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PSICOLOGIA SOCIAL editora brasiliense Filosofia © Comportamento Bento Prado Jr. Freud, Pensador da.Culeura Renato Mezan, 0 Minimo Eu ‘Christopher Lasch, ‘Sigmund Freud e © Gabinete do Dr. Lacan Peter Gay e outros ‘Tempo do Desejo Sociologia e pricandlive Heloise Feesandes (org) © que é Loucura Foto Frayze-Peseita 0 que é Paicanilise Fabio Herrmann, O que é Pricanilise 28 eiido (Oscar Cesarocto/ Marcio P. $. Leite O que é Pricologia ‘Matia Luiza S. Tetes 0 que é Psicologia Comunicésia Eduardo M. Vasconcelos © que € Psicologia Social Silvia T. Maurer Lane © que € Pricodraema Wilson Castella de Alincida O que é Pricoterapia eda Porchat © que é Psiquiatria Alternativa Alan Indio Sercanc SILVIA T. M. LANE WANDERLEY CODO (ORGS.) PSICOLOGIA SOCIAL © HOMEM EM MOVIMENTO ar edigao editora brasiliense . Copyright © Dos Autores, 1984 Nenhuma parte desta publicacao pode ser gravada, ‘armazenada em sistemas eletrOnicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecdnicos ou outros quaisquer sem ‘autorizacio prévia do editor. ISBN: 85-11-15023-4 Primeira edicio, 1984 85 edicao, 1969 Revisao: José W. $. Moraes e Mansueto Bernardi Capa: Ettore Bottini Rus da Consolacao, 2697 ‘1416 Sao Paulo SP Fone (011) 286-1222 - Telex: 11 33271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL Indice Apresentagio — Silvia T. M. Lane ........-+ PARTE 1 INTRODUGAO A Psicologia Social e uma nova concep¢do do homem para 18 Psicologia — Silvia T. M. Lane ‘A dialética marxista: uma leitura epistemolégica — Carone .. PARTE 2 AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL Linguagem, pensamento ¢ representastes sociis — Sivia T (. Lane . : ‘Consciéncia/alienagio: a ideologia no nivel individual — Silvia T. M. Lane : © fazer ¢ a conscitncia — Wanderley Codo Identidade — Antonio da Costa Ciampa . 10 865 8 ‘ INDICE : PARTE 3 O INDIVIDUO E AS INSTITUICOES O processo grupal — Silvia T. M. Lane .......sese2000006 78 Familia, emoco e ideologia — José Roberto Tozoni Reis ” processo de socializaydo na escola: a evolugdo da condicao social da crianga — Marilia Gouvea de Miranda ..... Relagdes de trabalho ¢ transformagio social — Wanderley Cod0 vseeeeeeeereeee 136 PARTE 4 A PRAXIS DO PSICOLOGO Psicologia educacional: uma avaliagdo critica — José Carlos Libiineo ween 154 0 psicélogo clinico — Alfredo Naffah Neto .......6.e000++ 181 © papel do psic6logo na organizagio industrial (notas sobre ‘0“lobomau”em psicologia)— WanderleyCodo .... Psicologia na comunidade — Alberto Abib Andery . 195 203 Apresentacio. Quando publicamos O que & Pricalogia Social 0 fizemos dentro das propostas da Colegio Primeiros Passos, procurando sintetizar a produg2o e discussio de temas que programa de pés-Graduago em Psicologia Social da PUC-SP vinha desen- volvendo. . Para nossa surpresa, o livro passou a ser leitura constante de alunos de cursos universitérios em todo 0 pats, indicando a necessidade de um conhecimento alternativo em Psicologia Social. Este livro se prope atender a essa necessidade com artigos de varios autores abofdando os tépicos que julgamos fundamental serem discutidos em disciplinas de Psicologia Social que compdem 0 currfeulo de Formago Geral do Psicblogo, assim como de outros cursos que necessitem de conhecimentos neséa area. * A Introdugio propde uma outra concepcao de homem ¢ suas implicagdes epistemolégicas; a Parte 2 analisa as categorias fun- damentais para a Psicologia Social, enquanto a Parte 3 aprofinda, fa anilise da relagio individuo-sociedade, pela mediagio grupal € institucional. Na Parte 4 os artigos analisam como, a partir desta concepelio de homem, possivel rever a prética do psicélogo nas suas diversas especialidades Esperamos assim contribuir para uma psicologia voltada para 0s problemas coneretos de nossa realidade, tornando o profissional um agente de transformagdo na sociedade brasileira, Silvia TM. Lane Parte 1 Introducio A Psicologia Social e uma nova concepcao do homem para a Psicologia Silvia Tatiana Maurer Lane "Quase nenhuma acdo humana tem por sujeito unt indi- viduo isolado. O sujeito da agéo é wm grupo, um ‘Nos’, mesmo se a esirutura atual da sociedade, pelo fendmeno da reificacéo, tende a encobrir esse ‘Nés’ e a iransformé-io numa soma de varias individualidades distintas e fechadas umas ds outras.” Lucien Goldman, 1947, A relagio entre Psicologia e Psicologia Social deve ser enten- did em sua perspectiva histérica, quando. na década de 50 se iniciam sistematizagdes em termos de Psicologia Social. dentro de duas tendéncias predominantes: uma, na tradigto pragmitica dos Estados Unidos, visando alterar ¢/ou criar atitudes, interferir nas relagdes