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Boletim de Análise

Político-Institucional
19
Dezembro 2018

Governança Pública
Boletim de Análise
Político-Institucional
19
Dezembro 2018

GOVERNANÇA PÚBLICA

Brasília, 2018
Ministério do Planejamento,
Desenvolvimento e Gestão Boletim de Análise
Ministro Esteves Pedro Colnago Junior
Político-Institucional

Fundação pública vinculada ao Ministério do Planejamento, Organizadores:


Desenvolvimento e Gestão, o Ipea fornece suporte técnico Pedro Luiz Costa Cavalcante
e institucional às ações governamentais – possibilitando a Roberto Rocha C. Pires
formulação de inúmeras políticas públicas e programas de Comitê Editorial:
desenvolvimento brasileiros – e disponibiliza, para a sociedade, Alexandre de Ávila Gomide
pesquisas e estudos realizados por seus técnicos. Acir dos Santos Almeida
Claudio Hamilton Matos dos Santos
Presidente Janine Mello dos Santos
Ernesto Lozardo Joana Luiza Oliveira Alencar
João Cláudio Basso Pompeu
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Rogério Boueri Miranda Mauro Santos Silva
Roberto Pires Messenberg
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das Instituições e da Democracia Sheila Cristina Tolentino Barbosa
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Diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas
José Ronaldo de Castro Souza Júnior Boletim de Análise Político-Institucional / Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada. – n.1 (2011) -    . Brasília  : Ipea,
Diretor de Estudos e Políticas Regionais,
2011-
Urbanas e Ambientais
Alexandre Xavier Ywata de Carvalho
Semestral.
Diretor de Estudos e Políticas Setoriais ISSN 2237-6208
de Inovação e Infraestrutura
Fabiano Mezadre Pompermayer 1. Política. 2. Estado. 3. Democracia. 4. Periódicos.
I. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Diretora de Estudos e Políticas Sociais
Lenita Maria Turchi CDD 320.05

Diretor de Estudos e Relações Econômicas


e Políticas Internacionais As publicações do Ipea estão disponíveis para download gratuito nos formatos PDF
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A obra retratada na capa deste nono oitavo Boletim de Análise


Político-Institucional é a tela Meninos no Balanço, de Candido Portinari
(1903-1962), datada de 1960. Além da inegável beleza e expressividade
de suas obras, Portinari tem importância conceitual para um instituto de
pesquisas como o Ipea. O “pintor do novo mundo”, como já foi
chamado, retratou momentos-chave da história do Brasil, os ciclos
econômicos e, sobretudo, o povo brasileiro, em suas condições de vida
e trabalho: questões cujo estudo faz parte da própria missão do Ipea.
A Diest agradece ao Projeto Portinari pela honra de usar obras do artista
em sua produção.
Direito de reprodução gentilmente cedido por João Candido Portinari.
Sumário
Apresentação: variedades de governança pública................................................................................. 5
Pedro Cavalcante
Roberto Rocha C. Pires

Governança Pública: das prescrições formais à construção de uma perspectiva estratégica


para a ação governamental.............................................................................................................. 9
Pedro Cavalcante
Roberto Rocha C. Pires

Convergências entre a Governança e o Pós-Nova Gestão Pública....................................................... 17


Pedro Cavalcante

Governança e Capacidades Estatais a Partir da Abordagem dos Arranjos


e Instrumentos de Políticas Públicas............................................................................................... 25
Roberto Rocha C. Pires
Alexandre Gomide

(Re)Contextualizando a Governança Regulatória:


uma visão sistêmica de problemas de “segunda geração”.................................................................... 33
Bruno Queiroz Cunha

Governança Participativa: a necessidade de ir além do discurso. ......................................................... 43


Igor Ferraz da Fonseca
Daniel Pitangueira de Avelino

Governança Multinível................................................................................................................. 49
Renata Bichir

Governança para Resultados. ........................................................................................................ 57


Humberto Falcão Martins

Governança Corporativa: argumentos teóricos e recomendações de política associadas


à abordagem de agência. ............................................................................................................... 67
Mauro Santos Silva

Governança Orçamentária: transformações e lacunas nas práticas


de planejamento e orçamento no Brasil........................................................................................... 75
Leandro Freitas Couto
José Celso Cardoso Jr.

