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APRESENTAÇÃO
A América do Sul, como parte integrante da América Latina, faz parte do chamado
mundo subdesenvolvido, justamente por ainda apresentar traços definidores dessa
situação: elevado grau de dependência econômica, financeira e tecnológica; grandes
desigualdades sociais e regionais; hipertrofia do setor terciário; inchaço urbano,
acompanhado de suas perniciosas consequências (crônico déficit habitacional, problemas
de mobilidade, ocupação desordenada do solo urbano); elevada concentração fundiária;
comércio exterior baseado na exportação de produtos primários, as chamadas
commodities (soja, café, algodão, banana, minério de ferro, petróleo, gás natural, cobre,
dentre outros).
1
TEXTO DE REFERÊNCIA
1 INTRODUÇÃO
1 Texto baseado nos capítulos 2 e 3 da Tese “Entre a cooperação e a dissuasão: políticas de defesa e
percepções militares na América do Sul”, defendida por Oscar Medeiros Filho, na Universidade de São
Paulo, em 2010.
2 ASPECTOS GERAIS DO SUBCONTINENTE SUL-AMERICANO
2 Exceto alguns incidentes (a disputa entre Argentina e Chile pelo canal de Beagle, em 1978; as relações
tensas entre Chile, por um lado, e Bolívia e Peru, por outro, no final dos anos setenta; o enfrentamento naval
entre Colômbia e Venezuela em 1987; a questão entre Equador e Peru em meados da década de 1990; e,
mais recentemente, o ataque colombiano a guerrilheiros das FARC instaladas em territórios equatoriano
em março de 2008), os últimos conflitos interestatais no subcontinente ocorreram na década de 1930.
Estados) sugere uma interessante situação onde a lógica do Dilema de Segurança de John
Herz3 estaria invertida. Ou seja, no caso sul-americano, as maiores ameaças teriam origem
não em políticas de poder adotada pelos Estados, mas na incapacidade destes de adotarem
políticas públicas no enfrentamento de suas vulnerabilidades sociais. Porém, isso não
permite, nem nos autoriza, a imaginar que as questões de defesa, de segurança e os
ressentimentos históricos entre os países da região estejam superados. Longe disso!
Questões fronteiriças, por exemplo, ainda causam estremecimentos nas relações bilaterais
nos seguintes casos: entre o Chile e a Bolívia, como resquício da Guerra do Pacífico; entre
a Colômbia e a Venezuela, na definição dos limites da fronteira setentrional (Lago
Maracaibo, rico em hidrocarbonetos); entre esta última e a Guiana, na questão do
Essequibo; entre o Chile e o Peru, na delimitação do mar territorial; ou entre a Argentina
e a Inglaterra, na disputa das ilhas Malvinas (ou Falklands), só para mencionar os mais
conhecidos.
3Para o autor, “os esforços de ampliação de segurança de um Estado conduzem a maior insegurança de seu
vizinho” (HERZ, 1950).
Considerando os objetivos aqui propostos, trataremos do padrão de relacionamento
entre os Estados membros apenas nas três primeiras porções regionais4.
c) Andes: envolve uma subregião com fraca tradição integracionista, em boa medida
motivada pela permanência de desconfianças revelados nos últimos anos, como por
4 É no mínimo intrigante o tratamento dispensado pela nossa diplomacia – e dos demais vizinhos – a essa
porção setentrional da América do Sul. Genericamente tratadas como “Guianas” (inglesa, francesa e
holandesa, no caso do Suriname), ainda hoje permanecem isoladas do restante do subcontinente,
desconhecidas e largadas à própria sorte. Algumas razões podem ser aventadas para tanto, mas nada
justifica esse verdadeiro “apartheid” praticado pela chamada comunidade sul-americana. São vistos como
países de pouca expressão nos campos econômico, demográfico, cultural, de defesa e de segurança regional.