grupais para harmonizé-las ¢ assim garantir a produti- vidade do grupo — é uma atuacdo que se earacteriza pela euforia de uma intervengio que minimizaria conflitos, tornando op homens “felizes” reconstrutores da humanidade que acabava de sair da destruigo de uma If Guerra Mundial. A outsa tendéncia, que também procura conhecimentos que evitem novas catistrofes mundiais, segue a tradicdo filosofica européia, com rafzes na fenomenologia, buscando modelos cientfficos totalizantes, como Lewin e sua teoria de Campo. A eufotia deste ramo cientifico denominado Psicologia Social dura relativamente pouco, pois sua eficdcia comeca a ser questio- nada em meados da década de 60, quando as andtises criticas apontavam para uma “crise” do conhecimento psicossocial que 130 INTRODUCAO a conseguia intervir nem explicar, muito menos prever comporta- mentos sociais. As téplicas de pesquisas e experimentos nio permi- tiam formular leis, os estudos interculturais apontavam para uma complexidade de variaveis que desafiavam os pesquisadores ¢ estalisticos — € 0 retorno as analises fatoriais ¢ novas técnicas de angilise de multivariancia, que afirmam sobre relagdes existentes, mas nada em termos de “como” e “por qué”. Na Franga, a tradicio psicanalitica € retomada com toda a veeméncia apés 0 movimento de 68, ¢ sob sua ética é feita uma critica & psicologia social norte-americana como uma cigncia ideo- Iogica, reprodutora dos interesses da classe dominante, e produto de condigdes histiricas espectfieas, © que invalida a transposido tal ¢ quel deste conhecimento para outros paises, em outras condiges hhist6rico-sociais. Esse movimento também tem suas repercussbes na Inglaterra, onde Israel e Tajfell analisam a “crise” sob 0 ponto de vista epistemolbgico com os diferentes pressupostos que embasam o conhecimento cientifica — ¢ 4 critica ao positivismo, que em nome da objetividade perde o ser humano, ‘Na América Latina, Tereeiro Mundo, dependente econSmica € culturalmente, a Psicologia Social oscila entre © pragmatisme norte-americano € a visto abrangente de um homem que sb era compreendido filoséiica ou sociologicamente — ou seja, um homem abstrato, Os congressos interamericanos de Psicologia slo exce- lentes termémetros dessa oscilagio € que culminam em 1976 (Miami), com criticas mais sistematizadas © novas propostas, principalmente pelo grupo da Venezuela, que se organiza suma Associacao Venezuelana de Psicologia Sovial (A VEPSO) coexistindo ‘com a Associagdo Latino-Americana de Psicologia Social (ALAP- SO). Nessa ocasiio, psicélogos brasileiros também faziam suss ceriticas, procurando novos rumos para uma Psicologia Social que atendesse a nossa realidade. Esses movimentos culminam em 1979 (SIP — Lima, Peru) com propostas concretas de uma Psicologia Social em bases materialista-histéricas e voltadas para trabalhos ‘comunitérios, agora com a perticipagio de psicblogos peruanos, mexieanos¢ outros. ‘© primeiro passo para a superagio da crise foi constatat a tradigao biol6gica da Psicologia, em que 0 individuo era considerado ‘um organismo que interage no meio fisivo, sendo que os processos psicoldgicos (0 que ocorre “dentro” dele) s40 assumides como ‘causa, ou uma das causas que explicam 0 seu comportamento. Ou seja, para compreender o individuo bastaria conhecer 0 que 2 ‘SULVIAT. M. LANE ‘ocorre “‘dentro dele”, quando cle se defronta com estimulos do meio. Porém o homem fila, pensa, aprende e ensina, transforma a natureza; o homem é cultura, é histéria. Este homem biol6gico nio sobrevive por sie nem é uma espécie que se reproduz tal e qual, com ‘variagbes decorrentes de clima, alimentacfo, etc. O seu organismo é ‘uma infra-estrutura que permite o desenvolvimento de uma superes- ‘trutura que é social e, portanto, histérica. Esta desconsideragio da Psicologia em geral, do ser humano como produto hist6rico- social, é que a torna, se no inécua, uma ciéncia que reproduziu a ideologia dominante de uma sociedade, quando descreve compor- tamento ¢ baseada em freqléncias tira conclusdes sobre relates ‘causais pela descrigo pura e simples de comportamentos ocorrendo ‘em situagdes dadas. Nao discutimos a validade das leis de aprendi- zagem; & indiscutivel que 0 reforgo aumenta a probabilidade da ‘ocorréncia do comportamento, assim como a puniglo extingue comportamentos, porém a questo que se coloca & por que se apreende certas coisas e outras sto extintas, por que objetos sto considerados reforcadores e outros punidores? Em outras palavras, ‘em que condicSes sociais ocorre a aprendizagem e o que ela significa ‘no conjunto das relagtes sociais que definem concretamente 0 individuo na sociedade em que ele vive. ser humano traz consigo