O Conceito de Governança Aplicado às Políticas de Infraestrutura.................................................... 83


Alexandre Gomide
Ana Karine Pereira

A Questão do Controle no Debate de Governança Pública................................................................. 91


Ronaldo Alves Nogueira
Francisco Gaetani
Apresentação: variedades de governança pública

Pedro Cavalcante1
Roberto Rocha C. Pires2

O Boletim de Análise Político-Institucional (Bapi) tem como objetivo divulgar reflexões e estudos sobre
os temas tratados na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia
(Diest) do Ipea. A publicação assume como vocação abordar questões atuais e relevantes da agenda
político-institucional do país. Nesse sentido, este número 19 dedica-se ao tema da governança pública
e visa discutir, sob diferentes perspectivas, a variedade de conceitos de governança, seus aspectos
subjacentes (propósitos e características) e suas múltiplas aplicações, com vistas a qualificar o debate
sobre o tema e ampliar nosso conhecimento sobre as estratégias de aprimoramento e desenvolvimento
das capacidades de ação e efetivação de políticas públicas no Estado brasileiro.
Esta edição temática do Bapi justifica-se em razão da relevância e da proeminência que o debate
sobre governança vem ganhando no âmbito da administração pública nos últimos anos. Além disso,
a questão ganha ainda mais importância diante dos esforços que vêm sendo empreendidos no sentido
de orientar e formalizar estruturas de governança nas organizações do Executivo federal, como a
Lei das Empresas Estatais,3 a Lei das Agências Reguladoras4 e, mais recentemente, o Decreto no 9.203,
de 22 de novembro de 2017, que dispõe sobre a política de governança da administração pública
federal direta, autárquica e fundacional.
Nesse contexto, observa-se uma certa disputa pela fixação e definição do conceito de governança
pública. A disseminação e a utilização de alguns conceitos – e seus princípios ou diretrizes de natureza
normativa e prescritiva – têm provocado confusões e repercussões em termos de recomendações que
podem gerar simplificações de realidades complexas e assimétricas do setor público.
Esse cenário de disputa e confusão conceitual não é exclusividade do contexto nacional, uma
vez que é comum, tanto nos governos e organismos multilaterais quanto na academia, coexistirem
visões que nem sempre são convergentes. Argumentamos que a questão problemática aqui não é a
diversidade conceitual em si, mas sim as tentativas de resolução da situação por meio da simplificação
(por vezes exagerada) do conceito, sem o devido embasamento teórico. Isso vem se refletindo,
por exemplo, em processos de isomorfismo na construção de indicadores de governança para organizações
bastante díspares, que incorporam um número bem amplo de dimensões de análise que tendem
a gerar contradições inerentes entres elas. Além disso, os indicadores de boa governança também
são criticados por não possuírem um modelo teórico que os sustente e focar predominantemente a
“ginástica estatística”, o que pode gerar problemas de falta de consistência, correção e replicabilidade
nos seus usos (Andrews, 2008).

1. Coordenador de estudos e políticas de Estado e democracia na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia
(Diest) do Ipea.
2. Técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, professor do mestrado profissional em políticas públicas e desenvolvimento do Ipea e do
mestrado profissional em governança e desenvolvimento na Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
3. Lei no 13.303, de 30 de junho de 2016. Disponível em: <https://goo.gl/GsnszL>. Acesso em: 27 nov. 2018.
4. Projeto de Lei no 6.621, de 2016. Disponível em: <https://goo.gl/BHVrgK>. Acesso em: 27 nov. 2018.
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A proposta deste boletim, portanto, é avançar na crítica da visão hegemônica e restrita de


