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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


HISTÓRIA ANTIGA II - Sarah Azevedo
Trabalho final

Priscila dos Santos Lopes | Noturno | Nº USP 10326833

Escravidão: um conceito, muitos contextos


Como o estudo da escravidão na Roma Antiga promove um novo olhar sobre este conceito

Resumo Abstract

Este artigo aborda a escravidão na Roma This article adresses slavery in Ancient
Antiga como forma de repensar os Rome as a way to rethink the cultural
impactos culturais na construção de uma impacts on the making off a society that
sociedade que detém mão de obra escrava, holds slave labor, as well to settle the
assim como assentar a importância dos importance of the studies of Ancient Rome
estudos de Roma Antiga na reconstrução on the reconstruction of the concept of
do conceito de escravidão, para além da slavery, beyond the ideia of forced labor
noção de trabalho forçado e manumissão. and manumission.

Palavras-chave: Escravidão; Roma Antiga; Keywords: Slavery; Ancient Rome;


Cultura; Sociedade. Culture; Society.

A experiência com o mundo escravista nos Estados Unidos, Caribe e Brasil nos
últimos séculos imprimem certas noções que cristalizaram o conceito “escravidão”. Para além
da ideia de trabalho forçado, tende-se a reduzir os impactos culturais da escravidão em uma
sociedade escravista. O foco na economia escravista acaba por gerar, no caso dos estudos
antigos, principalmente, anacronismos perigosos no tocante à escravidão na Itália Romana. O
conceito “escravidão” passa então a superar o estudo dos contextos específicos deste tipo de
trabalho forçado em diversas sociedades, tanto na antiguidade como na atualidade,
transitando por entre diversos contextos de forma quase que atemporal.
Fábio Joly em “A escravidão na Roma Antiga” denuncia a necessidade de redefinir e
rediscutir o conceito de escravidão para o contexto da História Antiga. Os estudos acerca da
escravidão romana não podem ser separados dos estudos acerca da sociedade romana, uma
vez que seus contextos específicos geraram relações de poder e dominação espécíficas. Além
disso, a escravidão não era a única forma de submissão conhecida no mundo antigo, de forma
que a simplificação da escravidão como forma de economia ou apenas desvio moral reduz as
possibilidades conceiturais, de estudos históricos e da compreensão da escravidão na Roma
Antiga e, em alguma medida, no mundo moderno.
Os estudos atuais sobre a escravidão no mundo romano mostram, dadas as muitas
revisitações ao tema ao longo dos anos, que a escravidão na Itália Romana compunha uma
ampla noção de mundo, no universo antigo, uma vez que perpassava vários campos da vida
destes povos. E, ainda assim, é difícil saber se esta forma de submissão se manteve inalterada
ao longo dos séculos, e se sofreu alterações, como se dispuseram as novas ordens escravistas
no mundo romano.
Sabe-se que a escravidão teve sua importância econômica, mas ao mesmo tempo,
muito se perde quando não são consideradas as relações sociais construídas a partir de uma
sociedade que tem a escravidão como uma importante instituição para seu desenvolvimento,
não apenas no sentido econômico, mas enquanto sociedade e ideologia. O termo escravidão
acaba servindo de guarda-chuva para tratar de uma série de relações de dependência, que não
necessariamente possuem os mesmos graus de coerção.
Norberto Guarinello, por exemplo, levanta discussões sobre a noção de trajetória
escrava no mundo antigo, buscando trazer o olhar historiográfico para as noções dos
processos que compõem as relações entre escravidão e manumissão de uma forma complexa.
Pensando na sociedade romana como tendo a escravidão como parte de seu imaginário de si
mesma, a escravidão, neste contexto, não pode ser aplainada, estudada apenas como uma
forma de dominação baseada nas forças econômicas ou na carência de mão-de-obra. Diversos
são os fatores que contribuem para a construção e manutenção de uma sociedade escravista.
E diferentes sociedades têm diferentes necessidades e, portanto, estabelecem a forma de
dominação escravista de diferentes formas e com diferentes impactos.
Menos do que uma mera questão de mão de obra forçada e liberdade, a escravidão no
mundo antigo servia conceitualmente aos sistemas de dominação diversos, sendo utilizada,
inclusive como metáfora. Esta prática também era, portanto, uma ideia, um conceito, um
suporte teórico para se conceber o mundo romano e as políticas de poder.
Estudar escravidão na Roma antiga, no entanto, não reduz, no caso da escravidão
moderna, as críticas aos impactos geracionais nas populações negras e africanas, por
exemplo, mas amplia nosso olhar para pensar, também nos casos historicamente mais
