois de nosso ultimo encontro, ocorrido pouco antes de sua morte, tem enorme significado para mim. Esse Ultimo encontro aconteceu no Natal de 1972. Ele ja estava com poucas forcas, mas péde erguer sua taca para brindar com todos nés que estavamos com ele. Seu corpo quase nao lhe respondia, porém seus olhos ainda mostravam que 0 momento estava ali: havia serenidade, vibragdo, vida. Também a morte jd estava presente e ele sabia disso. Legou-nos uma obra cuja importfncia total ainda nao foi reconhecida, E deixou-nos um principio: “Sé esponténeo! Anima-te acriar! Nao tomes a minha obra como dogma, porque estards traindo a sua esséncia; toma-a como encontro, transforma-a, nao a deixes morrer nas garras da conserva cultural!” Alfredo Naffah Neto Assim, manter viva a sua obra é 0 que procura Alfredo Naffah Neto. Encontra-se com Moreno em tudo o que é: um homem jovem, valoroso, profundamente humano e inteligente. Compara, questiona e reformula sua obra, sua filosofia. Necessitamos de muitos trabalhos como o presente. Entio, uno o meu aprego pessoal a meu compromisso de psicodramatista, para dar as boas vindas a este livro que integra a - ainda demasiado exigua - bibliografia psicodramatica. Dalmiro M. Bustos Abril 1978 Introdugdo 1 - Oque é Psicodrama Occaso da senhorita A A, uma adolescente que conta atualmente* 14 anos, procurou- nos ha cerca de dois anos, queixando-se, sobretudo, de “dificuldades escolares”, ou seja, de incapacidade para estudar, concentrar-se durante as aulas, aprender a matéria ministrada e de obter um bom aproveitamento nas provas e exames do curso ginasial* (do qual cursava a primeira série pela segunda vez). Isso, apesar de ja ter sido submetida a testes psicolégicos que haviam revelado uma inteligéncia acima da média. Queixava-se também, na ocasiao, de grandes dificuldades de contato, quer com membros de sua familia quer com colegas de escola. Na época da entrevista inicial, a mae queixava-se de que A agredia todos os familiares, nao assumia por si mesma quase nenhuma das responsabilidades proprias de sua idade (levantar-se cedo para ir 4 escola; locomover-se por conta propria, utilizando Gnibus ou taxi; executar trabalhos escolares na época certa etc.) e ainda discutia constantemente com ela, sua mae, quando era lembrada de seus deveres ou chamada a cumpri-los. Mais tarde, viemos a perceber que, embora aparentemente A se irritasse com as intervengdes maternas, suas condutas, mesmo sem uma consciéncia explicita, muitas vezes solicitavam tais tipos de complementagado, numa busca e cuidados especiais e numa tentativa de concentrar as atencdes da familia em torno de si. Entretanto, as primeiras entrevistas j4 tornavam evidente uma rela¢ao de intensa dependéncia, na qual a mae estava quase todo o tempo ocupada com a filha, para lembra-la de suas obrigagées ou para controlar suas crises impulsivas, verdadeiros acessos de raiva em que A atirava e quebrava objetos da casa. Assim, a mae, dividindo seu tempo diario conforme os compromissos da filha, tratava-a, efetivamente, como uma crianga mais nova, conduzindo-a de automével a todas as partes, * Como é a descrigdo de um caso, o texto nao foi atualizado nesta edig&o (N do E.) 10 Alfredo Naffah Neto assumindo, enfim, uma atitude que favorecia muito pouco a independéncia de A. A familia era ainda constituida pelo pai que, segundo as informagdes colhidas, parecia bastante ausente dos assuntos da casa, dedicando-se quase exclusivamente aos negécios, e por um filho mais velho, outra fonte de preocupagao para os pais. Esse rapaz néo trabalhava nem estudava e manifestava condutas contraditorias: ao mesmo tempo que expressava uma indiferenga afetiva em relagdo a todos, aceitava freqiientemente as discuss6es provocadas pela irma, numa aparente disputa pela aten¢do dos pais. Outro fato importante revelado pela mae, numa entrevista em que A estava ausente, esclarecia que os dois irma&os eram filhos adotivos, oriundos de casais diferentes, e que desconheciam essa origem. Ambos haviam sido recolhidos diretamente da maternidade por um médico amigo da familia, sendo a identidade de seus pais consangiineos ignorada, Tal situagao, embora houvesse preservado a unidade da familia, ndo impedira que a mae, por medo de perder o amor dos filhos, viesse ocultando-Ihes sua origem. Reconhecia, entretanto, que essa omissdo poderia ser uma das “causas” (em seus proprios termos) das atuais dificuldades de A. No Ambito social, A sentia um grande medo de ser abandonada pelos amigos, a ponto de se tornar incapaz de, ao mesmo tempo, recusar ou aceitar quaisquer convites para passeios que recebia de garotas e rapazes de sua idade. Contudo, nunca expunha as razdes reais de sua recusa (falta de entusiasmo, medo de sair sozinha com um rapaz etc.); nessas ocasides mentia sempre, atribuindo a impossibilidade de sair aos pais, a um pretenso compromisso com 0 dentista, e assim por diante. Desde a data em que nos procurou, A vem participando de sessdes semanais de psicodrama. Seus pais foram encaminhados a outro psicdlogo para entrevistas familiares, reduzidas posteriormente a um processo terapéutico da mae, uma vez que o pai, alegando ja se submeter a um tratamento psicoanalitico, e o irm4o, por mero desinteresse, negaram-se a continuar participando das sessées. De inicio A foi introduzida num grupo de psicodrama, que, entretanto, passou a rejeita-la violentamente ao cabo de poucas semanas. Isso ocorreu, sobretudo, em razdo de suas dificuldades de Psicodrama: descolonizando 0 imaginario relacionamento e de sua necessidade de obter a atencdo dos terapeutas exclusivamente para si. Por sua recusa em continuar no grupo, resolvemos transferi-la a um atendimento individual, em forma psicodramatica e com a participagao de um ego-auxiliar,| além do diretor ou terapeuta principal. Com a saida do ego-auxiliar (cerca de um ano depois e por motivos alheios a terapia), o atendimento transformou-se num psicodrama bipessoal, porque A nfo admitia a introdugao de um auxiliar desconhecido naquela fase do processo. Desde entao, passamos a participar de todas as fases da sessdo, a dramatizar com A, fazendo as vezes de diretor e ego-auxiliar — procedimento comum no psicodrama bipessoal, ao contrario do psicodrama classico, no qual cabe ao ego-auxiliar a contraparte na representagao dramatica, dado que é dificil para o diretor interpretar papéis e, a0 mesmo tempo, acompanhar a seqiiéncia das cenas e 0 rumo que vai tomando a explicitac&o do tema no desenvolvimento da sessio. Durante todo esse periodo de terapia, A lidou com varios de seus problemas e muitas de suas dificuldades vém sendo gradativamente superadas (como a de assumir a realidade de sua origem, da qual teve conhecimento numa sessao familiar realizada com o outro psicélogo, encarregado do acompanhamento da familia). A sesso que vamos relatar a seguir ocorreu aproximadamente apés dois anos de psicodrama, quando A contava cerca de 14 anos. Orrelato de wna sessdo de A Local: uma sala retangular, um tablado oval no centro (palco), cercado de pufes; sobre 0 tablado ha duas cadeiras fechadas (com as extremidades do lado interno encostadas uma na outra).” Participantes: terapeuta (T) e cliente (A) A chega, entra e senta-se no lugar de costume. T: “Como 62...” A partir de agora, ¢ durante toda a Introdugo, usaremos grifo para diferenciar os conceitos tedricos e expressdes técnicas de outros termas da linguagem usual 2 As cadeiras so abertas para marcar inicio da dramatizagao e, fechadas, para marcar seu fim. Foram introduzidas no psicodrama pelo doutor J. Rojas-Bermiadez, como forma de marcagao cénica. 12 Alfredo Naffah Neto A: “Olha, eu queria te contar uma coisa ja ha algum tempo... Pois é... Desde que eu assisti ao filme O Exorcista. eu nao consigo mais dormir com a luz apagada. Tenho a impressao de que tem uma sombra atras de mim. E gozado... eu nunca tive medo de escuro. Dai eu disse: ‘Vamos parar com isso!’