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A cidade é um território em disputa e o carnaval é um combate entre o corpo e a morte; um rito sacrificial de reencontro do
indivíduo com a possibilidade da vida como experiência coletiva de reconstrução do ser na rua e no mundo. É isso que me
ocorre diante das criações sacro-profanas (pois é da natureza das culturas de rua profanar o sagrado e sacralizar o profano)
A cidade, muitas vezes um território hostil desencantado, apresenta-se nas obras do artista transgredida em terreiro, espaço
praticado na dimensão do encantamento do mundo. Os corpos mascarados que transitam, sambam, deliram, batem bumbos
e bolas, reinventam a vida diante da aridez de avenidas e viadutos e das luzes, fumaças e buzinas dos carros.
Há, na dimensão da poética do trabalho de Andrew uma perspectiva política que está presente na própria história da cidade,
dos subúrbios e do carnavais. Vejo as telas e percebo camadas de um embate pelo uso da rua que sempre marcou o Rio de
Janeiro. No século XIX, por exemplo, ele se manifestava na tentativa de impor um modelo europeu de carnaval, estruturado
nos desfiles das Grande Sociedades, que sobrepujasse a festa popular dos cucumbis, blocos e cordões.
No início do século XX, projetos higienistas conceberam o Centro do Rio como uma espécie de Paris Tropical, expulsando
moradores pobres e negros, em sua maioria, que subiram os morros ou seguiram os trilhos do trem para ocupar os subúrbios.
Nas barbas desse embate, foram exatamente aqueles que subiram morros e ocuparam subúrbios que construíram os
O que temos hoje, no século XXI, é um embate parecido. Há quem lance em relação à cidade um olhar asséptico, higienista,
fincado em moralidades castradoras daquilo que podemos ser. E há a cidade que se reinventa nas brechas do cartão postal,
em suas ruas e ramais, nos corpos das passistas e nas roupas dos bate-bolas, insistindo na festa como instância ritual e
A cultura popular carioca é essencialmente ritual. A flecha de isopor no peito do padroeiro pode ser tiro, lança, confete,
serpentina, bexiga, sombrinha, baqueta de caixa de guerra e de surdo de marcação. Pelas mãos de Andrew Silva, é como o
vagão do trem ligeiro que viaja a partir daquilo que fomos em direção ao que somos e ao que podemos ser. Não foi a rua,
afinal, que inventou o carnaval. Foi o carnaval que inventou a rua, sacra, sacana, profana, como apoteose de gozo e reza.
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