Você está na página 1de 197
Com o fim do confinamento dos deentes mentais, a atualidade enfatiza a questéo do acol Ihes reserva. O relato e a andlise da historia de uma comunidade, em cujo seio doentes mentais vivem livremente desde 0 inicio do século, iluminam essa face mal conhecide da relacdo social com a loucura, mostrando as representacées que a ela subjazem ou que dela decorrem Nao 6 surpreendente descobrir nos procedimentos materiais, cognitives e simbélicos de uma coletividade que se acredita mercé de um perigo vindo de dentro, as cores do racismo, até na crenca do contagio da loucura por certos liquides do corpo, cujo eco se ouve a propésito da Aids. anos, nas ciéncias humanas’, www.vozes.com.br y EDITORA sIvi00s SAOSVINASTUdIY 3 SVENINOT {3130Of JSINIC Cortesia de Editora para ® INDEX PSI LIVROS LOUCURAS E REPRESENTACOES SOCIAIS dy corr0RA VOZES Esta obra 6 0 estudo sociopsicolégico de uma experiéncia de colaboracdo das as de uma comunidade para a terapia de doentes mentais. A partir desse estudo so analisadas as da coleta de jas e documentos de se também pelo modesto cotidiano do ento e do sentimento, jo ndo apenas 0 qual passamos diari que nos chame a atencio. da louew erudito, 0 li sabedoria, toda uma além dos medos mobil pela proximidade ¢ pelo contato da comunidade com esse figura da alteridade que ¢ 0 louco. Ea diferenga que os confionta, de ano, e abala a uniformidade das 3 sobre a identidade ea semethanga entre uns e outros. ‘A abordagem se faz em dois planos, Por um lado, recorta a estrutura mental na qual se inscrevem lagos € agbes, LOUCURAS-E REPRESENTACOES SOCIAIS Cour¢Ao Psicozoaia SoctaL, Coordenadores: PPecrinho Arcides Guareschi ~ Pontlcla Univ, Catdlica do Rio Grande do Sul POCRS) Sancra Jovchelovitch ~ London ‘Bconomis and Pol Londres [Leoncio Camino ~ Universidade Federal da Paraiba ~ Recloia social contamporines (Limos aos autores ‘Neuza Mra de Fatima Guareschie Michel cides Brusch (oge.) ~ Faicologia soc esate ‘Mary Jane P. Spink - ee socials ~ Investigagdes em pelologie social Serge Moscovici ~ O social na psiclogiae a psicologia socal emando Lis Gonzalez Rey Loucuras ¢representagies socials ‘Donise Jodelet Cortesia da Editora para 0 INDEX PSI LIVROS Denise Jodelet LOUCURAS E REPRESENTACOES SOCIAIS Prefacio de Serge Moscovici ‘Tradugao de Lucy Magalhaes Petrépolis 2005 © Presses Universitaires do France, 1909 108, boulsvard Saint-Germain, 75008 Paris ‘Titulo original trano&s: Folies et représentaions sociales Todos os diritos reservados. Nenhuma parte desta obra poderd Bet reproduzide on trensmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrénico ou mecdnico, incuindo fotocépia e gravagio) ou arquivada em ‘qualquer sistema ou banoo de dados sem permisséo egorita da Editora. Editoragdo: Maria da ConceieSo B. de Sousa ‘rojeto grico: AG.SR Desenv. Gréfico Capa:Marta Beaman ISBN 86,26.3127-4 (edigSo brasileira) ISBN 2-19-042176-8 (edlgdo francesa) Dados Intemnacionats de Catalogacio na Publicagio (CIE) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Jodeet, Denise ‘Loucuras e represents seins / Dense Jodelet Disco de Serge Moscover uadupso de Lucy Magalies. = Perépol, RU Vous, 2006, ‘Title oiginal: Foes ot repxésentations soi, Biblical, ‘Alnay-le-Chateau 5, Doongas mentale = Franga= Ainay-le-Chateau ~ Opinio pnice 6, Peroapedo social ~ Esto de casos L Moseoue, Stoel. Tito, o¥-085 cop 62 20044 soca! Ainaj-le-Chltean: Pranga 26220044 Este lio foi composto ¢ impresso pela Bditora Vozes Ltda, SUMARIO Apresentado a edigéo brasileira (Sandra Jovchelovitch), 7 Prefacio (Serge Moscovicl), 11 Introdugéo, 33 Parte I - Viver dos loucos, viver com loucos, 59 1. Paisagem e hist6ria de uma Colénia Familiar, 61 2. Habito ¢ defesa identitaria, 88 Conclusio ~ Do contato a impregnagéo, 117 Parte Il - As barreiras da integracdo, 127 4. Da diferenga ao distanciamento, 129 4.0 “assim” ¢ 0 tassado” da vida dlria, 163 Conclusao — Além dos princfpios, a questo social e 0 medo, 188 Parte Ill ~ Os mundos daquelas casas, 199 5. Conhecer sem saber, 201 6. As trés vertentes de um mesmo estado, 227 7. Pensar o mal mental, 258 8. © agido de um pensamento sobre a loucura, 295 Epilogo ~ Diante dos malucos, 333 Bibliogratia, 379 Indice, 389 APRESENTAGAO A EDIGAO BRASILEIRA O livro que o leitor brasileiro tem em maos constitui ndo ape- ‘nas uma das grandes obras da Psicologia Social do século XX, mas ‘também um estudo essencial para todos aqueles que buscaram, nas tltimas quatro décadas, uma solugéo para o paciente psiquié- trico que fosse além das fronteiras do asilo e da institucionaliza- do. Centradg sobre @ questdo da inserco eee Joucur a It vio discute ¢ analisa a construgéo de representagies 5 guma a comunidade receb: ve os pacientes, como ela estabelece a relagao com "uma Gonffontagao deste tipo. As respostas “Ela tios mostra, em um texto marcado pela clareza e profundidade analitica, que o contato, a proximidade e o hébito que marcam a relagio entre pacientes e ndo-pacientes provocam uma dinémica “Bentido a condigao diferente do outro que vive junto a si. Ao risco_ fistia que emerge do medo da fusdo pro- _vocada por um conligio Sabidamente simbolico, @ scala _contrapée pr 4-Tue Di neo sso ma one cas concretos do asilo, psiquiatrico ¢ buss ‘o portador da doenga mental de vol- ta @ sociedade a que pertence, permanece a questo: dfid®/6Stao))|) 7 cara experiéncia e a condigéo do doente. 0 livro de Denise Jodelet lumina a existéncia e dindmica destas representagdes e nos mos- ‘ra com clareza os desafios colocados a sobrevivencia de politicas de atengdo a saiide mental na comunidade. “Abrit” a porta do hos- ital e “deixar” o paciente na comunidade nao basta. Sao neces: “Ge saiide, comunidades, agentes publicos e governos locals, éne-_ cessaiia a pesquisa que continue @ buscar Tespostas e solu ‘anos demonstrou que entre a retérica @ os ideais que abusca da mudanga, e a realidade dura da pratica, ha- via uma lacuna nao pensada. Como justificar a piora no cuidadi resisténcia das comunidades para receber os pacientes ¢ as difi- culdades imensas que atravessaram as processos de reintegra- No Brasil, precisamos aprender com -xperiéncla para evitar os ertos e aumentar as chances de im- plementagéo destas politicas ‘onde se expressam os saberes, as praticas e os rituais de sujeitos sociais, demanda um entendi- ‘mento de que o registro simbélico expressa nao apenes saber sobre © real, mas também as identidades, as tradigSes e as culturas que do forma 2 um modo de vida, E esta compreensao abrangente e, de fato, profundamente humana que encontramos neste trabalho, Aptesenté-lo aos leitores e colegas brasileiro é para mim uma hon- rae grande satisfacdo: Denise Jodelet, grande dama da psicologia social européia, 6, e sempre foi, grande amiga da peicologia social Drasileira € latino-americana. Incansavel em suas viagens através do Atlantico, ao longo dos anos ela tem sido fonte de inspiragao continua, nos legando com grande generosidade e dedicacao a sua sabedoria, erudigéo e sensibilidade de pesquisadora. A traducdo deste livro certamente hé de iftaugurar mais um ciclo nas pontes nos didlogos que marcam sua relagao com o Brasil Sandra Jovchelovitch Londres, dezembro 2004 PREFACIO Na introdugdo & sua magnifica obra Les rois thaumaturges, Mare Bloch escreve: Para compreender o que foram as monarqulas de outora, pin: cipalmente para explicar a sua ascendéncia sobre a mente dos homens, néo basta esclatecer detalntadamente os mecanismos da organizagéo administrative, judiciérla, financeira que olas impu- soram aos seus sditos; também néo basta analisar abstratamen- te ou procurar extra de alguns grandes teéricos os conceitos de absolutismo ou de dieito divino ‘Nao poderiamos descrever melhor a tarefa empreendida pela nossa psicologia social, que, indo além dos fatos de instituigdo, da coleta wos 5 8, qual ‘se detém, de cija presenga ninguem suspeita entie os das arvores. Entre esses fatos esté a existéncia de Ainay-le-Chateau, uma comuna como as outras, a primeira vista, Mas uma comune que se tomou estranha pelos seus hdspedes singulares, pela mistura de pessoas normais e anormais, civis e “malucos", para retomar uma expresso marcante dessa regio. Vive determinada pelos espe- hos flutuantes da loucura, a exemplo das duas ou trés outras co- munes pelo mundo, onde doentes mentais so instalados fora do hospital, em familias. O retrato téo pessoal dessa comunidade, de- senhado por Denise Jodelet, nos faz descobrir todo um mundo in- 1 suspeitado, Digamos logo: o livro que temos sob os olhos é uma as raras obras verdadeiramente importantes publicadas, nestes lez ultimos anos, na étea das ciéncias humanas. Ja podemos cons- tatd-lo pela esoolha deste tema de exceed, uma aglomeracao se- mi-tural, onde os habitantes fazem, todos os dias, uma per da qual os especialistas nos dispensam: 1, enquanto dilema isico, aquilo que continua sendo, em geral, um dilema metatisico. Como diz um dos habitan a cursos uma coeréncia que, or no ser explicita, nao deixa de ser a condigdo ¢ o principio de ordem da vida em comum. A autora chega a isso revelando as re- bresentagdes sociais pelas quais se institu a eoeréncia e se deci orem. Estas formam o subsolo que escepa aos prdptios indivi duos cujos atos ¢ palavras elas modelam, e a quem permitem coe- xistit. Seu desvelamento é um dos tempos fortes deste livio. Desen- tola-se a tapegaria complexa e rica das Tepresentagdes sociais que vivern entre nds, com uma vida singularmente intensa ¢ continua, [sso € uma surpresa e define seu valor para as ciéncias humanas, Ipois se os fenémenos de representacao pertencem a: Psicologia so- ‘cial, vé-se logo que eles também dizem Tespelto a sociologia e a an- \tropologia: pelo método de campo que Ihes 6 comum, sem dtivida, linas principalmente por uma teoria que aproxima cada vez mais es- {sas trés disciplinas, Na verdade, gragas.a um. ‘retorno bastante logi- E a teoria das representacdes socials, por tanto tempo negligen- [clada, se encontra no seu seio. Através dela, 6 uma nova aborda- gem dos fatos de cultura e de sociedade que se procura, A abordagem se faz pols em dois planos. Por um Jado, ela re- corta a estrutura mental na qual se inscrevem todo lago ¢ toda ‘aco. Chega assim aos homens, na medida em que estes trocam, opdem-se, trabalham juntos e representam essas trocas, oposi- (90es e trabalinos, icagao dos individu- 0s, podemos estar certos de que ela se objetiva no tempo, acaba 12 fazendo parte desses individuos, e a sua realidade a aparéncia. ‘sem rodeios, a qué es entre os homens, segundo a maneita pela qual eles sto repre- sentados ¢ pela qual 0s representamos para nds, através desses comportamentos ¢ relagdes. Chega-se a isso apenas, a0 contrario de uma rotina de método, acolhendo com confianga “o pensamen- to de dentro” de cada um, a consciéncia e a fala sociais, e com uma certa suspeigao, 0 real, “o pensamento de fora” de todos, Evi- dentemente, uma distancia subsiste entre o circulo das subjetivi- dades, devido & solugao de continuidade dos mundos privados, 6a intersubjetividade para a qual elas tendem a0 comunicar-se. O equivoco atinge em cheio 0 pesquisador que sal a campo. A dis- ‘tncia se traduz por uma lancinante inquietago de saber quem Ihe fala, até que ponto ele deve ouvir um “nés" sob um “eu. Ou um “eu” através do “nés” de colatividade, que se pronuncia como um nés de majestade, E também discemir em que medida 0 relato cconstitui a interpretagao pessoal de uma experiencia comum ou a inte agao comum de ima. vern a vida com seus pensionistas. Olleitor peroebe a amplitude dessa inquietagao nas entrevistas eunidas aqui, relatando a chegada dos doentes, sua doenga, a es- wanheza de uma fatia de vida que pode estender-se as vezes por duas décadas, Interrogados sobre suas reagdes, os habitantes pas- sam, inconscientemente, da continuidade da relacgo entre civis e “malucos", recebidos como heranga, para a descontinuidade dos sentimentos ou do contato com este ou aquele que reside sob o seu ‘eto. Sob essa dupla forma da relacdo de uma comunidade