Você está na página 1de 5

NOTÍCIAS 

            Resgate – História e Arte  

 
 

Hoje, 25 de fevereiro, realiza‐se evento na cidade de Itu/SP em que se comemora a data 
de falecimento de Mário de Andrade1, idealizador do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico 
Nacional. A Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de Itu abre, às 19:30 horas, a Casa de 
Cultura,  situada  na  praça  principal  da  cidade,  para  revelar  os  Tesouros  da  Matriz  de  Itu  – 
mostra de fragmentos de uma pintura parietal que restaram em algumas pranchas que serviram 
de suporte a um painel de fins do século XVIII ou início do XIX, descobertos nas dependências 
da Matriz de Itu, em área próxima à torre da igreja. Mesmo fragmentada e de recomposição 
parcial somente, as características da pintura são suficientes para que seja atribuída ao mulato 
Jesuíno Francisco de Paula Gusmão, mais conhecido pelo nome que adotou após a viuvez ao se 
tornar sacerdote: Padre Jesuíno do Monte Carmelo, pintor cuja obra foi analisada por Mário de 
Andrade em vasto estudo concluído pouco antes de falecer em 1945 e divulgado no mesmo ano 
na Publicação Nº 14 do órgão federal de preservação. Esses fragmentos vem se somar a outras 
pinturas localizadas mais recentemente em S. Paulo, cujas características também denunciam a 
mão dessa figura singular da história da Arte Colonial paulista. E mais importante: apresentam‐
se tal como foram criadas, sem terem sofrido nenhuma intervenção posterior, em seu estado 
original. Constituem por essa razão matéria‐prima de excepcional importância para a análise da 
obra  pictórica  de  Jesuíno  visto  permitirem  a  visualização  perfeita  da  técnica  compositiva  do 
pintor  na  elaboração  dos  personagens  bíblicos  representados,  ao  menos  nos  detalhes  que 
restaram: mãos, pés e especialmente de seus rostos.  

                


 

Quem primeiro se apercebeu da sua existência foi o maestro e professor Luís Roberto 
de Francisco quando em uma de suas constantes visitas à igreja; reparou que algumas tábuas 
que serviam de anteparo à escadaria que conduz à torre começavam a revelar sinais de pintura 
antiga sob a camada de cal que as revestiam.  

Aproveitando  a  presença  de  Julio  Moraes  que  orienta  sua  equipe  nos  trabalhos  de 
restauro em desenvolvimento na Matriz, este tão logo botou os olhos experientes e as mãos 
calejadas de profissional atuante já com quatro décadas de atividades profissionais, recrutou 
um de seus técnicos para retirá‐las da escadaria e cuidar de remover a cal, dando início a uma 

                                                            
1
 A data foi sugerida por nós a Sra. Allie Marie Queiroz, Secretária de Cultura da Prefeitura Municipal de Itu, em reunião preparatória 
para  o  evento  realizada  na  Matriz  no  início  deste  ano  e  acolhida  de  imediato  por  todos  os  organizadores,  sabedores  do  papel 
representado por Mário de Andrade na implantação da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil como também a 
importância dos estudos por ele efetuados sobre a obra pictórica de Padre Jesuíno do Monte Carmelo, em especial das pinturas que 
realizou nas igrejas ituanas. 


 
NOTÍCIAS             Resgate – História e Arte  

 
cuidadosa limpeza que foi revelando pouco a pouco trechos de uma pintura original que todavia 
permaneceu intacta, sem outra intervenção senão a cal que a recobria, escondendo todavia o 
uso que lhe foi atribuído provavelmente à época da reforma de seu frontispício da igreja quando 
adquiriu feição inteiramente em desacordo com o seu maravilhoso acervo artístico colonial de 
seu grandioso interior.  As perfurações dos pregos utilizados contudo ainda podem ser vistas nas 
pranchas  que  restaram  do  painel  primitivo  quando  de  sua  fixação  à  escada,  e  é  bom  que  o 
público as tenha percebido pois servem para denunciar o desonrado e mesmo abominável uso 
que se lhes atribuíram em completo desrespeito a função devocional originária.  