que a governança pode ser resultante de um pacote de reformas predefinido e imposto de forma
exógena por agentes que desconhecem a variedade de interpretações sobre o fenômeno e o contexto
político-institucional de atuação de cada organização do governo federal. Assim, as contribuições
aqui organizadas buscam recuperar a multidimensionalidade do conceito de governança e, sobretudo,
as suas potenciais contribuições para a construção de capacidades de ação no setor público brasileiro.
O conjunto de artigos a seguir contou com a colaboração de pesquisadores da Diretoria de
Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea e de acadêmicos e
praticantes convidados, em função de sua produção intelectual e de notória experiência acerca do tema.
Esta edição especial do Bapi almeja atingir dois grupos prioritários de público-alvo. Por um lado,
busca-se sensibilizar dirigentes e gestores sobre a complexidade do fenômeno de governança pública
e os problemas de excessivo normativismo nas propostas de mudanças, bem como de adaptações
inadequadas às realidades política e administrativa variadas. Por outro, o Bapi propõe tornar-se um
referencial conceitual de governança para pesquisadores, professores e estudantes de ciências sociais
e do campo de públicas.
Assim, o boletim está dividido em três partes complementares. Na primeira, a ênfase dos
artigos é introduzir um debate conceitual sobre governança pública. O trabalho de Pedro Cavalcante
e Roberto Rocha C. Pires discute as duas diferentes perspectivas: a abordagem prescritiva-formal da
“boa governança” e a governança como perspectiva analítica. No artigo seguinte, Pedro Cavalcante
procura situar a convergência do termo governança no âmbito do paradigma do pós-nova gestão
pública (NGP), além de apresentar recomendações práticas do caminho a seguir nas estratégias de
aperfeiçoamento da governança pública. Já o estudo de Roberto Rocha C. Pires e Alexandre Gomide
propõe-se a explorar as articulações teóricas entre os conceitos de governança e de capacidades estatais,
assim como desdobrá-las em uma estratégia analítico-operacional que seja útil para a reflexão sobre a
condução das políticas públicas no Brasil.
A segunda parte dedica-se a distintos campos de aplicação e reflexão em torno do tema da
governança. O texto de Bruno Queiroz Cunha estabelece um diagnóstico mais atual acerca de problemas
de “segunda geração” no campo da governança regulatória, por meio de uma análise situada em debates
pós-gerenciais e em um estágio de pós-agencificação. Igor Ferraz da Fonseca e Daniel Pitangueira de
Avelino analisam a relação entre a participação social e a agenda de boa governança, enfatizando a
significativa discrepância entre os conceitos e suas experiências empíricas. O trabalho de Renata Bichir
aborda o conceito de governança multinível, o qual destaca a importância da análise dos padrões de
produção de políticas públicas a partir de dois eixos principais: as dimensões vertical e horizontal.
Por fim, o artigo de Humberto Falcão Martins almeja sintetizar um conceito de governança para resultados
a partir da perspectiva da NGP, diante da existência de distintos eixos de significação desse conceito.
Na última parte do Bapi, os artigos abordam a governança por tipo de organização ou
atividade. Mauro Santos Silva analisa a governança corporativa tomando por referência a perspectiva
convencional, com base na literatura econômica, que assume a governança como um problema de
agência. O estudo de Leandro Freitas Couto e José Celso Cardoso Jr. aborda as principais mudanças
ocorridas no processo orçamentário nos anos recentes no Brasil, particularmente desde a Constituição
Federal de 1988, que revelam alterações no equilíbrio de forças na relação entre os atores envolvidos
na governança orçamentária no nível federal. Na temática de infraestrutura, o trabalho de Alexandre
Gomide e Ana Karine Pereira discute os fatores que impactam a execução do investimento nesse setor
Apresentação: variedades de governança pública
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no Brasil e defende a utilidade do conceito de governança como perspectiva analítica. O último artigo
do boletim, de Ronaldo Alves Nogueira e Francisco Gaetani, trata da questão do controle no debate
sobre governança no país, com vistas a problematizar e a identificar as consequências da ascensão
do tema na agenda do Executivo federal, sobretudo capitaneada pelos órgãos de controle externo
(Tribunal de Contas da União – TCU) e de controle interno (Controladoria-Geral da União –­ CGU).
Boa leitura!