alded com uma categoria coletiva de doentes mentais e da relago de um individuo sadio com um individuo deficiente, eles permanecem en- cadeados 4 maquina seletota da diferenga, Na verdade, é a diferen- {ga que os confronta, da manhé a noite, todos os dias do ano. Ela abala a uniformidade das opinides e das experiéncias que eles po- deriam ter, como tém todas as outras comunidades - e eles saber disso. Mas uma diferenga que evoca a identidade, a semelhanca, pois como todos saber, a loucura do maluco poderia tomar-se @ do civil. Coabitando, por que nao se tomariam similares? Ndo haveria 13 ‘um desejo nesse sentido? Mas, se vissem nesses loucos os seus se- melhantes, os habitantes das aldelas vizinhas os considetariam, a eles, como loucos. E isso que obriga - mes no é o tinico motivo, nem o principal - a cavar o fosso da diferenga, Se o incesto da iden- tidade e da diferenga, para retomar a expresséio de Hussed, 6, a ri gor, possivel no nivel individual, fica proibido no nivel caletivo, mes- mo que cave a mordida da divida e da culpabilidade. Assim, os habitantes evocam a liberdade dos doentes mentais, que circulam pela aldeia, véo ao café, aos bailes e as festas religio- sas como qualquer um. Nada os distingue: roupa, aparéncia, ida- de. Entretanto, séo mantidos a parte; da-se um jeito para que nao dancem com as mogas do lugar, a fim de evitar relagées intimas, para que néo se misturem muito com os jogadores de cartas, ¢ as- sim por diante. Em cada situagao, so acolhidos mas isolados, @ isolados mas acolhidos. A relago de semelhante instituida pelo principio da instalagéo dos doentes mentais fora do hospital é substituida, na pratica, por uma relagéo de diferente com diferen- te. So recebidos na intimidade das familias de Ainay-le-Chateau ndo para se tomarem préximos e mais conhecidos, mas para per- manecerem estranhos, longinquos e até invisiveis. adilhas em que muitos caem, Denise Jodelet é se tamento entie o representadi ll que se faz ao mesmo tempo em vatios n paca dos esterestipos. Efetivamente, estamos diante de relagdes, de cuja profundidade ndo suspeitavamos, e nem mesmo de que pudessem existir tais situagées entre grupos to antindémicos. Como descrever essas relagdes? J4 mencionel que Denise Jo- delet nos faz entrar em seu laboratorio coletivo, para dar um senti- do as representagdes sociais que participam da sua génese. Todo um saber ali se labora, pois ficamos sabendo como os habitantes se interrogam, constroem hipéteses, trocam informagdes e procu- ram verificé-las observando os seus insélitos pensionistas. Na ver- dade, essa proximidade coma loucura, essa quase pr. com os loucos, faz surgir 0 desconhecido do seu pr "Quem sabe se nao serei um deles amanha?”, confessa alguém. Para decifrar a loucura, eles se preocupam constantemente, inten- samente. Psicossociélogos e antropélogos amacores recolhem observagées, debatem, discutem, comparam experiéncias vividas, “4 evitam julgamentos rigorosos, sendo o mais enigmatico compre- ‘ender pot que esses pensionistas constituem um limite do huma- no ¢ como representa-los, como falar deles. ‘Todos cia: é impossivel diferencté-los claramente dos indi dos normais. & como se, 4s vezes, 0 contato com os pensionistas manifestasse 0 que se chamaria outrora de uma busca de sabedo- ria, O que implica necessariamente uma resposta para a pergunta: "O que posso saber?" Mas, outras vezes, tomiam distancia e olham os loucos como um outro género de seres humanos, vindos de fora, como intrusos estranhos @ aldeia. # inevitavel, pois os habi- tantes das aldeias vizinhas os tratam de loucos por se ocuparem dos loucos, ¢ os ostracizam. De qualquer forma, néo poderiam contentar-se com nogdes € categorias fomecidas pelos enfermeiros e psiquiatras. Estes des- ccrever os tipos, classificam os doentes, analisam os sintomas, do onto de vista de uma doutrina. Propdem solugdes gerais, como a instalagdo dos doentes num vazio de sociedade, como se ninguém fosse afetado por isso. Bssas solugdes devem dar certo, se certas condigdes vagas forem satisfeitas. Por exemplo, preciso que os doentes cuider da higiene, saibam comer com educagao, tenhamn bom comportamento. Isso lhes confere as qualidades necessaxias pata uma vida publica e doméstica regulada, Nao se pode deixar de observar que as exigéncias expressas de higiene pessoal e de conformidade social sugerem, na verdade, que 0 doente é sujo ¢ ‘que. doenga mental também se acompanha de dejetos, de ausén- cia de controle de esfincteres, de violencia e de incapacidade de respeitar as normes vigentes. E como seria possivel aceltar sem reticéncias esses seres estranhos, que escapam & compreensio e ccujos comportamentos no seguem os mesmos ritmos, nao tém a mesma previsibilidade? Mas as regras ditadas no tempo em que se acreditava no tratamento moral, no ar livre e na vida familiar subsistem, sob um verniz mais refinado... do mesmo modo que te- orias econémicas sofisticadas se traduzem, na pratica, por formu- las desgastadas, como “apertem o cinto”, “trabalhem mais", “néo fagam dividas”. Talvez eu exagere e, para ter certeza, seria neces- sétio dispor de outros trabalhos andlogos ao presente estudo. ra, os habitantes de Ainay-le-Chateau néo podem conten- tar-se com o saber fomecido pela psiquiatria oficial, muito estreito para a sua tarefa imensa, Nao s6 devem organizar e adaptar a vida 16 comum de seus pensionistas, compreender o que é a pessoa redu- vida a uma existéncla diminuida, entre aquilo de que é privada, uma casa, mulher, filhos, Além disso, em grupo, esses héspedes simbolizam um modo de existir. Entdo, 0 critério da infelicidade vale tanto quanto o sintoma de apatia para explicar a letargia des- Ses seres excluidos por seus parentes e, em menor grau, pela insti- tulgdo. Como descrever e explicar essa infelicidade 6 a questo ‘que ocupa boa parte das reflexes ena qual se utiliza o saber reco- Ihido sobre o material recalcitrante e dificil de manejar da loucura, Recorte-se a receitas sutis para exttair da linguagem, do saber co , ditas do senso comum, so menos elaboradas ou menos validas do que as dos cientistas e dos peritos? Tratan- do-se de psiquiatria, néo me arriscaret a formular um julgamento, O ato é que as primeiras s4o plausiveis e satisfazem o intelecto do mesmo modo que as segundas, embora formadas de acordo com outros métodos e respondendo a preocupagées diferentes. O que clas propdem assemelna-se a uma teoria do espitito e da socieda- de, embora sob as mesmas palavras nao se encontrem as mesmas coisas. A pratica psiquiétrica, ou, digamos, médica, despreza es- as teorias ou representagdes socials: suas investigagdes no se Girigem aos mesmos pontos, ndo respondem aos mesmos interes- ses de conhecimentos. Em suma, elas procuram solugdes para problemas de que os cientistas néo tratam, E porque desprezam essas teorias que tantas campanhas inspiradas pela medicina fra- cassam, a0 passo que os saberes paramédicos florescem. Invo- a-se a ignoréncia do piiblico e constata-se a ignorancia dos espe- Clalistas, Mas deixemos esse ponto. O essencial é que, se quiser- mos fazer a ciéncia dos fenémenos mentais na sociedade, teremes de identificar o conhecimento produzido em comum e reconhecer a validade das suas propriedades, considerando-se a teoria, Nao devemos denegti-la como populat, pré-cientifica, pois, longe de ser uma pura ¢ simples “imagem” desprovida de fngao, ela tem um papel essencial, ajudando 2 determinar o género de argumen- ‘os © explicagées que aceltamos. Ela também néo se confunde com uma cépia, um duplo do conhecimento cientifico, sem a sua {orga logica e sem a sua coeréncia. Tudo depende entao do termo de comparagao escolhido: 0 verediicto sera diferente, segundo for a fisica ou a biologia, a medicina ou a sociologia, 16 O trabalho de Denise Jodelet esclarece perfeitamente 0 cara- ter proprio a esse conhecimento, que permite representar para sia realidade social. Descrevem-no como permeado de lacunas e et- ros, simplificado e simplificador, insignificante, em resumo, Seu es- ‘tudo nos faz desoobrir, antes, o contrario, e néo é por acaso. O co- nheeimento dos peritos se caracteriza em geral por um sistema coe- rente de conceitos e de desorigées clinicas. Define a realidade de ‘maneira tinica, no presente caso em tomo da terapiae da relagdo te- rapéutica. Refere-se apenas a uma parte dos fendmenos e dos sin- ‘tomas, aqueles que julga pertinentes a primeita vista. A teorla resul- ‘ante funciona, com a condicao de excluirem-se excegdes e pertur- ‘bagbes, atribuidas a fatores acidentais. Uma linguagem convencio- nal, fécil de acompanhar, e referéncias imediatamente entendidas por todos, porque todos olham os mesmos sintomas eos classificam do mesmo modo, levam a um modo padréo de compreender. Che- ga-se enfim a uma moral: tal maneira é, por conven¢éo, a maneita de comhever dos profissionais e a maneira de agir dos petitos, Re- almente multo estrita, carecendo de flexibilidade no pensamento ena atengéo, obedecendo a regras elaboradas ao longo do tempo e aplicadas unicamente a uma area especial. Em resumo, 0s psiquiatras os enfermeiros esto na posigao de um fisico que se limita apenas aos aspectos quantitativos da ‘matéria. Mas os habitantes de Ainay-le-Chateau esto na posi¢ao de um escultor que também se preocupa com a textura € @ cor, com as qualidades sensiveis da mesma matéria. Lidam com indi- viduos singulares, estao submetidos as exigéncias de uma coabi- tagao diaria com eles, sob 0 olhar descontiado dos vizinhos. Sem {falar da evolugdo da doenca e do seu impacto sobre a vida da casa, Forgoso lhes ¢ introduzir outras questdes da realidade no discurso @ produzir um saber. que thes permita encontrar respostas corre- tas. Se compreendo bem os ensinamentos desta pesquisa, entdo as representacoes sociais sao intelectualmente diferentes das re- Presentagdes profissionais, ou mesmo cientificas, por razbes in- versas as que se alegam habitualmente. Nao é em razo de um de- feito de estrutura, de uma insuficiéncia légica, ou de um desco- nhecimento das contradigbes entre as nogdes combinadas. Mas porque elas s4o obrigadas a combinar varias areas de conheci- mento e de pratica, ao mesmo tempo que varios modos de pen- samento. Uma tnica representagao retine assim uma grande varie- dade de raciocinios, imagens e informagées de origens diversas, 7 com os quais ela forma um conjunto mais ou menos coerente. Ao ndo-especialista permite-se e até solicita-se o que se proibe aos especialistas, isto 6, associar contetidos intelectuais e modos de Teflexo dispares numa rede continua de es para os proble- mas encontrados. O nao-especialista “zapeia”, como se diz na te- leviséo, abastecendo-se, de acordo com os seus interesses suces- sivos, no estoque de informagées disponivels, praticando os para- Jelos mais surpreendentes, como fazem os habitantes de Ainay- Je-Ch&teau, entre conhecimentos médicos e conhecimentos tradi- cionais. E isso que justifica a idéia estranha de que a doenca men- tal é contagiosa e pega-se comendo no mesmo prato que os lou- os, lavando a roupa na mesma agua. Outrora, chamel de polifasia cognitiva essa particularidade das fusdes de elementos dispares numa representagéo social ¢ as propriedades resultantes. Essa ‘maneira de ver se encontra hoje entre os pesquisadores da intelt- ‘géncia artificial, e Minsky a resume nestes termes: Para ger considerado como um “perito” & preciso possuir numero- sos conhecimentos num pequeno nimero de areas. Ao contratio, “bom senso” de uma pessoa comum exige um mimero de tipos diferentes de conhecimentos muito mais elevado, o que requer sistemas de gestdo mais complicados... Em virtude da maior va- redade das representagdes necessarias, seria muito mais dificil para ela adquirir a “mesma quantidade" de conhecimentos {de um perito Para cada nova area, nosso leigo deveria aprender um novo tipo de representagdo e novas aptiddes para utiizé-lo, Seria como aprender uma multidao de linguas diferentes, cada uma ‘com sua gramética, seu léxico e seus dialetos" E realmente o que acontece na