uma dimensdo que niio pode ser descartada, que € a sua condig&o social e histérica, sob 0 risco de termos uma visdo distorcida (idcologica) de seu comportamento. Um outro ponto de desafio para a Psicologia Social se colocava diante “dos conhecimentos desenvolvidos — sabfamos das deter- ‘minagées sociais e culturais de seu comportamento, porém onde 2 criatividade, 0 poder de transformagio da sociedade por ele construfda. Os determinantes s6 nos ensinavam a reproduzir, com equenas variagtes, as condigbes sociais nas quais o individuo vive. A Ideologia nas ciéncias humanas A afirmativa de que o positivismo, na procura da objetividade dbs fatos, perdera 0 ser humano decorreu de uma andlise critica de um conhecimento minucioso enquanto descrigio de comporta- ‘mentos que, no entanto, néo dava conta do ser humano agente de mudanga, sujeito da histbria. © homem ou era socialmente deter minado ou era causa de si mesmo: sociologismo vs biologismo? Se INTRODUGAG por um Indo a psicanilise enfatizava a hist6ria do individue; 1 sociologia recuperava, através do materialismo histérico, a eépe- cificidade de uma totalidade histérica concreta na anilise de cada sociedade. Portanto, caberia & Psicologia Social recuperar 0 indi- ‘viduo na intersecco de sua histbria com a hist6ria de sua sociedade — apenas este conhecimento nos permitiria compreender o homem ‘enquanto produtor da histéria. Na medida em que o conhecimento positivista descrevia comportamentos restritos no espago e no tempo, sem considerar a inter-relacto infra e superestrutural, estes comportamentos, me- diados pelas instituigdes sociais, reproduziam a ideologia domi- nante, em termos de freqléncia observada, levando a consideri-los como “naturais” e, muitas vezes, “universais”. A ideologia, como produto hist6rico que se cristaliza nas instituigdes, traz consigo uma concepgo de homem necessiria para reproduzir relagées sociais, ‘que por sua vez sto fundamentais para a manutenclo das relagées de produgio da vida material da sociedade como tal. Na medida em que histéria se produz dialeticamente, cada sociedade, na organizagio da produgio de sua vida material, gera uma contra- digdo fundamental, que ao ser superada produz uma nova socie- dade, qualitativamente diferente da anterior. Porém, para que esta ccontradigo nfo negue a todo momento a sociedade que se produz, necessiria a mediagdo ideologica, ou seja, valores, explicagbes tidas como verdadeiras que reproduzam as relagdes sociais necesshrias para a manutengo das relagdes de produgio. Deste modo, quando as ciéncias humanas se atém apenas na descrigio, seja macro ou microssocial, das relag®es entre os homens e das instituigdes sociais, sem considerar a sociedade como produto historico-dialético, elas nfo conseguem captar a mediagio ideo- égica e a reproduzem como fatos inerentes 4 “natureza” do homem. E a Psicologia nfo foi cxcogo, principalmente, dada a saa origem biologica naturalist, onde 0 comportamento humano decorre de um organismo fisiolégico que responde a estimulos. Lembramos aqui Wundt e seu Iaborat6rio, que, objetivando construir uma psicologia cientifica, que se diferenciasse da especu- ago filos6fica, se preocupa em descrever processos psicotisiolégicos ‘em termos de estimulos e respostas, de causas-e-efeitos, Nesta tradicio e no entusiasmo de descrever 0 homem ‘enquanto um sistema nervoso complexo que o permitia dominar € transformar a natureza, criando condigtes sui-generis para a ‘SILVIA T, M. LANE sebrevivéncia da espécie, os psicblogos se esqueceram de que este ‘homem, junto com outros, ao transformar a natureza, se trans- formava ao longo da historia. ‘Como exemplo, podemos citar Skinner, que, sem divida, causou uma revolugdo na Psicologia, mas as condigées hist6rico- sociais que o cercam, impediram-no de dar um outro salto quali- tativo. AO superar o esquema S-R, chamando a atenco para Tela¢do homem-ambiente, para o controle que este ambiente exerce sobre 0 comportamento; criticando © reducionismo biol6gico, Permitiu a Skinner ver 0 homem como produto das suas relagées sociais, porém no chega a ver estas relagdes como produzidas a Partir da condigo histérica de uma sociedade. Quando Skinner, através da anilise experimental do comportamento, detecta 0s controles sutis que, através das instituigSes, os homens exercem uns sobre os outros, e define leis de aprendizagem — e niio podemos negar que reforgos e punigdes de fato controlam comportamentos — temos uma descrigio perfeita de um organismo que se transforma fem funcio das conseqiéncias de sua aco, também a anilise do ‘utocontrole se aproxima do que consideramos consciéncia de si € 0 contracontrole descreve ages de um individuo