As pinturas, apesar de consistirem trechos apenas e descontínuos do antigo painel do 
período colonial todavia deixam entrever fragmentos de cenas que bem poderiam representar 
a  Crucificação  de  Cristo,  ou  a  Deposição  ou  Descimento  de  Cristo  da  Cruz  ou  ainda  a 
Lamentação – episódios que se sucedem na iconografia sobre da Paixão de Cristo. As presenças 
de Maria Madalena, logo reconhecida pelo professor e maestro Luís Roberto de Francisco, bem 
como de Maria e José de Arimatéia, em conformidade às representações conhecidas dos artistas 
europeus desde o Renascimento e que serviam de inspiração aos nossos artistas, não deixam 
dúvida tratar‐se de representação de uma dessas cenas entre a crucificação e morte de Jesus e 
seu  sepultamento.  Lamentavelmente  o  número  das  pranchas  que  restaram  da  composição 
original não são suficientes para que os analistas recomponham a totalidade da cena, impedindo 
desse  modo  a  identificação  definitiva  de  qual  das  cenas  que  aventamos  estava  nelas 
representada.  

As  pranchas  de  madeira  entretanto  conservaram  intactas  essas  partes  do  primitivo 
painel, sem outras intervenções senão finas camadas de cal, aplicadas de certo para esconder o 
uso inadequado das mesmas (algumas serviam de parapeito às escadas que conduzem ao alto 
da torre) e que o encobriram tenuamente até começarem a dissolver com o passar do tempo, 
desfazendo‐se em pó, tornando possível o natural ressurgimento desses fragmentos da pintura 
original. Porém não há crime ou pecado que não deixe rastros!   

E valiosos porque logo surgiu uma certeza, derivada da convicção por parte de quem 
vem ganhando grande intimidade com a maneira como essas pinturas, mesmo fragmentárias, 
foram  executadas  pelo  autor  já  muito  conhecido  pelos  experts  das  técnicas  do  restauro, 
experiência acumulada de outras obras que realizaram para o IPHAN de São Paulo. Por ocasião 
dessas descobertas, quando fui convocado a colaborar pelo restaurador Julio Moraes, que nos 
informava  a  respeito  dos  trabalhos  que  sua  equipe  desenvolvera  até  então  na  igreja  Matriz, 
exclamava: 

Estou extremamente animado com este projeto, e sobretudo agora que incluímos o 
forro achado na Candelária. Aliás, não paramos mais de achar partes dele, e provas de 
que realmente era sob o coro até ... [vir a ser destruído]  para fazer aquela fachada 
made inexpressive.  

E dava o seu veredito a respeito de sua autoria:  

E por mim está 99% certo de que seja Jesuíno e, fato raríssimo, intocado por outros 
pincéis depois dos dele. 

Não temos por que duvidar. Ao contrário, todos nós, eu inclusive juntamente com os 
técnicos já bastante familiarizados com a Pintura de Jesuíno, afora os conhecimentos inegáveis 
que  Luís  Roberto  reuniu  sobre  o  pintor  e  músico  mulato  ao  longo  de  seus  estudos,  não  nos 


 
NOTÍCIAS             Resgate – História e Arte  

 
restava  dúvida  sobre  a  autoria  logo  apontada  por  Julio  Moraes.    E  antes  de  voltarmos  ao 
principal,  não  posso  deixar  passar  sem  uma  rápida  consideração  àquilo  que  Julio  chamava  a 
nossa atenção, quer seja, à fachada made inexpressive com toda a razão pois que, no momento 
mesmo em que o famoso arquiteto substituía à de 1780, já com a torre de 1831, por aquela 
importada,  sem  laço  nenhum  com  a  realidade  em  que  foi  inserida,  desvinculada  de  valor 
histórico nacional e que permanece até hoje, o ilustre profissional não só ignorava o passado da 
cidade, adulterando o seu mais rico monumento, mas feria também a realidade presente, de 
mais  recente  constituição  e  que  a  cercava    toda  em  volta  e  à  sua  frente,  especialmente  os 
casarões da praça que souberam conviver harmoniosamente com a majestosa arquitetura da 
matriz, sabendo dialogar com ela a despeito de ter incorporado adereços novos, próprios de seu 
período, que expressavam o gosto e o refinamento do período cafezista (como diria Luís Saia), 
mas ainda respeitosos e construídos em escala compatível ao cenário urbano então presente. 
Pena  que  o  Serviço  do  PHAN,  no  momento  em  que  reconheceu  a  importância  da  Matriz 
cuidando de inscrevê‐la no Livro de Tombo de Belas Artes em função de seu acervo artístico 
interior não tenha dado, como fez com outros monumentos paulistas logo nos primeiros anos 
de  atividade,  ainda  no  final  dos  anos  1930  e  início  dos  40,  a  mesma  atenção  à  sua  antiga 
arquitetura, resgatando‐a como convinha. Quem sabe, com o restauro de seu acervo interior 
agora  em  desenvolvimento  não  se  incitem  as  inteligências  a  produzirem  os  argumentos  que 
deixaram de ser feitos na época oportuna e deem ensejo a reiteração de pedidos em prol da 
reconstituição de seu antigo frontispício.  