Dito de uma forma mais explícita: são países de uma categoria inferior, portanto, não merecedores da nossa
atenção. É ridícula a fragilidade dos argumentos utilizados para tentar explicar a permanência dessa
situação: a tardia conquista da independência; a barreira natural representada pela conjugação da inóspita
Floresta Amazônica e das altitudes do Planalto Guianense, o que representaria um obstáculo quase
intransponível, além da barreira cultural, tendo em vista que as línguas oficias não encontram semelhanças
com os demais países da região. O Brasil será alvo de estudo no último capítulo.
exemplo: Chile x Peru, Chile x Bolívia, Peru x Equador, Equador x Colômbia, Colômbia
x Venezuela.
Nos casos apresentados, parece haver, portanto, uma relação causal entre integração
e estabilidade regional. De uma forma geral, a irregularidade espacial do processo de
integração regional na América do Sul aponta para níveis de estabilidade/instabilidade
também espacialmente irregular. Enquanto o Cone-Sul apresenta considerável êxito, as
porções Amazônica e Andina apresentam níveis de integração bem mais modestos. É
exatamente nessas porções onde o processo de integração é mais escasso, que se
localizam áreas de potenciais conflitos territoriais, dentre as quais destacam-se as
fronteiras entre Chile, Peru e Bolívia (a situação mediterrânea da Bolívia constitui hoje a
maior ameaça latente de conflito territorial no subcontinente), as cercanias do lago
Maracaibo (Colômbia-Venezuela) e a região de Essequibo (Venezuela-Guiana).
Geopolítica da contenção
Inflexão geopolítica
O período entre o final da década de 1970 e início dos anos 1980 registrou uma série
de eventos que acabaram por constituir um ponto de inflexão nas relações geopolíticas
sul-americanas. Alguns desses eventos estão relacionados a iniciativas cooperativas
elaboradas pelo Brasil, ator central na região.
A geopolítica de cooperação
A partir de meados da década de 1980, tem início um novo momento nas relações
entre os países sul-americanos, fortemente marcado pela perspectiva cooperativa no
campo econômico e pela defesa da democracia no campo político. Essa tendência
cooperativa acabará por resultar na criação da UNASUL, como veremos na seção
seguinte.
4 O CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO
Até muito recentemente não havia uma política regional que contemplasse as questões
de defesa e segurança na América do Sul. As experiências de integração regional se
restringiam quase que exclusivamente a aspectos econômicos, tendo como carro-chefe a
ampliação do comércio regional. Diante do “vácuo de iniciativas” dos países sul-
americanos para implantação de uma política regional própria que contemplasse os temas
defesa e segurança, persistia na região a ideia de uma arquitetura hemisférica a partir de
iniciativas norte-americanas (VILLA, 2005, p. 177).
O início do século XXI, porém, registra uma série de acontecimentos6 que parecem
indicar na direção de uma arquitetura político-estratégica e que acabam por desaguar na
proposta de institucionalização de um arranjo propriamente sul-americano representado
pelo Conselho de Defesa Sul-americano. Tal postura parece romper com uma longa
tradição panamericana7, revestindo-se de um interessante ineditismo geopolítico na
América do Sul. De fato, desde a década de 1970, à medida que o Brasil procura se afastar
da esfera geopolítica norte-americana, percebe-se um movimento no sentido contrário -
de aproximação - especialmente em relação ao seu, até então, principal concorrente
regional: a Argentina.
6Dentre esses acontecimentos, cinco merecem destaque: a primeira reunião de presidentes da América do
Sul (Brasília-Brasil, setembro de 2000); declaração da América do Sul como Zona de Paz (Guayaquil-
Equador, julho de 2001); criação da Comunidade Sul-americana de Nações (Cuzco-Peru, dezembro de
2004); a primeira reunião de ministro de defesa da América do Sul (Bogotá-Colômbia, julho de 2006); e
aprovação do Conselho de Defesa Sul-americano (Bahia-Brasil, dezembro de 2008).
7Os arranjos multilaterais de defesa e segurança predominantes na segunda metade do Século XX entre os
países sul-americanos refletiam a presença hegemônica dos Estados Unidos no subcontinente e possuíam
caráter eminentemente panamericano (hemisférico).
iniciativas de combate a ameaças internacionais, como o narcotráfico” 8. Na ocasião,
após a reunião, o presidente venezuelano defendeu a ideia de que o projeto seria uma
espécie de ‘Otan do Sul’, com clara tendência anti-norte-americana.