vida de todos os dias, E certo que a psicologia social nao fol sensivel ao traco - por ‘assim dizer hibrido ~ do discurso e da reflexto comuns. Ela explica ‘as propriedades destes por ilusées, precoficeitos, derivas da ativi- dade mental, com o objetivo tinico de conseguir justificar o cardter aperentemente itracional das representagoes ‘cas. Na perspectiva em que se situa, Denise Jod vocar tais deficiéncias ou incongruéncias, nem explicé-las como anomalias exdticas do pensamento. Uma constatacao mais deci- siva é que essa combinacéo de informagdes e de modos de conhe- 1L.M Mins, La société de Pest, Pai, interdiions, 1900, p. 124 18 cet exige certos graus de liberdade. Em certo sentido, é preciso criar 0 arbitrétio para aproximar formulas cognitivas desconfor- mes. Para facilitar o movimento, deve-se actescentar ornamentos em trompe ‘ceil ou simular laos que nao existem. E também evi- tar empenhar-se demais, a fim de garantir portas de saida ou a possibilidade de negociar com o outro o sentido de uma idéia, a in- ‘tempretagao de um fato. As representagdes nos atingem com essas dissonancias, engavetamentos, contradigoes e outros curtos-cit- cuitos intelectuais, dos quais seus usuarios no parecem dar-se conta nem procuram retificar. Elementos afetivos, uma indiferen- ga om relagao & logica e preconceitos estdo certamente implica- dos, Entretanto, lendo-se atentamente as entrevistas que nos 880 apresentadas, descobre-se um aspecto que vai muito mais longe. Como ocorte isso? Uma pessoa explica por que os doentes es- ‘Go agitados ou violentos, ou entdo julga os medicamentos que Ihes s4o dados. O pesquisador observa uma afirmagao curiosa e insiste. A resposta da pessoa mostra entdo que ela se expressou ‘com uma reserva inegavel. Hla parece dizer em surdina; “Nao ga- ranto a verdade da afirmagao presente”. Essa reserva mental ¢ muito importante para a maneira de conduzir o raciocinio e associ- aras nogées. Fazendo uma afirmagdo cuja verdade nao garante, a ‘pessoa se situa fora de uma logica e da ndo-contradigao. Ela nao ‘enuncia nada que possa ser considerado como erto. Em resumo, a proposiggo emitida é inverificdvel, tanto para quem a pronuncia quanto para quem a recolhe. O que ela afirma nao se refere a um sistema, nao tem valor de verdade, nao é suscetivel de ser refutado por um exemplo ou uma proposigao contracia. (© que significa, na prética, o fato de que uma afirmagao ¢ in- vetificdvel? Simplesmente que ela 6 negociavel, que 0s interlocu- tores esto prontos a discuti-la com outras pessoas, para decidir sobre a sua exatidao. Alias, encontra-se entre os habitantes de Ai- nay-le-Chateau essa oposicao entre verificével e inverificavel, sob a forma de uma oposigao entre indiscutivel e discutivel. Um exem- plo simples: Falando entre si, para responder & pergunta “O que ‘um bom ou um mau pensionista?”, eles julgam que isso ¢ discut vel, Tratando-se do trabalho e das aptiddes necessarias, dec! ram, ao contrario, que isso 6 indiscutivel, sem apresentar mals ta- zBes, Acontece 0 que 0 antropélogo Sperber descreve: Em certas sociedade doas mesmas crencas, indigenas, embora compartilhan: -cem exegeses diferentes ediscutem, 19 se © até combatem por problemas de inten Gm cutias sociedades, quando se pergunta eos ue significam as suas crengas, o que elas implicam, como elas concordain com a realidade de todos os dias, eles dao respos. tas evasivas do tipo “¢a tradigao”, “os antigos sabiam”. ete, Tome! um camino espinhoso que esté fora de questdo per- coer aqui até o fim. Entretanto, compreende-se que essas acne de enunciados invertficdveis oferecem um espago de jogo, o rau de anbittio necessécio para articular imagens e nogGes de origern dissonante numa mesmna representagdo. Se isolamos as contract. Ges ¢as incoeréncias para suprimi-las ou denuncié-las, devemos saber previamente como as pessoas as pronunciam e qilalé eua atitude diante de suas préprias declaragdes. Aquilo que, do exter Parece iacional numa crenga ou no sentido comm, & para aqueles que comparlham algo inverficavel, matétia sujita op. G20, Oleitorreplicara que, se 0 joga eo arbtrio déo a possibilidace de articulat elementos dispares, também os tomam vagos ¢ fut, antes. Até certo ponto, sim. Mas ndo esquegamos que, longe de sliminar oimpreciso e o inconsistente para limitar-se 20s elemen, tos veriicaveis, “as sociedades repousam, ao conttétio, sobre as coisas vagas”, como observava Valéry. Mesmo sem fazer disso ure brineipio, deve-se lev4-lo na mator consideragao, No insisto mais, dleixando ao letor o prazer de descobrir como o inverificéval taba tha. Se me antecipo dizendo-o, é porque uma imprasséo se apre. senta: embora ninguém fate & verdade, ndo é dela que se espera uma satisfagdo na ordem das idéias, Bla& procurada, antes, noon. Contro das mentes, no préprio falar, que criam ume intimidade, 4 femiliatidade como mundo, e tém em si mesmos a sua prépria re. compensa. Contento-me em repetir desajeltadamente o que dis este livio, Mas vamos continuat. Estudando as representagées sociais, Denise Jodelet estuda, Pols, essa aticulagao de uma humanidads “dolado direita" envol, vida com aquilo que Ihe ‘barece como © “lado avesso” de uma hu- manidade, sem reciprocidade Possivel. Sua criatividade supera- bundante desafia a nossa concepeao vitoriana do pensamento. Surgem de maneira incontida: ‘Pergunitas e respostas virtuais, entre as quais cada grupo escolhe as suas para tomd-las atuais. Ga mo canismos classicos de ancoragem e de objetivagao o permitem. ‘Mas como acontece muitas vezes Nas entrevistas, as proposigées: 20 se seguem sem encadear-se verdadeiramente umas s outres, cheias de uma felicidade de expresso. As mesmas imagens ou. nogées, diferentemente dispostas, contratiam ou invertem o seu sentido: as ligagdes de causa e efeito sGo frégeis - mas quem se importa com isso? Sem preocupar-se coma “lucamna” de uma eco- nomia de pensamento, esses lagos se apertam ou se distendem, uma ve2 que comegaram a propagai-se, @ esté fora de questo po- der deté-los. Vale tudo o que Ihes permita estender-se, até ocupar © espago mental intelro, conservando, entretanto, a quantidade necessaria de coeréncia légica. $6 a repeticao, o retomo das mes- ‘mas expresses e dos mesmos temas indicam um limite, especifi- ‘cama particularidade de um ponto de vista assim enfatizado como uma citagéo de si mesmo. B essa parada proviséria nos relatos dos de Ainay-le-Chateau que oferece a Denise Jodelet. a ait um dos seus Jeitmotiven. E a habituagao, o de- ppésito no fundo das mentes, como coisas ébvias, das razbes e da presenga, entre eles, desses pensionistas. Eles tém consciéncia de fazer uma experiéncia extraordinéria, confrontados com uma situ- ago da qual se conhecem poucos exemplos. Certamente, set assediado pela estranheza desses homens completamente diferentes no é uma sinecura, Os hospedeitos se ignam a ‘agiienté-los”, tentam compreendé-los, encontrar um sentido, Cada um tem elementos em méos, mas como combi- né-los? Primeito, o8."malucos” séo vistos isoledamente. Como zuma receita de cozinha, convém incorporar os ingredientes em. carta ordem, inventar 0 “jito”, para que a maionese tome o ponto certo e fique bem firme. Para tesignar-se e convencer-se de que esae fato extraordinario, a perenidade da loucura, é ao mesmo ‘tempo fundamental e néo grave, afinal esta na ordem das coisas. B o que eles fazem através de suas tepresentagdes comuns da doen- 2 € dos doentes atingicdos por males inquietantes. Elas nascem esse movimento que visa familiarizar-se com 0 estranho e sio fortemente matcadas por ele. A teoria supe que, em geral, tudo ocomte assim, Aqui, desco- brimos o detalhe, chservamos os mecanismos postos a nu com uma grande finura. E dificil de explicar, mas habitualmente ve- mos 0 pensament contraste entre 0 verdadero eo falso Adotamos a atitude propria 4 ciéncia, que tenta resolver proble- mas ¢ adaptar as solugSes aos fatos. Conseguimos apenas mais idéncia, somos mais sensiveis a0 concteto, avaliamos 0 su- 2 cesso @ 0 fracasso com todas as suas cofiseqliéricias. Em suma, 0 modo de pensar social é concebido ségundo um critérlo seménti- co ou pragmatico. Entretanto, uma sérié de observacdes nos leva areconhecer que, na maioria dos casos, é a tensdo entre o familiar © 0 estranho que ctia a necessidade de representar e modela os seus resultados. Ela toma esse caminho para ligar elementos dis- pares ao fundo comum e permitir a todos reconhecé-los. Do mes- mo modo que, na conversagao, duas pessoas que nao se conhe- cem procuram uma relagéo comum ou uma semelhanga que nao ‘se encontra nas frases, mas no tom, na maneira de apresentar as coisas, de valorizar certos detalhes. Ou seja, tudo o que permite ‘amarrar juntos os subentendidos pelos quais os interlocutores po- derdo se entender, Ora, essa tensio é, em muitos aspectos, primelra, sendo arcai- a, Seria uma das experiéncias mais antigas? Com duas semanas apenas, 0 recém-nascido demonstra a sua averséo quando um es- ‘ranho Ihe fala, ¢ principalmente se este lhe fala com a voz de sua mae. Bebés de quatro a cinco meses se bloqueiam, no sentido pré- prio do termo, quando um adulto estranho esboga um aproximagao. Eles se “congelam”, suspendem a respiragao, néo movem um miisculo, Aos oito meses, essas reagdes assumem, uma forma suficientemente regular para que se fale de uma idade domedo ao estranho e ao néo-farniliar, que atinge o auge por volta do segundo ano, dectinando depois. Um medo talvez associado a0 temor de perder o lago com a me, com os seus. Considerando-se que ele coincide com o perfodo em quea crianga comega a falar ea expressar seus pensamentos, pode-se supor que seus vestigios subsistem durante o resto da vida, Haveria nisso uma espécie de pensamento materno, andlogo a lingua materna? E uma questo que se apresenta. O poeta Celan respondia simplesmente: “E ape- nas na lingua matema que se pode dizer a vercade. Numa lingua estrangeira, 0 poeta mente". Certamente, ela nos atrai para o fami- liar, como se jé possuissemos as nogdes pata compreendé-lo e as, palavras para expressé-lo, antes mesmo de procuré-las. Trata-se de um pensamento que tem como motivagdo restabelecer 0 lago ue proporciona uma satisfagao, a0 proteger-nos contra o risco de sermos sepatados por uma intrusdo que teriamos negligenciado. Uma satistagdo que deve ser to arcaica quanto o temor estra- nheza, superado outrora e desviado do seu camino. 22 Entre as contribuigdes oferecidas por este livro esta também a anélise das operagoes tedricas pelas quais o que parece estranho ou extraordindrio é apropriado pelos habitantes de Ainay-le-Chateau e metamorfoseado em um elemento do seu universo mental. Eles fa- zem, paralelamente, um trabalho sobre si mesmos, como se no fossem sensiveis ao estranho. Pouco apouco, os louces, que consti- tuer para todos uma experi8noia reveladora do social ¢ da natureza humana, se confundem com a paisagem rotineira e tomam uma cot de banalidade, Essa banalidade, da qual Heidegger dizia ser a se- ‘ganda queda do homem, depois do pecado original. Talvez porque ela o mergulhe num mundo de evidéncias protegidas, a salvo das controvérsias. Nao, absolutamente, 0 efeito de uma convengao ou de um consenso, mas de uma habituagéo que toma as palavras €as imagens incontestaveis, A realidade imutdvel e incontestavel de uma coletividade representa, a0 mesmo tempo, tudo o que é consi- derado justo, razoavel, agradavel. Todos se sentem dispensados, ‘uma vez por todas, de apresentar as raz6es, isto é, de explicar a sig- nificagdo de um julgamento de provar @ utilidade de um ato. Isso (quer dizer que toda representago tende, em tiltima instancia, para ‘uma autoridade, e que, chegando ao seu cume, o pensammento cole- tivo no é nada mais do que uma banalidade. & raro que tenhamos ocasides de observar o que Denise Jodelet, entretanto, torna evi- dente. Isto &, de que maneita aquilo que é rotineiro, culturalmente ‘opaco, se torna um fator que esclarece a génese despercebida de uma tal representag&o social. A pista outrora aberta por nossa hipé- tese é aqui luminosamente tragada, Desejariamos um exemplo mais concreto? Além daquele da habituagdo ao que constitui - é o minimo que se pode dizer - uma situagao singular, a classificagéo dos doentes e de suas bizarras afeogbes pelos habitantes de Ainay-le-Chateau é significativa. Evidentemente, cada coletividade humane tem um géneto de ti- pologia para categorizar os seus membros, de acordo coma idade, 0 sexo, as diversas profissdes. Para isso, ela seleciona alguns crité- rios, muitas vezes puramente extemnos, no repertério da biologia, da técnica ou no de outros grupos. Sem esquecer os critérios qui méricos de linguas desaparecidas ou de raga, como os ppeus ou arianos, que criam outros tantos agrupaments Consagraram-se muito menos noites de insOnia a tef alemaes que se pretender arianos do que sobre os borores que se proclamam aratas; entretanto, o enigma é o mesto. 