Volto porém à descoberta das pranchas. Dada a importância de suas pinturas, mesmo 
que apenas fragmentárias, seu bom estado de conservação no entanto aconselhava medidas de 
segurança imediatas. Além de manter em sigilo a descoberta, cuidamos de dificultar o máximo 
possível o acesso às pranchas, pois entendemos que há sempre o risco de furto, aleatório ou 
encomendado por colecionadores e traficantes de obras de Arte, ainda mais por se tratar de 
pedaços de tábua de fácil remoção. (Ainda recentemente foi possível reavermos, graças a uma 
denúncia e com a ação da Polícia Federal, a imagem setecentista de Nossa Senhora do Rosário, 
furtada  da  Capela  de  Santo  Antonio  fundada  pelo  Capitão  Fernão  Paes  de  Barros  em  1681, 
depois de permanecer sumida em mãos de terceiros indevidamente por mais de três décadas). 
No âmbito do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cuidou‐se imediatamente 
da sua catalogação, serviço realizado prontamente por Huydes Cunha, técnico conservador da 
Superintendência  de  São  Paulo,  dando  o  primeiro  passo  às  medidas  acautelatórias  que 
conduzem à sua proteção definitiva pelo órgão federal de preservação.   

Uma questão permanece porém em aberto. Em que local da igreja localizava‐se esse 
painel que atribuímos a Jesuíno? Julio Moraes, como se viu, logo pensou no forro do Coro da 
Matriz;  é  uma  hipótese  entre  outras.  Uma  vez  que  agora  se  desvela  por  inteiro  a  decoração 
pictórica da capela‐mor da Matriz, inclusive as pinturas da camarinha do retábulo mor, onde já 
podemos contemplar inúmeros anjinhos e querubins a circularem pelo alto e por todos os lados 
o  trono  do  altar  em  que  figura  a  imagem  de  Nossa  Senhora  da  Candelária  (seriam  anjos 
jesuínicos também? – a mim me parecem mais próprios de José Patrício da Silva Manso), não 
resta nela mais espaço possível que se possa imaginar para esse “novo” painel de Jesuíno. Assim, 
se não for no Coro, aonde terá sido instalado à época de sua criação. No forro de alguma outra 
dependência da igreja? Lembremos aqui rapidamente a pintura de uma capela lateral da antiga 
Matriz, depois transmudada em igreja do Senhor Bom Jesus, aonde se encontra outra pintura 
de Jesuíno, numa representação em tudo igual, embora de menor dimensão, à que faturou no 


 
NOTÍCIAS             Resgate – História e Arte  

 
forro  da  nave  da  Ordem  Terceira  do  Carmo  da  cidade  de  S.  Paulo,  também  recentemente 
resgatada.  Na  mesma  Bom  Jesus,  outra  pintura  em  tela  pequena  contém  todos  os  atributos 
próprios  de  Jesuíno  também.  Há  ainda  a  conjecturar  hipótese  que  mais  me  cativa  desses 
fragmentos constituírem parte de um dos painéis que a literatura histórica informa decoravam 
as paredes laterais da capela‐mor não desta igreja Matriz mas da igreja de Nossa Senhora do 
Carmo,  cuja  autoria  é  igualmente  atribuída  a  Jesuíno  mas  que,  atacada  posteriormente  por 
cupins, destruiu‐se, e foram removidos. Seriam então restos dessa decoração carmelita? Bem 
que procuramos por mais pranchas nas dependências carmelitanas sem porém nada encontrar, 
infelizmente. 

Mas é tamanha a quantidade de pinturas2, ou de partes que restaram de pinturas que 
hoje podemos atribuir a Jesuíno que o próprio Julio começa a pensar na impossibilidade dele ter 
dado conta, sozinho, de todas elas e se vê propenso a imaginar uma escola – ou seja, Jesuíno 
terá formado uma equipe de profissionais da Pintura que passou a trabalhar com e para ele. Ou 
ainda,  depois  de  por  ele  formados,  constituírem  em  seguidores  de  seu  estilo,  de  modo  a 
continuarem  sua  obra,  tanto  em  Itu  como  alhures.  A  dificuldade  é  provar  essas  instigantes 
hipóteses; documenta‐las.  

