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THEODOR W.

ADORNO (A Escola de Frankfurt e a Ideologia)


Jean-Marie Vincent

Na formulação que lhe confere Adorno, a teoria das ideologias da Escola


de Frankfurt se inscreve dentro da tradição marxista, mas numa tradição
marxista que assume conscientemente o que deve à filosofia clássica alemã.
Para Adorno, a crítica das ideologias é, inicialmente, crítica da divisão do
trabalho, ou seja, crítica da separação entre o espírito objetivo – a consciência
social – e suas condições de produção (tanto materiais como espirituais). Existe
falsa consciência, ideologia, porque o espírito humano não domina as condições
de sua própria realização, porque pretende se abstrair daquilo que lhe permite
se desenvolver e se afirmar tanto diante da natureza quanto na sociedade. A
ideologia não é eterna, ela não é uma característica insuperável das relações
humanas, mas uma resultante socialmente e historicamente situada nas
relações que se estabelecem entre os homens e seu ambiente. A ideologia que
conhece seu pleno desabrochar no curso da era burguesa não é propriamente
uma mentira, ela é muito mais uma mistura bastante específica do verdadeiro e
do falso, de aspirações universalistas e de interesses particularistas, de lucidez e
de ofuscamento. Nas afirmações ideológicas, na busca de justificações, há
sempre – segundo Adorno – a presença de uma nostalgia do bem, uma espécie
de homenagem que o vício presta à virtude. A falsa consciência burguesa não
pode prescindir de referências a uma sociedade liberada e renunciar a
condenações explícitas da opressão. É por isso que a crítica da ideologia não
pode ser inteiramente uma crítica externa, partindo de um ponto de vista
totalmente oposto daquele que é colocado em questão, mas deve essencialmente
surgir como uma crítica interna, como uma explicação rigorosa da distância que
separa o que está posto [postule] do que poderia ser [actualisé], a regra de sua
aplicação na prática. A crítica busca o que, no âmago das elaborações da
sociedade sobre si mesma e sobre a natureza, corresponde a um uso restritivo
da razão, a uma racionalidade que esquece de se interrogar sobre suas próprias
implicações e pressupostos. É assim que, aos olhos de Adorno, a crítica do
fetichismo da mercadoria que se encontra no livro I do Capital, só se torna
significativa se se tornar a pedra angular de uma crítica das trocas de
mercadorias como trocas aparentemente iguais, mas substancialmente
desiguais. A substituição das coisas às relações sociais na circulação de
mercadorias, o trajeto à valorização dos produtos do trabalho só se esclarece
verdadeiramente se se relacionar ao universalismo abstrato das normas
burguesas e ao particularismo mascarado dos valores os quais se sacrifica no
cotidiano. Em outras palavras, a crítica da ideologia não é somente uma crítica
dos limites sociais do conhecimento, ela relaciona constantemente os domínios
do cognitivo e do normativo para fazer sair as interdependências que os
marcam.
Portanto, não é preciso se surpreender se Adorno (depois de
Horkheimer) rejeita categoricamente as teorias da ideologia que podem ser
encontradas em Weber, Pareto e Mannheim. Na verdade, ele os reprova de
pretender a neutralidade axiológica para recair depois no relativismo dos pontos
de vista, ignorando com isso a necessária dialética do singular, do particular e
do universal, do cognitivo e do normativo. Adorno certamente escreveu em
Minima Moralia que o todo é falso e condenou com isso uma certa forma de
pensamento da totalidade que, na esteira de Hegel, postula um saber total da
sociedade. Mas se ele recusa a hipóstase do saber totalizador, ele não exclui
absolutamente uma teoria crítica da sociedade como totalidade negativa, como
hipóstase real que se volta contra os indivíduos e os impõe uma universalidade
abstrata e bastante reducionista. O pensamento dialético, este que se desprende
da ideologia, é precisamente aquele que recusa a se deixar tomar pelas
abstrações atemporais e trans-históricas que apenas se limitam a cobrir as
relações sociais e ocultam sua especificidade. Decerto, o pensamento dialético
não pode fornecer a chave da individualidade ou da sociabilidade e dizer aquilo
que é ou o que deve ser no melhor dos mundos, mas ele pode mostrar tudo o
que há de intolerável e inaceitável naquilo que parece ser óbvio do ponto de
vista das opiniões dominantes. Ele é o pensamento que põe em questão a
pretensão da razão em dominar o real por suas próprias virtudes, sem mais se
interrogar sobre seus automatismos e sobre seu modo de funcionamento. Ele é o
pensamento que não se detém respeitosamente diante da ciência e das
metodologias científicas com suas ambições universalistas.
Para Adorno, a formalização científica enquanto purificação da
linguagem não pode ser considerada inocente. Ela não só estabelece vínculos
entre as proposições, mas também é uma relação entre homens e seu ambiente,
uma extensão cognitiva da relação social de produção. Portanto, ela não saberia
escapar à crítica da ideologia, muito menos servir de critério de demarcação
entre o ideológico e o não ideológico. Em verdade, ela é trespassada de ideologia