8
Cf. Integração bélica ainda é uma proposta embrionária. Jornal O Estado de S. Paulo, 21 de janeiro de
2006.
9
Cf. Jobim quer plano de defesa para a América Latina. Jornal Zero Hora, 24 de outubro de 2007.
intercâmbio de informação para “identificar os fatores de risco e ameaça que possam
afetar a paz regional e mundial”, a “cooperação no âmbito da indústria de defesa”, “o
intercâmbio em matéria de formação e capacitação militar”, e o compartilhamento de
“experiências em operações de manutenção de paz das Nações Unidas”.
Se o modelo for o de segurança coletiva, entretanto, justo porque neste caso a região
deve ser entendida como uma comunidade política, a estratégia a ser adotada sugere
maior grau de integração, sugerindo, inclusive elementos de supranacionalidade. A
própria noção de ameaça comum como princípio fundante dos interesses compartilhados
constituiria o elemento motivacional da formação da identidade regional. Nos moldes
aqui expostos, a adoção do modelo de segurança coletiva provocaria uma alteração radical
na forma como a concepção estratégica de dissuasão tem sido empregada: se
tradicionalmente a dissuasão tem sido aplicada em termos regionais, com foco no entorno
de cada país, o modelo de segurança coletiva sugere pensá-la em termos “extra-
regionais”.
Diferentemente do modelo mais modesto de segurança cooperativa, que sugere
inclusive o desarmamento como solução para a segurança, a noção de segurança coletiva
tende a apontar em sentido contrário, onde a ideia de fortalecimento dos mecanismos de
defesa (reestruturação das Forças Armadas, revitalização ou desenvolvimento de uma
indústria bélica regional etc.) tende a ser invocada.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A América do Sul é uma região com dinâmicas muito particulares que envolvem,
concomitantemente, elementos de conflito e de cooperação. Enquanto algumas áreas são
marcadas pela instabilidade regional, não só no que diz respeito às antigas desconfianças
territoriais, mas a fortes vulnerabilidades sociais que colocam em risco a própria
manutenção do estado de direito, como é o caso de países andinos, outras porções do
subcontinente têm apresentado transformações radicais nas suas relações externas e
configuram candidatas à formação de uma comunidade de segurança pluralística, como é
o caso dos países do Cone Sul. O fato é que, não obstante a permanência de potencial
conflitivo, o subcontinente possui um conjunto de dados que o qualificam como uma das
regiões mais estáveis do mundo: possui gastos com defesa relativamente muito baixos, é
declarada uma zona livre de armas químicas e nucleares, não registra guerras
convencionais em seu território há quase um século. Tais características constituem
fatores favoráveis ao desenvolvimento de uma arquitetura regional de defesa e segurança,
como é o caso do Conselho de Defesa Sul-americano.
REFERÊNCIAS
HERZ, John. “Idealist Internationalism and the Security Dilemma”. In: World Politics, Vol. 2,Nr. 2, Janeiro
1950, pp.157-180.
MEDEIROS FILHO, Oscar. Cenários geopolíticos e emprego das Forças Armadas na América do Sul.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2005.
MIYAMOTO, Shiguenoli. Perspectivas do Estudo das Relações Internacionais no Brasil. Coleção
Primeira Versão, Nr 80. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1999.
RUSSELL, Roberto e TOKATLIAN, Juan Gabriel. El lugar de Brasil en la política exterior argentina.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003.
UNASUL (União de Nações Sul-Americanas). Decisão para o estabelecimento do Conselho de Defesa
Sul-americano. Cúpula Extraordinária da UNASUL. Costa do Sauípe, Bahia, 16 dezembro 2008.
VILLA, Rafael Duarte. “Os países andinos: tensões entre realidades domésticas e exigências externas”. In:
América Latina no início do século XXI, Gilberto Dupas, coordenador – Rio de Janeiro: Fundação Konrad
Adenauer, 2005, pp. 133 a 191.