em processo de conscientizagao social. Skinner aponta para a complexidade das relagdes sociaise as implicagbes para a anélise dos comportamentos envolvidos, desafiando os psicélogos para a elaboracio de uma ‘tecnologia de anilise que dé conta desta compleridade, enquanto ccontingéncias, presentes em comunidades. A histéria individual 6 considerada enquanto histéria social que antecede e sucede & historia do Individuo. Nesta linha de raciocinio caberia questionar Por que alguns comportamentos sto reforgados ¢ outros punidos dentro de um mesmo grupo social. Sem responder a estas questBes, Passamos a descrever 0 status quo como imutével ¢, mesmo que. Tendo transformar o homem, como o préprio Skinner propde, jamais o conseguiremos numa dimensto histérico-social. Impasse semelhante podemos observar em Lewin, que procura a aranha para construir a teia tem. uma tarefa pela frente, o homem tem um problema que depende de uma AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 51 técnica e de um projeto. Ore, a aprendizagem da técnica eo projeto pressupiem o outro. Em outras palavras, a técnica pressupse uma divisto de trabalho tanto longitudinal quant transversal. Transversalmente, 0 homem se divide para produzir, por exemplo uns espantam a caga, enquanto outros a matam. Longitudinalmente, cada gera¢o aperfeigoa parte da técnica que o homem aprende num dado momento. Foi assim da roca de fiat, passando pela mule-jenny,* até as findoras modernas. Na cerne desta questo esté 0 problema da diviso de tra- balho, E é esta divisto de trabalho que permeia a linguagem, os instrumentos, 0 pensamento, a consciéncia. Passemos em revista a atividade produtiva do homem, procu- raremos demonstrar como 0 uso da atividade enquanto categoria. central da Psicélogia pode ser revelador. Tomar 0 fruto da terra, leva-lo A boca, deglutir. Como jé vimos, a “mera” atividade de apropriagdo é prenhe de uma relagio dialética homem-natureza: 1) 0 frato se transforma (se conforma) & imagem e semelhanga do homem; e, 2) ao mesmo tempo o homem se transforma (se conforma) & imagem e semethanga do fruto de que se aproprion, Em 1) 0 fruto se torna 0 homem no sentido fisico (motéculas que se incorporam ¢ passam a compor nosso corpo), biol6gico (energia que se transforma pelas ¢ para as células do home) ¢ psicologico (0 fruto passa a significar um fruto para o homen, se incorpora a ele um significado humano). Em 2) 0 homem se torna ofruto pelas mesmas razbes fisicas € biolbgicas, do ponto de vista psicolégico, o fruto ensina o homem a distingui-lo do ndo-fruto, nossas sensacdes, através da visio, porém, sioestruturadas pelo fruto. : Além das sensagdes, a apropriagio da natureza produz a agao do homem, estabelece relagdes de contingéncia entre os compor- lamentos, dispie 0 reforcamento, dispée sobre o gesto do brago, imdos, boca e, sobretudo, o fruta fornece um significado ao. gesto, Incorpora a ele um ‘elos, uma finalidade. Sensagdes, ago ¢ também percepedo, A natureza aproptiada liga © olho A boca, ao rariz. Plantar a semente, zelar pela planta, colher o fruto, (°) Uma das primeiras msquinas de fier. 2 WANDERLEY CODO- Aqui permanece a mesma relago dialética (no custa repeti- Ja, o homem é transformado pela natureza enquanto se transforma A imagem © semelkanga da naturezs) mas em um nivel qualita- tivamente superior? ‘Ao plantar o omen modifica para sio meio externo, j& no se ‘pode falar de natureza no sentido de contraposigio ax Humano, 0 mundo a0 redot (oma a face do Homem, € colocado a sen servigo, submetido as suas necessidades, portanto sua vontade. Neste sentido a dupla relaciio Homem-Natureza, apontada acima, ganhe lum elo novo, o homem transforma a natureza que o transforma. Mas plantar pressupte também o fruto presente-ausente, ov seja, © projeto do fruto, € preciso que o fruto esteja presente na couseiéncia do Homem, embora ausente da natureza. O fruto, pelo Homem, se torna transcendente, se eterniza na atividade do plantio. O aso de instrumentos de trabalho que £0 instramento de trabalho? Marx nos diz: “O meio de trabalho € uma coisa ov um conjunto de coisas que o homem interpde entre ele e 0 objeto do seu trabalho, como condutor da sua aco". . Portanto, o instrumento tem um carter mediador na medida em que funciona concretamente como extensio do homem, am- Pliando ou precisando seus gestos o eterniza. Um machado, por exemplo, & 0 ato do homem objetivado, perene, imortalizado, em uma palavra, transcendente ao proprio Homem. Neste sentido 0 instrumento de trabalho é um mediador entre 0 Homem e a sua transcendéncia, em outras palavras a sua Hist6ria. ‘Um outro caréter mediador se ampara no fato de que, embora fitho legitimo da