na medida que as diferentes racionalidades regionais que se exprimem nas
disciplinas científicas são totalmente unilaterais e, no entanto, elas se negam
enquanto tais. As linguagens científicas destacam um absolutismo lógico que
privilegia as relações instrumentais e valoriza o ambiente social e natural em
detrimento às outras relações reais ou potenciais (lúdicas, estéticas, etc.). A
lógica, assim como as ciências, baseiam-se sobre uma concepção restritiva da
experiência e se submetem a uma lógica mais geral de dominação e identificação
(negação do não-idêntico à conceituação) que, por sua vez, remete para a
produção e à troca dos valores das mercadorias. O racionalismo das ciências é
um racionalismo estreito, ele próprio ligado a um desenvolvimento
incontrolável das forças produtivas e das tecnologias que elas põem em marcha.
Além disso, segundo Adorno, a sociedade é recoberta por uma espécie
de véu tecnológico. Os automatismos da técnica, de uma técnica que serve à
dominação e à valorização, impõem-se às relações sociais e interindividuais
como uma forma de imperativo categórico, jogando com os efeitos de
amplificação e aprofundamento que resultam no domínio do mundo ao redor.
A dominação do homem sobre a natureza assim como a dominação do homem
sobre o homem se apresenta em suas manifestações mais aparentes e mais
quotidianas conforme os desenvolvimentos da lógica tecnológica, como o
domínio de uma segunda natureza à qual se deve obedecer a menos que
aceitemos enormes regressões na organização da vida e da sociedade. Além do
mais, acrescentam-se aos constrangimentos das trocas de mercadorias,
constrangimentos de uma administração de planejamento (planende
Verwaltung) dos dados da vida social para um capitalismo cada vez mais
organizado. A passagem da “livre concorrência” para a concorrência oligopolista
e a intervenção extensiva do Estado fizeram pouco a pouco desaparecer as
contradições econômicas e também colocaram em inércia a dialética das forças
produtivas e das relações de produção. A sociedade parece se fechar sobre si
mesma e se tornar cada vez mais onerosa para os indivíduos através de sua
exterioridade todo-poderosa. Isso é particularmente sensível no domínio da
cultura em que a mercantilização e a monopolização industrial dos meios do
saber e da comunicação (cf. a expansão da indústria cultural) transformam os
indivíduos em consumidores passivos de uma pseudocultura de massa,
enquanto os descartam de suas trocas simbólicas. O social se torna uma
alucinação e ao mesmo tempo uma estrutura cega
(Verblendungszusammenhang) em que expira a dialética do singular, do
particular e do universal. A luta de classes institucionalizada e corporatizada
[corporatisée] não tem mais nenhum escopo subversivo, enquanto os
indivíduos reduzidos ao estado de reflexão do universal abstrato (a falsa
totalidade social) não são mais que exemplares, sombras mutiladas de si
próprios. Como se refere Adorno, não há mais sequer uma ideologia no sentido
de que a afirmação ideológica contém tradicionalmente uma relação oculta com
o bem social, pois o que a faz funcionar hoje é a produção científica do
confinamento cultural. A verdade não se encontra mais na efetividade das
relações sociais imediatas; ela torna-se esotérica, inacessível e, em suma, a-
social. O auge da ideologia se manifesta como negação da ideologia e dos
mecanismos complexos, que ela coloca em ação para produzir a ilusão
necessária. Não é mais necessário se enganar e se justificar pelos meandros para
os quais nos deixamos arrastar, porque a vida cultural não é mais que pura
redundância, repetição infinita das estruturas sociais, reviravolta ininterrupta
das ocorrências sociais, cujo significado não é mais necessário questionar. A
cultura não é mais que pura reprodução da existência e da sociedade tal qual ela
é, tal qual ela nega seu ser outro.
É necessário dizer? Esse desaparecimento-relegação, num suposto
nada, do não-idêntico é, para Adorno, a demonstração irrefutável da crise da
sociedade burguesa. Ao negar por todos os mecanismos da socialização
dependente a individualidade que a trouxe nas fontes batismais, esta última
nega-se a si própria, impele ao absurdo a sua própria lógica da equivalência e do
nivelamento. Ela torna impossível a ação coletiva ou mais exatamente a
transforma em uma série de reações regressivas, de identificações com o poder e
mais particularmente com o poder enquanto agressor. A rigor, não há mais
práxis, construção social do sentido, superação transindividual da existência,
mas sim estagnação prolongada, precipitação cega em um mundo labiríntico,
sucessão de movimentos cujas orientações estão em trompe-l’oeil1. A
1
Trata-se de uma técnica artística cujo objetivo é enganar o observador através de uma ilusão
ótica.
massificação da sociedade torna derrisória toda tentativa coletiva para sair do
quadro da reprodução social compulsiva: os indivíduos só se reúnem e se
encontram de forma gregária no que tem de mutilado, de redutível aos modos
sociais e aos entusiasmos mais destrutivos. No limite, não há prática mais