. Consegui dormir uma semana; depois nado consigo mais. Outro dia eu estava tomando banho, fechei os olhos, ficou tudo escuro, eu levei um susto! E outro dia queimou a luz do abajur, eu resolvi trocar, mas nao linha. Dai eu tentei tirar a luz do fogdo, mas queimou. Minha mae disse para eu parar com isso, que ela vai desligar 0 relogio da tuz da casa para ficar tudo escuro que é pra eu parar com isso...” (Fala o tempo todo com um sorriso, um ar entre espantado e curioso.) T: “Vamos tentar representar aqui?” A . T: (vai até 0 palco, “abre as cadeiras”) A: (sobe ao palco) T: “Reconstitua o seu quarto.” A: (coloca varias almofadas numa certa relagdo espacial entre si, dizendo o que cada uma delas representa: a cama, as poltronas, a janela, a televisao) “O que vocé faz primeiro?” A: “Primeiro eu vejo televisdo; depois eu vou e fecho bem as janelas... bem fechadas! (sorri) depois eu pego o abajur e coloco perto da porta; ai apago a luze deito.” T: “Ent&o vamos comegar. Ai esta a televisdo. Onde vocé se senta?” A: “Aqui.” (senta-se) “O que esta passando na TV?” A: “Filme de detetive.” : “O que esta acontecendo?” A: “Ele esta procurando o assassino. Subiu as escadas e 0 cara ta correndo. Agora encontrou... acabou...” (para) T: “Continue. Faga as coisas que faz habitualmente. E 0 que lhe vier a cabega vocé vai dizendo em voz alta, como se pensasse em voz alta.” * Os abjetos ¢ personagens representados virdo sempre acompanhados de um asterisco (*) para diferencii-los dos objetos ¢ pessoas reais. Psicodrama: descolonizando o imaginario A: (caminhando em diregao a janela*)’ “Agora preciso fechar a janela... hum.., Ah! O abajur... (dirige-se para a porta*) Agora vou acender o abajur.” (acende o abajur* e apaga a luz do quarto*) T: (apaga a luz da sala pouco depois e acende uma pequena luz indireta) A: (deita-se na cama* e continua a se expressar em voz alta) “Puxa, que droga! Estou sozinha aqui... nao tem ninguém...” T: (apaga a luz indireta; a sala fica as escuras) A: “Que droga! A luz do abajur queimou. Acho que vou abrir a janela.” (dirige-se a janela real) T: “Faz de conta...” A: “Ah, sim! (abre ajanela*. Volta para a cama*, comega a se mexer de um lado para o outro) Que droga! Nao consigo dormir. (fica imovel, virada para o lado oposto ao do T) Tenho a impressao de que tem uma sombra atras de mim...” (fica em siléncio algum tempo) T: “Diga em voz alta os pensamentos ou as imagens que lhe vierem a cabega.” A: “Estou vendo uma mancha. N&o tem muita forma. De um lado é branca, de outro ¢ preta, parece meio gelatinosa, cheia de buracos... A parte escura parece que suga a parte branca.” (faz movimentos com a mao) T: “Continue. Como €?” A: “Nao sei... Parece umas arvores... no meio delas € branco... neve... como se tudo viesse por cima de mim, nao sei...” T: (interrompe a cena, acendendo a luz) “OK, entéo vamos representar aqui a cena das arvores.” A: (levanta-se, tira as almofadas da cena anterior e coloca quatro almofadas enfileiradas de um lado e quatro enfileiradas paralelamente, com um pequeno espago no meio; no fim das duas fileiras coloca mais uma almofada numa posi¢&o central, bem no meio das duas filas: da a impressio de um caminho interrompido num certo ponto) “Aqui estado as drvores, a neve esta no meio delas.” T: “OK, agora deite-se novamente.” A: (deita-se) T; (apaga a luz da sala e acende a luz indireta de cor azulada) “Agora imagine como se estivesse sonhando. Vocé vai levantar e agir como se fosse um sonho.” Alfredo Naffah Neto A: (levanta-se, dirige-se para as arvores, fica parada no extremo das fileiras, de frente para a almofada que esta no outro extremo) “E como se tudo viesse na minha direco... Como se estivessem me observando...” T: “Agora vocé vai fazer o papel de uma das arvores e eu vou entrar © representar vocé,” A: (ocupa a posi¢ado da arvore* situada no final e centralmente as duas fileiras) T: (representando A, repetindo o mondlogo anterior) “E como se tudo viesse na minha diregao... Como se estivessem me observando...” A: (como arvore) “O que vocé est4 fazendo aqui? Aqui nao é lugar para vocé! Vocé devia ir embora...” T: (como A) “Nao sei... Por que eu devia ir embora?” A: (como arvore) “Aqui nao é lugar pra vocé...” T: (como A) “Mas por qué?” A: (como arvore) “Aqui sé tem arvores. Nao tem pessoas, a gente fica sozinho, nio pode conversar, dar risada... Vocé devia ir embora...” T: (como A) “E isso é bom?” A: (como arvore, apresenta uma reagao que expressa alguma surpresa e um certo titubeio) “E... as vezes é bom... as vezes é ruim.” T: (sai de cena, desce do palco interrompendo a cena) Agora vocé volta a ser vocé mesma. Eu vou fazer a arvore.” (T e A ocupam as novas posi¢des) T: (como arvore, retoma a cena anterior) “Aqui nado tem pessoas, a gente fica sozinho, nado pode conversar, dar risada... Vocé devia ir embora...” A: “Mas como vou sair daqui?” T: (como arvore) “N&o sei, vocé é que tem que achar 0 caminho. Nés somos 4rvores, vivemos presas 4 terra, nao podemos nos movimentar...” A: (enfaticamente) “Mas eu posso! Eu nao sou arvore, sou livre...” T: (como arvore, monologando) “E... A terra é como se fosse nossa mae... sem ela nao podemos viver... Estamos presas pelas raizes... E da terra que nos alimentamos...” aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Alfredo Naffah Neto T: “O qué?” A: “Muitas... eu que nao saio de casa, fico em casa 0 tempo todo... minha mae... so.” T: “E a sombra?” A: “Ah, a sombra! Nao sei, ela tem uma forma assim...” (desenha no ar, com as maos, o seguinte movimento: T: “Assim?” (repete com as mAos 0 movimento) A: “Er T: “Como o qué?” A: (pensativa) T: “Como uma arvore?” A: (0 rosto se ilumina, num sorriso) “E... isso mesmo! Como uma arvore...” T: “E 0 que significa pra vocé uma arvore?” A: “La (aponta o palco), as arvores ficavam grudadas no chao... E, elas ficam mesmo grudadas na terra. E da terra que suas raizes tiram agua pra formar... Como é mesmo que chama?” T A: “Como eu... Esse fim de semana fiquei trés dias plantada em casa!” T: (sorrindo e acentuando a palavra) “Plantada?” A; (sorrindo) “E. Como uma arvore... As vezes me da vontade de telefonar para as amigas pra sair, mas dai eu penso... ‘Pode acontecer tanta coisa inesperada, e dai como € que eu fago?’... Ai resolvo ficar. Mas ja estou cheia disso, quero mudar... Mas por que é que eu fico em casa?” T: “O que sera que a prende?” A: “Nao sei... ah... minha mae...” T: (sorri) “E...” Psicodrama: descolonizando 0 imaginario A: “Mas nao é minha mae, ao mesmo tempo, porque minha me sai e eu acabo ficando sozinha.” T: “Mas na sua cabega é como se fosse.” Ai SE” T: “OK, A, por hoje vamos ficar por aqui.” (Levanta-se; A sai da sala.) T: “Tchau!” A: “Tchau! Até a semana que vem...” Una tentativa de leitura da sesséio, segundo os conceitos teéricos de J. L Moreno A sessao divide-se em trés fases: aquecimento, dramatizagao e comentarios. O aquecimento, por sua vez, divide-se em duas subfases: aquecimento inespecifico e aquecimento especifico. a) Aquecimento inespecifico Inicia-se no momento em que A entra na salae finda no momento em que T abre as cadeiras, dando inicio ao aquecimento especifico. “O ‘aquecimento inespecifico ’, quando a forma do psicodrama é grupal, é a ‘preparagdo’, ‘relaxamento’, ‘aquecimento’(‘ warming up’ em inglés) do grupo, a busca de um problema comum e do protagonista adequado”.* Em outros termos, é quando o tema do “encontro” vai se explicitar e 0 individuo, cuja problematica melhor exprimir esse tema, vai ser escolhido como “protagonista” do grupo. Mas 0 que significa realmente aquecimento? Os estados espontaneos s&o provocados por diversos iniciadores. O sujeito pde em movimento seu corpo e sua mente, utilizando atitudes corporais e imagens mentais que o levam 4 consecucdo desse estado. A isto se chama processo de aquecimento. Pode ser produzido por iniciadores fisicos (um processo fisico complexo no qual desempenham um papel principal as contragées musculares), iniciadores mentais (sentimentos ¢ imagens que sao * Moreno, J. L. Psicoterapia de grupo e psicodrama, So Paulo: Mestre Jou, 1974, p.ll2. 