REFERÊNCIA

ANDREWS, Matt. The good governance agenda: beyond indicators without theory. Oxford
Development Studies, v. 36, n. 4, p. 379-407, 2008.
Governança Pública: das prescrições formais à construção de uma perspectiva
estratégica para a ação governamental

Pedro Cavalcante1
Roberto Rocha C. Pires2

1 INTRODUÇÃO
O principal objetivo deste artigo é situar duas diferentes perspectivas que têm disputado o entendimento
do conceito de governança e seus usos. Busca-se também salientar um movimento observado na
literatura contemporânea (internacional e nacional), que parte da crítica às perspectivas da governança
como um conjunto de prescrições formais (ou tipos predeterminados de reformas) e tem caminhado
no sentido de compreender a governança como uma perspectiva estratégica e situada para lidar com
os desafios de coordenação e de implementação de programas governamentais em ambientes (internos
e externos) cada vez mais complexos, dinâmicos e incertos. A partir da discussão dessas diferentes
perspectivas e de seus aspectos subjacentes, espera-se contribuir com a qualificação do debate sobre o
tema, chamando a atenção para as condições sob as quais a reflexão sobre governança pode vir a ser
útil para o aprimoramento e o desenvolvimento de capacidades de ação e de efetivação de políticas
públicas pelo governo federal.
A temática vem ganhando proeminência na administração pública nos últimos anos, seja em
empresas estatais, seja em agências reguladoras, em órgãos de controle ou nas organizações do Poder
Executivo responsáveis pela formulação e pela implementação das políticas públicas. Observa-se,
no entanto, que a mobilização e a disseminação de alguns conceitos e formas de abordar o tema
da governança – em especial a perspectiva prescritivo-formal e suas associações com as funções de
controle – têm provocado confusões, simplificado realidades complexas e assimétricas existentes
no setor público, e gerado recomendações que ignoram gargalos e problemas estruturais do Estado
brasileiro. Argumenta-se que, quando percebidas e exercitadas dessa forma, a reflexão e as práticas
associadas à ideia de governança distanciam-se de uma contribuição ao aprimoramento e à efetividade
das ações públicas. De outro lado, defende-se que, quando a governança é mobilizada como perspectiva
analítico-operacional, há claros ganhos no sentido do enfrentamento dos desafios contemporâneos da
administração pública na sua complexidade e diversidade, considerando os contextos específicos de
atuação dos distintos atores e organizações governamentais e buscando a ampliação de suas capacidades
e de seus recursos operacionais.
Este artigo possui quatro seções, incluindo esta introdução. Na seção 2 abordaremos, de forma
sucinta, a evolução recente do conceito, sua proliferação e sua diversidade interpretativa. Em seguida,
na seção 3 apresentamos as duas perspectivas em questão – prescritivo-formal e analítico-operacional –
e discutimos seus propósitos, características e implicações distintos. Por fim, na seção 4 são tecidas
algumas recomendações de caminhos para qualificar o debate atual sobre o tema.

1. Coordenador de estudos e políticas de Estado e democracia na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia
(Diest) do Ipea.
2. Técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, professor do mestrado profissional em políticas públicas e desenvolvimento do Ipea e do
mestrado profissional em governança e desenvolvimento da Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
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2 PROLIFERAÇÃO RECENTE E A DIVERSIDADE DE CONCEITOS DE GOVERNANÇA