autêntica senão como prática teórica, isolada, até mesmo desesperadamente
solitária. Como afirma paradoxalmente Adorno, o indivíduo só se retira da água
pelos cabelos renunciando a tudo o que aparentemente lhe fornece um ponto de
apoio na sociedade, repudiando obstinadamente qualquer busca social de
salvação. O sujeito tornou-se uma mentira, mas o indivíduo sobrevive em tudo o
que faz que não coincida com o que é e acredita ser, com suas próprias
representações como com os papeis que ele assume, no que é decalagem,
distância em relação ao excesso, a positividade do mundo e da ação. A crítica da
ideologia, no sentido tradicional do termo, com todas as suas preocupações
descobertas de um bem subjacente, deve de fato dar lugar a teorização negativa,
a desconstrução de tudo que subjaz teoricamente aos arranjos sociais e aos
questionamentos de todos os dispositivos de uma razão satisfeita com ela
mesma.
Esses processos de autodestruição das ilusões da ratio não garantem
nada por si mesmos, eles somente abrem o caminho para o reconhecimento do
objetivo (o que não pode ser reduzido pelo pensamento), em respeito ao não-
idêntico, do que ultrapassa um mundo de representações fixas e relações
ossificadas. Nesse sentido, não é possível produzir imagens de um outro mundo
com os materiais que manipulam comumente os homens e que se trata
precisamente de decompor ou de dissolver. Toda possibilidade de uma negação
determinada do estado de coisas existente, para retomar a terminologia
hegeliana, não é, no entanto, descartada. Na prática artística, o homem mal
socializado de hoje (ou o individuo inadaptado) pode encontrar os meios de
retornar contra a sociedade o que ela coloca à sua disposição, indo além do
mero protesto. Ultrapassando sua própria subjetividade para se submeter as leis
imanentes de uma obra de arte que escapa da reprodução social, desfazendo
pelo seu próprio fazer o que se faz sem ver o mal, o artista utiliza o surgimento
das forças produtivas para fins que transcendem todas as finalidades,
socialmente legitimas ou lícitas. A obra de arte, quando renuncia ser a criação
de um demiurgo, isto é, uma aquisição mítica, inverte as relações entre natureza
e cultura, mais precisamente ela liberta a natureza de uma cultura dominadora,
bem como afrouxa o domínio de uma segunda natureza tecnológica que reflete a
primeira tão maltratada sobre a cultura. A abertura da arte, sem dúvida, não
está assegurada, a cada passo ladeia o precipício, ou seja, recai na fabricação,
nos automatismos das relações sociais de produção e de troca, mas basta que ali
tenha virtualidades de (des)fetichização do mundo para que a atividade estética
seja justificada. A arte está ameaçada de morte em seus modos de produção e de
recepção, mas é nesta ameaça que retira sua força subversiva, sua tensão
desesperada para o que não é o dado ou um outro mundo domesticado. Há
inegavelmente um elitismo na arte, uma dependência desta em relação às
desigualdades sociais e a repartição desigual das oportunidades para escapar da
indústria cultural; há também uma impossibilidade em querer considerar sua
difusão massiva em uma perspectiva pedagógica. Isto não impede que seu
objetivo não seja o gozo aristocrático, a satisfação e o deleite de poucos: a arte
autêntica não aceita nada do que existe, nem relações sociais, nem relações com
o meio sociocultural, nem opressão e exploração, nem a dilapidação-absorção
da natureza.
A teoria de Adorno sobre a ideologia, ou melhor, sobre o confinamento
na ideologia-duplicadora das relações sociais conduz, como se vê, à aporias.
Parece que é fácil sacudir o peso morto da ideologia, uma vez que esta
renunciou qualquer pretensão em dizer a verdade (para decifrar os possíveis
significados do mundo) e isto apesar de suas proclamações mais estrondosas,
para se agarrar nas relações abertamente funcionais com a existência social.
Mas ao mesmo tempo, o poder da ideologia se encontra multiplicado ao infinito
na medida em que ele não é mais confrontado com o desejo lancinante do bem e
da verdade nos estratos decisivos da sociedade. Bastaria um gesto para levantar
o véu tecno-ideológico, mas a mão que poderia o fazer está paralisada como se
não tivesse vontade. Os homens são dominados em rede por uma mitologia da
eficiência e, fascinados pelos automatismos que produziram e que, por sua vez,
os produzem. Tudo o que resta então, é esperar sem esperança, aguardar sem
justificativa o dia indeterminado no qual a humanidade se despertará de seu
sono hipnótico. Resta dizer que o pior não é sempre certo e que o confinamento
definitivo na razão mistificada é uma utopia negativa que há poucas hipóteses
de nunca se realizar totalmente. É sem dúvidas o que autoriza o discurso
adorniano a se refugiar no presente em uma filosofia da história como
regressão, mas a chamar para uma inesperada autocrítica da razão. Para a teoria
das ideologias abandona o domínio da sociologia para entrar no da dialética
negativa e talvez no da teologia negativa, ou seja, de uma reflexão sobre o
caráter inaceitável do sofrimento humano.

Texto original: http://jeanmarievincent.free.fr/spip.php?article58

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