18 Alfredo Naffah Neto sugeridos freqientemente por outra pessoa) ¢ iniciadores psicoquimicos (estimulagao artificial mediante o alcool, por exemplo) ... Ndo se pode compreender 0 processo terapéutico do psicodrama sem uma completa consideragdo das técnicas de aquecimento. Como € bem sabido. com respeito a exercicios simples, como os de correr, nadar, boxear, a capacidade do atleta para entrar em calor facilmente ¢ sem perturbagado para a tarefa Pproposta tem muito a ver com sua eficiéncia ... Cada papel, para ser adequadamente executado, requer a focalizagiio e a agéio de um diferente conjunto de musculos, que afetam durante o exercicio muitos sistemas auxiliares. Cada vez que representa um papel distinto, por exemplo, o de agressor, o de timido, o de cauteloso, 0 de auto-observador, 0 de ouvinte, o de amante etc., se acentua € poe em exercicio um conjunto diferente de musculos’ Em nosso caso, que 60 de psicodrama individual, 0 aquecimento inespecifico consiste naquela parte da sessAo em que a tematica do “encontro” se explicita até o ponto onde uma maior explicitagao ja requer 0 nivel dramatico. Aqui nao existe a preocupac¢ao em escolher o “protagonista”, dado que ele é sempre 0 mesmo, ou seja, a senhorita A. Quando falamos em tematica do encontro, queremos dizer a via pela qual o individuo se encontrara consigo mesmo, com o auxilio do outro; nos termos de Moreno: Um encontro de dois: olho a olho, cara a cara. E quando estiveres perto arrancarei teus olhos e os colocarei no lugar dos meus e tu arrancaras meus olhos € os colocaras no lugar dos teus, entdo eu te olharei com teus olhos e tu me olhards com os meus..° Na sessdo que estamos analisando, 0 aquecimento inespecifico se fez muito rapidamente, exigindo da parte de T uma atuagao (perguntas, solicitagdes etc.) muito menor do que em outras sessdes anteriores de A. Pode-se dizer que, na atual fase do processo psicodramatico, a relagao de A com T esté marcada por uma tele altamente positiva. (“Um complexo de sentimentos que atrai uma pessoa para a outra e que é suscitado pelos atributos reais desta, > Idem, Psicodrama, Buenos Aires: Hormé, 1972b, p.305-6. *Ibidem, p.17. Psicodrama: descolonizando 0 imaginario individuais ou coletivos, é chamado relagdo tele.”’ “Na sensibilidade télica ha igualdade, reciprocidade, mutualidade. A reciprocidade télica é a caracteristica comum de toda experiéncia de encontro. Ha uma sensibilidade, um halo que une suas individualidades.”)* Essa tele positiva &, talvez, uma das razGes que facilitaram 0 aquecimento inespecifico. A outra diz respeito ao fato de A estar se preparando para essa tematica ja ha algum tempo (segundo suas proprias palavras). Nesse sentido, parece que 0 ayuecimento iniciou-se antes do comeg¢o da sessdo; quando A entrou na sala ja estava em acdo uma série de iniciadores mentais (lembrangas das situagdes de medo do escuro), e a presenga de T funcionou apenas como um catalisador para que um conjunto de musculos fossem postos em atividade (relato inicial de A). Podemos também dizer que a tematica do encontro se explicitou, nesse nivel da sessdo, como “o medo que A sente do escuro™. Dizemos nesse nivel da sessdo, porque, com o desenrolar desta, o tema, ao se desenvolver, vai-se transformando e explicitando uma variedade de outros aspectos até entio pouco claros, tanto para o cliente como para T, 0 que dé ao psicodrama o tom do “inesperado”. E 0 que acontece na sesso que estamos analisando, conforme veremos mais adiante. Por hora, convém marcar que ja no relato inicial esta presente um aspecto da tematica que se tornard, com 0 desenvolvimento da sessdo, seu nticleo, ou seu aspecto central, ou seja, a relagdo de dependéncia entre A e sua mae (“Minha mae disse para eu parar com isso” etc.). Entretanto, nessa fase da sessio, nem oT, nem A poderiam prever que tal aspecto se revelaria com 0 nucleo da tematica em questao. 4) Aquecimento especifico e dramatizacao O aquecimento especifico é a continuagio do aquecimento inespecifico e marca a transigao entre este e a dramatizagdo. Enquanto a fase anterior era inespecifica, conforme diz 0 préprio nome, ou seja, o tema estava aberto a uma infinidade de possibilidades, essa fase é especifica, ou seja, é um aquecimento para a dramatiza¢do de uma tematica especifica. *Ibidem, p.302 * Fonseca Filho, J. S. Correlagdo entre a teoria psicodramdtica de J. |.. Moreno a filosofia dialogica de Martin Buber. wese de doutoramento, p.22 20 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Psicodrama: descolonizando 0 imaginario comportamento psicdtico pode, por exemplo, ser a tal ponto incoerente que o protagonista é incapaz de resolver um problema concreto, como, por exemplo, cortar um pedago de pao. Falamos entdo de espontaneidade patolégica. Por outro lado, a adequacgao do comportamento pode ter tal falta de novos elementos, que o comportamento do paciente se transforma em rigido € automatico, tomando 0 carater de uma conserva cultural’? Nesse sentido, podemos dizer que a dramatizagdo tem por finalidade levar o individuo a uma expressio espontdnea e criativa, que possibilite a recriagdo dos papéis rigidamente desempenhados na situagdo real, andloga a da representaga&o. A representagi’o espontanea e criativa dos papéis, levando o individuo a situar-se de uma nova maneira diante da realidade, colocando a imaginagao e a criatividade a servico da realidade concreta com a qual o individuo se defronta, é que vai possibilitar uma reordenagao ou reorganiza¢io da experiéncia do individuo. Assim o psicodrama devolve-lhe tudo 0 que tinha alienado nas formulagées estranhas ao seu espirito." Ele interioriza seu pai, sua mae, sua amante, seu delirio e suas alucinagdes ¢ a energia que ai havia invertido morbidamente lhe é devolvida quando cle pode “viver” realmente © papel de seu pai, seu patrio, seu amigo ou seu inimigo. Através da inversao de papéis com eles descobre muitas coisas sobre os mesmos que a vida nao Ihe havia mostrado. Quando finalmente encama as pessoas de suas alucinagdes, perdem elas nao sé sua forga e energia, mas ainda cle incorpora essa forga em si mesmo. Seu proprio eu tem a oportunidade de se reencontrar ¢ se reordenar; de reestruturar os elementos dispersos por forgas malignas, de com eles formar um conjunto e, com isso, ganhar um sentimento de forga ¢ alivio, umacatarse de integracdo.”“' Feita essa breve exposi¢ao de alguns dos principais conceitos tedéricos de Moreno,'* voltemos a andlise da sessio de A. O primeiro aguecimento especifico realizado se inicia no momento em que o T pede a A que suba e reconstitua 0 seu quarto, © Ibidem, p.58. " O automatismo leva a uma cisdo entre imaginagao ¢ ago, of € a uma alienagao no proprio papel. “Moreno, J. L., op. cit., 1974, p.112-3 © Uma exposigdo mais detalhada destes conceitos ¢ a discussdo de outros nao citados aqui s6 sera feita nos capitulos posteriores. 22 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Psicodrama: descolonizando 0 imaginario manter-se sua disting4o do contexto grupal, que é, sem divida, o contexto verdadeiramente real; caso contrario, corre-se o risco de permitir que a imaginagao se sobreponha 4 realidade, criando formas de uma espontaneidade patoldgica. Apés a intervengao do T, A reassume a cena anterior, mas persiste © bloqueio da espontaneidade, A nio consegue dormir, sente medo da sombra, mas continua com uma atitude passiva, sem conseguir criar qualquer solugao para o problema. Entretanto, a volta de A a situagdo dramatica parece ter significado uma predisposigao para enfrentar o problema, tanto que 0 medo anterior, que bloqueava sua espontaneidade (no caso, sua capacidade para enfrentar 0 escuro), vai aos poucos e a medida que o aquecimento se reinicia, cedendo lugar a uma imagem que indica um novo caminho na explicitacao da tematica da sessao. E como se o retorno a situacdo dramatica tivesse funcionado como um reinicio do aquecimento, em que a imagem surge como um iniciador mental que comega a preparar A para uma nova dimensao do problema a ser re-vivenciada e explicitada. A imagem, inicialmente um pouco nebulosa e obscura, ja sugere, entretanto, algumas relagSes: uma mancha dividida em duas partes, uma preta, uma branca, em que a parte escura suga a parte branca, Podemos notar ai uma totalidade diferenciada em duas partes em que uma (a parte preta) suga a outra (a parte branca), ou seja, numa relacdo sugerindo dependéncia."”” OT procura solicitar de A uma maior explicitagao da imagem e entao a parte negra se explicita como arvores e a parte branca como neve no meio das arvores. Nesse momento o T interrompe a cena e procura seguir dramaticamente 0 novo caminho proposto pela imagem. Uma segunda cena se inicia como um novo aquecimento especifico, no qual A é levada a reconstituir (com as almofadas) a cena das 4rvores. Como a imagem tinha se expressado como uma vivéncia semi-onirica, 0 aquecimento continua para preparar A a desempenhar os papéis num contexto semelhante aquele em que Poderiamos ir mais além e interpretar como uma relagaio indiferente mae-bebé (amamentagao). Entretanto preferimos seguir a propria explicitagao dramatica. 