23 rma, classificar uma operacao inocente no tual, mas perigosa no plano social. Os habitantes deviam, como todos os franceses, classificar-se a si ‘mesmos além disso classificar os seus pensionistas, Podertam contentar-se em adotar a tipologia psiquidtrica dos enfermeitos, ‘que Ihes confiavam os corpos e as almas desses homens sem lat. Mas essa classificagéo tinha um caréter inquietante, perturbava 0 seu vocabulério e o seu repertério de nogdes usuais, tanto quanto 0s medicamentos que tinham de administrar aos doentes. De qualquer maneira, se tivessem adotado a tipologia esotérica, os homens que Ihes confiavam teriam permanecido estranhos, seres humanos abstratos indiferentes. Para aptoximar-se @ apropri- at-se deles, fazé-los participar do seu universo, deviam represen- té-los distribufdos em classes criadas por éles e tiradas do fundo prOprio da aldeia. Como se os pensionistas emergissem da som- bra, solidificados, recortando-se em silhuetas fa dos de roupagens mentais adequadas, Prontos para ocupar 0 seu lugar naaldeia, afigurar como personagens da vida em comum. Denise Jodelet nos mostra que a representagéo social tem um pé nas duas classificagdes, como se fosse melhor ter duas segu- rangas do que uma. A primeira, de ordem diagnéstica, combina as difetengas eas semelhangas entre os pensionistas, para defini-los. Distingue os “nervosos" dos "inocentes” e aprimora o proceso determinando as subclasses: 0 doido, o “louco mental” ovo "trans- viado", descritos detalhadamente. Cada um resulta de uma obser- vagdo diria e meticulosa dos comportamentos € corresponde a ‘uma teoria do funcionamento mental que o explica. Pode-se julgar ingénua, mas seria vao desconhecer 0 esforgo de refle- ‘xo clinica investido, A segunda classificagéo, que chamarei de prescritiva, tende a der um sentido legitimo as diferencas e seme- Inangas, a carregé-las de valor. # isso justamente na medida em que 0s os proprios habitantes se incluem nela e se tornam um ter- mo de comparagdo disjunto daqueles aos quais se comparam. Pode-se observar isso no fato de que se qualificam como “civis" pot oposigao aos “malucos”, ndo-civis. Recomrem entéo a um cr tério legal, o dos diteitos civis dos quais gozam, ao passo que a do- enga priva deles os pensionistas. Sob certo Angulo, 0 processo cognitive que resulta na taxino- mia e na compartimentagao dos individuos & o mesmo. E sob ou- tro angulo, as duas classificagdes néo obedecem aos mesmos cri- Ey térios, no se liga go mesmo género de criatividade social. A classificagao dlagnéstica pressupde uma certa tomada de distan- cia, e até a impersonalidade. Bla constitul os individuos a partir de um modelo positive. Poderfamos qualificé-la de rev cando-se indistintamente a todos os residentes da aldeia, pensio- nistas ou néo. Ao contrério, a classificagéo prescritiva implica uma atitude, instaura uma hierarqula entre os individuos, permite ou proibe as relagdes. Assim, as relagdes sexuais ou de proximidade amistosa entre civis “malucos" so proscritas. Quem quer que infrinja o interdito ¢ banido da coletividade, tachado de "maluco” ude louco. Bvidentemente, trata-se de uma classificagao irrever- sivel, que no vale pata todos da mesma meneira e associa uma ‘pessoa A sua categoria sem transgresséo possivel. Poderiamos di- zer que ela define néo apenas 0 status dos individuos no seio do grupo, mas.também, 0 status do grupo no seio dos individuos. Essas duas taxinomias ndo poderiam ser separadas, ¢ nao ¢ facil, quando a ocasido se apresenta, escolher uma ou outta. Mas sa- be-se por que, sendo em virtude da hipdtese sugerida aclma? Assim, por um ldo os pensionistas foram reclessificados em Ainay-le-Chateau, 1ids compartimentos da tradi¢ao, como ino- centes ou nervosos; por outro lado, nos compartimentos do valor, ‘como “malucos” opostos aos elvis, so desclassificados. Talvez devéssemos dizer “aa mesmo tempo”, a0 invés de "por um lado, por cutio lado"? Sem ciivida, classificam-se os objetos; as pessoas sfo reclassificadas, desclassificadas ou superclassificadas. E por {sso que sempre se recorre a varios sistemas, tendo cada um deles seu principio, que responde ao objetivo perseguido. E dos quais, cada um tem o poder de gerar uma realidade, Os homens no re- _presentam apenas a si proprios, aos seus semelhantes; eles atuali- zam essas representagées. Na vida real, eles os poem objetiva- mente no palco, de modo que cada categoria se torna um ator efe- tivo da vida em comum. Como predmbulo ao que se segue, lembro que a pratica co- nhece muitas tetapias, que ninguém sabe se e por que agem. A medicine alternativa, por exemplo, ou as praticas taumatirgicas, entre as quais as veiculadas na midia, tém o favor de um vasto pi- blico. Toclos tém a liberdade de taché-las de rango do passado e até de superstigao, maa o que significa isso? Nada permite afirmar que elas foram mais exclusivas no passado, nem que desaparece- 5 Go no futuro, exorcizadas pela ciéncia. Como imaginar que os ho- ‘mens renunciardo a procurar meios impossiveis para alcancar fins necessarios? Existe em Ainay-le-Chateau uma série de praticas, Ccuja freqiténcia teve o dom de intrigar Denise Jodelet, Elas consis- tem em lavar separadamente a roupa dos doentes, em néo mistu- Tar as suas vasilhas com as da casa, em evitar certos contatos fisi- ‘cos demasiado intimos. A preocupagao com a higiene assume um. carater obsessive ¢ uma coloragao fébica. Algo nessas praticas as aproxima dos ritos negativos destinados a evitar 0 contato. Sub- tepticiamente, descobre-se um elo dessa proibigéo que comanda ‘todos os outros, proibindo tocar, falar ou fréqtientar certas pessoas declaradas impuras, sob pena de tornar-se também. impuro. Entre essas pessoas esto, como todos sabem, 63 estranhos a tribo, os eficientes e qualquer individuo supostamiente dotado de: ‘poderes: excepcionais. "So, pensava Durkheim, tabus primétios dos quals 0s outros s8o apenas propriedades particulares'. ‘J4 € hora de revelar ao leitor 0 segredo da verdade que Denise Jodelet atingiu, num capitulo-semaforo do seu livro: pensa-se que a doenga mental é contagiosa e pode-se ficar contaminado, As- sim, esses ritos tém como objeto premunif-se contta o perigo. A ‘surpresa néo € total. Tratando-se da doenga, ¢ até da deficiéncia, qualquer que soja a sua natureza, a representagao do contagio éa mais espontdnea e a mais difundida. Ela persiste ¢ desmonta to- das as provas em contrétio, justamente porque fica no inverifica- vel, ndo tendo pretensdo & verdade e apoiando-se em evidéncias parcials. O sentimento do grande miimero faz o resto. Qualquer ue ele seja, esse lago descoberto entre o rito eo medo de um con- tagio pelos doentes mentais dé ao caso uma envergadura comple- ‘tamente diferente. ‘Tanto quanto eu possa julgar, essas préticas ou ritos sfo agdes de um género particular, Denise Jodelet mostra em qué e como las séo “préticas significantes". Hu as chamatia de “agdes repre- sentacionais", na medida em que elas mobilizam um contetido mantido pela concordancia do grupo e promovem explicagdes que ‘se quer tornar eficazes através de condutas particulares. Nao s0 meios fisicos destinados a produzir fins fisicos, mas um encadea- mento de condutas em que uma tira proveito da inteligibilidade da outra. Uma vez que as hospedeiras foram identificadas como tal e ‘seu papel foi compreendido, seus gestos domésticos, que pode- 26 riam parecer estiipidos — lavar separadamente a roupa dos doen- tes, mantet-se afastadas deles, proteger as criangas ~ se tornam agdes significativas. Essas mulheres se comportam como se cet- tas idéias ou crengas fossem verdadeiras, reconhecidas por um consenso. Em outras palavras, essas ages representacionais, das quais os ritos so 0 protétipo, s4o definidas pelo que representam (darstellen, em alemo) e representam apenas que se considera, como teal. Em nossos dias, como se pode articular uma tepresentagdo e uma aggo em semelhante rito? Este nao tem os caracteres reconhe- cidos aos ritos negativos (cbrigagao, periodicidade, reviviticagao cerimonial, legitimagéo por uma regra). Trata-se de uma série de condutas regulares, conformes &s normas, mas em grande parte vo- luntétias e por isso intencionais. Como explicar o lago entre as 1e- presentagdes € a sequéncia das condutas? E claro que uma carga de afetos esté presente, Desenha-se uma espécie de aversdo & do- fenga, na maneira pela qual os doentes so percebidos, através de ‘seus gestos desordenados, sua transpiragéo ou sua sujeiza. Omedo de tomar-se como eles, a coexisténcia prolongada desperiam uma fobia do contato, que o filésofo Viadimir Jankélévitch dizia ser a fo- bia por exceléncia, Para néo entregar-se A fobia ¢ desviar-se do te- ‘mor, os habitantes so arrastados para crengas ¢ atos pouco confor- mes & razéo, escapando a explicagéo usual. Bles o fazem com maior Insisténcia ainda, pois o objeto de averséio permanece proximo e os ‘tormenta com o pensamento de que seus efeitos vis e degradantes poderiam estender-se ao conjunto da coletividade. ‘A titulo de explicagao, pode-se ainda invocar a meméria co- letiva, Basta supot que o contagio participa de uma visdo antiga as causas da doenga, que se mantém e se superpée Aviso mé- dica. Nada impede respeitar esta tltima, exteriormente, nas tela- (GOes com os enfermeiros ou os psiquiatras, ea primeira, interior- mente, na esfera doméstica e familiar, como uma recelta trans- mitida de me para filha. Na verdade, e neste livro veremnos por que, os dois pontos de vista se combinam e se revezam. Bfetiva- mente, tudo acontece como se a concepeao "médica" revigoras- se a concepgao “folelérica”, ‘Sel muito bem a que ponto essa combinagao de memoria e de afeto ¢ necessaria. Entéo, por que uma resisténcia a acimiti-lo? As duas explicagdes s4o incompletas na medida em que hoje essas 27 ‘2gbes tém a singularidade de no serem determinadas ‘Por causas, ‘no sentido estrito da palavra, nem por simples obrigagdes, mas por intenges. Procurando saber por que o individuo faz ‘isto ou aquilo, ue pode parecer desconcertante, é preciso admitir que sua esco- tha ou a escolha do grupo é ditada Por esta ou aquela intengao. Ora, nesse caso, ocome que a: Tepresentagao € a ago esto articu- Jadas em fungio do seu contetido, Se é preciso acrescentar que 88a tepresentagao nunca é a boa, néo se pode, entretanto, negar 2 Sua eficdcia. A articulagdo se explica de maneira mais ou menos racional como sendo a de um silogistno prético. Peco ao filsofo americano Fodor um exemplo, John acredita que chovera, se ele Javar o catto. John quer que chova, Logo, John age de uma manei- Ta que, na sua intengao, é uma lavagem de caro. # mais ou menos assim que sé descrevia outrora a magia simpatica usada em ceri- ménias destinadas a fazer chover ou a parar a chuva, chamar 0 vento ou deté-lo. E as hospedeiras acreditam: que impedirao a do- enga de propagar-se se respeitarem as Precaugdes citadas. Para voltar ac mplo de Fodor, pode-se interpretar a conduta de John 0 que laver o carro é um efeito da relagdo causal entre a n John ea utilidade desta. Ou entao, poder-se-ia apresen- taro argumento contrafatual seguinte: John nao lavaria. 