O termo “governança pública” passou a ocupar, a partir dos anos 1980, um local de destaque nos
debates políticos contemporâneos, entre acadêmicos e praticantes (practitioners). Estudos bibliométricos
apontaram tanto uma explosão da produção acadêmica sobre o tema, no início deste século, quanto
a diversificação da sua presença em cerca de cinquenta campos de estudo (Levi-Faur, 2012).
A emergência, a difusão e a crescente utilização do conceito são tributárias de eventos e processos de
transformação em diferentes tipos de organização, cada qual importando sentidos próprios ao conceito
de governança. No setor privado, o final do século XX representou um momento de transformação
dos modelos de gestão das empresas. Em decorrência, principalmente, da complexificação das formas
de propriedade, o desenvolvimento da governança corporativa tomou como preocupação central a
garantia de formas de controle por parte dos acionistas sobre as decisões e o desempenho das empresas
(Waarden, 2012; Plehwe, 2012). Nessa linha, a contratualização de metas, a incorporação de conselhos
de administração e a transparência fiscal tornaram-se formas organizacionais recorrentes no mundo
empresarial, como parte da boa governança corporativa (Peters, 2012).
Em outra seara, os processos de integração regional, como o da União Europeia, também
provocaram, no mesmo período, debates e práticas de governança, mas que apontavam em outro
sentido, o da construção de autoridade governamental supranacional e o da condução de políticas
públicas em ambientes multinível, articulando as diferentes escalas de governo envolvidas (Börzel, 2010).
No âmbito das organizações públicas, a proliferação de sentidos e usos do termo governança,
entre acadêmicos e gestores, está associada a pelo menos três aspectos centrais. Primeiro, a baixa
utilização do termo governança até os anos 1970 é indicativa de que a solução para os problemas de
desempenho e de responsabilização do setor público até então tinha uma resposta única: o modelo
de administração burocrático tradicional. O desenvolvimento de capacidades de atuação dos governos
passava pela criação de organizações tipicamente burocráticas – sejam ministérios, sejam autarquias ou
empresas –, racionalidade processual, reforma legal, recrutamento de pessoal qualificado para carreiras
públicas, meritocracia e autonomia.
Segundo, a expansão da utilização do termo governança na virada do século vem, então, associada
à difusão de pacotes de reforma do aparato estatal internacionalmente difundidos e abrigados sob o
movimento da nova gestão pública (new public management – NPM). Essa onda de reformas, sob forte
influência de práticas de gestão da iniciativa privada, possuía como diretrizes principais a desagregação dos
monopólios burocráticos, a desconcentração (descentralização subnacional, privatização e transferência
de responsabilidades para o setor público não estatal) e a indução de concorrência em um ambiente
organizacional crescentemente mais fragmentado (Marques, 2016). Com efeito, os resultados dessas
reformas levaram os governos a repensar suas estratégias de coordenação intra e intergovernamental,
bem como suas formas de articulação com os setores privado e não governamental (Bouckaert, Peters
e Verhoest, 2010). Nessa linha, a ideia de governança emergiu associada à promoção de novas formas
de integração, coordenação e articulação das atividades governamentais, com ênfase no fortalecimento
das capacidades estatais (Cavalcante, 2017).
Finalmente, um terceiro aspecto a reforçar a profusão de sentidos e usos do termo governança no
âmbito das organizações publicasse refere-se à crescente percepção da complexificação dos problemas,
das possibilidades de solução e dos sentidos de desempenho e responsabilização no setor público.
Nesse contexto, com os avanços tecnológicos e informacionais e as transformações econômicas,
sociais e demográficas, aliados às crescentes demandas por mais transparência, participação social e
Governança Pública: das prescrições formais à construção de uma perspectiva estratégica para a ação governamental
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melhores serviços públicos em tempo de restrições fiscais, o termo governança passa a ser necessário
aos debates para dar conta desse processo de crescente complexificação (Marques, 2016).
Nesse brevíssimo itinerário fica claro que, de um lado, a emergência do termo governança
associa-se à necessidade de lidar com a superação das disfunções do modelo burocrático tradicional,
mas, de outro, os seus usos e sentidos vão variar muito em função dos contextos organizacionais
em que se dão as reflexões contemporâneas sobre governança. Esses sentidos e usos variam da
preocupação com o controle das organizações privadas pelos seus acionistas à necessidade de
se promover a integração do setor público, por meio de articulações entre diferentes governos
(multinível), entre diferentes agências de um mesmo governo e entre estas e atores sociais e
privados na busca de construção de capacidades e respostas à altura da complexidade dos problemas
enfrentados (Levi-Faur, 2012; Peters, 2012; Lynn Jr., 2002; 2010).