24 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Psicodrama: descolonizando 0 imaginario dimens&o da tematica se propde: a da liberdade, da capacidade de autolocomogao e de autodeterminagao. Mas A percebe que a 4rvore* nado lhe pode dar a resposta, pois vive em completa determinagao, sua prépria vida depende da relagdo de dependéncia que mantém com a terra, de onde “suga” o material com 0 qual vai produzir seu alimento. E nesse momento que se dé o ponto culminante do encontro: A consegue perceber-se pela imagem da arvore; na verdade percebe que toda sua vida tem sido semelhante a vida de uma 4rvore e que toda sua existéncia ainda se acha presa a procura da mae natural, do seio que nunca sugou, do leite que nunca péde provar: a mae que nunca conheceu. Todo 0 aquecimento anterior, liberando a espontaneidade de A, permitiu que, nesse momento, ela pudesse se confrontar (sem fugas e conscientemente) com a situagao real em que tem vivido. Ou como diz Moreno: “A espontaneidade nio funciona sendo no momento em que surge; pode-se comparé-la metaforicamente 4 lampada que se acende e gracas a qual tudo se torna diferente no aposento”.?! Nesse sentido, pode-se dizer, como diria Moreno, que a espontaneidade e a criatividade de A puderam, nesse momento, tornar-lhe consciente toda a motivagao insconsciente que a aprisionava ¢ a alienava num papel: o papel de filha que, assumido e representando de uma maneira inconsciente, automatica, rigida, dominava toda a agado de A em suas diversas situagées vitais, impedindo condutas espontdneas e criativas. Nos termos de Moreno: “Para o criador absoluto carece de sentido a dicotomia inconsciente- consciente. Para ele, o inconsciente e o consciente se transformaram em valores idénticos. Esta sempre no nivel da criatividade. O conceito de inconsciente 6, pois, um produto derivado, uma projegio patoldgica de um sujeito que se empenha em aquecer-se para realizar um ato que nado pode dominar inteiramente.”*? Na verdade, A passou grande parte de sua vida sem condigées de um conhecimento real de sua origem, tendo “plantado” toda sua vida sobre um “solo” falso. Nesse sentido, quando teve conhecimento ¥ Nesse sentido podemos dizer que inclusive as cenas draméticas anteriores funcionaram como um aquecimento para esta cena. * Moreno, J. L. Fundamentos de ta sociometria, Buenos Aires: Paidds, 1972a, p.57. * Idem, Psicomusica y soctodrama, Buenos Aires: Hormé S.A.E., 1965, p.55. 26 Alfredo Naffah Neto desse fato, faltou-lhe espontaneidade suficiente para enfrentar a situagdo, domina-la e ter condigdes para se desprender dela. Da mesma forma, deve-lhe ter faltado espontaneidade para dominar a situagao de desligamento de sua mae natural no momento em que isso ocorreu, pois desde entdo A passou a viver numa atmosfera de ocultamento, por causa do medo dos pais adotivos de Ihe contarem a verdade. Foi assim que toda essa situagao, envolta em mistério, impedindo uma expressio espontdnea dos sentimentos, desejos e emogées de A em relacao ao préprio fato, passou, dado que existia, mas nao era conhecida, a dominar inconscientemente sua conduta. E isso esclarece toda a indecisio que caracterizava a conduta de A; querer e n4o querer, gostar e ndo gostar; na verdade, a dramatizagdo revela que A desejava se libertar, sair do proprio isolamento em que vivia,*> mas ao mesmo tempo se sentia presa aquela situag&o, sem saber porqué e sem condigdes de encontrar uma saida. A seqiléncia final da dramatizagao comega a explicitar a conexdo destes fatos com toda a parte anterior da sessdo: na verdade a “sombra desconhecida” que tanto a amedrontava é sua propria “sombra”; simbolicamente, é a sua propria existéncia envolta no mistério e na obscuridade, e da qual A vivia alienada e sem condigdes de um confronto consciente. Desta forma, sua propria situacado vital existia para ela como algo estranho, ndo-préprio, amedrontador. Nessa seqiiéncia, o T procura levar A a se situar diante de sua sombra real e a ser capaz de dominar sua produgdo e sua transformagio. A seguir o T encerra a dramatizagdo e passa 4 parte final da sessio: a de comentarios. Comentarios A fase de comentdrios, no psicodrama grupal, € aquela em que a tematica explicitada pelo protagonista é¢ ampliada e especificada em relagdo a cada um dos membros do grupo (evidentemente também » A forma real desse isolamento aparecera na seqiténcia final da sessio, 27 Psicodrama: descolonizando o imaginario em rela¢ao ao proprio protagonista) e ao funcionamento do grupo como um todo. Dado que 0 protagonista é apenas um “porta-voz” de uma tematica grupal, mas a dramatizagao se faz em torno de um s6 individuo, os comentarios constituem, nos termos de Moreno, a parte da sesso dedicada ao “drama do grupo”.** Os comentarios. porém tém uma outra fungao importante e que transcende o nivel puramente grupal: a de marcar a relacao da tematica explicitada no contexto dramdtico com 0 contexto social, ou seja, com a situagao ou as situagdes reais em que vivem os individuos que compdem o grupo. No psicodrama individual, a fase de comentarios tem as mesmas fungdes, embora dirigida a um s6 individuo. No caso de A a parte dos comentarios foi bastante curta e isso em razio de grande parte da tematica ter sido explicitada na propria dramatizagdo. A atuacgio do T visou, durante todo o tempo, possibilitar a ela uma explicitag&o mais completa das conexdes do tema ja experienciadas dramaticamente,* relacionando-as, ao mesmo tempo, com sua situagao real da vida. Nesse sentido, a solidaio ou o isolamento de A acabam por se revelar como um medo de enfrentar situagdes novas, inesperadas, em virtude do qual ela se isola dos amigos, colegas etc., enfim, de todo tipo de situagao que lhe possa parecer nao muito conhecida ou amedrontadora. Ao mesmo. tempo, A percebe que a protegdo que busca, ao se “plantar” dentro de casa, ndo se refere aos fatos reais que formam a sua realidade do dia-a-dia: a “mae protetora” é mais uma idealizagio, uma figura irreal, imaginaria, do que realmente um fato concreto (tanto que sua mae adotiva nem mesmo fica em casa nessas situagdes; como, entao, poderia protegé-la?). Esse tipo de situagdo em que a fantasia acaba suplantando, em grande parte, a realidade é comum nos individuos pouco espontaneos;** assim, pode-se compreender toda a conduta anterior de A e as dificuldades em que se via envolvida. Nesse * Moreno, J. L., op. cit., 1974, p.113. * Como por exemplo a relacao da “sombra” desconhecida como a imagem da arvore ¢ todo 0 significado subjacente a cla. °° A incapacidade de coordenar a criatividade A realidade existente (grau de adequacdo) pressupde uma cisto e imaginagdo em que ambas, coexistindo independentemente, podem-se suplantar mutuamente, gerando ora condutas automaticas ¢ rigidas, ora uma criatividade patologica (de tipo psicotico). 28 Alfredo Naffah Neto sentido, podemos dizer que os comentarios finais da sessado, retomando a realidade concreta em que vive A e favorecendo uma nova tomada de posi¢io de A diante desta realidade (apds todo um processo de explicitagao dramdtica), reorganizando a experiéncia dramatica e suas experiéncias do dia-a-dia numa mesma unidade experiencial, p6de, sem divida, favorecer-Ilhe mais um passo no caminho de uma maior capacidade de autodeterminagao, enfim, de uma maior liberdade. Algumas observacées sobre a leitura da sessdo de A, segundo os conceitos morenianos A sessdo anterior representou para nds um esforgo no sentido de nos atermos, ao maximo, as possibilidades que os conceitos morenianos nos oferecem para uma leitura compreensiva de uma sessio de psicodrama. Nesse sentido, procuramos ser (o mais possivel) fiéis, n&o s6 as definigdes dos conceitos propriamente criados por Moreno (como os de espontaneidade, criatividade, tele etc.), como a maneira pela qual determinados conceitos anteriores foram absorvidos e redefinidos pela teoria psicodramatica (como, por exemplo, 0 conceito do inconsciente). Entretanto, temos consciéncia de que a leitura compreensiva da sessio de A reflete, sem duvida, mais do que uma utilizagdo totalmente “objetiva” ¢ sem viés dos conceitos morenianos, pois se trata de uma tentativa ou de um esforgo para apreender e utilizar, mediante um exemplo concreto, a propria significagdo desses conceitos. Neste sentido, nossa leitura possui a parcialidade e 0 ndo-fechamento caracteristicos de um discurso que se sabe situado, incapaz de sobrevoar seu objeto e, por isso mesmo, parcial. Pois, como negar que, tanto na apreens&o como na utilizagao dos conceitos, nossa subjetividade, nossa posi¢do necessaria, imprime ao discurso uma perspectiva particular? Entretanto, Merleau-Ponty ja no-lo dizia, a menos que concebamos 0 sujeito do conhecimento como um Espirito Absoluto, o particular ainda constitui a unica via de acesso 29 Psicodrama: descolonizando 0 imaginario ao universal.