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Capitulo IT A MEMORIA COLETIVA E 0 TEMPO A divisio social do tempo © tempo faz geralmente pesar sobre nés um forte constrangi- mento, seja porque consideramos muito longo um tempo curto, ainda ‘quando nos impacientamos, ou nos aborrecemos, ou tinhamos pressa de ter acabado uma tarefa ingrata, de ter pessado por alguma prova fisica ou moral; seja porque, ao contrério, nos pareca muito curto um perfodo relativamente longo, quando nos sentimos apressados e pres- sionados, quer se trate de um trabalho, de um prazer, ou simplesmen- te da passagem da inféincia a velhice, do nascimento a morte. Gosta- riamos que ora o tempo corresse mais répido, ora que se arrastasse ou se imobilizasse. Se, entretanto, nés devemos nos resignar, € sem divida, em primeiro lugar, porque a sucesso do tempo, sua rapidez seu ritmo, ¢ apenas a ordem necesséria segundo a qual se encadeiam os fenémenox da natureza material e da organisma. Mas & também, e talvez sobretudo, porque as divisies do tempo, a duracéo das par- tes assim fixadas, resultam de convengGes € costumes, € porque ex- primem também a ordem, inelutével, segundo a qual se sucedem as diversas etapas da vida social. Durkheim no deixou de observar que ‘um individuo isolado poderia, a rigor, ignorar o tempo que se esvai, ‘¢ se achar incapaz de medir a durago, mas que a vida em sociedade implica que todos homens se ajustem aos tempos ¢ as duragies, € conhecam bem as convengées das quais so 0 objeto. E por isso que existe uma representago coletiva do tempo; ela se harmoniza sem diivida com os grandes fatos de astronomia e de fisica terrestre, po- rém a estes quadros gerais, a sociedade sobrepde outros que se ajus- tam sobretudo as condigdes e grupos humanos concretos. Pode-se mesmo dizer: as datas € as divisdes astronémicas do tempo estio en- cobertas pelas divisdes sociais de tal maneira que elas desaparecem progressivamente e que a natureza deixa cada vez mais & sociedade © encargo de organizar a duragio, 90 No mais, que as divisSes do tempo sejam estas ou aquelas, os homens a elas se acomodam muito bem, jé que so geralmente tra- dicionais e, como cada ano, cada dia se apresenta com a mesma es trutura temporal que as anteriores, como se fossem todas frutas produ- zidas pela mesma érvore. Nao podemos nos lamentar por sermos de- sorganizados em nossos hébitos. A dificuldade que experimentamos € de outra natureza. Bem primeiro lugar a uniformidade que nos pesa. © tempo esté dividido da mesma maneira para todos os grupos fe membros da sociedade. Ora, pode nos ser desagradével que todos 1s domingos a cidade fique com um ar de ociosidade, que as ruas se esvaziem ou se vejam repletas de um péblico nao habitual, que o cespetéculo de fora nos induza a fazer nada ou a nos distrairmos ainda {que estejamos com vontade de trabelhar. E para protestar contra essa lei comum que muitas pessoas, do centro, dos bairros, fazem da noite © dia ou que aqueles que podem, vio procurar 0 calor do sul no auge do inverno? Sem divida, a necessidade de se diferenciar dos | outros quanto ao modo de dividir e regular seu tempo aconteceria com mais freqiiéncia se, no que diz respeito as nossas ocupagées € distra- ges, nio {9ssemos obrigados a nos sujeitarmos & disciplina social. Se eu quiser ir ao meu escrit6rio, nfo posso fazé-lo no momento em & que o trabalho esté suspenso, quando os empregados nio mais ali se } encontram. A divisdo do trabalho social prende 0 conjunto dos ho- © mens a um mesmo encadeamento'mectnico de atividades: quanto {mais ela avanga, mais nos obriga a ser exatos. E preciso que eu che- | gue na hora, se quiser assistir a um concerto, a uma pega de teatro, nio fazer esperar os convidados do jantar para o qual sou convidado, no perder o trem. Sou entio obrigado a regular minhas atividades conforme 0 caminhar dos ponteiros de um rel6gio, ou conforme 0 ritmo adotado pelos outros e que ndo levam em conta minhas prefe- réncias, ser avaro com 0 meu tempo, e nunca perdé-lo, porque com- prometeria assim algumas oportunidades e vantagens que me oferece a vida enf sociedade. Mas o que hé talvez, de mais penoso, é que me sinto forcado, perpetuamente, a considerar a vida ¢ os aconteci- mentos que a preenchem sob o aspecto da medida, Néo & somente porque eu reflita angustiadamente sobre a idade que tenho, expressa fem nimero de. anos, e também em ndmero de anos que me resta, como se a vida fosse uma pégina branca dividida em partes iguais 4 com tantas linhas —, como se, antes, os anos que tenho diante de mim diminuissem ¢ se contrafssem, porque cada um representa uma proporgio cada vez menor do tempo decorrido que aumenta. Mas de ot tanto medir 0 tempo, de modo a preenché-lo bem, chegamos a ndo saber mais o que fazer desses pedacos de duragio que no se deixam mais dividir da mesma maneira, porque se € abandonado a si préprio, se é retirado qualquer jeito da corrente da vida social exterior. Po- deriam ser outros tantos ofsis, onde, precisamente, esquece-se 0 tem- po, mas onde, em contrapartida, nos encontramos. Ao contririo, so- ‘mos sensiveis para aquilo que so intervalos vazios, e o problema é saber entéo como passar o tempo. Tanto € verdade que a sociedade, obrigando-nos a medir sem parar a vida A sua maneira, nos toma cada vez mais inaptos para fazé-lo da nossa. Sem divida, para alguns, € verdade que o tempo perdido € aquele que se lamenta menos (ou, em outro sentido, que se lamenta mais) mas, estes so excegées. ‘A Duragéo Pura (Individual) ¢ © “Tempo Comum” Segundo Bergson Se existe um tempo social do qual as divisées se impdem assim as consciéncias individuais, de onde ele mesmo retira sua origem? Diz- se que era possivel distinguir o tempo ou a duragao ela mesma e suas divisdes. Mais precisamente, todo o ser dotado de consciéncia teria © sentimento da duracao, jé que nele se sucedem estados diferentes. A duraclo nfo seria nada mais do que a seqiiéncia desses estados, a corrente que parece passar através deles, abaixo deles, soerguendo lum apés o outro. Cada homem, nesse sentido, teria sua propria dura- so, ¢ isto seria mesmo um desses dados primitivos da consciéncia, que conecemos diretamente, € do qual € necessério somente que nogdo penetre em nés