3 PERSPECTIVAS DISTINTAS E SUAS IMPLICAÇÕES


Nas últimas décadas, como visto, o termo governança passou a estar envolto de uma diversidade
de sentidos e usos, manifestos, em geral, em definições específicas de governança vinculadas ao tipo de
organização em análise (governança pública, corporativa, global, sem fins lucrativos etc.), ao campo
ou à atividade (governança ambiental, da internet ou de tecnologia de informação), bem como a um
modelo particular (governança regulatória, participativa, multinível ou colaborativa). No entanto,
por detrás dessa variedade nas formas de se definir a governança, destaca-se aqui as duas principais
formas subjacentes de se pensar e abordar o tema. Importa-nos, sobretudo, salientar que cada uma
dessas perspectivas implicará diferentes formas de traduzir a questão da governança em termos de
práticas para a administração pública.

3.1 A perspectiva prescritivo-formal da “boa governança”


A abordagem provavelmente mais conhecida e difundida sobre o tema da governança em âmbito
global é aquela que se reveste de um enfoque normativo e prescritivo sobre a administração pública.
O termo “boa governança” (good governance), notoriamente criado pelo Banco Mundial, sustentou
estratégias de disseminação de boas práticas de políticas públicas fundamentadas em prescrições de
instituições, ações e recursos necessários para o que deve ser um governo efetivo em contexto democrático.
O banco passou a medir e publicar indicadores de governança (worldwide governance indicators)
para as nações que, em termos gerais, visa mensurar comparativamente como os governos são selecionados,
monitorados e substituídos; a capacidade do governo para efetivamente formular e implementar políticas;
e o respeito aos cidadãos e às instituições que regulam as interações econômicas e sociais entre eles
(Kaufmann, Kraay e Mastruzzi, 2006).
Essa abordagem foi acompanhada por outros organismos multilaterais e também governamentais
em esforços de gerar conhecimento aplicado capaz de subsidiar prescrições à difusão de boas práticas
de gestão e de políticas públicas. A efetivação das ações de governo, portanto, é considerada sob a
perspectiva de um conjunto de requisitos funcionais que supostamente culminam em um governo
mais efetivo. Essa perspectiva aproxima-se muito da forma como as organizações do setor privado vêm
praticando a governança corporativa, por meio da disseminação de pacotes de estruturas organizacionais
predefinidas (conselhos de administração, contratualização etc.), voltadas ao controle do desempenho
que interessa aos acionistas. Observa-se, portanto, que, na abordagem de boa governança, prevalece
uma forte conotação prescritiva de padrões e caminhos a seguir (tanto em termos de forma quanto
de finalidade) na direção de aprimoramento do desenho e do funcionamento do policy-making.
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Obviamente, essa opção recebe um conjunto de críticas que a posiciona como uma abordagem
ingênua (naive) e também um tanto quanto irrealista, a ponto de ser considerado um “conceito mágico”
(Hupe e Pollitt, 2010). Segundo Hupe e Pollitt (ibidem), isso se deve ao fato de: i) a governança ser
considerada uma retórica da moda; ii) sua abrangência de significados tende a gerar interpretações vagas
e imprecisas; iii) possui uma alta carga de juízo de valor, evidente no próprio termo boa governança
que se subentende um apelo normativo e de virtude, pois o contrário é claramente indesejável sob
qualquer perspectiva; e iv) supostamente sugerir consenso ou ao menos redução de conflitos.