*” Neste sentido, preferimos nado assumir esta leitura da sessio de A como representando “a perspectiva moreniana”, pois isto seria situar o discurso de Moreno como portador de um sentido absolutamente apreensivel do qual investiriamos como representantes; isto quando nossa proposta consiste justamente num esforgo para elucidar seus conceitos. Assim, pois, é necessdrio ver- se nessa nossa leitura da sessio de A unicamente aquilo a que nos propinhamos ao realizd-la: colocarmo-nos na posi¢io de um psicodramatista que, diante da realidade de uma sessdo de psicodrama especifica, esforga-se para decifra-la, langando mao dos conceitos de que dispde. Por essa razo, procuramos assumir a perspectiva do investigador ingénuo que, sem ter feito ainda uma anilise critica conceitual, sem ter pesquisado ainda os fundamentos reais dos conceitos que utiliza, simplesmente os assume. Acreditamos que essa seja a atitude realmente assumida pela maior parte dos psicodramatistas que conhecemos, seja por contatos diretos ou por publicagdes. Nesse sentido, a leitura da sesso de A segundo os conceitos morenianos é, nessa fase inicial do nosso trabalho, uma analise que permanece presa aos riscos de uma leitura ideolégica, pois é inconsciente dos fundamentos reais dos conceitos utilizados. Todavia, essa primeira leitura é, ndo s6 necessdria, mas propositadamente, arriscada, pois ela devera representar nosso ponto de partida e, como tal, ser abstrata e exigir o percurso reflexivo e critico que pretendemos realizar. Esperamos, nesse sentido, que ela possa oferecer-se como um exemplo tipico da maneira como nés, psicodramatistas, utilizamos a teoria de Moreno para explicar e justificar nossa pratica. Pretendemos, ao chegar ao término do caminho, que o ponto de partida possa ser tomado como revelador do mesmo esfor¢o universal empreendido por uma comunidade de psicodramatistas que (cientistas ou idedlogos?) se encontram tao envolvidos na tarefa de explicar ¢ justificar seu trabalho pratico, pelos conceitos morenianos, que se esquecem de que estes sé constituirao uma verdadeira teoria * O problema do particular ¢ do universal constitui um dos temas de dificil solugado que tem preocupado os filésofos desde sempre; por isso nao nos cabe elucida-los aqui. Entretanto, para um aprofundamento maior da perspectiva que assume com relagao as ciéncias humanas, ver: Merleau-Ponty, M. “O metafisico no Homem”, in Os pensadores, v.XLI, Sao Paulo: Abril, 1975, p.369-82. 30 Alfredo Naffah Neto com base em um trabalho filoséfico que explicite seus fundamentos, revele suas bases ideoldégicas, numa perspectiva de transformagao e superacgdo que é o préprio processo de conhecimento. 2- A primeira posi¢do ante os conceitos morenianos ea proposta de pesquisa Um rapido passar de olhos pela nossa leitura compreensiva da sessio de A nos mostra que um dos conceitos mais freqilentemente empregados no psicodrama € 0 de espontaneidade. E isso nao ocorre por um mero acaso. Na verdade, o nticleo fundamental da teoria moreniana parece ser, sem dtvida, a “doutrina da Espontaneidade- Criatividade”.* Historicamente 0 psicodrama se originou do Teatro Espontaneo ou Teatro da Improvisagdo, fundado por Moreno em Viena, no ano de 1921,” e rompia tacitamente com os modelos teatrais da época, propondo uma encenacao onde tudo era improvisado e criado no momento, “nao sé em seu carater, mas também em sua forma e contetido”.* Deste modo “cada ator que improvisa é, de fato, o criador de seu personagem e o produtor da improvisagao (ou 0 autor) deve sintetizar os processos de cada personagem numa nova totalidade”.*! Do Teatro da Espontaneidade, que pretendia pér fim A repeti¢ao da conserva dramatica, “abandonar os clichés dos papéis, permitir a4 contribuigdo ser inteiramente criadora e espontanea e desenvolver pap¢is in status nascendi”, nasceu o Teatro Terapéutico, cujo desenvolvimento seguinte foi 0 Psicodrama. Quando Moreno percebeu, por meio do famoso caso da atriz Barbara,* que a representacdo improvisada das situacdes da vida (que eram fonte de conflito), provocava a catarse, isto é, uma 2 Conforme denominagdo do proprio Moreno. » Moreno, J. L., op. cit., 1974, p33 © Idem, 1972b, p.77. * Thidem, p.76. * [bidem, p.73 ™ Ibidem, p.24-6. Psicodrama: descolonizando o imaginario purificagao ou iluminacao, levando o individuo a superar as proprias dificuldades, nasceu 0 psicodrama. Dessa forma, 0 psicodrama eo conceito de espontaneidade nasceram praticamente juntos, 0 primeiro como expresso do segundo. Contudo, a propria leitura da sessdo de A nos evidencia, por si, a importancia conceitual do termo espontaneidade na teoria moreniana, Na verdade, desde 0 aquecimento e da possibilidade de representagdo e criagdo dos papéis (por exemplo, na cena das arvores), ao momento culminante do encontro e a catarse de integragdo final, 6 evocado 0 conceito de espontaneidade como o elemento catalisador de todo 0 processo terapéutico. Entretanto, quando tentamos aprofundar a andalise de dois conceitos tao importantes para Moreno, como os de espontaneidade e criatividade, encontramos simplesmente definigdes imprecisas e confusas. Por um lado, a espontaneidade é definida como “a resposta de um individuo diante de uma situa¢4o nova —e a resposta nova a uma situagdo antiga”.** Nesse sentido, se a espontaneidade é a capacidade de reagir de uma maneira nova a uma situagao antiga, tudo nos leva a crer que ela ja implica em criatividade. Se nao, qual seria o sentido dos termos nova ¢ antiga? Outras passagens parecem esclarecer o problema: “Através do ‘teste de espontaneidade’ pode-se observar e medir 0 grau de adequagdo e originalidade. Originalidade do comportamento nao é€, em si, uma prova de espontaneidade, assim como a adequagao do comportamento, apenas, nao o é”.** Esse fragmento de texto parece nos dizer que a espontaneidade implica sempre um grau de “adequagdo” e um grau de originalidade, sendo esta definida como “o livre fluxo de expressdo que, através da analise, nao revela nenhuma contribui¢&o importante em grau suficiente para chama- la de criatividade, mas que, ao mesmo tempo, em sua forma de produgio, é uma ampliagio ou variagdo tinica da conserva cultural, tomada como modelo”.** Mas uma forma de produgao que é uma variagdo unica nao implica necessariamente algum tipo de criagao? * Tbidem, p.89. * Idem, 1974, p.58. * Idem, 1972b, p.139 (grifos nossos). 32 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Psicodrama: descolonizando 0 imaginario falamos em criagdo. Mas & possivel separar, num processo de produgdo, a percep¢do que o individuo tem da realidade (na qual convive com as conservas) de suas imagens mentais? Pelo menos de principio, parece-nos dificil manter esta distingao radical entre duas matrizes independentes. Especialmente porque, sendo a criatividade a “substancia origindria” (arqui-substancia), ela parece ser postulada como a matriz originaria de qualquer produgdo, sendo o produto acabado simplesmente uma expressdo dessa substancia, expresso esta que, para se concretizar, dependeria de um certo grau de “adequagao” a realidade (espontaneidade como arquicatalisador = catalisador origindrio). Estaria, pois, Moreno inspirado na concep¢ao bergsoniana em que a “duragao” e os “niveis virtuais” da memoria representam a propria “fonte” criadora do homem e segundo a qual o corpo e a percep¢do representam simplesmente a possibilidade de expressdo e realizagio desses niveis virtuais? Até que ponto cabe ao espirito a capacidade de criagio (criatividade), restando ao corpo a fungaio de adaptagao a realidade (espontaneidade)? Mas e 0 componente de originalidade, caracteristico da espontaneidade e que nao se identifica com a criatividade? Poderia ser entendido como um grau especifico com que © corpo expressa ou deixa expressar a Memoria Criadora, grau este menor do que o que corresponderia a criatividade? Bergson dizia: “a meméria nao intervém como uma fungao da qual a matéria ja nao teria nenhum pressentimento ¢ que ela ja nao imitaria 4 sua maneira”.