próximos, o funcionamento do sistema escravista, seus impactos na construção da sociedade
e sua presença no imaginártio coletivo. A escravidão, tanto no mundo antigo como no mundo
moderno é um fenômeno complexo, que mobiliza não só um sistema econômico, mas sistema
político e de relações de poder, sistema de ideias e de sociedade.
Tratando sobre o mundo antigo propriamente, apesar das dificuldades de compreender
a instituição escravista neste universo sócio-político, a pesquisa de Joly auxilia na construção
do que seria a sociedade escravista em Roma. Vemos na sociedade romana, uma visão, ainda
que não exclusiva, de escravidão menos ligada à natureza das coisas e mais ligada ao
contexto, como é o caso do contexto de guerra e dominação de outros povos. Os escritos da
época parecem não contar muito com a visão aristotélica de que alguns nasceram para serem
dominados. Mas a instituição escravista, de todo modo, não era questionada em termos de
parte da estrutura social, na mesma medida em que não compunha apenas um suporte de
cunho econômico naquela sociedade. Sendo um fenômeno complexo, a escravidão
perpassava diversos aspectos da vida romana. Além disso, a política da escravidão em Roma
também pressupõe uma política de manumissao, uma vez que, como o próprio Guarinelllo
expõe, a trajetória escrava envolve vários aspectos políticos e sociais, não representando
apenas uma dicotomia, mas um lugar social e um imaginário específico. Longe de tratar todos
os aspectos já estudados acerca da escravidão na Roma Antiga, este breve levantamento
traça, de maneira simples, a complexidade da sociedade escravocrata romana. E ainda, traçar
o contexto romano auxilia na compreensão dos perigos de imprimir um olhar das
experiências recentes do mundo ocidental nos estudos de Roma e vice e versa. A escravidão é
um fenômeno e uma instituição muito complexa, tanto no seu funcionamento interno quanto
no lugar que ocupa na estrutura social e nacional, nos casos mais recentes. Mas estas outras
facetas da sociedade romana nos permite abordar o conceito da escravidão a partir de novas
perspectivas. A compreensão da escravidão enquanto parte não só do mundo concreto das
relações comerciais, mas do imaginário social, das relações políticas e culturais, permite
pensar em outras perspectivas no estudo da escravidão em outras sociedades. O estudo da
escravidão na Roma Antiga pode servir no sentido metodológico da pesquisa sobre a temática
da escravidão em contextos distintos. A ideia de escravidão como forma de manutenção da
sociedade, por exemplo, é uma noção importante do funcionamento da sociedade romana e,
de alguma forma, detém aproximações com a escravidão no Brasil, uma vez que, apesar do
foco no uso da mão de obra negra africana escravizada como forma de gerar lucros na colônia
nas Américas, a escravidão, ainda assim, se tornava uma forma de ocupar o território, além
de explorá-lo. Este exemplo nos ajuda a traçar certas aproximações entre o mundo romano e
nossa história recente.
A escravidão enquanto instituição fez e, infelizmente, até hoje faz parte da realidade
humana, tendo uma presença forte em muitos contextos da história da humanidade. Estes
contextos, porém, são muitos e distintos entre si e, por isso, há a necessidade de se olhar para
a escravidão em cada contexto específico, considerando a ordem social e relações comerciais
no estudo da sociedade em questão.
Por fim, o estudo da Roma Antiga revela o caráter de atualidade dos estudos antigos,
uma vez que podem ser observadas tais sociedades como uma espécie de laboratório, onde é
possível entender como certos tipos de relações, ideologias e lógicas foram se construindo na
mentalidade ocidental. Ademais, a História Antiga é capaz de permitir a apreensão da história
e de problemas históricos a partir de novos olhares e perspectivas, que, dadas as revisões
históricas, também denunciam as problemáticas do uso “nacional” da história e de
interpretações enviesadas, mostrando que cabe à história interpretações que não respondam
perguntas do presente mas que permitam sua melhor compreensão. Olhar e buscar em nosso
passado histórico a construção de instituições como a escravidão, por exemplo, permite
entender os anacronismos quando da transposição de temporalidades diferentes buscando
responder a problemas distintos. As aproximações nos estudos históricos são necessárias e,
quando bem intencionadas, funcionam como aporte teórico e metodológico e não explicativo.

Referências Bibliográficas

Guarinello, N. “Uma Morfologia da História: As Formas da História Antiga”, Politeia, v. 3


(2003) p. 41-61.
Joly, Fábio Duarte. Escravidão na Roma Antiga. Alameda, São Paulo: 2016.

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