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Político-Institucional
19
Dezembro 2018
Governança Pública
Boletim de Análise
Político-Institucional
19
Dezembro 2018
GOVERNANÇA PÚBLICA
Brasília, 2018
Ministério do Planejamento,
Desenvolvimento e Gestão Boletim de Análise
Ministro Esteves Pedro Colnago Junior
Político-Institucional
Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada
URL: http://www.ipea.gov.br a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.
Governança Multinível................................................................................................................. 49
Renata Bichir
Pedro Cavalcante1
Roberto Rocha C. Pires2
O Boletim de Análise Político-Institucional (Bapi) tem como objetivo divulgar reflexões e estudos sobre
os temas tratados na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia
(Diest) do Ipea. A publicação assume como vocação abordar questões atuais e relevantes da agenda
político-institucional do país. Nesse sentido, este número 19 dedica-se ao tema da governança pública
e visa discutir, sob diferentes perspectivas, a variedade de conceitos de governança, seus aspectos
subjacentes (propósitos e características) e suas múltiplas aplicações, com vistas a qualificar o debate
sobre o tema e ampliar nosso conhecimento sobre as estratégias de aprimoramento e desenvolvimento
das capacidades de ação e efetivação de políticas públicas no Estado brasileiro.
Esta edição temática do Bapi justifica-se em razão da relevância e da proeminência que o debate
sobre governança vem ganhando no âmbito da administração pública nos últimos anos. Além disso,
a questão ganha ainda mais importância diante dos esforços que vêm sendo empreendidos no sentido
de orientar e formalizar estruturas de governança nas organizações do Executivo federal, como a
Lei das Empresas Estatais,3 a Lei das Agências Reguladoras4 e, mais recentemente, o Decreto no 9.203,
de 22 de novembro de 2017, que dispõe sobre a política de governança da administração pública
federal direta, autárquica e fundacional.
Nesse contexto, observa-se uma certa disputa pela fixação e definição do conceito de governança
pública. A disseminação e a utilização de alguns conceitos – e seus princípios ou diretrizes de natureza
normativa e prescritiva – têm provocado confusões e repercussões em termos de recomendações que
podem gerar simplificações de realidades complexas e assimétricas do setor público.
Esse cenário de disputa e confusão conceitual não é exclusividade do contexto nacional, uma
vez que é comum, tanto nos governos e organismos multilaterais quanto na academia, coexistirem
visões que nem sempre são convergentes. Argumentamos que a questão problemática aqui não é a
diversidade conceitual em si, mas sim as tentativas de resolução da situação por meio da simplificação
(por vezes exagerada) do conceito, sem o devido embasamento teórico. Isso vem se refletindo,
por exemplo, em processos de isomorfismo na construção de indicadores de governança para organizações
bastante díspares, que incorporam um número bem amplo de dimensões de análise que tendem
a gerar contradições inerentes entres elas. Além disso, os indicadores de boa governança também
são criticados por não possuírem um modelo teórico que os sustente e focar predominantemente a
“ginástica estatística”, o que pode gerar problemas de falta de consistência, correção e replicabilidade
nos seus usos (Andrews, 2008).
1. Coordenador de estudos e políticas de Estado e democracia na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia
(Diest) do Ipea.
2. Técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, professor do mestrado profissional em políticas públicas e desenvolvimento do Ipea e do
mestrado profissional em governança e desenvolvimento na Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
3. Lei no 13.303, de 30 de junho de 2016. Disponível em: <https://goo.gl/GsnszL>. Acesso em: 27 nov. 2018.
4. Projeto de Lei no 6.621, de 2016. Disponível em: <https://goo.gl/BHVrgK>. Acesso em: 27 nov. 2018.
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no Brasil e defende a utilidade do conceito de governança como perspectiva analítica. O último artigo
do boletim, de Ronaldo Alves Nogueira e Francisco Gaetani, trata da questão do controle no debate
sobre governança no país, com vistas a problematizar e a identificar as consequências da ascensão
do tema na agenda do Executivo federal, sobretudo capitaneada pelos órgãos de controle externo
(Tribunal de Contas da União – TCU) e de controle interno (Controladoria-Geral da União – CGU).
Boa leitura!