“° E “entre a matéria bruta e o es| 0, O mais capaz de reflexdo, ha todas as intensidades possiveis da memoria ou, 0 que quer dizer o mesmo, todos os graus de liberdade”.*! Estaria, pois, a teoria moreniana do ato-criador fundamentada na ontologia bergsoniana? Moreno faz claras referéncias a Bergson, embora critique seu conceito de “duragao”: A Henry Bergson corresponde a honra de haver introduzido na filosofia 6 principio de espontancidade (ainda que raras vezes utilizou esta palayra), num momento em que os principais homens de ciéncia sustentavam que nao existe tal coisa na ciéncia objetiva. Porém seus donnés immédiates, seu élan vital e sua durée eram metaforas da experiéncia que penetrava na obra de sua vida— A “ Bergson, H. Matiére et mémoire, Paris: Félix Alcan, 1921, p.249. * Ibidem, p. 248. 34 Alfredo Naffah Neto espontaneidade ~ mas que em vio tentou definir. Nao ha “momento” em seu sistema, somente durée. O universo de Bergson nao pode comegar e ndo pode descansar, é um sistema no qual nao ha lugar para 0 momento. Em sua refutagao justificavel do conceito intelectual ¢ matematico do tempo foi demasiadamente longe. Como o relégio, como amedida de um momento meciinico, também exclui o momento criador. Mas sem um momento enquantolocus nascendi, uma teoria da espontaneidade e da criatividade corre perigo de permanecer sendo inteiramente metafisica ou tornar-se inteiramente automatica.” Todavia, além das dificuldades que cercam a diferenciagao e a relagao entre espontaneidade e criatividade, o que dizer do conceito de “adequagdo”? Se a espontaneidade implica em “adequagao”, nao pressupde uma relacdo de exterioridade entre o individuo e seu meio? Pois se 0 individuo e seu meio fossem concebidos numa relagao de interioridade, numa relagdo fundante, como uma estrutura de relagdes determinadas, nao poderiamos falar de “adequagao”. mas somente de uma revelacao das relagdes jd dadas e determinadas e num esfor¢o de superagao ou de transformacao das mesmas.** Mas nao é 0 que parece nos dizer o conceito de “adequagao”. O préprio Bergson, que no Essai sur les donnés immédiates de la consciencefalava-nos de uma relagdo total de exterioridade entre o corpo e seu meio, mediada por um espago homogéneo e por leis mecanicas; em Matiére e mémoire parece superar sua concep¢ao anterior (apoiado nos experimentos de Maxwell e Faraday), chegando a constatar a continuidade e a heterogeneidade da extensao material, visto que as necessidades dos seres vivos (como a alimentagao, por exemplo) ¢ que levariam 4 percepgao de um universo descontinuo, recortado, de relagdes exteriores. Assim, o universo material e social vai participar também da heterogeneidade e da interioridade caracteristicas da duragdo. Nos termos de Deleuze: “nao haveria senao um so tempo, uma s6 duragao, da qual todos participariam, estando compreendidos nossas consciéncias, os seres vivos e todo 0 mundo material”.** Em que “minha duragao tem essencialmente o poder de revelar outras duragdes, englobar as outras e de se englobar * Moreno, J. L.. op. cit., 1972b, p.30-1 * Dado que a espontaneidade, se nado pressupde necessariamente criatividade, pressu-poe, pelo menos, um certo grau de originalidade. *' Deleuze, G. Le bergsonisme, Paris: P.U.F., 1968, p.78 35 Psicodrama: descolonizando 0 imaginario a si mesma ao infinito”.** Nao ha divida de que a percepcdo sé reconquista a continuidade e a indivisibilidade da extensdo material “na medida em que nés nos despojamos do que se poderia chamar os preconceitos da agao”,*° ou seja, quando nossas necessidades nado nos fazem recortar ou dividir 0 nosso meio ambiente. Entretanto, nao é a espontaneidade definida como uma “iluminagao”? Nao é assim que Moreno tenta expressdé-la ao dizer que € comparavel metaforicamente “a lampada que se acende e gragas a qual tudo se faz distinto no aposento”?*” Nao € pois um momento no qual a nossa “cegueira”, que nos faz agir sempre numa dire¢do unilateral (habito ou conserva de agdo), cede lugar a um enriquecimento perceptivo do mundo que nos cerca? Mas ao lado destas questdes, ha ainda um outro ponto fundamental: se para Bergson a criagao nio chega a transcender o nivel individual (no qual a intuig&o, guiada por uma emogao, reencontra 0 caminho do élan criador; em que, portanto, a relagdo com o mundo e com os outros homens nao participa como um elemento fundamental no processo), Moreno pretende que o ato espontaneo-criador se dé no nivel das relagdes sociais, ou seja, no nivel da tele, dos papéis ¢ do encontro, Dito em outros termos, se para Bergson a concepgao de uma exterioridade entre individuo e meio (que, como vimos, é superada) nao afeta a possibilidade do ato-criador, na teoria moreniana tal formulagao carrega implicagdes mais sérias. Pois, se a criagdo envolve necessariamente uma relagao de interioridade, de “comunhao” com as coisas e com os homens (nao é assim que Moreno define o encontro?), como pode ele coexistir com conceitos como “adequagio”, “atomizagaio”,** conceitos que denotam exterioridade e relagdes mecanicistas? Como podera o ato-criador emergir da propria relagao social, no psicodrama, se ele pressupde espontaneidade como “adequagao”, ou seja, no fundo, um homem isolado, ao qual tanto seu universo material como social é exterior? Ese o conceito de ¢ele implica uma concepg¢ao das relagdes sociais como necessarias e fundantes, o conceito de “atomo social” as © Ibidem, p.81 # Bergson, H., op. cit., 1921, p.246. # Moreno, J. L., op. cit., 1972a, p.57 * Por exemplo, 0 conceita de “atomo social” 36 Alfredo Naffah Neto fragmenta e as torna exteriores: se a unidade papel-contra-papel (dado que nao existe perseguidor sem perseguido, dominador sem dominado etc.) nos sugere a relag&o essencial do reconhecimento das consciéncias, descrita por Hegel, 0 conceito de papel ainda permanece cindido entre a concepgao teatral e uma concepg¢io social que nao encontra o seu lugar numa verdadeira analise social, histérica e econémica. O proletario, 0 burgués, siio as ‘personalidades de base’ que caracterizam uma sociedade. Moreno nao da este sentido a seus conceitos. Tratando como ‘conserva’ ... tudo o que, numa sociedade, nao é vivo, tudo o que € tipo, ele € levado a desconhecer 0 que pode haver de tipico nos conflitos de uma vida, a considerar como secundarias as situagGes tipicas desse género e a admitir que elas nao colocam o problema do proletariado, no sentido socialista da palavra, mas um problema de ‘proletariado sociométrico’ (todos Os que estdo descontentes com a sociedade e com sua situagao). Esta maneira de reabsorver a situagao econdmica na situagao individual ... tem o inconveniente de postular que nao ha drama objetivo, que ha somente dramas interpessoais. Ele [Moreno] tende a restringir indevidamente a nogdo depapel. Karl Marx mostrava, ao contrario, que ha papéis histdricos que nao sfio compreensiveis sendo pela andlise de fatores objetivos da dindmica de classes (a Revolucado burguesa de 1789 retomando os papéis da Republica romana). Mesmo se nos interrogamos sobre a capacidade do proletariado de preencher sua missao hist6rica, ndo podemos, como —a priori — Moreno, encerrar toda a hist6ria social sobre o terreno da aparéncia e do imaginario” E desta forma que a teoria moreniana, cindida nessa série de irresolugdes, imprecisdes e indefinigdes, tenha talvez a forma de uma obra inacabada, coisa que o proprio Moreno tanto valorizava. “Mais importante que a evolugdo da criagdo é a evolugio do criador”.* “O autor, como o pai malvado da fabula, nao tem piedade dos seus filhos. Mata o que nasceu primeiro em beneficio do que nasce por ultimo ... [Goethe], se tivesse tido a vida e o poder criador de um anjo nunca teria terminado seu Fausto.”