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O ARTIGO 203, INCISO V, DA CF E O ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS: UMA

VISÃO CRÍTICA

Miguel Horvath Júnior e Oswaldo de Souza Santos Filho 1

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Assistência Social: conceito, breve histórico e princípios 3.


Benefício Assistencial do LOAS 4. Jurisprudência vacilante 5. A ideologia nas
decisões. Pensamento sistêmico 6. Conclusão

1. Introdução

O escopo do estudo é enfrentar as questões das oscilações, impactos sociais e políticos


na jurisprudência brasileira do benefício da assistência social, conhecido como
“LOAS”, devido a idosos e pessoas deficientes, carentes e desamparados da previdência
social.

O tema ganha importância pelo momento político, social e econômico dos dias que
correm em nosso país, onde o anseio de mais proteção social se vê ameaçado por
necessidade macroeconômica de corte nas despesas públicas.

O Poder Judiciário, que desde a Constituição Cidadã de 1988 foi descoberto pelo
brasileiro comum das grandes cidades e do interior do País, num primeiro instante saiu
em defesa destas pessoas pobres e carentes, no sentido de interpretar de forma liberal as
regras de concessão do benefício assistencial de um salário mínimo para o idoso e para
o portador de necessidade especial.

Logo este mesmo Poder Judiciário, composto de agentes políticos técnicos e


concursados, foi criticado por meios jurídicos e administrativos mais conservadores por
implantar com decisões judiciais políticas públicas que se divorciavam daquelas
idealizadas pelo Poder Executivo Federal, este composto por agentes eleitos pelas regras
democráticas, a exemplo do Poder Legislativo.

O presente trabalho tentará mostrar, além das consequências das oscilações, a marca
ideológica que permeou as decisões judiciais e as respectivas críticas do meio jurídico,
acadêmico e político.

As conclusões são abertas, colocadas para instigar a continuação do debate da


assistência social brasileira e o benefício de um salário mínimo para o idoso e o
deficiente físico mental carentes.

2. Assistência Social: conceito, breve histórico e princípios

Importante campo de proteção social, ao lado da previdência e a da saúde, é a


assistência social.

O objetivo da assistência social é amparar as pessoas necessitadas, que não estão


protegidas pela previdência social. São pessoas desamparadas, excluídas da sociedade
produtiva, por motivo de doença, desemprego e situação de extrema pobreza. Segundo o

1
Professores da PUC/SP e Procuradores Federais da AGU.
IPEA, o percentual médio do trabalho informal do ano passado (2014) ficou em 33%.
São aproximadamente 50 milhões de brasileiros na informalidade (no meio rural chega
a 60% dos trabalhadores).2

Esta é a clientela potencial da assistência social brasileira num futuro próximo.

A assistência social tem importante papel para cumprimento do princípio do inciso III
do artigo 3º da Constituição Federal, ou seja, erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais. Só para termos ideia do desafio da
assistência social brasileira, sabe-se pelos últimos dados estatísticos que mais de 50
milhões de brasileiros estão abaixo da linha da pobreza.

A assistência social é direito social do cidadão, direito às prestações (benefícios e


serviços assistenciais), com o escopo de atender necessidades básicas da pessoa
humana.

O conceito constitucional é do art. 203 da Constituição Federal que prescreve que a


Assistência Social “será prestada a quem dela necessitar, independentemente de
contribuição à seguridade social”.

Ou seja, aqueles que não forem protegidos pela rede social de proteção da previdência,
deverão ser amparados pela rede da assistência social e não precisarão comprovar o
recolhimento de contribuições para o sistema de seguridade social, mas precisarão estar
em estado de necessidade. O artigo 1º da Lei Orgânica de Assistência Social – Lei n.
8742/93, vai se referir em “mínimos sociais” para garantir o atendimento às
necessidades básicas.

O pobre é sujeito de direitos, é titular da prestação social devida pelo Estado e pela
coletividade. A seguridade social é o veículo para atendimentos dos necessitados.

A pobreza é o campo natural da assistência social. É dever do Estado e da sociedade


fomentar políticas públicas que reabilitem a dignidade de homens e mulheres, para que
logo retornem ao mercado de trabalho e caminhem com suas próprias pernas.