ago, o instrumento de trabatho pressupte a aco io realizada, ou seja, um projeto. Assim, o instrumento trans- forma através do trabalho a reflexao em ago materializada e como se viu, transcendente. Os meioy de trabalho exercem a mediagio entre a reflextio ea Historia, 12) A antlise do plantar pressupde 0 uso de instrumentos @ conco- mitantomente de linguagem; aqui, por questBes didéticas, apenss vamos ‘separer 06 processos. ASCATEGORIAS FUNDAMENTAISDA PSICOLOGIA SOCIAL $3 Fabricado pelo Hamem como mediador entre ele ¢ a natureza (meio de trabalho), o instrumento se amolda ao seu criador. B a natureza hominizada ¢ meio de hominizacio da natureza ao mesmo tempo. Criado pelo Homem a sua imagem ¢ semelhanca, 0 eterniza, transforma a atividade individual em Historia, a crisgdo cria 0 criador. Agiio e meio de agéo sintetizadas e eternizadas, a criaglo se liberta do criador, 0 machado que eu fiz, ao mesmo tempo que imortaliza meu gesto, recria o gesto do outro & minha imagem ¢ semelhanga, 0 machado reapresenta 20 Homem individual a Histéria da Humanidade, conforma ¢ insere o individuo & sua répria espécie; 20 contririo, o instrumento viabiliza a intervengio do Homem em toda a sua Histéria, pela via da atividade, o machado aperfeigoado pelo meu sucessor transforma o homem individual em ser genérico, a evolugio do seu gesto traz em si a revolucio da Humanidade. Através do instrumento de trabatho homem trans- formna a hist6ria dos homens e é transformado por ela. instrumento € produtor ¢ produto da abstrago. O conceito duro (ou mole) no emana diretamente da natureza, como pode haver na consciéncia humana algo que ndo se encontra no mundo? © conceito de duro é reflexo de uma interacBo entre dois, objetos de densidades diferentes. Ao bater com o machado em uma Arvore 0 homem interage com os dois elementos em questic ©, principalmente com a relagdo entre eles, a mediaglo do gesto realizado pelo instromente informa uma dimensio do real d'antes insuspeita, arma o homem com a possibilidade de interpretagao do mundo. Isto é verdade para qualquer abstragio, qualquer pensa- mento, Ocorre que, amitide, o instrumento de intervengzo do homem no universo é a propria palavra que reorganiza relagbes dos ~ homens entre si, funcionando pricritariamente como uen ins:ru- ‘mento de intervenco no outro ou do outro em mim.? ‘Embora filho legitimo da agdo, a construgio do instrumento de trabalho pressupbe a ago ndo reslizada, ou seja, um produto de acto, o instrumento de trabalho engendra a reflexoe a materialza. Em outras palavras, 0 uso de meios de trabalho realiza a volta (3) No se faré aqui uma andlise de inguagern, apenes se ressalta c:seu papel como instrumento. 34 WANDERLEY CODO, completa, promove a consciéncia do qual é produto, produz a cons- cigneia que promove. Em suma, o instrumento de traballio transforma o homem de animal em ser transcendente: através da agdio mediatizada o homem transcende a si mesmo, em dirego ao seu projeto, portanto em relagdo 20 outro, portanto em directo a Historia, O homem ¢ o outro Evidentemente o trabalho enquanto modo de produydo de sua propria existéncia exigiu do homem a convivéncia em grupos, o desenvolvimento da linguagem e a divisio de trabalho, Os processos grupais e a linguagem esto formulados em ‘outros momentos deste livro. Posso ent&o me poupar desta anilise ¢ abordar alguns aspectos da divisdéo de trabalho que considero relevantes para a andlise em questo. AA divisio de trabalho une e separa (une porque separa, separa porque une) os homens ao mesmo tempo. Se a caca ¢ grande € perigosa o suficiente para que o homem nao possa abaté-Ia sozinho ¢ se organizam grupos encarregados de abaté-la e outros encarregados de espanté-la, esta divisio de trabalho tende, por uma questo de competéncia, a se cristalizar, o que impliea que percepcdes, abs- tragdes ¢ também conscigncias diferentes da realidade se estabe- Jecam em homens diferentes, por outro lado é igualmente obri- gatério que os mesmos homens “separados” pelas atividades Giferencladas se unam em um plano superior, que € 0 plano do projeto e dos objetivos da atividade em pauta. Assim, & preciso que 0s homens estejam ligados entre si pelo produto do seu trabalho {atividade objetiva) para que possam sobreviver. A caga no seria abatida se cada homem nfo cedesse a seus instintos imediatos & comungasse do projeto do grupo. Como se veri adiante, esta dialética unido-separacdo & fundamental para o proceso de conscientizagao, assim como a relacdo homem-homem, homem-natureza que analisaremos a seguir. Ja repetimos ad nauseam que é a relagto pritica do homem com a natureza, sua atividade que 0 constitui. No trabalho produtivo este carter de determinacao da pratica aparece de forma etistalina; € a caga que instrui ao cagador a fora do golpe. ASCATEGORIAS FUNDAMENTAISDA PSICOLOGIA SOCIAL $8 Ao mesmo tempo que a atividade eminentemente pritica empurra 0 homem para o contato vis-a-vis a natuteza, seu modo de ser social € histOrico, portanto transcendente, o obriga a uma relagio com 0 outro que implica “‘afastamento” (ressalte-se as aspas) com a natureza, Vejamos, A construgio de instrumentos imbricada com a linguagem permite que o engenho, a criatividade, a compettncia de um trabalhador em particular tratiscenda a si mesmo ¢ passe a pertencer a toda a humanidde. A rigor, basta que um homem em ‘uma tribo primitiva inventeo arcoe a flecha para que esta atividade objetivada no produto de sua arte passe a pertencer a toda a coletividade, imprimindo sua existéneia no existir do outro, que por sua vez 0 reformula, até ttingirmos todos nés 0 estagio da bazaca, por exemplo. Percorrendo caminho inverso: 0 ato de um homem particular ‘com um machado particular ao bater em uma arvore permeado de toda a historia da humanidade até entao. Aqui a dupla apropriagdo homem-meio (transformar e ser transformado pela natureza) se funde e tem como requisito a dupla apropriagio homem-hortem (transformar e ser transformado pelo outro). © machado é uma via de consciéncia do mundo € do social porque € 0 homem genérico, toda a histbria, toda a sociedade representada, quanto mais técnica se aperfeigoa mais o meio ambiente natural do homem se torna humano. Hoje encontramios opetatios lidando com méquinas feitas por maquinas. per ommia, produzindo a vida de pessoas através da eletricidade que nao sabemos ao certo em qual momento hist6rico foi produzida pela primeira ver. Assim se promove um “afastamento” aparente que se concre- ‘tiza por um poder cada vez maior sobre a natureza pela via social, vale dizer, histérica. A minha atividade mediada pela atividade do outro pela via da linguagem e do instrumento de trabalho € exatamente o que permite que a atividade se reapresente a um sujeito particular em um “reflexo da realidade coneteta destacado das relagées que existem entre ela € 0 sujeito, ou seja, um reflexo que distingue sujeito, ou seja, um reflexo que distingue as propriedades objetivas estaveis da Realidade”. Estamos falando do fenémeno da eonsciéncia humana. Marx nos revela que « linguagem & a conscitncia pritica. Ou seje, &a atividade dos homens representada a um sujeito incivideal, 6 WANDERLEY CODO portanto passivel de ser reproduzida na auséncia do mundo objetivo imediato ao mesmo tempo que permanece fiel a ele. Vimos que a atividade produtiva humana, pela via do desenvolvimento imbricado da linguagem, dos instrumentos de trabalho e da divisto de trabalho produz a consciéncia através da dialética homem/natureza, homem/homem que se expressa por uma tensio perene entre o individuo como sujeito individual e coletivo do seu préprio destino, contradigéo esta que s6 poder evoluir pela apropriaco coletiva do destino individual. Talvez um exemplo possa deixar as coisas mais claras, Tomemos um operério que ingressa hoje em uma fébrica: encontra ali, ja construido, um modo de producdo coletivizado altamente evoluido que o insere em toda a hist6ria da humanidade, cada produtorealizado, cadagestoreapropria e transforma o mundoe os homens. Ao apertar um boto que aciona uma méquina, nosso operério ¢invadido pela hist6ria e torna-se seu portador, se insere em sua classe na luta de sua classe na medida em que se organiza coletivamente. Ao mesmo tempo encontra o produto do trabalho rompido, ivorciade do produtor. O produto do seu trabalho se the apresenta, como ser estranho, independente do produtor, nos diz Marx) 0 trabalho é alienado, por isto dividido entre trabalho intelectual e trabalho bracal, ou seja, 0 gesto é expropriado da criagao, O trabalho coletivizado ¢ as relagdes de trabatho competitivas, 0 irmao do qual o trabalho depende ¢ pelo qual o produto se cria reapresen- tado como inimigo. O/ operitionviverd. entre estes dois fogos 0 tempo todo, 4 apropriagdo de si pelo mundo:e’a reapropriaglo do mando. O momento da greve, por exemplo, a0 promover a ruptura da produsao alienada (mesmo que parcialmente) rompe também com 0 isolamento de um individu para com 0 outro. A nio-produgio Produz um produtor ativo, de si, do outro, do mundo. Pela luta, via ‘aso, recompondo, reeriando a atividade até 0 momento em que pelo outro o homem reencontra a si mesmo, até que o existir coletivo Feencontre osujeito individual. = ASCATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 7 Bibliografia Lebninger, A. L., Bioguimica, trad. da 2* ed. americans, Sto Paulo, Edgard Bidcher, 1976. Leontiev, A. N., Actividad, consciencia y personalidad, Buenos Aires, Ed. ‘Ciencias del Hombre, 1978, + 0 Desenvolvimento do Psiquismo, Lisboa, Livros Horizonte Ltda, 1978. . ‘Marx, K., £f Capital, Fondo de Cultura Eoonbmica, 3 vols., 48 ¢d., México ‘= Buenos Aires, 196. " Marz, K. ¢ Engels, F., Dialétiqa da Natureza, in Obras Escogidas, EA. Progreso Mosc6, 3 vols., URSS, 1978. ; +, Manuscritos Econémicos e Filesdficos, in Obras Escopidas, idem, ‘bide. —— . A ldeologia Alem, in Obras Escogidas, idem, ibidem. . “= + Contribuigio & Critica da Economia Politica, in Obras Escogidas, ‘dem, ibidem. Identidade Antonio da Costa Ciampa Uma pergunta aparentemente simples ‘Quem € yoo’? Euma pergunta que freqientemente nos fazem que as vezes fazemos a nds mestios.. “Quem sou eu?" . Quando esta pergunta surge podemos dizer que estamos pesquisando nossa identidade. Como em qualquer pesquisa, esta- mos em busca de respostas, de conhecimento, Por se tratar de uma Bergonta feta a nosso rexpeto € fii Garmoe ume repost ox nip Se € um conhecimento que buscamos a respeito de_nés mesmos podemos supor que estamos em condigdes de fornecé-lo. Afinal se trata de dizer quem somos... Experimente! Nao continue lendo antes de responder a esta pergunta: quem é voce? Pronto? Respondeu de forma a qualquer pessoa, depois dé ouvir sua resposta, poder afirmar que o conhece? Sua resposta torna possivel vos8 se mostrar ao outro (e, ao mesmo tempo, voce se reconhecer) de forma total e transparente, de modo a nfo haver nenhuma divida, nenhum segredo a seu respeito? Sua resposta produz um conheci- mento que 0 torna perfeitamente previsivel? Ninguém (nem mesmo ‘vocé), depois de conhecer essa resposta, tera diivida sobre como vocé vai agir, pensar, sentir, em qualquer SituacZo que surja? [AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 59 ‘Acredito que, se voc8 foi sincero, estas questdes todas podem ter levantado algumas dividas. Seré tio facil dizer quem somos? Se, como-estou supondo, ndo é tho facil camo pode parecer 8 primeira vista, podemos admitir que este é um problema digo de uma pesquisa cientifica (e nlo s6 por causa disso). PsicSlogos, socidlogos, antropélogos, os mais diversos cientistas sociais tm estudado a questo da identidade; filésofos também. Nao :6 pela dificuldade, mas também pela importincia que esta questdo apre- senta, outros especialistas tém se envolvido com ela ¢ nao s6 cientis- tas filésofos: nos tribunais, juizes, promotores, advogados, peritos, etc.; na administrago, tanto piblica como privada; na poltcia, na escola, no supermercado etc., enfim, em praticamente tedas as situagdes da vida cotidiana, a questao da identidade aparece, de uma forma ou de outra (e também fora do cotidiano: “quem era ‘mesmo aquela personagem com quem sonhei ontem?”). Voc€ j& reparou como as novelas de TV exploram esse filo? £ freqilente uma personagem viver um grande drama porque de repente des- cobre estar enganada a respeito da identidade de outra personagem (seu pai, sua mae, seu filho, sua irma etc., e nto quem pensava que fossc); conseqientemente, descobre ao mesmo tempo que também estava enganado 4 respeito da propria identidade (afinal, se esse desconhecido é meu pai, entio eu sou seu filho ¢ nao de quem pensava); a identidade do outro reflete na minha ¢ a minha na dele (afinal, ele s6 meu pai porque ew sou filho dele). Outro exemplo: nas hist6rias “policiais” quase sempre 0 enredo € todo montado para que se descubra a identidade do eriminoso (nao 6 no sentido de saber quem cometeu o crime, mas também como se tornou “criminoso"}; por vezes, a hist6ria se desenvolve de tal medo que 16s (os espectadores ou leitores) sabemos quem ¢ 0 criminose, mas as demais personagens da histéria nao sabem; isto nos levanta uma outra questo: pely {ato de os outros no saberem cle deixa de ser criminoso? Que é ser “‘criminoso"? & cometer um ato criminoso? (Pense no exemplo, digamos, ficticio, de poderosos cidadios que cometem atos que vocé considera criminosos mas nao so perse- guidos pela policia ¢ pela justiga...) Podemos falar numa identidade ‘oculta? Pense numa historia de “espionagem’ “espitio" exatamente se caracteriza como uma {pelo menos para os espionados...), sendo que suas aventurss prati- camente terminam ou deixam de ser atraentes quando essa identidade 6 revelada. Até os super-herbis tém sua identidade seereta (aquilo de que o Super-Homem tem mais medo € que co ANTONIODA COSTACIAMPA descubram quem ele € na vida cotidiana... como muitos de . . nés que ‘escondemos algum aspecto de nassa identidade e morremas de medo, ue 0$ outros descubram esse nosso lado “oculto”...), A literatura, 0 cinema, a TV, as historias em