*' Entretanto, convém ® Merleau-Ponty, M. “L’enfant vu par l'adulte”, in Maurice Merleau-Ponty & la Sorbonne, Bulletin de Psychologie, Paris, n.236, t.XVIII, 3-6, novembre 1964, p.289-90. * Moreno, J. L., op. cit. 1972b, p.17. * Ibidem, p.71. 37 Psicodrama: descolonizando o imaginario analisar se, devido a essa mesma valorizacgéo do momento criador e da obra inacabada, a prépria obra teérica de Moreno nao acabou ficando enraizada numa série de preconceitos e ideologias, ou seja, nas conservas culturais contra as quais tanto tentou lutar. Esperamos entdo, que este trabalho represente um esforgo, nado para completar a obra de Moreno, mas para, mediante uma andlise critica dos seus conceitos, tentar revelar suas bases filoséficas, explicita-los, aproximando-nos um pouco mais do verdadeiro sentido deste grande projeto inacabado que ele nos deixou. Para tanto, tomaremos como material de andlise a sessio de A (além de outras descri¢des de sessdes psicodramaticas nossas ou do proprio Moreno). Dado que a teoria moreniana brotou da propria pratica do psicodrama, é baseado no préprio psicodrama que poderemos desenvolver a proposta de explicitar e revelar o sentido dessas formulagées teéricas que constituiram, por assim dizer, o nivel reflexivo e conceitual da experiéncia ora tematizada. Tarefa ardua e dificil, pois falar sobre Moreno e discutir sua obra significa, antes de tudo, interpretar Moreno, seguir suas pistas e acompanhar seus passos, reconstituindo esses caminhos tortuosos e entrecortados de espagos vazios, por onde a sua voz e sua agao puderem chegar até nés. Falar sobre Moreno implica, pois, fundamentalmente, recriar Moreno, partindo de onde ele partiu e chegando muitas vezes onde seus passos téo-somente se insinuaram, nado ousando pisar. “Eu me empresto ao outro, eu 0 fago com meus proprios pensamentos. Nao se trata de um fracasso na percep¢ao do outro, mas, justamente, da percep¢ao do outro”,** como dizia Merleau-Ponty. Por isso este trabalho deve ser entendido basicamente como um testemunho in vivo de um processo de criagdo. Que ele possa, pois, corporificar-se pelo préprio movimento que o conduz e que as imperfeigdes que revele a cada momento possam pontuar o seu proprio crescimento para que, tanto na forma como no contetido, ele possa ser, em si mesmo, uma expresso concreta daquilo que constitui seu proprio tema. ‘O fildsofo e sua sombra”, in Os Pensadores, Sao Paulo: Abril, 1975, tXLI, p.429. 38 CAPITULOI DA ESPONTANEIDADE E SEU NUCLEO CONSTITUINTE 1 - A espontaneidade como expressdo da relacdo de compromisso com 0 mundo: uma critica a nogdo de adequagao Nossas analises anteriores j4 nos haviam levado a perguntar se a espontaneidade nao encontrava seu ambito de expressdo no corpo como centro virtual de agées, em sua constante mediagao das relagdes do sujeito com o mundo material e social (concep¢ao bergsoniana). Mas © que vem a ser precisamente essa espontaneidade e como ela se inscreve nessa relagdo corpo—espa¢o? O que queriamos exatamente dizer, quando interpretamos determinadas condutas da senhorita A, em determinadas fases da sessio, como condutas espontdneas? A primeira vez que 0 conceito de espontaneidade foi introduzido na leitura da sessdo de A, para descrever uma conduta sua, referia- se a capacidade de A para agir conforme o contexto dramatico, ou seja, situando-se no contexto cénico criado por ela prépria, na primeira cena da sessdo (seu quarto de dormir, no momento em que ela se preparava para tal). Foi dito ent&o que A representava o papel em questéo de um modo espontdneo, dado que era capaz de se adequar a situagdo dramatica (em oposi¢ao a situagao real: sala de psicodrama, situagdo de terapia) e que sua conduta envolvia até mesmo um certo grau de improvisagdo (por exemplo, quando o T apagoua luz da sala de psicodramae A reagiu de dentro do contexto cénico no qual estava inserida: “Queimou a luz do abajur”). Logo em seguida, foi dito que A apresentava um bloqueio de espontaneidade, quando ela exibiu uma conduta que escapava ao contexto cénico, em outros termos, quando sua agaéo rompeu com os referenciais da cena em termos de tempo e espago(quando A, em razio do medo do escuro experienciado em cena, dirigiu-se a Psicodrama: descolonizando 0 imaginario janela real da sala de psicodrama para abri-la, em vez de improvisar dentro do marco referencial em que se achava: quarto de dormir, hora de dormir). E ai poderiamos dizer que usamos 0 conceito dentro da concep¢ao moreniana, ou seja: resposta(s) de um individuo diante de uma situagao nova (A reagindo diante de um espago cénico, onde as almofadas passaram a representar janela, porta, cama etc.), envolvendo um certo grau de adequagao (A age dentro dos marcos referenciais da cena criada) e um certo grau de originalidade (A é capaz de criar uma solu¢do original para o fato de a luz ter-se apagado: ela queimou). Do mesmo modo, poderiamos argumentar que, quando A rompe com os referenciais da cena (dirigindo-se a janela real da sala de psicodrama), sua conduta é inadequada e, portanto, ndo-espontanea. Entretanto, o problema é mais complexo do que parece a primeira vista. O que significa falarmos em adequa¢ado a determinados marcos referenciais? Significa que qualquer conduta de A, desde que esteja inserida dentro da cena criada e que envolva, portanto, um certo grau de improvisagdo e originalidade (dado que a cena é nova, no sentido de que A nunca criou no paleo uma outra cena idéntica a esta), pode ser chamada de esponténea? Mas existe realmente uma relagdo de exterioridade entre Ae o contexto cénico para que possamos falar em adequagdo? Para examinarmos essas quest6es seria necessdrio primeiramente estabelecer uma diferenciagao. Quando falamos que a conduta de A é espontanea porque respondeu a uma mudanga de situagdo, estamos querendo dizer que ela respondeu a uma mudanga do contexto (do contexto real, em que o palco era palco, as almofadas eram almofadas, para o contexto dramatico, em que o palco representava seu quarto, as almofadas representavam a janela, a cama etc.), passando a atuar dentro dos novos marcos referenciais e de uma maneira um tanto original (visto que toda improvisagao envolve certo grau de originalidade). Entretanto, quando estamos examinando a conduta de um individuo na sua vida real, do dia-a-dia, sé existe um contexto: o real, e nesse sentido sua conduta sera espontanea quando responder as mudangas ocorridas dentro desse mesmo ' Mais precisamente, diriamos que a dramatizagdo concretiza a passagem de um nivel real para um nivel virtual (0 do jogo), permitindo dois marcos referenciais. enquanto a vida cotidiana impde somente um marco referencial: a realidade. 40 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Psicodrama: descolonizando 0 imaginario isolamento do sono, esta minha relagdo de compromisso total com o mundo? E nesse sentido que a cena dramitica criada por A é uma extensao do préprio mundo que a cerca e onde ela ja esta inserida, mergulhada, mesmo antes de comegar a atuar. E se em determinado momento ela “abandona” a cena e dirige-se a janela real da sala, se ela se transporta do “universo do quarto” ao “universo da sala” é porque a sala de psicodrama formava um mesmo corpo com seu “quarto de dormir”, ou seja, ela era uma “sala de psicodrama” tornada “quarto de dormir”, visivel sob essa dualidade de aspectos. Como diz Merleau-Ponty: O macaco nao chega a construir instrumentos que serviriam somente para preparar outros, € nés vimos que, transformado por ele em bastao. o galho da arvore € suprimido como tal, o que sign dizer que ele ndo é jamais possuido por um instrumento no sentido pleno da palavra. Nos dois casos, a atividade animal revela seus limites: ela se perde nas transformagées reais que ela opera e no pode reitera-las. Ao contrario, para 0 homem, o galho da arvore tornado bastao permanecera justamente um galho de arvore tornado bastao, uma mesma “coisa” nas duas fungdes diferentes, visivel ‘para ele” sob uma pluralidade de aspectos. Esse poder de apreender e de variar os pontos de vista permite-lhe criar instrumentos, nao sob pressdo de uma situagdo de fato, mas para um uso virtual e, em particular, para fabricar outros. O sentido do trabalho humano ¢, pois, o reconhecimento além do meio atual, de um mundo de coisas visiveis para cada Eu sob uma pluralidade de aspectos, a tomada de posse de um espago e de um tempo indefinidos..