0 CaITO, Se © contelido da sua representacdo fosse diferente do que €. Reconhecendo que a teleologia tem uma forga, sublinha-se a bropriedade que a agao tem de modificar o curso das coisas, de as Glspor diferentemente. Com certeza, ndo agirfamos se nao esti- vessemos persuadidos de que, sem nossa ago, o mundo evoluiria de outra maneira. A magia é a expresso extrema dessa convie- 40: ninguém é retido pelo impossivel, desde que a vontade ea in- tengo sejam compartilhadias. Em resumo, o silogismo pratico ex- bressa de que maneita esse género de acdes representacionais, que ndo so mais autométicas nem cetimoniais, so plausiveis aos olhos daqueles que as efetuam entre nés. Efetivamente, Hubert ¢ ‘Mauss viam na magia uma gigantesca variago sobre o tema da causalidade, convencidos de que o seu principio inicia e precede o Ga cléncia, E segundo 0 antropélogo inglés Evans-Pritchard, tra- ta-se da procura de uma cause significativa no plano das relagdes socials. Todavia, é mais preciso e de acordo com a observagao re- conhecer que a explicacao parte menos do contetide especifico do que da ago destinada a atingit um fim. Poder-se-ia dizer que 0 ‘contetido se transforma em uma causalidade intencional da ago, 28 ‘Assim, o caréter supostamente contagloso da doenca justifica, em boa légica, as préticas de higiene, Pode-se aderir a isso mais ou menos, entretanto o ritual convencionado permite agir em fun¢ao da crenca. As praticas das hospedeiras de que falamos repousam intetra- mente sobte a conviegéo de que elas podem intervir no detetmni- nismo da doenga mental, dirigindo ou modificando o seu curso Aos nossos olhos, elas néo terlam efeito; mas isso no significa que elas sejam sem efeito. Vamos deter-nos mais um pouco nesse onto. O aspecto mais impressionante dessas praticas 6 ressaltar até que pontoa classificacgo dos individuos, que os apraxima e os marca, é importante. £ essa classificagéo que traga uma fronteira, indicando com quem se deve ou ndo entrar em contato, e cria um objeto que seria de aversao ou de temor. A doenga é esse préprio contato, uma possibilidade de contégio que transformaria em se- melhantes pessoas t40 diferentes. ssas préticas tém uma reper ‘cussao comprovada no plano social: elas prolongam, na casa e na vida dita, jacdes difusas na comuna. Os processos em- pregatlos sao outros tantos meios de responder a essa “obrigago de distancia” de quese fala, entre civis e “malucos”.E seu aspecto sse faz tanto mais intenso, minucioso, obsessivo, quanto mais @ distancia se torna menor e mais uns se aproximam dos outros. 1ss0 significa que todo geste, todo encontro, deve estat a servico de uma distingdo, deve restabelecer uma sepatagao das classes reco- mhecidas. Assim, $6 ge consegue isso por uma densidade quase maniaca das condutas desse género, uma vigiléncia sem falha. Por este livro, um escndlo se produz. Veremos por qué. A ins- tituigdo que instala, esses doentes procura reinseti-los, fazé-los participat de um quadro nommal de existéncia ¢ da sociedade, em virtude do principio estabelecido pelos psiquiatras de que uma tal existEncia, fora do hospital, tem chances de ser benéfica, de me- Ihorar 0 seu estado, ds fazer deles homens como voc e eu. Se a cura fosse pdssivel stn outro lugar, no hospital psiquiétrico, gragas as terapias €-ads medicamentos, certamente essa solucdo teria sido preferida. Como sabemos, o discurso dos psiquiatras é desti- nado primero ao usd dos psiquiatras; entretanto, nesse ponto, ele corresponde a sabedoria convencional e ao sentimento geral. B o tetoro imaginado as épocas em que os doentes ficavam mistura- dos & vida em comum, apesar dos constrangimentos que provo- cassem, Ora, pelas condigdes de que temas agora uma idéia, os 29 doentes instalados nas familias de Ainay-le-Chateau so manti- dos no limiar da comunidade, tratados como outros e mesmo ab- solutamente outros. Esta tltima observacdo pode parecer injusta. A instalapdo de doentes, de pessoas isoladas e estranhas nao sus- cita esse género de reagdes, para salvaguardar a intimidade de uma casa ¢ a integridade de uma aldeia? Permanece o fato de que sio alojadas ¢ a0 mesmo tempo dematcadas, os hospedeltos tra~ tam delas ¢ 20 mesmo tempo atribuem-Ihes um lugar circunscrito por uma linguagem camuflada, proibigdes e gestos eloglientes, mesmo que as palavras sejam comedidas, Nao digo que isso se faz ccom prazer, que isso no é nada ou que os habitantes de Ainay pro- cura assim ganher dinheiro com umn minima de descontorto. 0 s0- fimento desses homens os comove tanto quanto a qualquer um. Entretanto, est constatado que, por razdes de psicologia social, eles ndo conseguem considerar 0 seu “pensionista” em sua unici- dade, mas ora como um individuo de um género (inocente, doit, etc.) ora como um género de individuo, 0 néo-civil, o “maluco” ‘Dessa maneira, a classificagdo se acompanha de uma segregagao. Definitivamente, enquanto que no hospital olha-se o doente tentan- do nao vé-lo, fora do hospital vé-se o doente tentando nao olh-o. Sem querer, 0 julgamento que se faz dele tem como resultado uma violéncia, Sim, ver dia apés dia um género sob uum individu, inter- pretar o que ele faz e o que ele sente segundo uma categoria, éuma violéncia feita ao singular, a mais forte das violéncias. E empurré-lo para das Grenzland zwischen Einsamkelt und Gemeinschaft (0 territbrio limitrofe entre a solidao © a comunidad - a expresso 6 de Kafka), artancendo-o tanto a uma quanto a outra. Dai resulta uma violéncia cognitiva, proptia do social, ¢ que consiste em tatar es pessoas em relago a mim ¢ as minhas cate- gorias, e nunca na sua singularidade, no seu si préptio, Se todavia é verdade que, como escrevia o fildsofo Lévinas, é violenta toda ‘ago em que agimos como se fossemos 0 iinico aagir. Por constru- ‘:40, 0 problema vem dos outros; no caso, daqueles que tém uma deficiéncia mental: faltam-lhes certas habilidades, so solitarios e abandonados, tém comportamentos bizattos, etc, Existe um gru- po de pessoas em Ainay-le-Chateau que abordam o doente como ‘uma pessoa singular, tentam compreender e reconstituir a sua historia ¢ lhe atribuem afetividade. Mas é um grupo muito pouco numeroso. A maioria procura um santuério psicolégico e social nas representages que cria e nas categorias de que compartilha, 30 \Vé-se assim que, no inicio, 0 hospital se entreabre e suspende as medidas de confinamento dos doentes, Oferecendo-Ihes a ocasiao de ficar numa aldeia e com uma familia, promete thes um retorno& vida, Entretanto, como o etndgrafo Chiva observou, cada casa os confina de uma maneira diferente e se torna uma espécie de hos- pital. & isso que multiplica por dez ou cem, em pequena escala, aquilo mesmo que se queria eliminar, em grande escala. Denise Jodelet nao deixa de observar como o olhar do “hospedeito" sobre “pensionista” acaba assemelhando-se ao do médico e ao do en- fermeiro. Com a diferenga que as representagées e as categorias de um sao morais, a0 passo que os outros sequem uma doutrina ‘médica. Queira-se ou nao, um olhar moral, ¢ logo social, é sentido de maneira mais dolorosa. Na medida em que iniciativas anélogas tendem a multipli- ‘car-se em nossos dias, pata outros doentes ou deficientes, as ob servacdes relatadas so muito preciosas. Sem duivida, a cidade grande, indiferente, andnima, variével, nao é um ambiente acolhe- dor. Sua tolerdncia é, antes, 0 fruto do desgaste das convicgées, das relagdes fugazes em que as pessoas se tomnam indiscerniveis. Mas nem a aldeia nem a familia sio tolerantes ¢ livres por nature za. Nelas, aceita-se dificilmente um novo membro, mesmo que seja um genco ou uma nora, ¢ as conivéncias, as hostilidades ali- ‘mentam uma suspeigdo permanente, que nao estimula a compre- ensdo, a preocupago com 0 outro. A psicologia social nos ajuda a compreender o que ocomre em /Ainay-le-Chateau e que tem um va~ or geral. E melhor ter consciéncia disso, mesmo que essas ques- ‘es perturbem as boas vontades morals ¢ as intengdes Politicas. # tempo de concluir estas observagdes, dizendo que estamos lane de um livto.cativante, cujo Jeitmotiv é a alteridade. Cada ‘uma de suas andlises sobre os lagos que a loucura estabvelece, sobre as telagSes com os doentes, nos tocam muito de perto, Abrem-se sedutoras perspectivas sobre o racismno, a relagdo como estrangei- roea violéncia cognitiva em profundidade. Nem sempre so anéli- ses lisonjeiras, mas a situagao na qual homens se encontraram @ se encontram é exposta com um inegével talento. 'Néo se 16 a obra de Denise Jodelet sem ter vontade de a ler no- vamente. Serge Moscovici 31 INTRODUGAO ‘Talver uma Unica coletiadade, com a condigao do ser totalmente compreendice, ravele a essén- Gia do todas as coletvidades (R. Aron, Lpium des intallectuels, 1955, p. 149) A transformagéo das politicas psiquidtricas abriu es portas do hospital, situagao social que revolucionow habitos mentais forja- dos ha longo tempo. 0 louco, até entdo telegado as margens da coletividade,: volta ao.seu centro. Mas o que aconteceu com os \ceitos. que justificavam o seu confinamento? Estariamos Passando, sem mais, do estado de “sociedade antropoémica”, que ‘a, vomitd-O Bara fora de suas fronteiras, ao estado de "so- "que o absorve, retomando uma imagem aus? Néo'se produzem fenémenos que deslocam o ti- gor da relagao social com a loucura do nivel institucional para ou- {to nivel: 0 contato direto e as representagdes que este mobiliza? Odecreto do politico demoliré tdo facilmente as barreiras simbéli cas quanto as barteltas materials? Pode ocorrer que, como em muitos casos, as medidas da liberalidade e do diteito, benéficas em seu principio, nao sejam aplicadas impunemente, pois a sensi- bilidade social nao obedece & mesma logica e pode dar & relagso vivida com a alteridadé as cores da destazéo. Esse questionamento subjaz a historia que este livro mostra, Uma historia que remonta até a inicio do século XX e se passa, no centro da Franga, em tomo de uma instituigao psiquiétrica aberta, praticando a instalagag familiar de doentes mentais. E o que se chama de Colénia Familiar. Essa historia acompanha o que suce- de, nos planos mental, psicolégico e social, quando os loucos re- totnam ao tecido social, O que vemos? De um lado, as pessoas da regio, de todas as profissées, cidadaos de pleno di ie se dizem civis, como 0 leitor e eu. Do outro lado, os bredins, “malucos", 0s loucos no anti- go dialeto dessa regiao da Franca. Pouco importa que eles viva livres @ em pé de igualdade na comunidade rural subordinada & 33 | Col6nia Familiar; so ditos néo-civis: marcados por sua pertinén- cia psiquidtrica, eles s&0.qutzos. Assim é, a cada vez que uma dife renga (seja ela de origem nacional ou étnica, de cor ou de raga, 9u simplesmente de lingua e de costumes de vida) joga o in alteridade, aos olhos daqueles que ericontram em suas territério ou na cultura razdes naturais para permanecer entre si ‘Tanto isso é verdade que existe um parentesco profundo entte to- das as situagdes em que se confrontam grupos diferentes. Esse parentesco nos leva a indagar se nao existem processos comuns na base desses afastamentos, cujos mecanismos esto sempre tensos, por minimos que sejain os riscos da aproximago; se esses processos também nao dependem, tanto quanto de fato- res de ordem politica, econdmica ou social, das representagbes, daquilo que ¢ e constitui a alteridade. Dai a pesquisa a partir da al foi reconstruida a histéria da vide e das représentagdes dew ‘grupo confrontado coma Toucura, ‘Trés perguntas em uma cionam as representagdes num confronto désse tipo? Como se faz a recepeao do doente mental na sociedade? Como se consixéi are- | Trés preocupagdes formam a trama deste trabalho: como fun- lagdo com a alteridade? A primeira vista heterogéneas, essas preo- ‘cupagdes convergem para um tinico questionamento: como as re- ‘cesentagdes socials da loucura explicam a relagéo com o deente— mental, figura da alteridade? Estudando essa Tépresentagdes “num Contexto de relagdo estreita com doentes mentais, podia-se esperar esclatecer o status, anda mal definido, que a sociedade atribul a eles, e também descobrir algo sobre aqullo que fazemos com 0 outro. Anda no se tentou encarar francamente essas trés ordens de fendmenos, mesmo na psicologia social. Mas isso € necessétio. ‘Vejamos por que 1) Primeio, a alteridade. Bla interpela o nosso tempo. Alteri- dade do outro lugar: de paises, de povos cuja descoberta renova o nosso saber sobre o homem e questiona @ imagem que temos de n6s, Alteridade do interior: de grupos, de pessoas que tragam ~ ‘sem deixar de surpreender-nos por sua maneira dissimulada ou vio- lenta ~ as linhas da diviséo social. ~ um Ea relagdo com a alteridade do interior que nos interessa aqui ._Relagéo de grupo com grupo, de Gozo com corpo, MURas VeZES, Taz- ‘Se equivaler essa Felagao.