3.2 Governança como perspectiva analítica


A perspectiva que aborda governança como uma estratégia analítica para investigar o funcionamento
do Estado e das políticas públicas resultou de esforços no debate internacional no sentido da
elevação do entendimento sobre governança como teoria do Estado (Peters, 2012; Levi-Faur, 2012)
e de um decorrente desacoplamento do conceito de pacotes de reformas, formatos organizacionais
ou experiências específicas. Trata-se de transcender as definições específicas e situadas em nichos,
passando-se a abordar a governança como uma orientação para o estudo e a reflexão da atuação de
organizações e suas relações com os ambientes nos quais se inserem.
Objetiva-se pesquisar como de fato operam os atores, os interesses, as estruturas, os mecanismos
e os instrumentos na organização e na condução do processo de formulação e de implementação de
uma política pública ou de uma área específica de atuação estatal. Além disso, as análises visam explicar
as diferenças entres os arranjos de governança e seus fatores subjacentes, como também as razões de
suas transformações ao longo do tempo e do espaço.
Nessa linha, a governança passa a ser entendida como instrumento heurístico ou uma perspectiva
analítica, que nos permite visualizar e problematizar a dinamicidade das formas de organização e
atuação dos Estado e das suas políticas públicas (Capano, Howlett e Ramesh, 2014). Nas palavras de
Rhodes (1996, p. 652): “governança significa uma mudança no sentido da atividade governamental,
referindo-se a novos processos de governo, ou a renovadas condições para o exercício do poder e para
a organização estatal, ou a novos métodos por meio dos quais a sociedade é governada”.
A governança, enquanto perspectiva analítica, torna-se útil à medida que desloca a atenção dos
detalhes do comportamento institucional formal e aponta o olhar para os processos interinstitucionais
de condução coletiva dos assuntos de interesse público. Assim, a discussão de governança permite tratar
a realidade aparentemente caótica da produção de políticas públicas e ações governamentais por meio
da sua leitura enquanto configurações de relações entre múltiplos atores envolvidos. Trata-se de uma
perspectiva que lança luzes sobre as dinâmicas relacionais e pretende ir além da prescrição de formatos
organizacionais específicos – os formatos passam a ser tratados como os instrumentos, secundários,
que devem se redirecionar ou potencializar as relações entre atores diversos que intervêm na produção
das políticas e dos serviços. Em suma, tal como definido por Marques (2016) – apoiando-se em Stoker
(1998) e Le Galès (2011) –, a governança deve ser entendida como “o conjunto de atores estatais e
não estatais interconectados por ligações formais e informais operando no processo de fazer políticas
e inseridos em cenários institucionais específicos” (ibidem, p. 16-17).
Nessa linha, consolida-se um entendimento de governança, essencialmente como um olhar
sobre os arranjos institucionais (formais e informais) que organizam e estabilizam as relações
entre os diferentes atores envolvidos (Gomide e Pires, 2014; 2016). Esses arranjos, por sua vez,
podem e devem ser diversificados e dinâmicos, em função das características dos atores envolvidos,
Governança Pública: das prescrições formais à construção de uma perspectiva estratégica para a ação governamental
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dos diferentes contextos e legados dentro dos quais se dá a operação das organizações públicas
e das políticas que elas conduzem.
Em suma, governança diz respeito às dinâmicas relacionais entre os múltiplos atores envolvidos,
as quais podem ser tomadas como objeto de intervenção estratégica (moldagem), com a finalidade de produzir as
capacidades necessárias para a efetivação da ação governamental (Capano, Howlett e Ramesh, 2014).
Por meio do estudo minucioso dos arranjos institucionais que dão suporte à implementação de políticas
públicas no governo federal, estes estudos têm revelado os processos de (des)construção das capacidades
estatais em curso, permitindo reflexões prospectivas (ações de planejamento e desenho de estratégias)
e retrospectivas (avaliação dos resultados e redesenho de programas) (Gomide e Pires, 2016; Machado,
Gomide e Pires, 2017).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O debate e a aplicação de medidas associadas à noção de governança devem ser compreendidos dentro
de um contexto mais amplo e realista. Para tanto, é fundamental termos em mente os desafios e as
restrições inerentes à narrativa amplamente difundida da governança como panaceia para os problemas
da administração pública. Ao contrário, devemos focar a atenção no mapeamento dos gargalos e das
barreiras estruturais, para que as organizações atuem de forma mais efetiva (sob diferentes perspectivas
e valores), e, principalmente, discutir como se criar capacidades para tanto.
Diversas iniciativas correntes têm buscado apropriar-se do conceito de governança para propor
recomendações e rumos de reforma para a administração pública brasileira. Porém, quando este
exercício funda-se em uma perspectiva prescritivo-formal, é possível que aporte mais riscos do que
contribuições ao debate sobre os rumos da gestão pública no país.
O primeiro risco é ignorar a natureza dinâmica e múltipla dos fenômenos associados à ideia de
governança. Não é plausível imaginar que, para resolver problemas políticos e de políticas públicas
diversos, mediante arranjos de governança efetivos, basta designar ou defender um modelo de governança
específico (isto é, conselhos de administração, planos estratégicos, formas específicas de liderança e
controle). Diferentemente de corporações privadas, que possuem predominantemente o lucro como
objetivo e os gestores, os funcionários e os acionistas como stakeholders, a realidade da administração
pública é bem mais complexa e mutável. Ou seja, a implementação de políticas públicas vai variar de
acordo com as características do setor, da realidade socioeconômica, de seus atores, de incentivos e
de restrições dentro de um cenário democrático. Inclusive dentro de próprio setor público, a complexidade
e a interdependência desses fatores entre as arenas de políticas públicas, como de infraestrutura e
social, por exemplo, são bem diferentes. A noção de governança dinâmica sugere que os modos de
governança variam no decorrer do tempo de acordo com os desenhos dos seus arranjos e as mesclas
de ferramentas de políticas públicas disponíveis (Capano, Howlett e Ramesh, 2014).
Além do reconhecimento do dinamismo e das diferentes características do policy-making como
subjacentes à governança, é preciso ponderar as restrições de prescrições e visões normativas que,
normalmente, são carregadas de juízo de valor e pouco conhecimento empiricamente validado,
de positividade embutida em um suposto consenso e, sobretudo, de pressupostos de que a adoção de
ideias e práticas bem-sucedidas em realidades políticas e administrativas díspares seja automática.
Outro aspecto que se destaca nesta discussão envolve a ênfase, em boa medida desproporcional,
que é dada à suposta necessidade de aumento do controle institucional da administração pública,
em detrimento a outras dimensões. É preciso que o controle seja mais bem equilibrado com outras
Boletim de Análise Político-Institucional | n. 19 | Dezembro 2018
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formas de accountability da administração pública, como a participação da sociedade, e também