° E pois, nesse sentido, que a janela real da sala de psicodrama, tendo- se confundido com o fundo escuro do quarto de A durante a dramatizagao, ainda permanecia, ao mesmo tempo, uma janela, pelo menos como um horizonte virtual de suas ages. Assistimos, entao, no momento em que A “abandona” o contexto dramiatico e dirige-se 4 janela real, em fungado de seu medo de escuro, a uma redugado de pontos de vista, ao fechamento ou a particularizagao de sua abertura perceptiva a um unico ponto de vista; a janela passa a ser exclusivamente uma janela, uma possibilidade de luz.7 Ou, como ° Merleau-Ponty, M., op. cit, 1972, p.190. * Nesse momento, deixa de existir a diferenciagao entre o cenario (contexto dramatico) € o resto da sala. O cenario passa a ser um simples tablado, como parte de uma sala real. 42 Alfredo Naffah Neto a Bergson, se a realidade é um todo virtual, do qual a percepgao sé ilumina determinadas facetas, as que interessam a agdo pratica, ¢ se a memoria pode abrir seus niveis virtuais aos mais diferentes graus de imaginagao, esta é, sem divida, a maneira de A se situar corporalmente diante da situagao, ou seja, suas necessidades praticas de momento que determinam, em diferentes situagdes, a dimensao em que sua percep¢do reconquista a maior ou menor pluralidade de facetas da realidade, o maior ou menor grau de penetragdo na realidade, 0 que, por sua vez, implicara diferentes participagoes da memoria. Mas se a espontaneidade nao significa adequagao, em que termos ela pode ser descrita? Ou, em outros termos, se a adequacgao traduz uma relagao de exterioridade, ¢ entre sujeito e mundo ha sempre uma relacdo de interioridade, o que distingue uma acao espontanea de uma agdo ndo-espontdnea? Ha pouco falamos na “dimens&o em que a percepcdo reconquista o real”, em “abertura perceptiva”, mas como realmente isso se da? Qual a relagio entre corpo, percepgao e agio? Na falta de uma psicologia da percepgdo em Moreno ser talvez, voltando a Bergson, seu inspirador, que possamos elucidar a questao. Bergson comega descrevendo 0 corpo como 0 centro de agdo em torno do qual um conjunto de objetos reais se organiza, refletindo sempre as agdes possiveis desse mesmo corpo sobre eles. Ou, em suas proprias palavras: “As imagens que nos rodeiam parecem voltar- se em dire¢gdo ao nosso corpo, mas iluminada, desta vez, a face que Ihe interessa; elas destacaram de sua substéncia o que nds aprisionamos na passagem, 0 que somos capazes de influenciar ... Os objetos simplesmente abandonarao alguma coisa de sua acao real, para figurar assim sua acdo virtual, quer dizer, no fundo, a influéncia possivel de ser vivo sobre eles”.’ E quanto ao papel do cérebro? Nao é exatamente o de prolongar a percep¢do numa acio? Ainda segundo Bergson “o papel do cérebro é tanto o de conduzir 0 movimento recebido a um drgdo de reagao escolhido, como o de abrir a esse movimento a totalidade das vias motoras para que ele ai desenvolva todas as reagSes possiveis a que pode dar origem ... Em outros termos, o cérebro nos parece ser um instrumento de andlise * Bergson, H., op. cit., 1921, p.23-3. *Ibidem, p.17. 43 Psicodrama: descolonizando 0 imaginario em relagao ao movimento recebido e um instrumento de selegao em relagdo ao movimento executado”.” Sintetizando, poderiamos dizer que, para Bergson, a percep¢do esta essencialmente orientada para a ac&o pratica, quando o corpo percipiente,'° revelando do mundo e das coisas somente a face que lhe interessa, a face sobre a qual & capaz de agir, prolonga esse movimento perceptivo numa escolha entre Os movimentos motores possiveis. Mas quais seriam esses movimentos motores possiveis e como se operaria essa escolh® Ai temos que reportar a distin¢ao bergsoniana entre os dois tipos de memoria. A primeira registraria, sob a forma de imagem-lembranca, todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana 4 medida que cles se desenrolam; cla ndo negligenciaria nenhum pormenor ... Sem pensamento dissimulado de utilidade ou de aplicagao pratica, ela armazenaria o passado pelo tinico efeito de uma necessidade natural. Por ela tornar-se-a possivel o reconhecimento inteligente, ou melhor, intelectual, de uma percepgio jé experimentada; nela nés nos refugiariamos todas as vezes que reconstituimos a inclinagao de nossa vida passada, para ai buscar uma certa imagem. Mas toda percep¢ao se prolonga em agao nascente ¢, a medida que as imagens, uma vez percebidas. se fixam ¢ se alinham nessa meméria, os movimentos que as continuavam modificam o organismo, criam no corpo novas disposigdes a agir. Assim se forma uma experiéncia de uma outra ordem e que se deposita no corpo; uma série de mecanismos combinados, com reages as mais numerosas ¢ variadas as excitagdes externas, com réplicas todas prontas a um némero continuamente crescente de interpelagdes possiveis:'' E desta forma que Bergson vai descrever o primeiro tipo de mem6ria como imaginando e, 0 segundo, como repetindo. “Das duas memérias que acabamos de distinguir a primeira parece ser, pois, a memoria por exceléncia. A segunda, aquela que os psicdlogos estudam comumente, ¢ 0 Adbito esclarecido pela memoria, mais do que a memoria em si.”'? Desta forma, a memoria ativa ou motora ' A palavra percipiente foi assumida aqui (e nas paginas seguintes) para designar uma das caracteristicas fundamentais do corpo, qual seja, sua abertura perceptiva, de forma analoga a palavra agente, que descreve sua dimensao ativa. Como percipiente ndo consta no vocabulirio da lingua portuguesa, e dado seu uso comum em filosofia, foi assumida como um neologismo necessario. '" Bergson, H. op. cit., 1921, p.78. " Ibidem, p.81 44 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Psicodrama: descolonizando o imaginario interioridade do real, pela qual a percep Wjeita as necessidades praticas, recorta e divide. Esse ponto sera especialmente importante quando retomarmos o problema da adequagao proposta por Moreno Entretanto, se a memGria é essencial ao ser humano, se ela caracteriza, inclusive, sua propria capacidade de consciéncia, 6 do presente que parte 0 apelo ao qual a lembranca responde e é dos elementos sensorio-motores da acdo que a lembranca empresta ocalor que lhe da vida... Nao é a partir da solidez desse acordo é a precisdo com a qual essas duas memérias complementares [a motora e a imaginativa] se inserem uma na outra que nos reconhecemos os espiritos “bem equilibrados”, quer diz homens perfeitamente adaptados @ vida? O que caracteriz homens de acdo é a prontiddo com a qual evoca, para socorro de uma situagdo dada, todas as lembrangas que com ela se relacionam; mas & também a barreira insuperdvel que encontram nele, ao se apresentar ao limiar da consciéncia, as lembrangas intiteis e indiferentes. Aquele que vive no passado pelo prazer de ai viver, onde as lembrangas emergem 4 luz da consciéncia sem proveito para a situagdo atual, nao €, por sua vez, mais bem adaptado a agao: nao € um impulsivo, mas umsonhador.* Assim, podemos agora tentar caracterizar 0 que vem a ser a espontaneidade para Moreno, com base em um exame mais minucioso de suas proprias defini¢ses, de como elas retomam ou se desviam da concep¢ao bergsoniana (a qual, conforme ja vimos, Moreno faz varias criticas). E ai necessariamente temos que retomar os dois marcos da defini¢do moreniana: 0 conceito de adequagdo e 0 conceito de originalidade. Com relagdo ao conceito de adequa¢ao, j4 haviamos visto que ele nado se sustentava 4 luz das descrig¢des fenomenoldgicas de Merleau-Ponty. Entretanto é possivel constatarmos agora que ele nao se sustenta também a luz do bergsonismo. Pois, para Bergson, se a consciéncia é imanente ao ser vivo e 0 automatismo no ser humano significa, tdo-somente, seu entorpecimento; se a meméria, enfim, reconquista a continuidade e¢ a interioridade imanente ao real, pois o estado natural da percepgdo é€ 0 de prolongar-se no seu fluxo restaurador do sentido — a percep¢do pura, que cinde totalmente o real, e a fantasia do sonho ndo representando senado Idem. op. cit, 1921, p.167 (grifos nossos) 48

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