Se  já  é  difícil  provar  relações  de  cooperação  entre  artífices  como  as  imaginadas  por 
Mário  de  Andrade  entre  José  Patrício  da  Silva  Manso  e  Jesuíno  Francisco  de  Paula  Gusmão, 
mesmo valendo‐se de sua inegável  capacidade analítica ao estudar em pormenores as obras 
desses  dois  afamados  pintores  coloniais  –  razão  porque  ninguém  ousou  contestá‐lo 
abertamente – a mesma ou maior dificuldade temos em comprovar hipóteses como essa, por 
mais sedutora que se nos apresente. Porém, e com menor competência, arriscamos estender 
tal  hipótese  –  a  da  cooperação  –,  com  base  em  uns  poucos  documentos,  a  figuras  mais 
recentemente descobertas que atuaram pelas plagas ituanas à mesma época e também junto a 
José Patrício e a Jesuíno – como o escultor Bartholomeu Teixeira (que nos chegou para substituir 
o lendário Guilherme que a literatura histórica atribuía a autoria do retábulo‐mor da Matriz) e o 
“desenhista‐pintor”  Mathias  Teixeira  da  Silva  que  se  fez  presente  no  mesmo  ano  que  esses 
grandes artífices trabalhavam na Matriz, sob a direção do Padre João Leite, outra importante 
figura na História das Artes Sacras da Itu Colonial. Embora atraente a hipótese dessa cooperação 
e  congraçamento  entre  artífices,  sou  forçado  a  admitir  que  não  passa  de  simples  conjectura 
ainda  e  que  há  pouca  esperança  de  comprovação  empírica  face  a  quase  absoluta  falta  de 
documentos afins. 

Mas  a  notícia  é  alvissareira.  Tratam‐se  de  restos  de  um  painel,  pois  mesmo  que 
constituam apenas partes dele, conservaram‐se (a limpeza da cal revelou) sem retoque algum, 
íntegros em sua fragmentação, e as cores ainda puras dão vida às delicadas faces de Madalena 
e de José de Arimatéia, figuras que mais do que expressarem dor e sofrimento, transmitem antes 
paz, resignação e suavidade, e são belas, jesuinamente belas. 

E é de esperança que mais estamos precisando agora, especialmente quando tratamos 
de  resgatar  e  valorar  as  obras  desse  mulato  pintor  (E  também  músico,  compositor‐
instrumentista‐cantor,  não  nos  deixam  esquecer  os  amigos  Duprat  e  Luís  Roberto.  Aliás  qual 
seria o tom da voz de Jesuíno? Tenor, Barítono ou Baixo?). Pois o que se poderá acrescentar ao 
conhecimento já existente sobre as pinturas de Jesuíno (e esse conhecido devemos, é sempre 
                                                            
2
 Há no Museu de Arte Sacra de São Paulo uma tela que parece ser originária do antigo Convento das 
Irmãs Carmelitas, atribuível igualmente a Jesuíno. 


 
NOTÍCIAS             Resgate – História e Arte  

 
bom lembrar, sobre tudo a Mário de Andrade) haveremos de obter por intermédio desse serviço 
especializado – o restauro artístico – que inexistia quando da Publicação N. 14 do Serviço do 
Patrimônio  Histórico  e  Artístico  Nacional,  e  através  do  qual  se  poderá  recuperar  as  pinturas 
originais ou o que delas sobrevive sob as repinturas posteriores. Foi o que dissemos em palestra 
na igreja de Nossa Senhora do Carmo, dia 6 de novembro p. p., reproduzida agora no primeiro 
volume dos  Cadernos do Patrimônio de Itu  –  outra iniciativa da Secretaria de Cultura da 
Prefeitura  de  Itu  que  o  IPHAN/SP  apoia  como  tem  apoiado,  por  meio  de  seus  técnicos,  os 
serviços  ora  em  curso  na  igreja  de  Nossa  Senhora  da  Candelária  que  conta  com  recursos  da 
própria  Prefeitura  e  do  Banco  Nacional  de  Desenvolvimento  Econômico  e  Social,  e  que, 
conforme  previsão  otimista,  só  serão  encerrados  –  caso  não  ocorram  mais  descobertas  que 
forcem a empresa a estender por maior tempo os trabalhos de restauro – no ano vindouro de 
2016.  

                25 de fevereiro de 2015  
                Carlos Gutierrez Cerqueira 
 


 

Você também pode gostar