@ Uma simples Teaco de diferenga, expli- cada de duas maneiras. Ou reduzindo as relagées com o outro, gru- pooumembro de um grupo, a uma atividade de diferenciagao, ex- plicada por uma tendéncia natural e social que leva a distinguir o si doresto. A partir de entéo, o outro é apenas a forma vazia da assun- 0 identitaria. Ou apelando para tragos psicolégicos, como a per- sonalidade autoritéria, por exemplo, ou para atitudes socials comoa tolerdncia ou a intoleréncia para explicar as diversas formas dessas telagGes. Esse autocentrismo tira do outro toda espessura de vida e, principalmenve, néo permite compreender 0 que se faz. com essa vida. Ora, parece realmente que existemn processos sociais de colo- cago em alteridade, pelos quais aquilo que ndo sou eu ou os meus & construido numa negatividade concreta. Isso levanta duas ques- ‘bes: por que, apesar das similaridades de género e das assimila- goes de fato, 0 outro é apresentado e continua sendo assim, para ‘nds? O que resulta de que ele nos parega assim? A resposta a esas, ‘perguntas passa pelo exame da maneira pela qual essa negativida- de se consti. E essa construcéo, imagem cujos contetidos estéo estreitamente ligados a préticas sociais, imagem que petmitira, na Interagao social, o jogo da diferenciago eo trabalho da alienago, pertence ao campo de estudo das representagdes sociais, constitu- tivas da nossa relagéo com 0 mundo social ‘Vamos continuar. Se o outro nao se reduz a um suporte vazio, que permite estabelecer a sua identidade, entdo a alteridade ndo pode ser estudada “em geral”. A construgao da negatividade 6 sempre especificada, até mesmo quando se duvida de que os pro- ccessos de colocagao em alteridade sejam gerals, apoiando-se em mecanismos psicologicos e sociais invariantes. Detectavel a res- peito de tudo e de qualquer um, a colocagéio em alteridade sera ainda mais instrutiva de estudar, pois ela nos faré permanecer no Interior da nossa sociedade e se referiré a um caso em que nao pri- mam os sinais da diferenga cultural, racial ou social, Desse ponto de vista, 0 louco é uma figura privilegiada. Todavia, esse nao foi o unico motivo para escolhé-lo como tema de pesquisa. 2) Faltam ainda numerosos elementos 4 abordagem do des- tino social do doente mental. Muito se escreveu sobre este, Mas dO Se sabe grande coisa sobre 0 destino que o piblico, a socie- 35 sh Jr Ses 8a itas, a compreen- ‘vil Ihe reservam. As descrigdes sao muitas, paca Ea psicologia das representacoes sociais tem algo @ dizer sobre a questdo. ‘Ha mais de vinte anos, a pesquisa se interess2 pela ore epelas atitudes referentes: aos doentes: ae fy ener dog nao sao nem conclusivos nem coerentes.. een 4 .da vez mais fina e impactante, gdo psiquiatrica se tornou ca‘ Se get) hos 130.4 fe pha aberta por Foucault (1981) e Got m Sane tl taco do campo nao mudou nada, Cee cated a saliagao das concepgées in- ‘Dufrancatel pintou em 1968: avallagé hua pn ero coco ptqen go pomeaesin 08 0 ’ a todo} prépria legitimagao; obsessao metodo aes ‘quanto ao exam ‘pressupostos do pesquisador; vazio ee 3 tal. Entretento, slguns sentagdes sociais da doenca ment ey é dos, principalmente 0 mentos de énfase devem ser nota’ ata a a ,duz a definiggo do patolbgi ‘uma visio interacionista, que re Beton a a ital a um processo de age desvio ea rejeigéo 2o doente ment proce agen. sportament .-se mais para a leitura dos sintomas do ieee untin pare os casosds cosrsienciaeetvaom ls ssa perspectiva mens simboista, mals “ é tuou acer siméttica aquela que acent i (ue moldem acareira do pacientes iqulatizado i ee nto he a corre .esmna diregao. Ao contrdrio do que . See ‘cuja contestagdo produziu um aquestionamento 4 es ey ‘clonamento das suas instituigdes e do seu pessoal, ossa perspec va faz passar de uma desconflanga cética em relagéo para uma serenidade de avestruz’. ; Eietivamente, em sue maiora, as pesquisas sobre as PosicOes do pitblico diante dos doentes mentais Siam multiples ca seu pt 5 temunhos sobre os seus preconceitos, seu jeigao, resistencia a campanhas de informagdo. Hoje, cticam-se es __ te Uimes anos _ 2.Uim nineto epoca da Psycologle médicale (16) puiicado em 1689, aptesentana Puiades etre aden metal T= Zornes cousins wernt ota ra srr leds anol Sa nfo as eacas sols cena mena 36 D Seth ses resultados de varios pontos de vista. Por um lado, questior a validade das tentativas feitas para analisar e modificar as des. Nao 86 elas nao seriam confiaveis nem eficazes, mas também acarretariam efeitos opostes aos esperados, acentuando a cons- ciéncia de casos extremos, que despertam reagdes de medo e de Tecusa. Por outro lado, sublinha-se o papel prejudicial da oficiali- zago médica, que estaria na origem de rejeigdes inexistentes sem ela, A psiquiatrizagdo induziria respostas negativas, que as prat cas espontaneas no universo cotidiano desmnentem. Diante disso, reconiza-se a politica do fato consumado: pér o doente mental no mundo social, esperar e ver; tudo se passaré melhor do que o alar- mismo dos anos 60 fazia prever, As transformagdes da prética psiquiatrica, com a abertura dos hospitals, a setotizago e a terapia comunitéria pesam multo nes- ‘sa mudanga de ética que, entretanto, mantém na sombra 0 verda- deito problema da relago com os doentes mentais: a representa- ‘G80 da sua doenga e.do seu estado, a partir da qual se constroem a sua alteridade e o seu status social, ** “Observada mais de perto, essa mudanga de dtica vai além do 1, simples registro das repercussdes de uma nova polit “4/1. odoente mentalno tecido social. Ela comesponde a uma mudanga “de paradigma na abordagem das relagdes intergrupos: a atengo se desloca das atitudes para os comportamentos, parte em azo do fracasso das pesquises em mostrar 2 incidéncia das primeitas sobre os segundos. Tustraremos essa mudanca de paradigma a partir de duas experiéncias célebres nessa area: a de Grifin (1961) e.ade Lapiére (1937), Griffin, escurecendo a propria pele, demons- trou 0 caréter sistemético e convencional da “linha de cor" ¢ das atitudes racistas no sul dos Estados Unidos. Durante muito tempo, (seu relato alimentou o pessimismo sobre os preconcettos raciais Atualmente, prefere-se pensar, como Lapiére, que os comporta~ mentos sao mais positivos do‘que as atitudes. Lapiére consequiu set aceito com um casal de chineses em 250 hotis e restaurantes, Cujos proprietarios, ao responder anteriormente um questionério Ge atitude, afitmaram, em 92% dos casos, que recusariam a entra- da no seu estabelecimento a um chinés. Parece que se pensa que isso é o melhor a fazer com os doen- tes mentais. Os programas de satide mental acarretario de facto uma modificagao no seio da populacdo (Katschnig, Berner, 1983), 37 ‘como provam os resultados obtidos nas cidades canadenses que as pesquisas dos Cumming tornaram célebres em 1959, em r@z30 da sua negatividade em relagéo & loucura ¢ da sua re: mudanga (Wattie, 1983). Entretanto, muitas quésies tocadas, Pode-se julgar isso, entre outros exemplcs, pelo decorrer da experiéncia italiana de fechamento dos hospitals psiquiatricos, depois da reforma de 1978, inspirada na teflexdo de Basaglia, que {oi apoiada por uma forte corrente popular. N4o foram necessatios mais do que dols anos para que aumentasseri 0 medio ao louco @ a sua “satanizagéo"; para que se desenvolyessem nas familias um sentimento de “vitimizagao” e uma exigéncia de protegdo. E, ape- sar de um melhor nivel de informagao e uma maior sensipilidade da opiniao publica, nota-se hoje uma baixa not6ria da atengao com- preensiva dedicada aos doentes mentais (Bertolini, 1983). O balan- ‘90 das pesquisas realizadas além-Avléntioo confirma essa tendén- cia (Dulac, 1986). Observa-se que, se de vinte anos para 04, a quali- dade dos conhecimentos sobre a doenga mental e a finura de apre- ciagio dos sintomas melhoraram, a imagem do doente mental é ‘cada vez mais associada a idéia de periculosidade: Do mesmo mo- do, se a expresso de uma disténcia social diminui, esse fendmeno é acompanhado de uma tendéncia crescente a evitar 0 contato com 0s doentes mentais. As tentativas de reinsergao social dos pacien- tes “desinstitucionalizados” revelam que as comunidades manifes- tam uma grande resisténcia quando estes sao numerosos. Uma sa- turagdo répida do meio social acarzeta a concentragao dos doentes em zonas teservadas ou progressivamente isoladas. Para explicar essas contradigées é preciso ir mais longe na andlise da tesposta piblica ao contato com doentes mentais Como veremos, apelar para atitudes tais como a tolerancia ou a in- tolerdncia néo atinge o fundo do problema e limitar-se & aceitagao formal da presenga dos loucos no cenario social é uma maneira de camuflé-lo, Os autores que pregam 0 fato consumado dessa co- presenca nao ignoram isso. Eles parecer, antes, formular uma self fulfiling prophecy, esperando que 0 que-é negado no exista ou que, com 0 tempo, os preconceitos, residuos de crengas supera- das, desaparegam por si mesmos. Teremos a ooasiéo de mostrar que isso nao é verdade. Pelo contrério, a evolugao do regime e da terapéutica psiquidtrica poderia suscitar respostas sociais e reati- vvar visdes da loucura através das quais péem-se em cena e em ato ‘omedo de uma alteridade e a defesa de uma integridade. Dat aim- 38 ortancia ce explorar um espago ainda pouco banalizado da rela- do com a loucura: as suas dimensdes ideais e simbélicas, 3) Avia de acesso para essas dimensdes 6 o estudo das repre- 'sentagbes socials que se referem a loucura e ao louco. Esse sera 0 eixo do nosso procedimento, na medida em que nele vemos a cha- ve pata compreender tanto as maneiras de tratar, de situar social- mente os doentes mentais, quanto a construgéo da alteridat Ponto de vista que se diferencia das correntes dominantes no es- tudo da relagao sociedade-loucura. Efetivamente, até agora, as representagdes soctals d mental foram pouco estudadas na nossa sociedad. Hlas sto rara- mente abordadas de frente owna totalidade dos seus aspectos. Sem divida, remetem a elas trabalhos histéricos e etnol6gicos so- bre as praticas e saberes populares referentes a loucura (Charuty, 1985), 0 exame das instituigdes © agentes que a tratam (Morvan, 1 ainda a propésito de setores da conduta que so por ela afetados (Giami et al., 1983). Mas falta muito para que as tepresen- tages sociais recebam 0 lugar central que Ihes cabe, no esforgo para compreender a abordagem social do daente mental, Entre- tanto, sabemos que as méscaras e as figuras da loucura povoaram © imaginario social na historia mais longinqua (Bastide, 1965), fa- zendo parte integrante dos tratamentos que a sociedade destina 0s loucos (Foucault, 1961). Assim também, pesquisas recentes mostram a coeréncia dos sistemas de representagao da doenga mental, através de culturas ou subculturas diferentes, e sua arti- culago com as praticas desenvolvidas na vida didria ou num qua- dio profissional (Bellelli, 1987). Essa situagio do campo se deve em parte ao fato de que a atengao dos pesquisadores se dirigiu essencialmente para o papel das praticas e ideologias psiquistricas, no controle do desvio men- ‘al. Essa tica subordina as representagées a definigo e & recusa social das condutas ilicitas, ao controle dos antagonismos cultu- tals e socials. Fica assim diminuido o interesse cientifico da res- posta de um pitblico despossuido de seus modos tradicionais