REFERÊNCIA
ANDREWS, Matt. The good governance agenda: beyond indicators without theory. Oxford
Development Studies, v. 36, n. 4, p. 379-407, 2008.
Governança Pública: das prescrições formais à construção de uma perspectiva
estratégica para a ação governamental
Pedro Cavalcante1
Roberto Rocha C. Pires2
1 INTRODUÇÃO
O principal objetivo deste artigo é situar duas diferentes perspectivas que têm disputado o entendimento
do conceito de governança e seus usos. Busca-se também salientar um movimento observado na
literatura contemporânea (internacional e nacional), que parte da crítica às perspectivas da governança
como um conjunto de prescrições formais (ou tipos predeterminados de reformas) e tem caminhado
no sentido de compreender a governança como uma perspectiva estratégica e situada para lidar com
os desafios de coordenação e de implementação de programas governamentais em ambientes (internos
e externos) cada vez mais complexos, dinâmicos e incertos. A partir da discussão dessas diferentes
perspectivas e de seus aspectos subjacentes, espera-se contribuir com a qualificação do debate sobre o
tema, chamando a atenção para as condições sob as quais a reflexão sobre governança pode vir a ser
útil para o aprimoramento e o desenvolvimento de capacidades de ação e de efetivação de políticas
públicas pelo governo federal.
A temática vem ganhando proeminência na administração pública nos últimos anos, seja em
empresas estatais, seja em agências reguladoras, em órgãos de controle ou nas organizações do Poder
Executivo responsáveis pela formulação e pela implementação das políticas públicas. Observa-se,
no entanto, que a mobilização e a disseminação de alguns conceitos e formas de abordar o tema
da governança – em especial a perspectiva prescritivo-formal e suas associações com as funções de
controle – têm provocado confusões, simplificado realidades complexas e assimétricas existentes
no setor público, e gerado recomendações que ignoram gargalos e problemas estruturais do Estado
brasileiro. Argumenta-se que, quando percebidas e exercitadas dessa forma, a reflexão e as práticas
associadas à ideia de governança distanciam-se de uma contribuição ao aprimoramento e à efetividade
das ações públicas. De outro lado, defende-se que, quando a governança é mobilizada como perspectiva
analítico-operacional, há claros ganhos no sentido do enfrentamento dos desafios contemporâneos da
administração pública na sua complexidade e diversidade, considerando os contextos específicos de
atuação dos distintos atores e organizações governamentais e buscando a ampliação de suas capacidades
e de seus recursos operacionais.
Este artigo possui quatro seções, incluindo esta introdução. Na seção 2 abordaremos, de forma
sucinta, a evolução recente do conceito, sua proliferação e sua diversidade interpretativa. Em seguida,
na seção 3 apresentamos as duas perspectivas em questão – prescritivo-formal e analítico-operacional –
e discutimos seus propósitos, características e implicações distintos. Por fim, na seção 4 são tecidas
algumas recomendações de caminhos para qualificar o debate atual sobre o tema.
1. Coordenador de estudos e políticas de Estado e democracia na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia
(Diest) do Ipea.
2. Técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, professor do mestrado profissional em políticas públicas e desenvolvimento do Ipea e do
mestrado profissional em governança e desenvolvimento da Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
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melhores serviços públicos em tempo de restrições fiscais, o termo governança passa a ser necessário
aos debates para dar conta desse processo de crescente complexificação (Marques, 2016).
Nesse brevíssimo itinerário fica claro que, de um lado, a emergência do termo governança
associa-se à necessidade de lidar com a superação das disfunções do modelo burocrático tradicional,
mas, de outro, os seus usos e sentidos vão variar muito em função dos contextos organizacionais
em que se dão as reflexões contemporâneas sobre governança. Esses sentidos e usos variam da
preocupação com o controle das organizações privadas pelos seus acionistas à necessidade de
se promover a integração do setor público, por meio de articulações entre diferentes governos
(multinível), entre diferentes agências de um mesmo governo e entre estas e atores sociais e
privados na busca de construção de capacidades e respostas à altura da complexidade dos problemas
enfrentados (Levi-Faur, 2012; Peters, 2012; Lynn Jr., 2002; 2010).