quadriohos, as artes num sentido bem amplo também lidam com o problema da identidade e podem nos \ar muito a respeito, Voltemos 9 nosso ponto de partida. Se, como afi - Se, irmamos, estamos falando de nossa identidade quando respondents 4 Pergunta “quem sou eu?", a primeira observacao a ser feita 6 que nossa identidade se mostra como a descrigio de uma personagem {como em uma novela de TV), cuja vida, cuje diogralia aparece ‘numa narrativa (uma histéria com enredo, personages, cendrios, ete.), ou Seja, como personagem que surge num discurso (nossa Fesposta, nossa histria). Ora, qualquer discurso, qualquer histéria costuma ter um autor, que constr6i a personagem. Cabe perguntar tentio: vocé ¢ a personagem do seu diseurso, ou o autor que cria essa ersonagem, ao fazer o discurso? Se voo8 é a personagem de uma historia, é dessa _§ a » quetn & 0 autor hist6ria? Se nas historias da vida real nfo existe o autor da histOia, serd que no sdo todas as personagens que montam a histéria? Todos nés — eu, voce, as pessoas com quem convivemos — somos as ersonagens de urna hist6ria que nbs mesmos criamos, {azendo-nos autores € personagens ao mesmo tempo. Com esta afirmago ja satelpames © que se poderia dizer caso nos consideremos o autor jue cria nossa personagem; o autor mesmo é persot di historia. Na verdade, assim, poderiamos afirmat que hi una autoria coletiva da histéria; aquele que costumamos designar como {fut seria dessa forma um “nartador”, um “contador” de his: rial Com isto podemos pereeber oulre fato curloso: nao st 4 outro fato curloso: Oa identidade de uma personagem constitu! a de outra ¢ vice-versa (0 pai do filho ¢ 0 filho do pai), como também a identidade das ersonagens constitui a do autor (tanto quanto a do autor constitui a das personagens). A trama parece complicat-se, pois sabido it } ‘que muitas vezes ‘os escondemos naquilo que falatnos; 0 autor se oculta por tris da Personagem. Mas, da mesma forma como um autor acaba se Fevelando através de seus personagens, & muito freqlente nos reelarmos através daquilo que ocultamos, Somos ocultacao e reve- ASCATEGORIAS FUNDAMENTAISDA PSICOLOGIASOCIAL —&1 ‘Até agora falamos das pessoas como se elas fossem de uma determinada forma e no se modificassem. 0 que é falso. Baste obscrvarmos nossos proximos, basta nos observarmos. No minimo, as pessoas ficam mais velhas: a crianga se torna adulto; 0 adulto, ancifo, No méximo... 0 que seria no méximo? “Nao reconhego mais Fulano, é outra pessoa!” Ha mudanges mais ou menos previsiveis, ‘mais ou menos desejéveis, mais ou menos controlaveis, mais ou menos... mudangas. O estudante que se torua um profissional depois de formado representa uma mudinga bem mais previsivel do que a do jover, nosso amigo de infincia, que se torna umn eriminoso (€tégice que, implicitamente, estamos também considerando certas condigdes de classe social); numa outra situagao social a previsi bilidade pode ser invertida, infelizmente. Outro exemplo: a moci- ha que se torna dona-de-casa, mae de filhos etc. vive uma mudanga mais desejavel do que a daquela que se torna prostituta {novamente hé algo implicito nese julgamento: valores, etc.). 0 desempregado que se torna alcoélatra (ou criminoso, etc.) sofre uma mudanga provavelmente menos controlével do que a do escriturério que se torna gerente (como voet consideraria aqui a questo de classe, de valores. etc.?). H& mudangas ¢ mudaagas... quem mude mais: o heterossexual que se torna homossexuel ou 0 adepto de uma religido que se torna atev? O slienado politicumente que se toma revoluciondrio ou © civil que se toma militar? Nés nos tornamos algo que nao éramos ou nos tornamos algo ‘que jé ramos eestava como que “embutido” dentro de nds? Parece que quando se trata de algo positivamente valorizado, a tendénci nossa € afirmar que estava “embutido” em nés ("‘sempze tive vecagao para ser médico”): quando ndo desejavel, freqientemente estava “embutido” outros (“sempre achei que ele tinha propensdo para o crime”, “... que ele tinha um jeito de “bicha™™). (Que dizer da jovem que s¢ torna dona-de-casa? E du religioso que se tora ateu? O escriturdrio que se torna gerente esté realizando uma “fendéneia”. uma "vocacio"? ‘Podemos imaginar as mais diversas combinagBes pata con- figurar uma identidade como uma totalidade. Uma totalidade contraditoria, miiltipla © mutével, no entanto una. Por mais contraditério, por mais mutivel que seja, sei que sou eu que sou ‘assim, ou seja, sou uma unidade de contrérios, sou uno na moltipli- cidade e na mudanga. ‘Quando nossa unidade é percebida como ameagada, quando corremos 0 risco de no saber quem somos, quando nos sentimos

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