de assumir a doenga, retirado do paico pela intervengao do poder mé- ico, ao qual o piblico contia essa tarefa, Doravante, as mudangas institucionais e terapéuticas dao novamente a essa resposta 0 seu peso social, pois ela vai comandar a posi¢ao dos doentes fora dos espagos oficiais da sua relegagao. Além disso, se se procurou mos- 39 / az como os critérios de exclusdo do louco se forjam em relacao com as lutas e as fraturas do corpo social, nao se investigaram os confltos quo nele pode fazer nascer a presenga de pessoas acusades de desvio pela sua psiquiatrizagao. Confitos decisivos também para 0 destino do doonte mental, e que nos fazer tocar esse “nivel pro- fundo" da “vida intima” e dos “dramas” da sociedade, garantindo “oacesso as relagdes reais mais fundamentais e as praticas tevela- doras da dinamica do sistema social (Balandier, 1971, p. 6-7) Essa situagéo também se explica pelo fato de que as represen- ages sociais nem sempre forain reconhecidas como um objeto cientifioo lecitimo, por duas razées. Ou porque se visser nelas fe- 7 nomenos secundatios, repercussées ou reflexos de processos S0- ciais, econémices, ideclogicos, etc.. julgados decisivos; ou por- \ que ndo houvesse instrumentos de analise para ir além do nivel da simples descrigao de imagens expressivas de atitudes culturals. Isso era ignorar as contribulgdes da érea de estudo das representa ‘o6es socials, aberta na psicologia social por Moscovici (1961) e que encontra um eco concotdante em outras disciplinas psicologi- cas esociais, como mostra, entre outras, uma obra coletiva (lode- let, 1989}, dando uma visio do alcance da nocéo retomada de Durkheim e dos trabalhos acumulados ha vinte anos. Doravante, 0 cestucdo da produgdo e da eficiéncia das representagdes numa tota- lidade social nao é mais contest4vel, nem quanto a sua importén- cia nem quanto a sua viabilidade. Basta definir com cuidado as formas da sua execugao empirica Nosso procedimento caminha nesse sentido. Situa-se na linha | tragada por Mescovici na sua pesquisa sobre a representagao da neicandlise, centrada na maneire pela qualas representagdes sociais, fencuanto “teorias" socialmente crladas e operantes, se relacionam coma construgao da reatidade cotidiana, com as condutas e comu- | nroagdes quo als desenvolvem, «também com a vida ea expres io dos grupos no seio dos quais elas séo elaboracias, Esse procedi- ‘mento adota uma “solugdo” {como se diz de um projeto arquitetoni- co} que considera principalmente o lado de uma psicossociologia do t 4 Vv vw Em primelza Ingazra importancia existencial da doenga men- talrequer avaliagdes sobre sua natureza, stias casas, suas conse- atiéncias para o individuo e os que o cetcam. Ora, em matéria de conhecimento sobre essa afecoao, nao existem verdadeiramente uum “niicleo duro”, nem posigées homogéneas na érea cientifica médica, Pensar, estatuir, opmnar sobre ela temetem pois muitas vvezesa uma construgo social auténoma, em que o saber erudito e _Peattimo nao tem grehde coisa a dizer, apesar dos empréstimos f2- ‘vorecidos, a parti do século XIX, pela medicalizagdo e pela insti- iclonalizacao da loucura. Além disso, 0 estado vago e conflituoso do campo psiquidtrico nao fomece ao pilblico argumentos sequros y.\ 7 @ trangiilizadores, 0 que também vai facilitar a proliferacao ou a manutencdo de saberes de senso comum singulares. Desse ponto de vista, a doenga mental é um objeto ideal para estudar 0 pensa- mento social ¢ o seu funcionamento. Em segundo lugar, essas elaboragdes sobre a doenga mental, mesmo sendo espontaias e situadas fora do saber erudito, no se fazem no vazio social nem de maneira arbitréria, Relativas a um objeto cuja pertinéncia é vital no campo das interagdes socials, elas tém uma base social, um alcance pratico ¢ apresentam as pro- priedades de um verdadeiro conhecimento, que diz alguma coisa ssobte 0 estado do nosso mundo ambiente e guia a nossa ago so- bre ele. E preciso, pois, estudé-las como conhecimentes sociais € entender a sua ligago com os comportamentos dos indivi dos grupos. Exigncia plenamente ampatada pela crt 4s pesquisas sobre as atitudes relativas a doenga ment ma forma Com que foi contestada a validade daquelas em que as categorias da abordagem psiquiétrica foram tetomadas e impos- tas 20 piblico, negligenciando as préprias categorias deste, assim também hoje, reconhecendo que as atitudes de avaliagao repou- | sam sobre tepresentagdes e crengas compartilhadas, procura-se dimensées coghitivas da resposta social livadas a fatores his- icos @ socioecolégioos, a razdo das praticas coletivas. Assim, nosso procedimento seguiré um duplo movimento, vi- sando, por um lado, isolar as concepgdes que orientam a relacdo mantida com os dosntes mentais; por outso lado, precisar como 0 Contexto no qual essa relagdo é atada concorre para a elaboracao dessas concepées. Em suma, tata-se de tomar as representa Ges enquanto producéo, expresso é iiistriimento de um grupo a 41 sua 1elagao cor Assim se fecharé o circulo entre | nossas tes perauntas, pois as representagées da loucura ajudaréo | a compreender a construgdo da alteridade do doente mental e, re- | ciprocamente, o exame de uma situago concreta de contato com 08 loucos esclareceré a maneira pela qual se formam efuncionam | essas representagées. Representacéo, conhecimento e prética social Aplicar a “solugo" de uma psicossociologia do conhecimento @ abordagem das relagdes de uma comunidade com os seus outros no equivale @ adotar um ponto de vista resolutamente “racional", intelectualista, em detrimento da apreensdo de cutras dimensdes, institucionais, simbolicas, axiol6gicas, afetivas, principalmente, elo contrério, 6 tentar discemnir, em sua globalidade, os pro- cessos que ligam a vida dos grupos & ideago social, desdobrando as propriedades da nogdo de representagao, que se tornou uma nogdo-chave na explicagéo do funcionamento psiquico ¢ social, da agdo individual e coletiva, Ao fazer isso, néo se pode deixar de estabelecer pontes entre tradigdes de pesquisa que desenvolve- ram @ nogio de mansira paralela, sem verdadeiramente convergir ~ de qualquer forma, ainda nao tratando-se da compreenséo de ‘um meio social concreto. Na verdade, a importancia da represei ha mais de uma década, em todos os territérics das ciéncias hu- ‘manas, Mas, da psicologia &s ciéncias sociais, a nogao é tomada em acepedes bastante diferentes para fazer pensar na sua frag- mentagdo ou na sua diluipo. Fazendo tender os fenémenos que ela engloba para 0 lado dos processos inttapsiquioos ou das pro- ugdes mentais socials, da cogni¢ao ou da ideclogia, do compor- tamento privado ou da agao piblica, formiilam-se muitas concep- bes e probleméticas. Entretanto, resta um terreno de entendi- mento entre esses tendéncigs: 0 reconhecimento da pertinéncia e da eficdcia das representagées no processo de elaboragao das Ccondutas. E como tentel fazer em outro trabelho (Jodelet, 1985), 6 possivel encontrar, de um campo a outro, parentescos € com mentaridades que abrem caminho para uta abordagem unitaria, cuja elaboracdo cabe, sem diivida, & psicologta social, disciplina io € reconhecida, 42, situada na interface do psicolégico e do social, do individual e do coletivo, Cabe-lhe, especialmente, superar um duplo obstculo’ pensar 0 eocial como cognitive e as propriedades da cogni¢ao como algo social, pensar a parte afetiva do pensamento social. Se se confrontam as equisigdes da pesquisa nas diferentes disciplinas, observa-se que, aqui ou ali, certas propriedades da re- presentagdo sao firmemente estabelecidas, mas sempre 0 sé0 in- completamente, Mesmo que se concorde com 0 fato de queaie: presentagao é uma a de conhecimento, tem-se alk ma a ‘pidamente esbocados alguns indicios desse estado do campo de estudo das representagées. Se a psicologia cognitiva evidenciou as propriedades estrutu- rais da representagéo, a domindncia dos modelos baseados no tre tamento da informagdo ¢ o estudo computacional da inteligéncia artificial produziu ow reforgou uma concepgéo do processo mental, cortado do lago social, e sua base psiquica ¢ corporal. Com base na representagao do saber num computador, concebe-se 0 conhe- ‘cimento como modelizagao de certas aspectos, tragos, relagdes do mundo representado, Esse saber 6 analisado enquanto estrutu- ra distinguindo seus contetidos suas formas (o saber declarati- vo) e suas operagies (0 saber procedural) - cuja estocagem pie om relvo a impordncia de mau Pot mais importante que soja, essa formalizacao, suiétdinando a anélise psicolégica aos prinofpios da informatica, & levada a negligenciat varios aspectos da tepresentagio. Primelramente, o aspecto simb6lico. Estuda-se o conhecimen- ‘to sem prejulgar a sua correspondéncia com uma realidade qual quer (Mangler, 1983) ¢ sem tiar as implicagdes do fato de quea presentagao "faz as vezes de" e significa um aspecto do mundo, ppara si mesmo ou para os outros. Negligenciando as fungoes re rencial e comunicativa da representagao, chega-se a uma form: zago hipotética, em que o intramental esta fechado sobre si mes- mo. Ora, como se conclu do exame das formulagdes mals conhe- cidas dessa perspectiva (por exemplo, Minski, 1977; Schank & Abelson, 1977), nao se tendo integrado a propriedade simbolica no modelo teérico, deve-se reintroduzi-la para explicar o funciona- 43 ~ AS emocional, grave cbstéculo abundantemente assinalado na Ca 4 ‘mento cognitivo em situagao real. As estruturas postuladas (fra- ‘mes, scripts, etc.) so podem ser aplicadas com ajuda da lingua- cgom, da expetiéncia e dos saberes compartilhados numa mesma cultura, o que é confirmado por outros autores que tratam do saber sobre o mundo e das conceitualizagdes expressas pela linguagem (por exemplo, Johnson-Laird & Wason, 1977; Miller, 1978). Isso basta para sublinhar a necessidade de incluir a dimenséo sociale a ‘comunicagao em todo modelo clo conhecimento. Se, complemen tarlamente, consideram-se os trabalhos que analisam as condl- ‘ges cla compreenséi e da troca linglifstica (por exemplo, Clark & Haviland, 1974; Flahaut, 1978; Grice, 1975; Searle, 1983), vé-se que neles se postulam um medium coletivo (background cultural, saber técito, convengbas, etc.) e aquilo que, na representagao, social. Setia hora de traté-lo como tal, corrigindo assim a insufi- ciéncia sublinhada por Cicourel: “O problema da significagao tal ‘bordado na filosofia, na linglistica, na psicologia ena an- ia modemnas, ndo evidencia o fato de que o conhecimento 6 socialmente fomecido" (1973, p. 77). Isso nao é tudo, Essa espécie de isolacionismo cognitivo, fo- il calizado naquilo que é conhecido e como é conhecido, nao diz nada sobre aquele que sabe e como sabe. Assim, elimina-se a fun- SY | cdo expressiva da representagao e sua relagao com a vida afetiva ‘ura cientifica. Ninguém se interessa, também, pela agdoe seu su- porte, 0 corpo. A base motora, postural e imitativa da representa- o fol, entretanto, enfatizada a propésito do funcionamento cog- ‘0 € do seu desenvolvimento (Bruner, 1966; Jodelet, 1979; 11950, 1962; Wallon, 1942). Essas omiss6es néo permitem ex- icar 0 papel do lago social na formagéio dos conhecimentos, dos investimentos afetivos na organizago cognitiva e do alicerce pul- sional na emergéncia do semiético (Green, 1984). Blas terdo como consequéncia a dificuldade em tratar da relagéo entre representa- (¢4o e pratica e da articulacdo do pensamento com a ordem do de- Sejo e dos afetos negatives. O trabalho de Kats (1976, 1980) é um exemplo do que a psicossociologia pode fazer numa perspectiva ica inspirada na psicandlise. Endo se deve esquecer que Durk- {4 insistira na importéncia da ancoragem corporal das repre- sentagdes individuais e coletivas, sua ligagao com as emogées, com os fendmenos de meméria social ~ que nem a psicologia cog nitiva, nem as neurociéncias podem explicar (Changeux, 1984) ~, assim também com os habitos e ritualizagées sociais. 