A pobreza atinge crianças, adolescentes e idosos que também mereceram atenção da


assistência social, para tirar do risco de indigência destas pessoas, pois a pobreza não
engradece a pessoa e tampouco a sociedade ou o País.

No campo jurídico a Constituição de 1988 rompeu com a acepção de assistência como


benemerência social e seus destinatários como tutelados.

A prestação de assistência social hoje é direito público subjetivo do cidadão brasileiro


ou estrangeiro domiciliado no nosso país. Não é mais um favor do Estado ou de pessoas
e instituições caridosas.

A relação jurídica se dá entre o assistido e o órgão assistente e se instala no momento e


que aquele está em estado de necessidade pela ocorrência de uma contingência.

2
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21552, acesso em 09
de julho de 2015.
No caso do benefício assistencial de um salário mínimo, o beneficiário idoso ou incapaz
pobre que se encontra a esta de necessidade por contingências óbvias que afligem estes
sujeitos.

Historicamente, podemos afirmar que até o século XVI a assistência aos pobres se deu
pela caridade privada, às vezes com o envolvimento de instituições religiosas. Nas
décadas seguintes, municípios europeus adotaram formas de ajuda aos necessitados. É
marcante o ano de 1601 na Inglaterra onde foram promulgadas as leis sobre pobres
(conhecidas por Poor Laws), impondo aos municípios a obrigação de cuidar dos
indigentes, sob a forma de uma assistência em gêneros em troca de trabalho dos que
tinham capacidade nas workhouses, ou seja, casarões onde pobres e indigentes viviam e
trabalhavam, além de alojamento de crianças órfãs, idosos e incapacitados fisicamente e
mentalmente. O sistema era gerido pelas paróquias e sustentado por uma taxa
obrigatória.

Foi novamente na Inglaterra outro marco da assistência social e da seguridade social:


são os relatórios de William Henry Beveridge, onde se garante uma renda mínima para
atender às necessidades básicas do cidadão e das famílias. O projeto inicial visava a
proteção do berço ao túmulo com adoção da ideia de seguridade social3.

No Brasil, por sua vez, a Constituição de 1824 prescrevia o direito aos socorros
públicos, havendo registros que D. Pedro II pessoalmente socorria aos necessitados.

A primeira instituição de assistência social formalmente constituída foi a Legião


Brasileira de Assistência - LBA de 1942.

Nas próximas constituições haverá previsão para o Estado se responsabilizar pela


gestante, infância, adolescentes e educação dos excepcionais; idem sobre prole
numerosa e desempregados.

Mas somente com a Constituição Federal de 1988 é que se deu dignidade à assistência
social como parte integrante do sistema de seguridade social. As pessoas necessitadas
passaram a ter direito subjetivo a benefícios de proteção.

A legislação básica da assistência social, portanto, é a Constituição da República, em


especial os arts. 203 e 204; a Lei n. 8742/93, a Lei Orgânica da Assistência Social -
LOAS. Destaca-se ainda na legislação: Lei nº 7853/89 – apoio da pessoa portadora de
deficiência; a Lei nº 8069/90 – Estatuto da Criança e Adolescente; e a Lei nº 10741/03 –
Estatuto do Idoso

São características do assistencialismo:

a) prestações condicionadas à disponibilidade financeira do Estado, que depende neste


campo da política de tributação geral da população. Diferentemente da previdência
social, do desamparado nada se exige a título de contribuições sociais.

3
Miguel Horvath Júnior. “Direito Previdenciário”, p. 26
b) a sociedade é incitada a ajudar o Estado no assistencialismo, sendo incentivada a
criação de associações, sociedades ou sociedades sem fins lucrativos no trabalho de
ajuda aos desamparados, concedendo o Estado a imunidade tributária das contribuições
sociais.

c) o desamparado deve provar o estado de necessidade e ausência de recursos para


supri-la.

d) a prestação é adaptada à necessidade.

e) sujeitos protegidos estão incapacitados para a vida comum e profissional,


especialmente crianças, idosos e portadores de necessidades especiais carentes.

f) transitoriedade das prestações, face ao caráter emergencial da situação aflitiva e


programas de recuperação do indivíduo ou família para a vida econômica independente.