reconhecer uma necessidade cada vez mais latente de flexibilidade e menos de rigidez, de modo a
propiciar condições, por exemplo, para o experimentalismo ou processos de tentativa e erro, essenciais
para o desenvolvimento de inovações.
Assim, em linha com a perspectiva que aborda a governança como estratégia analítica, vislumbra-se
que o caminho adiante na busca pelo aprimoramento da governança na administração pública
federal requer o desenvolvimento de um metamodelo. Isto é, não se trata de prescrever os formatos
organizacionais a serem adotados por todos os órgãos públicos, mas sim de oferecer ferramentas
analíticas que instiguem reflexões situadas por parte dos agentes públicos sobre as mudanças que
precisam ser feitas a partir do seu contexto de atuação, visando à qualificação das entregas públicas
sob sua responsabilidade.
Somente um metamodelo desse tipo poderia instigar capacidades de reflexão e (re)desenho
contextualizado de arranjos de governança no âmbito do setor público brasileiro, para que os diferentes
programas e ações de governo tornem-se mais efetivos ao promover as múltiplas articulações necessárias
envolvendo: i) múltiplos órgãos do aparato governamental; ii) governos e empresas; iii) governos e
atores não governamentais; iv) atores do mercado e da sociedade civil; e v) redes entre os três (Capano,
Howlett e Ramesh, 2014).

REFERÊNCIAS

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