44 > Enfim, a perspectiva cognitivista levow a dissociar representa ‘edo cognitiva e representacdo social, sob a forma de uma dupla oposigao. Ondsioao entre processos que remetem unicamente ‘mecanismos intra-individuais, ¢ contetidos que serlamn a marca distintiva do social, com a afitmagao de uma priotidade cientifica do estudo dos processos, em azo da variabilidade cultural ¢his- torica dos contetidos (Codol, 1984; Denis, 1976, entre outros). No segundo caso, 9 cognitivo é oposto ao ideolégico, cuja re- presentagio social setfaa forma empltica, ANia-se mesmo, entao, ‘o caréter Secundétio do componente cognitivo desta tltim: petigo cle autonomizagéo e de redugo, que a sua co comporta (Robert & Faugeron, 1978; Ramognino, 1984). Correspon dendo a visGes diferentes do lugar do individuo e do social na pro- updo das tepresentzedes, essa dissociacao deixa de apreender a especificidade dog fendmenos representatives relativos & ideologia (Godelet, 1985) endo pode explicar nem a marcagao social do cogni- tivo nem as condigdes cognitivas do funcionamento ideol6gico. Essa tltima observacdo se aplica, em parte, ao tratamento da representagao nas cléncias socials. As cotrentes recentes da an- ‘ropologia, a histéria, @ sociclogia (ver principalmente: Augé, 1979; Bourdieu, 1982; Duby, 1978; Faye, 1973; Godelier, 1984; Heritier, 1979; Michelat, 197) reconhecem para a representagao um status origindrio na constituigao das ordens e das relagdes sociais, na ori- entagdo dos compartamentos coletivos € na transformagéo do mundo social. Mas cbserva-se, com algumas excegdes (Sperber, 1982; Douglas, 1986), uma tendéncia para minimizar os aspectos proprlamente cognitivos da representagéo, em provelto dos seus aspectos semanticos, simbélicos e ideol6gicos, cu das proprieda- Ges performativas dos discursos que a expressam. # necessario insistir na contribuigo decisiva que constitu nessas cotrentes de pesquisa, a demonstragao da estreita imb do entre as brodugGes mentais e as dimensdes materiais e funcio- nals da vida dos grupos. Essa contribuledo reside principalmente em: a) a supetagéo da hierarquizagéo dos niveis da estrutura s0- cial ¢ do determinismo ordem do pensamento pot suas condigdes infra-estmuturals; b) o esclarecimento do lugar das re- presentagdes.nas préticas socials que particularizam, no selo de cada formago social, a mobilizago ou a transformagdo de uma organizagao estrutural. Isso renova a abordagem da produgao so- 48 Yb ue he cial dog conhécimentos e da sua relagao.dom as praticas Entre- “ tanto, embora em todos os casos fagam-se das representagoes, “conhecimentos”, "teorias", “versdes", “visOes” da realidade, que server aos individuos ¢ aos grupos pafa interpretar e controlar essa realidade, legitimar ou invalldar a ordem e o lugar que nela ‘ocupam; embora se vejam nelas fendmerios qué tém uma eficdcla propria na instituigao e no devir das sotiedades, testa que, como 4 representacées ndo so 0 objeto central dessas teorizagées, o seu status enquanto “formas cognitivas” ndo é elucidado. Esses conhecimentos so vistos como conteiidos cuja operatividade é relacionada com processos que hes s40 exteriores: Igica discur- siva que garante sua colocagao em “aceitabilidade" na troca social (aye), “ideclégica” definindo simultaneamente a ordem intelec- tual e @ orclem social (Augé), "magia performativa” dos enuncia- dos legitimados pela coesdo e pela dinémnica dos grupos (Bourdl- eu, ete. Ninguém se indaga sobre as propriedades cognitivas des- ses contetidos que, socialmente gerados, favorecem a sua adogao numa coletividade e sua intervengao na totalidade social ‘Todavia, na manelra de fazer funcionar as teptesentagdes nes- sa totalidade, somos remetidos a essas propriedades cognitivas, essencialmente através da nogio de estrutura, Refere-se a “estru- turas formais” nas natragdes sociais (Faye), a "esquemas organi zadores” no centro das praticas materiais e discursivas (Godel a“esquemas constitutivos”, dos quais alguns so "universais", ticulando os registros pratico, simbdlico ¢ ideolgico (Augé, Héri- ter). Duby, a respeito do imaginario do feudalismo, elaborou esse papel da representagdo, “arcabougo”, “estrutura latente”, "ima- ‘gem simples” da organizacéo social garantindo a passagem entre 0s sistemas especulativos e as ideologias. Vemos nisso, como na importéncia conferida a linguagem e & circulagdo dos discursos, @ condig&o para que as ciéncias socials ea psicologla cognitiva con- virjam, através do canal da psicologia social. Bietivamente, esta tltima, com a corrente de estudo das re- presentagies sociais, dé os meios de pensar sem contradigéo a re- presentagao ~ nao somente como contetido, mas também como estrutura e forma cognitiva, expressiva dos sujeitos que a cons- troem -, na sua ligagéo com os processos simbélicos e ideolégi- cos, com a dinamica e com a energética social. 0 que tentaremos realizar, fazendo trabalhar a nogao numa totalidade social concre- 46 ele ee Ce pw Le he 8 ¢ ea ta, onde se ata uma relagdo com aalteridade, Observaremos como ‘seus membros véo relacionar, em fungo de sua posigdo, dos in- ‘vestimentos ¢ paixées mobilizados, os diferentes registros da vida coletiva, numa construgdo socialmente marcada e permitindo ge- rir 0 contato com a alteridade. Empreendimento que exige tar pattido das implicagdes da pesquisa sobre as representagdes socl- ‘als esuperar certas dificuldades, com as quais ela ainda se depare. Distinguiremos as principals, sem detalhar as tendéncias e traba- Ihos que sdo agora objeto de muitas apresentagdes (entre as mais recentes, citamos Doise & Palmonari, 1986; Farr, 1984, 1987; Farr & Moscovici, 1984; Herzlich, 1972; Jodelet, 1984, 1989; Moscovi- ci, 1976, 1981, 1982, 1984). Encontramos no modelo seminal de Moscovici elementos que, corroborados a diversos tisulos no campo recentemente desenvol- vido em torno das representagdes, constituem aquisigGes irrefuts- \Jveis. Em especial, 0 papel desses fenémenos na insiituigéo de ‘uma realidade consensual ¢ sua fungao sociocognitiva na integra~ ‘edo da novidade, na orlentagéo das comunicagdes e das condutas. O fato de que as representagées podem ser estudadas de duas ma- neiras. Globalmente, quando nos apegaios as posigdes emitidas por sujeltos socials (individuos ou grupos), a respeito de abjetos socialmente valorizados ou conllitantes, elas sero tratadas como r es (informa- ‘campos estruturados. isto é,.contetidos cujas dimens6es (in! “qGes, valores, crengas, opinides, imagens, etc.) sao coordenadas or um prinélpio or ide, normas, esquemas cult: ais, estrutura cognitiva, etc.). De modo focalizado, quando nos_ apegamos a elas, a titulo de modalidade de conhecimento, elas se- “{do tratadas como fiicleos estruturantes, isto 6, estruturas da sa. xr organizando o Conjunto das Significagées Telativas a0 objeto conhecido. A primeira tiea encontou eco em muitas juisas em meio teal A segunda mostrou ser um ‘paradigma de alto valor de genezalidade e de uso, do panto de vista do estudo do pensa mento social em laboratério e no terreno. Bla permitiv evidenciar os processos constitutivos da representacio e disoemir suas for- mas e efeitos especificas enquanto organizagéio cognitiva. Os processos constitutivos, a objetivago e a ancoragem, tém | ‘elagdo com a formagao e o funcionamento da representagao ‘social, ce ‘les explicam a partir de suas condigées de emergéncia ¢ de | circulagio, que s40 as interagdes e as comunicagves socials. Dese- a jando principalmente insistir no fato de que eles do 0 meio de pen- sat @ intervengdo do social na elaborago cognitiva, mencionare- ‘mos apenas os momentos que sao expostos detalhadamente nas apresentagées anteriormente citadas. A objetivagao explica a te- ppresentago como construgdo seletiva, esquematizagdo estruturan- te, naturalizacdo, isto €, como conjunto cognitivo que retém, entre as informages do mundo exterior, um niimero limitado de elemen- tos ligacos por relagdes, que fazem dele uma estrutura que organiza ‘campo de representacao ¢ recebe um status de realidade objetiva. Aancoragem, como enraizamento no sistema de pensamento, atr- buigdo de sentido, instrumentalizagdo do saber, explica a manelra pela qual informagées novas sio integradas e transformadas no conjunto dos conheoimentos socialmente estabelecidos ¢ na rede de significagbes socialmente dispontveis para interpretar 0 real, € depois sdo nela teincorporadas, na qualidade de categorias que ser- vem de guia de compreensio e de agao. Dois pontos devem ser su- blinhados aqui. Essa anélise permite descrever 0 estado estrutural da representacao, n&o como uma organizagao hipotética que obe- da sua apreensao, da sua memorizagéo. Por outro 0D, nt Teconstituira sua génese, e encontrar em sua origem e suas fungdes je organizaco, progresso em relago aos pontos de vista, lares ~ salvo apelando para univer sais do espirito, duplicacos nos diferentes niveis simbélicos, ou re- cortendo aos modelos da linguistica, Em seus esforgos de anélise, a pstoologia soctal avangou em ai ‘bes: examinando os mecanismos socials que presicem ‘i selegdo dos termos da estrutura e aprofundando as propriedades estruturais da representagao social. No primelro caso, pata exli- car @ acentuagéo ou a ocultagéo de certos caracteres ou dimen- s6es dos objetos representados, diversos autores estudaram a in- idéncia dos valores préprios a um grupo social ou a uma cultura, a incidéncia das obrigagdes normativas ligadas & posigéo ocupada pelos atores socials no seto de um sistema institucional, ou ainda 4 incidéncia dos modelos coletivos que permitem aos individuos da- rem sentido & sua experiéncia social (ver notadamente Chombert de Lauwe, 1971, 1984; Gilly, 1980; Heralich, 1969; Kees, 1968; Jo- 48, delet, 1984; Moscoviei, 1961; Robert, Lambert e Faugeron, 1976). No segundo caso, pesquisas de laboratério evidenciaram certos aspectos da composigao dessa estrutura, distinguindo entre ele- ‘mentos contrais e periféricos da representaco social, para estu- dar suas relagdes cortics comportamentos € suas transformagdes (ver notadamente Abric, 1987; Flament, 1984, 1987). Mas deve-se constatar que essas diferentes pesquisas, cujos progressos permanecem esparsos, ainda no permitem uma viséo unitaria, para teorizar os fenémenos representativos em agdo na vida dos grupos. Lamentamos, especialmente, dois tipos de limi- tagao. O estudo da produgao representativa sofre, por um lado, de ‘uma restrigao do campo de exploragdo, na medida em que as pes- quisas se apegam a uma ligagao direta entre a posigdo social dos rduos e sua construgdo cognitiva, a propdsito de um setor de atividade definido. Por outro lado, esse estudo softe de uma difi- culdade de estabelecer uma ligagdo entre representagao e pratica, nna medida em que se apega quase exclusivamente ao valor ex: Pressivo da representacao considerando-se o vivide dos sujeitos, sem avaliat 0 aleance da construgao cognitiva enquanto definigéo de objeto diante do qual esses sujeitos se situam (Jodelet, 1985, 1987). O estudo estrutural das representacées, apesar do seu mais alto grau de generalidade e de sua demonstracao da incidéncia de certos elementos estrtiturais sobre a orientagao da ago, softe por deixar na soméra a questéo da génese da representacéo. Na intersegéo dos diversos pontos de vista dos quais tratou Nossa reseniha, excessivamente parcial ¢ sucinta, desenham-se algumes pistas para aprofundamento, Nés as exploraremos, fi- xando a atengao em certos problemas nodais. Apreender em sua imbricagao os aspectos cognitivos e expressivos de uma represen- tagéo compartilhada por um grupo, a respeito de um objeto tal como a doenga mental, que empenha a afetividade e a identidade de todos. Examinat’2 maneira pela qual as condigdes sociais, alin- guagem e a comunicagao intervém na formago, na mudanga ou yha manutengao de urn sistema representativo, principalmente na selegdio ena organizacéo dos elementos que constituem a sua ar- madura. Delimitar as condigdes de operatividade dessa estrutura no estabelecimento dé uma visio consensual e na orientagao dos comportamentos individuais e coletivos, especialmente as (96es cognitivas requetidas para explicar verdadeiramente a 49

Você também pode gostar