Dentre os princípios da assistência social brasileira, destaca-se o Princípio da


Necessidade

Assim, além dos princípios do art. 194, parágrafo único da Constituição Federal e o da
dignidade da pessoa humana, que valem para todo o sistema de seguridade social, é
destaque o princípio da necessidade, pedra de toque da assistência social.

Somente os que estão em estado de necessidade podem usufruir as prestações.

A incapacidade contributiva com sistema de previdência social deve ser fator


preponderante para análise do pedido assistencial.

Este estado de necessidade tem várias abrangências: biológicas (sendo a mais natural a
necessidade dos recursos do sistema de saúde), econômicas (a necessidade de bens
materiais básicos, como alimentação, roupa, abrigo, fonte de renda etc.), educacionais (a
necessidade vital de formação educacional básica e profissional), psicológicas e
espirituais (a tranquilidade de espírito que toda pessoa necessita para o seu
desenvolvimento individual e social). É induvidoso que o ser humano se move pela
necessidade que o impulsiona para atitudes nobres como o trabalho na busca de
melhoria individual, mas também para padrões de carência e abuso da condição de
pobreza para se beneficiar da situação e obter benesses da caridade priva ou pública.

Não menos importante, destacamos o Princípio da Desproporcionalidade entre


necessidade e a proteção concedida. Diz respeito à essência do assistencialismo: dar o
mínimo vital, de acordo com a capacidade da sociedade contributiva.

Em outras palavras, não serão todas as necessidades das pessoas atendidas, apenas
aquelas que legalmente lhe garantam um mínimo de vida digna, por via de serviços ou
benefícios.

Para as demais necessidades da pessoa carente, não cobertas pela assistência social,
caberá primeiro a ela mesma buscar a melhoria de suas condições de vida com suas
próprias forças e com a ajuda do grupo familiar, entidades de classe, religiosas etc.
Indubitavelmente o problema da pobreza no nosso país não pode ser atacado e resolvido
por leis e decisões judiciais permeadas de influências culturais de uma classe dominante
sobre outra subalterna e da ideologia do vitimismo que graça não somente no Brasil,
mas em toda América Latina.

Não há desenvolvimento econômico, social, cultural e humano sem o devido trabalho e


mérito de um povo. Quando se oficializa a política dos “direitos” em sacrifício das
“obrigações”, sem dúvida nenhuma passamos pelo quadro atual de instabilidades
política, econômica e das decisões judiciais.

A questão do assistencialismo e do benefício de um (01) salário mínimo para idosos e


incapacitados fisicamente e mentalmente é exemplo do desarranjo de uma área tão vital
como a da seguridade social e assistência social.

O critério legal é falho. Mais falho ainda o critério judicial, eis que ambos tomam
apenas um fato isolado na cadeia de acontecimentos sociais: a idade, a renda e a
incapacidade laboral ou para a vida digna da pessoa, naquele instante em o pedido de
benefício é judicializado.

Afora às críticas e vacilações das decisões sobre o que é miserabilidade e deficiência,


temos total desprezo para as condições particulares do pretendente a beneficiário e seu
grupo familiar, tratados de forma estandardizadas, sem atenção ao princípio universal da
individualidade.

O processo de pauperização da pessoa e perspectivas de melhoras sequer são abordadas


nas periciais socioeconômicas. Ou seja, não importa o grau de zelo da pessoa com sua
vida social e econômica nos últimos anos que antecederam o pedido de benefício,
tampouco a potencialidade de melhora.

Simplesmente se desconhece que a vida de todos nós, ricos ou pobres, é um processo


com escolhas e respectivas consequências, que assumimos ou não com a
responsabilidade que sociedade democrática espera de cada de nós.

Por exemplo, posso conscientemente tomar um rumo na minha vida que sei que me
levará à ruína profissional, econômica e social, mas poderei na minha velhice repartir
com toda a sociedade o fracasso que escolhi.

Com um simples exemplo, se vê que as regras da norma ou das decisões judiciais


passam ao largo do que seria a Justiça no campo social.

A lei, a doutrina e a jurisprudência tomam como ponto essencial de suas decisões o


desfecho de um processo que vem se desenvolvendo muito antes do pedido de benefício
assistencial. O direito e outros aspectos da vida social esqueceram definitivamente do
livre arbítrio.

E assim há um viés de responsabilidade objetiva de toda a sociedade pelo malogro


alheio, sendo que o Estado (no sentido amplo do termo) também não se preocupa com a
análise conjuntural dos casos e o processo que desencadeou a necessidade.
Estas questões são colocadas para reflexão e poderão num outro momento ser objeto de
análise mais profunda do papel do Estado na assistência social.

3. Benefício Assistencial do LOAS

O “caput” do artigo 203 da Constituição Federal/88 exprime que a “assistência social


será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade
social...”, sendo que traz como objetivos a proteção da família, da maternidade, da
infância, da adolescência e da velhice (inciso I); aqui as prestações de saúde,
educacionais e psicológicas são essenciais.

O inciso V do artigo 203 garante uma renda mínima (um salário mínimo) mensal à
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à
própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Na LOAS encontramos:

Art. 2o A assistência social tem por objetivos: (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
I - a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da
incidência de riscos, especialmente: (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; (Incluído pela Lei
nº 12.435, de 2011)
b) o amparo às crianças e aos adolescentes carentes; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
c) a promoção da integração ao mercado de trabalho; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
d) a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à
vida comunitária; e (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso
que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
II - a vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorialmente a capacidade protetiva
das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos;
(Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
III - a defesa de direitos, que visa a garantir o pleno acesso aos direitos no conjunto das
provisões socioassistenciais. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
Parágrafo único. Para o enfrentamento da pobreza, a assistência social realiza-se de forma
integrada às políticas setoriais, garantindo mínimos sociais e provimento de condições para
atender contingências sociais e promovendo a universalização dos direitos sociais.

Como sujeitos protegidos, temos os beneficiários do sistema de assistência social são


todos aqueles que não tem renda para fazer frente a sua própria subsistência, nem da
família, os hipossuficientes, em potencial estado de necessidade.

O devedor destas prestações é o Estado brasileiro, personificado na pessoa jurídica da


UNIÃO; deve ocorrer a colaboração da sociedade civil, as chamadas entidades
filantrópicas, no escopo de prestar serviços de assistência social.

Sobre a organização administrativa, o sistema de assistência social é descentralizado e


participativo, denominado Sistema Único de Assistência Social (SUAS), de acordo com
a Lei n. 12435/11. O SUAS é composto pelos entes federativos (União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, mais respectivos conselhos de assistência social e das
organizações de assistência social). A coordenação nacional é do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Nas suas instâncias há o Conselho
Nacional de Assistência Social – CNAS e conselhos estaduais, do DF e municipais,
todos com representação paritária, com nove representantes do governo e nove
representantes da sociedade civil. O CNAS deve intervir nos planos e programas aos
desamparados, formulando políticas e controlando as ações.

O benefício assistencial financeiro é para os casos em que a reversão da situação social


é presumidamente muito difícil e o legislador constituinte reservou a concessão de
benefício pecuniário de um salário mínimo nacional, mas que também está sujeito a
comprovações periódicas do estado de necessidade.

Assim, o inciso V do artigo 203 da Constituição Federal/88 garante:

“Um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora


de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de
prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família, conforme dispuser a lei”.

O artigo 20 da Lei nº 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS)


regulamentou o inciso V do artigo 203 da Constituição Federal/88, sendo que podemos
concluir pelos requisitos ao benefício:

a) O sujeito ativo (credor) é o portador de deficiência (de qualquer idade) ou o idoso


(maior de 65 anos) que não comprove possuir meios de prover a própria manutenção e
nem de tê-la provida pela família. O sujeito passivo é o Estado brasileiro (União), sendo
que por razões administrativas e técnicas o benefício e deferido e mantido pelo INSS;

b) há critério objetivo de miserabilidade na Lei Orgânica da Assistência Social, ou seja,


a renda per capita da família deve ser inferior a ¼ do salário mínimo (art. 20, § 3º).
Segundo o artigo 34, parágrafo único do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), se
membro da família já recebe este benefício, o seu valor não será computado para fins do
cálculo proporcional. Família é composta por cônjuge, companheiro (a), pais, irmãos
solteiros, filhos solteiros que vivam sob o mesmo teto.

c) O portador de deficiência deve passar pela perícia médica do INSS e o idoso deve
comprovar 65 anos de idade (Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/03). Com a Lei n.
12435/11, a deficiência é o impedimento de longo prazo de natureza física, intelectual
ou sensorial de prazo mínimo de dois anos de incapacidade e sem vida independente)

4. Jurisprudência vacilante

O assistencialismo, como vimos acima, é marca histórica do nosso país, onde se


misturam políticos demagogos e uma parte da população procurando mais direitos do
que obrigações, se apegando a migalhas da face do Estado paternalista que vivemos
nestes mais de quinhentos anos desde o nosso descobrimento pelos portugueses.
Seja em razão do clima tropical, ou das facilidades da nossa terra, ou da maneira
generosa de nossa gente entender, aceitar e perdoar os deslizes de sociedade política e
da sociedade em geral, a verdade é que nações desenvolvidas do hemisfério norte têm
outra visão do assistencialismo e até culturalmente se chega a ter muito constrangimento
nos países europeus ricos um cidadão requerer um benefício assistencial.

Esta marca cultural nossa evidentemente afeta àqueles que dão a última palavra sobre a
concessão ou do benefício: os magistrados.

Neste sentido, passemos a ilustrar as vacilações na jurisprudência dos nossos tribunais,


com foco no critério de miserabilidade.

Tomemos inicialmente, como referência, os Juizados Especiais Federais de São Paulo,


que pelo seu gigantismo pode bem nos dá parâmetro de suas decisões.

Estas questões sociais e econômicas das pessoas pobres são disciplinadas por Manual
Interno do Juizado Paulista, elaborado por magistrados federais, no caso o “Manual de
Padronização dos Juizados Especiais Federais”, encontrado no site oficial do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região.

E assim os Juizados Especiais utilizam critérios não delineados na lei para apurar a
renda per capita da família, com dedução de despesas da família do idoso ou incapaz,
favorecendo a concessão do benefício.

As Turmas Recursais de São Paulo do Juizado Especial Federal da 3ª Região em 2008


aprovaram e consolidaram Súmulas para orientação no julgamento dos seus
magistrados, dentre elas destacamos a de número 05:

“A renda mensal „per capita‟ correspondente a ¼ (um quarto)


do salário mínimo não constitui critério absoluto de aferição da
miserabilidade para fins de concessão de benefício assistencial.
”.

Percebe-se uma flexibilização do art. 20 da Lei n. 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência


Social - LOAS) que regulamentou o inciso V do artigo 203 da Constituição Federal/88,
eis que a norma em questão fixou a renda mensal per capita como critério objetivo. A
questão social da população pobre que se socorre do benefício evidentemente
influenciou tal interpretação mais benigna há cerca de sete anos atrás, quando vivíamos
um cenário econômico mais favorável e franca recuperação do salário mínimo.

Mas, apesar do posicionamento das Turmas Recursais de São Paulo do Juizado Especial
Federal da 3ª Região,
a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, até então, se mantinha fiel
ao critério legal, conforme os seguintes julgados:

“PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO. AMPARO SOCIAL. ART.


203, V, CF/88. NÃO PREENCHIMENTO DE REQUISITO
LEGAL DE CONCESSÃO. RENDA PER CAPITA. ART. 20,
PARÁGRAFO 3º DA LEI Nº 8.742/93.
1. Para a concessão do benefício de prestação continuada
denominado de amparo social, é necessário a comprovação de
vários requisitos, dentre eles, que a pessoa seja idosa com 70
(setenta) anos ou mais e que a renda mensal per capita da
família seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
2. No caso, o grupo familiar possui renda per capita superior a
1/4 (um quarto) do salário mínimo, não atendendo ao requisito
da miserabilidade a que ser refere o art. 20, parágrafo 3º, da
Lei nº. 8.742/93.
3. Apelação improvida. TRF 5ª Região, Primeira Turma,
Desembargador Federal Paulo Machado Cordeiro (substituto),
AC 394.037-PE, processo n° 2006.83.03.000049-1, publicado
em 27.10.2006.”

PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO LEGAL. ARTIGO 557, § 1º,


CPC. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO
CONTINUADA - LOAS. 1. Não há como conceder o benefício
assistencial de prestação continuada se a renda mensal per
capita familiar supera muito o valor determinado no artigo 20,
da Lei nº 8.742/93. 2. O juiz não está adstrito a examinar todas
as normas legais trazidas pelas partes, bastando que, in casu,
decline os fundamentos suficientes para lastrear sua decisão. 3.
Salta evidente que não almeja a parte Agravante suprir vícios
no julgado, buscando, em verdade, externar seu inconformismo
com a solução adotada, que lhe foi desfavorável, pretendendo
vê-la alterada. 4. Agravo legal a que se nega provimento.

(TRF-3 - AC: 2816 SP 2000.61.17.002816-2, Relator:


DESEMBARGADOR FEDERAL ANTONIO CEDENHO, Data
de Julgamento: 19/04/2010, SÉTIMA TURMA)

Depois de conflitos de entendimentos entre os vários tribunais federais, o Supremo


Tribunal Federal – STF declarou na Reclamação (RCL) 4374 a inconstitucionalidade do
parágrafo 3º do artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993) que
prevê como critério para a concessão de benefício a idosos ou deficientes a renda
familiar mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo, por considerar que
esse critério está defasado para caracterizar a situação de miserabilidade. Foi declarada
também a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 da Lei 10.471/2003
(Estatuto do Idoso).

A citada Reclamação 4374 foi ajuizada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)
com o objetivo de suspender o pagamento de um salário mínimo mensal a um
trabalhador rural onde se alegava afronta de uma decisão judicial anterior do próprio do
STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1232, onde foi declarada
constitucional o critério de renda mensal per capita inferior a um quarto do salário
mínimo do artigo 20 da Lei n. 8742/93.

Cinco anos depois de declararem válida a norma, a maioria dos Ministros do STF
afirmaram que notórias mudanças fáticas, políticas, econômicas, sociais e jurídicas
sustentavam a mudança de entendimento, principalmente porque outros programas
assistenciais tinham exigências de renda per capita maior do que aquela prevista no
artigo 20, § 3º, da LOAS.

A Instrução Normativa n. 2 de 09/07/14 da AGU reconheceu a jurisprudência iterativa


do STJ e do STF e autorizou seus advogados públicos não recorrerem de decisões que
concedem os benefícios para idoso que tem outro familiar idoso ou inválido que já
recebe o benefício assistencial ou previdenciário de um (1) salário mínimo.

Um dos argumentos de peso sobre a necessidade de se manter o critério legal, ao menos


até que o Poder Legislativo alterasse a lei, é que há necessidade da correspondente fonte
de custeio para se majorar ou estender um benefício da seguridade social, como
preceitua o art. 195, §5º, da Lei Maior: Nenhum benefício ou serviço da seguridade
social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio
total.

Aliás, o próprio STF, julgando o Recurso Extraordinário RE 415454 / SC - SANTA


CATARINA, cujo o Ministro Relator também foi o Ministro Gilmar Mendes,
consignou:

“Nesse contexto, o cumprimento das políticas públicas


previdenciárias, exatamente por estar calcado no princípio da
solidariedade (CF, art. 3º, I), deve ter como fundamento o fato
de que não é possível dissociar as bases contributivas de
arrecadação da necessária dotação orçamentária exigida, de
modo prévio, pela Constituição (CF, art. 195, §5º). (...) A
seguridade social, autêntica realidade institucional disciplinada
constitucionalmente entre nós, obriga o legislador a promulgar
um complexo normativo que assegure sua existência,
funcionalidade e utilidade pública e privada (...) Isto é, ela deve
ser aplicada, tão-somente, aos novos beneficiários que, por uma
questão de imposição constitucional da necessidade de previsão
de fonte de custeio (CF, art. 195, §5º), fazem jus a critérios
diferenciados na concessão de benefícios”

Ou seja, a chamada “regra da contrapartida” do art. 195, §5º da Lei Maior, válida para
toda a seguridade social, teve dois tratamentos diferenciados na Corte Supremo: no caso
onde se julgava pensão por morte (benefício previdenciário com clara feição assistencial
pela ausência de carência por décadas, até o advento da Medida Provisória n. 664/14)
não se admitiu a extensão do benefício para beneficiários antigos; mas, no caso do
benefício assistencial, a Corte Superior desconsiderou o art. 195, §5º da Lei Maior, e
por outros argumentos julgou inconstitucional o critério objetivo da lei do que seria
miserabilidade.

O que se observa pela variação de entendimento em curto espaço de tempo do STF é


que o Poder Judiciário, como já afirmado no início deste trabalho quando da
promulgação da Constituição Federal de 1988, avançou na dianteira dos demais Poderes
da República para assegurar direitos sociais aos brasileiros, e de forma precipitada
importou conceitos e principiologia de outras nações mais desenvolvidas.
Não se apercebendo das peculiaridades próprias do sistema cultural nacional, as
decisões judiciais neste campo do assistencialismo se institucionalizaram mais que as
próprias leis discutidas e votadas no legislativo, passaram a dar o tom da política
assistencial do Estado brasileiro.

A consequência mais imediata das oscilações se deu no próprio Poder Judiciário e o


fantástico número de ações judiciais contra o Estado brasileiro nas áreas da seguridade
social. Comentou o Ministro do STF Gilmar Mendes sobre o número de ações
judiciais:

“A falta de prestação de direitos, do fornecimento de


determinados bens, assistência social ou matéria de Previdência
Social estimulam essa litigiosidade. Temos que integrar mais os
sistemas para diminuir a judicialização. Alguns órgãos não
cumprem bem essa função. As agências reguladoras deveriam
dirimir controvérsias, seja nas situações concretas, expedindo
orientações vinculantes para os prestadores de serviço, seja de
forma geral, arbitrando as situações. Mas isso não ocorre.4”

Assim, na visão do Poder Judiciário a culpa é da Administração Pública, que é


gerenciada primordialmente pelo Poder Executivo.

Ou seja, os Poderes se digladiam olvidando-se que o Poder é único, como pontifica


Dalmo de Abreu Dallari:

“Embora seja clássica a expressão separação de poderes, que


alguns autores desvirtuaram para divisão de poderes, é ponto
pacífico que o poder do Estado é uno e indivisível. ” 5

Não há mais espaço neste século XXI de síndrome da vitimização da população e uma
visão de divisão de Poderes que somente enfraquece o Estado brasileiro.

Outra consequência inevitável foi nas contas públicas, com o notório


desequilíbrio dos orçamentos fiscal e da seguridade social nas últimas décadas após a
promulgação da Constituição de 1988.

5. A ideologia nas decisões. Pensamento sistêmico

Há normas fortemente carregadas de valores e exercem a influência sobre outras


normas, como são os princípios fundamentais na sua República prescritos nos artigos 1°
a 5° na nossa Carta Política.

As ideologias avaliam os próprios valores aberto e flexíveis para, no resultado de um


consenso dentro dos detentores do Poder, estabilizar os conteúdos normativos. Em outro
sentido, as ideologias hierarquizam os valores. Assim, numa divisão simplista entre

4
http://www.conjur.com.br/2013-jul-07/entrevista-gilmar-mendes-ministro-supremo-tribunal-federal,
acesso em 28/07/15.
5
Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 215.
ideologia liberal e conservadora, podemos dizer que na prevalência da ideologia
conservadora o caráter econômico, a propriedade privada e a plena liberdade
empresarial serão o mote desta época. Já na prevalência da ideologia liberal, direitos
sociais serão prioritários e aspectos econômicos, o direito de propriedade e a plena
liberdade empresarial serão no mínimo relativizados.

Sobre a época em que vivemos, lembramos as palavras de Miguel Reale:

“Não é segredo para ninguém que a nossa é uma época


imediatista e pragmática, e que vivemos, mais do que em
qualquer outra, em um ambiente no qual o valor econômico
polariza todos os demais”6

Ocorre que, pela edição da obra do professor Miguel Reale que utilizamos (1996), o
Brasil, particularmente, vivia a era de governos mais preocupados com a estabilização
da moeda, o combate à inflação e busca da responsabilidade fiscal.

Ou seja, a ideologia dos anos 1990, que certamente refletia nas decisões de impacto
econômico e social do Poder Judiciário da época, se mostrava “legalista” (no sentido
conservador da palavra); mas houve um embate ideológico nas eleições presidenciais
dos últimos 15 anos, com o pendulo guinado para a esquerda nos anos 2000 (em toda
América Latina, aliás), o que refletiu nas decisões do legislativo e do judiciário.7

Ocorre que, com a mudança ideológica ocorrida a partir em 2002 no Brasil, quando o
Partido dos Trabalhadores (PT) ganhou as eleições presidenciais, se teve um avanço nos
programas sociais, justamente aqueles referidos na decisão do STF que flexibilizou o
artigo 20 da Lei n. 8742/93.

Ou seja, o Poder Judiciário, pressionado a se manifestar pelos jurisdicionados apenas


constatou uma quebra de coerência e lógica nos programas assistenciais: para uns, por
exemplo, bastava a comprovação de no máximo um (01) salário mínimo per capita da
família, para outros, como o benefício assistencial do idoso ou incapacitado
hipossuficiente, necessário no máximo ¼ de renda per capita.8

Ou seja, o princípio da igualdade ficou seriamente comprometido quando não se


atualizou a renda exigida do artigo 20 da Lei n. 8742/93.

A falta de coordenação dos Poderes, especialmente do Executivo e do Legislativo, fez o


Judiciário apenas constatar o natural: não há dois tipos de pobres para fins de programas
assistenciais.

Tem-se que o pensamento sistêmico carece de apreço entre as instituições de Poder.


Apenas para relembrar, foi durante as décadas de 1950 e 1960 que o pensamento
sistêmico exerceu forte influência nas ciências exatas e naturais. Mas, no campo do

6
“Filosofia do Direito”, p. 231
7
Já foi observado Fritjof Capra e Pier Luuigi Luisi que “diferenças de valores dão lugar a conflitos de
interesses, que constituem a origem de relações de poder” (in “A Visão Sistêmica da Vida”, p. 368)
8
Vide Reclamação n.4374 onde o STF faz referência a outros critérios de pobreza nas Leis n. 10836/04
(Bolsa Família), 10689/03 (Programa Nacional de Acesso à Alimentação e 10219/01 (Bolsa Escola).
pensamento das ciências sociais não se pode negar a influência do positivismo, onde as
ciências sociais, aí incluído o direito, deveriam procuram por leis gerais do
comportamento humano, enfatizando a quantificação e rejeitando as respostas que
buscassem fundamento nos fenômenos subjetivos, tais como intenções e propósitos.

Apesar do pensamento sistêmico do século XX, na busca da integração dos fenômenos


sociais, somente no fim do deste século XX, quando se desenvolveu a teoria da
complexidade e graças aos estudos de Giddens e Habermas é que se se tem tentativas de
integrar estudos sobre o mundo exterior das causas e efeitos e o mundo jurídico dos
valores e significados.

No caso do benefício assistencial e o critério de miserabilidade, faltou uma atenção dos


Poderes constituídos para harmonizar as regras nos diversos programas assistenciais,
ocasionando a perplexidade das mudanças de entendimento na jurisprudência.

6. Conclusão

Como se colocou no início deste trabalho, o estudo tentou mostrar as oscilações da


jurisprudência brasileira sobre o benefício assistencial e o critério de miserabilidade.

As conclusões inicias e parciais pelos próprios limites deste artigo, mostram que a
marca ideológica que permeou as decisões judiciais e as respectivas críticas do meio
jurídico, acadêmico e político.

De uma fase de firmamento da força da interpretação literal do texto legal, que


coincidiu com um momento de governo conservador, com proeminência de aspectos
econômicos, orçamentários e controle dos gastos públicos, vimos que o próprio
Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário, num governo de marca
liberal e com enfoque nos problemas sociais, mudou de posição, dando uma
interpretação flexível à Lei

Evidentemente as relações ora traçadas entre o poder político dominante, sua ideologia
e a influência nas decisões judiciais está a merecer mais análise e profundidade, mas o
certo é que a assistência social não admite critérios diferenciados de renda para a pessoa
pobre.

BIBLIOGRAFIA

CAPRA, Fritjof e LUISI, Pier Luigi. A Visão Sistêmica da Vida. São Paulo: Cultrix,
2014.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo:


Saraiva, 1998.

HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. São Paulo: Quartier Latin, 2014.
REALI, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1996.

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