de fora. Seria até possivel, jé que esses estados sio distintos, perceber dentro’ desta seqineia divisées naturais, cor- respondentes & passagem de um estado para outro, de uma série con- ‘inua de estados semelhantes a uma outra seqincia de estados igual- ‘mente anélogos. Além do mais, jé que percebemos os objetos exterio- res, como hé na natureza muitos retornos regulares, a sucessio dos dias, a sucessio dos passos que demarcam nossa caminhada etc., um individuo isolado seria capaz, por suas prOprias forcas ¢ a partir dos cia, de atingir a nogéo de um tempo Porém em torno de alguns objetos nosso pensamento se encon- tra também com o dos outros; é, em todo 0 caso, no espago que imagino a existéncia sensivel daqueles com quem, pela voz ou pelos gestos, relaciono-me a todo momento. Assim, produzit-se-iam cortes ‘40 mesmo tempo em minha duragéo e na deles, mas que tendem a 92 erent estender-se as duragdes ou as consciéncias dos outros homens, de todos aqueles que se encontram no universo. Agora, entre esses mo- mentos sucessivos € comuns dos quais se supde que guardaremos a Jembranca, nos seré possivel imaginar que se desenrola uma espécie de tempo vazio, invélucro comum das duragdes vividas, como dizem 0s psicol6gos, quando consciéncias pessoais. Jé que os homens con- cordam em medir o tempo, por meio de alguns movimentos que se produzem na natureza, como aqueles dos astros, ou que criamos © regulamos attificialmente, como em noss0s rel6gios, & porque nfo saberiamos encontrar, na seqiéncia de nossos estados de consciéncia, suficientes pontos de referéncia definidos que possam valer para to- das as consciéncias. O proprio das duragdes individuais, 6, com efei- to, que elas tem um conteddo diferente, apesar de que 0 curso de seus estados € mais ou menos répido, de uma a outra ¢ também, den- tro de cada uma, nos diferentes perfodos. Existem horas mortas, dias vazios, enquanto que em outros momentos, quer seja porque os ‘acontecimentos se precipitam, seja porque nossa reflexio se acelera, ‘ou porque nos encontrévamos em um estado de exaltaclo e de efer- vescéncia afetiva, temos a impressio de ter em algumas horas ou alguns dias, vivido anos. Mas acontece o mesmo quando compara- ‘mos num mesmo momento varias consciéncias, Para um pensamento vivo, impaciente e tenso, quantos encontraremos que apenas sf0 € cepcionalmente estimulados por algum acontecimento exterior, € cujo Fitme normal 4 lento © monétono porque ceu interecce ce detém, ¢ ainda sem grande entusiasmo, somente a um pequeno mimero de objetos. E talvez um desinteresse crescente, um enfraquecimento progressivo das faculdades afetivas, que explica o fato de que & me- dida em que se fica mais velho o ritmo da vida interior se torna mais lento, ¢ que, enquanto um dia de uma crianga € repleto de impressoes « observacdes miltiplas, e sbrange, nesse sentido, um grande mimero de momentos, no declinio dos anos 0 contetido de um dia, se levar- ‘mos em conta apenas o conteddo real, daquilo que despertou nossa atengéo ¢ nos deu o sentimento de nossa vida interior, reduz-se a muito menos estados diferentes um do outro e, nesse sentido, a um Pequeno nimero de momentos singularmente dilatados. O velho que fquardou a lembranga de sua vida de crianca, acha que os dias so hoje ao mesmo tempo cada vez mais lentos € mais curtos, 0 que quer dizer que, tanto acredita que o tempo corre mais lentamente, Porque 0s momentos, tais como tem o sentimento de vive-los, sio mais longos. como cré que corre mais répido, porque os momentos 9% wis como se enumeram em tomo dele, tais como a medida do pon- teiro do rel6gio sucedem-se com tal rapidez que cles o ultrapassam: ‘do hi tempo para preencher um dia com tudo aquilo que nele uma cerianga consegue encaixar facilmente; é porque sua duragéo interior € lenta que o espago de um dia Ihe parece muito curto.E pot este ‘motivo que um velho ¢ uma crianga que vivessem lado a lado ¢ nao tivessem nenhum outro meio de medir o tempo senio reportar-se aos seus sentimentos da duragio e as divisées que comportam suas vidas interiores, no se entenderiam nem sobre os pontos de divisio, nem sobre a grandeza dos intervalos escolhidos como unidade comum, que pareceria minima para as criangas e muito grande para as pes- soas mais idosas. & melhor, para fixar as divisées do tempo, guiar- ‘mo-nos pelas mudangas ¢ movimentos que se produzem nos corpos materiais, ¢ que se reproduzem de modo bastante regular para que ‘nos seja sempre possivel nos reportarmos a eles. Esta escolha, dela nndo terfamos a idéia sozinhos. Foi necessério que nos entendésse- ‘mos a este respeito com outros homens. Na realidade, 0 que esco- hemos como pontos de referéncia, é, neste retomo periédico a alguns fendmenos materiais, a ocasio que nos oferecem, a nds e aos outros, 6 que 0s percebemos ao mesmo tempo, de constatar precisamente que existe, entre algumas de nossas percepgées, quer dizer entre alguns de nossos pensamentos, para eles ¢ para nés, uma relago de simul- taneidade e, sobretudo, que essa relagao se reproduz a intervalos regu- lares, que convimos considerar como iguais. A partir desse momento, 0 diviedea convencionais do tcupu sc impOcm « nds de fora. Mas clas tém sua origem nos pensamentos individuais. Estas somente to- ‘maram consciéncia de que em cerios momentos entram em contato, de que adotam as vezes uma atitude idéntica frente a um mesmo objeto exterior, e de que esta atitude se reproduz com a mesma regu- laridade perisdica. Quando de tal operagio, e quando das conven- ‘ges que dela decorrem, foi possivel fixar pontos de referencia apenas descontinuos, exteriores em parte a cada consciéncia, uma vez que so comuns a todos. Mas nfo foi possivel criar uma nova duracéo, impessoal, que preenchesse 0 intervalo entre os momentos escolhidos como pontos de referéncia, quer dizer, um tempo coletivo ou social que compreenderia ¢ ligaria uma & outra todos os seus aspectos, em sua unidade mesma, todas as duracées individuais. Na realidade, no intervalo que se estende entre os dois cortes que correspondem ‘40s pontos de referéncia, nfo hé senfo pensamentos individuais se- arados em tantas correntes de pensamento distintas onde cada uma 94 duragio propria. E possivel, se se quiser, imaginar um tem- e que ia dividido pelos mesmos cortes, ¢, sem dGvida, uma noco assim se impée, com efeito, a todos os pensamentos: porém isto é somepte ‘uma representacdo abstrata, & qual no corresponderia mais nenhuma realidade, se as duragées individuais cessassem de exist Posicionemo-nos entio deste ponto de vista bergsoniano. A no- gio de um tempo universal, que envolve todas as existencias, todas as séries sucessivas de fendmenos, traduzirse-ia por uma seqiléncia descontinua de momentos. Cada um deles corresponderia a uma rela- fo estabelecida entre vérios pensamentos individuais, que dela to- ncia simultaneamente. Isolados, geralmente um do outro, todas as vezes que seus caminhos se cruzam, esses pensamen- tos saem de si mesmcs e vém fundir-se um instante numa representa 0 maior, que envolve #0 mesmo tempo es consciéncias ¢ as relagies € nisso que consiste a simultaneidade. O conjunto desses ‘momentos constituiria um quadro, que terfamos permisslo, aliés, de retocar, regularizar e simplificar. Porque o tempo que separa esses momentos é vazio, todas as suas partes se prestam igualmente &s mais variadas divisdes: € como um quadro sobre o qual podemos tracar um nimero indifinido de linhas paralelas. Nada nos impede entao de imaginar simultaneidades intercalares, em um ponto qualquer da linha temporal ¢ abstrate que encaixa dois momentos (e que podemos reprecentar pala imagem de um movimento ou de uma mudanga uni- forme acontecida entre um e outro) a metade, terca parte, a um quarto desse intervalo. Assim estabelecer-se-fo as divisées do tempo fem anos, meses, dias, horas, minutos, segundos: além do mais, pode- mos supor que certo niimero de pensamentos individuais entrardo em contato com todos os momentos precisos que separam as horas umas das outras e até 0s minutos: as divisbes do tempo simbolizam somente todas essas possibilidades. Nada provaria mais claramente que o tem- po, concebido como se estendendo a0 conjunto dos seres, é apenas uma criagio artificial, obtida pela adicio, combinagéo ¢ multiplicagéo de dados emprestados as duracdes individuais, e somente a elas. Critica do Subjetivismo Bergsoniano Mas, se essas divisdes do tempo néo esto jé ¢ por antecipagio contidas ¢ indicadas nas consciéncias, ser& que basta reaproximar duas ou um maior mimero destas para delas fazé-las surgir. E pre 95 ciso insistir sobre esta proposigao ou este postulado, porque aqui se descobre nitidamente em qual concepgao particular de duragio nés ‘nos apoiamos, uma vez que afirmamos que « meméria é uma facul- dade individual. ; Para produzir o sentimento disto que € 0 pensamento interior © pessoal, aconselham-nos a descartar a principio e a apagar tudo que lembre o espago € os objetos exteriores. Estes estados que se suce- dem constituem sem divida uma diversidade, ¢ sfo distintos um do ‘outro, mas de uma maneira completamente diferente do que as coisas materiais. Eles so presos por uma corrente continua que se esvai sem que haja entre um € outro uma linha de separacio bem demar- cada, Mas tal é.realmente # condicio da meméria, ou antes da forma de meméria que € Gnica e verdadeiramente ativa e psiquice, e que no se confunde com o mecanismo do hébito. A meméria (entendida neste sentido) néo tem alcance sobre os estados passados ¢ no né-los restitui em sua realidade de outrora, senio em razio de que ela nfo (8 confunde entre si, nem com outros mais antigos ou mais recentes, isto 6, ela toma seu ponto de apoio nas diferencas. Ora, os estados distintos © nitidamente separados so, sem divida, diferentes por si mesmo. Entretanto, desligados da seqiiéncia dos outros, retirados da corrente onde estavam entranhados — ¢ tal seria sua sorte se consi deréssemos cada um deles como uma realidade distinta e de contornos bem delimitados no tempo — como permaneceriam totalmente dife- rentes de qualquer outro estado igualmente considerado a parte ¢ delimitado? Toda separagao desse genero signitice que comece-se projetar esses estados no espaco. Mas os objetos no espaco, por mais, rentes que sejam, comportam muites analogias. Os lugares que ‘ocupam séo distintos, mas compreendidos em um meio homogéneo. As diferencas que levantamos entre eles se determinam em relacdo a tantos géneros comuns dos quais participam tanto uns quanto outros. ‘Ao contrério, a corrente na qual os pensamentos estio entranhedos no interior de cada consciéncia néo é um meio homogtneo, jé que aqui a forma ndo se distingue da matéria e onde 0 continente exerce a fun- fo de contedido. Nos diversos estados de consciéncia (para empregar, aligs, uma expresso inedequada, jé que nfo existe, na realidade, es- dos, porém movimentos ou um pensamento incessantemente em de- vir), 36 distinguimos qualidades por abstracdo, j& que o essencial é aqui @ unidade de cada um deles e que eles so como pontos de vista na totalidade da consciéncia: néo existe entre eles géneros co- muns, pois que cada um é tinico em seu género, Toda a tentative de 96 ‘comparacio entre um ¢ outro romperia a continuidade da série. Mas € esta continuidade mesma que explica que uns lembram os outros, (0s que os precederam ou seguiram, da mesma mancira que nfo pode- mos desfazer um n6, sem envolvet a corrente inteira, Portanto, & porque so todos diferentes que os estados individuais formam uma série continua, onde toda a semelhanca, toda repeticio, introduziria tum elemento de descontinuidade. & também porque as lembrancas sho diferentes que se evocam uma a outra: sens a série cessaria de se completar ¢ se romperia a cada instante. Mas jé que € assim, nfo se compreende como duas consciéncias individuais jamais poderiam entrar em contato, como duas séries de conseguiriam se cruzar realmente, © que € necessério para que eu tivesse o sentimento de que hé simultane dade entre duas modificacées, das quais uma se produz em mim, @ outra numa conscincia diferente da minha, Sem dévida, uma vez {que eu percebo objetos exteriores, posso supor que toda a sua reali- dade se esgota na percepsto que deles formo. O que esté dentro da duragio, no séo os objetos, mas meu pensamento que os representa para mim, ¢ entio nao saio de mim mesmo. & diferente de quando ‘uma forma humana, uma voz, um gesto, revelam-me a presenca de outro pensamento que no € 0 meu. Entéo, eu teria em meu espitito 1 representacdo de um objeto de dois pontos de vista, o meu, ¢ 0 de tum outro diferente de mim, que tem, como ev. uma consciéncia, © que dura. Mes como joto seria poselvel, oe estou sneerrado om minha consciéncia, se nfo posso sair de minha durago? Ora, nfo posso dela , como afirmam, meus estedos se sucedem um ao outro num movimento itinterrupto, se estdo ligados um a0 outro de mancira to estreita que no hé entre eles nenhuma linha de demarcacéo, nenhum empecitho na corrente que se escoa, se nenhum objeto de contornos definidos no se destaca na superficie de minha vida consciente como uma, figura em relevo. Poder-seia dizer que o que rompe a continuidade de minha vida consciente e individual, € a ago que exerce sobre mim, de fora, uma outra consciéncia, que me impde uma representagdo & qual ela esté presa. E uma pessoa que cruza meu caminho, ¢ me obriga a reparar em sua presenca. Mas, em todo caso, os objetos materiais se impdem também de fora a minha percep¢lo, Todavia, se supomos que estou encerrado em mim mesmo e que néo conheo nada do mundo exte- rior, uma tal percepcdo sensivel ndo deterd a corrente de meus estados mais do que uma impressfo afetiva ou um pensamento qualquer: 97 nela se incorporaré, sem me fazer sair de mim mesmo. Seria a mes- ma coisa, dentro da mesma hipétese de uma consciéncia reduzida & contemplacdo de seus estados, que eu percebesse uma forma humana, que percebesse uma voz, um gesto. O curso do pensamento individual no seré por isso modificado: ndo terei a idéia de uma outra duraglo se no a minha. Para que seja de outro modo, é preciso que 0 objeto ‘aja sobre mim como um sinal. Mas isso implica que sou capaz, a qualquer momento, de me colocar, em presenca de um objeto, 20 mes- mo tempo que de meu ponto de vista, daquele de outro, e que, repre- sentando para mim, pelo menos como possiveis, vérias consciénci € a possibilidade delas de entrar em relacio, eu me represente tam- ‘bém uma duragio que Ihes € comum. ‘Supusemos uma consciéncia fechada sobre si mesma, para a qual suas percepgies seriam somente estados subjetivos que nao Ihe reve Tariam de modo algum a existéncia dos objetos. Mas de que modo lum pensamento assim se elevaria a0 conhecimento do mundo exte- rior? Ele no pode dentro dessas condigdes alcangar esse mundo nem de dentro, nem de fora. £ preciso, entretanto, admitir que existe em toda a percepedo sensivel uma tendéncia a se exteriorizar, isto é, a expulsar 0 pensamento do cfrculo estreito da consciéncia individual no qual ele se escoa, € a considerar 0 objeto como representado 20 ‘mesmo tempo, ou como podendo ser representado a qualquer mo- ‘mento, em uma ou vérias consciéncias. Mas isso supe que represen- téssemos ento uma “sociedade de consciéncias”. Além do m sonhamos com estados que, & diferenga das percepybcs seust nos parecem estar em relacdo com uma realidade exterior, tais como estados afetivos, 0 que os caracteriza, e 0 que thes empresta um aspec- to puramente interno, ¢ pelo fato dessa representacao de consciéncias estar ausente, ou 6 antes por ela estar provisoriamente encoberta, por que nenhuma acdo exercida sobre nés de fora néo Ihe dé a oportuni- dade de se manifestar, mas por que ela existe todavia, sempre, em estado latente, atrds das impresses aparentemente mais individuais? Tal seria 0 caso, quando sentimos por algum tempo uma dor fisica nos concentramos em nossas sensagdes, ainda que a dor atual paresa prolongar a dor precedente © emprestarthe toda a sua substincia. ‘Como agora descobrimos que essa dor é produzida por uma ago ma- terial, exterior ou orgiinica, como apenas imaginamos, como pensamos, ainda que outros seres experimentam ou poderiam experimentar a mesma dor, entio nossa impressio se transforma, a0 menos parcial- mente, naquilo que chamaremos uma representagio objetiva da dor. 98 in Mas de que modo a representaco pode provir da impressio se jé nio estivesse nela contida, e desde que essa representacdo € assim porque pode ser comum a vérias consciéncias, que & coletiva na exata medida em que é objetiva, no é preciso pensar que,a nfo ser a dor em si mesma, pelo menos a idéia que dela fazia para mim mesmo antes (e que é somente isso que a lembranca reterd) nao passava de ‘uma representagio coletiva incompleta ¢ truncada? Assim sem divida poderia ser interpretado dentro de um novo sentido 0 antigo paradoxo metafisico de Leibniz, a saber que dores Hsia, © as sensagses em geral, so apenas idéias confusas ou inaca- bedas. Néo € somente porque dela nos representamog distintamente a natureza € 0 mecanismo, as partes ¢ sua relagdo, que a dor perde ouco pouco, em alguns casos, sua acuidade: mas antes, imaginando ‘que ela possa ser experimentada e compreendida por varias pessoas (© que néo seria possfvel se ela permanecesse uma impressio pura- ‘mente pessoal ¢ portanto nica), parece que descarregamos uma parte de seu peso sobre os outros, ¢ que eles nos ajudam a suporté-la. O trégico da dor, que faz com que, levada até um certo ponto, crie em ‘és tum sentimento desesperado de angistia e de impoténcie, é que sobre um mal cuja causa esté naquelas regides de nés mesmos onde 0s outros no podem chegar, ninguém pode fazer nada jé que nos confundimos com a dor ¢ que a dor no pode destruir a si mesma. E por este motivo que procuramos instintivamente © encontramos ‘uma explicacao para esse sofrimento que seja inteligivel, quer dizer, com a qual os membros de um grupo possam concordar, da mesma mancira que 0 feiticeiro alivia o paciente fazendo parecer extrair de seu corpo uma pedra, uma velha ossada, umpreguinho, ou um liqui- do, Ou despojamos o sofrimento de seu mistério, nele descobrindo suas outras faces, aquelas que envolver outras consciéncias, uma ‘vez que imaginamos que ela foi ou pode ser expetimentada por nossos semelhantes: nés a relegamos assim para o dominio comum a muitos seres ¢ Ihe restitulmos uma fisionomia coletiva ¢ familiar. ‘Assim, uma anélise mais vigorosa da idéia da simultancidade nos fastar a hipGtese de duragées puramente individuais, impene- tréveis entre.si, A seqiéncia de nossos estados ndo é uma linha sem espessura cujas partes apenas se relacionam com aquelas que as pre- ccedem ¢ que as seguem. Em nosso pensamento, na realidade, cru- zam-se a cada momento ou em cada perfodo de seu desenvolvimento, Muitas correntes que véo de uma consciéncia a outra, ¢ das quais ele € 0 lugar de encontro, Sem davida, a continuidade aparente da- 99 quilo que chamamos nossa vida interior resulta em parte de que ela segue, por algum tempo, o curso de uma dessas correntes, o curso de um pensamento que se desenvolve em nés ao mesmo tempo que, em outros, a inclinagio de um pensamento coletivo. Ela se explica tam- ‘bém pela ligagdo que estabelece sem cessar, entre nossos estados, aque- Jes dentre eles que resultam sobretudo da continuidade de nossa vida organica. Nao hé, alids, entre estes e aqueles, senio uma diferenca de grau, j4 que as impressdes afetivas elas mesmas tendem a se manifestar em imagens € representagdes coletivas. Em todo o caso, se se puder, com duragdes individuais, reconstruit uma durago mais ampla, e impessoal, na qual estdo compreendidas, é porque elas mes- mas se destacam sobre o fundo de um tempo coletivo ao qual empres- tam toda a sua substincia. A data, quadro da lembranga Falamos de um tempo coletivo, em oposigo & duragdo indi dual. Mas a questo que se coloca agora é saber se ele é inico, ¢ nés ‘nfo a prejulgamos, absolutamente, Por trés da teoria que discutimos, haveria com efeito, por um lado, tantas duragdes quantos individuos, pot outro lado um tempo abstrato que compreenderia a todas. Esse tempo € vazio, ¢ talvez. seja apenas uma idéia. As divisdes que ali ‘tragamos nos pontos onde vérias duragdes individuais se cruzam nao se confundem com os estados que percebemos que séo simulténeos. Nao poderia haver nada de mais nessas divisSes a no ser tempo que clas dividem, e que concebido como um meio homogéneo, como ‘uma forma particular de matéria. Mas que género de realidade po- demos atribuir a essa forma e, sobretudo, como ela pode servir de ‘quadro aos acontecimentos que situamos? Um tempo assim definido se presta a todas as divisdes. E por essa razio que podemos ali assinalar o lugar de todos os fatos? Antes de responder a esta questio, & preciso observar que o tempo nos importa aqui somente na medida em que deve nos permitir conservar € lembrar dos acontecimentos que ali se produziram. Este € 0 servico ‘que esperamos dele. Isso ¢ verdade para os acontecimentos do pas- sado, Quando nos lembramos de uma viagem, mesmo no nos lem- brando da data exata, hé entretanto todo um quadro de dados tem- pporais aos quais essa lembranca esté de qualquer maneira relacionada: foi antes ou depois da guerra, eu era crianca, jovem, ou homem feito, na pujanca da idade; eu estava com tal amigo que era mais ou 100 Pian menos velho; em que estagio estévamos; eu preparava tal trabalho; aconteceu tal coisa. E gracas a uma série de reflexdes desse género que com muita freqiiéncia uma lembranca toma corpo ¢ se completa, Se subsiste, entretanto, uma incerteza sobre o periodo onde o aconteci mento teve lugar, pelo menos nao se trata daqueles outros periodos em que se situam as outras lembrangas: € ainda uma maneira de locali- zélo, Além do mais, o exemplo de uma viagem pode néo ser o mais favordvel, porque pode constituir um fato isolado e sem grandes rela es com o restante de minha vida. Entiio € menos o tempo do que © quadro espacial, como veremos, que intervém principalmente. Mas, se s¢ trata de um acontecimento de minha vida familiar, de minha vida profissional, ou que aconteceu em um dos grupos 20s quais ‘meu pensamento se reporte com maior freqiiéncia, seré talvez 0 qua- dro temporal que me ajudard melhor a dele me lembrar. Acontece 0 mesmo com um certo nimero de fatos futuros, que so preparados ‘no presente: que me lembra um encontro, & geraimente a época ‘em que © marquei; o que me lembra que encontrarei um parente, um amigo, que terei tal tarefa a cumprir, tal negécio a fazer, ou que me proponho a tal distragdo, é a data onde todos esses acontecimentos devem se realizar. Acontece também que no reconstituimos o qua- dro temporal sendo depois que a lembranca foi restabelecida e entéo dos, a fim de localizar a data do acontecimento, dele examinar em detalhes todas as partes. Mesmo assim, jé que a lem- hhranga conserva as tragos do. periade so qual se reporia, ecte #6 foi lembrado talvez, porque haviamos vislumbrado esses tragos, © pen- sado no tempo em que 0 acontecimento se realizou. A localizagéo, aproximativa © muito imprecisa de inicio, definiu-se em seguida qu do a lembranga estava presente. No € menos verdade que, em grande nimero de casos, € percorrendo em pensamento quadro do tempo que ali encontramos a imagem do acontecimento passado: po- rém, para isso, € preciso que o tempo seja capax de enquadrar as lembrancas. ‘Tempo abstrato ¢ tempo real Consideraremos primeiro o tempo concebido sob a forma a mais abstrata: 0 tempo completamente homogéneo da mecénica ¢ da fisica, de uma mecénica e de uma fisica dominadas pela geometria, ¢ que podemos chamar o tempo matematico. Ele se opGe ao “tempo vivido” de Bergson, como um pélo ao outro. € €, de acordo com esse filésofo, lor inteiramente “vazio de consciéncia”. O interesse de uma nogdo desse ‘género viria de que ela représentaria o limite para o qual os homens tendem a se aproximar & medida que, ao invés de permanecer fecha- dos em seus proprios pensamentos, colocamse do ponto de vista de grupos e conjuntos mais amplos. E preciso que o tempo se esvazie ppouco a pouco da matéria o que permitiria distinguir suas partes umas das outras, para que possa servir a um nimero crescente de seres completamente diferentes, O que orientaria os pensamentos neste esforgo, no objetivo de ampliar ¢ universalizar o tempo, seria a re- resentagio latente de um meio inteiramente uniforme, muito proxi- ‘mo da representagio do espago, se até mesmo nfo se confundir com ela, Todo o homem, dizemos, ¢ naturalmente gedmetra, jé que vive no espago, Néo € portanto de admirar que os homens, quando pen- sam no tempo fazendo abstracio dos acontecimentos particulares, de modo que atingem as consciéncias individuais onde estes se desen- | vvolvem, imaginem um meio homogéneo, semelhante a0 espago g60- métrico. Mas sobre um tempo assim concebido nossa meméria teria algu- | ‘ma compreensio? Sobre uma superficie tio perfeitamente lisa, onde as lembrangas poderiam se agarrar? Talvez seja 0 caso de dizer, com | Leibniz ainda, que ndo se encontraria nesse tempo, em si préprio, | ‘nem em suas partes, razSo alguma para que um acontecimento nele | se situasse mais aqui do que Ié, jé que todas essas partes so indicer- niveis. De fato, 0 tempo matemético s6 atua quando se trata de objetos ou de tendmenos dos quais néo se proponha fixar e manter @ posigdo dentro do tempo real, de fatos que nio tém data e nio mudam de natureza, ainda que acontecam em momentos diferentes. Quando representamos por ty, ti, fy... t, 08 aumentos sucessivos do ‘tempo, a partir de zero, sem duivida fixamos assim a duragdo © as diversas fases de um movimento, porém um desses movimentos que poderfamos reproduzir em qualquer outro tempo sem que obedesa a uma outra lei, Em outras palavras, 0 momento inicial, t, esté intei- ramente livre de qualquer relagéo com um momento qualquer do tempo real. As leis dos movimentos fisicos so, com efeito ¢ neste sentido, independentes do tempo. E por isso que o matemético con- corda em recolocar tais movimentos dentro de uma duracéo comple- tamente vazia, ¢ representa assim somente esse paradoxo, de um movimento que esté bem dentro do tempo jé que dura, e que nio se situa entretanto, em nenhum momento definido. Mas, salvo a socie- dade dos mateméticos ou dos sébios que estudam os movimentos dos 102 corpos inertes, todos os grupos humanos se interessam pelos acon- tecimentos que mudam de natureza e de importincia, conforme o momento em que se produzem. Um tempo indefinido, indiferente « tudo 0 que nele se posiciona de nada sjudaria na meméria desses fatos. Sem davida, parece que fazemos um apelo a uma representagdo deste género, quando dividimos o tempo em intervalos iguais. Os hhoras, 0s minutos, os segundos, no se confundem a prop6- sito, todavia, com as divisSes de um tempo homogéneo: tém, com feito, uma significagio coletiva definida. So outros tantos pontos de referencia dentro de uma duragio onde todas as partes diferem, dentro do pensamento comum, e nao podem ser substituldas umas pelas outras. O que o comprova, € que quando ficamos sabendo que tum trem deve partir as quinze horas, somos obrigados a traduzir, nos lembrarmos que ele parte, na realidade, as trés horas depois do meio dia. Da mesma mancira, 0 dia 30 ou o 31 do més se distingue para nés do primeiro dia do més seguinte sendo mais, pelo menos de uma outra maneira, que o primeiro do dia 2, ou do 15 ¢ do 16. ‘Mesmo quando nossa atengao se fixa apenas em niimeros, sabemos ‘que sio divisdes arbitrérias, ¢ que nfo podemos modificé-las & von- tade, como em mecinica deslocamos a origem, como passamos para ‘um outro sistema de eixos. E diferente passar da hora de verio para a hora de inverno, e concordar que diremos, de hoje em diante, ‘uma hora em vez de meio dia: 0 grupo nao aceita perder a hora ou © seu tempo, ¢ se este sofrer um deslocamento, a vida social néo {quer sair de seu quadro, ¢ 0 acompanha em seu deslocamento. Tanto é verdade que o tempo social néo é indiferente as divisées que nele introduzimos, Assim € que 0 tempo social nfo se confunde e nem a duracéo individual com 0 tempo matemético. Ha uma oposigio fundamental entre 0 tempo real, individual ou social, ¢ o tempo abstrato, € sequer & possivel dizer, que & medida em que se torna mais social, 0 tempo real se aproxima deste. © “tempo universal” ¢ os tempos histéricos Mais concreto, mais definido nos apareceré agora aquilo que poderfamos chamar 0 tempo universal, que se estende a todos os acontecimentos que se realizaram em todos os lugares do mundo, todos 0s continentes, todos os paises, dentro de cada pais a todos os srupos e, através deles, a todos os individuos, Podemos representar, 103 com efeito, © conjunto dos homens como um vasto corpo, que apre- senta aliés, mesmo no presente, mas sobretudo no passado, apenas uma unidade orgénica muito imperfeita, porém tal, que todas ‘as partes das quais é constituido formam um todo continuo, porque sic poucas as que, 20 menos a intervalos, no tenham tido algum contato com outra, € que assim, aproximadamente, elas se relacionam com 0 todo, por lagos mais ou menos frouxos. Sabemos que isso néo é exato, a rigor. Hé regides, habitadas sem divida, desde hé muito tempo, ¢ que foram descobertas bem tarde. Hé povos, também, dos quais co- ‘hecemos geralmente a existéncia, porém por tradigdes muito vagas, por relatos muito sucintos de viajantes, e que nio tém propriamente histéria no sentido de que no podemos neles fixar a data dos acon- tecimentos passados, ainda que mesmo se conserve deles alguma lem- branga, Entretanto, admite-se que esses acontecimentos foram con- tempordneos dos que conhecemos dentro de nossas civilizagées, € que apenas nos faltam documentos escritos, inscrig6es sobre monu- mentos ou anais, para que possamos situé-los no tempo mesmo em que nossa histéria nos permita remontar. Encontramos aqui o tempo hist6rico do qual falévamos no’ capitulo anterior, com essa diferenca que supusemos estendida para além dos limites que nés Ihe tinhemos reconhecido, de maneira que envolva a vida dos povos que nfo tive- ram hist6ria, e mesmo pasado histérico. Por mais natural que possa parecer uma tal extensio, precisa- mos perguntar-nos se ela € verdadeiramente legitima, e que significa: 20 pode ter para nds um tempo do qual as pessoas, mesmo as mais, velhas que conhecfamos dele ndo guardaram nenhuma lembranga. Sem divide, podemos sempre raciocinar por analogia. Podemos supor, por exemplo, que o planeta Marte foi sempre habitado, Diremos entretanto que seus habitantes viveram no mesmo tempo que as po- pulagGes terrestres das quais conhecemos a hist6ria? Para que uma tal proposigao tenha um sentido bem definido, seria necessério supor ainda que 0s habitantes desse planeta puderam se comunicar conosco por algum meio, pelo menos, a intervalos, de modo que eles e nés tivéssemos entrado em contato, que conhecéssemos alguma coisa de sua vida e de sua histéria, ¢ eles da nossa. Se néo houver nada disso, tudo se passaré como no caso de duas consciéncias inteiramente fe- chadas uma para a outra, e cujas duragées ndo se cruzam jamais. ‘Como entéo falar de um tempo que thes seria comum? Porém € preciso ir mais longe €, atendo-nos aos acontecimentos do passado cujos historiadores puderam, pelo menos, de modo apro- 104 ximativo, fixar a data e reconstituir a ordem de sucessio, perguntar- nos se 0 quadro que eles elaboraram, nele indicando aqueles fatos que aconteceram simultaneamente em paises e regides distantes uma da outra, permite-nos concluir pela existéncia de um tempo universal dentro dos limites da histéria. Costuma-se dizer os tempos hist6ri- cos, como se houvesse vérios, ¢ talvez designemos desse modo perio- dos sucessivos, mais ou menos distantes do presente. Mas podemos dar também um outro sentido para essa expresso, como se houvesse vérias histérias, que comecam alids, umas mais cedo, outras mais tarde, mas que so distintas. Certamente € possivel para um historie- dor colocarse de fora e acima de todas esses evolugdes paralelas, € consideré-las como aspectos de uma histéria universal. Mas senti- mos que, em muitos casos, ¢ talvez em sua maioria, a unidade que se obtém entio € completamente artificial, porque aproximamos assim acontecimentos que néo tiveram nenhuma influéncia um sobre 0 outro, e povos que néo se uniram, ainda que temporariamente, num 6 pensamento. Temos em mios a Chronologie Universelle, de Dreyss, que foi publicada em Paris em 1858, onde, desde os tempos mais remotos, registra-se, ano por ano, os acontecimentos notéveis que se realiza- ram em certo mimero de regides. Vejamos o primeiro perfodo, da ctiaglo do mundo ao dihivio. Apesar de tudo, a tradigéo do dildvio, especificamente, encontrase em grande nimero de povos. Talvez corresponda & lembranca confusa de uma origem comum, © mereya ppor isso, ser 0 inicio de um quadro sincrénico dos destinos das na- Ges, Em seguida, até Jesus Cristo, e mesmo até o 5.° século depois de Jesus Cristo, 0 autor se limitou em datar a hist6ria da Grécia © a hist6ria de Roma, a histéria dos Judeus, a historia do Egito, ¢ a justapor esses fragmentos. Isto € somente uma pequena parte do mundo. Pelo menos, tratava-se de regides préximas umas das outras para que todas sentissem, a mide, 0 contragolpe das comogdes que se produziam numa delas. Entre essas cidades ou grupos de cidades que formavam conjuntos semifechados, as idéias circulavam, as no- ticias se propagavam. Em 1858, ¢ mesmo antes, o horizonte histé- rico, no que concerne ao passedo, havia certamente se ampliado ¢ teria sido possivel dar lugar, nesse quadro cronolégico antigo, a mui- tas outras regides. Entretanto, o quadro tal como se nos epresentam, com suas limitagéés, fornece talvez uma imagem mais adequada & realidade. Ele nos apresenta um conjunto de povos cujos destinos estariam assaz estreitamente ligados para que pudessem recolocar 105 dentro de um mesmo tempo suas vicissitudes. E apenas o mundo comhecido dos antigos: pelo menos formava quase um todo. Mais tarde, e na medida que nos aproximamos dos tempos mo- demos, 0 quadro se amplia, mas perde cada vez mais sua unidade. Disseram-nos que em 1453 a Guerra de Cem Anos terminou, e que, no mesmo ano, os Turcos tomaram Constantinopla. Em que memé- ria coletiva comum esses dois fatos deixaram seus tragos? Sem di- vida, tudo se entrelaga, € no podemos prever no momento quais sero as repercussées de um acontecimento, e mesmo em que te sides do espago se propagerio, Mas sio as repercussdes, € nfo 0 acontecimento, que penetram a mem6ria de um povo que as su- porta, e somente a partir do momento em que elas o atingem. Pouco importa que 0s fatos tenham acontecido no mesmo ano, se essa si- multaneidade niio foi reconhecida pelos contempordneos. Cada gru- po definido localmente tem sua propria meméria, e uma represen- tago do tempo que somente dele. Acontece que cidades, provin- cias, povos, fundem-se numa nova unidade, logo o tempo comum se amplia e, talvez, avance mais no passado, co menos para uma parte do grupo, que se encontra entdo a participar de tradigdes mais antigas. © inverso pode acontecer também quando um povo se des- membra, quando colénias se formam, quando continentes novos sio povoados. A histéria da América, até 0 inicio do século XIX e desde as primeiras colOnias, esté estreitemente ligada & histéria da Europa, Durante todo o século XIX ¢ até o presente, parece que dela se desligou. Como um povo que tem atrés de si apenas uma curta histéria representaria para si o mesmo tempo que outros cuj meméria pode remontar a um passado longinquo? E através de uma ‘construgéo artificial que se faz esses dois tempos penetrar um no outro, ou que os colocamos um a0 lado do outro, sobre um tempo vazio, que nada tem de hist6rico, j& que definitivamente este nada mais € do que 0 tempo abstrato dos mateméticos. No esquesamos, & verdade, que em uma época em que os meios de comunicagfo eram dificeis, onde nfo havia nem telégra- fos, nem jornais, viajavase todavia e as noticias circulavam mais répido ¢ mais longe do que o supomos. A Igreja abracava a Europa inteira e possufa seus tentéculos nos outros continentes. Uma orge- nizacdo diplomética muito desenvolvida permitia aos principes e seus rministros saberem muito depressa 0 que se passeva nos outros pafses. Os comerciantes tinham depésitos, feitorias, estabelecimentos, cor- 106 respondentes, nas cidades estrangeiras. Sempre houve alguns meios alguns grupos que serviam de Grgios de ligagio entre os paises mais distantes. Mas nem por isso 0 horizonte da massa da popula- 40 era mais amplo. Durante muito tempo, a maioria dos homens ndo estava interessada naquilo que se passava além dos limites de sua provincia, ¢ muito menos de seu pais. E por isso que houve € ainda hé tantes histérias distintas quanto nagdes. Aquele que quiser escrever a hist6ria universal e fugir a esses limitagdes, colocar-se-& do ponto de vista de que conjunto de homens? £ por essa razio que estiveram durante muito tempo em primeiro plano, nos relatos histéricos, os acontecimentos que interessam & Igreja, como os con- cilios, os cismas, a sucesso dos papas, os conflitos entre clérigos € chefes temporais ou os fatos que preocupam os diplomatas, nego- ciagoes, aliances, guerras, tratedos, intrigas de corte? No seré tam- ‘bém porque, mais recentemente, os cfrculos sociais que compreendem (05 comerciantes, os homens de negécios, os industrisis, os banquei- ros estenderam suas preocupacdes especiais sobre a maior parte da terra, que se cedeu espaco, na histéria universal, aos progressos da inddstria, aos deslocamentos das correntes comerciais, as relagies ‘econémicas entre 0s povos? Mas a historia universal assim entendida € somente ainda uma justaposicio de hist6rias parciais que abrangem apenas a vida de alguns grupos. Se 0 tempo tinico assim reconstruf- ns estende kohre espacns mais amplos, ahrange xomente tima par. te restrita da humanidede que povoa essa superficie: 2 massa da Populaco que nfo penetra esses citculos limitados © que ocupa as mesmas regides, teve todavie, ela também, sua hist6ris Cronologia histGrica e tradigio coletiva Talvez tenhamos nos colocado do ponto de vista que néo é € rio pode ser 0 dos historiadores. Nés Ihes censuramos por confun- dir num tempo iinico, histérias nacionais ¢ locais que representam outras tantas linhas de evolusio distintas. Todavia, se conseguimos nos apresentar um quadro sincrOnico onde todos 0s acontecimentos, fem qualquer lugar onde tenham se produzido, estejam proximos €, sem divide, porque os desligamos dos meios que os situavam em seu proprio tempo, quer dizer, que fazemos a abstragio do tempo real onde estavam situados. B uma opiniéo corrente que a histéria, pelo contrério, se interessa talvez mais exclusivamente pela ordem 107 dda sucesso cronolégica dos fatos no tempo. Mas lembremos que dizfamos no capitulo anterior quando opinhamos o que se pode chamar de meméria histérica e a meméria coletiva. A primeira re- tém sobretudo as diferengas: porém as diferencas ou as mudanges assinalam somente @ passagem sdbita € quase imediata de um estado ‘que subsiste para um outro estado que subsiste. Quando fazemos abstragio dos estados ou dos intervalos para nio ir além de seus limites, na realidade deixamos de lado aquilo que existe de mais substancial no proprio tempo. Sem divida, uma mudanga se estende também por uma duragdo, as vezes uma duracio muito longs. Mas isso vem confirmar que ela se decompée em uma série de mudancas parciais separadas por intervalos onde nada muda. Destes intervalos menores, a natragio histérica faz ainda abstracio. Seria, aliés, bem ossivel que nos fornecesse muito mais. Para nos fazer conhecer aquilo que néo muda, aquilo que dura no sentido verdadeiro do termo, para que tenhamos dele uma representagdo adequada, se necessério nos recolocarmos no meio social que tomava consciéncia dessa estabilidade relativa, fazer reviver para nés uma meméria coletiva que desapareceu. Seria suficiente para que nos descrevs uma instituiglo, que nos digam que ela nfo mudou durante meio sfculo? Primeito, € inexato, porque houve de qualquer modo muitas modificagées lentas ¢ insens(veis, que o historiador néo percebe, mas que o grupo tinha o pressentimento, ao mesmo tempo, aliés, que de uma ertabilidade relativa (ae duas ‘roprecentagSea esto gcralmente estreitamente ligadas). £, além disso, e por conseguinte, um dado smente negativo, enquanto néo conhecemos o contetido da cons- ncia do grupo, ¢ as circunstincias diversas dentro das quais pode reconhecer que, com efeito, a instituico no mudaria. A historia & necessariamente um resumo e € por isso que ela resume € concentra oucos momentos evolugSes que se estendem por periodos int ros: € neste sentido que ela extrai as mudangas da duragdo. Nada impede agora que se aproxime e que se retina os acontecimentos assim destacados do tempo real, e que os disponhamos segundo uma série cronol6gica, Mas uma tal série sucessiva se desenvolve numa duraséo artificial que no tem realidade para nenhum dos grupos aos quais esses acontecimentos foram emprestados: para nenhum de- Jes, no se trata do tempo no qual seu pensamento tinha o hébito de se movimentar, e de localizar aquilo de que se lembravam de seu passado. 108 Multiplicidade © heterogeneidade das duragies coletivas pessoas numa apreenséo Ora, € precisamente aquilo que se encontra além desse limite que detém, a atenclo da histéria. Cos- tume-se dizer as vezes que a histéria se interessa pelo passado ¢ no pelo presente. Mas o que & verdadeiramente 0 passado para ela, € aquilo que néo esté mais compreendido no dominio onde se es- tende ainda o pensamento dos grupos atuais. Parece que ela precisa esperar que os antigos grupos desaparecam, que seus pensamentos sua meméria se tenham desvanecido, para que ela se preocupe em fixar a imagem e a ordem de sucessio dos fatos que agora € a dnica capaz de conservar. Sem duivida, € preciso entdo apoiar-se em depoi- ‘mentos antigos cujo rastro subsiste nos textos oficiais, jornais da época, nas memérias escritas pelos contempordneos. Mas na escotha que deles faz, na importéncia que Ihes atribui, 0 historiedor se deixa guiar por razSes que no tém nada a ver com a opinifo de entio, porque esta opinio no existe mais; nfo somos obrigedos @ levé-la em conta, nfo se tem medo que ela venha a se chocar com um desmentido, Tanto isso € verdade que ele néo pode realizar sua obra sendo com a condigfo de se colocar deliberadamente fora do tempo vivido pelos grupos que assistiram aos acontecimentos, que com eles tiveram contato mais ou menos direto, ¢ que deles podem se lembrat Coloquemo-nos agora entio do ponto de vista das consciéncis coletivas, jé que € 0 Gnico meio para permanecermos no interior de ‘um tempo real, bastante continuo para que um pensamento possa ppercorrer todas as suas partes, permanecendo ele mesmo e delas guar- dando 0 sentimento de unidade. Dissemos que € preciso distinguir ‘um certo mimero de tempos coletivos tantos quantos forem os grupos separados. Nao podemos desconsiderar, todavia, que a vide social, fem seu conjunto e em todas suas partes se cscoa no interior de um ‘tempo que estf dividido em anos, meses, dias, horas. E preciso que seja assim, sem 0 que se as duracées, dentro dos diversos grupos nos quais se decompSem a sociedade comportassem divisdes diferentes, no poderiamos estabelecer nenhume correspondéncia entre seus mo- vimentos. Ora, precisamente porque esses grupos estéo separados uns dos outros, porque cada um deles tem seu proprio movimento, ¢ 109

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