Obviamente, essa opção recebe um conjunto de críticas que a posiciona como uma abordagem
ingênua (naive) e também um tanto quanto irrealista, a ponto de ser considerado um “conceito mágico”
(Hupe e Pollitt, 2010). Segundo Hupe e Pollitt (ibidem), isso se deve ao fato de: i) a governança ser
considerada uma retórica da moda; ii) sua abrangência de significados tende a gerar interpretações vagas
e imprecisas; iii) possui uma alta carga de juízo de valor, evidente no próprio termo boa governança
que se subentende um apelo normativo e de virtude, pois o contrário é claramente indesejável sob
qualquer perspectiva; e iv) supostamente sugerir consenso ou ao menos redução de conflitos.
dos diferentes contextos e legados dentro dos quais se dá a operação das organizações públicas
e das políticas que elas conduzem.
Em suma, governança diz respeito às dinâmicas relacionais entre os múltiplos atores envolvidos,
as quais podem ser tomadas como objeto de intervenção estratégica (moldagem), com a finalidade de produzir as
capacidades necessárias para a efetivação da ação governamental (Capano, Howlett e Ramesh, 2014).
Por meio do estudo minucioso dos arranjos institucionais que dão suporte à implementação de políticas
públicas no governo federal, estes estudos têm revelado os processos de (des)construção das capacidades
estatais em curso, permitindo reflexões prospectivas (ações de planejamento e desenho de estratégias)
e retrospectivas (avaliação dos resultados e redesenho de programas) (Gomide e Pires, 2016; Machado,
Gomide e Pires, 2017).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O debate e a aplicação de medidas associadas à noção de governança devem ser compreendidos dentro
de um contexto mais amplo e realista. Para tanto, é fundamental termos em mente os desafios e as
restrições inerentes à narrativa amplamente difundida da governança como panaceia para os problemas
da administração pública. Ao contrário, devemos focar a atenção no mapeamento dos gargalos e das
barreiras estruturais, para que as organizações atuem de forma mais efetiva (sob diferentes perspectivas
e valores), e, principalmente, discutir como se criar capacidades para tanto.
Diversas iniciativas correntes têm buscado apropriar-se do conceito de governança para propor
recomendações e rumos de reforma para a administração pública brasileira. Porém, quando este
exercício funda-se em uma perspectiva prescritivo-formal, é possível que aporte mais riscos do que
contribuições ao debate sobre os rumos da gestão pública no país.
O primeiro risco é ignorar a natureza dinâmica e múltipla dos fenômenos associados à ideia de
governança. Não é plausível imaginar que, para resolver problemas políticos e de políticas públicas
diversos, mediante arranjos de governança efetivos, basta designar ou defender um modelo de governança
específico (isto é, conselhos de administração, planos estratégicos, formas específicas de liderança e
controle). Diferentemente de corporações privadas, que possuem predominantemente o lucro como
objetivo e os gestores, os funcionários e os acionistas como stakeholders, a realidade da administração
pública é bem mais complexa e mutável. Ou seja, a implementação de políticas públicas vai variar de
acordo com as características do setor, da realidade socioeconômica, de seus atores, de incentivos e
de restrições dentro de um cenário democrático. Inclusive dentro de próprio setor público, a complexidade
e a interdependência desses fatores entre as arenas de políticas públicas, como de infraestrutura e
social, por exemplo, são bem diferentes. A noção de governança dinâmica sugere que os modos de
governança variam no decorrer do tempo de acordo com os desenhos dos seus arranjos e as mesclas
de ferramentas de políticas públicas disponíveis (Capano, Howlett e Ramesh, 2014).
Além do reconhecimento do dinamismo e das diferentes características do policy-making como
subjacentes à governança, é preciso ponderar as restrições de prescrições e visões normativas que,
normalmente, são carregadas de juízo de valor e pouco conhecimento empiricamente validado,
de positividade embutida em um suposto consenso e, sobretudo, de pressupostos de que a adoção de
ideias e práticas bem-sucedidas em realidades políticas e administrativas díspares seja automática.
Outro aspecto que se destaca nesta discussão envolve a ênfase, em boa medida desproporcional,
que é dada à suposta necessidade de aumento do controle institucional da administração pública,
em detrimento a outras dimensões. É preciso que o controle seja mais bem equilibrado com outras
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REFERÊNCIAS
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR