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DO
Rafael Vaz Machry
Thizá Massaia Londero Gai
André Luiz Loeser Corazza
Igor Reis Pereira
Jéssica Nascimento Monte
Larissa Maria Faccin Blás
Leonardo Rodrigues
Murilo Daminelli Favaro

CRI
Organizadores

DE
ESTUDANTE
PARA ESTUDANTE

NO
LO
GIA
Este projeto recebeu apoio financeiro da Sociedade Brasileira de
Endocrinologia e Metabologia - RS e da Universidade Federal de Santa Maria
(Fundo de Incentivo ao Ensino - FIEn 2021).
Rafael Vaz Machry
Thizá Massaia Londero Gai
André Luiz Loeser Corazza
Igor Reis Pereira
Jéssica Nascimento Monte
Larissa Maria Faccin Blás
Leonardo Rodrigues
Murilo Daminelli Favaro

Organizadores

Santa Maria, 2022


© 2021, ORGANIZADORES

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

E ndocrinologia de estudante para estudante [livro


eletrônico] / organização Rafael Vaz Machry...[et al.].
Porto Alegre, RS : Pubblicato Editora, 2022.
PDF
Outros organizadores: Thizá Massaia Londero Gai,
André Luiz Loeser Corazza, Igor Reis Pereira, Jéssica
Nascimento Monte, Larissa Maria Faccin Blás, Leonardo
Rodrigues, Murilo Daminelli Favaro.
Bibliografia.

ISBN 978-65-87636-16-0

1. Endocrinologia I. Machry, Rafael Vaz. II. Gai,Thizá


Massaia Londero. III. Corazza, André luiz Loeser.
IV. Pereira, Igor Reis. V. Monte, Jéssica Nascimento. VI.
Blás, Larissa Maria Faccin. VII. Rodrigues, Leonardo. VIII.
Favaro, Murilo Daminelli.

22-118408 CDD-616.4

NLM-WK-110

Índices para catálogo sistemático:


1. Endocrinologia : Medicina 616.4
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

Executado por

pubblicato@pubblicato.com.br
www.pubblicato.com.br

51 3013.1330

Agência Brasileira do ISBN


ISBN 978-65-87636-16-0
Prefácio

A endocrinologia é uma das áreas mais instigante da medicina. As nos-


sas glândulas trabalham como uma orquestra de hormônios, capazes de
interagir entre si e refletirem suas ações nos diversos sistemas do corpo
humano. Em meio a isso, há o médico ou estudante de medicina ten-
tando desvendar seus mistérios com base em anamnese e exame físico
minuciosos, além de testes complementares cheios de nuances.
Apesar de tudo se encaixar quando se conhece a fisiologia do sistema
endócrino e a fisiopatologia das doenças endocrinológicas, os alunos
de medicina ainda temem as armadilhas dessa fascinante área. Con-
siderando que alguns dos nossos discentes simplesmente amam a es-
pecialidade, e outros não dividem o mesmo sentimento, surgiu a ideia
deste livro.
Este minucioso trabalho foi elaborado por diversos estudantes de medi-
cina, sob tutoria dos seus endocrinologistas orientadores. A ideia central
foi desenvolver um material complementar ao estudo, com linguagem
acessível e de fácil compreensão, escrita pelos próprios estudantes, e
destinada a seus pareces.
Aos alunos, perguntamos: Como vocês gostariam de estudar endocrino-
logia? Para responder a esta pergunta, nossos estudantes desenvolveram
os capítulos de diversos assuntos. Os temas abordados vão desde o pre-
valente diabetes mellitus, até às enfermidades não tão frequentes, como
as doenças da neuroendocrinologia.
Não temos a ousadia de tentar substituir a literatura tradicional da Endo-
crinologia. Entretanto, desejamos trazer os assuntos de forma a encantar
nossos leitores. Convidamos a todos os estudantes, a partir de agora, a
descobrirem porque somos apaixonados pela Endocrinologia e, com a
leitura do livro, compreenderem perfeitamente os segredos dessa linda
especialidade.
Excelente leitura a todos!

Rafael Vaz Machry


Thizá Massaia Londero Gai
UNIDADE 1: DIABETES
Capítulo 1: DiabetesMellitus tipo 1 p. 09
Capítulo 2: DiabetesMellitus tipo 2 p. 27
Capítulo 3: Complicações Crônicas do DM p. 50

UNIDADE 2: TIREOIDE
Capítulo 4: Hipotireoidismo p. 72
Capítulo 5: Hipertireoidismo p. 91
Capítulo 6: Nódulos Tireoidianos p. 107
Capítulo 7: Câncer de Tireoide p. 121
Capítulo 8: Tireoidites p. 135

UNIDADE 3: HIPÓFISE
Capítulo 9: Hiperprolactinemia p. 149
Capítulo 10: Acromegalia e gigantismo p. 166
Capítulo 11: Síndrome de Cushing p. 180
Capítulo 12: Adenomas hipofisários não funcionantes p. 191
Capítulo 13: Hipopituitarismo p. 199
Capítulo 14: Diabetes insipidus p. 218

UNIDADE 4: ADRENAIS
Capítulo 15: Insuficiênciaadrenal p. 225
Capítulo 16: Hiperaldosteronismo p. 245
Capítulo 17: Feocromocitoma p. 255
Capítulo 18: Carcinoma adrenal p. 264

UNIDADE 5: GÔNADAS
Capítulo 19: Síndromedos ovários policísticos p. 272
Capítulo 20: Hipogonadismo feminino e climatério p. 288
Capítulo 21: Hipogonadismo masculino p. 303

UNIDADE 6: OSTEOMETABOLISMO
Capítulo 22: Hiperparatireoidismo p. 315
Capítulo 23: Hipoparatireoidismo p. 328
Capítulo 24: Vitamina D p. 335
Capítulo 25: Osteoporose p. 348
Capítulo 26: Raquitismo p. 363

UNIDADE 7: ENDOCRINOPEDIATRIA
Capítulo 27: Distúrbios de diferenciação sexual p. 376
Capítulo 28: Hiperplasia adrenal congênita p. 399
Capítulo 29: Baixa estatura p. 417
Capítulo 30: Puberdade precoce p. 431
Capítulo 31: Puberdade tardia p. 452

UNIDADE 8: URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA


Capítulo 32: Emergências hiperglicêmicas p. 462
Capítulo 33: Emergências tireoideanas p. 480

UNIDADE 9: OUTROS TEMAS RELEVANTES


Capítulo 34: Obesidade p. 508
Capítulo 35: Dislipidemia p. 524
Capítulo 36: Terapia de afirmação de gênero p. 537

AUTORES p. 548
UNIDADE 1. DIABETES
8

UNIDADE 1:

DIABETES
UNIDADE 1. DIABETES
9

Capítulo 1

Diabetes Mellitus Tipo 1


Eduardo Holshbach Cantarelli
Leonardo Rodrigues
Luana Mendes de Oliveira
Virgínia Vezzosi Fournier
Murilo Daminelli Favaro
Ticiana da Costa Rodrigues

1. Introdução:

O diabetes mellitus (DM) é um grupo de doenças metabólicas que se


caracteriza pela hiperglicemia crônica, ou seja, níveis elevados de glico-
se no sangue. As duas formas mais comuns são o diabetes mellitus tipo 1
e o tipo 2. Neste capítulo, abordaremos o DM tipo 1, que consiste no resul-
tado de uma resposta inflamatória autoimune que desencadeia a destrui-
ção das células beta-pancreáticas produtoras de insulina, resultando em
uma deficiência absoluta desse hormônio. Essa destruição ocorre devido
a processos idiopáticos (mais raros) ou imunológicos, sendo que os fato-
res genéticos desempenham um papel predisponente fundamental. Em
relação ao DM tipo 2, você vai aprender no capítulo seguinte.
Embora essa forma de DM geralmente tenha início durante a infân-
cia, a doença pode ocorrer em qualquer idade, sendo a cetoacidose dia-
bética frequentemente a sua primeira manifestação clínica. Um tipo
especial da forma imunológica de diabetes é o LADA (diabetes autoimu-
ne tardio em adultos), no qual a condição metabólica do diabetes não
ocorre até a idade adulta (cerca de 25 anos). As características clássicas
associadas ao quadro clínico são poliúria, enurese secundária e noctú-
ria em crianças, polidipsia, polifagia e emagrecimento ou seja são os
mesmos sintomas de qualquer diabetes descompensada. Além disso,
uma aparência magra associada à perda de peso é um achado muito
característico para pacientes diabéticos tipo 1.
O metabolismo anormal, associado à hiperglicemia crônica, causa
alterações microvasculares e macrovasculares que, eventualmente,
resultam em complicações cardiovasculares, renais, oftalmológicas e
neurológicas. A insuficiência renal é a principal complicação responsá-
vel pela redução da expectativa de vida dos pacientes com DM.
Devido à natureza crônica e progressiva do DM tipo 1 e tipo 2, é ne-
cessária uma abordagem de tratamento abrangente e multidisciplinar.
UNIDADE 1. DIABETES
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O diabetes mellitus tipo 1 depende essencialmente da administração de


insulina devido à sua deficiência absoluta desse hormônio. Por isso, os
pacientes devem aprender a coordenar as aplicações de insulina e os
carboidratos da dieta, e requerem aconselhamento sobre autocuidado
para melhorar o controle glicêmico e reduzir o risco de hipoglicemia
ou hiperglicemia com risco de vida, a fim de prevenir as complicações
relacionadas à doença.

2. Epidemiologia:

Saber alguns aspectos epidemiológicos da doença nos permite ter


maior atenção na clínica e entender melhor as tendências do perfil de
paciente. Assim, enquanto o diabetes mellitus do tipo 2 é responsável
pela grande maioria dos casos de diabetes, o DM tipo 1 representa de
8 a 10% de todos os casos. No entanto, hoje, um número expressivo de
pessoas convive com o DM tipo 1, chegando a 46 milhões de pessoas
pelo mundo. Além disso, a incidência do DM tipo 1 está aumentando
globalmente de 3 para 5% ao ano, particularmente entre crianças com
menos de cinco anos de idade. Estima-se que teremos um incremento
na incidência de DM1 em 25% até 2030.
O DM tipo 1 é responsável por aproximadamente 80% dos novos
diagnósticos de diabetes em pacientes com menos de 19 anos de idade
nos Estados Unidos, caracterizando a forma mais comum de diabetes
na infância. Variações geográficas são importantes fatores na incidên-
cia da doença: por exemplo, a cada 100 mil indivíduos com menos de
15 anos, a incidência é de 38,4 na Finlândia, de 7,6 no Brasil e de 0,5 na
Coreia do Sul. Porém, cerca de 79% dos casos ocorrem em países em
desenvolvimento, com tendência ao aumento da prevalência nas próxi-
mas décadas, corroborando com teorias que apontam a influência dos
fatores ambientais.
Embora as diferentes incidências entre os países possam ser par-
cialmente explicadas devido à genética, as diferenças dentro dos países
e entre os países vizinhos com composição genética semelhante estão
provavelmente relacionadas a fatores ambientais ainda pouco elucida-
dos. Alguns desses fatores que se tornaram mais comuns nas últimas
décadas e que também podem estar associados a um maior risco de
diabetes tipo 1 na infância são maior idade materna no parto, obesidade
materna pré-gestacional e cesariana. Apesar disso, essas informações
carecem, ainda, de mais estudos.
A idade de apresentação do DM tipo 1 de início na infância tem um
padrão que é dividido em dois picos. O primeiro pico acontece entre os
UNIDADE 1. DIABETES
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4 e 6 anos de idade, enquanto o segundo ocorre no início da puberdade,


entre os 10 e 14 anos. No entanto, cerca de 45% das crianças já apre-
sentam clínica da doença antes dos 10 anos de idade. Além disso, você
precisa lembrar que a doença pode ocorrer em qualquer idade, fato que
leva alguns casos de DM tipo 1 em adultos a serem erroneamente diag-
nosticados como casos de DM tipo 2.
Globalmente, a proporção de homens e mulheres com diagnóstico
de DM1 na idade adulta jovem é de aproximadamente 1,5:1. A mesma
proporção entre homens e mulheres, mundialmente, também foi vista
entre meninos e meninas. Nessa relação, no entanto, existem algumas
particularidades: a incidência é maior em meninos em países com alta
incidência, enquanto em países com baixa incidência, as meninas são
mais afetadas.
Por fim, a maioria das pessoas que desenvolvem DM tipo 1 (mais de
85%) não tem parentes de primeiro grau com a doença. A incidência de
casos esporádicos ocorre, em parte, pois em torno de 40% da população
geral carregam os alelos HLA de alto risco para o diabetes tipo 1.

3. Fisiopatologia:

Agora que você já tem uma ideia melhor sobre como a doença apare-
ce no mundo, vamos entender o que ocorre no corpo dos pacientes com
DM. Essa parte será essencial para você entender as manifestações clí-
nicas, o tratamento e as complicações da doença.
Você já sabe como funciona a fisiologia normal do metabolismo dos
carboidratos e o funcionamento do pâncreas: o objetivo final é a utiliza-
ção da glicose como fonte energética pelo corpo (encéfalo, músculos, te-
cido adiposo, entre outros). Para que isso aconteça, uma complexa rede
neuro-hormonal está envolvida, sendo a insulina o principal regulador.
A insulina é produzida no pâncreas, nas células beta das ilhotas
pancreáticas, e é responsável por permitir a entrada da glicose nas cé-
lulas, por meio dos receptores de insulina (IRs, de insulin receptors).
Esses receptores são a chave para a abertura dos transportadores de
glicose (GLUTs, de glucose transporter) e permitem que a molécula de
glicose possa entrar nas células e participar do metabolismo energético
celular, resultando na produção de ATP. No entanto, a insulina não faz
só isso: ela também funciona como sinalizador hormonal para diversos
processos homeostáticos.
Quando estamos em jejum, os níveis de glicose plasmáticos são bai-
xos, e, portanto, também são os de insulina. Os baixos níveis de insu-
UNIDADE 1. DIABETES
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lina e glicose estimulam as células alfa-pancreáticas para a produção


de glucagon, que é o principal hormônio contrainsulínico (ou seja, que
faz a ação contrária à da insulina). O glucagon, então, sinaliza para o
fígado a necessidade de produção de glicose, por meio da glicogenólise
e gliconeogênese (quebra de glicogênio hepático e produção de novas
moléculas de glicose, respectivamente) e também induz a redução da
utilização de glicose pelos tecidos muscular e adiposo, que passam a
usar fontes energéticas alternativas (como ácidos graxos e aminoáci-
dos). É importante lembrar que, nesse processo, existem tecidos que
utilizam glicose de forma independente de insulina, como é o caso do
nosso grande chefe, o encéfalo.
E o que ocorre nos pacientes com diabetes tipo 1, então? Muito sim-
ples: não há produção de insulina pelas células beta-pancreáticas, com
consequente deficiência absoluta de insulina. Você consegue perceber
o problema? Precisamos agora entender os motivos pelos quais ocorre
a falha nessa produção.
A deficiência de insulina decorre, na imensa maioria dos casos, da
destruição autoimune das células beta nas ilhotas de Langerhans. Indi-
víduos com mutações genéticas específicas associadas ao HLA (human
leukocyte agent) são geneticamente suscetíveis a desenvolver a doen-
ça. Mutações poligênicas são as mais associadas, enquanto heranças
monogênicas são raras e, frequentemente, associadas a síndromes ge-
néticas graves. Como ocorre em boa parte das doenças autoimunes, um
estímulo ambiental geralmente é necessário para desencadear o pro-
cesso (um gatilho). Diversos estímulos já foram identificados na gênese
do DM tipo 1, sendo o principal deles as infecções virais, onde ocorre um
mimetismo entre os antígenos virais e as proteínas presentes na mem-
brana das células beta-pancreáticas. Com isso, o sistema imunológico
“se confunde” e destrói, erroneamente, as células beta-pancreáticas, o
que confere à doença o título de autoimunidade. Apesar do conheci-
mento dos possíveis desencadeantes ambientais, dificilmente é possí-
vel identificá-los na prática. Em poucos casos, as mutações genéticas
podem ser as únicas responsáveis pelo desenvolvimento da doença.
A destruição autoimune das células beta-pancreáticas, entretanto,
não ocorre de forma abrupta. Ela ocorre ao longo dos anos, havendo um
grande período assintomático a partir do início do processo. Como te-
mos uma reserva grande de ilhotas pancreáticas, é necessário que haja
uma destruição de mais de 90% dessas células para que a demanda de
insulina seja maior do que a oferta e, portanto, haja as manifestações
da doença. Isso justifica o fato de que muitos pacientes levam anos para
apresentar os sinais e sintomas da doença, como você poderá perce-
UNIDADE 1. DIABETES
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ber na figura 1. Quanto mais cedo o paciente teve apresentação clínica


e diagnóstico da doença, mais agressivo foi o processo de destruição
autoimune.
Nesse sentido, temos a moderna classificação do diabetes LADA (do
inglês latent autoimmune diabetes in adults), ou diabetes autoimune
latente do adulto. Nesses casos, ocorre uma destruição ainda mais len-
ta e gradual do que o habitual no DM tipo 1, levando a manifestações
tardias da doença, já na vida adulta, entre os 30 e 50 anos. Isso leva à
confusão de diagnóstico com o DM tipo 2, que possui uma fisiopatologia
muito diferente da do DM tipo 1, como você verá no próximo capítulo.
Em suma, pra você relembrar tudo que discutimos: Inicialmente, te-
mos um sujeito geneticamente predisposto. Esse sujeito terá um gatilho
para que aconteça o processo de destruição autoimune nas ilhotas be-
ta-pancreáticas, em que o tempo entre o processo destrutivo e a abertu-
ra do quadro clínico diagnóstico da doença é variável.
MASSA DE CÉLULAS B-PANCREÁTICAS

Potencial evento
desencadeante
Início da destruição
Alterações
autoimune das células
imunológicas Redução
com liberação progressiva Aumento
normal de da liberação gradual
insulina de insulina dos níveis
com níveis de glicose.
de glicose Início da
normais instalação de
manifestações
clínicas do
diabetes

TEMPO EM ANOS DIAGNÓSTICO

Figura 1: Relação entre a perda de massa de células beta-pancreáticas e o


aparecimento dos sinais e sintomas clínicos da doença, em função do tempo.
Elaborada pelo autor.

4. Anamnese:

Agora que você já entendeu o que leva à doença, conseguiremos en-


tender com facilidade qual a apresentação do DM tipo 1. Antes de qual-
quer coisa, devemos lembrar que, devido às bases genéticas da doença, a
maioria dos pacientes que se apresenta com DM tipo 1 são crianças, mas
a doença pode se manifestar em qualquer idade.
Após a destruição de boa parte das células beta das ilhotas pancreá-
ticas, o paciente torna-se deficiente de insulina, com uma demanda por
UNIDADE 1. DIABETES
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insulina maior do que a oferta, e consequente hiperglicemia. Diferente-


mente do DM2, onde a hiperglicemia permanece assintomática por um
longo período de tempo, a hiperglicemia no paciente com DM1 tem rápi-
da evolução, variando de dias a poucas semanas até o aparecimento dos
sintomas (a deficiência de insulina no DM1 é completa e marcante). Sem
insulina para aproveitar a glicose sanguínea, esta se eleva. Perdendo sua
principal fonte de energia, o corpo busca por outras fontes, como os áci-
dos graxos e os aminoácidos. Os ácidos graxos são derivados do tecido
adiposo, e os aminoácidos de proteínas do corpo, especialmente do tecido
muscular. O catabolismo desses tecidos para o uso de energia, associado
à falta de um hormônio anabólico importante (a própria insulina), leva
a um dos sintomas mais proeminentes do DM tipo 1: o emagrecimento.
Valores de glicemia superiores a 180 mg/dL excedem o limite renal
para a excreção da glicose, levando à glicosúria compensatória (saída de
glicose na urina). O aumento da glicose urinária faz aumentar a pressão
oncótica nos túbulos renais, e, como consequência, há maior saída de
água para os túbulos (que vai do meio menos concentrado para o mais
concentrado). Isso nos leva a duas características clínicas importantes
do DM tipo 1: a poliúria (pelo aumento do volume urinário - poliúria os-
mótica) e a hipovolemia (que leva à desidratação). Esta última também
contribui para a perda ponderal nos pacientes diabéticos. O pouco líqui-
do no espaço intravascular (devido à perda urinária) associado à grande
quantidade de glicose (hiperglicemia), gera o aumento da osmolaridade
sanguínea, o que leva ao aparecimento de outro sintoma proeminente: a
polidipsia (que nada mais é do que sede intensa) como mecanismo com-
pensatório. É válido ressaltar que a poliúria pode se manifestar como
noctúria e enurese, especialmente em crianças mais novas, sendo um
relato comum que a criança “voltou a molhar a cama” durante a noite.
Em crianças que ainda não utilizam o vaso sanitário, o aumento do vo-
lume de urina nas fraldas (fraldas pesadas) pode representar a poliúria.
A poliúria e a polidipsia são os sintomas mais comuns, presentes em
cerca de 90% dos pacientes, enquanto a perda de peso geralmente apare-
ce na metade deles. Apesar disso, é importante entendermos que a apre-
sentação clássica nem sempre estará presente. Muitos pacientes se apre-
sentam com queixas inespecíficas, principalmente no que diz respeito à
desidratação, estando mais sonolentos, letárgicos, com olhos fundos e
mucosas secas. São pacientes visivelmente doentes, mas sem sintomas
específicos.
A segunda apresentação mais comum ocorre quando os pacientes já
chegam no serviço de saúde com a apresentação mais grave do DM tipo
1: a cetoacidose diabética. As características são semelhantes às do qua-
dro clássico, mas com sintomas mais graves e associados com acidose
UNIDADE 1. DIABETES
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sistêmica. Essa entidade da endocrinologia é tão importante que temos


uma parte do livro dedicada só para ela. Para saber mais, leia o capítulo
32 deste livro, sobre emergências hiperglicêmicas.
Além dos sintomas já descritos, alguns outros pontos são importantes
de serem destacados na anamnese do paciente com suspeita de DM tipo
1. Já na identificação, não podemos esquecer de considerar a idade do
paciente, tendo em vista a maior probabilidade de abertura do quadro na
infância. O tempo de evolução dos sintomas geralmente é curto, tendo a
maioria dos pacientes buscado atendimento médico depois de mais de
10 dias da percepção inicial dos sintomas, sendo que nunca teremos um
quadro de meses de evolução. O histórico familiar de diabetes também
deve ser perguntado, já que a carga genética tem papel fundamental na
fisiopatologia da doença.

5. Exame físico:

No exame físico, avaliamos, inicialmente, os sinais vitais. Pacientes


mais graves podem se apresentar hipotensos, taquicárdicos e taquip-
neicos. O estado de consciência deve ser avaliado a partir da Escala de
Coma de Glasgow. Pacientes com apresentação inicial clássica geral-
mente estão alertas ou pouco sonolentos, diferentemente dos pacientes
em cetoacidose, que podem estar letárgicos, obnubilados e até em coma.
O estado de hidratação dos pacientes auxilia na avaliação. A desi-
dratação, muito comum no quadro, leva à mucosas secas, choros sem
lágrimas, olhos fundos e perda do turgor cutâneo, com sinal da prega
positivo. O exame físico do aparelho cardiovascular e respiratório é ge-
ralmente normal (além da taquicardia e taquipneia). A dor à palpação
abdominal pode estar presente, especialmente em pacientes que se
apresentam em cetoacidose diabética, em decorrência da acidose.

6. Exames complementares:

Podemos solicitar diversos exames complementares. A dosagem


dos autoanticorpos contra a célula beta-pancreática é um marcador
que pode surgir anos antes da expressão clínica da doença, e reflete o
ataque do sistema imunológico. Os principais autoanticorpos são o an-
ti-GAD (presente em até 80% dos pacientes), anti-ilhota (ICA) e Anti-IA2.
A presença desses autoanticorpos reforça o diagnóstico de DM tipo 1,
até mesmo frente a uma suspeita diagnóstica de DM tipo 2. No entan-
to, somente o achado dos autoanticorpos, quando o paciente ainda não
apresenta as manifestações clínicas da hiperglicemia, não é suficiente
para o início da insulinoterapia.
UNIDADE 1. DIABETES
16

Outro exame muito importante para o diagnóstico e até mesmo para


o acompanhamento é a hemoglobina glicada (HbA1c). Esse exame
mede a porcentagem de hemoglobina em que a glicose em excesso se
fixa (figura 2) e representa a média da glicemia do paciente nos últimos
90 dias, sendo o padrão-ouro na análise do controle glicêmico. Os resul-
tados serão maiores quanto maior for o tempo de exposição do paciente
a glicoses plasmáticas acima da normalidade. Em outras palavras, va-
lores maiores de hemoglobina glicada significam que o paciente esteve
com a glicemia acima dos valores fisiológicos por mais tempo.
Existe uma correlação entre o nível de hemoglobina glicada e valo-
res médios estimados de glicose, como você pode ver na tabela 1. Níveis
de HbA1c equivalentes a 6,5%, por exemplo, significam que a glicemia
média estimada do paciente nos últimos três meses foi de 140 mg/dL.
Dessa forma, esse exame pode ser utilizado para o diagnóstico de diabe-
tes (quando seu valor for igual ou superior a 6,5%), ou ainda para avalia-
ção do tratamento e acompanhamento de pacientes já diagnosticados.
Em pacientes com glicemia estável, a dosagem é realizada semestral-
mente, ou então a cada três ou quatro meses, quando houver dificuldade
no controle da glicemia.
Algumas condições podem elevar o valor da hemoglobina glicada,
mas que não necessariamente se traduzem em hiperglicemias e/ou DM
tipo 1 ou 2. Como exemplos dessas condições, temos hipertrigliceride-
mia, insuficiência renal crônica, esplenectomia, anemias por deficiên-
cia de ferro e outras. Outros exames que podem ser solicitados, mas que
são menos frequentes, são dosagem de peptídeo C, pesquisa de corpos
cetônicos, glicosúria e frutosamina.

NÍVEIS NORMAIS DE HEMOGLOBINA GLICADA NÍVEIS ELEVADOS DE HEMOGLOBINA GLICADA

Hemoglobina Glicose

Figura 2: Hemoglobina glicada: relação entre hemácias e nível de glicose.


Elaborado pelo autor.
UNIDADE 1. DIABETES
17

Tabela 1: Relação entre os valores de hemoglobina glicada e os níveis estimados


de glicemia média.
Hemoglobina Glicada (%) Nível de Glicemia Média Estimada
6 126 mg/dL
6,5 140 mg/dL
7 154 mg/dL
7,5 169 mg/dL
8 183 mg/dL
8,5 197 mg/dL
9 212 mg/dL
9,5 226 mg/dL
10 240 mg/dL

7. Diagnóstico:

Além dos principais achados clínicos que já vimos, como poliúria,


polidipsia, polifagia e perda ponderal, o diagnóstico do DM tipo 1 é feito
a partir dos critérios da Associação Americana de Diabetes (ADA).
Na presença de pelo menos um (repetido e confirmado) dos quatro
critérios abaixo, já podemos fechar o diagnóstico:
Glicemia de jejum ≥ 126 mg/dl; OU
Glicemia ≥ 200 mg/dl 2h após TOTG (teste oral de tolerância à glicose);
OU
Hemoglobina glicada (HbA1c) ≥ 6,5%; OU
Glicose plasmática aleatória ≥ 200 mg/dl, associada aos sintomas
de hiperglicemia citados acima, sendo essa uma situação em que o
paciente não necessita repetir o exame (já é diagnóstico).

8. Tratamento:

O principal objetivo do tratamento é manter o paciente em normo-


glicemia na maior parte do tempo, evitando episódios de hiperglicemia
ou hipoglicemia. A avaliação da terapêutica pode ser feita diariamente
pelas aferições de glicose, e também através do exame de hemoglobi-
na glicada, que, como explicado anteriormente, nos dará um parâmetro
para avaliarmos a glicose média do paciente nos últimos 90 dias.
Uma HbA1c < 6,5% é indicada como meta geral do tratamento, po-
dendo esse valor ser menos rigoroso, de acordo com as condições do
paciente. Pacientes com expectativa de vida limitada, histórico grave
de hipoglicemias, DM tipo 1 associado a outras comorbidades ou do-
enças micro ou macrovasculares avançadas podem ter alvos de HbA1c
UNIDADE 1. DIABETES
18

superiores a 6,5%, pois um controle tão rigoroso não traria benefícios


tão significativos.
A partir disso, o tratamento do DM tipo 1 é baseado no automonitora-
mento da glicemia, na insulinoterapia, na orientação alimentar (idealmen-
te com contagem de carboidratos) e na realização de exercícios físicos.

Automonitorização da glicemia:
É de fundamental importância, pois através das medições da glicose
sanguínea, o médico, junto ao paciente, poderá ajustar as dosagens de
insulina e a quantidade de carboidratos na dieta. Aferições regulares de
glicose auxiliam na detecção de episódios de hiperglicemia e hipogli-
cemia, as quais podem passar despercebidas pelo paciente.
No início do tratamento, é essencial que esse monitoramento seja
feito, para os ajustes de dose de insulina. É interessante também que os
pacientes, sempre que possível, registrem as glicoses aferidas ao longo
do tempo para facilitar a análise do tratamento.
Esse automonitoramento pode ser feito de duas formas:
Ponta de dedo: é feito com uma lanceta, que irá furar o dedo do pacien-
te. O sangue coletado é lido por um glicosímetro, que informa o valor
da glicose plasmática naquele momento. Recomenda-se que a aferi-
ção seja realizada antes das refeições, para um possível ajuste da dose
de insulina, e ao se deitar, para detectar uma possível hipoglicemia.
Monitoramento contínuo: diferentemente da ponta de dedo, esse
método utiliza um sensor de glicose subcutâneo, que fica continua-
mente em contato com o fluido intersticial. Dessa forma, para fazer a
medição da glicose, não é necessário furar o dedo, bastando apenas
passar sobre o sensor um leitor que informará em sua tela o nível
de glicose, ou ainda outros sensores que medem a glicemia sem a
necessidade de escaneamento.

Insulinot erapia:
É a base farmacológica do tratamento do DM tipo 1. Diferentemente do
tratamento para o DM tipo 2, que muitas vezes associa o uso de insulinas
com os antidiabéticos orais (serão vistos no próximo capítulo), os pacien-
tes com DM tipo 1 franco não se beneficiam dessa associação, uma vez que
grande parte dos antidiabéticos orais não conseguirá estimular o pâncreas
a produzir mais insulina nesses casos, já que as células beta-pancreáticas
produtoras de insulina foram destruídas pela autoimunidade.
O pâncreas do paciente com DM tipo 1 não cumpre mais a sua função
de sintetizar e liberar insulina e, por isso, devemos suprir essa necessi-
dade através da aplicação de insulina exógena. O objetivo da insulino-
UNIDADE 1. DIABETES
19

terapia é, assim, assemelhar-se à secreção fisiológica deste hormônio


pelo pâncreas.

Formas de administração:
A administração da insulina pode ser feita de 3 formas diferentes:
através de agulha e seringa, caneta, ou bomba de infusão contínua. O
método de administração pode variar de acordo com cada paciente, sua
adaptação e suas necessidades. Para fazer a aplicação com agulha e se-
ringa ou com caneta, o paciente deve fazer uma prega subcutânea em re-
gião abdominal, interior das coxas, posterior dos braços ou região glútea.

Perfil de ação:
As insulinas diferem entre si de acordo com as suas propriedades
farmacocinéticas, podendo ser classificadas como insulinas de ação
rápida, ultrarrápida, intermediária, lenta e ultralenta, mais bem expli-
cado na tabela 2. Essas diferenças são de suma importância para que
possamos planejar o melhor esquema de tratamento para cada paciente

Tabela 2: Tipos de insulina e suas principais características farmacológicas.


Ação Insulina Início de Ação Pico de Ação Duração Efetiva
Fiasp® 4 min 1a3h 3a5h
Lispro < 15 min 0,5 a 1,5 h 4a6h
Ultrarrápida
Asparte 5 a 15 min 0,5 a 1,5 h 4a6h
Glulisina 5 a 15 min 0,5 a 1,5 h 4a6h
Rápida Regular 0,5 a 1 h 2a3h 8 a 10 h
Intermediária NPH 2a4h 4 a 10 h 12 a 18 h
Glargina U-100 2h Sem pico 22 a 24 h
Lenta Glargina U-300 2h Sem pico Até 36h
Detemir 2h Sem pico 18 a 20 h
Ultralenta Degludeca 30 a 90 min Sem pico 36 a 42 h

Além das insulinas listadas na Tabela 2, vale mencionarmos tam-


bém a opção de insulinas inalatórias, como é o caso da Afrezza®. Essa
insulina inalatória possui perfil de ação rápido, e deve ser usado em
combinação com insulina de longa duração.

Esquemas de administração:
Existem diferentes esquemas de administração das insulinas. O
principal esquema utilizado atualmente para o DM tipo é o chamado de
esquema intensivo, pois é o que melhor mimetiza a secreção fisiológica
de insulina. Para isso, utilizamos uma combinação:
UNIDADE 1. DIABETES
20

1) Insulina de ação longa, que tenha efeito por até 24 horas e garanta
uma dose basal de insulina por todo esse período, sem que haja pi-
cos de ação que causem hipoglicemia.
2) Insulina de ação ultrarrápida, que será aplicada em bolus antes das
refeições, para que se evite o aumento da glicemia pós prandial.

Um exemplo dessa associação de insulinas de ações diferentes po-


deria ser a Glargina (ação longa de até 24 horas, aplicada todos os dias
pela manhã) e a Asparte (ação ultrarrápida, aplicações em bolus antes
das refeições).

Dosagem de insulina:
A dose de insulina pode variar bastante de acordo com cada paciente
e com as condições relacionadas à idade, ao peso corporal, ao nível de
atividade física, e outros. Utiliza-se como base uma insulina total diária
entre 0,5 e 1,0 U/kg. Desse total, aproximadamente 50% são referentes à
insulina basal (de ação lenta) e os outros 50% são referentes à insulina
em bolus (de ação rápida ou ultrarrápida) que será administrada várias
vezes ao longo do dia.
A insulina basal tem a função de fornecer o controle glicêmico para
os momentos de jejum, e como o seu nome sugere, serve de base para o
paciente. Ela não tem efeito sobre o controle da glicemia pós refeições
ou pós prandiais. Já as insulinas de ação ultrarrápida ou rápida pos-
suem duas funções: corrigir o valor da glicemia antes das refeições e
de evitar um excesso de elevação glicêmica produzido pelo alimento
no período pós prandial. A quantidade de insulina em bolus a ser ad-
ministrada antes das refeições pode variar de acordo com condições
relacionadas à glicemia do paciente antes da refeição e à quantidade
de carboidratos disponíveis na alimentação. Quanto maior for a con-
centração de glicose pré-prandial e/ou a quantidade de carboidratos a
serem ingeridos, maior será a quantidade de insulina de ação ultrarrá-
pida necessária.
As doses inicialmente estipuladas para um paciente recém-diag-
nosticado estão sujeitas a alterações, que devem ser feitas após a aná-
lise do controle das glicemias. Por exemplo, diante de um caso de hi-
poglicemia pós-prandial, possivelmente a dose de insulina em bolus
administrada antes da refeição foi desproporcionalmente alta em rela-
ção à glicose pré-prandial e/ou à quantidade de carboidratos ingeridos.
Da mesma forma, o contrário é verdadeiro: se houver um episódio de
hiperglicemia pós-prandial, é provável que a dose de insulina ultrarrá-
pida administrada antes da refeição tenha sido insuficiente. A melhor
UNIDADE 1. DIABETES
21

maneira de fazermos esse ajuste de dosagem de insulina será a análi-


se do automonitoramento glicêmico do paciente. Dessa forma, evita-se
dar muita insulina como correção, e optamos por dar doses maiores
pela refeição.
Algumas condições específicas estão relacionadas com a necessi-
dade de maiores doses de insulina, como infecções, puberdade, uso de
glicocorticoides (aumentam a resistência insulínica), hipertireoidismo
e estresse. Por outro lado, também existem situações em que os pacien-
tes necessitam de doses menores, como hipotireoidismo, insuficiência
renal, insuficiência adrenal e a chamada “fase da lua de mel”. Esta úl-
tima consiste no período o qual as poucas células beta-pancreáticas
produtoras de insulina que ainda não foram destruídas pela autoimu-
nidade permanecem secretando uma pequena quantidade de insulina
endógena. Essa fase tem duração variável, mas nela o paciente neces-
sita de doses menores doses de insulina exógena.

Efeitos adversos:
O principal e, possivelmente, mais grave efeito adverso do uso incor-
reto das insulinas é a hipoglicemia. Ela ocorre principalmente quando
a dose de insulina aplicada é maior do que a necessária, mas também
em situações como jejum prolongado, consumo de bebidas alcoólicas e
atividade física sem monitoramento, entre outras.
Além da hipoglicemia, outros efeitos adversos da insulinoterapia
incluem ganho de peso (lembre-se que a insulina é um hormônio ana-
bólico) e reações cutâneas à sua aplicação, que vão desde alergias até
a chamada lipodistrofia insulínica. Esta consiste em um acúmulo de
gordura na região em que se aplica a insulina repetidamente e, por isso,
os pacientes devem ser orientados a fazer o rodízio dos locais de aplica-
ção. Esse acúmulo lipídico se torna prejudicial para o tratamento, uma
vez que se torna imprevisível o quanto de insulina será efetivamente
absorvida pelo organismo quando aplicada novamente nessas regiões.

Orientação alimentar:
A dieta para cada paciente deve ser individualizada de acordo com
suas necessidades. Recomenda-se que a alimentação preze por alimentos
com baixo índice glicêmico, evitando ingerir principalmente os açúcares
refinados, que podem ser substituídos por alimentos diet. Os carboidratos
seguem sendo a base da dieta do paciente, e para isso, é importante que
seja feita a sua contagem. Ela é de grande auxílio no tratamento do DM
tipo 1, quando associada a outras medidas. Seu objetivo é aprimorar o
controle glicêmico, relacionando a quantidade de carboidratos ingeridos
UNIDADE 1. DIABETES
22

com a quantidade de insulina em bolus a ser aplicada, de forma que as


doses possam ser ajustadas conforme a refeição.
Para sabermos quantos gramas de carboidrato serão equivalentes a
uma unidade de insulina ultrarrápida, utilizamos a “regra dos 500” para
adultos e “regra dos 400” para crianças: divide-se o número 500 pela dose
total de insulina administrada ao longo do dia. O resultado obtido repre-
sentará a proporção de insulina para carboidratos do paciente, de forma
que uma unidade de insulina ultrarrápida cobrirá o resultado da regra
dos 500, em gramas de carboidrato. Por exemplo, se a dose total diária de
insulina de um paciente é de 50 unidades (entre insulina de ação lenta e
insulina de ação ultrarrápida), temos que 500 dividido por 50 (dose diária
total) é igual a 10. Dessa forma, entende-se que uma unidade de insulina
ultrarrápida fará o metabolismo de 10 g de carboidrato por refeição. A re-
lação insulina/carboidrato, nesse paciente em específico, seria então 1:10.
Para a utilização desta regra recomenda-se que o paciente esteja bem
controlado, do contrário não teremos um resultado adequado.
No caso de pacientes recém-diagnosticados com DM tipo 1, recomen-
da-se que essa relação insulina/carboidrato seja obtida levando em con-
sideração o peso corporal do paciente, conforme ilustrado na tabela 4.

Tabela 4: Correspondência entre peso corporal e relação insulina/carboidrato.


Peso (Kg) Relação insulina/carboidrato
45 - 49 1:16
49,5 - 58 1:15
58,5 - 62,5 1:14
63 - 67 1:13
67,5 - 76 1:12
76,5 - 80,5 1:11
81 - 85 1:10
85,5 - 89,5 1:9
90 - 98,5 1:8
99 - 107,5 1:7
≥ 108 1:6

Exercício físico:
A realização de atividades físicas pode ser um importante aliado no
tratamento do DM tipo 1, desde que seja bem orientada. Exercícios ae-
róbicos regulares podem promover controle do peso, prevenir doenças
cardiovasculares, melhorar a qualidade de vida, e no caso do DM, auxi-
liar no controle glicêmico através da maior captação de glicose pelos
músculos. Esta última tem como resultado a redução da glicose circu-
lante no sangue, independente de insulina.
UNIDADE 1. DIABETES
23

Por outro lado, atividades físicas anaeróbias e de alta intensidade


tendem a aumentar a concentração de glicose sanguínea. Com isso, é
fundamental que haja o monitoramento da glicose antes, durante e de-
pois da realização das atividades físicas.
A glicemia antes da atividade deve ser superior a 90 mg/dl. Se esti-
ver abaixo desse valor, o paciente deve ingerir de 15 a 30 g de carboidra-
to de rápida absorção, de 15 a 30 minutos antes de iniciar o exercício.
Após iniciada, é indicado que a cada 30 minutos de atividade seja feita
uma nova dosagem da glicemia, com o intuito de evitar uma possível
hipoglicemia.
Outra alternativa para evitarmos episódios de hipoglicemia durante
os exercícios consiste na redução da dose total diária de insulina, prin-
cipalmente a dosagem da insulina aplicada em bolus antes da refeição,
quando o exercício físico for praticado no período pós-prandial.

9. Prognóstico:

SSe você leu até aqui, não desista, falta só mais um pouquinho para
você chegar sabendo tudo que precisa no próximo ambulatório de endo-
crinologia. Em relação ao prognóstico do diabetes, a primeira coisa que
você deve saber é a distinção entre as complicações agudas e crônicas.
O controle glicêmico intensivo mostrou uma diminuição na incidên-
cia de doenças macro e microvasculares nos pacientes com DM tipo 1.
Até mesmo poucos anos de controle glicêmico intensivo apresentam
efeitos na redução dessas complicações durante os 10 anos seguintes,
persistindo por até 30 anos, no caso específico das doenças macrovas-
culares. Como a hiperglicemia é o principal fator de risco para as mi-
croangiopatias, a redução da hemoglobina glicada que é proporcionada
pelo esquema intensivo, principalmente no início do tratamento, está
associada a reduções de até 70% na incidência dessas complicações,
além de fazer com que elas progridam mais lentamente.
Algumas das possíveis complicações decorrentes da hiperglicemia
merecem uma atenção ainda maior no acompanhamento de pacientes
com DM tipo 1, como retinopatia diabética, insuficiência renal, doenças
arterial e venosa periféricas e doenças coronarianas. Outros focos de
atenção devem ser as doenças cardiovasculares, uma vez que consti-
tuem a principal causa de morbidade e mortalidade prematuras para
esses pacientes - estudos sugerem uma expectativa de vida menor em
8 a 13 anos, em comparação a indivíduos hígidos.
As preocupações com o controle glicêmico buscam evitar tanto a
hiperglicemia, quanto os episódios de hipoglicemia, já que esse é um
UNIDADE 1. DIABETES
24

dos riscos da insulinoterapia. Uma análise dos pacientes com DM tipo


1 diagnosticados antes dos 15 anos mostrou que a cetoacidose diabética
foi a principal causa de óbito antes dos 30 anos. Essa patologia é uma
complicação aguda persistente, que pode ocorrer ao longo de todo o tra-
tamento, e apresenta potencial risco de morte.
Além disso, fortes eventos hipoglicêmicos - que requerem a assis-
tência de outra pessoa para o tratamento - ocorrem em taxas de 16 a
20 a cada 100 pessoas ao ano. Já os eventos hipoglicêmicos que levam
à perda de consciência ou causam convulsões ocorrem a uma taxa de
2 a 8 por 100 pessoas ao ano. Vale ressaltar que esses eventos estão
associados à perda da função cognitiva e são responsáveis por 4 a 10%
das mortes relacionadas ao DM tipo 1. Com isso, você pode perceber a
necessidade de explicar ao paciente, da forma mais objetiva possível,
quanto aos riscos potenciais frente aos quadros de hipoglicemia.
Algumas preocupações quanto à limitação das possibilidades de so-
nhos e planos de vida são frequentes em pacientes portadores de DM
tipo 1. A dúvida sobre poder ou não engravidar, e os potenciais riscos de
uma gestação são exemplos de questionamentos presentes na prática
clínica. Para isso, deve-se buscar um planejamento cuidadoso e um tra-
tamento maximamente adequado, o que permitirá, à maioria das mu-
lheres, uma gestação bem-sucedida.
Pacientes do sexo feminino com DM tipo 1 têm um risco duas a cin-
co vezes maior de resultados adversos na gravidez, como: anomalias
congênitas, feto natimorto e mortalidade perinatal. Algumas intercor-
rências na gestação, como hipoglicemia, são frequentes. A literatura in-
dica que cerca de 45% das mulheres com DM tipo 1 experimentam hipo-
glicemia grave durante a gravidez, o que corresponde a uma frequência
três a cinco vezes maior no início da gestação, quando comparado com
o período imediatamente anterior.
Outra complicação para a gestante diabética é a retinopatia. Essa
doença deve ser acompanhada durante os seis meses que antecedem
a gravidez, durante o primeiro e segundo trimestres e, após o parto, de-
vendo ser direcionadas avaliações adicionais se doença significativa e/
ou tratamentos anteriores para retinopatia diabética. É preciso lembrar,
também, a respeito dos cuidados com a hipertensão arterial sistêmica,
já que esta complica uma a cada dez gestações, e apresenta prevalên-
cia ainda maior em mulheres com diabetes: até 40% delas têm pressão
arterial excedendo os níveis de 140 x 90 mmHg. Agora, depois dessas
informações, você se assustou? Acalme-se! Mantenha essas informa-
ções com você e seja empático na forma de repassá-las às paciente,
cuidando sempre para informar, sem aterrorizar.
UNIDADE 1. DIABETES
25

Por fim, é fundamental que você lembre que pacientes com diabetes
tipo 1 também são mais propensos a desenvolverem outras doenças au-
toimunes, por vezes como parte de uma síndrome autoimune poliglan-
dular. Estudos observaram que a prevalência de doenças autoimunes
dentro de uma população com mais de 25000 portadores de DM tipo
1, e idade média de 23 anos, é equivalente a 27%. As condições mais
comumente associadas à tireoidite de Hashimoto e à doença de Graves
(duas patologias que você irá aprender nos capítulos seguintes), segui-
das da doença celíaca. Outras condições incluem doenças vasculares
do colágeno (como artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico),
gastrite autoimune, vitiligo e doença de Addison (insuficiência adrenal
primária). Por isso, as diretrizes de acompanhamento de pacientes com
diabetes incluem exames periódicos de rastreamento para essas doen-
ças, especialmente as doenças da tireoide e a doença celíaca.

10. Tabela de resumo:

O DM tipo 1 é o resultado de uma resposta autoimune que desencadeia a destruição de mais de 90% das
células β-pancreáticas produtoras de insulina, com consequente hiperglicemia crônica.
É a forma mais comum de diabetes na infância, mesmo com o crescimento do DM tipo 2 em pacientes
pediátricos.
Embora mais comumente surja na infância, o DM tipo 1 pode surgir em qualquer idade.
As características clássicas associadas ao quadro clínico são os “4Ps”: Poliúria, Polidipsia, Polifagia e
Perda de Peso.
A dosagem dos autoanticorpos contra as células beta-pancreáticas é um marcador que pode surgir
anos antes da expressão clínica da doença. Os principais são o Anti-GAD (presente em até 80% dos
pacientes), Anti-ilhota (ICA) e Anti-IA2.
Níveis de HbA1c < 6,5% são indicados como meta geral do tratamento, podendo esse valor ser menos
rigoroso de acordo com a condição do paciente.
A administração de insulina pode ser feita de três formas: por seringa, por caneta ou por bomba de
infusão contínua. Já o monitoramento da glicemia pode ser feito pelo método de glicemia de ponta de
dedo ou por monitoramento contínuo.
De acordo com o seu padrão de ação, as insulinas são classificadas em insulinas de ação rápida,
ultrarrápida, intermediária, lenta e ultralenta.
A base para o cálculo da dose diária de insulina total varia de 0,5 a 1,0 U/Kg. Desse total, aproximadamente
50% devem ser referentes à insulina basal e os outros 50% se referem à insulina em bolus, que será
administrada várias vezes ao dia.
O principal esquema utilizado atualmente para o tratamento do DM tipo 1 é chamado de intensivo e
mimetiza a secreção fisiológica de insulina. Ele combina insulina de ação longa e insulina ultrarrápida.
Além dele, existe o esquema convencional, em que são aplicadas insulinas de ação intermediária e de
ação ultrarrápida ou rápida.
UNIDADE 1. DIABETES
26

O monitoramento da glicemia é fundamental antes, durante e depois da realização de atividades físicas.


Se estiver abaixo do valores desejados, o paciente deve ingerir de 15 a 30 g de carboidrato de rápida
absorção, 15 a 30 minutos antes de iniciar a atividade. Após iniciada, é indicada uma nova dosagem
glicêmica a cada 30 minutos de atividade, com o intuito de evitar episódios de hipoglicemia.
A redução da HbA1c, especialmente no início da doença, está associada à redução de cerca de 70% na
incidência de complicações crônicas, além de lentificar a sua progressão.
A cetoacidose diabética é a principal causa de óbito de pacientes com DM tipo 1 antes dos 30 anos. Após
essa idade, a mortalidade por doenças cardiovasculares é predominante.
Mulheres com DM tipo 1 têm risco duas a cinco vezes maior de eventos adversos na gravidez, incluindo
anomalias congênitas, feto natimorto e mortalidade perinatal.
Pacientes com diabetes tipo 1 também são mais propensos a desenvolverem outras doenças autoimunes,
principalmente tireoidite de Hashimoto e doença de Graves, além de doença celíaca.

11. Leitura recomendada:

AMERICAN DIABETES ASSOCIATION. 4. Lifestyle Management: Standards of


Medical Care in Diabetes—2018. Diabetes Care, v. 41, n. Supplement 1, p. S38–
S50, jan. 2018.

AMERICAN DIABETES ASSOCIATION. 13. Children and Adolescents: Standards


of Medical Care in Diabetes−2020. Diabetes Care, v. 43, n. Supplement 1, p. S163–
S182, jan. 2020b.

CHIMEN, M. et al. What are the health benefits of physical activity in type 1
diabetes mellitus? A literature review. Diabetologia, v. 55, n. 3, p. 542–551, mar.
2012.

FRANZ, M. J. et al. Academy of Nutrition and Dietetics Nutrition Practice


Guideline for Type 1 and Type 2 Diabetes in Adults: Systematic Review of
Evidence for Medical Nutrition Therapy Effectiveness and Recommendations
for Integration into the Nutrition Care Process. Journal of the Academy of
Nutrition and Dietetics, v. 117, n. 10, p. 1659–1679, out. 2017.

MCCANCE, D. R.; CASEY, C. Type 1 Diabetes in Pregnancy. Endocrinology and


Metabolism Clinics of North America, v. 48, n. 3, p. 495–509, 2019.
UNIDADE 1. DIABETES
27

Capítulo 2

Diabetes Mellitus Tipo 2


Jéssica Nascimento Monte
Bruna Luisa Franke
Igor Reis Pereira
Maristela de Oliveira Beck

1. Introdução:

No capítulo anterior, abordamos o diabetes mellitus (DM) tipo 1. Nes-


te capítulo, falaremos sobre a forma mais frequente de DM. O diabetes
mellitus tipo 2 (DM2) é um distúrbio metabólico crônico muito comum,
resultante de influências genéticas e ambientais, e caracterizado por
níveis elevados de glicose plasmática, além de alterações no metabo-
lismo dos carboidratos, lipídeos e proteínas. O DM2 se desenvolve pela
baixa resposta dos tecidos à insulina e está associado à redução da se-
creção de insulina pelo pâncreas.
A hiperglicemia persistente está relacionada ao surgimento de com-
plicações agudas e crônicas, causando danos em diversos tecidos e ór-
gãos, como rins, nervos, coração e vasos sanguíneos. Dessa forma, o de-
senvolvimento do DM2 compromete a qualidade de vida dos indivíduos
e é responsável por altas taxas de morbidade e mortalidade, apresen-
tando-se como uma grande questão de saúde pública. As complicações
do DM serão mais bem detalhadas no capítulo seguinte.

2. Epidemiologia:

Os hábitos de vida, como o sedentarismo e o alto consumo de calorias,


o sobrepeso, o envelhecimento da população e a industrialização favore-
cem a instalação do DM2. De acordo com a International Diabetes Fede-
ration, aproximadamente 10,5% dos adultos vivem com a doença, sendo
que um a cada dois adultos com diabetes não recebe o diagnóstico, uma
vez que se apresentam assintomáticos ou com poucos sintomas.
O DM2 corresponde a mais de 90% dos casos de diabetes. Sua preva-
lência aumenta com a idade, sendo mais comum em indivíduos acima
dos 45 anos. Contudo, a incidência em adultos jovens, crianças e adoles-
centes tem crescido devido ao aparecimento precoce da obesidade. Em
relação ao sexo, possui uma prevalência semelhante entre homens e mu-
lheres, porém, a mortalidade é maior nos indivíduos do sexo masculino.
UNIDADE 1. DIABETES
28

3. Fisiopatologia:

No DM2, evidencia-se o desenvolvimento de hiperglicemia em jejum


e pós-prandial. Sua fisiopatologia é complexa e multifatorial, abrangendo
a predisposição genética e fatores ambientais e metabólicos, como obesi-
dade, principalmente visceral ou central, o sedentarismo e a alimentação
não saudável. A progressão da doença está relacionada à resistência in-
sulínica e à diminuição da secreção da insulina pelas células beta-pan-
creáticas.
A concentração plasmática de glicose provém da alimentação e da
glicose gerada no organismo através da gliconeogênese e da glicoge-
nólise hepáticas. Esses sistemas são regulados pela insulina e pelo glu-
cagon. O que ocorre no DM2 é um desequilíbrio entre esses processos,
ocasionando redução na captação de glicose na periferia, diminuição no
armazenamento de glicose e aumento da produção hepática de glicose.
A resistência insulínica – definida como redução da capacidade da
insulina em agir nos tecidos-alvo, principalmente no músculo esquelé-
tico, fígado e tecido adiposo – prejudica a utilização da glicose por esses
tecidos. Isso gera um aumento na produção hepática de glicose, princi-
palmente devido à falha na supressão da gliconeogênese mediada pela
insulina. Além disso, o glucagon é sintetizado e secretado em excesso
devido à supressão inadequada de insulina, o que aumenta mais ainda a
produção hepática de glicose. Em adição, ocorre um aumento na lipólise
no tecido adiposo, elevando a liberação de ácidos graxos livres na circu-
lação, e isso agrava, ainda mais, a resistência insulínica.
No início da doença, as células beta-pancreáticas, localizadas nas
ilhotas de Langerhans, conseguem realizar uma compensação a partir
do aumento na produção de insulina. Todavia, com a progressão do dis-
túrbio, a hiperglicemia sustentada e a grande demanda por insulina, es-
sas células acabam entrando, gradativamente, em falência.
Além da resistência periférica à insulina, da sua secreção deficiente
pelo pâncreas, do aumento da síntese hepática de glicose, do aumento da
lipólise e da hiperglucagonemia, podemos destacar ainda outros com-
ponentes que desempenham papel importante na patogênese do DM2: a
deficiência/resistência incretínica no trato gastrintestinal, a reabsorção
aumentada de glicose pelos túbulos renais e a resistência insulínica no
cérebro. Esses oito fatores compõem o octeto de DeFronzo.

4. Anamnese:

O quadro clínico típico que um paciente com DM2 pode apresentar


é o estado assintomático, porém com história de fatores de risco (obe-
UNIDADE 1. DIABETES
29

sidade, sedentarismo, entre outros). Entretanto, alguns pacientes apre-


sentarão os conhecidos “4P’s”: poliúria, polidipsia, polifagia e perda de
peso. Estes sintomas são decorrentes de hiperglicemia importante, e
são sinalizadores de que o controle glicêmico não está adequado. Além
disso, podem aparecer outros sintomas menos específicos, como ton-
turas, dificuldade visual, astenia e cãibras. Deve-se sempre desconfiar
da doença em pacientes que apresentem fatores de risco, como sobre-
peso ou obesidade, sedentarismo, familiar de primeiro grau com DM2,
hipertensão arterial sistêmica, HDL baixo e triglicerídeos altos. Vale
lembrar que, como citado antes, a maioria dos pacientes se apresenta
assintomático ou com poucos sintomas, sendo diagnosticados tardia-
mente por meio de exames de rotina ou devido ao desenvolvimento de
complicações crônicas, como a perda visual.
Durante a anamnese, é importante que sejam coletadas informações
sobre evolução do peso, história familiar de DM, prática de exercício
físico, alimentação, tabagismo e consumo de álcool. Ademais, reco-
menda-se investigar a presença de outras comorbidades, como disli-
pidemia, hipertensão e doenças cardiovasculares. Por fim, na revisão
dos sistemas, deve-se dar atenção aos principais tecidos afetados por
complicações do DM2, as quais serão abordadas com mais detalhes no
próximo capítulo.

Tabela 1: Principais complicações relacionadas ao diabetes mellitus.

COMPLICAÇÕES MICROVASCULARES COMPLICAÇÕES MACROVASCULARES

Retinopatia diabética Doença arterial coronariana

Doença renal do diabetes Doença cerebrovascular

Neuropatia diabética Arteriopatia periférica

5. Exame físico:

Durante o exame físico devemos avaliar os sinais vitais, o peso, a


altura, a circunferência abdominal, os pulsos periféricos e os locais das
injeções de insulina (se o paciente já fizer uso), para detectar o possível
desenvolvimento de lipodistrofia insulínica. Além disso, poderemos ob-
servar a presença de acantose nigricans na parte posterior do pescoço e
nas axilas, por exemplo, indicando a presença de resistência à insulina.
É especialmente importante que, durante todas as consultas, seja
dada a devida atenção aos tecidos mais atingidos pelas complicações
crônicas do DM2, com ênfase ao exame dos pés. Neste, devem ser ava-
UNIDADE 1. DIABETES
30

liados o fluxo sanguíneo, a sensibilidade vibratória com um diapasão e


a sensação produzida por um monofilamento e por uma alfinetada. Por
fim, é necessário avaliar o cuidado com as unhas, os locais de possível
ulceração e a presença de deformidades, como o dedo em martelo ou
em garra, que serão melhor apresentados no capítulo seguinte.

6. Exames complementares:

Para auxiliar no diagnóstico do DM2, podemos solicitar diversos


exames complementares, como:
Glicemia plasmática em jejum: é o exame mais pedido e mais práti-
co para o diagnóstico de DM. Para a sua realização, é necessário que o
indivíduo esteja em jejum de 8 horas. A presença de dois valores alte-
rados (igual ou maior que 126 mg/dL) em dias distintos são aceitáveis
para o diagnóstico do diabetes.
Glicemia plasmática ao acaso: é a dosagem da glicose plasmática,
independentemente da alimentação. Seu resultado é relevante quando
o valor da glicemia for igual ou superior a 200 mg/dL, diante da presen-
ça de sintomas típicos de DM.
Teste oral de tolerância à glicose (TOTG): compreende uma coleta de
sangue em jejum e outra coleta duas horas após a administração de 75
g de glicose dissolvidos em água, por via oral. É o exame de escolha em
situações nas quais a dosagem da glicemia plasmática em jejum obteve
um valor intermediário (entre 100 e 126 mg/dL).
Hemoglobina glicada (HbA1c): conforme explicado no capítulo ante-
rior, ela é resultado da ligação da hemoglobina A com açúcares e reflete
o controle glicêmico dos últimos 120 dias (meia-vida da hemoglobina).
Essa medida é muito usada para o controle do tratamento dos pacien-
tes, visando à prevenção das complicações crônicas do diabetes. Seu
uso no diagnóstico do DM2 ainda possui algumas limitações, visto que
ela precisa ser dosada em laboratórios que utilizem o método certifica-
do pelo National Glycohemoglobin Standardization Program (NGSP). É
necessário atentar-se para situações que alterem a sobrevida das he-
mácias e podem falsear a medida da HbA1c, como a anemia ferropriva
e as hemorragias.
Frutosamina: proteína glicada (principalmente albumina) que retra-
ta o controle glicêmico dos últimos sete a quatorze dias. Sua dosagem é
útil nos indivíduos que apresentam condições que alterem a medida da
hemoglobina glicada, e quando se necessita de um controle mais breve
da terapêutica.
Glicosúria: a pesquisa do açúcar na urina é sugestiva de diabetes,
porém, possui baixa sensibilidade diagnóstica, uma vez que ela costu-
UNIDADE 1. DIABETES
31

ma aparecer somente quando a concentração plasmática de glicose já


está maior que 180 mg/dL. Além disso, a glicosúria pode estar presente
em outras condições, como na gravidez, e, portanto, o diagnóstico de
DM2 devido à presença de glicose na urina precisa ser confirmado com
a dosagem sanguínea.

7. Diagnóstico:

Como vimos, os parâmetros utilizados para o diagnóstico do diabe-


tes mellitus tipo 2 são os mesmos utilizados para o diabetes mellitus
tipo 1. São eles:

Glicemia de jejum ≥ 126 mg/dL.


Glicemia 2 horas após teste oral de tolerância à glicose (TOTG) ≥
200 mg/dL.
HbA1c ≥ 6,5%.
Glicemia casual (em qualquer horário, independente da alimenta-
ção) ≥ 200 mg/dL, somada a sintomas típicos do diabetes (poliúria,
polidipsia, polifagia e perda de peso).

A presença de pelo menos um dos critérios acima indica o diag-


nóstico de diabetes mellitus. No entanto, com exceção do último item
(glicemia casual associada a sintomas), todos os resultados devem ser
confirmados por meio da alteração de outro teste complementar ou do
mesmo teste em duas medidas diferentes, para que haja a determina-
ção do diagnóstico.
Quando os pacientes apresentam valores intermediários, ou seja, gli-
cemia de jejum entre 100 e 125 mg/dL, glicemia após TOTG entre 140
e 199 mg/dL, ou hemoglobina glicada entre 5,7 e 6,4%, determina-se o
diagnóstico de pré-diabetes, uma condição clínica reversível, com risco
de progressão para o DM2 entre 4 e 12% ao ano.

8. Tratamento:

Metas terapêuticas:
O principal objetivo do tratamento do diabetes é o controle glicêmi-
co, de forma que haja redução das complicações crônicas micro e ma-
crovasculares da doença. Para isso, utilizam-se diferentes metas tera-
pêuticas, de acordo com o perfil de cada paciente.
De forma geral, para indivíduos adultos, tem-se como meta uma gli-
cemia de jejum ≤ 110 mg/dL (tolerável até 130 mg/dL), uma glicemia
UNIDADE 1. DIABETES
32

pós-prandial ≤ 160 mg/dL (tolerável até 180 mg/dL) e uma HbA1c por
volta de 7,0%.
Em relação à hemoglobina glicada, as metas devem ser especial-
mente individualizadas. Alvos glicêmicos menos rígidos devem ser
considerados em pacientes com menor expectativa de vida, comorbi-
dades limitantes (especialmente neoplasia avançada, doença cardio-
vascular ou doença renal do diabetes avançada), risco de hipoglicemia
grave ou não percebida (disautonomia) e função cognitiva e/ou capa-
cidade funcional comprometidas. Por isso, no tratamento de idosos
com fragilidade, pode-se ter uma meta de hemoglobina glicada mais
elevada, geralmente até 8,5%, devido ao risco de potenciais episódios de
hipoglicemia que uma HbA1c mais baixa pode causar. Por outro lado,
adultos jovens e hígidos podem ter metas mais rigorosas, com HbA1c <
6,5% ou até inferior a 6,0%, para uma maior prevenção das complicações
crônicas.

Estratégias para o tratamento do diabetes mellitus tipo 2:


Por ser uma doença complexa e multifatorial, o tratamento do DM
deve incluir diversas estratégias de abordagem. Entre os pilares da te-
rapêutica, além do uso de medicamentos antidiabéticos e/ou insulina,
é preciso atentar-se às modificações do estilo de vida (MEVs), que in-
cluem educação alimentar e prática de exercícios físicos, perda de peso,
no caso de pacientes com sobrepeso ou obesidade, e ao controle dos
fatores de risco cardiovascular, como hipertensão, dislipidemia e ces-
sação do tabagismo, essenciais para a redução da mortalidade.
Diferentemente do DM tipo 1, que não pode ser evitado, o DM2 pode
ser retardado ou evitado por meio das MEVs. A orientação nutricional
se baseia em uma alimentação variada e equilibrada, com o objetivo
de manter ou obter um peso saudável, alcançar as metas de controle
glicêmico e adequar a pressão arterial e os níveis séricos de lipídios,
podendo ser considerado inclusive o uso de fármacos para prevenir
complicações.
A redução da ingesta calórica pode beneficiar os pacientes DM2 com
sobrepeso ou obesidade, além daqueles com risco de desenvolver a do-
ença. Uma redução sustentada de 5 a 7% do peso corporal melhora o
controle glicêmico e ameniza a necessidade de medicamentos que di-
minuem a glicemia. A perda de peso pode ser obtida com programas
que levam a um déficit energético de 500 a 750 kcal/dia. Nos casos de
pacientes muitos obesos e com DM2, a perda de 5% do peso já promove
bons resultados em relação ao controle glicêmico, lipídico e de pressão
arterial.
UNIDADE 1. DIABETES
33

Durante o processo de reeducação alimentar, deve-se dar preferência


aos carboidratos complexos e com maior teor de fibras, como os cereais
integrais, e restringir a ingesta de carboidratos simples. A utilização
de alimentos dietéticos e de adoçantes artificiais (em substituição ao
açúcar) pode ser recomendada. O consumo de álcool deve ser desenco-
rajado em pacientes com DM2, pois aumenta o risco de variações glicê-
micas, lipídicas e de pressão arterial.
Em relação aos medicamentos que auxiliam no emagrecimento, a
sibutramina é contraindicada nesses pacientes, pois leva ao aumento
do risco cardiovascular em pacientes com mais de 55 anos. O orlistate,
no entanto, pode ser usado por até dois a três anos, contribuindo tam-
bém para melhorar a pressão arterial, a glicemia e os níveis lipídicos.
A cirurgia bariátrica pode ser indicada para pacientes com IMC > 35
kg/m² e que não conseguem alcançar um bom controle metabólico ou
perder peso após dois anos de tratamento clínico. A técnica cirúrgica
de by-pass gástrico ou gastroplastia com derivação intestinal em Y de
Roux é a mais utilizada e leva à remissão do DM2 (ou seja, manutenção
de níveis normais de glicemia sem o uso de medicamentos antidiabéti-
cos por pelo menos um ano) em cerca de 75% dos casos. Após dez anos
da cirurgia, no entanto, metade dos pacientes que apresentaram remis-
são volta a apresentar hiperglicemia, com necessidade de usar drogas
antidiabéticas novamente.
Quanto à prática de exercícios físicos, é recomendada atividade pre-
ferencialmente aeróbica, durante 30 a 60 minutos diários, em pelo me-
nos três a cinco dias da semana (mínimo de 150 minutos por semana),
com moderada intensidade.
A implementação das MEVs citadas consegue promover uma redu-
ção média na hemoglobina glicada em torno de 1 a 2% e, na glicemia de
jejum, de 40 a 50 mg/dL.

Tratamento farmacológico:
Os medicamentos antidiabéticos disponíveis no Brasil se dividem
em oito classes farmacológicas, além da insulina, e podemos uni-las
dentro de alguns grupos, de acordo com o seu mecanismo de ação. As
biguanidas e as tiazolidinedionas são fármacos sensibilizadores de in-
sulina; as sulfonilureias e as glitazonas são secretagogos de insulina;
os inibidores da DPP-IV e os análogos do GLP-1 são incretinomiméticos.
Além delas, temos também os inibidores da alfa-glicosidase e os inibi-
dores do SGLT-2.
A seguir, vamos explicar como cada uma dessas classes de antidiabé-
ticos funciona, destacando as suas indicações, seus prós e seus contras.
UNIDADE 1. DIABETES
34

Aumento de Aumento do Efeito Incretinico


Lipólise Aumento da
Metformina Análogos do GLP-1 Metformina Produção Hepática
Insulinas Inibidores da DPP-IV Insulinas de glicose
Tiazolidinedionas Tiazolidinedionas

Aumento da Redução de secreção


Reabsorção Renal HIPERGLICEMIA de glucagon
de Glicose Inibidores do SGLT-2 Análogos do GLP-1
Inibidores da DPP-IV
Tiazolidinedionas
Metformina
Análogos do GLP-1 Sulfonilureias
Análogos do GLP-1
Inibidores da DPP-IV
Análogos do GLP-1
Insulina
Redução da Captação Disfunção de Redução da
Periférica de Glicose neurotransmissores secreção de
insulina

Figura 1: Associação entre os mecanismos fisiopatológicos do diabetes mellitus


(octeto de DeFronzo) e os mecanismos de ação das principais classes de
fármacos antidiabéticos.
Elaborado pelo autor. Adaptado de: VILAR, Lucio (Ed.). Endocrinologia Clínica, 7ª edição. Grupo
GEN, 2020.

Biguanidas
As biguanidas são uma classe de antidiabéticos orais representa-
das pela metformina e classificadas como sensibilizadores de insulina.
Entre os seus mecanismos de ação, cita-se o aumento da sensibilidade
insulínica no fígado, com consequente redução da produção hepática
de glicose (gliconeogênese), e aumento da sensibilidade periférica à in-
sulina, com elevação da captação muscular de glicose.
A metformina é o agente de primeira linha para o tratamento do
DM2 devido à série de vantagens que podem ser atribuídas ao seu uso:
redução da glicemia de jejum em cerca de 60 a 70 mg/dL e da HbA1c
em 1,5 a 2,0%; não causa hipoglicemia, nem ganho de peso (podendo até
determinar a redução de dois a três quilos durante os primeiros meses
de tratamento); tem baixo custo, bom perfil de segurança, extensa ex-
periência de uso e alta eficácia. Além disso, previne a progressão para o
DM2 nos casos de pré-diabetes, com redução de risco equivalente a 31%;
UNIDADE 1. DIABETES
35

melhora o perfil lipídico, com redução dos níveis de triglicerídeos em 10


a 15%; tem potencial de redução de eventos cardiovasculares (diminui
a incidência de infarto agudo do miocárdio e morte em pacientes com
obesidade); reduz a esteatose hepática não alcoólica e o risco de neo-
plasias associadas ao diabetes; e é útil no tratamento da síndrome dos
ovários policísticos (SOP), que também está relacionada à resistência
insulínica.
Os efeitos adversos mais comuns são os sintomas gastrointestinais
(como diarreia, náusea, anorexia e gosto metálico na boca), os quais são
mais comuns no início do tratamento e podem ser minimizados quan-
do a metformina é iniciada em doses baixas, após as refeições, e quando
se utiliza a apresentação de liberação prolongada (XR) em detrimento
da de liberação simples. Outros efeitos adversos incluem a deficiência
de vitamina B12, ou cobalamina, (de acordo com a Sociedade Brasilei-
ra de Diabetes, os níveis séricos devem ser avaliados anualmente após
quatro anos de início do uso, realizando a reposição, se necessária) e a
acidose lática (intercorrência rara, se respeitadas as contraindicações).
As contraindicações ao seu uso consistem em insuficiência respira-
tória grave (doença pulmonar obstrutiva crônica - DPOC); insuficiência
cardíaca congestiva descompensada ou classe IV de NYHA (New York
Heart Association); doença hepática grave; alcoolismo crônico; inter-
corrências agudas, como infecção grave; gravidez ou lactação; e taxa de
filtração glomerular estimada (TFGe) < 30 mL/min/1,73 m². Em pacien-
tes com TFGe entre 30 e 45 mL/min/1,73 m², a dose da metformina deve
ser reduzida pela metade.
Os representantes comerciais dessa classe são Glifage®, Dimefor®
e Glucoformin® (apresentações de liberação simples), com posologia
variando de 500 a 2000 mg/dia, administração de uma a três vezes por
dia e dose inicial de 500 mg. As apresentações de liberação prolongada
são Glifage XR® e Metta SR®, e podem ser usadas em dose única diária
após o jantar ou, eventualmente, em duas doses diárias.
Além disso, a metformina também apresenta formulações que com-
binam outras classes de antidiabéticos, tanto na forma de liberação
simples, quanto na de liberação prolongada.
A combinação de metformina de liberação simples com inibidores
da DPP-IV apresenta vários representantes comerciais, como é o caso
de Galvus Met® (associação com vildagliptina), Janumet® (associação
com sitagliptina), Trayenta Duo® (associação com linagliptina) e Nesi-
na Met® (associação com alogliptina). A combinação de metformina de
liberação simples com a sulfonilureia glimepirida é representada por
Meritor® e Amaryl Flex®.
UNIDADE 1. DIABETES
36

Em relação à combinação de metformina de liberação prolongada e


inibidores da DPP-IV, tem-se Janumet XR® (associação com sitaglip-
tina) e Kombiglyze XR® (associação com saxagliptina). Além disso, a
associação com a sulfonilureia glimepirida é representada por Amaryl
Met XR® e a associação com o inibidor da SGLT-2 dapagliflozina é re-
presentada por XigDuo XR®.

Tiazolidi nedionas
As tiazolidinedionas, também conhecidas como glitazonas, são
uma classe de antidiabéticos orais classificada como sensibilizadora
de insulina, e representada pela pioglitazona. Seu mecanismo de ação
consiste na redução da resistência insulínica nos tecidos periféricos,
especialmente no tecido musculoesquelético, e, em menor grau, nos
adipócitos e nos hepatócitos.
A redução da glicemia acontece após um período de seis a oito se-
manas e atinge seu máximo após cerca de três meses. Ela ocorre devido
ao estímulo à captação de glicose pelos músculos e pela diminuição dos
níveis de ácidos graxos livres em 20 a 30%, por meio da incitação à sua
deposição no tecido adiposo periférico.
Entre as suas vantagens, tem-se redução da glicemia de jejum em cer-
ca de 50 mg/dL (de 35 a 65 mg/dL) e da HbA1c entre 0,5 e 1,4%; raramente
causam hipoglicemia; levam à redução do espessamento médio-intimal
carotídeo e, consequentemente, à diminuição de eventos relacionados à
doença cardiovascular aterosclerótica; reduzem o risco de infarto agudo
do miocárdio, acidente vascular encefálico isquêmico e morte entre 16 e
24%; e melhoram o perfil lipídico por meio da redução dos níveis de trigli-
cerídeos e aumento dos níveis de colesterol HDL-C (em 5 a 10%).
Os efeitos adversos mais citados são ganho de peso, na ordem de dois
a três quilos; retenção hídrica e edema periférico, podendo desencadear
ou descompensar um quadro de insuficiência cardíaca congestiva em
pacientes propensos; perda óssea e aumento no risco de fraturas em 2,5
vezes - especialmente no quadril e nos punhos (fraturas osteoporóti-
cas) e em pacientes do sexo feminino que fazem uso de pioglitazona por
mais de 12 a 18 meses; e discreto aumento do risco de câncer de bexiga,
associado ao uso crônico, com duração superior a dois anos.
As contraindicações à classe consistem em insuficiência hepática,
gravidez e insuficiência cardíaca classes III ou IV de NYHA. Além disso,
recomenda-se evitar o seu uso em mulheres no climatério e em pacien-
tes com história de câncer de bexiga.
Os representantes comerciais da pioglitazona são Gliozac®, Piotaz®,
Pioglit®, Actos® e Stanglit®, e podem ser encontrados na posologia de
15, 30 ou 45 mg, 1x/dia, sem necessidade de associação às refeições.
UNIDADE 1. DIABETES
37

Sulfonilureias
As sulfonilureias são uma classe de antidiabéticos orais represen-
tada no Brasil pela gliclazida, glimepirida e glibenclamida, fazendo
parte dos chamados secretagogos de insulina. Como o seu mecanis-
mo de ação consiste em aumentar a secreção de insulina pelas cé-
lulas beta-pancreáticas, elas são eficazes somente nos pacientes que
ainda apresentam secreção endógena residual do hormônio. Depois
de alguns anos, os pacientes em uso dessa classe podem passar por
uma elevação gradual da glicemia, em decorrência da degradação
progressiva das células beta. Esse fenômeno é denominado falência
secundária, e ocorre em cerca de 5 a 7% dos pacientes ao ano.
As vantagens atribuídas à classe são baixo custo, redução da gli-
cemia de jejum em cerca de 60 a 70 mg/dL e da HbA1c em 1,5 a 2,0%,
e redução do risco de complicações microvasculares. Em relação às
desvantagens, além do alto risco de falência secundária, cita-se hi-
poglicemia, ganho de peso (em torno de dois a quatro quilos ou 7% de
ganho sobre o peso inicial), perfil incerto de segurança cardiovascular,
e necessidade de ajuste ou de evitar o uso em caso de doença renal.
Quanto às contraindicações, inclui-se taxa de filtração glomerular
estimada (TFGe) < 30 mL/min/1,73 m², insuficiência hepática, DM com
deficiência grave de insulina, infecções graves e gestação.
Os representantes comerciais dessa classe são Diamicron MR®
e Azukon MR® (gliclazida), Amaryl®, Betes®, Bioglic®, Glimepil® e
Azulix® (glimepirida) e Daonil®, Gliben®, Diaben® e Glibendiab® (gli-
benclamida), e devem ser administrados antes das refeições.
A glibenclamida é disponibilizada pelo Sistema Único de Saúde
(SUS), mas leva à aceleração na progressão da falência secundária das
células beta, o que faz com que os pacientes precisem de reposição
insulínica mais brevemente do que precisariam se fizessem o uso de
outras sulfonilureias.
A gliclazida também pode ser disponibilizada pelo SUS e é a sul-
fonilureia mais segura do ponto de vista cardiovascular. Ela causa
menos hipoglicemia e menor ganho de peso em relação às demais
representantes da classe, e não é contraindicada em pacientes com
insuficiência renal avançada.

Glinidas
As glinidas são uma classe de antidiabéticos orais classificada como
secretagogos de insulina, sendo representadas pela repaglinida e pela
nateglinida. Apesar de apresentarem o mesmo mecanismo de ação que
as sulfonilureias, ou seja, promoverem o aumento da secreção insulíni-
UNIDADE 1. DIABETES
38

ca nas células beta-pancreáticas, essa classe apresenta início de ação


mais rápido e período de ação curto, além de um custo mais elevado.
Elas são indicadas especialmente para o controle da elevação da gli-
cose no período após a alimentação, sendo administradas cerca de 15
minutos antes das principais refeições.
As vantagens no seu uso consistem em redução da glicemia pós-
-prandial em 50 a 80 mg/dL, da glicemia de jejum em 20 a 30 mg/dL e
da HbA1c em 1,0 a 1,5% (no caso da repaglinida) e em 0,5 a 1,0% (no caso
da nateglinida); possibilidade de flexibilidade de doses; e segurança
na doença renal avançada com ajuste de dosagem, especialmente no
uso da repaglinida. Entre os efeitos adversos, cita-se hipoglicemia, ga-
nho de peso e incerteza quanto à segurança cardiovascular. A princi-
pal contraindicação é a gestação.
Os representantes comerciais da repaglinida são Prandin®, Pos-
prand® e Novonorm®, na posologia de 0,5 a 16 mg/dia, 3x/dia. Já o
representante da nateglinida é o Starlix®, com dosagem de 120 a 360
mg/dia, também 3x/dia.

Inibidores da Alfa-Glicosidase
Os inibidores da alfa-glicosidase são uma classe de antidiabéticos
representada pela acarbose, cujo mecanismo de ação consiste na ini-
bição dessa enzima presente na borda em escova do trato gastrointes-
tinal, levando a uma lentificação na absorção de carboidratos.
Entre as suas vantagens, pode-se citar o fato de ela não causar hi-
poglicemia, não provocar ganho de peso (podendo inclusive levar a
sua redução), ter a capacidade de reduzir eventos cardiovasculares,
melhorar o perfil lipídico e diminuir significativamente, em até 20%,
a trigliceridemia pós-prandial, além da sua utilidade na prevenção da
progressão para o DM2 em indivíduos com pré-diabetes, com redução
de risco equivalente a 25%.
Apesar disso, a acarbose é uma das drogas menos potentes para re-
dução da glicemia - reduz a glicemia pós-prandial em 40 a 60 mg/dL,
diminui a glicemia de jejum discretamente (de 20 a 30 mg/dL) e leva à
redução de apenas 0,5 a 0,8% na Hb1Ac. Ademais, os efeitos adversos
são frequentes, especialmente os gastrointestinais, destacando-se fla-
tulência, meteorismo, diarreia, cólicas e distensão abdominal.
Entre as suas contraindicações, estão doença inflamatória intesti-
nal, doença intestinal associada à má absorção (síndromes disabsor-
tivas), obstrução intestinal, doenças hepáticas, doença renal crônica
grave, gravidez e lactação.
Os representantes comerciais da acarbose são Aglucose® e Gluco-
bay®. Eles devem ser iniciados em doses baixas, com posologia de
UNIDADE 1. DIABETES
39

50 a 300 mg, e administrados duas a três vezes por dia, no início das
principais refeições.

Inibidores da DPP-IV
Os inibidores da DPP-IV, também conhecidos como gliptinas, são
fármacos incretinomiméticos, ou seja, que aumentam a secreção de
insulina e reduzem a secreção de glucagon em resposta às refeições,
apresentando efeito incretínico.
As incretinas são hormônios intestinais que potencializam a secre-
ção de insulina pelas células beta-pancreáticas em resposta às refei-
ções, e são representadas pelo GLP-1 (glucagon-like peptide 1) e pelo
GIP (glucose-dependent insulin-realizing peptide). A dipeptil peptida-
se-4 (DPP-IV) é a enzima naturalmente responsável pela degradação
do GLP-1 endógeno e, ao inibir a sua ação, essa classe farmacológica
aumenta os níveis de GLP-1 ativos em duas a três vezes, elevando, por-
tanto, a secreção insulínica pós-prandial.
As vantagens encontradas no uso dessa classe são redução da glice-
mia pós-prandial em 50 mg/dL, da glicemia de jejum em 20 mg/dL e da
HbA1c em 0,6 a 0,8%; são extremamente bem tolerados; não alteram o
peso; não causam hipoglicemia; e não costumam causar nenhum efeito
adverso grave.
Os efeitos adversos mais comuns são náuseas, cefaleia, infecção
urinária e faringite leves. Outros incluem angioedema e urticária (ra-
ros), probabilidade incerta de pancreatite aguda, artralgia e penfigoide
bolhoso, além do aumento do número de internações por insuficiência
cardíaca (nos casos da saxagliptina e, provavelmente, da alogliptina).
As contraindicações ao seu uso consistem em hepatopatias agudas
e sensibilidade aos componentes da fórmula. Devem ser evitados na
gravidez, na lactação e em pacientes com menos de 18 anos.
Os representantes comerciais da classe são Januvia® (sitagliptina),
Galvus® (vildagliptina), Trayenta® (linagliptina), Nesina® (alogliptina)
e Onglyza® (saxagliptina).

Análogos do GLP-1
Os análogos ou agonistas do GLP-1 são uma classe de antidiabéticos
que atua potencializando esse hormônio incretínico por meio da liga-
ção ao seu receptor endógeno. Com isso, provoca o aumento da secreção
de insulina dependente de glicose e inibição da secreção de glucagon,
além da lentificação do esvaziamento gástrico e aumento da saciedade,
com consequente diminuição do apetite.
Assim como os inibidores da DPP-IV, também são considerados
fármacos incretinomiméticos, mas apresentam efeitos mais inten-
UNIDADE 1. DIABETES
40

sos. Eles são representados pela liraglutida, dulaglutida, semaglutida,


exenatida e lixisenatida e, diferentemente de todos os antidiabéticos
apresentados até agora, possuem via de administração injetável (com
exceção da semaglutida, que também apresenta formulação oral).
Essa classe tem como vantagens redução da glicemia pós-prandial
em cerca de 60 a 140 mg/dL, da glicemia de jejum entre 10 e 25 mg/dL
e da Hb1Ac em 0,8 a 1,5%; raramente causam hipoglicemia; reduzem
o peso corporal; reduzem eventos cardiovasculares em pacientes com
doença aterosclerótica; reduzem de forma discreta a pressão arterial
sistólica; reduzem os níveis de triglicerídeos pós-prandiais (em espe-
cial a semaglutida de apresentação oral); e causam redução da albu-
minúria (excreção de albumina na urina). No entanto, seu custo ainda
é bastante elevado, o que reduz a sua utilização no dia a dia.
Os efeitos adversos incluem náusea, vômitos, diarreia e perda do
apetite (mais intensos no início do tratamento); desconforto intesti-
nal; pirose; cefaleia; hipoglicemia (quando uso associado a secretago-
gos de insulina); aumento discreto da frequência cardíaca; e pancrea-
tite aguda (raro).
As contraindicações ao uso consistem em uso concomitante a ini-
bidores da DPP-IV, insuficiência hepática grave, pancreatite, gastropa-
resia, história pessoal ou familiar de carcinoma medular de tireoide
ou de neoplasia endócrina múltipla do tipo 2 (NEM-2) e TFGe < 15 mL/
min/1,73 m².
Os representantes comerciais da liraglutida são Victoza® e Saxen-
da®, com posologia de 0,6, 1,2 e 1,8 mg/dia. O representante da dulaglu-
tida é o Trulicity®, com posologia de 0,75 a 1,5 mg e aplicação sema-
nal. A semaglutida pode ser encontrada na forma injetável (Ozempic®
0,25, 0,5 ou 1 mg, aplicação semanal) e na forma oral (Rybelsus®, 3, 7
ou 14 mg, aplicação diária). A exenatida está disponível sob o nome
comercial Byetta®, em canetas injetoras contendo 1,2 ou 2,4 mL, pre-
enchidas com 60 doses de 5 mcg e 10 mcg, respectivamente, e apli-
cação duas vezes ao dia. Já a lixisenatida pode ser encontrada sob o
nome de Lyxumia®, na forma de canetas injetoras de 10 ou 20 mcg,
preenchidas com 14 doses cada, com aplicação diária.

Inibidores do SGLT-2
Os inibidores do SGLT-2, também conhecidos como gliflozinas, são
a classe de antidiabéticos mais promissora e em maior destaque atu-
almente. Esses fármacos são bloqueadores seletivos do cotranspor-
tador de sódio-glicose tipo 2 (SGLT-2), o que causa o bloqueio da reab-
sorção de glicose nos túbulos renais proximais e, consequentemente,
UNIDADE 1. DIABETES
41

aumenta a excreção urinária de glicose (glicosúria) e de sódio (efeito


diurético). Eles causam a perda urinária de 20 a 70 g de glicose por dia,
o que contribui para a redução da glicemia.
Estão associados a uma redução estimada da glicemia de jejum em
20 a 30 mg/dL e da HbA1c entre 0,5 e 1,0%. Além disso, causam discreta
perda de peso (dois a três quilos em 24 semanas) devido ao balan-
ço calórico negativo causado pelo aumento da glicosúria, com perda
de cerca de 80 a 280 kcal/dia na forma de glicose. Levam também a
uma diminuição de dois a seis mmHg na pressão sistólica em seis
meses, redução de eventos cardiovasculares e mortalidade cardiovas-
cular em pessoas com diabetes e doença cardiovascular, redução de
desfechos renais, e raramente causam hipoglicemia. Recentemente,
estudos demonstraram que essa classe também causa redução das
internações por insuficiência cardíaca e tem efeito nefroprotetor.
Os efeitos adversos mais associados são o aumento no risco de in-
fecções genitais (candidíase) em mulheres e de infecção urinária (cis-
tite), baixo risco de cetoacidose euglicêmica, e discreta piora da taxa
de filtração glomerular (TFG) nas primeiras semanas de uso, podendo
causar depleção, hipotensão postural e hipercalemia.
As contraindicações são insuficiência renal grave (TFG < 45 mL/
min/1,73 m² no caso da dapagliflozina e da canagliflozina ou TFG < 30 mL/
min/1,73 m² no caso da empagliflozina), gestação e pacientes pediátricos.
Os representantes comerciais da classe são Forxiga® (dapagliflozi-
na), Jardiance® (empagliflozina) e Invokana® (canagliflozina).

EFEITO NEFROPROTETOR DOS iSGLT-2


Quando vemos que o mecanismo de ação dos inibidores do SGLT-2 consiste
no aumento da excreção urinária de glicose, é natural que o nosso primeiro pen-
samento seja: mas isso não vai fazer mal para os rins? Pois é, mas você acabou de
ler que, na verdade, essa classe de medicamentos apresenta efeito de nefroprote-
ção. Vamos entender o porquê?
Primeiro, devemos relembrar o papel dos rins no metabolismo da glicose.
Os rins atuam na sua produção por meio da gliconeogênese (que ocorre no
córtex renal) e na glicólise, que ocorre na medula. Além disso, filtram até 180
g de glicose por dia, sendo que 90% da glicose filtrada é reabsorvida nos túbu-
los contorcidos proximais por meio dos cotransportadores de sódio-glicose do
tipo 2, ou SGLT-2. Os outros 10% são reabsorvidos pelos cotransportadores de
sódio-glicose do tipo 1 (SGLT-1), localizados nos túbulos contorcidos distais.
UNIDADE 1. DIABETES
42

Através da inibição desses cotransportadores, a inibição da reabsorção


de sódio e de glicose no túbulo contorcido proximal leva ao aumento da con-
centração do filtrado glomerular. Quando esse filtrado chega até a mácula
densa do néfron (que atua como um sensor de sódio), a grande concentração
de sal (e de glicose) ativa uma cascata de reações na mácula densa que leva
à degradação de ATP em ADP e adenosina. Essa adenosina se liga a recep-
tores nas células localizadas ao redor da arteríola aferente e, ao promover o
influxo de cálcio, provoca a sua vasoconstrição. Acredita-se que esse seja o
principal mecanismo hemodinâmico de atuação desses fármacos: a regula-
ção do feedback tubuloglomerular.
Nos pacientes com diabetes, ocorre hiperfiltração e vasodilatação da ar-
teríola aferente, o que leva à lesão glomerular e podocitária, e que gera, por
fim, a proteinúria. Os iSGLT-2, através do mecanismo explicado, restauram a
vasoconstrição da arteríola aferente, reduzindo a pressão intraglomerular e,
consequentemente, diminuindo a proteinúria e melhorando a longo prazo a
taxa de filtração glomerular.
A partir desse efeito nefroprotetor da classe, estudos experimentais rea-
lizados em portadores de doença renal crônica não relacionada ao diabetes
mellitus mostraram que os inibidores do SGLT-2 também atuam por outros
mecanismos, como redução do estresse oxidativo, da indução de fibrose, da
inflamação local, do envelhecimento tubular e do dano glomerular. Com isso,
acredita-se que esses fármacos apresentem um efeito direto sobre a proteção
dos rins. Dessa forma, em 2021, já houve a aprovação de um dos represen-
tantes da classe, a dapagliflozina, para uso no tratamento da doença renal
crônica de pacientes com ou sem diabetes, tanto nos Estados Unidos, quanto
na Europa.

iSGLT-2, PREVENÇÃO E TRATAMENTO DA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA.

Desde o surgimento dessa classe, vários estudos foram realizados com


o objetivo de verificar a segurança cardiovascular desses novos antidia-
béticos. Dois grandes estudos se destacaram ao marcarem os efeitos em
relação à prevenção e ao tratamento da insuficiência cardíaca.
O estudo DECLARE-TIMI 58 foi o maior estudo de desfecho cardiovascular
com o uso de inibidores do SGLT-2 baseado em eventos e teve seus resultados
apresentados em 2018. Nele, observou-se redução do risco relativo em 17%
UNIDADE 1. DIABETES
43

no desfecho composto de internação por insuficiência cardíaca (IC) ou morte


cardiovascular, além da prevenção de internações por IC em todos os pa-
cientes com DM2, independentemente do histórico de doença aterosclerótica
cardiovascular estabelecida ou insuficiência cardíaca. A partir desses resul-
tados, foi realizado o estudo DAPA-HF, que analisou o efeito da dapagliflozi-
na no agravamento da insuficiência cardíaca ou morte cardiovascular em
pacientes com IC com fração de ejeção reduzida (ICFEr). O estudo publicado
em 2019 demonstrou desfecho primário composto com redução em 18% na
morte cardiovascular e em 30% no agravamento da insuficiência cardíaca.
Diante das recentes evidências científicas, os iSGLT-2 foram incluídos
nas diretrizes de tratamento da insuficiência cardíaca. No Brasil, em 2020, a
dapagliflozina foi incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS) para uso no
tratamento de pacientes com mais de 65 anos e insuficiência cardíaca com
fração de ejeção reduzida (ICFEr), portadores de DM2. Para pacientes sem o
diagnóstico de diabetes mellitus, deve-se utilizar como limite uma taxa de
filtração glomerular (TFG) > 30 ml/min/1,73m². Já nos com DM2, o tratamen-
to só pode ser utilizado se TFG > 45 ml/min/1,73m².

QUAL ANTIDIABÉTICO ESCOLHER?


Agora você já sabe tudo sobre as classes de fármacos antidiabéticos
que estão disponíveis no Brasil, suas particularidades, suas vantagens
e suas desvantagens. Mas você sabe como prescrever e como escolher
quais medicações utilizar no tratamento do paciente?
Em linhas gerais, o tratamento do diabetes mellitus tipo 2 se ini-
cia em monoterapia com o uso de metformina. Isso vale especialmente
para aqueles pacientes com HbA1c < 7,5%, sem doença cardiovascular
ou renal estabelecida, e não gestantes.
Nos casos em que a monoterapia com metformina durante três me-
ses (somada às modificações no estilo de vida) não for suficiente para
alcançar HbA1c < 7,0% ou a meta glicêmica, ou ainda quando o paciente
já inicia o tratamento apresentando sintomas de hiperglicemia e com
HbA1c entre 7,5 e 9,0%, recomenda-se a instituição de terapia dupla, com
o uso da metformina e outro antidiabético. Entre eles, deve-se escolher
entre sulfonilureias, tiazolidinedionas, inibidores da DPP-IV, inibidores
do SGLT-2, análogos do GLP-1 ou até mesmo insulinoterapia basal (es-
pecialmente quando HbA1c > 9,0%).

Durante essa associação, sempre se deve avaliar o risco de episódios


de hipoglicemia, principalmente ao optar-se pelo uso de secretago-
UNIDADE 1. DIABETES
44

gos em pacientes com HbA1c próxima a 7,5%. Como as sulfonilureias


são sabidamente associadas ao aumento da incidência de hipoglice-
mia, recomenda-se o uso das de segunda geração, como a gliclazida
e a glimepirida, que apresentam menor potencial hipoglicemiante.
Caso o paciente apresente indicadores de alto risco cardiovascular
(idade superior a 55 anos, hipertrofia ventricular esquerda ou doen-
ça coronária, carotídea e estenose arterial de membros inferiores >
50%) ou doença cardiovascular já estabelecida, deve-se optar pela
associação da metformina a um análogo do GLP-1 ou inibidor do
SGLT-2 que apresente benefício cardiovascular comprovado.
Se o paciente apresentar insuficiência cardíaca (particularmente
com fração de ejeção reduzida) ou doença renal crônica estabe-
lecida, com taxa de filtração glomerular (TFG) entre 30 e 60 ml/
min/1,73 m² ou relação albumina/creatinina urinária (AUC) > 30
mg/g, deve-se optar pela associação a inibidores do SGLT-2 que
apresentem evidência de redução da insuficiência cardíaca e/ou
progressão da doença renal crônica nos estudos de desfechos car-
diovasculares.
Se o paciente não tiver indicadores de alto risco ou doença car-
diovascular, doença renal crônica ou insuficiência cardíaca esta-
belecidos, o fármaco para associação com a metformina deve ser
escolhido com base no perfil do paciente: se o mais importante é
evitar a hipoglicemia, se o paciente não pode ganhar peso ou pre-
cisa emagrecer, ou ainda se o custo do medicamento é um fator
primordial.

Após três meses da instituição da terapia dupla, se a Hb1Ac persistir


acima do alvo, fica recomendada a intensificação das modificações do
estilo de vida e do tratamento por meio da terapia tríplice.

As associações recomendadas são metformina e dois antidiabéticos


(inibidor do SGLT-2, inibidor da DPP-IV, análogo do GLP-1, sulfonilu-
reia ou tiazolidinediona), ou ainda metformina, um antidiabético
oral e um análogo do GLP-1.
Diante de falha terapêutica, pode-se utilizar o análogo do GLP-1 em
adição a três antidiabéticos orais.
Se, após três meses da instituição da terapia tríplice (somada à in-
tensificação das modificações do estilo de vida), a meta de HbA1c ainda
não for atingida, pode-se considerar algumas opções: substituir a tera-
pia oral por terapia injetável; adicionar insulinoterapia basal se o pa-
ciente estiver em uso de análogo do GLP-1; adicionar análogo do GLP-1 e
insulina pré-prandial se o paciente estiver em insulinoterapia basal; ou
UNIDADE 1. DIABETES
45

instituir terapia quádrupla com metformina, iSGLT-2, análogo do GLP-1


e iDPP-IV, sulfonilureia ou tiazolidinediona, particularmente nos casos
refratários.
Quando os pacientes abrem o diagnóstico de diabetes mellitus tipo
2 de forma muito sintomática, com glicemia de jejum ≥ 300 mg/dL ou
HbA1c ≥ 9,0%, o tratamento deve ser baseado na insulinoterapia até a
resolução da hiperglicemia aguda, de preferência, por meio do esque-
ma basal-bolus. Após a estabilização clínica, a terapia dupla ou tríplice
deve ser considerada.

QUANDO E COMO INSULINIZAR O PACIENTE COM DIABETES TIPO 2?


Como foi visto, de forma geral os pacientes recebem a indicação
para o uso de insulina como tratamento inicial quando apresentam hi-
perglicemia severa e/ou manifestações clínicas (perda de peso, poliú-
ria, polidipsia). Além disso, pacientes já em tratamento com fármacos
orais, mas com hiperglicemia persistente, também recebem indicação
para o uso de insulina, especialmente quando apresentam HbA1c ≥ 9,0%
ou persistência dos sintomas, apesar do tratamento com metformina.
Nesses casos, pode-se optar pela terapia combinada (insulina + hi-
poglicemiantes orais) ou pela monoterapia com insulina. A justificativa
para a combinação é que o uso de fármacos com diferentes mecanis-
mos de ação consegue alcançar a meta glicêmica sem precisar usar a
dose máxima de insulina, e minimizando, também, o ganho de peso.
A metformina costuma ser mantida com a adição da insulina, assim
como os agonistas do GLP-1, inibidores da DPP-IV e inibidores do SGLT-
2, que também podem ser continuados. Já as sulfonilureias, glinidas e
tiazolidinedionas costumam ser interrompidas quando se inicia a in-
sulinoterapia, especialmente quando se opta pelo regime de insulinas
pré-prandiais.
A conversão para a monoterapia insulínica torna o tratamento mais
barato, mas pode aumentar o ganho de peso e os episódios de hipoglice-
mia. O antidiabético oral pode ser descontinuado quando a insulinote-
rapia for iniciada ou quando o paciente já estiver utilizando a dosagem
de insulina adequada.
Os principais esquemas de insulinoterapia para o DM2 consistem em:

Esquema basal: adição de uma insulina de ação intermediária (NPH) ou


prolongada (glargina, detemir ou degludeca), em dose única diária,
com manutenção dos antidiabéticos orais. Seu mecanismo atua na
supressão da gliconeogênese hepática e manutenção da glicemia de
jejum dentro da meta glicêmica.
UNIDADE 1. DIABETES
46

Esquema basal “plus”: adição de uma insulina de ação rápida (regu-


lar) ou ultrarrápida (lispro, asparte ou glulisina) antes da principal
refeição do dia, para cobrir o aumento glicêmico provocado pela ab-
sorção dos alimentos, juntamente à manutenção do esquema basal
descrito anteriormente.
Esquema intensivo basal-bolus: administração de insulina de ação in-
termediária (NPH) ou prolongada (glargina, detemir ou degludeca) e
de insulina de ação rápida (regular) ou ultrarrápida (lispro, asparte
ou glulisina). Esse é o esquema preferido para pacientes com diabe-
tes tipo 1 que precisam de múltiplas injeções diárias, mas também
pode ser utilizado em pacientes com diabetes tipo 2, especialmente
naqueles que precisam de altas doses de insulina ou que apresen-
tam deficiência insulínica.

Para os pacientes que estão iniciando o tratamento com insulina


(seja em adição a outros antidiabéticos, em substituição a eles, ou como
tratamento inicial para o DM), pode-se optar pelo esquema de aplica-
ção basal ou pré-prandial. As diretrizes atuais recomendam o início da
insulinização por meio do regime basal, principalmente devido a sua
conveniência e simplicidade para os pacientes que estão fazendo o uso
de insulina pela primeira vez, e porque as insulinas basais estão asso-
ciadas a episódios de hipoglicemia menos frequentes.

As preparações de insulina basal não diferem significativamente em


termos de eficácia glicêmica. No entanto, as insulinas glargina, dete-
mir e degludeca (ação prolongada) costumam causar menos hipogli-
cemia noturna em relação à insulina NPH (ação intermediária).
Na prática, os regimes basais utilizados costumam ser: uma dose de
insulina NPH ou detemir antes de dormir; ou uma dose de glargina
ou degludeca pela manhã ou antes de dormir. A degludeca parece
ter a mesma eficácia em redução glicêmica que a glargina, mas al-
guns estudos demonstraram que aquela causa menos hipoglicemia,
o que é importante especialmente em pacientes em que se busca um
controle glicêmico mais agressivo, ou em idosos.
A dose inicial de NPH, detemir, glargina e degludeca costuma ser 0,2
U/kg (mínimo 10 U, máximo 15 a 20 U) diariamente. Se a glicemia de
jejum do paciente for muito elevada (≥ 250 mg/dL) ou HbA1c ≥ 9,0%,
as doses iniciais podem ser aumentadas para 0,3 U/kg.
As doses de insulina basal são ajustadas de acordo com a glicemia
de jejum, a hemoglobina glicada e os valores da glicemia antes de
dormir. Se a glicemia de jejum estiver acima da meta (geralmente
UNIDADE 1. DIABETES
47

≥ 130 mg/dL), o aumento de 2 a 4 U deve ser feito periodicamente, a


cada três dias. Se a glicemia de jejum estiver muito elevada (≥ 250
mg/dL), a titulação pode ser mais agressiva.

Pacientes com DM2 e HbA1c persistentemente elevada, apesar de


glicemia de jejum dentro do alvo, podem necessitar também de aplica-
ções de insulina pré-prandial, assim como é feito no tratamento do dia-
betes tipo 1 (esquema basal-bolus). Nesses casos, opta-se por adicionar
uma injeção de insulina rápida ou ultrarrápida imediatamente antes da
maior refeição do dia, inicialmente.

A dose inicial típica é de aproximadamente 4 a 6 U ou 10% da dose


basal de insulina, podendo ser aumentada a cada três dias, até que a
meta de glicose pós-prandial seja atingida.
Os análogos de insulina (lispro, asparte e glulisina) apresentam a
vantagem de poderem ser aplicados imediatamente antes das refei-
ções (em comparação aos 30 a 45 minutos necessários para o uso da
insulina regular), ou ainda juntamente às refeições (como é o caso
do análogo asparte comercializado sob o nome de Fiasp®). Além
disso, apresentam certa vantagem no controle glicêmico dos pa-
cientes com DM2.
Outra opção, disponível no Brasil desde 2019, é a insulina inalável,
encontrada sob o nome comercial de Afrezza®, e que consiste em
uma insulina humana de ação prolongada.

9. Prognóstico:

Por ser uma doença crônica e sem cura, o prognóstico do paciente


com DM2 depende, principalmente, do controle glicêmico atingido por
meio do tratamento, e da presença de outras comorbidades associadas.
Como vimos anteriormente, o principal objetivo do tratamento do dia-
betes mellitus é, justamente, tentar prevenir as complicações micro e
macrovasculares da doença, que afetam a qualidade e a expectativa de
vida dos pacientes.
Pacientes com DM2 têm um risco de mortalidade geral aumentado
em 1,5 a 3,6 vezes, e estima-se uma redução da expectativa de vida de
quatro a oito anos, em comparação com indivíduos sem diabetes.
Em relação às doenças cardiovasculares, existe um risco cerca de
duas a quatro vezes maior de desenvolver doença coronariana que indi-
víduos sem diabetes. Além disso, a doença também é fator de risco para
acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, insuficiência cardíaca (IC),
doença arterial obstrutiva periférica (DAOP) e doença microvascular.
UNIDADE 1. DIABETES
48

10. Tabela de resumo:

O DM2 corresponde a mais de 90% dos casos de diabetes.


Epidemiologia A prevalência aumenta com a idade, sendo mais comum após os 45 anos.
A prevalência é semelhante entre os sexos, mas a mortalidade é maior nos homens.

Octeto de DeFronzo:
Resistência periférica à insulina.
Secreção deficiente de insulina pelas células beta-pancreáticas.
Aumento na síntese hepática de glicose.
Fisiopatologia Aumento da lipólise.
Hiperglucagonemia.
Deficiência incretínica.
Aumento da reabsorção de glicose pelos túbulos renais.
Resistência insulínica no cérebro.
“4P’s”: poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso.
Quadro Clínico
Sintomas menos específicos: tonturas, dificuldade visual, astenia e cãibras.
Glicemia plasmática em jejum;
Glicemia plasmática ao acaso;
Exames Teste oral de tolerância à glicose (TOTG);
Complementares Hemoglobina glicada;
Frutosamina;
Glicosúria.
DIABETES MELLITUS:
PRÉ-DIABETES:
Glicemia de jejum ≥ 126 mg/dL
Glicemia de jejum = 100 - 125 mg/dL
Diagnóstico Glicemia 2 horas após TOTG ≥ 200 mg/dL
Glicemia 2 horas após TOTG = 140 - 199 mg/dL
HbA1c ≥ 6,5%
HbA1c = 5,7 - 6,5%
Glicemia casual ≥ 200 mg/dL + sintomas
Educação alimentar;
Modificações Perda de peso;
do estilo de vida Atividade física;
(MEVs) Controle da pressão arterial e da dislipidemia;
Cessação do tabagismo.
BIGUANIDAS Redução da gliconeogênese hepática e
Metformina aumento da sensibilidade periférica à insulina.
SULFONILUREIAS
Gliclazida
Glibenclamida
Tratamento
Glimepirida Aumento da secreção pancreática de insulina.
GLINIDAS
Nateglinida
Repaglinida
TIAZOLIDINEDIONAS
Aumento da sensibilidade periférica à insulina.
Pioglitazona
INIBIDORES DA
Lentificação da absorção intestinal de
ALFA-GLICOSIDASE
carboidratos.
Acarbose
UNIDADE 1. DIABETES
49

INIBIDORES DA DPP-IV
Alogliptina
Linagliptina
Saxagliptina
Estímulo à secreção de insulina dependente de
Sitagliptina
glicose e redução da secreção de glucagon.
Vildagliptina
ANÁLOGOS DO GLP-1
Dulaglutida
Liraglutida
Semaglutida
INIBIDORES DO SGLT-2
Tratamento
Canagliflozina Redução da absorção renal de glicose e aumento
Dapagliflozina da glicosúria.
Empagliflozina
Esquema basal: insulina de ação intermediária ou
prolongada,
1 ou 2 vezes ao dia.
INSULINOTERAPIA
Esquema basal-bolus: insulina de ação
intermediária ou prolongada, 1 ou 2 vezes ao dia,
e insulina de ação rápida ou ultrarrápida antes
das refeições.

11. Leitura recomendada:

SILVA FILHO, Ruy Lyra da et al, Tratamento farmacológico da hiperglicemia


no DM2, in: BERTOLUCI, Marcello Casaccia et al (Eds.), Diretriz da Sociedade
Brasileira de Diabetes, 1. ed. [s.l.]: Conectando Pessoas, 2021.

DAVIES, M. J. et al. Management of hyperglycemia in type 2 diabetes, 2018. A


consensus report by the american diabetes association (Ada) and the european
association for the study of diabetes (Easd). Diabetes Care, v. 41, n. 12, p. 2669–
2701, dez. 2018.

GALICIA-GARCIA, U. et al. Pathophysiology of Type 2 Diabetes Mellitus.


International Journal of Molecular Sciences, v. 21, n. 17, p. 6275, 30 ago. 2020.

VERMA, S.; MCMURRAY, J. J. V. SGLT2 inhibitors and mechanisms of


cardiovascular benefit: a state-of-the-art review. Diabetologia, v. 61, n. 10, p.
2108–2117, out. 2018.

WALLIA, A.; MOLITCH, M. E. Insulin Therapy for Type 2 Diabetes Mellitus.


JAMA, v. 311, n. 22, p. 2315, 11 jun. 2014.
UNIDADE 1. DIABETES
50

Capítulo 3

Complicações Crônicas do Diabetes Mellitus


Nathaly Michaela Melo da Conceição
Jéssica Nascimento Monte
Marcelo da Silva Biavaschi

1. Introdução:

Como você viu nos capítulos anteriores, as complicações relaciona-


das ao diabetes mellitus (DM) são muito frequentes, e representam as
principais causas de morbidade e mortalidade entre esses pacientes. Elas
apresentam relação com o grau de hiperglicemia, o tempo de doença e a
presença de patologias e fatores de risco associados, principalmente disli-
pidemia, hipertensão arterial sistêmica (HAS), tabagismo e sedentarismo.
A hiperglicemia crônica é a grande causadora das alterações que re-
sultam em muitas das complicações clínicas encontradas nesses pacien-
tes. O mecanismo não é totalmente compreendido, porém, acredita-se que
a hiperglicemia funcione como um gatilho para a ocorrência de estresse
oxidativo e ativação de vias de dano celular, causando alterações em di-
versos locais do organismo, principalmente olhos, coração, rins e vasos.
Além disso, a elevação da glicemia leva ao aumento dos níveis de fatores
de crescimento e a disfunções endoteliais.
As complicações crônicas podem ser divididas em vasculares e não
vasculares. Aqui, daremos ênfase às patologias vasculares, que por sua vez
podem ser classificadas em microvasculares e macrovasculares. Para um
melhor entendimento, dividiremos este capítulo de uma forma um pouco
diferente dos demais. Primeiro, explicaremos as complicações microvas-
culares, que incluem as conhecidas retinopatia diabética (RD), neuropatia
diabética e doença renal do diabetes (DRD). Depois, traremos as complica-
ções macrovasculares, em especial a doença arterial coronariana (DAC), a
doença arterial periférica (DAP) e a doença cerebrovascular.

Complicações Microvasculares:
Retinopatia Diabética
2. Epidemiologia:

A retinopatia diabética é a principal causa de cegueira em indivídu-


os de todo o mundo na faixa etária entre 20 e 74 anos de idade, e ocorre
UNIDADE 1. DIABETES
51

em cerca de 40% dos pacientes com DM. Embora a perda da visão ocor-
ra em ambos os tipos de diabetes, ela apresenta etiologias diferentes.
No DM tipo 1, costuma ser causada por retinopatia proliferativa grave,
hemorragias vítreas e deslocamento da retina. Já nos pacientes com
DM tipo 2, o edema e a isquemia maculares são as principais causas.

3. Fisiopatologia:

De acordo com o avanço e grau da complicação, a retinopatia diabé-


tica pode ser dividida em dois estágios:

Retinopatia diabética não-proliferativa (RDNP): é o estágio inicial


da doença, e aparece após cerca de 10 anos de DM. É caracterizada
pela presença de microaneurismas vasculares retinianos, exsuda-
tos hemorrágicos e exsudatos algodonosos, que ocorrem devido às
alterações no fluxo sanguíneo retiniano e à isquemia da retina. Pode
progredir para o estágio de retinopatia proliferativa.
Retinopatia diabética proliferativa: ocorre a formação de novos va-
sos em decorrência da isquemia e da hipoxemia retiniana. Os novos
vasos formados são frágeis e se rompem facilmente, podendo oca-
sionar hemorragia do vítreo, fibrose e descolamento de retina.
O edema macular é a principal causa de redução da acuidade visual,
e pode ocorrer em qualquer estágio da retinopatia.

4. Anamnese:

Clinicamente, a retinopatia diabética se manifesta com redução da


acuidade visual ou cegueira. Aparentemente, os pacientes com DM tipo
1 costumam apresentar complicações oftálmicas mais graves e mais
frequentes, quando comparados com os pacientes com diabetes tipo 2.
Entre os fatores de risco que já foram identificados para a RD, ci-
tam-se duração do DM, doença renal crônica, mau controle glicêmi-
co, puberdade, gestação, hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia,
melhora súbita do controle glicêmico em pacientes cronicamente mal
controlados, variabilidade glicêmica, hipoglicemia, anemia e transtor-
nos alimentares.
Assim como todas as complicações microvasculares, a retinopatia
deve ser rastreada em pacientes com DM tipo 2 no momento do diag-
nóstico, e após 3 a 5 anos do diagnóstico em pacientes com DM tipo 1.
Em ambos os casos, o rastreio deve ser repetido anualmente.
Mulheres com DM e que desejam engravidar devem ser avalia-
das no período pré-concepcional, e as pacientes gestantes devem ser
UNIDADE 1. DIABETES
52

avaliadas trimestralmente, a partir do primeiro trimestre, até um ano


após o parto.

5. Exame físico:

O exame para triagem e diagnóstico da retinopatia diabética é o exa-


me oftalmológico completo, com ênfase no exame de fundo de olho (FO)
ou fundoscopia. A partir dos seus achados e de acordo com a Sociedade
Brasileira de Diabetes (SBD), a RD pode ser classificada em:

RDNP leve: fundoscopia aponta somente a presença de microaneu-


rismas.
RDNP moderada: fundoscopia com microaneurismas e outras alte-
rações que não caracterizam retinopatia grave.
RDNP grave: deve conter qualquer uma das seguintes condições: he-
morragias intrarretinianas nos quatro quadrantes; dilatações veno-
sas em dois ou mais quadrantes; anomalias microvasculares intrar-
retinianas proeminentes em pelo menos um quadrante.

Imagem 1: RDNP moderada. Imagem 2: RDNP grave.


Fonte: “Moderate non-proliferative diabetic Fonte: “Severe non-proliferative diabetic
retinopathy” por Community Eye é licenciada retinopathy.” by por Community Eye Health é
por CC BY-NC 2.0. Cópia da licença: https:// licenciada por CC BY-NC 2.0. Cópia da licença:
creativecommons.org/licenses/by-nc/2.0/ https://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.0/

Por outro lado, se na fundoscopia forem encontradas neovasculari-


zação no disco óptico ou na retina e/ou hemorragia vítrea ou pré-reti-
niana, o diagnóstico passa a ser o de retinopatia diabética proliferativa.
UNIDADE 1. DIABETES
53

Imagem 3: RD proliferativa.
Fonte: “Proliferative diabetic retinopathy” por Community Eye é licenciada por CC BY-NC 2.0. Cópia
da licença: https://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.0/

6. Exames complementares:

A hemoglobina glicada é muito importante para o acompanhamen-


to das complicações crônicas do diabetes mellitus, pois, como você já
sabe, seus níveis correspondem ao controle glicêmico dos últimos três
meses.
É indicado que a medição da HbA1c seja realizada no mínimo duas
vezes no ano, para o acompanhamento do risco de complicações e oti-
mização do manejo. Caso os resultados estejam inadequados e/ou se-
jam realizadas modificações no tratamento do DM, a sua dosagem deve
ser realizada a cada três meses. Como vimos nos capítulos anteriores,
a meta da hemoglobina glicada deve ser individualizada para cada pa-
ciente, mas de maneira geral, para adultos o ideal é que esteja abaixo de
7,0%, e para crianças na fase pré puberal e idosos, abaixo de 8,0%.

7. Tratamento:

Prevenção:
De uma forma geral, o objetivo principal do manejo dos pacientes
com DM é a prevenção das complicações relacionadas, uma vez que,
após instaladas, muitas vezes o tratamento é pouco efetivo e o dano,
irreversível.
A prevenção é baseada em modificações do estilo de vida (alimen-
tação saudável, perda de peso e exercícios físicos), controle intensivo
da glicemia e da pressão arterial, manejo das condições associadas e
detecção precoce da presença da complicação. Como a prática de exer-
cícios físicos melhora o controle glicêmico, contribui para a perda de
UNIDADE 1. DIABETES
54

peso e para a redução dos níveis pressóricos, é extremamente impor-


tante encorajar o paciente a se exercitar.
Em relação ao perfil lipídico, a meta para pacientes com DM deve ser
de níveis de colesterol LDL (LDL-C) inferiores a 100 mg/dL, uma vez que
eles são considerados pacientes de alto risco cardiovascular. Quanto
aos triglicerídeos, deve-se mantê-los em níveis inferiores a 150 mg/dL
e, quanto ao colesterol HDL (HDL-C), níveis superiores a 40 mg/dL em
homens e 50 mg/dL em mulheres.
Além disso, é muito importante o controle das patologias associadas
ao diabetes, como a hipertensão arterial, a dislipidemia e a síndrome
metabólica, já que quanto mais fatores associados, maior a ocorrência
de complicações e mais rápida a sua progressão.

Terapia:
O tratamento da retinopatia diabética geralmente se inicia nos ca-
sos leves e moderados que apresentam associação com edema macular
(principal causa da perda de visão).
A terapia de escolha é a fotocoagulação focal a laser, a qual induz
a atrofia das zonas isquêmicas da retina e “queima” os vasos com per-
meabilidade alterada, reduzindo, assim, o estímulo para a formação de
novos vasos. Essa técnica é efetiva na redução da progressão da RD e
pode ser indicada tanto nos casos de retinopatia proliferativa quanto
não-proliferativa.
Outras opções terapêuticas são a injeção ocular de triancinolona
intravítrea (uma injeção de dexametasona para a redução do edema)
ou de agentes anti-angiogênicos, como o anti-VEFG, em associação à
fotocoagulação.
Nos casos de retinopatia diabética proliferativa em que há hemorra-
gia vítrea e não se consegue visualizar a retina, pode ser necessária a
realização de vitrectomia antes da utilização do laser.

8. Prognóstico:

A retinopatia diabética apresenta íntima relação com outras com-


plicações do diabetes, e a sua gravidade está ligada a um risco maior
no desenvolvimento de outras complicações microvasculares e macro-
vasculares.
Pacientes diagnosticados com RD têm probabilidade maior de doen-
ça renal e cardiovascular, além de acidente vascular encefálico (AVE).
Ademais, a forma proliferativa da doença é preditora para doença arte-
rial periférica e aumenta o risco de ulceração e amputação de membros.
UNIDADE 1. DIABETES
55

Quando precoces, diagnóstico e tratamento melhoram o prognóstico


da doença e reduzem o risco de perda visual irreversível. O atraso no
diagnóstico e no tratamento, além das formas graves, são as principais
causas de cegueira evitável na população economicamente ativa.

Neuropatia Diabética
2. Epidemiologia:

A neuropatia diabética é a complicação crônica mais prevalente nos


pacientes com diabetes e afeta mais de 50% deles, em ambas as formas
da doença (tipo 1 e tipo 2).
A polineuropatia simétrica distal (PNSD) consiste em uma das for-
mas de neuropatia periférica e é a mais comumente encontrada nos
pacientes com diabetes. Para cada elevação de 18 mg/dL na glicemia de
jejum e de 1% na hemoglobina glicada, o risco do desenvolvimento da
neuropatia aumenta em 10 a 15%.
A neuropatia autonômica (ou disautonomia) pode ser detectada em
35 a 50% dos pacientes com DM tipo 1 e em 35 a 70% dos com DM tipo
2, podendo inclusive já estar presente no momento do diagnóstico de
diabetes tipo 2 em até 40% dos casos. Nos pacientes com diabetes tipo 1,
no entanto, essa neuropatia é muito mais frequente na sua forma grave,
cursando com sintomas como gastroparesia, diarreia, taquicardia em
repouso e hipotensão postural.
De forma geral, a neuropatia diabética está associada à etiopatoge-
nia do pé diabético, que representa a complicação mais temida do DM e
é responsável pelo maior número de casos de amputação não traumá-
tica do membro inferior.

3. Fisiopatologia:

A patogênese do dano neurológico causado pelo diabetes mellitus


ainda não foi totalmente esclarecida, mas algumas lesões já foram atri-
buídas ao infarto isquêmico dos nervos periféricos envolvidos.
Entre os dois tipos mais comuns de neuropatia encontrados nos pa-
cientes com DM, tanto a neuropatia periférica quanto a autonômica pa-
recem ter como causa comum o aumento da toxicidade metabólica, que
está relacionada, de alguma forma, com a hiperglicemia.
Em relação à polineuropatia simétrica distal, é conhecida a ocorrên-
cia de lesões tanto nas fibras axonais grossas mielinizadas ou do tipo A,
que conduzem a sensibilidade vibratória e proprioceptiva, quanto nas
UNIDADE 1. DIABETES
56

fibras axonais finas não mielinizadas ou do tipo C, que atuam na con-


dução da sensibilidade térmica, dolorosa e tátil.
O pé diabético tem na sua fisiopatologia uma associação de fatores,
como infecção, ulceração e destruição de tecidos profundos, anormali-
dades neurológicas e diferentes graus de doença arterial periférica. A
neuropatia diabética impede que o paciente perceba o surgimento de
calosidades ou feridas nos pés, que acabam por ulcerar e se infectar. A
perda da sensibilidade proprioceptiva leva à redistribuição da pressão
do peso do corpo geralmente para a região tenar, devido à desestabiliza-
ção da musculatura do arco plantar. A neuropatia autonômica, por fim,
contribui para a anidrose, predispondo a fissuras. A associação entre
infecção e isquemia pode causar a gangrena úmida, um quadro de os-
teomielite que pode levar à necessidade de amputação.

4. Anamnese:

Polineuropatia simétrica distal (PNSD): apresenta caráter insidioso


e irreversível, associado à exposição crônica à hiperglicemia. De 25
a 30% dos pacientes com essa neuropatia são sintomáticos, sendo a
dor o sintoma mais limitante. Ela pode surgir em repouso e geral-
mente tem o caráter de queimação, com piora noturna, impedindo o
paciente de dormir, e melhorando com a deambulação. Os sintomas
costumam ser referidos inicialmente nos pés, especialmente na re-
gião plantar. Os pacientes podem relatar parestesias (sensação de
dormência ou formigamento), disestesias, dor neuropática ou hiper-
patia (dor ao toque).

Neuropatia autonômica: pode ser manifestada com sintomas nos


mais diferentes sistemas. Os principais consistem em diminuição
da variabilidade da frequência cardíaca, taquicardia, hipotensão or-
tostática, gastroparesia, alterações do esvaziamento vesical, hiperi-
drose das extremidades superiores e anidrose das inferiores, e difi-
culdade em perceber hipoglicemia.

A disautonomia cardiovascular é um fator de aumento do risco de


eventos cardíacos e de morte súbita, podendo ser responsável por epi-
sódios de isquemia miocárdica silenciosa, identificável em até 20% de
pacientes com DM assintomáticos. A sua presença deve ser investigada
a partir dos 35 anos.
A disautonomia periférica ocorre devido à desnervação simpática dos
membros e cursa com anidrose, alteração da temperatura e edema. Sua
UNIDADE 1. DIABETES
57

presença contribui para a ocorrência da úlcera do pé diabético, pois pro-


voca o ressecamento dos pés, favorecendo o aparecimento de fissuras.
A disautonomia geniturinária pode levar à cistopatia ou bexiga neu-
rogênica e à disfunção erétil. A bexiga neurogênica pode se manifestar
com a incapacidade de perceber o enchimento vesical e de realizar mic-
ção completa, predispondo a sintomas de irritação urinária, redução da
frequência miccional, incontinência urinária de transbordamento e in-
fecções recorrentes do trato urinário. Já a disfunção erétil ocorre em
até 75% dos portadores de DM de longa data, com causa neuropática em
50% dos casos e causa vascular (aterosclerose da artéria peniana) na
outra metade.
A disfunção gastrointestinal ocorre em até 3/4 dos pacientes com
diabetes e pode dificultar o controle glicêmico. A gastroparesia diabé-
tica deve ser investigada em pacientes com sintomas dispépticos crô-
nicos, como plenitude gástrica, saciedade precoce, náuseas e vômitos,
distensão abdominal e anorexia. Já a enteropatia diabética deve ser
pesquisada diante de diarreia ou constipação crônicos de início recen-
te, excluindo-se outras causas.
Outros sintomas que podem ser encontrados nos pacientes por cau-
sa da neuropatia diabética autonômica são: sudorese gustatória, altera-
ções na acomodação pupilar, episódios de hipoglicemia sem os sinais
de alerta e a chamada “diabetes instável”, caracterizada por variações
frequentes entre estados de hiperglicemia e hipoglicemia.

Mononeuropatia ou radiculopatia: causa fraqueza motora e dor na


topografia do nervo afetado. O mais atingido é o III par craniano
(nervo oculomotor), levando à diplopia, ptose e oftalmoplegia.

Polirradiculopatia: causa dor intensa na topografia de uma ou mais


raízes nervosas, podendo estar associada à fraqueza motora.

5. Exame físico:

O exame dos pés do paciente portador de diabetes deve ser um hábito


dos profissionais em todas as consultas, além do próprio paciente, que
deve ser orientado a observar o surgimento de feridas ou alterações em
seus pés, diariamente. Os fatores predisponentes para complicações nos
membros inferiores incluem diabetes de longo data (dez anos ou mais),
presença de neuropatia periférica, sexo masculino, tabagismo, história
prévia de úlcera ou amputação, déficits visuais, doença renal do diabetes,
controle glicêmico inadequado e alterações estruturais dos membros.
UNIDADE 1. DIABETES
58

Polineuropatia simétrica distal (PNSD):


Teste do monofilamento é o exame de maior acurácia para o diagnósti-
co precoce dessa neuropatia. Nele, pesquisa-se a sensibilidade em quatro
regiões dos pés (hálux e bases do primeiro, terceiro e quinto metatarsos)
aplicando-se um monofilamento de 10 g, também chamado de monofila-
mento de Semmes-Weinstein, com pressão suficiente para que ele se cur-
ve. O erro de percepção em um ou mais pontos prediz com sensibilidade de
90% o aumento do risco de ulceração e amputação do membro.
Outros testes que também podem ser realizados são o teste de sensibi-
lidade vibratória com um diapasão de 128 Hz, o teste de sensibilidade tér-
mica e dolorosa e a pesquisa do reflexo aquileu (o primeiro a ser perdido).
A presença de dois testes clínicos alterados (monofilamento + dia-
pasão/reflexo aquileu/sensibilidade térmica ou dolorosa), excluindo-se
outras causas de neuropatia (como deficiência de vitamina B12, hipoti-
reoidismo, alcoolismo, neoplasia e hepatites virais), estabelece o diag-
nóstico de PNSD.

Imagem 4: Teste do monofilamento de 10 g.


Fonte: “Infermer realitza una exploració amb monofilament de Semmes-Weinstein en cas de peu
diabètic” por Banc Imatges Infermeres é licenciada por CC BY-NC-ND 2.0. Cópia da licença: https://
creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/

Com a evolução da polineuropatia simétrica distal pode haver o


acometimento das fibras motoras, que são poupadas inicialmente. Isso
leva à formação de deformidades nas mãos e nos dedos. As alterações
mais comuns são os dedos em martelo ou em garra, e o sinal do rezador
ou da prece, que consiste na incapacidade da colocação das mãos uma
contra à outra, devido à flexão parcial dos dedos que ocorre em razão da
atrofia dos músculos interósseos e consequente limitação da extensibi-
lidade das articulações das mãos.
UNIDADE 1. DIABETES
59

Imagem 5: Dedo em martelo. Imagem 6: Sinal da prece.


Fonte: Imagem 5: “File:Mallet Finger Injury.jpg” Fonte: Silva, Marilia Barreto Gameiro e
por Clappstaré licenciada por CC BY-SA 4.0. Skare, Thelma Larocca “Manifestações
Cópia da licença: https://creativecommons.org/ musculoesqueléticas em diabetes mellitus.”
licenses/by-sa/4.0 Revista Brasileira de Reumatologia. 2012, v. 52, n.
4, pp. 601-609. Disponível em: <https://www.scielo.
br/j/rbr/a/CSTMRpJf8dfjrsHPMqzXKMQ/>. Epub
07 Ago 2012. ISSN 1809-4570

Neuropatia autonômica:
As alterações autonômicas podem ser triadas facilmente através da
aferição da pressão arterial com o paciente deitado, sentado e em pé, e
também por meio da contagem da frequência cardíaca. Para pacientes
com disautonomia cardiovascular e hipotensão postural sintomática,
podem ser realizados testes funcionais como o tilt table ou teste de in-
clinação ortostática, além da avaliação do intervalo RR no eletrocardio-
grama (ECG).

Pé diabético:
De acordo com os achados do exame físico é possível determinar a
presença de infecção e a sua gravidade. A úlcera do pé diabético é consi-
derada não infectada diante da ausência de sintomas locais ou sistêmi-
cos de infecção. Por outro lado, a infecção é determinada pelo achado de
ao menos dois dos seguintes sinais locais: edema ou área de enduração
local; eritema maior que 0,5 cm ao redor da úlcera; sensibilidade ou dor
local; aumento da temperatura; presença de secreção purulenta. Quando
presente, a gravidade da infecção pode ser classificada em:

Leve: sem manifestações sistêmicas; somente envolvimento de pele


e do tecido subcutâneo; eritema menor que 2 cm ao redor da úlcera.
UNIDADE 1. DIABETES
60

Moderada: sem manifestações sistêmicas; eritema estendendo-se a


mais de 2 cm da margem da úlcera; envolvimento de tendão, múscu-
lo, articulação ou osso.
Grave: presença de dois ou mais dos seguintes sintomas sistêmicos:
temperatura > 38º C ou < 36º; frequência cardíaca > 90 bpm; frequência
respiratória > 20 irpm; PaCO2 < 32 mmHg; leucocitose > 12000/mm³;
desvio à esquerda > 10%; leucopenia < 4000 mm³.
Osteomielite.

Imagem 7: Úlcera em pé diabético com gangrena.


Fonte: “717 - DM foot - gangrene - necrosis” por iem-student.org é licenciada por CC BY-NC-SA 2.0.
Cópia da licença: https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.0/

6. Tratamento:

Além das medidas gerais, o tratamento é baseado na educação do


paciente, cessação do uso de álcool e tabaco, suplementação de vitami-
nas (se necessário) e manejo dos sintomas.

Polineuro patia simétrica distal (PNSD):


O tratamento farmacológico para o controle da dor neuropática ou
da disestesia pode ser feito com o uso de: antidepressivos tricíclicos
(drogas de primeira linha), como a amitriptilina e a imipramina; an-
ticonvulsivantes, como pregabalina, gabapentina e carbamazepina; ou
inibidores seletivos da recaptação de serotonina e noradrenalina, como
duloxetina e venlafaxina.
No que diz respeito ao seu manejo e à prevenção da úlcera do pé dia-
bético, as medidas educacionais para o cuidado dos pés são essenciais.
UNIDADE 1. DIABETES
61

Entre elas, além da já citada auto-inspeção diária dos pés e inspeção


no consultório médico, cita-se o uso de sapatos com solado macio; não
usar calçados apertados, de bico fino ou com tiras entre os dedos; evitar
deambular descalço; não colocar os pés de molho em água quente; não
usar compressas térmicas; cortar as unhas de forma reta; não utilizar
remédios para calosidades, nem cortá-las - sempre procurar avaliação
por profissional de saúde; enxugar bem os pés, especialmente entre os
dedos, após o banho; inspecionar o interior dos calçados antes de colo-
cá-los; sempre utilizar meias, trocando-as diariamente, e com a costura
para fora ou sem costura.

Neuropatia autonômica:
O manejo da hipotensão ortostática pode ser realizado por meio de
medidas não farmacológicas, como elevação da cabeceira da cama, in-
gestão adequada de sal, evitar hipovolemia (desidratação, uso de diuré-
ticos), usar meias elásticas compressivas e evitar mudanças posturais
bruscas. Pacientes com disautonomia cardiovascular devem ser bem
avaliados antes de iniciarem programas de atividades físicas, devido ao
risco de arritmias e isquemia silenciosa.
Para pacientes com queixas urinárias, pode-se recomendar a reali-
zação da manobra de Credé (compressão da bexiga) durante a micção, a
adoção de micções programadas ou o autocateterismo vesical intermi-
tente. Se a disfunção erétil estiver presente, fármacos inibidores da fos-
fodiesterase do tipo 5, como sildenafila, vardenafila ou tadalafila, podem
ser utilizados, além de drogas de uso intracavernoso ou intrauretral.
Quanto às disfunções gastrointestinais, o paciente deve ser orien-
tado em relação a boas medidas comportamentais, como o aumento
na frequência e redução da quantidade de alimento nas refeições, dar
preferência por alimentos de fácil digestão e evitar medicamentos que
retardam o esvaziamento gástrico. O tratamento da gastroparesia dia-
bética pode ser realizado com agentes pró-cinéticos, como metoclopra-
mida, domperidona ou bromoprida.

Úlceras do pé diabético:
O tratamento se baseia em repouso, realização de curativos para au-
xílio na cicatrização, e antibioticoterapia se houver infecção. Diante de
úlceras infectadas, deve-se solicitar cultura (da base da úlcera após de-
bridação, da aspiração da ferida, ou do conteúdo drenado pela ferida) e
iniciar antibioticoterapia.
As infecções leves ou superficiais costumam ser causadas por ger-
mes únicos, geralmente Gram positivos. Nesses casos, está indicada a
UNIDADE 1. DIABETES
62

antibioticoterapia empírica por via oral, utilizando-se cefalosporina de


primeira ou segunda geração, amoxicilina com clavulanato ou clinda-
micina.
Infecções graves ou profundas geralmente são polimicrobianas,
causadas pela associação entre germes Gram positivos, Gram negati-
vos e anaeróbios. Nesses casos, a antibioticoterapia deve ser intrave-
nosa e de amplo espectro, podendo se utilizar vancomicina associada a
betalactâmico, como inibidor da beta-lactamase ou carbapenem, além
da associação de vancomicina a uma quinolona ou ao metronidazol.
O desbridamento cirúrgico é essencial para a retirada de todo o tecido
morto e infectado. Os casos mais avançados podem evoluir para oste-
omielite ou gangrena úmida, muitas vezes levando à necessidade de
amputação.

7. Prognóstico:

O reconhecimento precoce e o tratamento das neuropatias diabéticas


são extremamente importantes, uma vez que consistem em diagnósti-
co de exclusão (devem ser investigadas outras causas mais comuns) e,
quando presentes, devem ser tratadas com medidas específicas. Além
disso, o diagnóstico e o tratamento da neuropatia autonômica, em espe-
cial, podem melhorar muito a qualidade de vida dos pacientes.
Em relação ao pé diabético, pacientes com úlceras infectadas cos-
tumam apresentar mau prognóstico. O estudo “Prognosis of the infec-
ted diabetic foot ulcer: a 12-month prospective observational study”
publicado em 2018 na revista Diabetic Medicine: a jornal of the British
Diabetic Association apontou que, dentro de um ano, somente 46% dos
pacientes com úlceras infectadas observados atingiram a fase de cica-
trização, havendo recorrência posterior em 10% deles. No restante, 15%
foram a óbito e 17% sofreram amputação do membro inferior.

Doença Renal do Diabetes


2. Epidemiologia:

Anteriormente chamada de nefropatia diabética, a doença renal do


diabetes (DRD) se desenvolve, geralmente, 5 a 7 anos depois do início
do estado de hiperglicemia, e é a principal causa de insuficiência renal
em estágio terminal em países desenvolvidos. 20 a 40% dos pacientes
com diabetes acabam progredindo para doença renal avançada, inde-
pendentemente do tipo de DM.
UNIDADE 1. DIABETES
63

3. Fisiopatologia:

O principal mecanismo envolvido na fisiopatologia da doença renal


do diabetes é a hiperfiltração glomerular. Sua consequência é a presen-
ça de albumina na urina (albuminúria), que se associa à redução da
função renal e ao aumento do risco cardiovascular.
A DRD pode ser dividida em duas etapas. A fase inicial, anterior-
mente chamada de microalbuminúria, ainda pode ser reversível se o
paciente obtiver um controle rigoroso da pressão arterial e dos níveis
glicêmicos. Nela, nota-se um aumento leve a moderado da excreção
urinária de albumina (EUA), que chega a valores entre 30 e 300 mg/24
horas ou entre 30 e 300 mg/g de creatinina. Já na fase avançada, anti-
gamente chamada de macroalbuminúria, a presença de proteínas na
urina já pode ser detectada por meio de exames simples de urina, e a
taxa de filtração glomerular (TFG) dos pacientes começa a cair. Nes-
sa etapa, o dano renal torna-se irreversível, com progressão inevitável
para síndrome nefrótica e doença renal em estágio terminal. Apesar
disso, deve-se buscar o controle rigoroso da pressão arterial, com a fina-
lidade de reduzir a velocidade de evolução da doença.

4. Anamnese:

A doença costuma ser assintomática nos estágios iniciais. Entretanto,


na fase avançada, ela pode se manifestar através de edema de membros,
urina espumosa, ganho de peso associado à retenção hídrica, hipertensão
arterial e sintomas urêmicos, como náuseas, vômitos e perda do apetite.
Assim como as demais complicações microvasculares do DM já ci-
tadas, a doença renal do diabetes também deve ser rastreada após cinco
anos do diagnóstico de DM tipo 1 (a partir dos 11 anos de idade) e desde
o momento do diagnóstico do DM tipo 2, uma vez que 7% dos pacientes
já apresentam excreção urinária de albumina aumentada quando des-
cobrem a doença. O rastreamento deve ser feito anualmente, por meio
do cálculo da TFGe e da dosagem da albumina urinária. Esta última
costuma ser a alteração mais precoce da doença e, quando presente de
forma isolada, deve ser repetida em um intervalo de três a seis meses,
em razão do seu grande potencial de variabilidade diária. Em situações
específicas, como puberdade, diabetes descompensado ou gestação, o
rastreamento da DRD deve ser individualizado e realizado em interva-
los mais curtos.
UNIDADE 1. DIABETES
64

5. Diagnóstico:

Para a definição da doença, é necessária a confirmação de qualquer


alteração da excreção urinária de albumina (EUA), em pelo menos duas
ou três amostras, colhidas em um intervalo de três a seis meses. Se,
neste intervalo, duas dosagens apresentarem EUA aumentada, o diag-
nóstico de DRD fica definido.
Em alguns pacientes, especialmente com DM tipo 2, ocorre evolução
da doença e piora progressiva da função renal sem a corresponden-
te elevação dos níveis de proteinúria de forma significativa. Por isso,
orienta-se que o rastreamento seja feito também com a estimativa da
taxa de filtração glomerular (TFGe), além da dosagem da excreção uri-
nária de albumina.
Tanto a TFG quanto a EUA são preditores independentes da evolução
da doença renal e do risco de mortalidade. Assim, ambas devem ser
avaliadas no rastreamento da DRD.

6. Tratamento:

O tratamento da DRD tem como objetivos evitar a progressão para


doença renal terminal e intervir nos eventos cardiovasculares. Dessa
forma, a terapêutica envolve diversos fatores de risco, como hiperglice-
mia, hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia, tabagismo, obesida-
de, alimentação inadequada e sedentarismo. Entre os principais pon-
tos, citamos:

Controle pressórico intensivo:


É fundamental para evitar a progressão da doença. A Sociedade Bra-
sileira de Diabetes (SBD) recomenda manter a pressão arterial (PA) infe-
rior a 130 x 80 mmHg em todos os pacientes com DM e doença renal. Já
a Associação Americana de Diabetes (ADA) recomenda a manutenção
da PA em níveis inferiores a 140 x 90 mmHg em todos os pacientes com
DM, com ou sem doença renal, ou ainda abaixo de 130 x 80 mmHg em
pacientes mais jovens e com risco alto de acidente vascular encefálico.

Bloqueio do eixo renina-angiotensina-aldosterona:


A utilização de inibidores da ECA (iECA) ou bloqueadores do recep-
tor da angiotensina II (BRA) deve ser realizada em todos os pacientes
com doença renal do diabetes e albuminúria elevada, com a finalida-
de de lentificar a sua progressão, mesmo nos pacientes com níveis de
pressão arterial normais.
UNIDADE 1. DIABETES
65

Controle glicêmico intensivo:


É recomendado tanto para a redução da progressão da doença, quan-
to para a redução da albuminúria.
Para pacientes com DM tipo 2 e DRD com TFG entre 30 e 60 ml/
min/1,73 m² ou albuminúria superior a 200 mg/g, é recomendado
o uso dos inibidores do SGLT-2 para a redução da progressão para
doença renal terminal. Nesses pacientes, também deve ser consi-
derada a associação com outro antidiabético, preferencialmente a
metformina, para otimização do controle glicêmico e redução do ris-
co cardiovascular. O uso de análogos do GLP-1 pode ser considerado
para redução da albuminúria.
Para pacientes com DM tipo 2 e DRD com TFG < 30 ml/min/1,73 m² e
HbA1c acima da meta, a insulinoterapia deve ser considerada para
melhorar o controle glicêmico.
Pacientes que tomam metformina devem ter a dose ajustada se TFG
< 30 ml/min/1,73 m² e uso descontinuado se TFG < 15 ml/min/1,73 m².
Sulfonilureias e inibidores da alfa-glicosidase são contraindicados
se TFG < 30 ml/min/1,73 m², enquanto inibidores da DPP-IV devem
ter suas doses ajustadas.

Controle lipídico:
Em pacientes com DRD não dialítica e TFG < 60 ml/min/1,73 m² ou
pós-transplantados renais, é recomendado o uso de estatinas de alta
potência para a redução do risco de eventos cardiovasculares.

Regulação da ingesta de sódio:


Recomenda-se ingestão inferior a 1,5 g/dia de sódio (equivalente a
3,75 g de sal de cozinha por dia) caso o paciente com DRD também te-
nha hipertensão arterial.

Regulação da ingesta proteica:


Diante de DRD grave e fase pré-dialítica, recomenda-se ingesta pro-
teica máxima equivalente a 0,8g/kg de peso ideal/dia.

Nos pacientes com diabetes, a diálise ou hemodiálise costuma ser


iniciada mais precocemente do que o indicado para pacientes sem DM,
geralmente quando a TFG se torna inferior a 20 ml/min/1,73 m².
Por fim, o transplante renal é recomendado para pacientes com in-
dicação de diálise e que apresentam boa expectativa de vida e ausência
de doença cardiovascular grave. Essa medida deve ser indicada sempre
que não houver contraindicações, pois apresenta índices de mortalida-
UNIDADE 1. DIABETES
66

de inferiores aos dos pacientes em terapia de substituição renal: morta-


lidade de 20% em 5 anos para pacientes transplantados, em compara-
ção aos 75% dos pacientes dialíticos.

Complicações Macrovasculares:
2. Epidemiologia:

A presença do diabetes mellitus é um grande fator de risco indepen-


dente para o desenvolvimento de doença arterial coronariana (DAC),
doença cerebrovascular (como o acidente vascular encefálico), doen-
ça vascular periférica (DVP) e insuficiência cardíaca (IC), sendo elas as
principais causas de morte nos pacientes com DM.
Devido à frequente associação com outros fatores de risco cardio-
vascular, como hipertensão arterial sistêmica, baixos valores de coles-
terol HDL e doença renal com albuminúria, o risco relativo para doen-
ças cardiovasculares em pacientes com DM tipo 2 aumenta em duas
a quatro vezes em relação à população em geral, em especial devido a
complicações como insuficiência cardíaca e morte súbita.

Doença arterial coronariana (DAC): pacientes com DM e DAC têm


pior prognóstico, menor sobrevida em curto prazo, maior risco de recor-
rência e pior resposta aos tratamentos. A mortalidade do infarto agudo
do miocárdio (IAM) em pacientes com diabetes é duas vezes maior do
que na população geral.
Mulheres com DM apresentam maior incidência e risco de morte
50% superior aos homens com a doença.

Doença vascular periférica (DVP): acomete de duas a quatro vezes


os pacientes com DM, que por sua vez aumenta o risco de desenvolver
isquemia crítica nos pacientes com DVP.
A associação entre as duas doenças aumenta o risco relativo de am-
putação em cerca de oito vezes e é responsável pela metade das am-
putações não traumáticas de membros inferiores nos Estados Unidos.

Doença cerebrovascular: assim como a DAC, a doença cerebrovas-


cular também tem maior incidência em pacientes com DM. Especifica-
mente em relação ao AVE, a prevalência chega a ser três vezes maior.
Os pacientes com diabetes costumam sofrer acidentes vasculares
encefálicos com idade inferior aos pacientes sem a doença. Da mesma
forma, mulheres com DM apresentam risco maior em relação aos por-
tadores de DM do sexo masculino.
UNIDADE 1. DIABETES
67

Assim como ocorre com o infarto agudo do miocárdio, o prognóstico


dos pacientes com DM também é pior: risco de recorrência duas vezes
maior, risco de demência três vezes maior e aumento significativo da
mortalidade.

3. Anamnese:

Para a avaliação das complicações macrovasculares, deve-se inter-


rogar a respeito da presença de sintomas como dor torácica típica ou
atípica, tal qual os chamados equivalentes anginosos, como dispneia,
sudorese excessiva e desconforto epigástrico.
Deve-se questionar diretamente quanto à dispneia aos esforços, clau-
dicação intermitente e dor nos membros inferiores durante o repouso
(diferenciando-a dos sintomas relacionados à dor neuropática). Além
disso, é necessária a avaliação nutricional, antropométrica e dos hábitos
de vida, com especial atenção à obesidade ou sobrepeso e ao sedentaris-
mo, que costumam estar presentes nos pacientes com DM tipo 2.
No DM tipo 1, as primeiras manifestações de doença vascular pe-
riférica costumam ocorrer entre a terceira e quarta décadas de vida,
especialmente diante da concomitância à doença renal do diabetes. A
duração do DM e o grau de hiperglicemia se associam à presença e à
gravidade da DPV. Além de aumentar a frequência, o DM afeta a distri-
buição da aterosclerose nos membros inferiores e causa calcificações
vasculares com maior frequência.
Recomenda-se que, ao menos uma vez por ano, avalie-se a presença
de fatores de risco cardiovascular que podem ser modificados, como
dislipidemia, hipertensão e tabagismo. Para a determinação do risco
cardiovascular dos pacientes, pode-se utilizar o escore de Framinghan
ou, preferencialmente, o UKPDS risk engine, validado especificamente
para pacientes com diabetes mellitus.

4. Exame físico:

Deve incluir ausculta cardíaca, pesquisa de sopros arteriais, palpação


de pulsos periféricos e exame dos membros inferiores. A presença de so-
pro carotídeo ajuda a identificar os pacientes com maior risco de doença
cardiovascular e que podem se beneficiar de tratamento mais intensivo.

5. Tratamento:

Algumas das principais medidas para prevenir e tratar os pacientes


com DM e complicações macrovasculares são:
UNIDADE 1. DIABETES
68

Perda de peso: é recomendada para todos os pacientes com sobre-


peso ou obesidade, por meio de ações como aumento da atividade
física e redução da ingesta calórica.
Exercícios físicos: melhoram o controle glicêmico, ajudam a perder
peso e reduzem a pressão arterial. Antes do início da prática, os pa-
cientes devem ser avaliados quanto à presença de doença macro e
microvascular.
Controle glicêmico estrito: a meta de HbA1c < 7,0% auxilia na pre-
venção das complicações macrovasculares. Existe associação entre
a redução de 1,0% de hemoglobina glicada e a queda de 18% no risco
de eventos cardiovasculares.
Controle pressórico estrito: além do tratamento farmacológico, de-
ve-se orientar os pacientes quanto a alterações do estilo de vida
como dieta, redução da ingestão de sódio, menor consumo calórico,
aumento do consumo de frutas e vegetais, evitar o consumo de álco-
ol e realizar exercícios físicos.
Controle lipídico: pacientes com DM e doença arterial periférica se
beneficiam do uso de estatinas, mesmo quando não tem dislipide-
mia. Caso presente, a principal meta do tratamento deve ser a redu-
ção dos níveis de colesterol LDL.
Prevenção de trombose: o ácido acetilsalicílico (AAS) está recomen-
dado para a prevenção secundária de pacientes com DM e histórico
de doença cardiovascular prévia. A prevenção primária para pacien-
tes com alto risco cardiovascular ainda é controversa.
Cessação do tabagismo: todos os pacientes com diabetes devem ser
orientados a parar de fumar.

Em relação aos pacientes complicações macrovasculares já estabe-


lecidas, preconiza-se as seguintes terapêuticas:

Doença arterial coronariana:


O tratamento clínico é realizado preferencialmente com iECA ou
BRA, estatina, AAS e betabloqueadores, em caso de IAM prévio. Pode
haver a necessidade de associação à revascularização miocárdica por
meio de angioplastia ou cirurgia aberta, sendo a última a opção preferí-
vel nos pacientes com DM.

Doença vascular periférica:


Os pacientes devem ser orientados em relação ao pé diabético e à dor
em repouso, além da realização de exercícios físicos supervisionados.
A revascularização é indicada se houver claudicação intermitente ou
isquemia críticas, com dor em repouso e/ou lesão trófica.
UNIDADE 1. DIABETES
69

Doença cerebrovascular:
Quando houver estenose carotídea superior a 70%, a endarterecto-
mia está indicada, pois reduz o risco de AVE. Pacientes com fibrilação
atrial associada devem ser anticoagulados.

9. Tabela de resumo:

COMPLICAÇÕES MICROVASCULARES
Manifestações Clínicas Investigação Tratamento
Exame oftalmológico
Fotocoagulação a
Redução da acuidade completo,
Retinopatia Diabética laser e/ou agentes
visual ou cegueira principalmente
antiangiogênicos
fundoscopia
Inicialmente Relação albumina/
assintomática. creatinina urinária, iECA ou BRA
Doença Renal do Edema, urina com cálculo da taxa de Diálise e/ou transplante
Diabetes espuma, ganho de peso, filtração glomerular e renal podem ser
sintomas de uremia, dosagem de albumina necessários
hipertensão arterial urinária
POLINEUROPATIA
SIMÉTRICA DISTAL:
Avaliação da Cuidado com os pés e
Dor em repouso, em
sensibilidade (teste do tratamento sintomático
caráter de queimação,
monofilamento) para a dor
piora noturna e melhora
com deambulação
HIPOTENSÃO
POSTURAL:
Medidas não
farmacológicas
NEUROPATIA BEXIGA NEUROGÊNICA:
AUTONÔMICA: Micção programa ou
Contagem da FC e
Hipotensão postural cateterismo vesical
aferição da PA com
Neuropatia Diabética Bexiga neurogênica DISFUNÇÃO ERÉTIL:
o paciente deitado,
Disfunção erétil Inibidores da
sentado e em pé
Gastroparesia diabética fosfodiesterase tipo 5
Enteropatia diabética DISAUTONOMIA
GASTROINTESTINAL:
Medidas
comportamentais e
agentes pró-cinéticos
Cuidados com
os pés. Uso de
Exame cuidadoso dos
ÚLCERA DO PÉ antibioticoterapia
pés diariamente e no
DIABÉTICO no caso de infecção.
consultório médico
Desbridamento cirúrgico
pode ser necessário.
UNIDADE 1. DIABETES
70

COMPLICAÇÕES MACROVASCULARES
Modificação do estilo
de vida
iECA ou BRA, estatina,
Dor torácica típica ou
Doença Arterial AAS e betabloqueadores
atípica, equivalentes
Coronariana (se IAM prévio)
anginosos
Pode ser necessária
revascularização
miocárdica
Modificação do estilo
Claudicação de vida.
Doença Vascular intermitente, dor nos Estratificação do risco Exercícios físicos
Periférica membros inferiores em cardiovascular supervisionados.
repouso Revascularização se
sintomas críticos
Modificação do estilo
de vida.
Endarterectomia se
estenose carotídea >
Doença Cerebrovascular AVE
70%
Anticoagulação se
associação com
fibrilação atrial

10. Leitura recomendada:

GROSS, J. L.; NEHME, M. Detecção e tratamento das complicações crônicas


do diabetes melito: Consenso da Sociedade Brasileira de Diabetes e Conselho
Brasileiro de Oftalmologia. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 45, n. 3,
p. 279–284, jul. 1999.

RODRIGUES, T. C. et al. Homeostase pressórica e complicações microvasculares


em pacientes diabéticos. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia,
v. 49, n. 6, p. 882–890, dez. 2005.

SCHEFFEL, R. S. et al. Prevalência de complicações micro e macrovasculares


e de seus fatores de risco em pacientes com diabetes melito do tipo 2 em
atendimento ambulatorial. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 50, n. 3,
p. 263–267, set. 2004.

SUMITA, N. M.; ANDRIOLO, A. Importância da hemoglobina glicada no controle


do diabetes mellitus e na avaliação de risco das complicações crônicas. Jornal
Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, v. 44, n. 3, jun. 2008.

TRICHES, C. et al. Complicações macrovasculares do diabetes melito:


peculiaridades clínicas, de diagnóstico e manejo. Arquivos Brasileiros de
Endocrinologia & Metabologia, v. 53, n. 6, p. 698–708, ago. 2009.
UNIDADE 1. DIABETES
71

UNIDADE 2:

TIREOIDE
UNIDADE 2. TIREOIDE
72

Capítulo 4

Hipotireoidismo
Gabrielle Simon Tronco
Larissa Maria Faccin Blás
Graziella Rissetti

1. Introdução:

O hipotireoidismo consiste em uma síndrome clínica decorrente da


diminuição dos hormônios tireoidianos. Antes de iniciarmos o estudo
sobre essa patologia, precisamos entender um pouco mais dessa glân-
dula e dos processos que envolvem a produção e liberação hormonal.
A tireoide é uma glândula que possui papel primordial para o fun-
cionamento do nosso metabolismo e crescimento. Neste e no próxi-
mo capítulo, iremos discutir a diminuição e o aumento da sua função.
A tireoide é formada por dois lobos conectados pelo istmo, e está lo-
calizada entre o ápice da cartilagem tireóide – mais conhecido como
“pomo de Adão” – e a fúrcula esternal. Posteriormente, há a traqueia, o
esôfago e os nervos laríngeos recorrentes, estabelecendo relações im-
portantes para a abordagem cirúrgica. Ela é originada embriologica-
mente da faringe, migrando do forame cego - localizado na base da lín-
gua - até a região cervical, trajeto que corresponde ao ducto tireoglosso,
localização em que tireóides ectópicas podem ocorrer.
No que diz respeito à histologia, ela é formada por diversos folícu-
los que possuem células epiteliais, as células foliculares, especializa-
das em produzir os hormônios tireoidianos. Entre tais células, temos as
chamadas células parafoliculares, responsáveis pela produção da cal-
citonina, envolvida no metabolismo ósseo. No interior de cada folículo,
temos o colóide, local em que o iodo e os hormônios ficam armazenados
junto a tireoglobulina (você pode entender melhor olhando a figura 1 do
capítulo 7, sobre Câncer de Tireoide).
Os hormônios tireoidianos são derivados do aminoácido tirosina e
possuem 65% do elemento iodo em sua composição. O iodo é absorvido
no intestino delgado sob a forma de iodeto e, então, estocado na tireoide
para ser usado quando necessário. A produção hormonal é regulada
pelo eixo hipotálamo-hipófise-tireoide, e conta com a participação do
TRH (hormônio liberador de tireotrofina) e do TSH (tireotrofina). Para
compreendermos a produção hormonal, precisamos entender as diver-
sas etapas.
UNIDADE 2. TIREOIDE
73

O iodo, para adentrar nas células foliculares, cruza a membrana ba-


solateral pelas bombas de sódio-iodo/Na-I-Symporter (NIS). Após en-
trar no folículo, ele é oxidado a iodo orgânico e, então, ligado à tireoglo-
bulina (produzida pelas células foliculares e armazenada no colóide).
A ligação do iodo com a molécula de tireoglobulina, processo chamado
de organificação da tireoglobulina, resulta na formação dos compostos
MIT (Monoiodotirosina) e DIT (Diiodotirosina). Unindo duas molécu-
las de DIT teremos o T4 (tetraiodotironina ou tiroxina); por outro lado,
unindo uma molécula de DIT com uma molécula de MIT, teremos o T3
(triiodotironina). Para a oxidação, organificação e síntese hormonal é
necessária a existência da enzima tireoperoxidase, a conhecida TPO,
localizada na membrana apical das células foliculares. Por fim, para
executarem suas funções, os hormônios são desconectados da tireo-
globulina via proteólise e ganham a corrente sanguínea conectados a
proteínas - principalmente à TBG (em 80% dos casos) e, em menor pro-
porção, à transtirretina ou TBPA e à albumina.

Figura 1: Síntese dos hormônios tireoidianos.


Retirado de: HALL, John E.; HALL, Michael E. Guyton & Hall - Tratado de Fisiologia Médica: Grupo
GEN, 2021.
UNIDADE 2. TIREOIDE
74

A tireoide produz uma proporção maior de T4 (cerca de 20x mais),


contudo esse elemento não possui funcionalidade como o T3, agindo
como um “pré-hormônio”. Assim, perifericamente as desiodases atuam
e transformam o T4 em T3 para que a função hormonal aconteça. Exis-
tem três tipos de desiodases: a tipo 1 está presente na tireóide, fígado e
rim e é inibida em doenças sistêmicas e pelo uso de corticoides, amio-
darona e contrastes iodados; a tipo 2 está presente na tireóide e hipófise
e é importante para realizar o feedback negativo; e, por fim, a tipo 3 está
no SNC e na placenta e funciona como “inativadora”, uma vez que con-
verte o T4 em T3 reverso.
A regulação da fisiologia tireoidiana pode ocorrer tanto pelo eixo hi-
potálamo-hipófise, como pelo próprio iodo. No hipotálamo é produzido
o TRH, que chega até a adenohipófise e estimula os tireotrofos, que pro-
duzem e liberam o TSH por meio da cascata da proteína Gq (proteína G/
fosfolipase C/fosfatidilinositol). A hipófise, como já mencionado, produz
o TSH, uma substância composta por duas subunidades: alfa e beta. A
subunidade alfa é comum aos demais hormônios glicoproteicos, como
LH, FSH e hCG; já a unidade beta é responsável pelo efeito hormonal es-
pecífico. A liberação de TSH se dá de forma pulsátil, respeitando um ciclo
com níveis máximos no início da madrugada. A atuação da tireotrofina
na tireoide se dá através do receptor de TSH, que é proteína Gs depen-
dente (proteína G/adenilciclase/AMPc). Ela possui importantes funções,
como o efeito trófico (crescimento e proliferação de células foliculares e
aumento da vascularização), efeito de produção hormonal (por estímulo
da bomba NIS, da TPO e da Tg) e, ainda, por estimular a liberação hormo-
nal. Esse eixo de regulação funciona através de uma retroalimentação
negativa ou feedback negativo. O T4 penetra no SNC, é convertido pela
D2 a T3 que, então, inibe a liberação hipotalâmica de TRH e hipofisária de
TSH. Ou seja, se por alguma razão os hormônios T3/T4 estiverem dimi-
nuídos, essa alça não irá ocorrer e a produção de TRH e TSH continuará
ativa, aumentando a concentração desses hormônios.

UNIDADE 2. TIREOIDE
75

Figura 2: Sistema de regulação dos hormônios tireoidianos.


Fonte: Retirado de: HALL, John E.; HALL, Michael E. Guyton & Hall - Tratado de Fisiologia Médica:
Grupo GEN, 2021.

Temos, ainda, a regulação que ocorre por parte do iodo. Em casos de


exposição excessiva a esse elemento, há o bloqueio de algumas etapas
do ciclo de produção hormonal. Essa atuação funciona como uma for-
ma de evitar que uma concentração sérica de iodo possa gerar estados
de tireotoxicose. O efeito é denominado Wolff-Chaikoff. De forma opos-
ta, em situações de deficiência de iodo, a tireóide fica ávida por produzir
hormônios, sendo hiper-responsiva ao TSH. Assim, a exposição ao iodo
estimula tais células, um efeito conhecido pelo nome de Jod-Basedow.
Ao diminuir a quantidade de hormônios tireoidianos, há a diminui-
ção de diversos processos metabólicos dependentes que culminam em
sinais e sintomas diversos, podendo chegar até a expressão máxima do
hipotireoidismo, o coma mixedematoso, o qual será abordado no capítulo
33. A depender da causa do hipotireoidismo, podemos classificar em:

Primário: que consiste no mau funcionamento glandular. É respon-


sável por 95% dos casos de hipotireoidismo. Pode ser apenas transitó-
rio, como no caso de tireoidite indolor ou tireoidite pós-parto ou pelo
uso de algumas drogas; ou possivelmente permanente, como acontece
na tireoidite de Hashimoto;
Secundário: causado por patologias que afetam a hipófise, dimi-
nuindo a liberação de TSH;
UNIDADE 2. TIREOIDE
76

Terciário: decorre de patologias hipotalâmicas, as quais diminuem


a liberação de TRH, sendo o formato mais raro de acometimento. Esse
subtipo, juntamente ao secundário, é classificado como hipotireoidis-
mo central (HC), dado que o problema localiza-se no SNC.

Por conta do hipotireoidismo primário (HP) ser o mais prevalente,


devemos compreendê-lo melhor. Ele pode ser causado pela destruição
da tireóide, como acontece na Tireoidite de Hashimoto. Também, pode
ser causado por uso de radioiodo para o tratamento do hipertireoidis-
mo, por radioterapia cervical, por uso de medicamentos – como inter-
feron-alfa, lítio, etionamida, inibidores da tirosina quinase (como o so-
rafenibe e o imatinibe) – e algumas medicações ricas em iodo – como
amiodarona ou contrastes radiológicos iodados. Ainda, podem existir
defeitos enzimáticos congênitos que afetam a síntese e liberação hor-
monal, bem como a deficiência de iodo na dieta. No pós-parto, é possí-
vel o desenvolvimento de uma tireoidite com autoanticorpos positivos
que ocasionam um hipotireoidismo transitório. Diferentemente de qua-
dros de tireoidite subaguda clássicos, as pacientes podem evoluir ao
hipotireoidismo sem a tireotoxicose inicial, ocasionada pela liberação
hormonal após destruição do tecido tireoidiano
No que diz respeito ao HC, podemos ter como etiologia doenças hi-
potalâmicas e doenças hipofisárias, como tumores, traumatismos, dis-
túrbios infiltrativos, doença de Sheehan, etc. Além do mais, o uso de al-
gumas substâncias, como dopamina, somatostatina e glicocorticóides
pode ser responsável por alterações centrais.
Além do hipotireoidismo clínico apresentado até agora, podemos,
ainda, verificar a existência de uma patologia determinada por alte-
rações laboratoriais. Estamos falando do hipotireoidismo subclínico,
o qual será abordado melhor em breve. Podemos ter, também, embora
mais raramente, o hipotireoidismo periférico, o qual acontece em fun-
ção da diminuição da sensibilidade aos hormônios tireoidianos devido
às mutações em alguns genes, como MCT8, SECISBP2, THRA, THRB;
ou à expressão aberrante da deiodinase 3 por alguns tumores, como os
hemangiomas.
A tireoidite de Hashimoto, também conhecida como tireoidite crôni-
ca autoimune ou tireoidite linfocítica crônica é a causa mais frequente
de hipotireoidismo em países com aporte adequado de iodo. Discutire-
mos melhor sua fisiopatologia abaixo, mas é importante lembrar que é
uma doença autoimune com destruição tireoidiana, sendo, então, um
subtipo de hipotireoidismo primário, já que o problema está localizado
na glândula. Não é incomum a encontrarmos associada a outras pa-
UNIDADE 2. TIREOIDE
77

tologias autoimunes, como vitiligo ou DM1, podendo constituir a sín-


drome poliglandular autoimune. Ainda, pelo estímulo contínuo do TSH
sobre a glândula, há o risco do desenvolvimento de linfoma de tireóide
que deve ser lembrado diante de um aumento súbito glandular associa-
do a sintomas compressivos.

2. Epidemiologia:

O hipotireoidismo configura-se como uma das patologias mais pre-


valentes da endocrinologia, afetando 2-4% dos indivíduos acima de 65
anos, 2% das mulheres e 0,1% a 0,2% dos homens em geral. Estima-se
que o hipotireoidismo subclínico, porém, afete 6 a 8% das mulheres (10%
acima dos 60 anos) e 3% dos homens, podendo progredir a hipotireoi-
dismo clínico em 3 a 5% dos casos ao ano, especialmente na presença
de anti-TPO positivo. O hipotireoidismo congênito aflige 1:4.000 neona-
tos, já o hipotireoidismo central é encontrado em 1:20.000.
Os fatores de risco associados ao hipotireoidismo são: idade > 60
anos; sexo feminino (5:1); doenças autoimunes (ex.: DM1, vitiligo, doen-
ça celíaca, anemia perniciosa..), puerpério, história familiar, história de
irradiação de cabeça e pescoço, dieta pobre em iodo, uso de drogas an-
titireoidianas, amiodarona, lítio ou interferon-alfa e síndrome de Down
e Turner. Vale lembrar que o hipotireidismo primário corresponde a
95% dos casos da doença e tem como causa mais comum a tireoidite de
Hashimoto, a qual afeta mais comumente mulheres, aumentando sua
prevalência com a idade.

3. Fisiopatologia:

O desenvolvimento do hipotireoidismo dá-se pela diminuição da pro-


dução hormonal que pode derivar de diversas etiologias. A mais comum
delas, em locais com suporte nutricional de iodo adequado, é a tireoidite
de Hashimoto, a qual consiste em uma doença autoimune que, através de
linfócitos T e autoanticorpos, destrói a tireoide. Há três subtipos de au-
toanticorpos principais: anti-TPO (anti-peroxidase), anti-Tg (anti-tireo-
globulina) e anti-TRAb bloqueador. O mais comum de ser encontrado é o
anti-TPO, presente em 90 a 95% dos casos de Hashimoto, enquanto anti-
-Tg está elevado em cerca de 60%. Vale ressaltar que não são específicos,
pois mesmo em pessoas sem tireoidopatias estes podem ser encontrados.
O anti-Tg, em até 10% da população geral, e anti-TPO, em até 15%.
É relevante lembrar que, por ser uma inflamação da glândula tireoi-
de, a tireoidite de Hashimoto passa por fases. Inicialmente, pela des-
UNIDADE 2. TIREOIDE
78

truição glandular, há a liberação de hormônios na corrente sanguínea


causando hipertireoidismo (hashitoxicose) que, geralmente, passa
despercebido. Após isso, haverá gradualmente a queda hormonal sé-
rica, instalando-se o hipotireoidismo franco.
Podemos ainda ter como etiologia a terapia com iodo-131, a qual
causa hipotireoidismo por destruição glandular e pode ser manifesta-
da no primeiro mês após o uso, bem como anos após. Em países com
baixo aporte de iodo na dieta, poderemos encontrar hipotireoidismo
dada a falta desse composto essencial para formar as moléculas hor-
monais. De forma oposta, algumas substâncias com excesso de iodo,
como amiodarona e contrastes radiológicos, também podem ser res-
ponsáveis, o que é explicado pelo efeito Wolff-Chaikoff em que gran-
des quantias de iodo são capazes de “desligar” a tireoide. Por fim, o uso
de interleucina para o tratamento de tumores malignos ou da hepatite
B ou C é capaz de destruir a tireoide.

4. Anamnese:

As manifestações mais marcantes são astenia, sonolência, intole-


rância ao frio, pele seca e descamativa, voz arrastada, hiporreflexia
profunda, edema facial, anemia e bradicardia. Isso acontece porque,
com a queda hormonal, haverá lentificação metabólica, bem como
o acúmulo das glicosaminoglicanas em órgãos e tecidos. Isso pode
gerar edema facial, pele espessa, macroglossia, rouquidão, podendo
chegar ao mixedema generalizado em casos graves. Tais alterações
são melhor percebidas em pacientes jovens, uma vez que em idosos
podem ser confundidas como “fisiológicas” do envelhecimento. O qua-
dro clínico varia em maior ou menor grau dependendo do nível da
deficiência hormonal e do tempo de instalação, podendo variar de as-
sintomático até o mixedema grave. Em sua grande maioria, haverá
uma queixa inespecífica, podendo ser acompanhada de uma rique-
za sintomatológica afetando diversos órgãos e sistemas por conta da
atuação disseminada dos hormônios tireoidianos.
Cabe ressaltar que o quadro clássico, facilmente reconhecido, é
pouco presente nos dias atuais, prevalecendo queixas inespecíficas,
muitas vezes leves, e pacientes oligossintomáticos. A anamnese do
paciente com suspeita de hipotireoidismo pode determinar a causa da
falência glandular, seja por tratamento com iodo 131, pela presença de
outras doenças autoimunes e tireoidianas na família ou até pelo uso
de medicamentos.
UNIDADE 2. TIREOIDE
79

Tabela 1: Sinais e Sintomas do Hipotireoidismo de acordo com os sistemas


orgânicos.

Apresentação
Aumento de peso, intolerância ao frio, fadiga, letargia, aumento do IMC,
Metabolismo
diminuição da taxa metabólica basal, mixedema, hipotermia
Fadiga ao exercício, dispneia, dislipidemia, bradicardia, hipertensão diastólica/
Cardiovascular convergente, disfunção endotelial, efusão pericárdica, hiperhomocisteinemia,
alterações eletrocardiográficas
Pulmonar Intolerância aos exercícios, hipoventilação e apnéia do sono
Rouquidão, diminuição da visão e da audição, neuropatia, disfunção coclear,
Neurossensorial
diminuição da sensibilidade gustativa e olfativa
Memória afetada, parestesias, dificuldade de concentração, alteração de
Neurológico e
comportamento, função cognitiva alterada, atraso no relaxamento de tendões,
Psiquiátrico
depressão, demência, ataxia, síndrome do Túnel do Carpo, coma mixedematoso
Constipação, diminuição da motilidade esofagiana, esteatose hepática não
Gastrointestinal
alcoólica, ascite
Endocrinológico Infertilidade, distúrbios menstruais e galactorreia
bócio, desregulação do metabolismo da glicose, disfunção sexual, aumento da
prolactina, hiperplasia hipófisária
Fraqueza, cãibras, artralgia, aumento da CPK, síndrome de Hoffmann, fratura
Musculoesquelético
osteoporótica (mais provavelmente causada por tratamento excessivo)
Sangramentos e fadiga, anemia moderada, von Willenbrand adquirida,
Hematológico diminuição da proteína C e S, aumento do tamanho das hemácias, aumento do
volume plaquetário
Pele fria e seca, unhas quebradiças, perda de cabelo, pálpebras e face inchadas,
Dermatológico pele e cabelos engrossados, perda da lateral das sobrancelhas - madarose,
palmas das mãos amareladas (acúmulo de betacaroteno), alopecia areata
Eletrólitos e função renal Deterioração da função renal, diminuição da TFG, hiponatremia

Tabela 2: Sinais e Sintomas do Hipotireoidismo e suas causas.

Mecanismo Sintomas Sinais


Fadiga e Fraqueza Movimentos e discurso lentificados
Intolerância ao frio Atraso no relaxamento dos reflexos
Dispneia ao esforço tendíneos
Lentificação dos processos Ganho de peso Bradicardia
metabólicos Disfunção cognitiva Carotenemia
Constipação
Distúrbios do crescimento e retardo
mental (crianças)
Pele seca Pele engrossada
Rouquidão Face inchada e perda do terço
Acúmulo de substâncias
Edema distal das sobrancelhas
intersticiais
Edema periorbital
Macroglossia
UNIDADE 2. TIREOIDE
80

Mecanismo Sintomas Sinais


Diminuição da audição Hipertensão diastólica
Mialgias e parestesias Efusão pleural e pericárdica
Depressão Ascite
Outras
Distúrbios menstruais Galactorreia
Artralgia
Puberdade atrasada

5. Exame físico:

O exame físico de um paciente com hipotireoidismo pode demons-


trar a presença de bócio, especialmente se estivermos diante de HP, o
que é explicado pelo efeito trófico do TSH aumentado. Está presente em
75% dos casos de tireoidite de Hashimoto sendo geralmente difuso e he-
terogêneo. Em 25% dos casos, podemos ter uma glândula atrofiada em
função da destruição. Assim, é importante nos atentarmos ao exame
da glândula tireóide, pois a partir dele poderemos definir se há bócio
ou não e se este é difuso ou nodular. Primeiramente, devemos ter em
mente que esse exame é dividido em inspeção, palpação e ausculta. Em
geral, a glândula não é visível, mas palpável.

Você sabe examinar a tireoide?

O exame é dividido em inspeção, palpação e ausculta. O paciente deve


estar sentado. Em relação à inspeção, geralmente, a glândula não é visível,
mas pode ser mais facilmente visualizada quando estendemos a cabeça do
paciente para trás ou quando pedimos para deglutir (dada sua fixação à fás-
cia pré-traqueal, ela irá se deslocar para cima em vigência da deglutição;
esse ponto é importante para a diferenciação com aumentos na região do
pescoço, como adiposidade cervical, a qual não é móvel à deglutição). Na
presença de assimetrias ou abaulamentos locais, podemos estar diante de
um aumento lobar ou nodular da tireoide.
Para a palpação, recomenda-se que o paciente esteja com a cabeça leve-
mente fletida para frente visando relaxar a musculatura esternocleidomas-
tóidea. Em grande parte dos indivíduos, a glândula é palpável, mas para
que isso seja executado, primeiro, precisamos localizá-la. Devemos lembrar
que o istmo da tireóide, isto é, a “ponte” que liga os dois lobos, localiza-se
imediatamente abaixo da cartilagem cricóide (para encontrá-la, passe os
dedos na linha mediana do pescoço; primeiro você irá sentir a cartilagem
UNIDADE 2. TIREOIDE
81

tireóidea, o “pomo de Adão”; a cartilagem cricóide está abaixo dela). O ist-


mo, quando palpado, mede cerca de 0,5 cm de largura e possui consistência
borrachosa. Com o polegar podemos palpar o lobo piramidal, caso esteja
presente. Mais frequentemente se localiza na borda medial do lobo E, sendo
que é mais facilmente palpado ao deslocar o polegar para frente e para trás
no plano horizontal acima do istmo. Caso esteja aumentado, temos indício
de doença tireoidiana. Visando a palpação dos lobos, podemos prosseguir
com três métodos. No primeiro, o examinador fica à direita e à frente do
paciente.
Após localizar o istmo, o polegar e o indicador direitos devem ser posi-
cionados um em cada lado da traqueia e, assim, solicitamos que o pacien-
te degluta. Após, os lobos devem ser palpados individualmente; para isso,
os dedos indicador e médio da mão direita ficam justapostos sobre o lobo
esquerdo. Para o lobo direito, será usada a mão esquerda. Devemos, então,
pedir ao paciente para deglutir, a fim de haver a percepção completa da
glândula. O segundo método consiste em, ainda à frente do paciente, utili-
zar o polegar E e deslizá-lo sobre o lobo E. Para o lobo D, utilizaremos a mão
ipsilateral.

Figura 3: Exame físico da glândula tireoide. Abordagem anterior: palpação


da glândula com o examinador localizado à frente do paciente, com os
polegares.

Em relação ao terceiro método, o examinador, agora, se localizará atrás


do paciente. Para descontrair a musculatura, devemos pedir para o paciente
fletir a cabeça para o lado que será examinado. Com isso, os dedos indicador
UNIDADE 2. TIREOIDE
82

e médio comprimem a face interna muscular a exploram o lobo pelo uso dos
dedos desde a cartilagem tireóide até o 6o anel traqueal. O mesmo é repetido
para o outro lobo. Para facilitar a identificação glandular, solicitamos ao pa-
ciente que degluta.

Figura 4: Exame físico da glândula tireoide. Abordagem posterior: examinador


localizado atrás do paciente. Palpação com os dedos indicador e médio.
A flexão do pescoço do paciente, por relaxar a musculatura, pode colaborar na
exposição da glândula.

No que diz respeito à ausculta, essa deve ser realizada em todos os pa-
cientes com suspeita de tireotoxicose em função do aumento da vasculari-
zação glandular que pode originar sopros muitas vezes acompanhados de
frêmitos.

Alguns sinais incluem: bradicardia, pressão convergente, derrame


pleural e edema em face, mãos e em tornozelos, geralmente duro (sem
cacifo) por acúmulo de glicosaminoglicanas, o chamado mixedema. Vale
ressaltar que esse edema é diferente do mixedema pré-tibial encontrado
na dermopatia infiltrativa da Doença de Graves. Podemos ter sintomato-
logia de hiperprolactinemia, como galactorreia, amenorreia e perda de li-
bido; isso acontece por conta do estímulo do TRH sobre os lactotrófos que,
então, acabam por secretar mais prolactina. Ainda, pode haver aumento
da secreção do hormônio antidiurético (ADH) promovendo hiponatremia
e um quadro similar à síndrome da secreção inapropriada de ADH, con-
sistindo em um possível diagnóstico diferencial.
UNIDADE 2. TIREOIDE
83

Em pacientes com HC, em sua maioria, há a tendência de uma me-


nor riqueza de sintomas relacionados à deficiência tireoidiana, pois 10
a 15% da produção não depende do TSH. Entretanto, geralmente há o de-
senvolvimento de outros déficits hormonais pelo envolvimento de mais
tipos celulares centrais, com o aparecimento de insuficiência adrenal
ou hipogonadismo, uma vez que as patologias acabam por afetar o hi-
potálamo/hipófise como um todo.
No sistema cardiovascular, verificamos redução no débito cardía-
co, por conta da queda na frequência cardíaca e na contratilidade. Isso
pode piorar quadros de angina ou IC em pacientes com doença cardíaca
prévia. Ainda, podemos ter efusão pericárdica, hipertensão diastólica
por aumento da resistência periférica, hipercolesterolemia, hiperhomo-
cisteinemia.
O fluxo sanguíneo diminuído ocasiona uma pele fria e pálida. Em
função da diminuição da atividade de glândulas sudoríparas e sebáce-
as, a pele estará seca, descamativa e áspera. O cabelo geralmente é fino
e quebradiço, podendo ocorrer alopecia, madarose e unhas quebradi-
ças. O acúmulo, já comentado, de glicosaminoglicanas leva ao edema
mucinoso não depressível, geralmente visível próximo aos olhos, dorso
das mãos, pés e fossa supraclavicular. Ainda, poderemos verificar vi-
tiligo ou hiperpigmentação, esta última na presença de insuficiência
adrenal por autoimunidade.
A dispneia e fadiga podem estar presentes em mais da metade dos
casos, sendo queixas comuns, associadas tanto a alterações cardiovas-
culares, quanto respiratórias. Pode ocorrer, ainda, rinite crônica, dimi-
nuição da capacidade de exercício e diminuição do drive respiratório
por fraqueza da musculatura respiratória, levando à hipercapnia. Pode
haver, também, apneia do sono em alguns pacientes em função da ma-
croglossia.
Há de se atentar à presença de anorexia por diminuição da neces-
sidade energética, bem como também à ocorrência da diminuição da
motilidade intestinal resultando em constipação, ascite, redução do
apetite e aumento de peso. Em mulheres, podemos verificar tanto oligo
ou amenorréia, como hipermenorreia ou menorragia. Ainda, a fertili-
dade pode ser afetada e, em função da hiperprolactinemia, podemos
ter junto à alteração do ciclo menstrual, galactorreia. Também, pode
haver diminuição da libido, disfunção erétil e ejaculação retardada. A
presença de fraqueza, cãibras e mialgia podem acontecer, elevando a
creatinoquinase - CPK.
Lentidão, confusão, déficit cognitivo e pseudodemência podem estar
presentes. Assim, em idosos com quadro demencial é recomendado o
UNIDADE 2. TIREOIDE
84

screening de hipotireoidismo. A Encefalopatia de Hashimoto é uma


condição incomum, que pode ocorrer por vasculite autoimune, sen-
do caracterizada por confusão, alteração da consciência, convulsão
e mioclonia subaguda. O acúmulo de mucopolissacarídeos ocasiona
compressão nervosa, podendo gerar a Síndrome do Túnel do Carpo.
Por fim, uma condição grave e extrema é o coma mixedematoso que
será discutido no capítulo 33.
Algumas anormalidades metabólicas podem estar presentes, como
hiponatremia, por conta da diminuição da água livre corpórea, que
tende a ir para o terceiro espaço, associada ao aumento do ADH. Tam-
bém, vê-se aumento da creatinina e ácido úrico por queda da taxa de
filtração glomerular, bem como aumento nos ácidos graxos, triglice-
rídeos e LDL-colesterol. Ainda, pela queda metabólica, o clearance de
várias drogas anticonvulsivantes, anticoagulantes, hipnóticos e opi-
óides pode estar diminuído, o que requer cuidado. Os pacientes po-
dem apresentar diminuição do turnover ósseo e, por vezes, resistên-
cia à ação do PTH, embora o aparecimento de osteoporose seja menos
corriqueiro do que no hipertireoidismo.

O hipotireoidismo congênito é o distúrbio endócrino congênito mais co-


mum. O tratamento precoce tem grande relevância, uma vez que consegue
evitar o déficit cognitivo. Assim, sua detecção se dá precocemente com o
teste do pezinho, entre o segundo e quinto dia de vida, por meio da dosagem
do TSH neonatal. Caso o TSH esteja maior que 10, a criança deve coletar novo
sangue periférico para a dosagem de TSH e T4L. Confirmada a alteração, a
terapêutica com levotiroxina é iniciada imediatamente. O hipotireoidismo
extremo em fetos, bebês ou crianças caracteriza-se pela deficiência de cres-
cimento e pelo retardo mental, sendo conhecido como cretinismo.

6. Exames complementares:

Diante da queda metabólica, podemos ter alteração de alguns exa-


mes. O LDL-colesterol pode estar elevado, o que é explicado pela dimi-
nuição da expressão do gene dependente de T3 que produz o receptor
para essa molécula no fígado; assim, o LDL acaba permanecendo nos
vasos e tornando-se mais suscetível à oxidação e ao desenvolvimen-
to do processo aterogênico. Pode haver, também, hipertrigliceridemia
em função da redução da lipase lipoproteica, a qual teria por função
UNIDADE 2. TIREOIDE
85

retirar essas moléculas da circulação. Ainda, outros fatores de risco


cardiovasculares podem ser encontrados, como a elevação da proteí-
na C reativa, creatinoquinase e lipoproteína-a.
No que diz respeito a alterações endocrinológicas, poderemos veri-
ficar hiperprolactinemia em caso de HP, como já comentado anterior-
mente. Em relação a alterações hematológicas, poderemos verificar
a presença de anemia, geralmente, normocrômica-normocítica (por
conta do metabolismo diminuído). Podemos, no entanto, encontrar
anemia macrocítica devido à anemia perniciosa por autoimunidade
ou, até mesmo, anemia microcítica-hipocrômica por menorragia. A
miopatia associada pode fazer a elevação de enzimas musculares,
como a CPK, LDH e AST/TGO.
Em relação à Hashimoto, a ultrassonografia (USG) demonstra ca-
racteristicamente hipoecogenicidade do parênquima tireoidiano, sen-
do que, para alguns autores, é uma manifestação precoce da doença,
antes mesmo da elevação do anti-TPO. Também podemos ter textura
heterogênea (pseudonódulos) e aumento do fluxo vascular. A US não
é recomendada de rotina em quadros de hipotireoidismo, mas está
bem indicada quando há anormalidades estruturais da tireoide (bó-
cio, nodulações) ou quando a etiologia do hipotireoidismo é duvidosa
– por exemplo, pacientes com hipotireoidismo com anti-TPO negati-
vo. Diante da presença de glândula com aspecto nodular, a biópsia ti-
reoidiana pode ser recomendada, demonstrando infiltrado linfocítico
folicular do parênquima, apresentando graus diversos de fibrose e de-
generação, as células foliculares apresentam-se destruídas (algumas
tornando-se maiores e acidofílicas pelo maior conteúdo de mitocôn-
drias – células de Hürthle, ou de Askanazy)

7. Diagnóstico:

Não é possível fazer o diagnóstico apenas pelos achados clínicos por


conta da inespecificidade dos sintomas, cuja única exceção é a suspei-
ta de coma mixedematoso, cujo tratamento deve ser instituído antes
mesmo da confirmação laboratorial, dada a gravidade da condição.
A abordagem inicial consiste na dosagem de TSH e T4L. Os valores de
referência para TSH ficam entre entre 0,4 e 4 mUI/L ou 4,5 mUI/L, entre-
tanto níveis de corte mais altos devem ser considerados para pacientes
mais idosos. Para o T4L utilizamos como referência 0,9-2 ng/dl.
Para diagnosticar a presença de hipotireoidismo, seja ele primá-
rio ou central, devemos verificar a queda nos hormônios tireoidianos.
Para isso, devemos pedir o T4L e, caso esteja diminuído, iremos pros-
UNIDADE 2. TIREOIDE
86

seguir com o raciocínio para verificar onde está o problema. Nesse mo-
mento, você pode estar se questionando a razão pela qual não pedimos o
T4 total. Isso pode ser explicado porque quando se é pedido o hormônio
“total” podemos ter variações que não representam a realidade, uma vez
que parte dos hormônios tireoidianos está ligado a proteínas as quais,
caso diminuídas, podem falsear o valor encontrado. Assim, ao requisi-
tarmos apenas a porção livre, estaremos certos que essa não será afetada
pelo aumento ou diminuição de proteínas. Da mesma forma, diante de
uma suspeita de hipotireoidismo, a dosagem de T3 acaba não sendo de
grande valor, uma vez que, como vimos inicialmente, o T4 se converte
perifericamente em T3. Com isso, a redução de seus níveis séricos sem-
pre sucede a redução de T4, sendo uma informação, por vezes, “atrasada”
e sem muito valor clínico, diferentemente do que acontece nos quadros
de hipertireoidismo, que podemos ter tireotoxicose por T3.
Após pedirmos o T4L e verificarmos que está baixo, precisamos, en-
tão, encontrar a fonte do problema. Para fazermos isso, devemos olhar
para o TSH, que irá nos indicar se o problema é na glândula ou no SNC.
Por isso, geralmente esses dois exames são requisitados juntos, uma vez
que, apenas olhando para o T4L ou só para o TSH, teríamos a informação
incompleta. Na vigência do aumento de TSH, entende-se que o feedba-
ck negativo dos hormônios tireoidianos não está acontecendo e, então,
a hipófise está liberando quantidades maiores de TSH na tentativa de
normalizar os níveis hormonais. Assim, ao encontrarmos um T4L baixo
juntamente a um TSH aumentado, estamos diante de um hipotireoidis-
mo primário, cuja principal causa é a tireoidite de Hashimoto.
Por outro lado, ao encontrarmos um T4L baixo juntamente a um
TSH diminuído, estamos diante de um hipotireoidismo central. Nesse
caso temos a evidência de que a hipófise não está mandando o sinal
que deveria para estimular a tireoide, mesmo com a ausência do fee-
dback negativo desempenhado pelos hormônios tireoidianos. Por fim,
ao encontrarmos um T4L normal na presença de um TSH aumentado,
estamos diante do chamado hipotireoidismo subclínico.
Para efetivar o diagnóstico de tireoidite de Hashimoto podemos,
ainda, requisitar os autoanticorpos presentes nessa doença, como o
anti-TPO, anti-Tg e anti-TRAb bloqueador. Contudo, diante da pre-
valência dessa patologia em nosso meio, ao encontrarmos um HP, a
suspeição quanto a Hashimoto, mesmo antes de pedir tais anticorpos,
é alta. Ao encontrarmos laboratoriais sugestivos de HC, devemos re-
quisitar um exame de imagem, preferencialmente uma ressonância
magnética que nos possibilite enxergar a sela túrcica para verificar
possíveis alterações que justificariam o quadro.
UNIDADE 2. TIREOIDE
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SUSPEITA CLÍNICA DE HIPOTIREOIDISMO

TSH, T4L

Hipotireoidismo Hipotireoidismo Hipotireoidismo Hipótese


Primário Central Subclínico Descartada

RNM DE SELA
TÚRCICA

Normal Tumor ou
Infiltração

L- Tiroxina CX, RTX

Figura 3: Fluxograma de condutas diante da suspeita clínica de hipotireoidismo.


Elaborado pelo autor.

Há situações em que ocorre o aumento de TSH com T4L sem que


haja hipotireoidismo subclínico, como convalescença de doenças não
tireoidianas, insuficiência suprarrenal, adenomas produtores de TSH,
uso de algumas medicações, como metoclopramida ou domperidona.
É por essa razão que se recomenda repetir a dosagem de TSH 3-6 me-
ses antes de confirmar o diagnóstico de hipotireoidismo subclínico. É
coerente excluir desordens que possam mimetizar hipotireoidismo, es-
pecialmente em idosos. O diagnóstico diferencial inclui anemia, outras
doenças autoimunes, síndrome da fadiga crônica, depressão, disfunção
adrenal e alterações fisiológicas do envelhecimento.

O rastreio de alterações tireoidianas não é recomendado em pacientes


com doenças críticas agudas ou crônicas, uma vez que podem existir altera-
ções falseadas. É a chamada síndrome do eutireoideo doente. Ela ocorre pela
diminuição da deiodinase 1 e aumento da deiodinase 3, resultando na trans-
formação de T4 em T3r ou reverso, e não em T3, o que diminui os valores
encontrados deste hormônio funcional. Com a resolução do quadro de base,
as alterações laboratoriais regridem, sem necessitar de tratamento.
UNIDADE 2. TIREOIDE
88

8. Tratamento:

O tratamento do hipotireoidismo envolve a reposição hormonal e ob-


jetiva normalizar os níveis de TSH no HP ou T4L no caso de HC. Para isso,
utiliza-se a levotiroxina, um composto feito de T4. O uso deste, ao invés
de T3 (liotironina), dá-se pela maior meia-vida (7 dias - facilitando a
posologia a adesão e o tratamento do paciente, o qual, ao usar apenas T3,
poderia necessitar de mais doses diárias). Antes de iniciarmos o trata-
mento, devemos estar atentos ao risco de coexistência de adrenalite au-
toimune assintomática por insuficiência poliglandular autoimune, visto
que o início da reposição com T4L aumenta rapidamente o clearance de
cortisol e pode ocasionar ou piorar a insuficiência adrenal.
O uso da levotiroxina é oral, com dose de 1.6 a 1,8 micrograma/kg de
peso/dia, podendo variar em função do grau de deficiência, da idade e
do estado geral de saúde. A administração deve ocorrer em jejum, ge-
ralmente 60 minutos antes da refeição, dado que sua absorção ocorre no
jejuno e necessita de acidez.
No caso de pacientes idosos, com doença cardiovascular ou hipoti-
reoidismo grave de longa duração é recomendado o aumento gradual
do hormônio em função da estimulação simpática causada pela repo-
sição. A reposição inicia com doses de 25 ou até mesmo 12,5 µg/dia,
as quais são elevadas em 12,5 µg em intervalos de 3 a 6 semanas, jun-
tamente com avaliação clínica e laboratorial cuidadosa. A explicação
dá-se por conta de o aumento hormonal poder precipitar isquemia mio-
cárdica (aumento do consumo miocárdico de oxigênio).
No que diz respeito ao tratamento do hipotireoidismo subclínico, as
recomendações ainda são controversas, excetuando a presença de um
TSH > 10 mUI/ℓ e a gravidez ou o desejo de engravidar. Deve-se repe-
tir o TSH num período de 3-6 meses para confirmar a situação, dado
que muitos casos tendem a normalizar, especialmente os com TSH <
10 mUI/ℓ.
Uma vez atingida a dose ideal, as provas de função tireoidiana de-
vem ser monitoradas a cada 6-12 meses, ajustando a dose, caso neces-
sário. Toma-se como base valores de TSH normal para HP e T4L normal
para HC. Ainda, em caso de mudanças de peso, uso de medicamentos,
gravidez ou planejamento desta, devemos antecipar a testagem labo-
ratorial. Situações que elevam os estrogênios, sejam por meio de uso
de medicamentos ou gravidez, necessitam de aumento de dose, já que
há o aumento sérico de TBG e a ativação do citocromo P450, que me-
taboliza o T4L. Além do mais, alguns medicamentos, como sertralina,
carbamazepina, fenitoína e fenobarbital também ativam a CYP3A4, o
UNIDADE 2. TIREOIDE
89

que demanda aumento de dose. Também, deve haver aumento de dose


em caso de: má absorção, seja por DII ou por algum acometimento in-
testinal, como doença celíaca; gravidez; uso de fármacos que reduzem
absorção de T4, como omeprazol, colestiramina ou sulfato ferroso; dro-
gas que aumentam o metabolismo hepático da T4, como os indutores
de CYP3A4 - rifampicina, carbamazepina, sertralina, estatinas; drogas
que diminuem a conversão de T3 em T4, como amiodarona; deficiência
de selênio e cirrose hepática

9. Prognóstico:

Caso não tratado, o hipotireoidismo pode levar a efeitos adversos


graves à saúde, podendo resultar em coma mixedematoso e óbito. En-
tretanto, com a terapêutica adequada, o prognóstico é ótimo. Em 75-90%
dos casos de tireoidite Hashimoto, o hipotireoidismo é definitivo e a re-
posição de T4 é permanente. Todavia, alguns pacientes podem ter re-
gressão espontânea ao eutireoidismo, como pacientes com história de
Hashimoto com evolução menor que 1 ou 2 anos, tireoidite pós-parto, ti-
reoidite subaguda granulomatosa, hipotireoidismo induzido por drogas
e, também, aqueles que normalizam os níveis de TSH com doses baixas
de T4L. Nesses casos, deve-se avaliar a suspensão do tratamento após
6 a 12 meses e a necessidade de continuar a reposição.
É válido ressaltar que o hipotireoidismo é transitório na maior parte
dos casos de tireoidite subaguda granulomatosa ou tireoidite pós-parto.
Durante a gravidez, pode haver remissão da tireoidite de Hashimoto,
dada imunossupressão ocasionada pela condição; todavia, no puerpé-
rio, há o retorno da doença, podendo ser difícil diferenciar de tireoidite
pós-parto.

10. Tabela de resumo:

HIPOTIREOIDISMO:
Corresponde a baixas concentrações de hormônios tireoidianos que causam uma síndrome clínica
caracterizada por diminuição do metabolismo geral.

Como proceder com a investigação inicial?


Solicitar TSH e T4L
■ Como interpretar?
● O T4L nos diz que estamos diante de hipotireoidismo clínico ou não.
● O TSH nos informa em que local este problema está: na tireoide ou fora dela.
○ Situações:
■ Hipotireoidismo Primário: T4 baixo e TSH alto
■ Hipotireoidismo Central: T4L baixo e TSH normal ou baixo
■ Hipotireoidismo Subclínico: T4L normal, TSH alto
UNIDADE 2. TIREOIDE
90

●Qual a principal causa?


○ Tireoidite de Hashimoto como principal causa em locais com aporte de iodo adequado
■ Lembrar da associação com outras doenças autoimunes!
Como realizamos o diagnóstico?
○ Hipotireoidismo laboratorial e clínico, presença de bócio e marcadores de autoanticorpos - anti-TPO, anti-Tg.
Como é feito o tratamento?
○ Repondo aquilo que falta, ou seja, T4 – levotiroxina
■ Cuidado! Idosos e cardiopatas devem iniciar em doses menores
○ Monitorar TSH em 4-6 semanas, com exceção de HC → monitoramos pelo T4L
○ Em caso de Hipotireoidismo Subclínico, o tratamento deve ser individualizado
■ No caso de TSH ≥ 10 mU/L e mulheres que estejam grávidas, com desejo de engravidar
ou na presença de disfunção ovulatória e infertilidade, o tratamento é recomendado.

11. Leitura recomendada:

Baloch Z, Carayon P, Conte-Devolx B, et al. Laboratory medicine practice


guidelines. Laboratory support for the diagnosis and monitoring of thyroid
disease. Thyroid 2003; 13:3.

Devdhar M, Ousman YH, Burman KD. Hypothyroidism. Endocrinol Metab Clin


North Am. 2007; 36:595-615. Roberts CG, Ladenson PW. Hypothyroidism. Lancet.
2004; 363:793-803.

Hollowell JG, Staehling NW, Flanders WD, et al. Serum TSH, T(4), and thyroid
antibodies in the United States population (1988 to 1994): National Health and
Nutrition Examination Survey (NHANES III). J Clin Endocrinol Metab 2002;
87:489.

Jonklaas J, Bianco AC, Bauer AJ, et al. Guidelines for the treatment of
hypothyroidism: prepared by the american thyroid association task force on
thyroid hormone replacement. Thyroid 2014; 24:1670.
UNIDADE 2. TIREOIDE
91

Capítulo 5

Hipertireoidismo
Gabrielle Simon Tronco
Larissa Maria Faccin Blás
Thizá Massaia Londero Gai

1. Introdução:

Após falarmos sobre o que acontece quando temos os hormônios ti-


reoideanos diminuídos no capítulo 4, chegou a hora de conversarmos
sobre o que ocorre quando eles estão elevados.
Para isso, primeiramente precisamos diferenciar dois termos: hiper-
tireoidismo e tireotoxicose. A tireotoxicose é definida como uma sín-
drome clínica decorrente da exposição a altas concentrações de hor-
mônios tireoidianos. Isto é, são as manifestações clínicas decorrentes
do excesso hormonal à nível tecidual, independentemente da origem
destes. Isso pode ser decorrente não só de doenças que acometem a
tireoide, as quais aumentam a produção, mas também pela liberação
após inflamação, pela produção extratireoidiana ou pelo consumo exó-
geno desses hormônios. Já o termo hipertireoidismo é utilizado em si-
tuações em que há a síntese e liberação hormonal decorrente da pró-
pria tireoide, ou seja, uma tireoide hiperfuncionante.
A tireotoxicose, então, pode estar associada ao hipertireoidismo pri-
mário quando a produção hormonal é derivada da glândula tireoide.
A principal causa é a doença de Graves, mas também pode ser decor-
rente de bócio multinodular tóxico (BMT), adenoma tóxico e excesso
de iodo (fenômeno Jod-Basedow). Ainda, pode se relacionar com a
produção hormonal tireoidiana por consequência de outros locais (hi-
pertireoidismo secundário), como adenomas hipofisários secretores
de TSH, síndrome de resistência aos hormônios tireoideanos, tumores
trofoblásticos e tireotoxicose gestacional (estes últimos ocorrem pela
interação da subunidade alfa do hCG com receptores de TSH). E, por
fim, pode não estar associada ao hipertireoidismo, como o que acontece
com doenças inflamatórias; por exemplo metástases funcionantes de
câncer de tireoide, struma ovarii, tireoidites ou outras causas de des-
truição tireoidiana. Também, uma importante causa é a tireotoxicose
factícia ou exógena.
Para iniciarmos nossa conversa sobre hipertireoidismo, devemos
compreender melhor a sua maior causa. Também chamada de doença
UNIDADE 2. TIREOIDE
92

de Basedow-Graves ou Bócio Difuso Tóxico, a patologia é responsável


pela maior parte dos casos e consiste em uma doença autoimune, cuja
etiologia é desconhecida. Nela, há o aumento da produção hormonal
juntamente com alguns achados específicos, como bócio difuso, oftal-
mopatia, dermopatia ou mixedema pré-tibial e acropatia.
Como segunda maior causa, temos o chamado bócio multinodular
tóxico ou BMT que acontece em tireoides que apresentavam bócio mul-
tinodular atóxico, ou seja, uma tireoide aumentada sem produção hor-
monal, mas que passa a produzir. Estima-se que cerca de 10% dos pa-
cientes evoluem para bócio tóxico em um período de 7 a 12 anos. Ainda,
há o Adenoma Tóxico, também conhecido como Doença de Plummer,
caracterizado por um nódulo produtor de hormônios.

2. Epidemiologia:

A tireotoxicose possui uma prevalência de 2% em mulheres e 0,2%


em homens. A prevalência de hipertireoidismo é de 1,2%, sendo mais
comum entre mulheres, em que 0,7% é subclínico e 0,5% é clínico. A
doença de Graves corresponde por 60 a 80% dos casos e, como grande
parte das doenças autoimunes, sua prevalência é maior entre mulheres
com pico de incidência entre 20 e 50 anos. Fatores genéticos (HLA-DR,
CTLA-4, CD25, PTPN22, FCRL3 e CD226) e familiares são importantes
preditores de risco para Graves, bem como tabagismo, dieta rica em
iodo, infecções tireoidianas prévias e eventos estressantes. É importan-
te lembrar de uma possível associação com outras doenças autoimu-
nes, como DM tipo 1, Addison (síndrome poliglandular autoimune),
Miastenia Gravis, etc.
O BMT corresponde por 10 a 30% dos casos e afeta mulheres mais
idosas (a partir da 5ª década). Já o adenoma tóxico é a terceira maior
causa, correspondendo por 2 a 10% e é seguido pelas tireoidites. Por fim,
os adenomas hipofisários produtores de TSH representam uma causa
rara de hipertireoidismo correspondendo a menos de 1% dos casos.

3. Fisiopatologia:

No que diz respeito à doença de Graves, em 70 a 100% dos pacientes,


haverá o envolvimento de imunoglobulinas estimuladoras da tireoide, o
chamado anticorpo antirreceptor de TSH estimulante, ou TRAb. Assim,
por haver estímulo do receptor de TSH, teremos hipertrofia, aumento da
vascularização e aumento na produção hormonal glandular. Ainda, po-
dem estar presentes os anticorpos anti-TPO (anticorpo antimicrosso-
UNIDADE 2. TIREOIDE
93

mal ou antitireoperoxidase) e o anticorpo antitireoglobulina (anti-Tg),


já comentados no capítulo de hipotireoidismo, os quais sugerem au-
toimunidade. Presente em 20 a 40% dos casos, a oftalmopatia de Graves
pode ser explicada pela presença de antígenos muito semelhantes ao
receptor de TSH na superfície de fibroblastos e células musculares li-
sas. Isso causa um ataque a estes tecidos, havendo inflamação e fibrose.
Em relação ao BMT, o nome da doença já nos diz muito. Aqui, dife-
rente da doença de Graves, teremos uma tireoide com múltiplos nódu-
los autônomos e hiperfuncionantes (o que justifica a palavra “tóxico”).
As áreas glandulares autônomas acabam por ficarem independentes
da ação do TSH, produzindo de forma contínua T3 e T4. Quanto ao ade-
noma tóxico, teremos um nódulo solitário que é autônomo e produz
quantias excessivas de hormônios tireoideanos, independentemente
do TSH. Isso ocorre por mutações ativadoras no receptor.

Tabela 1: Causas de tireotoxicose e seus mecanismos.


Tireotoxicose com hipertireoidismo
Doença de Graves Autoimunidade com anticorpos TRAb estimuladores
Bócio Multinodular Tóxico Múltiplos nódulos funcionantes de forma autônoma
Adenoma Tóxico ou Doença de Plummer Adenoma autônomo com mutações no receptor de TSH
Fenômeno de Jod-Basedow Sobrecarga de iodo que induz a produção hormonal
Adenoma Hipofisário Produção aumentada de TSH
Coriocarcinoma, Mola Hidatiforme, Tireotoxicose Ligação do hCG aos receptores de TSH
Gestacional
Tireotoxicose sem hipertireoidismo
Tireotoxicose factícia Ingestão exógena de hormônios tireoideanos
Tireoidites (de Quervain, pós-parto, induzida Inflamação aguda da tireoide com liberação hormonal
por amiodarona)
Struma ovarii Tecido tireoidiano ectópico localizado em cisto
dermoide de ovário

4. Anamnese:

Em função do T3 agir em todas as células do organismo, estimu-


lando ou inibindo a transcrição gênica, a sintomatologia é sistêmica.
Nos quadros de tireotoxicose, a estimulação simpática, associada ao
aumento do metabolismo, promovidos pelos hormônios tireoideanos,
ocorre em maior ou menor gravidade em todos os casos. Aliado a isso,
existem os sinais e sintomas relacionados a causa específica, como a
oftalmopatia infiltrativa da doença de Graves. Em geral, a sintomatolo-
gia neurológica e subjetiva acontece em jovens, dado que nos pacientes
idosos prevalecem sintomas cardiovasculares (como fibrilação atrial)
ou quadros depressivos, o denominado hipertireoidismo apático.
UNIDADE 2. TIREOIDE
94

A anamnese deve verificar a presença de sintomatologia tireotóxica,


bem como o tempo de início desse quadro. História de exposição ao
excesso de iodo, seja por medicamentos (xaropes para tosse, fórmulas
manipuladas), contrastes radiológicos ou ingestão inadvertida, deve
ser aventado. Ainda, pelo risco de tireoidite pós-parto, é necessário
compreender a história obstétrica da paciente, bem como pelo risco de
hereditariedade, é relevante pesquisar a presença de história familiar
de doença tireoidiana autoimune, mediante a presença do bócio em al-
gum familiar ou pelo diagnóstico de Graves ou Hashimoto.

5. Exame Físico:

O exame físico deve levar em consideração a sintomatologia adrenér-


gica, bem como a possível presença de alterações tireoidianas, seja pelo
bócio ou pela presença de nódulos e assimetrias. Por conta da sintoma-
tologia adrenérgica - palpitações, taquicardia, sudorese e tremores -, um
importante diagnóstico diferencial é o de feocromocitoma que será tra-
tado no capítulo 17.

Na presença de bócio, especialmente quando extensos, podemos verificar


presença de distensão jugular e sufusão facial quando pedimos para que o
paciente eleve os braços. Esse fenômeno é conhecido como sinal de Pem-
berton. Ainda, outros achados semiológicos são: a impossibilidade de palpar
a fúrcula esternal em função do “bócio mergulhante” e o sinal de Marañon.
Este último é caracterizado pela presença de vermelhidão ao friccionar a
região tiroideia com um objeto rombo.

Em relação aos olhos, podemos verificar um olhar fixo caracterís-


tico com retração palpebral, o chamado lid lag. Podemos verificar a
ocorrência desse fenômeno pedindo para que o paciente siga o dedo
do examinador para cima e para baixo; haverá sua presença quando,
se olhando para baixo, conseguirmos visualizar a esclera do paciente
acima da íris. A pele apresenta-se quente e lisa, com suor excessivo. Os
cabelos são finos e há eritema palmar pela vasodilatação. A onicólise
ou unha de Plummer corresponde a separação da unha do respectivo
leito ungueal. Há a redução da resistência vascular periférica com au-
mento da frequência cardíaca e da contratilidade, gerando hipertensão
divergente, isto é, aumento da pressão sistólica e diminuição da pressão
UNIDADE 2. TIREOIDE
95

diastólica. Ainda, há a ocorrência de arritmias atriais, especialmente


a fibrilação atrial. A alteração cardíaca pode levar a miocardiopatia e
ICC de alto débito, havendo a possibilidade de exacerbar condições pré-
-existentes, como angina.
No quesito respiratório, pode haver dispneia, hiperventilação e capa-
cidade vital reduzida, sendo esta pela fraqueza da musculatura respira-
tória. Há queixas de fadiga, miopatia, artralgia e fraqueza proximal. Por
conta do metabolismo acelerado, poderemos verificar desmineralização
óssea e, ainda, dado o estímulo à bomba de Na-KATPase (a qual joga o
potássio para dentro das células, diminuindo sua concentração sérica),
há a chance do desenvolvimento de paralisia periódica hipocalêmica.
O sistema gastrointestinal também sofre consequências. Há hiper-
peristaltismo, resultando em aumento da frequência evacuatória, au-
mento do apetite, dispepsia, náuseas e disfunção hepática. O paciente
pode apresentar agitação psicomotora, com labilidade emocional, hi-
percinesia, insônia, tremor fino, hiperreflexia e diminuição do limiar
convulsivo. O metabolismo aumentado causa aumento da eritropoiese
e do volume plasmático, aumento da taxa metabólica basal, havendo in-
tolerância ao calor, perda de peso, de massa muscular e de massa óssea.
Podem ocorrer alterações no ciclo menstrual em função do aumento da
proteína carreadora dos hormônios sexuais, a SHBG (do inglês, sexual
hormone binding globulin), resultando em concentrações diminuídas
de estradiol livre (funcional); o mesmo é válido para os homens, uma
vez que a testosterona livre fica reduzida, resultando em diminuição da
libido e até ginecomastia.

Tabela 2: Sinais e sintomas de tireotoxicose.


Dermatológico Sudorese
Onicólise
Cabelos finos
Vitiligo, alopecia areata: associação com outras doenças autoimunes
Hiperpigmentação: aumento do metabolismo de cortisol que faz aumentar a
secreção de ACTH (ver mais sobre no capítulo sobre Insuficiência Adrenal)
Dermopatia infiltrativa (Graves)
Olhos Olhar fixo
Lid lag
Oftalmopatia de Graves
Cardiovascular Aumento do Débito Cardíaco, Frequência Cardíaca
Hipertensão sistólica
Fibrilação Atrial
Cardiomiopatia e Insuficiência Cardíaca Congestiva
UNIDADE 2. TIREOIDE
96

Endócrino Aumento da reabsorção óssea


Acropatia
Diminuição do LDL e colesterol total
Hiperglicemia
Perda de peso
Respiratório Dispneia
Gastrointestinal Aumento do apetite
Diarreia
Disfagia pelo bócio
Alterações hepáticas
Hematológico Anemia normocítica e normocrômica
Anemia perniciosa ou Púrpura Trombocitopênica
Autoimune: associações autoimunes
Reprodutivo Alterações no ciclo menstrual e na fertilidade
Disfunção erétil
Neuropsiquiátrico Agitação, ansiedade, labilidade emocional
Depressão (hipertireoidismo apático)
Psicose
Piora de condições psiquiátricas pré-existentes
Insônia
Dificuldade de concentração

Pacientes hipertireoideos e diabéticos podem necessitar de maiores do-


ses de insulina. Isso ocorre por conta da aceleração do metabolismo e da
maior degradação do composto insulínico. Em pacientes que utilizam o an-
ticoagulante varfarina, por conta do catabolismo de fatores de coagulação
dependentes da vitamina K, isto é, II, V, VI e IX, haverá o aumento de sensi-
bilidade à varfarina, demonstrada pelo aumento do tempo de protrombina.

No que diz respeito a Graves, o curso da doença acaba por ser um


tanto quanto imprevisível, fazendo que nem todos os achados espe-
cíficos dela estejam presentes ao mesmo tempo, ou seja, achados não
tireoidianos podem seguir um curso independente da doença tireoidia-
na. O bócio, presente em 97% dos casos, geralmente é difuso e simétrico,
com textura borrachosa. A presença de sopro audível sobre a glândula
reflete o aumento da vascularização desta, devendo haver cuidado para
não confundir com frêmitos venosos e sopros carotídeos.
Nem todos os pacientes com oftalmopatia são hipertireoideos, já que
esta pode preceder ou suceder o diagnóstico em meses ou anos. Em 90%
dos casos ela é bilateral, mas pode haver o acometimento unilateral, o
qual exige uma investigação diferenciada visando excluir a presença
de tumores de órbita. O tabagismo se configura como um fator impor-
tante para seu desenvolvimento e cessá-lo faz parte da terapêutica.
UNIDADE 2. TIREOIDE
97

É importante diferenciar a manifestação ocular da tireotoxicose


por estímulo adrenérgico da oftalmopatia infiltrativa de Graves. Nesta
haverá sinais de inflamação dos músculos extraoculares, bem como
do tecido mole e adiposo, resultando em hiperemia conjuntival e pal-
pebral, edema de pálpebras, paralisia de músculos oculares, aliados a
exoftalmia/proptose. Os pacientes podem queixar-se da sensação de
areia nos olhos, dor, fotofobia e diplopia. Na presença de uma evolução
rápida, há risco de compressão do nervo óptico, podendo levar à ceguei-
ra. Esta pode também ser consequência de úlceras e infecção da córnea
pelo lagoftalmo (fechamento incompleto das pálpebras em função da
exoftalmia). Há escores de graduação para o acompanhamento, como o
acrônimo NOSPECS estabelecido pela American Thyroid Association:

Tabela 3: Escala de gravidade da oftalmopatia elaborada pela


American Thyroid Association.
Grau 0: No signs or symptoms (sem sinais ou sintomas);
Grau 1: Only signs, no symptoms (apenas retração palpebral e proptose leve, sem sintomas);
Grau 2: Soft tissue involvement (tecidos moles afetados, edema periorbital);
Grau 3: Proptosis (proptose > 22 mm);
Grau 4: Extraocular muscle (diplopia - visão dupla);
Grau 5: Corneal involvement (lesão da córnea);
Grau 6: Sight loss (perda visual por acometimento do nervo óptico).

A dermopatia é encontrada em menos de 5% dos casos de Doença de


Graves e, geralmente, está associada à oftalmopatia e à acropatia. Em
metade dos casos acontece durante o estado hipertireoideo e, na outra
metade, após o tratamento. Geralmente acomete pernas e pés, o chama-
do mixedema pré-tibial, sendo bem delimitada, elevada, espessa, com
aparência de casca de laranja, podendo haver prurido e hiperpigmen-
tação. Já a acropatia é representada por baqueteamento digital, edema
de dedos dos pés e mãos de forma assimétrica, indolor e com raro aco-
metimento articular.
Em relação ao BMT, a sintomatologia segue a característica de tireo-
toxicose, com acometimento especialmente cardiovascular. Entretanto,
a gravidade do hipertireoidismo é menor do que a visualizada na doen-
ça de Graves. Por surgir de um bócio simples, todas as manifestações
relacionadas a ele são encontradas, como a tireoide aumentada ao exa-
me físico e a possível sintomatologia compressiva, levando a disfagia,
dispneia e rouquidão. No que diz respeito ao adenoma tóxico, quando
este leva ao hipertireoidismo, geralmente, possui mais de 3 cm, poden-
do ser identificado a palpação.
UNIDADE 2. TIREOIDE
98

6. Exames complementares:

Existem achados inespecíficos em exames laboratoriais, como leu-


copenia, anemia normocrômica-normocítica (há aumento da massa
eritrocitária e também do volume plasmático), hipercalciúria e hiper-
calcemia, além de redução nos níveis de colesterol e aumento da bilir-
rubina em casos mais graves. Ainda, pode haver aumento das transa-
minases, fosfatase alcalina (FA) e gama-glutamil-transferase (GGT) por
comprometimento hepático. Por conta do aumento do turnover ósseo,
podemos ter fosfatase alcalina e osteocalcina altas. Para a avaliação
oftálmica em Graves, alguns exames, como ultrassom (USG), RM e TC
de órbitas, podem evidenciar alterações.

7. Diagnóstico:

Diante da suspeita de tireotoxicose devemos solicitar a dosagem de


TSH e T4L, similar ao que acontecia na suspeita de hipotireoidismo.
Diante de um cenário com T4L aumentado e TSH diminuído, temos a
confirmação da tireotoxicose por hipertireoidismo primário, ou seja, a
produção está na glândula. Confirmada a tireotoxicose, precisamos es-
tabelecer a sua etiologia, dado que a terapêutica é guiada em função
do distúrbio. A principal causa é a doença de Graves, que responde por
60-80% dos casos, ocorrendo especialmente em mulheres mais jovens,
seguido por bócio multinodular tóxico e adenoma tóxico.
Da mesma forma que acontecia com o hipotireodismo subclínico,
também podemos ter o hipertireoidismo subclínico, em que o TSH es-
tará suprimido, sem alteração de T3 ou T4. É uma definição laboratorial
que pode cursar com sintomatologia. Ainda, podemos observar o hiper-
tireoidismo central, em que, diferente de estar suprimido, o TSH estará
aumentado ou até normal, junto com o T4L e T3 aumentados. É uma
situação bastante rara e incomum, geralmente se dá por um adenoma
hipofisário e será acompanhado de sintomatologia de outros hormô-
nios que estarão também aumentados ou suprimidos, sendo necessário
complementar a investigação com exames de imagem. O diagnóstico
diferencial do hipertireoidismo central é com síndrome de resistência
aos hormônios tireoidianos. Em 5% dos casos de hipertireoidismo, pode
haver a manifestação apenas com elevação do T3, apresentando TSH
suprimido e T4L normal. É um achado que ocorre mais comumente na
doença de Plummer ou Adenoma Tóxico, mas também em regiões sem
aporte adequado de iodo e em portadores de Graves em fase inicial. Por
fim, pode haver quadros de falsa elevação hormonal, a chamada hiper-
UNIDADE 2. TIREOIDE
99

tiroxinemia eutireoidea, causados pelo aumento na TBG, em função de


gestação ou hepatopatia, bem como pelo aumento da ligação do T4 à
albumina ou transtirretina e pela redução da conversão periférica de
T4 em T3 por uso de amiodarona ou propranolol.
O grande diagnóstico diferencial, inicialmente, deve ser entre tire-
otoxicose com hipertireoidismo e tireotoxicose sem hipertireoidismo.
Ou seja, precisamos saber se a produção hormonal deriva da tireoide.
A pesquisa de marcadores de imunidade, como anti-TPO, e a captação
tireoidiana de iodo radioativo em 24h ou RAIU podem ser úteis. Em
quadros de tireoidites ou administração exógena hormonal, a captação
estará diminuída; diferente do que acontece em casos como Doença de
Graves, sugerindo hipertireoidismo.

No capítulo de hipotireoidismo também conversamos sobre o TRAb


quando abordamos a Tireoidite de Hashimoto. Entretanto, lá o autoan-
ticorpo, ao invés de estimular a produção hormonal, a bloqueava. Isso
acontece diferente na doença de Graves, em que o TRAb é estimulador
da tireoide.

Além do uso do TSH e T4L para diagnosticar, quando há sintomas


típicos de tireotoxicose, associado a bócio difuso e, em especial, com of-
talmopatia e dermopatia, temos o diagnóstico de Graves praticamente
estabelecido. A RAIU consegue findar com dúvidas quanto a etiologia,
pois uma captação elevada e difusa praticamente sela o diagnóstico de
Graves. A medida do anti-TPO pode ser útil na diferenciação e a pesqui-
sa de TRAb, ainda que seja a mais específica para Graves, não é neces-
sária na maioria dos casos. Por conta de que, em nosso meio, há maior
facilidade em realizar o TRAb, atualmente há recomendações que indi-
cam a possibilidade da realização do anticorpo em caso de clínica su-
gestiva de Graves. No cenário em que, mesmo com a sugestividade pela
clínica, o anticorpo vier negativo, partimos para a mensura da captação
de iodo. É importante uma palpação cuidadosa da tireoide para afastar
BMT e adenoma tóxico, ou até tireoidite subaguda.
Para o diagnóstico do BMT, utilizamos a cintilografia que irá demons-
trar múltiplos nódulos com captação variável, sendo alguns “quentes”
ou hipercaptantes. Por se tratar de um hipertireoidismo, espera-se TSH
suprimido com T4L aumentado ou no limite superior e T3 aumentado.
Em relação ao adenoma tóxico, teremos um nódulo cuja cintilografia
UNIDADE 2. TIREOIDE
100

evidencia uma lesão hipercaptante ou “quente”, com supressão hormo-


nal contralateral. No que diz respeito à malignização, o risco é nulo,
sem necessidade de PAAF nos nódulos quentes. Você verá mais sobre
isso no capítulo 6, sobre nódulos tireoidianos.
Frente a um quadro de tireotoxicose, com TSH suprimido e T3/T4
variável, sem bócio ou oftalmopatia, com captação de 24h por I131 redu-
zida ou nula e tireoglobulina sérica baixa, devemos selar o diagnóstico
como tireotoxicose factícia, ou seja, pelo consumo exógeno de hormô-
nios tireoidianos, que muitas vezes estão “escondidos” em fórmulas
para emagrecer.

Cintilografia de Tireoide: utiliza elementos como Iodo¹²³, Iodo¹³¹ ou


99mTc e evidencia a distribuição do radiomarcador na glândula, informan-
do, também, sobre o tamanho e formato dela. Possui indicações limitadas
para avaliar o hipertireoidismo. Em Graves, aparece como difusa; já no BMT
há distribuição heterogênea. Sua principal indicação é a suspeita de adeno-
ma folicular hiperfuncionante, o adenoma tóxico.
RAIU (Radioactive Iodine Uptake Test) ou Captação Tireoidiana de Iodo
Radioativo em 24 horas: consiste na administração de iodo marcado, um ele-
mento cujo estoque corpóreo está na tireoide, sendo mensurado após estar
em equilíbrio com as reservas endógenas. É realizado junto a cintilografia,
mas a interpretação é diferente, pois aqui vemos a “atividade” ou “avidez”
glandular. Quanto maior a função da tireoide, maior será a porcentagem de
captação demonstrada pelo exame (a variação normal é de 15-36% da dose
administrada). Ela permite diferenciar a causa da tireotoxicose por aumento
de captação (hipertireoidismo) ou não (tireoidites).
É importante lembrar que ambos os exames ocorrem em um mesmo pro-
cedimento, entretanto são etapas distintas. A cintilografia por si só corres-
ponde à imagem da glândula, diferente da captação de iodo que é a leitura
em 24 horas em percentual do componente previamente administrado. Para
ser realizada, devemos requisitar ao pedir uma cintilografia.
Ecografia (Ultrassonografia) de Tireoide: não está indicada como rotina
na avaliação do hipertireoidismo, sendo reservada para casos em que há
nódulos à palpação. Quando a captação do iodo não pode ser realizada por
conta de gestação/amamentação ou quando não for elucidativa, a US com
doppler pode auxiliar no diagnóstico.
UNIDADE 2. TIREOIDE
101

SUSPEITA DE TIREOTOXICOSE

TSH, T4L

TSH + T4 TSH BAIXO TSH BAIXO TSH NORMAL


NORMAIS T4 ALTO T4 NORMAL OU ALTO+T4 ALTO

Hipertireodismo Adenoma Hipofisário,


Hipertireodismo Mensurar T3 Resistência
descartado
a Hormônios
Tireoidianos,
Erro Laboratorial

Alto Baixo

Mensurar TRAb

Presente Ausente Tireotoxicose Hipertireoidismo


por T3 Subclínico

Doença de Cintilografia,
Graves RAIU ou ambas

Homogênea com Heterogênea ou Baixa ou sem


Aumento da Captação Nódulo Solitário Captação

Ingesta Exógena excessiva


(Tireoglobulina aumentada + sem Bócio)
Tumor secretor de BHCG
Doença de Graves Adenoma Tóxico Tireoidite Subaguda (VSH Alto e Dor)

Figura 2: Fluxograma de condutas para suspeita clínica de hipertireoidismo.


Elaborado pelo autor.

8. Tratamento:

Em se tratando de doença de Graves, temos três opções disponíveis,


todas visando diminuir o excesso hormonal. A primeira e mais utiliza-
da são as drogas antitireoidianas. O mecanismo de ação consiste em
inibir a enzima tireoperoxidase e, então, a organificação do elemento
iodo, bem como o acoplamento dos elementos DIT e MIT para formar
o T3 e o T4. Por conta de bloquear a produção hormonal, é importante
lembrar que as reservas presentes irão continuar atuando por, em mé-
dia, 3 a 8 semanas.
Os dois principais representantes dessa classe são o Metimazol
(MMZ, também conhecido como Tapazol® e disponível em 5 e 10 mg) e
UNIDADE 2. TIREOIDE
102

Propiltiouracil (PTU, disponível em 100 mg), sendo que o MMZ possui


algumas vantagens, atuando como a droga de escolha. Além do custo
mais baixo, seu efeito é mais rápido e pode ser utilizado em dose única
diária por conta da maior meia-vida. O uso de PTU fica como escolha
em gestantes no primeiro trimestre (uma vez que o MMZ é teratogêni-
co), pacientes em crise tireotóxica (por uma possível ação de inibição
da deiodinase 1 que diminui a conversão periférica de T4 em T3) e alér-
gicos ou intolerantes ao MMZ.
Os efeitos, tanto de um como de outro, são mais proeminentes após
10 a 15 dias de uso. Inicia-se com uma dose de ataque e, com 4 a 6 sema-
nas de uso, é importante a requisição de novos exames, sendo impor-
tante lembrar que o TSH leva em torno de 3 meses para normalizar por
conta da atrofia dos tireotrofos. Ou seja, devemos monitorar a função
pelo T4L e, caso persista em hipertireoidismo, a dose deve ser ajustada.
Uma vez atingido o eutireoidismo (pelos níveis de hormônios tireoidia-
nos), a dose pode ser reduzida de 30 a 50% a cada consulta, almejando a
dose de manutenção que, uma vez atingida, deve ser monitorada a cada
4 a 6 meses com novos exames.
Em geral, é recomendado o tratamento por 12 a 18 meses, ainda que
um período rígido não seja definido; contudo, caso o tratamento ocor-
ra por tempo indeterminado, outras formas são melhor recomendadas,
como cirurgia ou iodo radioativo. Cerca de 50% dos pacientes com Do-
ença de Graves recidivam, sendo que 75% das recidivas ocorrem nos
primeiros 6 meses e 90% em dois anos. Níveis elevados de TRAb em
pacientes sob uso de MMZ no final do tratamento sugerem alta chance
de recidiva, havendo a recomendação de avaliação anual. No cenário
de que um paciente permaneça com níveis baixos de TSH após 6 meses
de uso de tionamidas, a remissão é praticamente improvável e a tera-
pia deve ser descontinuada. Em relação a níveis persistentemente altos
de TRAb após um ano ou mais de tratamento também são candidatos
a descontinuação das tionamidas. O risco de recorrência, mesmo em
pacientes eutireoideos e com baixos níveis de TRAb é alto, chegando a
20%. Nos casos em que é optado por descontinuar a terapia com tiona-
midas, deve ser estabelecido um plano subsequente de tratamento que
vise uma terapia definitiva, seja com cirurgia ou radioiodo.
Os efeitos adversos ocorrem mais comumente nos primeiros meses
de terapia, em pacientes mais velhos, nos que retomam o tratamento
após descontinuar o PTU ou em doses > 30 mg/dia de MMZ. Incluem
desde rash cutâneo até quadros graves de hepatite medicamentosa por
PTU ou colestase por MMZ, vasculite ANCA positivo e alterações hema-
tológicas (leucopenia, trombocitopenia e agranulocitose).
UNIDADE 2. TIREOIDE
103

Ainda, existe o tratamento com iodeto que, através do efeito Wolff-


-Chaikoff, diminui a sensibilidade da tireoide ao TSH, inibindo a síntese
e a liberação de hormônios. Assim, a melhora sintomatológica ocorre
de forma mais acelerada se comparada às tionamidas. As formas dis-
poníveis são o lugol (6 mg/gota, 3 a 5 gotas 8/8h) e a solução saturada
de iodeto de potássio (SSKI) (38 mg/gota – 1 a 2 gotas 8/8h). O proble-
ma dessas formulações está no aumento dos estoques do elemento, no
retardo a resposta às tionamidas (que usualmente são utilizadas como
tratamento) e, também, na diminuição da resposta a terapia com ra-
dioiodo por algumas semanas ou meses (por diminuir a captação do
elemento na forma radioativa, uma vez que a tireoide está ‘’saturada’’ de
iodo). Assim, o iodeto é indicado apenas em algumas situações, como
no preparo para tireoidectomia de urgência e como controle da crise
tireotóxica.
Outros medicamentos que podem auxiliar são os glicocorticoides e
os betabloqueadores. Como primeira medida realizada, muitas vezes,
utiliza-se betabloqueadores com o intuito de diminuir a sintomatologia
adrenérgica, sendo iniciado na maioria dos pacientes hipertireoideos
sem contraindicações ao uso (A presença de asma e DPOC, bem como
doença vascular periférica, fenômeno de Raynaud, entre outros são
contraindicações ao uso). O uso pode ser feito mesmo quando o diag-
nóstico de hipertireoidismo não está selado. Geralmente, utilizamos
atenolol com dose inicial de 25-50 mg por dia, a qual pode ser titula-
da até 200 mg ao dia dividida em duas doses, se necessário, a fim de
manter a frequência cardíaca entre 60 e 90 batimentos por minuto. Em
relação ao propranolol, além de controlar a descarga simpática, há o
benefício de inibir a conversão de T4 em T3.
O betabloqueador propranolol, utilizado para controlar a descarga
simpática e seus sintomas, também inibe a conversão de T4 em T3
quando em altas doses (acima de 160 mg por dia), sendo um efeito lento
que ocorre entre 7 e 10 dias do uso. A corticoterapia é utilizada espe-
cialmente durante a crise tireotóxica, em que realizamos o uso IV de
hidrocortisona, visando a realiza a imunossupressão, além de inibir
a secreção glandular e a conversão periférica ao inibir a deiodinase 1.
Menos utilizados, ainda, são o carbonato de lítio, que inibe a liberação
hormonal, e a colestiramina, que se liga ao T4 inibindo sua reabsorção
entero-hepática.
Além dos medicamentos antitireoidianos, também temos como op-
ções a radioablação com iodo-131 e a cirurgia. O iodo radioativo acaba
sendo uma opção, de certa forma, simples, e livre das complicações ci-
rúrgicas, como lesão de nervos ou das paratireoides. É uma forma efi-
UNIDADE 2. TIREOIDE
104

caz de tratamento, dado que resolve 80% das situações com apenas uma
dose, havendo remissão em 6 meses. A partir desse momento é que jul-
gamos a necessidade ou não de uma segunda dose. A dose estipulada
está relacionada com a gravidade, o tamanho do bócio e a captação em
24 horas, variando de 5 a 15 mCi. A complicação mais frequente é o de-
senvolvimento de hipotireoidismo (sendo necessário acompanhar T4L
e TSH indeterminadamente) e pode haver tireoidite pós-radiação, com
a liberação de quantias excessivas de hormônio na circulação; diante
disso, em idosos, cardiopatas ou pacientes muito sintomáticos é reco-
mendado o controle por um mês com drogas antitireoidianas antes da
aplicação do radiofármaco, seguida pela suspensão ao menos dois dias
antes (em geral, de 3 a 7 dias), servindo como forma de maximizar a
captação de iodo pela tireoide.
A oftalmopatia pode ser exacerbada com a terapia com radioiodo,
especialmente em tabagistas, havendo recomendações de, ou poster-
gar o tratamento até a resolução da oftalmopatia, ou o uso de pred-
nisona 0,4 a 0,5 mg/kg, 2 a 3 dias antes e mantendo por um mês. Por
se tratar de radiação, há contraindicação absoluta em mulheres ges-
tantes ou em aleitamento materno, bem como em bócios volumosos,
como retroesternais, pelo risco de tireoidite. Após uma semana da
aplicação do iodo-131, os antitireoidianos e betabloqueadores são rei-
niciados, sendo mantidos por alguns meses e, além disso, há o acom-
panhamento da função tireoidiana de 4 a 6 meses após, com ajuste
medicamentoso.
No que diz respeito à tireoidectomia, os procedimentos subtotal ou
quase total são os mais empregados. As indicações para esta terapêu-
tica são mais restritas: falta de controle/contraindicação com o uso de
tionamidas ou intolerância/recusa do uso de Iodo-131; bócio volumoso
com deformidade estética ou compressão traqueal; suspeita de neopla-
sia tireoidiana e gestantes com hipertireoidismo grave não controlado
por tionamidas. Ainda, podemos ter como indicação tabagistas com of-
talmopatia moderada a grave e desejo de rápido controle da doença ou
baixa adesão aos medicamentos. O preparo pré-cirúrgico é necessário
através do uso de PTU ou MMZ por 6 semanas; o iodeto deve ser inicia-
do de 7 a 10 dias antes para diminuir a vascularização glandular. Quan-
do há casos de cirurgia de urgência, é recomendado o uso, por 5 dias
antes, de dexametasona (0,5 mg 6/6h), propranolol (40 mg 8/8h) e ácido
iopanoico, um inibidor da desiodase tipo 1 – Telepaque® – 500 mg 6/6h.
Como complicações, podemos ter principalmente hipoparatireoidismo
transitório ou permanente (em função de lesão às paratireoides), hiper-
tireoidismo recorrente e paralisia de cordas vocais.
UNIDADE 2. TIREOIDE
105

Para o tratamento da oftalmopatia, há o uso de colírios de metilce-


lulose e óculos escuros em casos brandos, lembrando da interrupção
do tabagismo como importante fator. Ainda, a elevação da cabeceira e
o uso de diuréticos podem melhorar o quadro edematoso. Em quadros
moderados a graves, é recomendado o uso de corticoterapia com pred-
nisona em doses de 60 a 80 mg/dia por 2 a 4 semanas. Já em quadros
mais graves, como com compressão do nervo óptico, utiliza-se pulso-
terapia com metilprednisolona seguida por dose de manutenção. Caso
seja refratário a corticoterapia, pode ser tentado o uso de rituximabe por
injeção retrocular. No caso da dermopatia, pode ser utilizado o glicocor-
ticoide de alta potência ou terapia com octreotide.
O tratamento do hipertireoidismo subclínico é controverso. Em
pacientes com alto risco para complicações cardíacas ou esquelética,
como idosos ou mulheres na pós-menopausa sem reposição hormonal,
inicia-se o tratamento caso TSH < 0.1. Em pacientes de alto risco e TSH
0,1 a 0,5 e pacientes de baixo risco e TSH < 0,1 podemos considerar o tra-
tamento. Já em pacientes de baixo risco e TSH entre 0,1 e 0,5, indica-se
apenas o acompanhamento.
Quanto ao BMT, o uso de drogas antitireoidianas com betabloquea-
dores não resolvem o quadro, ainda que possam controlar alguns sin-
tomas. Logo, a terapêutica baseia-se na terapia com tireoidectomia ou
radioablação, sendo essa última reservada a idosos com risco cardíaco
elevado, uma vez que há chance de recidiva. Para o tratamento do ade-
noma tóxico, também não há uma resposta satisfatória com o uso de
drogas antitireoidianas e, assim, geralmente utiliza-se a radioablação,
com exceção de pacientes jovens e com nódulos grandes em que se é
optado pela tireoidectomia. Mais recentemente, múltiplas injeções de
etanol no nódulo e a ablação por radiofrequência têm sido empregadas,
mas ainda são técnicas pouco disponíveis.

9. Prognóstico:

Em 30% dos casos de Graves, há remissão espontânea, os demais


persistem com a doença, com diferentes graus de acometimento, po-
dendo apresentar-se com ciclos de exacerbação e remissão. Assim, sem
tratamento, geralmente a doença tende a se agravar, podendo chegar
ao hipotireoidismo por destruição glandular. Quanto ao BMT, não há
remissão espontânea.
UNIDADE 2. TIREOIDE
106

10. Tabela de resumo:

TIREOTOXICOSE HIPERTIREOIDISMO
Síndrome clínica caracterizada pelo aumento dos Aumento dos hormônios tireoidianos derivados
hormônios tireoidianos independentemente da diretamente da glândula tireoide
origem.

●Como fazemos a investigação inicial?


• ○TSH, T4L
• ■ T3 inicialmente em caso de suspeita de tireotoxicose por T3
• ○Situações:
• ■Hipertireoidismo Primário: T3/T4 aumentados e TSH diminuído
• ■Hipertireoidismo Central: T3/T4 aumentado e TSH normal ou aumentado
• ■Hipertireoidismo Subclínico: T3/T4 normais e TSH diminuído
• ●Qual a principal causa?
• ○Doença de Graves
• ■Quais os achados específicos?
• ●Bócio difuso, Oftalmopatia, Mixedema Pré-Tibial
• ■Como fazemos o diagnóstico?
• ●Presença de hipertireoidismo primário com achados específicos e anticorpos
– anti-TPO e/ou TRAb (não é necessário para o diagnóstico)
• ○Como é feito o tratamento?
• ■Tionamidas: MMZ (droga de escolha) ou PTU
• ■Betabloqueadores para controlar os sintomas; o propranolol ainda inibe a
conversão periférica hormonal em altas doses
• ■Radioablação com Iodo
• ●Cuidado! Pode exacerbar a oftalmopatia.
• ■Cirurgia
• ●Quais outras possíveis causas?
• ○BMT e Adenoma de Plummer para tireotoxicose com hipertireoidismo
• ○Tireoidites, Tireotoxicose Factícia para tireotoxicose sem hipertireoidismo

11. Leitura recomendada:

De Leo, Simone, et al. “Hyperthyroidism.” The Lancet, vol. 388, no. 10047, Aug.
2016, pp. 906–918, Franklyn JA, Boelaert K. et al. Thyrotoxicosis Lancet. 2012
Mar 24; 379(9821):1155-66. Epub 2012 Mar 5

Ma C, Xie J, Wang H, et al. Radioiodine therapy versus antithyroid medications


for Graves’ disease. Cochrane Database Syst Rev 2016; 2:CD010094.

Ross DS, Burch HB, Cooper DS, et al. 2016 American Thyroid Association
Guidelines for Diagnosis and Management of Hyperthyroidism and Other
Causes of Thyrotoxicosis. Thyroid 2016; 26:1343.

Thomas FB, Mazzaferri EL, Skillman TG. Apathetic thyrotoxicosis: A distinctive


clinical and laboratory entity. Ann Intern Med 1970; 72:679.
UNIDADE 2. TIREOIDE
107

Capítulo 6

Nódulos Tireoidianos
Larissa Maria Faccin Blás
Leonardo Rodrigues
Thizá Massaia Londero Gai

1. Introdução:

Após vermos os quadros em que há hiper ou hipofunção da glândula


tireoide, nos atentaremos agora a outro assunto importante envolvendo
esta glândula. Os nódulos tireoidianos são achados comuns, normal-
mente de evolução insidiosa. Eles podem ser descobertos em exames
clínicos de rotina, quando notados pelo paciente, ou acidentalmen-
te – em avaliações por imagem da região cervical anterior. A grande
importância em manejar os nódulos tireoidianos está na exclusão do
diagnóstico de câncer de tireoide – que corresponde a 5 a 10% dos casos.

2. Epidemiologia:

Estudos epidemiológicos têm apontado que cerca de 5% das mulhe-


res e 1% dos homens adultos apresentam nódulos tireoideanos palpá-
veis em áreas iodo-suficientes. Já quando analisamos áreas em que há
deficiência de iodo, ou quando o diagnóstico é feito por ultrassonografia
(USG) da região cervical, essa prevalência aumenta ainda mais, ficando
em torno de 20 a 68% com o uso desse exame. O risco de câncer, todavia,
é semelhante em pacientes com nódulos palpáveis ou naqueles com
nódulos incidentalmente detectados por imagem (os chamados inci-
dentalomas). Deve-se lembrar, nesse sentido, que embora a USG consi-
ga revelar nódulos não palpáveis, o uso desse exame como screening
para câncer de tireoide na população em geral (pessoas sem nódulos
conhecidos ou suspeitos) não é recomendado. Você pode entender me-
lhor sobre isso no capítulo seguinte, sobre Câncer de Tireoide.
Os nódulos são mais frequentes na população feminina e sua in-
cidência aumenta com a idade. Contudo, homens e crianças encaram
um risco duas vezes maior de câncer de tireoide quando detectado um
nódulo tireoidiano.
Como falado acima, a grande maioria dos nódulos possui caráter
benigno. Quando malignidade é diagnosticada, os cânceres de tireoide
UNIDADE 2. TIREOIDE
108

diferenciados (papilar e folicular) são os que respondem por aproxima-


damente 90% dos casos e, geralmente, possuem um bom prognóstico.
Carcinomas anaplásicos, alguns cânceres medulares e linfomas de ti-
reoide estão associados a uma mortalidade mais alta, mas são bem me-
nos frequentes do que os diferenciados.

Sabemos, pela fisiologia da tireoide, que o iodo é a grande matéria-prima


que essa glândula utiliza para produzir seus hormônios. Nesse sentido, tanto
o excesso quanto a falta desse elemento afetam o bom funcionamento da
glândula. A carência de iodo está relacionada ao aumento de casos de bócio
endêmico, bem como o seu excesso está relacionado ao maior risco de Ti-
reoidite de Hashimoto e de cânceres na tireoide.

Temos no bócio (aumento do volume da glândula tireoide) a mani-


festação clínica mais explícita da deficiência de iodo. A deficiência des-
se elemento é considerada um problema de saúde pública global e, em
crianças, resulta em graves repercussões no desenvolvimento infantil.
Desde a gestação, um aporte materno adequado de iodo faz-se neces-
sário para o pleno desenvolvimento fetal, haja vista que os hormônios
tireoidianos são imprescindíveis para a maturação do sistema nervoso
central. A falta de iodo durante esse período leva à deficiência intelectual
permanente.
A partir da década de 90, devido a esforços globais, muitos países me-
lhoraram seu status de aporte de iodo. Nesse âmbito, a iodização do sal
foi tida como a melhor estratégia para aumento da ingestão do elemento
em uma comunidade, sendo em muitos países obrigatória, inclusive. No
Brasil, tal medida tornou-se lei em 1953. Segundo dados da Iodine Global
Network, países como Haiti, Madagascar, Nicarágua e, surpreendente-
mente, Finlândia e Noruega (com fortes sistemas e programas públicos
de saúde), ainda apresentam um consumo de iodo insuficiente da popu-
lação (ver mais em https://www.ign.org/index.cfm).
O Brasil, em contrapartida, mostra-se como um país com apropriado
aporte de iodo, com maior inclinação ao excesso – ingestão “mais que
adequada”. A concentração média de iodo urinária no brasileiro é cerca
de 276 µg/L – o valor de referência para excreção é de 100 a 300 µg de iodo
por litro de urina. Acima de 300 µg já consideramos ingestão excessiva.
Ainda, de acordo com o Relatório Final da Pesquisa Nacional Para
Avaliação Do Impacto Da Iodação Do Sal (PNAISAL), obteve-se que o Nor-
UNIDADE 2. TIREOIDE
109

deste foi a região brasileira com mediana mais elevada de excreção uri-
nária de iodo (298,80 µg/L), com o Rio Grande do Norte sendo o estado
com maior mediana (361,00 µg/L).

Agora você já sabe que o sal de cozinha é iodado por ser uma estratégia
de saúde. Mas quando falamos em sal, a primeira coisa que muitas pessoas
pensam é no seu malefício ao corpo, haja vista que o seu consumo inapro-
priado está associado à temida “pressão alta”. E nesse contexto, alternativas
à ingestão do sal convencional surgem. Um sal que muito ganhou destaque
em dado momento foi o Sal Rosa do Himalaia. Muito se comentou que este sal
possuiria vantagens e benefícios à saúde quando comparado ao sal tradicio-
nal a que estamos habituados. Quanto a isso, vale comentar que estudos que
objetivaram fazer uma comparação físico-química desse sal com o sal comum
observaram que o sal do Himalaia mostrou teores de sódio semelhantes ao sal
de cozinha (ligeiramente maiores, inclusive) e maior predomínio de minerais
como ferro e magnésio. Contudo, já que estamos falando da tireoide, foi de-
monstrado que o sal rosa do Himalaia não possui teores de iodo.

3. Fisiopatologia:

Na presença de um nódulo tireoidiano, inúmeras são as etiologias


que lhe podem ser atribuídas. Uma das causas mais frequentes é a for-
mação de cistos coloides, que possuem caráter benigno e originam-se
da proliferação e, posteriormente, degeneração dos folículos da glân-
dula. O seu conteúdo é o próprio coloide produzido pela glândula, o
qual assemelha-se a um líquido viscoso. Dentre outras causas benig-
nas, incluem-se ainda os adenomas e as tireoidites.
Os adenomas são tumores sólidos benignos da glândula, bem cir-
cunscritos, envoltos por uma cápsula fibrosa e diferenciados do teci-
do tireoidiano circunjacente, que é normal. Em alguns casos, a região
periférica ao tumor pode mostrar atrofia por compressão, dependendo
do tamanho do adenoma. Quando o adenoma é hipersecretante, quan-
tidades suprafisiológicas de hormônio tireoidiano podem ser libera-
das, gerando um quadro de hipertireoidismo. Nesse caso, diz-se que
o adenoma é tóxico, também conhecido como Doença de Plummer.
O adenoma tireoideano tóxico é uma das principais etiologias do hi-
pertireoidismo, ao lado da Doença de Graves e do Bócio Multinodular
Tóxico.
UNIDADE 2. TIREOIDE
110

Podem ocorrer ainda nodulações mistas, isto é, parte císticas e parte


sólidas. A maioria das nodulações císticas são, na verdade, estruturas
parcialmente sólidas que sofreram degeneração cística. Os adenomas
tireoidianos, inclusive, são um exemplo de nodulações que podem ter
apresentação cística por terem sofrido degeneração. Nesses casos, sa-
be-se que os adenomas funcionantes têm maior probabilidade de so-
frer degeneração cística do que os não funcionantes. Com base nisso e
conforme veremos mais adiante, nódulos puramente císticos não vão
necessitar abordagem com punção aspirativa por agulha fina (PAAF),
visto seu caráter benigno já estabelecido. Todavia, um nódulo que asso-
cia componente misto cístico e sólido, se suspeito, pode vir a requerer
PAAF, haja vista a probabilidade de câncer nesses nódulos se aproximar
da de nódulos sólidos (5 a 10%), diminuindo conforme a predominância
da porção cística em comparação a porção sólida. Em outras palavras,
a probabilidade de câncer diminui em um nódulo misto à medida que
aumenta a proporção cística do nódulo.
Das causas malignas dos nódulos tireoidianos temos os carcinomas
primários da glândula (papilar, folicular, medular, anaplásico), carcino-
mas metastáticos ou o linfoma primário da tireoide. Metástases para a
tireoide são raras e têm como principais sítios primários o rim, o cólon,
a mama e o linfoma da tireoide.

Tabela 1: Etiologias dos nódulos tireoidianos.

BENIGNAS MALIGNAS

Cistos (colóide, simples...) Carcinoma papilífero

Tireoidites Carcinoma folicular

Bócio multinodular Carcinoma medular

Adenomas Carcinoma anaplásico

Funcionante/Autônomo Linfoma primário da tireóide

Não funcionante ou hipofuncionante Carinomas metastáticos

Fatores de Risco:

É importante também ter em mente que determinados fatores


aumentam o risco de malignidade de um nódulo tireoidiano. E você
sabe quais são eles? Sexo masculino, nódulos em indivíduos com me-
nos de 20 anos ou mais de 70 anos, história de radiação na região da
cabeça e pescoço, histórico familiar de câncer de tireoide, síndromes
UNIDADE 2. TIREOIDE
111

hereditárias (como neoplasia endócrina múltipla tipo 2 - NEM-2), nó-


dulo de rápido crescimento, nódulo com sintomas compressivos (dis-
fonia, disfagia, dispneia) e nódulo de textura firme, fixado a estruturas
adjacentes, com irregularidade de contorno e com linfonodomegalia
cervical ipsilateral associada.

Tabela 2: Características clínicas sugestivas de malignidade.

DADOS
HISTÓRIA SINTOMAS SINAIS
SOCIODEMOGRÁFICOS
Passado de irradiação Nódulo fico, duro, indolor, com
Sexo Masculino Disfonia
de cabeça e pescoço margens irregulares
História familiar de
Idade < 20 anos Disfagia Linfadenopatia cervical ipsilateral
câncer de tireóide
Nódulo de crescimento
Idade > 70 anos Dispneia Metástases à distância
rápido

Avaliação Diagnóstica:

A avaliação inicial em todos os pacientes que apresentam um nódu-


lo tireoidiano inclui:

História e exame físico;


Dosagem do hormônio estimulador da tireoide (TSH);
Ultrassonografia (para avaliar as características ultrassonográficas,
a presença de nódulos adicionais e se há linfadenopatia associada).

4. Anamnese:

Como algumas características clínicas estão associadas a um maior


risco de malignidade, faz-se necessário investigá-las durante a anam-
nese. Perguntar se o nódulo foi palpado ou identificado por um exame
de imagem, se foi percebido crescimento/mudança do nódulo ao longo
do tempo, se é doloroso, se existem sintomas de hipo/hiperfunção ti-
reoidiana associados, se a pessoa tem uma boa ingestão de iodo (uso
de sal comum de cozinha) são perguntas essenciais na investigação
diagnóstica de nódulo de tireoide. Como já mencionado, sintomas com-
pressivos, história de crescimento rápido de uma massa cervical, histó-
ria de irradiação de cabeça e pescoço ou história familiar de câncer de
tireoide ou de síndromes hereditárias que afetam a tireoide aumentam
a probabilidade de malignidade e, portanto, devem ser indagados.
UNIDADE 2. TIREOIDE
112

5. Exame físico:

No exame físico deve-se atentar às características do nódulo e à


presença de adenomegalias cervicais associadas. Define-se também
tamanho, consistência, mobilidade e sensibilidade do nódulo. Um nó-
dulo aderido a planos profundos, endurecido e associado à paralisia de
prega vocal ou à linfonodomegalia cervical ipsilateral sugere mais o
diagnóstico de câncer.
Além do mais, diante de um bócio, devemos lembrar das manobras
para investigação de componente mergulhante. Como comentamos,
bócio significa um crescimento em tamanho, peso e volume da glându-
la tireoide. Ele pode ser difuso (envolvendo toda a glândula) ou nodular
(envolvendo porções da glândula). Quando seu crescimento se dá para
dentro da cavidade torácica, o chamamos de bócio mergulhante. Esse
tipo de bócio pode ser bastante silencioso. No entanto, algumas mano-
bras durante o exame físico podem ajudar na suspeição, como a Mano-
bra de Pemberton, que consiste na elevação dos dois braços do paciente
acima da cabeça por 1 minuto. Ela baseia-se no fato de que o cresci-
mento do bócio pode ocasionar compressão da traquéia, esôfago e gran-
des vasos (como a veia cava superior). Assim, tal manobra, ao forçar a
tireoide entrar na cavidade torácica, ajuda a definir a glândula como
causa dos sintomas obstrutivos. Quando positiva, o paciente apresenta-
rá distensão das veias do pescoço, pletora facial, dispnéia, cianose e até
estridor - por conta da compressão das estruturas adjacentes. Também
podemos observar o sinal de Marañon, quando, à elevação dos mem-
bros superiores, é visualizada turgência jugular.

6. Exames complementares:

Hormônio Tireoestimulante (TSH): a dosagem sérica do TSH é uti-


lizada para avaliar a função tireoidiana e é o passo inicial para a ex-
clusão de nódulos hiperfuncionantes, os quais raramente são câncer.
Além disso, é um fator de risco independente para predizer a maligni-
dade de um nódulo. Concentrações séricas de TSH aumentadas foram
associadas a uma maior prevalência de malignidade ou a um estágio
mais avançado de câncer, quando este foi diagnosticado.

Ultrassonografia (USG): à palpação, a consistência do nódulo pode


ser enganosa (devido, por exemplo, a calcificações ou fenômenos
hemorrágicos), bem como o número de nódulos presentes pode ser
subestimado. Dessa forma, a USG é o método de escolha para a detec-
UNIDADE 2. TIREOIDE
113

ção e caracterização dos nódulos, com sensibilidade de 95%. Ela fornece


mais informações que o exame físico, revelando dados sobre o nódu-
lo, a glândula e as estruturas adjacentes. Quanto ao nódulo, a USG per-
mite avaliar características como tamanho, ecogenicidade, margens e
calcificações. Tais características são importantes, pois vários desses
achados ultrassonográficos aumentam a suspeição de câncer de tireoi-
de - mas não dão o diagnóstico! Esses achados são usados, então, ​​para
selecionar os nódulos em que devemos indicar a PAAF. Mas quais são
as características que predizem a malignidade na USG?
A ecogenicidade da glândula tireoide é relativamente maior (hipe-
recogênica) quando comparada aos músculos adjacentes e à glândula
submandibular. No exame de ultrassom, a palavra “ecogenicidade” in-
dica a facilidade com que os sinais do ultrassom passam através das
estruturas e órgãos do corpo, comparativamente a outros tecidos e ór-
gãos próximos. Assim, estruturas com baixa ecogenicidade (hipoecoi-
cas) representam estruturas de baixa densidade e que permitem que o
ultrassom passe mais facilmente por elas e voltem pouco para o apa-
relho, daí a produção de imagens escuras. Já as estruturas hiperecoi-
cas dão origem a imagens claras, pois refletem grande parte das ondas
emitidas pela sonda ecográfica. A baixa ecogenicidade é uma caracte-
rística ultrassonográfica importante nos nódulos com valor preditivo
positivo para malignidade.
Outros traços com maior potencial para predizer malignidade são al-
tura maior do que largura, microcalcificações, halo ausente e margens
irregulares, enquanto nódulos espongiformes e de aparência cística
preveem benignidade.

Juntamente com a USG, podemos realizar o Doppler, objetivando avaliar a


vascularização do nódulo. Para avaliação do grau de vascularização, utiliza-
-se a classificação de Chammas, que categoriza os nódulos em cinco padrões
de vascularização:
I = ausência de vascularização;
II = apenas vascularização periférica;
III = vascularização periférica ≥ central;
IV = vascularização central > periférica;
V = apenas vascularização central.
Segundo os pesquisadores que propuseram esta classificação, à medida
que a vascularização aumenta na região central do nódulo, maior é a chance
de malignidade.
UNIDADE 2. TIREOIDE
114

Objetivando uma padronização da nomenclatura e da conduta com


base nos critérios ultrassonográficos surgiu a classificação TI-RADS
(Thyroid Imaging Reporting and Data System) - assim como a BI-RADS
usada para a mama e a PI-RADS usada para a próstata! Ela nos guia
quanto a decisão de pedir ou não uma punção do nódulo tireoidiano e
se baseia em cinco critérios vistos na USG:

Composição (cístico – 0 pontos, espongiforme – 0 pontos, misto – 1


ponto ou sólido – 2 pontos);
Ecogenicidade (anecoico – 0 pontos, isoecogênico/hiperecogênico – 1
ponto, hipoecogênico – 2 pontos ou muito hipoecogênico – 3 pontos);
Forma (largura maior que altura – 0 pontos ou altura maior que largura
– 3 pontos);
Margens (bem definidas – 0 pontos, mal definidas – 0 pontos, lobu-
lada/irregular – 2 pontos, extensão extratireoidiana – 3 pontos);
Focos ecogênicos (artefato em cauda de cometa de grande dimensão
(>1mm) ou nenhum artefato – 0 pontos, macrocalcificações – 1 ponto,
calcificações periféricas – 2 pontos, pequenos focos ecogênicos/mi-
crocalcificações – 3 pontos).

Com base na pontuação TI-RADS, dada pela soma dos pontos dos
4 primeiros parâmetros com os pontos de todos os achados presentes
do 5º parâmetro, surgem 5 categorias TI-RADS - TR1 a TR5 -, as quais
representam risco crescente de malignidade:

TR1(0 pontos): Benigno;


TR2 (2 pontos): Não suspeito;
TR3 (3 pontos): Pouco suspeito;
TR4 (4 a 6 pontos): Moderadamente suspeito;
TR5 (7 pontos): Altamente suspeito.

Tabela 3: Características de benignidade e malignidade dos nódulos


à USG/Doppler.

CARACTERÍSTICAS ASSOCIADAS A BENIGNIDADE MALIGNIDADE

Ecogenicidade Hiperecogenicidade Hipoecogenicidade


Calcificações Calcificações grosseiras Microcalcificações
Halo hipoecogênico Presente Ausente/Incompleto
Vascularização Vascularização periférica Vascularização central
Margens Regulares Irregulares
Outros Aparência espongiforme Altura maior do que largura
UNIDADE 2. TIREOIDE
115

Após a dosagem do TSH e da realização da ultrassonografia, a ava-


liação subsequente dependerá de exames como a cintilografia de tireoi-
de e a punção aspirativa por agulha fina (PAAF). Para facilitar o seu
entendimento, vamos dividir a investigação em dois cenários.

Cenário 1: Quando a concentração sérica de TSH estiver


abaixo do normal.

A presença de um quadro de hipertireoidismo evidente ou subclíni-


co (TSH baixo) indica a solicitação das concentrações de T4 livre e T3
total - para caracterizar a presença e o grau do hipertireoidismo -, e a
realização de uma cintilografia da tireoide, haja vista a possibilidade
aumentada de o nódulo ser hiperfuncionante.

Cintilografia da tireoide: a cintilografia utiliza um dos radioisó-


topos de iodo (geralmente 123-I) ou pertecnetato de tecnécio-99m e é
usada para determinar o estado funcional de um nódulo. As imagens
obtidas nesse exame dependem da captação da substância radioativa
pela tireoide. Uma maior captação é sinal de maior funcionamento da
glândula, bem como uma captação abaixo do normal é sinal de menor
funcionamento daquela região. Nódulos que se mostram hiperfuncio-
nantes (“quentes”) raramente são malignos, ou seja, seu achado fala a
favor da benignidade e não vai requerer PAAF. Você pode relembrar
esse e outros exames da glândula tireoide no capítulo anterior, sobre
Hipertireoidismo!
Esse exame deve ser reservado para circunstâncias específicas, na
qual a principal indicação é a patologia nodular associada a hipertireoi-
dismo, para um preciso diagnóstico de adenoma tóxico ou bócio multi-
nodular tóxico. Além disso, a cintilografia da tireoide pode ser útil em
pacientes com vários nódulos tireoidianos, a fim de selecionar aqueles
que são hipofuncionais. Nos casos de nódulos normo ou hipocaptantes
à cintilografia - maioria dos casos -, segue-se o protocolo de investiga-
ção, em que nódulos suspeitos podem requerer PAAF.

Cenário 2: Quando a concentração sérica de TSH estiver


normal ou aumentada.

A maioria dos pacientes com câncer de tireoide encontra-se euti-


reoidea. Se a concentração de TSH estiver elevada, a dosagem do an-
ticorpo anti-peroxidase (anti-TPO) para investigação de Tireoidite de
Hashimoto deve ser solicitada. Quando o TSH está normal ou elevado
UNIDADE 2. TIREOIDE
116

e o nódulo fecha critérios ultrassonográficos para amostragem, o próxi-


mo passo é realizar a PAAF.

Punção aspirativa por agulha fina (PAAF): é o método mais acu-


rado disponível para distinguir nódulos benignos de malignos. Além
da história clínica, as indicações para PAAF devem ser baseadas no
tamanho do nódulo e na estratificação ultrassonográfica do risco de
malignidade. No entanto, vale lembrar que a presença de característi-
cas suspeitas ao ultrassom é mais preditiva de malignidade do que o
tamanho do nódulo sozinho.
A PAAF deve ser realizada em nódulos ≥ 1 cm (conforme determi-
nado pela maior dimensão) se eles forem sólidos e hipoecoicos com
uma ou mais dessas características ultrassonográficas suspeitas:
margens irregulares, microcalcificações, altura maior do que largura,
calcificações de borda com extrusão de tecido mole.
Para nódulos sólidos hipoecoicos ≥ 1 cm sem características sus-
peitas, a American Thyroid Association também recomenda PAAF,
enquanto o American College of Radiology-Thyroid Imaging Repor-
ting and Data System (ACR-TIRADS) usa um ponto de corte de ≥ 1,5 cm
para solicitar a PAAF nesses casos.
Nódulos com aparência ultrassonográfica sugerindo baixo risco
de câncer (nódulo sólido isoecoico ou hiperecoico ou nódulo parcial-
mente cístico com áreas sólidas excêntricas, SEM microcalcificações,
margem irregular ou extensão extratireoidiana ou altura maior do que
largura) podem ser biopsiados quando ≥ 1,5 cm.
A PAAF pode ser considerada em pacientes com nódulos < 1 cm se
houver uma forte história familiar de câncer de tireoide, história de
síndromes conhecidas associadas à câncer de tireoide, idade jovem,
história de radiação de cabeça e de pescoço ou de corpo inteiro na
infância, sempre expondo aos pacientes os riscos e benefícios desta
intervenção.
Em nódulos espongiformes, considera-se PAAF quando ≥ 2 cm, em-
bora seja razoável apenas fazer acompanhamento neles, independente-
mente do tamanho. Nódulos puramente císticos não requerem biópsia.
Segundo a pontuação do TI-RADS, a PAAF deve ser realizada quando:

TR1(0 pontos): Benigno; não precisa PAAF.


TR2 (2 pontos): Não suspeito; não precisa PAAF.
TR3 (3 pontos): Pouco suspeito; PAAF se ≥ 2,5 cm.
TR4 (4 a 6 pontos): Moderadamente suspeito; PAAF se ≥ 1,5 cm.
TR5 (7 pontos): Altamente suspeito. PAAF se ≥ 1,0 cm.
UNIDADE 2. TIREOIDE
117

Na prática, para auxiliar nessa estratificação, recomendamos uti-


lizar a calculadora do TI-RADS, que você encontra em https://tirads-
calculator.com/. Nela, basta você selecionar as características que o
nódulo que você está analisando apresentou na USG, e a calculadora
lhe dará a classificação TI-RADS (TR1 a TR5) e as recomendações para
seguimento.
Os resultados da análise citológica decorrentes da PAAF devem ser
descritos conforme o sistema de Bethesda, sendo as amostras classifi-
cadas em seis categorias: I (amostra não satisfatória), II (lesão benigna),
III (atipias/lesão folicular de significado indeterminado), IV (suspeita de
neoplasia folicular), V (suspeita de malignidade) e VI (maligna).
A PAAF tem como principal limitação diagnóstica a não distinção
em lesões de padrão folicular quanto ao seu caráter benigno ou malig-
no, haja vista a citologia folicular poder representar tanto um adenoma
folicular (tumor benigno) quanto um carcinoma folicular (tumor malig-
no). Nesses casos, a presença de malignidade normalmente é definida
pela análise histológica, realizada após lobectomia (cirurgia).

7. Tratamento:

O tratamento dos nódulos de tireoide depende da sua natureza.


Nódulos que não atendem aos critérios ultrassonográficos para PAAF
devem ser monitorados, com frequência de seguimento a ser definida
pelas suas características à USG. Adota-se, normalmente, 6 a 12 meses
para nódulos abaixo de um centímetro com características suspeitas;
12 a 24 meses para nódulos com suspeita baixa a intermediária e 2 a 3
anos para nódulos de risco muito baixo; variando esses intervalos caso
o paciente/médico perceba alguma modificação à palpação cervical.

Nódulos com amostra insatisfatória - Bethesda I:


Para pacientes com biópsias de PAAF não diagnósticas (Bethesda I),
repete-se a punção em aproximadamente quatro a seis semanas, usando
orientação de ultrassom caso não tenha sido usada na primeira bióp-
sia. Ressecção cirúrgica para pacientes considerados de alto risco pela
avaliação clínica e ultrassonográfica, ou observação, para os demais são
opções razoáveis ​​para biópsias repetidamente não diagnósticas.

Nódulos benignos - Bethesda II:


Nódulos benignos só serão tratados caso estejam associados a sin-
tomas compressivos, à componente mergulhante ou à produção de hor-
mônios tireoidianos em demasia.
UNIDADE 2. TIREOIDE
118

Se o resultado da PAAF for benigno (Bethesda II) costuma-se fazer o


seguimento clínico com realização de USG a cada 12 a 24 meses, depois
em intervalos crescentes ao longo do tempo. Repete-se a PAAF quando,
nesse acompanhamento, houver aparecimento de características ul-
trassonográficas indicativas de malignidade ou crescimento substan-
cial do nódulo (mais de 50% de aumento no volume ou 20% de aumento
no diâmetro do nódulo com um aumento mínimo em duas ou mais di-
mensões ultrassonográficas). Facilitando essa quantificação, a Ameri-
can Thyroid Association dispõe em seu site, dentre outras calculadoras,
uma de avaliação da mudança do volume do nódulo da tireoide. Você
pode acessá-la em: https://www.thyroid.org/professionals/calculators/
thyroid-with-nodules/.

Nódulos com citologia indeterminada - Bethesda III:


A PAAF deve ser repetida diante de um resultado citológico indeter-
minado (Bethesda III). Repete-se a PAAF após um intervalo de 6 a 12 se-
manas (ou antes) e, quando há a disponibilidade de testes moleculares
(os quais possibilitam uma investigação adicional), coleta-se também
uma amostra para essa testagem.
Se a nova PAAF vier benigna, o teste molecular não é indicado, fazen-
do-se apenas seguimento clínico com US em 12 a 24 meses para avaliar
a estabilidade. Para pacientes com aspirados repetidos indeterminados,
a avaliação adicional pode incluir o teste molecular, a cintilografia da
tireoide ou lobectomia diagnóstica. Na disponibilidade, pode-se pros-
seguir com teste molecular, em que o manejo posterior irá depender do
resultado do teste. Na ausência de teste molecular, que é o cenário atual
mais comum, e na permanência de aspirados indeterminados, sugere-
-se cirurgia diagnóstica (tipicamente lobectomia da tireoide).

Neoplasia folicular - Bethesda IV:


Em amostras de PAAF compatíveis com o diagnóstico de lesão foli-
cular (Bethesda IV), o mapeamento com radioiodo pode ser considerado
e, caso se documente um nódulo quente, a cirurgia não é necessária. To-
davia, se o nódulo for não funcionante, usualmente é indicada a cirurgia.

Nódulos com suspeita de malignidade - Bethesda V -
ou malignos - Bethesda VI:
Na grande maioria desses casos, o tratamento é cirúrgico. Em casos
muito selecionados, usualmente em pacientes com tumores papilíferos
< 1 cm, circunscritos e sem metástases cervicais, tem se discutido man-
ter uma vigilância ativa. Contudo, esta é uma prática recente que deve
ser bem discutida com o paciente, sendo este acompanhado em serviço
especializado.
UNIDADE 2. TIREOIDE
119

História Clínica

Exame Físico

Características ultrassonográficas suspeitas:


Imagens irregulares, microcalcificações,
US altura maior do que largura,
evidência de extensão extratireoidiana

Suprimido TSH Normal ou Elevado


Nódulo hipoecóico sólido ou componente
hipoicóico sólido de um nódulo Fazer PAAF
parcialmente cístico com características quando ≥ 1cm
ultrassonográficas suspeitas
Cintilografia

Nódulo sólido hipoecóico sem características Fazer PAAF quando


ultrassonográficas suspeitas ≥ 1cm ou ≥ 1,5cm

Possui critérios
Nódulo Nódulo Normo Nódulo sólido isoecóico ou hiperecóico sem Fazer PAAF
(ultrassonográficos,
Hipercaptante ou Hipocaptante características ultrassonográficas suspeitas quando ≥ 1,5cm
(clínicos) para PAAF?

Nódulos espongiformes sem nenhuma


Fazer PAAF
das características ultrassonográficas
Avaliar e tratar descritas acima
quando ≥ 2cm
(cirurgia,
radioablação...)
Nódulos puramente císticos Não fazer
PAAF

SIM NÃO

Acompanhamento
PAAF
clínico

Sistema Bethesda de
classificação

Bethesda I - Não diagnóstico Risco de malignidade:


(insatisfatório) 5 a 10%

Bethesda II - Benigno Risco de malignidade: Repetir PAAF


0 a 3% guiada por US

Bethesda III - Atipia de significado Risco de malignidade:


indeterminado 10 a 30%

Hipercaptante
Bethesda IV - Neoplasia folicular Risco de malignidade: Cintilografia
(ou suspeita de neoplasia folicular) 25 a 40%
Hipocaptante

Bethesda V - Suspeeito de malignidade Risco de malignidade:


50 a 75%

Cirurgia

Bethesda VI - Maligno Risco de malignidade:


97 a 99%

Figura 1: Algoritmo diagnóstico em casos de nódulo tireoidiano.


Elaborado pelo autor.
UNIDADE 2. TIREOIDE
120

8. Tabela de resumo:

Nódulos tireoidianos são mais frequentes no sexo Feminino

A incidência aumenta com a Idade

A grande maioria dos nódulos possui caráter Benigno


Quando malignidade é diagnosticada, os cânceres de
Maioria dos casos (90%)
tireoide diferenciados (papilar e folicular) respondem pela
Cistos coloides, tireoidites, bócio
Causas benignas de nódulos tireoidianos
multinodular, adenomas
Carcinoma papilífero, folicular, medular,
Causas malignas de nódulos tireoidianos anaplásico, carcinomas metastáticos,
linfoma da tireoide
Avaliação inicial de um nódulo tireoidiano inclui Anamnese, exame físico, TSH, US
Na presença de um quadro de
Deve-se solicitar cintilografia da tireoide hipertireoidismo evidente ou subclínico
(TSH baixo)
Nódulos hiperfuncionantes falam a favor de Benignidade
Hipoecogenicidade, altura maior do que
Características do nódulo na US preditoras de malignidades largura, microcalcificações, halo ausente e
margens irregulares
Baseia-se nas características vistas na US
Classificação TI-RADS e orienta a decisão de pedir ou não uma
punção do nódulo tireoidiano (PAAF)
Os resultados da análise citológica decorrente da PAAF são
Sistema Bethesda
descritos conforme o
Não difere lesões de padrão folicular
Principal limitação diagnóstica da PAAF quanto ao seu caráter benigno (adenoma)
ou maligno (carcinoma)
A diferenciação de lesões com citologia folicular quanto
Análise histológica
benignidade e malignidade se dá pela

9. Leitura recomendada:
RUSS, Gilles et al. European Thyroid Association guidelines for ultrasound
malignancy risk stratification of thyroid nodules in adults: the EU-TIRADS.
European thyroid journal, v. 6, n. 5, p. 225-237, 2017.

HAUGEN, Bryan R. et al. 2015 American Thyroid Association management


guidelines for adult patients with thyroid nodules and differentiated thyroid
cancer: the American Thyroid Association guidelines task force on thyroid
nodules and differentiated thyroid cancer. Thyroid, v. 26, n. 1, p. 1-133, 2016.

MAIA, Ana Luiza et al. Nódulos de tireoide e câncer diferenciado de tireoide:


consenso brasileiro. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, v. 51,
p. 867-893, 2007.
UNIDADE 2. TIREOIDE
121

Capítulo 7

Câncer de Tireoide
Eduarda Ruch
Leonardo Rodrigues
Iuri Martin Goemann

1. Introdução:

O câncer de tireoide é o mais frequente entre as neoplasias endó-


crinas malignas, e representa cerca de 1% de todos canceres. Sua in-
cidência anual é baixa e sua prevalência é maior em mulheres do que
em homens. Nas últimas décadas observou-se um aumento constante
da incidência dos cânceres de tireoide em todo o mundo. Muito disso é
consequência do aumento de diagnóstico dos cânceres diferenciados,
em especial os papilíferos, devido à expansão de técnicas de biópsia,
aos novos exames de imagem e a maior vigilância médica. Além disso,
associado ao sobrediagnóstico (overdiagnosis) das neoplasias de tireoi-
de, está o tratamento excessivo, que pode ocorrer em cânceres que pos-
suem baixa agressividade clínica.
Os carcinomas tireoidianos são classificados de acordo com seus ti-
pos histológicos e serão detalhados neste capítulo, cada um com suas
características próprias, origem celular e prognóstico. São divididos em
carcinomas bem diferenciados, que englobam os papilíferos e os folicula-
res, carcinomas pouco diferenciados, carcinomas indiferenciados, tam-
bém chamados de anaplásicos; e carcinomas medulares. Para facilitar a
leitura e o domínio do conteúdo, organizamos a maioria dos tópicos deste
capítulo dividindo-os entre esses subtipos.
São dois os tipos de células endócrinas da tireoide das quais os cânce-
res derivam: as foliculares e as parafoliculares. Os tumores derivados das
células foliculares correspondem a maioria dos carcinomas tireoidianos
e compreendem o papilífero, o folicular e o anaplásico. O único carcino-
ma derivado das células parafoliculares é o medular, sendo responsável
por uma pequena parcela das doenças malignas de tireoide.
Os carcinomas tireoidianos se originam a partir de mutações em al-
guns genes e podem ter influência de fatores genéticos ou ambientais.

2. Epidemiologia:

Carcinoma papilífero: é um dos tipos de carcinoma bem diferencia-


dos de tireoide e é a forma mais prevalente e menos grave de neoplasia
UNIDADE 2. TIREOIDE
122

maligna tireoidiana, correspondendo a cerca de 80% do total de casos.


Predomina em pacientes jovens e do sexo feminino.
A exposição à radiação é um fator de risco e isso pode ser constatado
com o aumento de casos a partir do lançamento da bomba atômica em
Hiroshima e Nagasaki e com a explosão da usina de Chernobyl.
Tem-se observado uma crescente incidência de câncer papilífero de
tireoide nos últimos 30 anos, sem, no entanto, observarmos aumento da
mortalidade. Isso se deve a um excessivo rastreamento deste câncer,
associado a maior disponibilidade de exames de imagem e ao diagnós-
tico incidental de nódulos tireoidianos. Consequentemente, observa-se
um ‘’sobre tratamento’’ (overtreatment) em carcinomas de baixo risco
e clinicamente assintomáticos, sem que este tratamento traga algum
benefício na sobrevida dos pacientes, mas impactando negativamente,
talvez, na qualidade de vida do paciente que deve arcar com o ônus des-
te diagnóstico e tratamento.

Carcinoma folicular: é também um carcinoma do tipo bem diferen-


ciado, porém é mais agressivo e menos comum que o papilífero, corres-
pondendo a cerca de 10% dos cânceres de tireoide. O carcinoma folicu-
lar é mais prevalente em faixas etárias mais velhas e apresenta o dobro
de taxa de incidência em pacientes do sexo feminino.
Um dos fatores de risco conhecidos para o surgimento de carcinoma
folicular de tireoide é a deficiência de iodo, apresentando-se com maior
prevalência em regiões com deficiência desse micronutriente.

Carcinoma medular: o carcinoma medular de tireoide é responsável


por cerca de 3% a 5% dos casos de câncer de tireoide. Esse tipo de tumor
pode ser esporádico – aproximadamente 75% dos casos – ou pode ter
origem familiar – aproximadamente 25% dos casos. As formas familia-
res desse tipo de câncer se manifestam mais precocemente do que as
formas esporádicas. Há uma leve prevalência no sexo feminino, quan-
do comparado ao masculino, e pode apresentar-se em qualquer idade.

Carcinoma anaplásico: também pode ser chamado de carcinoma in-


diferenciado e é o tipo mais grave e raro de câncer de tireoide, represen-
tando cerca de 2% a 3% das neoplasias malignas da tireoide. É predomi-
nantemente encontrado em pacientes idosos. O carcinoma anaplásico
de tireoide é mais frequente em áreas de bócio endêmico, ou seja, em
áreas com deficiência de iodo.
UNIDADE 2. TIREOIDE
123

3. Fisiopatologia:

Figura 1: Representação de células foliculares e de célula C da tireoide. Os


carcinomas papilífero, folicular e anaplásico têm origem nas células foliculares,
enquanto o carcinoma medular se origina de células C (parafoliculares).
Elaborado pelo autor.

Bom, para entendermos melhor o assunto, vamos compreender um


pouco sobre a fisiopatologia envolvida em casa subtipo de câncer de
tireoide.

Carcinoma papilífero: é um tumor de crescimento lento, indolor e ge-


ralmente não encapsulado. Sua via de disseminação é linfática, porém
podem ocorrer casos raros de metástases à distância. As metástases em
linfonodos cervicais ocorrem em cerca de 25% dos pacientes com esse
tipo de câncer.
Aproximadamente 70% dos casos de carcinoma papilífero de tireoide
possuem mutações pontuais nos proto-oncogenes BRAF ou RAS ou rear-
ranjo cromossômico no gene RET. Quando as mutações ocorrem nos ge-
nes BRAF, há alta especificidade para a malignidade, enquanto mutações
nos genes RAS estão associados a melhor prognóstico. Por outro lado,
rearranjo cromossômico RET está associado a metástases linfonodais.
A mais comum dessas mutações é do gene BRAF, seguida do gene RAS.
No caso das mutações em BRAF ou RAS há estímulo constante à prolife-
ração celular, com ou sem ativação de receptores de superfície celular. Já
na mutação RET há ativação contínua da função tirosina-quinase, o que
faz com que haja proliferação celular descontrolada.
UNIDADE 2. TIREOIDE
124

A principal característica microscópica do câncer papilífero é a for-


mação de papilas, que consistem em um núcleo fibrovascular circun-
dado por camadas de células tumorais e são a origem do nome desse
tipo de carcinoma. As diferentes mutações e eventos genéticos subse-
quentes podem levar a diversas variantes, com diferentes característi-
cas histopatológicas. As variantes clássica, folicular e de células altas
são as mais comuns. As mais agressivas são as variantes histológicas
dos tipos de células altas, insular, colunar, esclerosante difusa, sólida e
trabecular. No caso da variante folicular, não há formação de papilas.

Carcinoma folicular: geralmente, se apresenta como um nódulo soli-


tário e indolor. Um dos principais fatores que torna o carcinoma folicu-
lar mais agressivo que o papilífero é sua capacidade de metastizar por
meio de invasão vascular, disseminando-se à distância. Essas metásta-
ses são mais comuns nos pulmões e nos ossos.
Por apresentar características de invasão capsular e vascular, a Or-
ganização Mundial da Saúde (OMS) tem como recomendação atual re-
latar os carcinomas foliculares em três tipos: “minimamente invasivos”
– quando a invasão capsular não está acompanhada de envolvimento
vascular; “angioinvasivos” – quando há envolvimento de menos que 4
vasos sanguíneos; e “amplamente invasivos” – quando há envolvimen-
to de 4 ou mais vasos.
Mutações no proto-oncogene RAS são as mais comuns nesse tipo
de câncer, representando de 40% a 50% dos casos. Outra mutação sig-
nificativa são rearranjos PAX8/PPARγ, que ocorrem em cerca de 30% a
35% dos casos. Podem também ocorrer deleções de inativação no gene
PTEN. Mutação em RAS resulta em estímulo à proliferação celular de
maneira contínua, enquanto mutação PAX8/PPARγ – que são genes su-
pressores tumorais – faz com que haja inativação desses genes, facili-
tando a proliferação celular descontrolada.

Carcinoma de células de Hürthle:


É um subtipo de carcinoma folicular de tireoide menos diferenciado
e com maior potencial de malignidade. Corresponde de 2% a 3% dos
cânceres de tireoide. Caracteriza-se por apresentar células oncocíticas
grandes – com citoplasma abundante –, ricas em mitocôndrias com
núcleos e nucléolos densos. Possui propensão para metástase e algu-
mas séries da literatura o relacionam a pior prognóstico, portanto deve
ser tratado como um carcinoma de maior risco.

Carcinoma medular: é um carcinoma morfologicamente heterogê-


neo e sua apresentação clínica mais comum é um nódulo solitário, pal-
UNIDADE 2. TIREOIDE
125

pável e duro. O carcinoma medular de tireoide se origina das células


parafoliculares da tireoide, também chamadas de células C, produtoras
de calcitonina.
Quando de origem familiar, esse tipo de câncer pode ser isolado –
carcinoma medular de tireoide familiar (CMTF) – ou associado a sín-
dromes de neoplasia endócrina múltipla hereditária dos tipos 2A ou 2B
– NEM-2A ou NEM-2B. Dentre esses, o carcinoma medular de tireoide
associado à NEM-2A é o mais comum, seguido do CMTF e do associado
à NEM-2B.

Tabela 1: Manifestações das síndromes de neoplasia endócrina múltipla.

Carcinoma medular de tireoide Feocromocitoma


NEM-2A Hiperparatireoidismo primário (10-35%)
(90%) (40-50%)
Carcinoma medular de tireoide Feocromocitoma Hábito marfanoide Neuromas de mucosa
NEM-2B
(>90%) (40-50%) (>95%) (quase 100%)

Quando falamos de carcinoma medular associado à NEM-2A, po-


demos observar associação com feocromocitoma em cerca de 50% dos
casos e com hiperparatireoidismo primário em 25% dos casos. O câncer
associado à NEM-2B é a forma mais agressiva e precoce desse tipo de
carcinoma.
As duas causas predominantes do surgimento desse tipo de tumor
são mutações nos proto-oncogenes RET e RAS. As formas hereditárias
são geralmente causadas por mutações na linhagem germinativa do
proto-oncogene RET. Mutações no gene RET representam ganho de
função nas células parafoliculares da tireoide pois ativam de maneira
contínua a função tirosina-quinase, ocasionando proliferação celular
descontrolada. No caso do carcinoma medular de tireoide esporádico,
50% dos casos exibem mutações somáticas no gene RET. Por fim, muta-
ções RAS geram estímulo constante à proliferação celular.
A presença de células fusiformes sem a formação de folículos é uma
característica histológica típica. Além disso, é comum perceber deposi-
ção de fibrilas de amiloide e imunorreatividade de calcitonina. Metás-
tases para linfonodos ocorrem em aproximadamente metade dos pa-
cientes e metástases a distância, para fígado, pulmões e ossos, ocorrem
em cerca de 20%.

Carcinoma anaplásico: o carcinoma indiferenciado possui cres-


cimento rápido e invasão local precoce. Essa invasão local ocorre em
aproximadamente 70% dos pacientes e pode ser responsável por sin-
UNIDADE 2. TIREOIDE
126

tomas como disfagia, disfonia, dispneia e estridor, por atingir esôfago


e traqueia.
As metástases podem ser observadas em até 75% dos pacientes com
carcinoma anaplásico de tireoide. Sua ocorrência para linfonodos é ob-
servada em quase 40% dos casos. Metástases a distância também são
frequentes, principalmente para os pulmões. Cérebro e ossos, apesar de
mais raros, também podem ser atingidos.
A maioria dos cânceres anaplásicos de tireoide consiste de um mis-
to morfológico de 2 ou 3 tipos de variantes histológicas. Os tipos mais
usuais dessas variantes são células fusiformes, células gigantes pleo-
mórficas e variantes escamosas. Atipicidade mitótica e diversas figuras
mitóticas são comumente observadas.
Quanto às alterações genéticas, há um acúmulo progressivo de al-
terações cromossômicas, sendo maior o número de mutações quanto
mais indiferenciado for o tumor. Algumas das mutações mais comuns
ocorrem no gene p53. O gene p53 é um supressor tumoral e, com a mu-
tação, sofre inativação, facilitando a proliferação celular descontrolada.
A inativação desse gene também possui um papel importante na evo-
lução de carcinoma diferenciado para o anaplásico. Outras mutações
comumente observadas ocorrem nos genes BRAF e RAS. As mutações
nesses genes geram estímulo ininterrupto à proliferação celular.

4. Anamnese:

Passada de forma sucinta a fisiopatologia, nos atentemos agora para


alguns pontos importantes da história clínica. Geralmente, o pacien-
te com câncer de tireoide busca o atendimento médico por queixa de
nódulo. Por isso é muito importante que se saiba há quanto tempo o
paciente observou a existência do nódulo, se houve crescimento rápido
e se há dor. A apresentação de rouquidão e de disfagia também deve ser
um fator de atenção. A presença de dor e crescimento rápido são fatores
que indicam maior risco de malignidade.
Deve-se estar atento caso haja histórico familiar de síndromes as-
sociadas ao câncer de tireoide, como NEM2A e NEM2B. O histórico de
exposição à radiação também deve ser analisado, o que inclui exposi-
ção durante a infância e a adolescência e a profissão do paciente. Além
disso, deve-se conhecer a procedência do paciente, já que o carcinoma
folicular, por exemplo, possui maior incidência em regiões com defici-
ência de iodo. É importante, também, considerarmos que as doenças
tireoidianas acontecem mais frequentemente em mulheres e que a re-
lação com fatores autoimunes pode ocorrer.
UNIDADE 2. TIREOIDE
127

5. Exame físico:

A base do exame físico da tireoide é a palpação, a ausculta e a inspe-


ção. Você pode conferir como o exame deve ser realizado no capítulo 4.
Quando se descobre um nódulo tireoidiano, devemos realizar o exa-
me físico com foco na tireoide e nos linfonodos cervicais adjacentes.
Na palpação da tireoide é possível perceber se há presença de nódulos
e, se houver, é importante observar se há textura firme, irregularidade de
contorno e fixação a estruturas adjacentes, que são alguns dos indicati-
vos de malignidade. A presença de linfonodos cervicais aumentados e
palpáveis também é um indicativo de carcinoma tireoidiano.
Ao exame também é importante observar se há sinais de bócio com-
pressivo, investigando a presença do sinal de Pemberton e Marañón
(refletindo obstrução venosa secundária à bócio volumoso).

6. Exames complementares:

Embora a maioria dos pacientes com câncer de tireoide se encontre


eutireoideo, a dosagem de TSH e T4 livre deve ser realizada a fim de
descartar outras doenças. Se o TSH sérico do paciente estiver abaixo
dos níveis normais em um paciente com nódulo de tireoide, há reco-
mendação de cintilografia, pois o mesmo pode corresponder a um ade-
noma hiperfuncionante. Caso na cintilografia apareça um nódulo “frio”,
há indicação de PAAF. Se o TSH estiver acima dos níveis normais, se
associa a um maior risco de malignidade ou a um câncer em estágio
mais avançado. Quando há suspeita de carcinoma medular de tireoi-
de, pode-se realizar a dosagem de calcitonina, um marcador específico
deste tipo tumoral.
A ultrassonografia (US) da tireoide com pesquisa de linfonodos cer-
vicais, por outro lado, deve ser solicitada em todos os pacientes com
nódulos suspeitos ou confirmados. A US é capaz de indicar qual é o
tamanho e o padrão do nódulo, se ele apresenta anormalidades, qual
a localização nodular, além de identificar a presença de nódulos múl-
tiplos. As características observadas nesse exame são os indicativos
utilizados para indicação de punção aspirativa por agulha fina (PAAF).
Com base nas características da US para a recomendação de PAAF,
foi criado o sistema de classificação TI-RADS (Thyroid Imaging, Repor-
ting and Data System) (figura 2). Nesse sistema, as características do
exame são divididas em benignas, minimamente suspeitas, modera-
damente suspeitas ou altamente suspeitas de malignidade. Cada ca-
racterística possui pontos e quanto mais suspeitas, mais pontos são
UNIDADE 2. TIREOIDE
128

atribuídos. A pontuação total determina o nível do nódulo, que varia de


TR1 - benigno - a TR5 - altamente suspeito de malignidade.

TI - RAD
COMPOSIÇÃO ECOGENICIDADE FORMA MARGENS FOCOS ECOGÊNICOS

Cístico ou quase 0 pontos Anecoico 0 pontos Mais largo 0 pontos Lisas 0 pontos Nenhum ou 0 pontos
completamente que alto grandes artefatos
Cístico Hiperecoico ou 1 ponto Mal definidas 0 pontos em cauda
isoecoico Mais alto 3 pontos
Espongiforme 0 pontos que largo Lobulado 2 pontos Macrocalcificações 1 ponto
Hipoecoico 2 pontos ou irregular
Misto 1 ponto Calcificações 2 pontos
(Sólido Cístico) Muito 3 pontos Extensão 3 pontos periféricas
Hipoecoico Extratireoidiana
Sólido ou quase 2 pontos Focos ecogênicos 3 pontos
completamente puntiformes
Sólido

o pontos 2 pontos 3 pontos 4 a 6 pontos 7 ou mais pontos


TR1 TR2 TR3 TR4 TR5

BENIGNO NÃO SUSPEITO POUCO SUSPEITO MODERADAMENTE ALTAMENTE


SEM INDICAÇÃO SEM INDICAÇÃO PAAF SE NÓDULO SUSPEITO SUSPEITO
DE PAAF DE PAAF ≥ 2,5 CM PAAF SE NÓDULO PAAF SE NÓDULO
≥ 1,5 CM ≥ 1 CM

Figura 2: Representação do sistema TI-RADS.


Elaborado pelo autor.

A punção aspirativa por agulha fina (PAAF) é a melhor maneira de


diferenciar nódulos benignos e malignos, sendo recomendada com
base no tamanho nodular e na aparência da ultrassonografia. Porém,
a PAAF não é capaz de diferenciar benignidade ou malignidade em
carcinomas foliculares, pois as alterações citológicas visualizadas na
PAAF são muito semelhantes. A classificação pela biópsia realizada
após punção segue o sistema de Bethesda, que classifica o nódulo de I
a VI. Na classificação Bethesda I o diagnóstico não pode ser realizado
e a punção deve ser repetida. Quando a classificação é de Bethesda II
o nódulo é benigno. Bethesda III é indeterminado e a punção deve ser
repetida pois há um risco de malignidade que deve ser investigado. Be-
thesda IV indica neoplasia folicular e as classificações V e VI sugerem
fortemente malignidade. Para saber mais a respeito da classificação
dos nódulos tireoidianos, você pode conferir o capítulo 6.
UNIDADE 2. TIREOIDE
129

7. Diagnóstico:

Passada a investigação, vejamos como se firma o diagnóstico. Diante


da suspeita de nódulo de tireoide a partir da anamnese e do exame físico,
o paciente deve ser encaminhado para a realização de ultrassonografia
(US). Na anamnese, caso o câncer já esteja mais avançado, podem ser
relatados sintomas compressivos locais, como disfagia e rouquidão. A
presença de linfonodos palpáveis ao exame físico aumenta a suspeita.
Como dito anteriormente, a US é capaz de identificar característi-
cas de malignidade do nódulo - como microcalcificações, margens ir-
regulares, componente sólido - e dimensioná-lo. Além disso, é capaz
de identificar a presença de nódulos múltiplos e de linfadenopatia. É a
partir das características observadas na US que é determinada a reali-
zação de punção aspirativa por agulha fina (PAAF).
A PAAF é um procedimento minimamente invasivo e rápido que
consiste em retirar amostras citológicas para biópsia e, por meio dela,
determinar se as células são malignas, suspeitas ou benignas. Quando
malignas, ela é capaz de diferenciar as características celulares e suge-
rir determinado tipo de carcinoma.
Quando há suspeita de carcinoma medular deve-se realizar a do-
sagem de calcitonina. Além dela, o carcinoma medular secreta outras
substâncias, como o antígeno carcinoembriogênico (CEA). Tanto a cal-
citonina quanto o CEA são marcadores úteis para o diagnóstico e para o
prognóstico. Quanto mais elevados esses marcadores se apresentarem,
maior é o risco de metástases à distância. Por fim, quando há confir-
mação diagnóstica para câncer medular de tireoide, devem ser pesqui-
sadas mutações germinativas no gene RET, até mesmo nos casos que
aparentemente são esporádicos.
No caso do carcinoma anaplásico é comum que existam falsos ne-
gativos, pois nesse tipo de tumor são encontrados detritos inflamató-
rios e necróticos, além de uma baixa celularidade.

8. Tratamento:

Carcinoma diferenciado: o tratamento padrão é a ressecção cirúr-


gica, sendo geralmente realizada a tireoidectomia total. A lobectomia
(tireoidectomia parcial), por sua vez, é realizada em casos específicos,
quando o tumor é unilateral, pequeno e sem sinais de invasão ou me-
tástase. A avaliação quanto ao esvaziamento cervical é realizada de
acordo com cada quadro, dependendo da preocupação com dissemina-
ção linfática.
UNIDADE 2. TIREOIDE
130

Após o tratamento, é importante estarmos atentos ao risco de recor-


rência da doença. A tireoglobulina sérica após a tireoidectomia total
é utilizada clinicamente como marcador de recidiva. Níveis indetec-
táveis de tireoglobulina indicam remissão, enquanto níveis altos ou
crescientes de Tireoglubulina podem indicar doença persistente ou re-
cidiva. A anti-tireoglobulina (anti-Tg) também deve ser solicitada em
concomitância, pois pode mascarar níveis baixos de tireoglobulina.
Níveis crescentes de anti-Tg estão associados a um maior risco de re-
cidiva, enquanto pacientes com declínio de anti-Tg ao longo dos anos
comumente ficam livres da doença após o primeiro tratamento. Para
avaliar o risco de recorrência, podemos utilizar também o sistema de
estratificação de risco da American Thyroid Association (ATA) de 2009:

Tabela 2: Riscos e características dos carcinomas diferenciados de tireoide.

RISCO DE RECIDIVA CARACTERÍSTICAS


Câncer papilar de tireoide sem metástases, completamente ressecado, sem
invasão tumoral de outros tecidos ou estruturas, sem histologia agressiva,
sem invasão vascular
Variante folicular intratireoidiana encapsulada de câncer papilar de tireoide
Baixo risco
Câncer de tireoide folicular bem diferenciado intratireoidiano com invasão
capsular e nenhuma ou mínima invasão vascular
Microcarcinoma papilar intratireoidiano unifocal ou multifocal, com BRAF
V600E mutado
Invasão microscópica de tumor nos tecidos moles peritireoidianos
Focos metastáticos no pescoço no primeiro iodo radioativo pós-tratamento
Risco intermediário Histologia agressiva
Câncer papilar de tireoide com invasão vascular
Microcarcinoma papilar multifocal com ETE e BRAF V600E mutado
Invasão macroscópica de tumor nos tecidos moles peritireoidianos
Ressecção tumoral incompleta
Metástases distantes
Alto risco
Tg sérica pós-operatória sugestiva de metástases a distância
Linfonodo metastático ≥3 cm
Câncer folicular de tireoide com invasão vascular extensa

O tratamento de ablação com radioiodo é indicada de maneira ge-


ral para os pacientes de alto risco de recidiva e para alguns de risco
intermediário após a tireoidectomia total. Para decidir se a iodoterapia
será realizada leva-se em conta o risco de recidiva, as preferências do
paciente e as implicações no acompanhamento da doença.
UNIDADE 2. TIREOIDE
131

Como as células tumorais são responsivas ao TSH, comumente reali-


za-se a terapia de supressão desse hormônio, a fim de minimizar a esti-
mulação de crescimento cancerígeno. A supressão de TSH é fortemente
recomendada em pacientes de alto risco. A reposição de T4 com levoti-
roxina, além de servir para repor o hormônio após a cirurgia, auxilia na
supressão do TSH.
Após 6 a 12 meses da tireoidectomia é realizado acompanhamento
por US. Posteriormente, o seguimento deve ser realizado periodicamente
de acordo com o risco de recidiva e dos níveis da Tg sérica.
No caso de alguns microcarcinomas com risco muito baixo, pode op-
tar-se por realizar a vigilância ativa, que é o monitoramento do câncer,
sem que seja feita uma cirurgia inicial ou outro tratamento.

Carcinoma medular: o tratamento padrão é cirúrgico, com realização


de tireoidectomia total e esvaziamento cervical, tanto para casos de car-
cinoma esporádico quanto familiar. No pré-operatório é necessário dosar
calcitonina e realizar ultrassonografia cervical, que serão exames deter-
minantes na extensão cirúrgica. Após a cirurgia, segue-se realizando
a dosagem de calcitonina como acompanhamento, por ser o principal
marcador de doença residual.
Como adjuvante, em pacientes com metástases, podemos utilizar a
radioterapia e outras terapias sistêmicas, como o uso de inibidores de
tirosina quinase. O tratamento com esses inibidores está associado com
um aumento significativo na sobrevida livre de progressão da doença.
Essa terapia funciona por meio da inibição de proteínas relacionadas à
transdução de sinal para vias de sinalização envolvidas na carcinogêne-
se do carcinoma medular de tireoide.

Carcinoma anaplásico: os carcinomas indiferenciados de tireoide são


por vezes resistentes às terapias padrão. Quando for possível, realiza-se
cirurgia objetivando reduzir o volume para desobstrução das vias aéreas
do paciente, preservando a laringe. Em diversos casos a traqueostomia é
necessária por comprometimento das vias aéreas devido à invasão local.
É muito difícil realizar a retirada completa do tumor devido sua extensão
e à invasão de estruturas cervicais, porém esse é um fator prognóstico
para aumento da sobrevida.
Quando não é possível realizar a cirurgia, radioterapia e quimiotera-
pia são as recomendações possíveis. A radioterapia é realizada também
quando é possível realizar excisão cirúrgica, como adjuvante. O carcino-
ma anaplásico geralmente não responde a terapia com iodo radioativo,
sendo esse utilizado somente em casos específicos, e sobrevida do pa-
ciente em geral é bastante baixa.
UNIDADE 2. TIREOIDE
132

9. Prognóstico:

Carcinoma diferenciado: possui um bom prognóstico geral, com


taxas de mortalidade baixas. Idade avançada, pacientes do sexo mas-
culino, tumor grande, variante mais grave, metástases a distância e
recorrências de carcinomas regionais são fatores de pior prognóstico.
Estudos indicam que quanto maior é o número de mutações, pior é o
prognóstico.

Carcinoma medular: o carcinoma medular de tireoide é mais agres-


sivo que os carcinomas bem diferenciados, implicando em diminuição
de sobrevida. Fatores favoráveis para melhor prognóstico são idade
mais jovem, ausência de metástases e de mutações somáticas.

Carcinoma anaplásico: o prognóstico do carcinoma anaplásico de


tireoide é extremamente desfavorável, sendo a sobrevida média cerca
de 6 meses. A idade mais jovem, a ausência de metástases e de invasão
local, bem como tumores pequenos e unilaterais são fatores prognósti-
cos favoráveis que podem aumentar o tempo de sobrevida do paciente.

10. Tabela de resumo:

Mais prevalente e menos grave


Crescimento lento
Predomina em pacientes jovens e do sexo feminino
Exposição à radiação é fator de risco
Carcinoma Papilífero
Origem: células foliculares
Genes envolvidos: BRAF, RAS e RET
Disseminação linfática
Geralmente tireoidectomia total é realizada
Deficiência de iodo é fator de risco
Predomina em faixa etária mais avançada
Origem: células foliculares
Genes envolvidos: RAS e PAX8/PPARγ
Carcinoma Folicular
Disseminação hematogênica, principalmente para pulmão e ossos
Caracteriza-se por invasão capsular e vascular
PAAF não determina se é maligno ou benigno
Bom prognóstico
UNIDADE 2. TIREOIDE
133

Pode ser esporádico ou familiar


Familiar pode estar associado com NEM-2A ou NEM-2B
Origem: células parafoliculares
Carcinoma Medular
Genes envolvidos: RET e RAS
Dosagem de calcitonina para diagnóstico e prognóstico
Prognóstico ruim
Menos frequente e mais grave
Crescimento rápido e invasão local precoce
Predomina em pacientes idosos
Carcinoma Anaplásico Pode causar dificuldades para respirar ou deglutir, sendo necessária traqueostomia
Disseminação linfática e hematogênica
Genes envolvidos: P53, BRAF e RAS
Pior prognóstico

O câncer de tireoide é a neoplasia endócrina maligna mais comum,


apesar de apresentar uma incidência anual baixa. É mais prevalente
em pacientes do sexo feminino.
A evolução, de maneira geral, é lenta, com exceção dos tumores in-
diferenciados, que tem evolução rápida e são muito agressivos.
O carcinoma papilífero é o mais prevalente, correspondendo a cerca
de 80% dos casos de câncer de tireoide. Apresenta disseminação lin-
fática e histórico de exposição à radiação é fator de risco.
O carcinoma folicular possui disseminação hematogênica e é mais
comum em regiões deficientes de iodo. Não é possível concluir diag-
nóstico por PAAF. O carcinoma das células de Hürthle é uma varian-
te mais agressiva.
O carcinoma medular é derivado das células parafoliculares e pode
ser esporádico ou familiar. Quando familiar pode estar associado à
NEM-2A ou NEM-2B.
O carcinoma anaplásico é o mais grave, possui crescimento rápido e
está associado a um péssimo prognóstico.
O câncer de tireoide é decorrente de um acúmulo de mutações, que
podem ser somáticas ou germinativas. Cada tipo de carcinoma pos-
sui suas especificidades moleculares.

11. Leitura recomendada:

FILETTI, S. et al. Thyroid cancer: ESMO Clinical Practice Guidelines for


diagnosis, treatment and follow-up. Annals of Oncology vol. 30, 2019.
UNIDADE 2. TIREOIDE
134

HAUGEN, B. R. et al. 2015 American Thyroid Association Management


Guidelines for Adult Patients with Thyroid Nodules and Differentiated Thyroid
Cancer: The American Thyroid Association Guidelines Task Force on Thyroid
Nodules and Differentiated Thyroid Cancer. Thyroid vol. 26, n. 1, 2016.

LEE, K. et al. Thyroid Cancer [Updated 2021 Jul 19]. StatPearls, 2021. PMID:
29083690

PRETE, A. et al. Update on Fundamental Mechanisms of Thyroid Cancer.


Frontiers in endocrinology vol. 11, 2020.

TESSLER, F. N. et al. ACR Thyroid Imaging, Reporting and Data System (TI-
RADS): White Paper of the ACR TI-RADS Committee. Health Services Research
and Policy vol. 14, 2017.

XING, M. Molecular pathogenesis and mechanisms of thyroid cancer. Nature


reviews Cancer vol. 13, 2013.
UNIDADE 2. TIREOIDE
135

Capítulo 8

Tireoidites
Verônica Hamann Aita
André Luis Loeser Corazza
Thizá Massaia Londero Gai

1. Introdução:

Tireoidite é um termo genérico que comporta uma série de desordens


clínicas caracterizadas pelo acometimento inflamatório da tireoide. É
um quadro autolimitado e de etiologia variável. Além da disfunção da
glândula, o quadro clínico pode ser composto por dor e sensibilidade lo-
cal (como nas tireoidites subaguda granulomatosa e aguda infecciosa)
ou ausência de sintomas clinicamente evidentes, como nas tireoidites
indolores (por exemplo, linfocítica, pós-parto e fibrosante ou de Riedel).
A tireoidite de Hashimoto, abordada com detalhes no capítulo de
hipotireoidismo (capítulo 4), é classificada como tireoidite linfocítica
crônica e é a causa mais comum de hipotireoidismo permanente em re-
giões suficientes em iodo. Neste capítulo, abordaremos as formas mais
prevalentes de tireoidites agudas e subagudas e seus aspectos clínicos,
bem como o diagnóstico diferencial e tratamento.

2. Epidemiologia:

Em geral, as tireoidites acometem mais frequentemente mulheres


do que homens, e são mais comuns em adultos jovens e de meia-ida-
de (reduzindo sua incidência em idosos). Se considerarmos apenas a
tireoidite subaguda ou de Quervain, as mulheres são três a cinco vezes
mais acometidas. As tireoidites são causas relativamente incomuns de
tireotoxicose e, geralmente, transitórias. A incidência é maior no verão,
o que se relaciona com o pico de incidência de enterovírus. Pode haver
recorrência em 2% dos casos.
Lembre-se: as tireoidites são patologias que atingem predominante-
mente mulheres adultas jovens e de meia idade.

3. Fisiopatologia:

Para entender um pouco mais sobre o assunto, vamos nos atentar


um pouco sobre a fisiopatologia. O quadro inflamatório promovido pe-
UNIDADE 2. TIREOIDE
136

las tireoidites causa lesão nos folículos do parênquima tireoidiano,


havendo extravasamento do coloide folicular por ativação da pro-
teólise da tireoglobulina, liberando grandes quantidades de T3 e T4
para a circulação. Isso ocorre independentemente do eixo hipotála-
mo-hipófise.
Esse é o motivo pelo qual a fase inicial pode cursar com tireotoxico-
se, mesmo que subclínica, pois os hormônios pré-formados são libera-
dos pela glândula danificada. Nas tireoidites que cursam com tireotoxi-
cose, as concentrações de T4 são proporcionalmente mais altas que as
de T3, refletindo a quantidade de hormônio armazenado na tireoide (ao
contrário do que ocorre na Doença de Graves, em que o T3 é geralmente
mais elevado). A tireotoxicose perdura até esgotarem os estoques de ti-
reoglobulina, pois a síntese de novos hormônios cessa em algumas se-
manas, tanto pela destruição dos folículos como pela supressão do TSH
por feedback negativo. Com o tempo, o paciente retorna a um estado
eutireoideo, podendo evoluir para um quadro de hipotireoidismo tran-
sitório por depleção dos estoques e diminuição da capacidade biossin-
tética da glândula. Embora a progressão para hipotireoidismo crônico
seja característica da tireoidite de Hashimoto, todos os tipos de tireoidi-
te são suscetíveis a esse efeito. Cada fase (tireotoxicose, eutireoidismo
e hipotireoidismo) dura normalmente de 2 a 8 semanas. A recuperação
é quase sempre completa.

Você sabe qual a diferença entre hipertireoidismo e tireotoxicose?


Para facilitar o estudo, você pode consultar a diferença que existe entre
hipertireoidismo e tireotoxicose no capítulo de hipertireoidismo (capítulo 5).

Enquanto nas tireoidites de Hashimoto, indolor e pós-parto existe


uma base autoimune, com ativação de células T auxiliares induzindo
as células B a secretar anticorpos tireoidianos, esse mecanismo não
parece desempenhar um papel principal na tireoidite subaguda. Esta
última está fortemente associada ao HLA-B35 presente em muitos
grupos étnicos, ou seja, existe aí um fator genético. Uma das hipóte-
ses é que o distúrbio seja resultante de uma reação pós infecção viral,
em que um antígeno se liga exclusivamente a moléculas HLA-B35 em
macrófagos. O complexo resultante ativa os linfócitos T citotóxicos,
que, então, danificam as células foliculares da tireoide por terem se-
melhança estrutural parcial com o antígeno relacionado à infecção.
Ao contrário da doença autoimune da tireoide, a reação imunológica
não se autoperpetua, portanto, o processo é limitado.
UNIDADE 2. TIREOIDE
137

O mecanismo de destruição autoimune da tireoide provavelmente


envolve tanto a imunidade celular quanto a humoral. Infiltração linfo-
cítica da glândula tireoide, simultaneamente por células B e células T
citotóxicas, é uma característica histológica comum de todas as formas
de tireoidite autoimune.
A fim de facilitar ainda mais o entendimento, vamos fazer uma bre-
ve revisão de sinais e sintomas de cada subtipo de tireoidite, uma vez
que cada uma apresenta suas particularidades.

Tireoidite subaguda granulomatosa: é denominada também de ti-


reoidite de Quervain, dolorosa ou tireoidite de células gigantes. É con-
siderada uma doença reativa pós viral e autolimitada. Geralmente o
paciente tem uma história de quadro gripal ou infecção de via aérea
superior de 2 a 8 semanas antes do início dos sintomas de tireoidite.
Os casos relatados são associados principalmente a Coxsackievirus,
enterovírus, caxumba, sarampo, adenovírus, recentemente a SAR-
S-CoV-2, entre outras infecções virais. Sensação de fadiga, mialgia,
febre baixa e calafrios também são sintomas comuns e surgem como
pródromos. A febre pode chegar a 38-39ºC e classicamente se mani-
festa no final do dia (pico vespertino). É caracterizada principalmente
por dor ou desconforto na região cervical anterior, com bócio difuso
ou tireoide discretamente aumentada, associada ou não a tireotoxico-
se transitória (em 50% dos casos). A dor é referida na região cervical
anterior, garganta ou ouvidos (por irradiação pelas tubas auditivas) e
pode ser muito intensa, fazendo o paciente adotar posição antálgica
de flexão da cabeça. Pode ainda ser exacerbada pela tosse ou pelo mo-
vimento da cabeça.
Aproximadamente 50% dos pacientes apresentam sinais e sintomas
de tireotoxicose, como insônia, nervosismo, intolerância ao calor, sudo-
rese e palpitações, que, de forma leve, podem acompanhar as primeiras
manifestações. No entanto, são a dor e a sensibilidade no pescoço os sin-
tomas mais dominantes. O curso mais comum do quadro é a evolução
para um estágio de eutireoidismo e de hipotireoidismo; em última ins-
tância, acontece restauração da função tireoidiana normal em 1-3 meses.
Ao exame físico, além dos achados típicos de excesso de hormônios
tireoidianos como taquicardia, sudorese e tremores, a tireoide encon-
tra-se leve a moderadamente aumentada em seus dois lobos e bastante
dolorosa, por vezes dificultando a palpação. Na maioria dos pacientes
a função tireoidiana é restaurada em até 6-12 meses, mas em 5% pode
permanecer hipotireoidismo residual. Pode haver também recidiva do
quadro clínico após alguns meses.
UNIDADE 2. TIREOIDE
138

Nos exames laboratoriais, o achado mais característico é a elevação


significativa da velocidade de hemossedimentação (VHS), quase sem-
pre maior que 50 mm/h. A proteína C reativa (PCR) também pode estar
aumentada. Pode haver anemia leve e uma leucocitose transitória dis-
creta, sem desvio. Se o quadro estiver na fase de tireotoxicose, o TSH
estará suprimido, os hormônios tireoidianos e tireoglobulina elevados.
Anti-TPO e antitireoglobulina geralmente são indetectáveis, mas al-
guns pacientes possuem aumento nas concentrações séricas durante o
período de hipotireoidismo transitório, causado pela liberação de antí-
genos tireoidianos durante a fase de inflamação.

O grande diagnóstico diferencial das tireoidites subagudas é feito com


a Doença de Graves, pois em ambas, mesmo com mecanismos diferentes,
há o aumento dos hormônios tireoidianos. A primeira ocorre por extrava-
samento do conteúdo e a segunda por hiperfunção da glândula. Uma forma
de diferenciar uma tireoidite subaguda de uma Doença de Graves é pela
cintilografia por captação de iodo, na qual a Doença de Graves vai apresen-
tar uma captação aumentada de iodo, enquanto a tireoidite subaguda, uma
captação diminuída.

Tireoidite subaguda linfocítica ou indolor: também chamada de


tireoidite silenciosa, é uma condição autoimune em que há destrui-
ção transitória e indolor da tireoide por inflamação linfocítica. Carac-
teriza-se pela instalação de uma tireoidite indolor, manifestando-se
apenas com um período de tireotoxicose, seguido de hipotireoidismo
autolimitado. Pode ser considerada uma variante mais branda da ti-
reoidite crônica autoimune, devido à semelhança histopatológica e
ao fato de que cerca de 20-50% dos casos evoluem mais tarde para
a própria tireoidite de Hashimoto. Pode ser descoberta ao acaso por
exames de triagem em pacientes com a forma subclínica ou, o que
é mais comum, pode apresentar-se com um quadro de tireotoxicose
clinicamente manifesta. O estado de eutireoidismo é alcançado após
2-4 meses em média. A tireoide permanece com tamanho normal ou
levemente aumentada em 50% dos pacientes. Os níveis séricos de tireo-
globulina estão caracteristicamente elevados (como em toda tireoidite,
mas não tanto quanto na tireoidite de Hashimoto).
Os mesmos padrões clínico-laboratoriais podem ocorrer em mulhe-
res até 1 ano após o parto, quando é denominada tireoidite pós-parto.
UNIDADE 2. TIREOIDE
139

A época de aparecimento mais comum é do 2º ao 4º mês pós-parto.


Pode se manifestar com uma crise tireotóxica seguida de hipotireoi-
dismo e eutireoidismo, em um período de 1-4 meses. Contando com os
casos de curso subclínico, a incidência é de 3-16% após as gestações.
Pacientes com doenças autoimunes prévias (como DM1) possuem risco
aumentado. A chance de recidiva no próximo puerpério é alta – em
média 70% – e, aproximadamente, metade dos casos estão relacionados
com hipotireoidismo ou bócio persistente.

As tireoidites subagudas podem ser divididas basicamente em 3 fases:


1ª fase: Tireotoxicose – Em geral, é a fase mais exuberante das tireoi-
dites, na qual os achados são mais característicos pelo extravasamen-
to de T3 e T4.
2ª fase: Hipotireoidismo – Pode ser clínico ou subclínico.
3ª fase: Eutireoidismo – Em geral, a grande maioria das tireoidites
subagudas evoluem para a função tireóidea normal.

Na prática, essas fases não são bem divididas, porém é notável que nas
tireoidites subagudas a fase hipotireoidea é bem limitada, pois logo que a
inflamação da tireoide regride, temos a volta do quadro eutireoideo.

Tireoidite aguda infecciosa: é uma forma incomum de tireoidite,


caracterizada por um quadro de dor aguda, associada a febre alta, ca-
lafrios, e presença de sinais de inflamação e supuração do lobo afeta-
do – geralmente é unilobular. A porta de entrada pode ser uma fístula
tireoglossa, faríngea ou disseminação hematogênica. Os germes mais
comumente isolados são S. aureus, S. pyogenes, S. pneumoniae e H. in-
fluenzae. Também pode ser secundária a tuberculose ou infecção fún-
gica, mas nesses casos está mais relacionada à imunossupressão, com
manifestação aguda e subaguda, além de aumento bilateral da tireoide.
Na presença de outros sinais e sintomas, como piodermite ou proble-
mas respiratórios, é importante correlacionar o quadro clínico subja-
cente a exames complementares. O diagnóstico microbiológico por
coloração de Gram e cultura deve ser realizado por punção aspirativa
guiada pela ultrassonografia.

Tireoidite fibrosante de Riedel: muito rara, esse tipo de tireoidi-


te acomete principalmente mulheres entre a 4ª e 6ª décadas de vida.
UNIDADE 2. TIREOIDE
140

Também é chamada tireoidite esclerosante, tireoidite fibrótica, tireoidite


fibrótica invasiva, tireoidite crônica produtiva ou estroma de Riedel. Sua
causa permanece desconhecida. Pode estar associada a fibrose pulmo-
nar, mediastinal e retroperitoneal das glândulas salivares e das glându-
las lacrimais, colangite esclerosante ou pseudotumor de órbita em 1/3
dos pacientes. É considerada, portanto, pertencente ao grupo de doenças
fibrosas idiopáticas. Em geral, a glândula encontra-se endurecida e in-
filtra os tecidos adjacentes, levando à disfagia e à dispneia. Na maioria
das vezes, não ocorre alteração de função glandular, podendo, em alguns
casos, cursar com hipotireoidismo. Apesar da etiologia ainda incerta, po-
dem ser encontrados anticorpos antitireoidianos em até 67% dos casos.
Em raros casos, pode haver hipoparatireoidismo associado, com hipo-
calcemia decorrente do acometimento fibrótico das paratireoides.

Tireoidite medicamentosa: as drogas amiodarona (antiarrítmico),


interleucina-2 (utilizada no tratamento de leucemias e neoplasias) e
alfainterferona (utilizada no tratamento de hepatite B e C) podem indu-
zir um quadro de tireoidite. A amiodarona, por conter 35% de iodo em
sua molécula, pode causar, também, hipotireoidismo através do efeito
de Wolff-Chaikoff, causando inibição da conversão periférica de T4 em
T3. E, ainda, pode causar hipertireoidismo manifesto em pacientes com
doença de Graves ou nódulo autônomo subclínico.
Além disso, a terapia com iodo radioativo para a doença de Graves
pode levar a uma tireoidite, manifestando-se com dor e exacerbação
da tireotoxicose nas primeiras semanas após a aplicação. A tendência
posterior é a evolução para o hipotireoidismo.

Recentemente, foi descrita a associação de tireoidite dolorosa suba-


guda, tanto pela própria infecção por coronavírus – assim como descri-
ta sua associação com outras infecções virais –, quanto pela aplicação
de vacinas contra SARS-COV-2. Possivelmente isso aconteça pelo me-
canismo de síndrome autoimune inflamatória induzida por adjuvantes
(ASIA, do inglês Autoimmune Syndrome Induced by Adjuvants).

4. Anamnese:

Bom, e na consulta clínica? É importante nos atentarmos, aqui, a


alguns pontos essenciais que devem ser abordados:
Estado geral e distúrbios do humor: sintomas de tireotoxicose, como
insônia, incapacidade de concentração, sensação de nervosismo
ou agitação psicomotora, agressividade, perda ponderal e polifagia
podem estar presentes. O hipotireoidismo pode se manifestar com
UNIDADE 2. TIREOIDE
141

intolerância ao frio, ganho ponderal, câimbras, edema periorbitário


e cansaço excessivo.
Pele e fâneros: no caso de tireotoxicose, o paciente poderá se queixar
de pele quente e úmida, intolerância ao calor, sudorese excessiva,
queda de cabelo, onicólise e fraqueza de unhas.
Sintomas locais: no caso de tireoidite de Quervain, o paciente terá
queixa de dor cervical, podendo estar irradiada para mento, mandí-
bula e orelhas, estando, ou não, associada a disfagia e otalgia, devido
a faringite. Sintomas compressivos levando a dispneia podem levar
à suspeita de tireoidite fibrosante, sendo importante o diagnóstico
diferencial com neoplasias. A queixa de tireoide aumentada e bócio
difuso é comum, e se for unilobular deve-se direcionar a pesquisa
para tireoidite aguda ou infecciosa.
Mudança de hábito intestinal: é característico da fase de tireotoxico-
se a hiperdefecação (aumento do número diário de evacuações); e da
fase de hipofunção tireoidiana, a constipação.
Mudança no ciclo menstrual em mulheres: podendo a tireotoxicose ser
uma causa de amenorreia ou oligomenorreia, e hipotireoidismo cau-
sa de metrorragia, é importante nos atentarmos a esses sinais. Sempre
lembrar de questionar sobre a possibilidade de gestação, pois pode in-
fluenciar no tratamento. Caso se suspeita de tireoidite pós-parto, ques-
tionar o tempo de puerpério e a história prévia em outras gestações.
Presença de outras doenças autoimunes: DM1 (que pode estar asso-
ciada à tireoidite pós-parto), vitiligo, doença de Addison e, principal-
mente, doença celíaca – associados à tireoidite de Hashimoto.
História de infecção viral ou quadro gripal recente: se suspeita de
tireoidite de Quervain.
História de infecção bacteriana prévia: como pneumonia ou pioder-
mite, na suspeita de tireoidite infecciosa.
Medicamentos em uso: principalmente aqueles que predispõem
um quadro de tireoidite, mas, também, aqueles que, conhecidamen-
te, podem alterar o metabolismo dos hormônios tireoidianos, como
estrogênios, metadona (que aumentam TBG, a proteína ligadora de
tiroxina), esteroides androgênicos, glicocorticoides (que reduzem a
TBG), salicilatos, fenitoína, diazepam e heparina (que reduzem a li-
gação dos hormônios a TBG).

5. Exame físico:

O exame físico compõe a segunda parte da consulta clínica e deve


ser feito cuidadosamente.
UNIDADE 2. TIREOIDE
142

Exame da tireoide: realizar palpação cuidadosa, atentando para


maior sensibilidade, o que pode nos ajudar no diagnóstico diferen-
cial dos subtipos de tireoidites. Na presença de dor e sensibilidade,
direciona-se a suspeita para tireoidite de Quervain ou para aguda
infecciosa. Avaliar a presença de bócio e diferenciar se é difuso ou
unilateral, sua consistência, presença de nódulos e características
de malignidade.
Estigmas de tireotoxicose: Pele quente e úmida, tremor fino e sus-
tentado, queda de cabelo, olhar fixo e piscar frequente, taquicardia
sinusal, PA divergente, atrofia e fraqueza muscular.
Sinais e sintomas de oftalmopatia: uma vez que a retração palpe-
bral e o olhar assustado não são exclusivos da doença de Graves, é
importante prestarmos atenção na presença de outros sinais e sin-
tomas, como lacrimejamento, fotofobia, proptose e sensação de areia
nos olhos. Testa-se, também, a motilidade ocular extrínseca e o fe-
chamento incompleto das pálpebras, que podem estar associados ao
acometimento ocular da doença de Graves.

6. Diagnóstico:

O diagnóstico das tireoidites é fundamentalmente clínico. Na maio-


ria dos pacientes com tireoidite subaguda, por exemplo, as manifesta-
ções clínicas são suficientes para estabelecer o diagnóstico. Além disso,
os exames laboratoriais já ajudam a corroborar a hipótese, pois mesmo
sem sintomas de tireotoxicose, o TSH sérico geralmente está suprimido
(normalmente <0,1 mU/L) e as concentrações de T4 e T3 aumentadas,
principalmente nos estágios iniciais da doença. Os níveis de VHS e PCR
também são aumentados.
Em pacientes com dor na tireoide e sintomas leves, as imagens de
radioiodo ou tecnécio podem ser adiadas e a função da tireoide monito-
rada. Se a função tireoidiana normalizar e a dor desaparecer em várias
semanas, o diagnóstico de tireoidite subaguda é confirmado.
Da mesma forma, nos subtipos de tireoidite indolor o diagnóstico
também é baseado nas manifestações clínicas, achados laboratoriais e,
quando necessária, cintilografia da tireoide. Durante a fase tireotóxica,
a tireoidite indolor deve ser diferenciada de outras causas de bócio difu-
so e de aumento de hormônios tireoideanos, como a doença de Graves.

7. Exames complementares:

Vimos que a investigação diagnóstica das tireoidites é guiada pela


clínica dos pacientes, que em geral, é uma clínica típica de tireotoxicose
UNIDADE 2. TIREOIDE
143

(ver capítulo 5) ou uma massa palpável (ver capítulo 6). Dessa forma,
conforme os sinais e sintomas do paciente iremos pensar em um ou
outro tipo de tireoidite, e a partir disso podemos lançar mão de exames
complementares que possam confirmar nossa hipótese diagnóstica
principal.

Exames Laboratoriais
Hemograma: pode ocorrer uma diminuição da hemoglobina e hema-
tócrito e linfocitose. Nos casos de tireoidite supurativa, geralmente
haverá leucocitose com desvio à esquerda.
Função tireoidiana (TSH, T3, T4): na fase aguda, a maioria dos pa-
cientes apresenta evidências bioquímicas de tireotoxicose, ou seja,
altas concentrações séricas de T3 total e T4 livre e baixas de TSH.
Esse quadro pode persistir de 2 a 8 semanas e pode ser seguido por
hipotireoidismo transitório, ocorrendo diminuição de T3 e T4 e au-
mento de TSH. A tireoglobulina pode estar aumentada, e sua princi-
pal utilidade é diferenciação da tireotoxicose factícia.
Anticorpos tireoidianos: o anticorpo antitireoperoxidase (anti-TPO)
geralmente está presente na tireoidite linfocítica subaguda, tireoi-
dite de Hashimoto e doença de Graves. Na tireoidite de Quervain
costuma ser indetectável ou em baixos títulos. Antitireoglobulina
(TRAb) positivo sugere doença de Graves.
Provas inflamatórias: na tireoidite granulomatosa/de Quervain, o
VHS geralmente está alto, acima de 50mm/h, podendo ultrapassar
valores de 100mm/h. A PCR também pode estar elevada.
Outros: os testes de função hepática são frequentemente anormais
durante a fase inicial da tireoidite subaguda de Quervain e, em se-
guida, voltam ao normal à medida que a doença regride. A causa
específica da alteração é desconhecida, mas pode estar relacionada
à infecção viral ou à própria tireotoxicose.

Exames de Imagem
Não há um fluxograma de investigação radiológica das tireoidites.
Por exemplo, quadros em que o paciente se apresenta com tireotoxico-
se, podemos iniciar a investigação radiológica com cintilografia e cap-
tação de iodo, enquanto um paciente com massa palpável, um ultras-
som de tireoide, será melhor indicado. Cada exame de imagem deve ser
solicitado conforme as indicações clínicas do paciente. Assim, em de-
terminada tireoidite, um ou outro dos exames de imagem abaixo pode
ser mais eficiente para elucidar um diagnóstico mais preciso.
UNIDADE 2. TIREOIDE
144

Cintilografia da tireoide: é o exame solicitado principalmente para


diagnóstico diferencial com Doença de Graves e na propedêutica com-
plementar da investigação dos casos de tireotoxicose (ver capítulo 5).
Durante a fase de tireotoxicose da tireoidite, os valores de captação ti-
reoidiana em 24h de iodo-131 ou tecnécio são baixos (< 5%), diferente
dos valores elevados observados no hipertireoidismo de Graves (> 40%).
Se a reavaliação da função tireoidiana, após algumas semanas da cin-
tilografia com baixa captação de radioiodo, revelar uma tendência à
normalização dos níveis de hormônios, o diagnóstico de tireoidite auto-
limitada é reforçado. Lembrando que o exame com iodo-131 ou tecnécio
é contraindicado em mulheres grávidas.

Ultrassonografia: nos casos de tireoidite dolorosa que cursa com ti-


reotoxicose, a ultrassonografia pode ser uma ferramenta indicada em
suspeição de tireoidite infecciosa ou em caso de massa/nódulo palpá-
vel. No caso de tireoidite subaguda, a tireoide apresenta-se normal ou
aumentada, podendo estar difusa ou focalmente hipoecogênica. Nes-
ses casos, a ultrassonografia com Doppler colorido mostra fluxo baixo
ou normal, frequentemente com aumento fugaz da vascularização, que
depois vai diminuindo. Na doença de Graves, por sua vez, geralmente
há um aumento importante do fluxo, assim como nas tireoidites em
fase tireotóxica, dificultando a diferenciação pela ultrassonografia. Pa-
cientes com tireoidite infecciosa aguda geralmente apresentam uma
massa cística ou mista cística-sólida na ultrassonografia que pode re-
presentar um abscesso. Uma punção aspirativa com agulha fina (PAAF)
mostraria neutrófilos e deve ser analisada com colorações e culturas
para bactérias, fungos e parasitas, conforme apropriado.

Histopatológico: a PAAF não costuma fazer parte da avaliação da


tireoidite, mas raramente pode ser utilizada se houver necessidade de
distinguir um quadro de infecção (ou abscesso), hemorragia, câncer de
tireoide, linfoma ou a presença de algum nódulo concomitante ao qua-
dro de tireotoxicose. Na tireoidite fibrosante de Riedel a biópsia confir-
ma o diagnóstico.

8. Tratamento:

O tratamento das tireoidites varia conforme o subtipo e apresenta-


ção clínica. Muitos pacientes não precisam de tratamento sintomático
para fases tireotóxicas e hipotireoideas, pois a disfunção é transitória
e raramente é grave. Mas quando o manejo se faz necessário, devemos
UNIDADE 2. TIREOIDE
145

nos atentar a alguns pontos. Os sintomas de tireotoxicose podem ser


tratados com betabloqueadores, haja vista o uso de tionamidas não
ser preconizado, por não se tratar de uma hiperfunção tireoidiana. Em
casos de dor, podemos fazer uso de anti-inflamatório não-esteroidal
(AINE), deixando os corticoides para casos refratários. Situações espe-
cíficas, como infecções bacterianas e tireoidite de Riedel devem receber
tratamento direcionado, como veremos em seguida.

Tireoidite de Quervain: deve ser direcionado ao alívio da dor e à me-


lhora dos sintomas de hipertireoidismo, se houver. Baseia-se no uso
AINEs ou ácido acetilsalicílico (AAS), se os sintomas forem leves ou
moderados. A ausência de melhora em 24-48h indica o uso de corticos-
teroides (prednisona, na dose de 40 mg/dia), levando a uma melhora
importante do quadro clínico. O uso de corticoterapia nesses casos está
associada a menor duração da doença, porém, não previne disfunção
tireoidiana de início precoce e tardio.

Tireoidite linfocítica subaguda: não há tratamento específico. A con-


duta é tratar os sintomas sistêmicos da tireotoxicose, como palpitações,
ansiedade ou tremor com betabloqueadores (propranolol 40 a 120mg/dia
ou atenolol 25 a 50 mg/dia). O uso das tionamidas (inibidores da peroxi-
dase) não está indicado, pois o problema não é de excesso de síntese de
hormônio tireoidiano, mas, sim, de liberação do hormônio estocado. Da
mesma forma, nos casos de hipotireoidismo transitório, deve ser feita a
reposição hormonal, geralmente, com levotiroxina 50 a 100mcg/dia, por
6 a 8 semanas, monitorando os níveis de TSH. O paciente deve ser acom-
panhado após a recuperação, devido ao risco de evoluir para tireoidite
crônica e hipotireoidismo permanente.

Tireoidite aguda infecciosa: O tratamento deve ser com a drenagem


cirúrgica do abscesso, se houver, e antibioticoterapia guiada pelo ma-
terial colhido da PAAF (bacterioscopia e cultura bacteriana). A doença
pode ser fatal se o diagnóstico e tratamento forem atrasados.

Tireoidite fibrosante de Riedel: O tratamento tem progressão lenta, e


a doença pode interromper o curso ou mesmo regredir sem tratamen-
to. Atualmente tem sido utilizado tamoxifeno (20 mg, via oral, 2x/dia),
mantido por anos. Pacientes com dor ou sintomas compressivos po-
dem tentar também glicocorticoide por curtos períodos. O rituximabe
tem sido empregado nos casos refratários. A tireoidectomia total per-
mite o diagnóstico definitivo e deve ser indicada nos casos de compro-
metimento do esôfago ou da traqueia.
UNIDADE 2. TIREOIDE
146

9. Prognóstico:

A evolução das tireoidites costuma ser benigna, acompanhada de bom


prognóstico e retorno da função tireoidiana entre 2 e 8 semanas de evolu-
ção – exceto a de Riedel. Os testes de função tireoidiana devem ser realiza-
dos para acompanhar a evolução, a resolução do quadro de tireotoxicose,
a detecção de hipotireoidismo e a subsequente normalização da função
tireoidiana. Embora o quadro se resolva na maioria dos casos, 20 a 30% dos
pacientes com tireoidite desenvolvem hipotireoidismo permanente.
Além disso, após a recuperação, é importante informar ao paciente o
risco de tireoidite autoimune crônica, os sintomas que podem levar a sus-
peita, e destacar a importância do acompanhamento periódico. A possibi-
lidade de episódios recorrentes de tireoidite nos anos seguintes também
deve ser informada, pois é comprovado que o risco aumenta se o paciente
teve episódios prévios, inclusive a tireoidite pós-parto.

10. Tabela de resumo:

Tireoidites e Subaguda Linfocítica Medicamentosa Supurativa Fibrosante de


curso clínico indolor Riedel
Causa Infecção viral Autoimune Inflamação Infecção Fibrose
bacteriana/
fúngica
Apresentação Dolorosa, mal- Não dolorosa, Não dolorosa, Dolorosa, Não dolorosa,
estar, mialgia sintomas sintomas inflamação sintomas
sistêmicos sistêmicos local, febre, sistêmicos
ausentes ausentes sepse ausentes
Função Tireotoxicose, Tireotoxicose, Tireotoxicose, Tireotoxicose Pode ter
tireoidiana hipo ou hipo ou hipo ou hipotireoidismo
eutireoidismo eutireoidismo eutireoidismo
Anticorpos Negativos Podem ser Podem ser Positivos Positivos em
antitireoideanos positivos (anti positivos (anti se doença 67%
TPO) TPO) preexistente
Cintilografia Diminuída Diminuída Diminuída Normal com Sem alterações
– captação de áreas frias significativas
iodo 131 em
24h
US de tireoide Aumento Aumento Aumento Áreas de Sem alterações
fugaz da fugaz da fugaz da abscesso significativas
vascularização, vascularização, vascularização,
com posterior com posterior com posterior
diminuição diminuição diminuição
Tratamento AINEs e Sintomáticos Descontinuar Drenagem + Tamoxifeno,
prednisona se medicamento antibiótico EV tireoidectomia
necessário. Beta precursor e total
bloqueadores sintomáticos
se sintomas de
hipertireoidismo
UNIDADE 2. TIREOIDE
147

11. Leitura recomendada:

Nishihara E, Ohye H, Amino N, Takata K, Arishima T, Kudo T, Ito M, Kubota S,


Fukata S, Miyauchi A. Clinical characteristics of 852 patients with subacute
thyroiditis before treatment. Intern Med. 2008;47(8):725-9. doi: 10.2169/
internalmedicine.47.0740. Epub 2008 Apr 16. PMID: 18421188.

Pearce EN, Farwell AP, Braverman LE. Thyroiditis. N Engl J Med. 2003 Jun
26;348(26):2646-55. doi: 10.1056/NEJMra021194. Erratum in: N Engl J Med. 2003
Aug 7;349(6):620. PMID: 12826640.

Zhao N, Wang S, Cui XJ, Huang MS, Wang SW, Li YG, Zhao L, Wan WN, Li YS, Shan
ZY, Teng WP. Two-Years Prospective Follow-Up Study of Subacute Thyroiditis.
Front Endocrinol (Lausanne). 2020 Feb 28;11:47. doi: 10.3389/fendo.2020.00047.
PMID: 32184756; PMCID: PMC7058985.

Christensen J, O’Callaghan K, Sinclair H, Hawke K, Love A, Hajkowicz K, Stewart


AG. Risk factors, Treatment and Outcomes of Subacute Thyroiditis Secondary to
COVID-19: A Systematic Review. Intern Med J. 2021 Jun 17:10.1111/imj.15432. doi:
10.1111/imj.15432. Epub ahead of print. PMID: 34139048; PMCID: PMC8446980.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
148

UNIDADE 3:

HIPÓFISE
UNIDADE 3. HIPÓFISE
149

Capítulo 9

Hiperprolactinemia
Bibiana Bauer Barcellos
Kênia Cordeiro Silva
Tanize Louize Milbradt
Eduardo Bardou Yunes Filho

1. Introdução:

Neste capítulo falaremos sobre a hiperprolactinemia, uma condição


caracterizada pela elevação dos níveis séricos de prolactina, cujas cau-
sas podem ser fisiológicas, farmacológicas ou patológicas. É a alteração
endócrina mais comum do eixo hipotalâmico-hipofisário e predomina
no sexo feminino.
A prolactina é um hormônio sintetizado e secretado pelos lacto-
trofos, células localizadas na porção lateral da adeno-hipófise. Ela é
secretada de forma pulsátil e obedece a um ritmo circadiano, estan-
do aumentada durante a noite na dependência do sono. Sua liberação
encontra-se predominantemente sob inibição tônica pela dopamina
proveniente do hipotálamo, que age nos receptores D2 nos lactotrofos.
Dessa forma, qualquer fator que cause alguma redução nessa inibi-
ção pela dopamina, como medicamentos, interrupção da circulação
da haste hipofisária ou lesão hipotalâmica, pode levar à hiperprolacti-
nemia. A sucção mamária, através de um reflexo neuroendócrino que
diminui a liberação de dopamina, consiste no principal estímulo para
secreção de prolactina. Além disso, existem outros fatores de libera-
ção desse hormônio, como a terapia de reposição hormonal com es-
trogênio, a ocitocina, o peptídeo intestinal vasoativo, os antagonistas
dos receptores de dopamina e a neurotensina.
Os efeitos fisiológicos da prolactina são principalmente o estímulo
ao crescimento e desenvolvimento da glândula mamária, síntese e ma-
nutenção da secreção de leite, além da inibição da liberação de hormô-
nio liberador de gonadotrofinas (GnRH).
A hiperprolactinemia pode ser assintomática ou manifestar-se atra-
vés da galactorreia, hipogonadismo, infertilidade, perda da libido, ciclos
oligoanovulatórios em mulheres, disfunção erétil em homens, além da
osteoporose, que aparece como complicação relacionada ao hipogona-
dismo hipogonadotrófico.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
150

2. Epidemiologia:

A prevalência da hiperprolactinemia na população geral é de 0,4%.


Todavia, é mais elevada em pessoas com sintomas relacionados à hi-
perprolactinemia: 10 a 25% em mulheres com amenorreia, 25% em mu-
lheres com galactorreia, 16 a 30% em mulheres inférteis, 70% em mulhe-
res com amenorreia e galactorreia e 3 a 10% nos homens com disfunção
erétil e/ou ejaculação precoce. A incidência anual em mulheres entre
25 e 34 anos é de 23,9 a cada 100.000 por ano.
Os prolactinomas (tumores benignos da hipófise) são a causa mais
comum de hiperprolactinemia e correspondem a 56,2% dos casos, po-
dendo ocorrer em todas as faixas etárias, porém sendo mais prevalen-
tes em mulheres em idade fértil. Os microprolactinomas ocorrem em
uma relação entre mulheres e homens de 20:1. A segunda causa mais
prevalente é a farmacológica, que corresponde a 14,6% dos casos de hi-
perprolactinemia.

3. Etiopatogenia:

Antes de seguirmos, vamos lembrar alguns conceitos importantes e


que você precisa saber para entender este capítulo e os próximos dessa
sessão: a anatomia e fisiologia da hipófise. A hipófise se localiza na base
do crânio, ligada ao hipotálamo, e é responsável por coordenar como
as demais glândulas endócrinas irão se comportar. É dividida em duas
partes: adeno-hipófise (hipófise anterior) e neuro-hipófise (hipófise pos-
terior). A adeno-hipófise corresponde a aproximadamente 80% do volu-
me da glândula e é responsável pela produção e secreção dos hormô-
nios ACTH, FSH, GH, LH, TSH e PRL. Já a neuro-hipófise é responsável
pela secreção de ADH e ocitocina (produzidos pelo hipotálamo).
No contexto da hiperprolactinemia, as causas podem ser fisioló-
gicas, farmacológicas ou patológicas. Também pode se dar devido à
prevalência de macroprolactina (prolactina de alto peso molecular) no
soro, ao invés da forma monomérica - mais comum, caracterizando-se
como macroprolactinemia. Esta condição geralmente não cursa com
os sintomas típicos de hiperprolactinemia, nem evidência de um tumor
hipofisário. A ausência dos sintomas provavelmente se deve à menor
biodisponibilidade da prolactina na forma monomérica. Todavia, a pre-
sença de sintomas não exclui o diagnóstico.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
151

Causas fisiológicas:

As principais são a gestação e a amamentação. Durante a gestação,


a hiperplasia dos lactotrofos estimulada pelo estrogênio leva a uma ele-
vação progressiva de prolactina em cerca de 10 vezes até o parto. Em
mulheres que amamentam, os níveis de prolactina ainda são elevados,
com persistência de amenorreia e sem ocorrência de ovulação, confor-
me apresentado na Figura 1.
Durante a realização de exercício, estresse, coito, sono e manipula-
ção da mama também ocorre elevação sérica da prolactina devido à
liberação de um ou mais fatores liberadores de prolactina.

HIPOTÁLAMO

GnRH

Feedback negativo

Prolactina

FSH LH

HIPÓFISE

Útero

Inibição
Estimulação

AMENORREIA E SUPRESSÃO DA OVULAÇÃO

Figura 1: Representação esquemática dos efeitos da hiperprolactinemia causada


pela gestação.
Elaborada pelo autor.

Causas farmacológicas:

Alguns medicamentos causam hiperprolactinemia ao antagonizar


os receptores D2 de dopamina na adeno-hipófise. Os medicamentos
mais frequentemente relacionados a esta condição são os antipsicóti-
cos e alguns antidepressivos. A maior afinidade ocorre com a risperi-
dona, com desenvolvimento de hiperprolactinemia em 50 a 100% dos
pacientes tratados com esse antipsicótico atípico. Em usuários de an-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
152

tipsicóticos típicos, como fenotiazinas e butirofenonas, a prevalência é


de 40 a 90%.
O uso de verapamil induz hiperprolactinemia em 8,5% dos pacientes,
possivelmente pelo bloqueio da dopamina do hipotálamo. Opiáceos e
cocaína podem causar hiperprolactinemia leve ao agirem nos recepto-
res μ. Além disso, medicações como metoclopramida, fenitoína, anta-
gonistas do receptor H2, ansiolíticos, outros anti-hipertensivos e dro-
gas ilícitas estão relacionadas a esta condição.
Mulheres em uso de contraceptivos orais contendo estrogênio ou
em terapia de reposição hormonal podem ter um pequeno aumento nos
níveis de prolactina, já que níveis aumentados de estrogênio estimu-
lam o crescimento dos lactotrofos e aumentam a expressão do gene da
prolactina. Porém, não é uma situação clinicamente significativa, nem
demanda tratamento.

Causas patológicas:

A principal causa de hiperprolactinemia patológica é a ocorrência


de prolactinomas (micro ou macroprolactinomas), que são os adeno-
mas hipofisários funcionantes mais comuns e responsáveis pelo au-
mento da produção de prolactina.
Saiba que existem também adenomas hipofisários mistos que pro-
duzem excessivamente prolactina e outros tipos de hormônios, como
hormônio do crescimento (GH), hormônio tireoestimulante (TSH) ou hor-
mônio adrenocorticotrófico (ACTH). Além desses, adenomas hipofisá-
rios não funcionantes (pseudoprolactinomas) e outros tipos de tumores
como craniofaringiomas, meningiomas, disgerminomas, hamartomas,
gliomas e metástases podem exercer efeito compressivo sobre a haste
hipotálamo-hipofisária e comprometer o aporte de dopamina do hipo-
tálamo para a hipófise – reduzindo assim a inibição sobre a produção de
prolactina.
Doenças infiltrativas hipotalâmicas (como sarcoidose, tuberculose
e histiocitose), aneurisma e radioterapia craniana também podem cau-
sar produção deficiente de dopamina pelo hipotálamo ou comprometer
a haste hipotálamo-hipofisária, resultando igualmente em aumento da
prolactina.
Pacientes com hipotireoidismo primário podem apresentar aumen-
to sérico da prolactina mediado pela secreção aumentada de hormônio
liberador de tireotrofina (TRH), assim como pela diminuição da sensi-
bilidade do lactotrofo à ação supressora da dopamina.
Ocasionalmente, portadores da doença de Addison (insuficiência
adrenal primária) podem ter hiperprolactinemia, já que os glicocorti-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
153

coides suprimem a expressão do gene da prolactina e sua liberação.


A condição é reversível quando ocorre reposição dos glicocorticoides.
A insuficiência renal também pode ser causa da hiperprolactinemia,
seja secundária à diminuição da depuração de prolactina, seja pelo uso
de medicações que alteram a síntese e liberação de dopamina. Além dis-
so, a uremia também pode afetar a ação da dopamina na regulação da
liberação de prolactina. Em alguns casos de cirrose, o paciente desen-
volve hiperprolactinemia leve, porém o mecanismo ainda é desconheci-
do. Outras condições sistêmicas também estão associadas à elevação de
prolactina, tais como doenças autoimunes (lúpus eritematoso sistêmico,
artrite reumatoide, doença celíaca, esclerose sistêmica) e epilepsia.
Há situações em que a causa da hiperprolactinemia é neurogênica de-
vido à ativação de vias aferentes por lesões irritativas na parede torácica,
como herpes zoster, queimaduras, trauma, toracotomia ou por patologias
do cordão medular. Desta forma, ocorre elevação reflexa da prolactina.
Quando nenhuma causa para hiperprolactinemia é identificada, ela
é caracterizada como idiopática. Possivelmente sejam casos de prolacti-
nomas tão pequenos que não conseguem ser detectados nos exames de
imagem.

4. Anamnese:

Agora que analisamos as causas de hiperprolactinemia, fica fácil de


compreender a importância de uma anamnese detalhada como o pri-
meiro passo para avaliação dessa condição, permitindo excluir ou não
causas fisiológicas, farmacológicas ou patológicas. Dentro do histórico
de uso de substâncias que possam elevar a prolactina, deve-se investigar
medicações e até mesmo drogas ilícitas, como maconha ou cocaína.
É necessário verificar sinais de alerta para tumores intracranianos,
tais como alterações visuais, cefaleia e distúrbios neurológicos, bem
como questionar sobre distúrbios sexuais, alterações menstruais e ame-
norreia.
A investigação da história médica pregressa do paciente deve consi-
derar a presença de doenças sistêmicas como hipotireoidismo primário,
doença de Addison, insuficiência renal, cirrose, lúpus eritematoso sis-
têmico e outras doenças autoimunes. Também é importante avaliar a
existência de condições que causem irritação na parede torácica.

5. Exame físico:

Durante o exame físico, é importante a avaliação das mamas, se há


presença de galactorreia (lactação em homens ou mulheres que não es-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
154

tão amamentando), bócio, hirsutismo (aumento da quantidade de pelos


no corpo da mulher em locais comuns ao homem), redução do campo
visual por confrontação e existência de lesões traumáticas ou irritati-
vas na parede torácica (como por exemplo: queimaduras, herpes-zoster,
entre outros).
Lembre-se que todo exame físico deve ser feito de forma criteriosa
e repetido sempre que houver dúvidas ou quando for necessária nova
avaliação.

6. Exames complementares:

Dosagem da prolactina sérica:

É o exame necessário para diagnóstico clínico, sendo o primeiro


exame a ser solicitado quando houver suspeita de hiperprolactinemia.
Sugere-se que a hiperprolactinemia leve a moderada, que é até 5 vezes
o limite superior do valor de referência (em geral, mulheres até 30 ng/
mL e homens até 20 ng/mL), deva ser confirmada com uma segunda
dosagem e, idealmente, a medida deve ser feita pela manhã. Não há
evidências de que a medida da prolactina necessite de jejum, o paciente
apenas deve estar em repouso, no mínimo, 20 minutos antes do exame,
sem ter feito qualquer atividade física ou de cunho estressante.
É importante lembrar que em alguns pacientes com doenças sistê-
micas, como hipotireoidismo, cirrose ou em uso de determinados me-
dicamentos, os níveis de prolactina geralmente estão elevados, contudo
não costumam ultrapassar valores acima de 100 ng/mL. Todavia, cer-
tos medicamentos e patologias, como o uso de risperidona e a insufi-
ciência renal, podem levar a valores de 200-300 ng/mL. Nestes casos,
deve-se avaliar a possibilidade de suspender a medicação para realiza-
ção de novo exame e confirmação da etiologia farmacológica. Caso seja
constatada causa medicamentosa com hiperprolactinemia persistente
e sintomática, deve ser discutida a suspensão ou substituição da medi-
cação de forma multidisciplinar, com o psiquiatra ou médico prescritor,
visando o melhor tratamento possível, de forma individualizada para
cada paciente.
Os níveis séricos de prolactina também podem nos sugerir, na sus-
peita de adenoma, se este é micro, pseudo ou macroprolactinoma.

Microprolactinomas: diâmetro < 10 mm, geralmente têm valores


de prolactina entre 100 e 200 ng/mL, mas podem apresentar nível <
100 ng/mL.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
155

Pseudoprolactinomas: tumores selares (macroadenomas) não pro-


dutores de prolactina, mas que a elevam por compressão da has-
te hipofisária. Os níveis do hormônio geralmente são < 150 ng/mL.
O macroadenoma causa compressão/ efeito mecânico e diminui o
aporte dopaminérgico nos neurônios que passam por aquela haste, o
que, consequentemente, aumenta a prolactina. Atente-se, então, que
o mecanismo de hiperprolactinemia dos pseudoprolactinomas não
é por produção excessiva do hormônio.
Macroprolactinoma: diâmetro > 10 mm e prolactina sérica, em geral,
superior a 250 ng/mL. Recomenda-se descartar relação com outros
hormônios (ACTH, GH, FSH e LH), conforme suspeita clínica e indi-
cação específica pelo próprio macroadenoma hipofisário, visto que
a existência de apenas um adenoma hipofisário ou de uma massa
na área da sela túrcica pode causar hipo/hipersecreção de outros
hormônios.

Devemos ter em mente, ainda, algumas situações relacionadas com


a dosagem de prolactina que podem dificultar a investigação em pa-
cientes com suspeita de hiperprolactinemia, funcionando como arma-
dilhas no diagnóstico, como o Efeito Gancho e a macroprolactina.
O Efeito Gancho (hook effect) deve ser suspeitado em indivíduos
com macroadenomas hipofisários (adenomas volumosos) que apresen-
tem valores não muito elevados de prolactina (em geral inferiores a 200
ng/mL). Ele caracteriza-se pela leitura de valores falsamente baixos de
prolactina, na presença de um macroprolactinoma que normalmente
secretaria grande quantidade de hormônio. Mas por que isso acontece,
você pode se perguntar? Na avaliação dos níveis séricos de prolactina,
emprega-se imunoensaios contendo dois sítios, sejam eles imunorra-
diométricos (IRMA), por quimioluminescência ou enzima-imunoen-
saios. Neles são utilizados dois anticorpos que formam “complexos
sanduíches” com a prolactina. Todavia, quando há níveis muito eleva-
dos de prolactina, após a ligação dela ao anticorpo de captura, o exces-
so de prolactina impede a ligação do segundo anticorpo, o sinalizador,
não havendo a formação dos referidos “complexos sanduíches”, como
representado abaixo na Figura 2. O fenômeno pode ser demonstrado
por meio da dosagem da prolactina diluída em soro a 1:100, quando será
observado um aumento drástico do valor desse hormônio. Na prática,
nos macroprolactinomas em que ocorre o efeito gancho, após diluição
da amostra serão encontrados valores extremamente altos de prolacti-
na sérica. Já em pacientes sem o efeito gancho, a amostra diluída não
sofrerá elevação. Por exemplo, um paciente com sintomas como galac-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
156

torreia e hipogonadismo com diagnóstico sugestivo de prolactinoma,


mostrando na ressonância magnética um adenoma de 2 cm, contudo
apresentando prolactina de 30 ng/mL, não condiz com os valores es-
perados. Assim, é necessário suspeitar que o valor real está mascarado
e realizar nova dosagem de prolactina em amostra diluída, que pode
mostrar valores mais altos, como 800 ng/mL.
Uma vez excluída a possibilidade de valores falsamente baixos da
prolactina devido ao efeito gancho, a detecção de níveis altos do hor-
mônio, mas, geralmente, < 150 ng/mL, em um paciente com um macro-
adenoma hipofisário é, portanto, altamente indicativa de um pseudo-
prolactinoma.

Anticorpo

Prolactina

Sinalizador

Complexo Sanduíche Efeito Gancho

Figura 2: Esquema ilustrativo do Efeito Gancho.


Elaborada pelo autor.

A macroprolactina é uma molécula grande de prolactina, observa-


da nos pacientes assintomáticos e com níveis anormais de prolactina
(hiperprolactinemia), mas geralmente inferiores a 100 ng/mL, de forma
persistente.
O padrão ouro para quantificação de macroprolactina é a Croma-
tografia Líquida em Coluna de Gel Filtração, contudo, é uma técnica
demorada e de alto custo, devendo ser reservada para casos em que
não haja outra forma de quantificá-la. O método de rastreamento mais
empregado, por sua simplicidade, boa reprodutibilidade e análoga ao
método de referência, é a Precipitação com Polietilenoglicol (PEG), que
se baseia na insolubilidade das imunoglobulinas após exposição a con-
centrações definidas de polietilenoglicol, como observado na Figura 3.
Essa técnica busca calcular a recuperação da prolactina no sobrena-
dante com base no valor inicial da amostra. Entenda assim: a adição do
polímero PEG precipita (afunda) as moléculas de macroprolactina e, en-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
157

tão, o sobrenadante (o que fica na superfície) é quantificado e representa


a prolactina monomérica/ não macroprolactina. Recuperações maiores
do que 65% indicam predomínio da forma monomérica/ não macropro-
lactina e menores do que 30%, predomínio de macroprolactina. Valores
intermediários são considerados inconclusivos e devem ser submeti-
dos à cromatografia para uma definição mais acurada.

PEG

Macroprolactina
Prolactina Monomérica
Prolactina Dimérica

Figura 3: Ilustração do modelo de Precipitação com Polietilenoglicol (PEG), que se


baseia na insolubilidade das imunoglobulinas, no diagnóstico da macroprolactina.
Elaborada pelo autor.

Outros exames laboratoriais:

O exame de β-hCG está indicado para descartar gravidez em casos


de amenorreia. Quando a prolactina não é tão elevada, como <100 ng/
mL, a paciente pode ter irregularidade menstrual e outras alterações,
mas não necessariamente terá amenorreia. Em geral, esta ocorre com
prolactinemia acima de 100 ng/mL, mas não é regra.
Dosagens de TSH, T4 livre, creatinina, albumina, enzimas hepáticas,
exame qualitativo de urina (EQU) e urocultura devem ser realizadas para
excluir doenças sistêmicas que secundariamente elevam a prolactina.
A dosagem de fator de crescimento (IGF-1) está indicada em casos de
adenoma hipofisário, mesmo na ausência de manifestações típicas da
acromegalia, pois pode ocorrer elevação de GH concomitante à hiper-
prolactinemia, devido à compressão da haste hipofisária ou cossecre-
ção destes hormônios.

Exames de imagem:

O seguimento investigativo, quando não se tem um diagnóstico con-


clusivo, é solicitar Ressonância Magnética (RM) da sela túrcica ou To-
mografia Computadorizada (mais incomum). Esses exames permitem
a visualização de prolactinomas ou de outros tumores dessa região que
UNIDADE 3. HIPÓFISE
158

poderiam estar a acarretar a hiperprolactinemia. O exame de imagem


é indicado principalmente após a exclusão de doenças sistêmicas en-
dócrinas e não-endócrinas, bem como hiperprolactinemia induzida
por drogas (maior que 100 ng/mL, e maior que 300 ng/mL naqueles
que tomam risperidona).
A visualização na imagem é bem característica e apresenta uma
estrutura hipodensa/hipointensa em T1 (perde o brilho, fica mais escu-
ro). É importante atentar para a possibilidade da lesão revelada se tra-
tar de um incidentaloma hipofisário - lesão na topografia da hipófise,
como adenomas hipofisários, cistos da bolsa de Rathke e craniofarin-
giomas, encontradas ao acaso em um exame de imagem previamente
solicitado em razão de sinais e sintomas que não são característicos
das lesões nessa região. A lesão que é observada na imagem pode ser
um achado acidental, por exemplo, em pacientes cuja hiperprolactine-
mia resulte do uso de medicamentos ou de doenças sistêmicas, bem
como naqueles com macroprolactinemia. Relatos da literatura enfati-
zam que a detecção de um adenoma hipofisário em um paciente com
macroprolactinemia pode levar ao diagnóstico equivocado de um pro-
lactinoma, bem como a tratamentos desnecessários e errôneos com
agonistas dopaminérgicos e cirurgia hipofisária. Com isso, a RM tem
grandes indicações de ser solicitada, principalmente quando há ma-
nifestações oftalmológicas e neurológicas, que claramente indicam a
presença de um tumor na região selar.

7. Diagnóstico:

A hiperprolactinemia pode ser assintomática ou uma causa poten-


cial de diversas disfunções fisiológicas, como perda da libido, ciclos
oligoanovulatórios, galactorreia e infertilidade em mulheres, bem
como hipogonadismo, disfunção erétil em homens, além da osteopo-
rose, que aparece como complicação relacionada ao hipogonadismo
hipogonadotrófico. Portanto, a prolactina sérica deve ser medida em
um paciente que apresente qualquer um desses sintomas. Mas é im-
portante deixar claro que a prolactina sérica é um exame complemen-
tar à anamnese e ao exame físico, não sendo solicitada rotineiramente
no ambulatório ou sem indicação na prática clínica.
Nesse intuito, faz-se necessário observar os sinais clínicos que
norteiam o diagnóstico de hiperprolactinemia. O primeiro sinal dessa
patologia nas mulheres na menacme são os distúrbios no ciclo mens-
trual. Entretanto, esse indicativo pode estar mascarado nas pacien-
tes que utilizam anticoncepcional hormonal, sendo notado quando o
UNIDADE 3. HIPÓFISE
159

contraceptivo é suspenso: a chamada amenorreia pós-contracepção.


Já na pós-menopausa, o sinal pode ser o desaparecimento dos foga-
chos, como resultado da diminuição das gonadotrofinas. A galactor-
reia pode estar evidente em aproximadamente 30 a 80% dos casos,
porém muitas mulheres apresentam galactorreia com níveis séricos
normais de prolactina, a chamada galactorreia idiopática.
Em relação aos homens, as principais manifestações clínicas es-
tão relacionadas ao hipogonadismo, como redução da libido, inferti-
lidade, rarefação da pilificação corporal, disfunção erétil, redução da
massa muscular, sendo a galactorreia um sintoma raro.
A diminuição da densidade mineral óssea pode ocorrer nos dois
sexos em decorrência do hipogonadismo prolongado. Não muito co-
mum, as crianças e os adolescentes apresentam retardo ou interrup-
ção da puberdade.
Tumores da região da sela túrcica associados à hiperprolactine-
mia podem cursar com cefaleia, predominantemente periorbitária e
bitemporal, e distúrbios visuais devido à compressão do quiasma óp-
tico. Também é possível ocorrer alteração de outros hormônios devido
à compressão glandular, como distúrbios sexuais de redução da libido
e dispareunia por deficiência de estrogênio.
Já em relação a hiperprolactinemia idiopática, seu diagnóstico é
evidenciado apenas quando as prováveis causas de hiperprolactine-
mia foram excluídas, inclusive após realização de métodos de ima-
gem e após exclusão da macroprolactinemia.

8. Tratamento:

O principal objetivo da terapia para prolactinomas é a restauração


ou conquista de eugonadismo por meio da normalização da prolac-
tinemia e controle do crescimento tumoral. Como já conversamos,
alterações no eixo hipotálamo-hipofisário, que acarretam a inibição
do antagonismo exercido pela dopamina sobre os lactotrofos, fazem
com que a prolactina se torne aumentada (Figura 4). Pensemos assim:
quando há redução do estímulo inibitório, não há nada mais impe-
dindo a prolactina de se elevar. Dessa maneira, por serem estímulos
opostos, ao promovermos medidas de aumento da dopamina, como os
agonistas dopaminérgicos, promovemos ao mesmo tempo a diminui-
ção da prolactina.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
160

DOPAMINA HIPOTÁLAMO
Medicação
Adenoma

PROLACTINA SECREÇÃO DE LEITE

Figura 4: Imagem ilustrativa da diminuição de dopamina devido ao uso


de medicamentos antagonistas dopaminérgicos, como antipsicóticos, por
interrupção da circulação da haste hipofisária ou por lesão hipotalâmica
(adenomas), que podem levar à hiperprolactinemia.
Elaborada pelo autor.

Tratamento não medicamentoso:

Na hiperprolactinemia secundária, deve-se tratar a causa básica do


distúrbio. Nos casos de hiperprolactinemia sintomática induzida por
medicação, deve-se optar por suspender ou substituir a medicação pri-
meiramente. Se não for possível, deve ser solicitada RM para excluir a
presença de tumor hipofisário. Nos casos de hiperprolactinemia medi-
camentosa assintomática, não há indicação de tratamento.
Nos pacientes com microprolactinomas assintomáticos, o manejo
pode ser expectante, em virtude de sua evolução natural apresentar
crescimento tumoral incomum (5% dos casos) e, em muitos pacientes,
os níveis de prolactina se normalizarem espontaneamente.

Tratament o medicamentoso:

Os Agonistas Dopaminérgicos (AD) são o tratamento de primeira li-


nha, representados pela cabergolina, bromocriptina, pergolida e quina-
golida. Os ADs agem nos receptores D2 hipofisários, inibindo a síntese
de prolactina, sendo a cabergolina e a bromocriptina os mais usados. a
diferença entre os dois agonistas se dá pela cabergolina ter meia-vida
mais longa e poder ser administrada semanalmente, ter menos efeitos
colaterais e ser mais eficiente na redução dos níveis de prolactina e no
volume tumoral, sendo, portanto, a primeira escolha. A bromocriptina
tem como efeitos adversos mais frequentes tonturas, hipotensão pos-
tural, náuseas e vômito. Menos frequentemente pode haver congestão
nasal, vasoespasmo digital, depressão e reação psicótica. O uso de AD
deve ser feito com cuidado pela possibilidade de exacerbação dos sinto-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
161

mas em pacientes que previamente já usam antipsicóticos.

Bromocriptina: é recomendado iniciar com 2,5 mg, por via oral, de-
pois do jantar ou a hora de dormir durante uma semana; então au-
mentar para 2,5 mg duas vezes por dia (depois do café da manhã e
depois do jantar ou a hora de dormir); e incrementos de dose de 2,5
mg podem ser realizados a cada 3 a 7 dias até chegar à dose deseja-
da, que varia de 5 a 15 mg/dia (na maioria das vezes não se ultrapas-
sam 7,5 mg/dia).
Cabergolina: inicialmente é indicado utilizar 0,25 mg, por via oral,
duas vezes por semana ou 0,5 mg uma vez por semana; e incremen-
tos de 0,25 mg a 1,0 mg duas vezes por semana podem ser realizados,
com intervalo de incremento de no mínimo 4 semanas conforme
necessidade, com dose máxima de 2 mg/semana.
Os benefícios esperados com a medicação são a redução ou norma-
lização dos níveis séricos da prolactina, redução do tumor da hipófise e
alívio dos sintomas associados, ciclos menstruais regulares, restaura-
ção do desejo sexual e fertilidade, além da reversão ou estabilização da
perda de massa óssea.

A resistência aos ADs é de aproximadamente 20% nos micropro-


lactinomas e 30% nos macroprolactinomas. Neste caso, a conduta é o
aumento da dose do AD até a máxima tolerada e após, avaliar a neces-
sidade de troca do agonista, com acompanhamento de 1-3 meses com
avaliação sérica da prolactina caso esteja alterada.
Outro fator importante é quando não for possível normalizar a pro-
lactina e o hipogonadismo persistir mesmo com tratamento. Neste
caso, a reposição hormonal com estrogênio e testosterona pode ser
uma alternativa, a fim de prevenir os agravos causados pela patologia.
Para mulheres com hiperprolactinemia cujo único sintoma for ir-
regularidade menstrual, o uso de anticoncepcional hormonal pode ser
uma opção.
Nos casos de hiperprolactinemia sintomática associada com hipo-
gonadismo, infertilidade, galactorreia que cause distúrbio e macropro-
lactinomas com ou sem sintomas compressivos, o tratamento clínico
está indicado, reservando os tratamentos cirúrgico e radioterápico para
casos selecionados.
Por fim, existe a possibilidade de apoplexia hipofisária (sangramen-
to agudo na hipófise potencialmente grave) com o início do tratamen-
to, sendo o quadro sugerido pela presença de cefaleia intensa de início
abrupto, porém, esta situação é pouco frequente.
Tratamento cirúrgico/radioterapia:
UNIDADE 3. HIPÓFISE
162

A cirurgia transesfenoidal é um tipo de cirurgia na qual um endos-


cópio e/ou outros instrumentos cirúrgicos são inseridos na base do
cérebro através do nariz e do osso esfenoide na cavidade do seio es-
fenoidal. Ela permite o acesso à sela túrcica e sua proximidade, com
remoção de tumores da hipófise. É reservada para os casos de intole-
rância/resistência aos ADs ou na persistência de tumor compressivo,
apesar das doses máximas de AD, bem como sinais graves de compres-
são ou apoplexia do macroadenoma. Pode ser uma alternativa também
nos pacientes dependentes de antipsicótico, uma vez que o uso de AD
pode precipitar crise psicótica.
A radioterapia é indicada para macroprolactinomas com contraindi-
cação ou não responsivos ao AD ou ao tratamento cirúrgico, bem como
para casos de prolactinomas malignos. A normalização da prolactina
sérica ocorre em aproximadamente um terço dos pacientes tratados
com radiação. Mesmo que a radioterapia possa controlar o crescimento
do tumor, ela pode nunca restaurar os níveis de prolactina ao normal.
Essa terapia está associada a efeitos colaterais, incluindo hipopituita-
rismo e, raramente, lesão de nervo craniano.

Gravidez:

O tratamento com AD aumenta a possibilidade de ovulação em 90% das


mulheres com infertilidade secundária à hiperprolactinemia. Na possibi-
lidade de gestação, a bromocriptina deve ser a medicação recomendada
devido à maior experiência publicada. Em pacientes que não toleram bro-
mocriptina, a cabergolina pode ser administrada, sendo orientada a anti-
concepção mecânica até a persistência de três ciclos regulares.
Faz-se importante enfatizar que a gestação deve ser planejada e a
medicação descontinuada no momento do diagnóstico, sendo reini-
ciada caso haja sinais de crescimento tumoral com comprometimento
neurológico. Assim, para gestante com prolactinoma, deve-se realizar
campimetria e RM sem gadolíneo. A dosagem de prolactina não é feita
durante esse período, mas deve ser realizada 3 meses após o parto ou
suspensão da amamentação, já que a própria gestação altera os padrões
séricos da prolactina.
A cirurgia pode ser considerada no segundo trimestre em pacien-
tes que não respondem à reintrodução da medicação. Caso os sintomas
compressivos iniciem no terceiro trimestre, a cirurgia deve ser poster-
gada para depois do parto.
Mulheres com macroadenomas com comprometimento do quias-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
163

ma óptico devem ter a gestação postergada para após redução do ade-


noma com AD ou cirurgia. A continuação da bromocriptina durante
toda a gestação é uma alternativa. Cerca de 30% das mulheres entram
em remissão da hiperprolactinemia após a gestação.

Seguimento clínico:

O seguimento clínico deve sempre ser individualizado, em virtu-


de de cada pessoa ser metabolicamente e estruturalmente distinta.
Sugere-se que o exame de imagem seja repetido em 6 a 12 meses em
caso de macroprolactinomas ou sempre que ocorrer aumento da pro-
lactina, independentemente do correto tratamento. Exames laborato-
riais são sugeridos a cada 3 meses, auxiliando na avaliação da eficácia
medicamentosa. Campimetria e outros exames da adeno-hipófise são
indicados apenas nos casos de macroprolactinoma.
Pacientes em uso de antagonistas dopaminérgicos devem manter
acompanhamento contínuo com o psiquiatra, para avaliar a melhor
forma de uso da medicação.
A dose do AD tem indicação de ser reduzida gradualmente até a
suspensão em pacientes cujos valores de prolactina se mantiveram
normais por aproximadamente dois anos e em situações em que hou-
ver significativa redução (50%) ou desaparecimento do adenoma no
exame de imagem. A possibilidade de recorrência é maior no primeiro
ano após a suspensão e tem associação positiva com volume do adeno-
ma e nível de prolactina sérica ao diagnóstico. A literatura recomenda
a dosagem trimestral de prolactina no primeiro ano após a retirada do
AD e, então, anualmente.
A manutenção do tratamento deve ser considerada em caso de baixa
massa óssea e/ou fratura de vértebras, uma vez que a hiperprolactine-
mia pode interferir na mineralização óssea pelo aumento da reabsorção
óssea e da redução da proliferação de osteoblastos, independentemente
do hipogonadismo secundário.

Tempo de tratamento:

Sugere-se o tempo mínimo de 2 anos de tratamento com AD, o que


representa um intervalo aceitável para regularizar o quadro clínico do
paciente. Dessa forma, se um paciente tiver níveis normais de prolacti-
na após a terapia com ADs por pelo menos 2 anos e o volume do tumor
for drasticamente reduzido, é possível iniciar redução gradual e des-
continuação dessas drogas. Contudo, deve-se tratar cada paciente de
UNIDADE 3. HIPÓFISE
164

forma individualizada, com o tempo necessário de acordo com a evo-


lução clínica.

9. Prognóstico:

A hiperprolactinemia é uma patologia tratável e com possibilidade


de remissão. Não há como prever se a descontinuação do medicamento
será bem-sucedida, mas estudos indicam que os agonistas da dopami-
na podem ser retirados com segurança em pacientes com normaliza-
ção de longo prazo dos níveis de prolactina (por mais de 2 anos, porém
existem estudos que sugerem acima de 3 anos) e nenhuma evidência
de tumor na ressonância magnética. Todo paciente com essa patologia
precisa ser acompanhado cuidadosamente para detectar a recorrência
de hiperprolactinemia e aumento do tumor para que o tratamento pos-
sa ser reiniciado imediatamente.
A identificação precoce de fatores de risco e da doença em seu está-
gio inicial, bem como um encaminhamento ágil e eficaz para o atendi-
mento especializado são essenciais para um melhor resultado terapêu-
tico e prognóstico dos casos. Portanto, com o tratamento adequado, o
paciente consegue manter os níveis de prolactinemia estáveis, inclusi-
ve podendo haver regressão ou até mesmo desaparecimento do adeno-
ma, não necessitando mais de tratamento contínuo.

10. Tabela de resumo:

O que é Aumento dos níveis séricos de prolactina acima dos valores de referência (em
hiperprolactinemia? geral, mulheres até 30 ng/mL e homens até 20 ng/mL).
Quadro clínico Oligomenorreia ou amenorreia, galactorreia, diminuição da libido, dispareunia,
disfunção erétil, infertilidade, redução da densidade óssea. Em caso de tumores
intracranianos, cefaleia periorbitária e bitemporal, distúrbios visuais e neurológicos.
Etiologias Fisiológicas: gestação, amamentação, estresse, exercício, sono, relação sexual.
Medicamentosas: antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos, anti-hipertensivos,
opioides, procinéticos, narcóticos.
Patológicas: doenças/tumores hipotalâmicos e hipofisários, doenças
endocrinológicas, doenças autoimunes, insuficiência renal, cirrose, lesões
irritativas torácicas e lesões do cordão medular.
Macroprolactinemia.
Idiopática (diagnóstico de exclusão).
UNIDADE 3. HIPÓFISE
165

Diagnóstico Exame físico: galactorreia (pode estar presente em 30 a 80% dos casos), bócio,
hirsutismo/hiperandrogenismo nas mulheres, redução do campo visual por
confrontação e existência de lesões traumáticas ou irritativas na parede torácica.
Exames laboratoriais: a prolactina deve ser confirmada em uma segunda
dosagem. Idealmente, a medida deve ser feita pela manhã, após repouso de 20
minutos, sem necessidade de jejum. Cuidado com o efeito gancho, que pode
auxiliar no diagnóstico diferencial de pseudoprolactinoma e deve-se, além
disso, descartar macroprolactinemia. Solicitar β-hCG, TSH, T4 livre, creatinina,
albumina, EQU, urocultura, enzimas hepáticas para excluir doenças sistêmicas
que secundariamente elevam a prolactina.
Exames de imagem: RM de sela túrcica para investigação de adenoma hipofisário.
Tratamento Hiperprolactinemia de causa secundária: tratamento específico de causa base
do distúrbio.
Hiperprolactinemia de causa medicamentosa: suspender ou substituir medicação.
Hiperprolactinemia sintomática com ausência de adenoma de hipófise:
tentativa com terapia hormonal com estrogênio e testosterona.
Hiperprolactinemia assintomática com ausência de adenoma de hipófise:
acompanhamento clínico, a cada 3 meses dosar prolactina e anualmente RM/
TC de sela túrcica.
Paciente sintomático com presença de micro/macroadenoma:
1. Iniciar tratamento com Agonista Dopaminérgico (atenção: substituir ou
suspender antipsicóticos) como cabergolina (menos efeitos colaterais e meia
vida longa) ou bromocriptina (mais usado em gestante);
2. Se não houver melhora com ADs, como intolerância ou resistência e
persistência de tumor compressivo, apesar das doses máximas de ADs, bem
como sinais graves de compressão ou apoplexia do macroadenoma, optar por
cirurgia transesfenoidal;
3. Sem melhora com nenhuma das opções anteriores, ou por contraindicação
cirúrgica, iniciar radioterapia.
Se valores permanecerem normais/diminuição de 50% ou desaparecimento de
adenoma, iniciar redução medicamentosa até interrupção.

11. Leitura recomendada:

CAPOZZI, A. et al. Hyperprolactinemia: pathophysiology and therapeutic


approach. Gynecological Endocrinology, v. 31, n. 7, p. 506–510, 3 jul. 2015.

GORDON, C. M. et al. Functional Hypothalamic Amenorrhea: An Endocrine


Society Clinical Practice Guideline. The Journal of Clinical Endocrinology &
Metabolism, v. 102, n. 5, p. 1413–1439, 1 maio 2017.

MELMED, S. Pituitary-Tumor Endocrinopathies. New England Journal of


Medicine, v. 382, n. 10, p. 937–950, 5 mar. 2020.

MOLITCH, M. E. Diagnosis and Treatment of Pituitary Adenomas: A Review.


JAMA, v. 317, n. 5, p. 516, 7 fev. 2017.

VILAR, L. et al. Pitfalls in the Diagnostic Evaluation of Hyperprolactinemia.


Neuroendocrinology, v. 109, n. 1, p. 7–19, 2019.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
166

Capítulo 10

Acromegalia e Gigantismo
Leonardo Rodrigues
Murilo Daminelli Favero
Rafael Vaz Machry

1. Introdução:

Acromegalia e gigantismo são distúrbios causados pelo excesso de


secreção do hormônio do crescimento (GH). O gigantismo é um termo
inespecífico que denota crescimento excessivo em um paciente mais
jovem, o qual será afetado antes da fusão das placas de crescimento
epifisárias. Nesse cenário, níveis elevados de GH sérico e fator de cres-
cimento semelhante à insulina 1 (IGF-1) causam crescimento linear ex-
cessivo e rápido e, se não controlados, estatura adulta extremamente
alta, como o caso de Robert Wadlow, que atingiu a altura de 2,72 metros,
sendo o detentor da maior altura da história. Já a acromegalia ocorre
quando a hipersecreção de GH acontece após a fusão das epífises ós-
seas, levando ao crescimento das extremidades e fácies característica.
Você deve lembrar do Shrek, né? Pois bem, o personagem foi inspira-
do no ator francês Maurice Tillet, o qual desenvolveu a acromegalia e,
por ser muito querido na sua trajetória, serviu como inspiração para o
filme, tanto na aparência física quanto na personalidade. Visto isso, a
acromegalia é uma doença sistêmica crônica, que tem idade média no
diagnóstico entre 40 e 45 anos.
Em mais de 95% dos casos, ambas as doenças são causadas por um
adenoma hipofisário secretor de GH, que é um tumor de crescimento
geralmente lento e benigno, com a secreção de GH ocorrendo de forma
pulsátil, mas com a frequência e a amplitude dos pulsos de GH aumen-
tadas. Ainda, em aproximadamente 30% dos tumores, existe a secreção
associada de prolactina.
Como as duas doenças têm pontos em comum, mas com particula-
ridades distintas, para fim da sua melhor compreensão, iremos abordar
os pontos em comum entre essas duas patologias e dentro dos tópicos
apresentados, quando necessário, vamos pontuar algumas individua-
lidades importantes de cada uma. Ainda, ao final do capítulo, deixare-
mos um resumo com o que for mais importante saber para que, mesmo
em um dia preguiçoso, você consiga dominar o conteúdo. Vamos lá!
UNIDADE 3. HIPÓFISE
167

Figura 1: Julius Koch: Famoso artista do final do século XIX


portador de gigantismo.
Fonte: BECKERS, A. et al. The causes and consequences of pituitary gigantism. Nature Reviews
Endocrinology, v. 14, n. 12, p. 705–720, 2018.

2. Epidemiologia:

Acromegalia:
A prevalência global de acromegalia foi de 28 a 137 casos por milhão
de habitantes. Entretanto, a possibilidade de subnotificação não pode
ser deixada de lado. A idade média de diagnóstico é entre 40-50 anos e
não há diferença de gênero. Já o atraso até o diagnóstico parece estar
diminuindo. Hoje, a média de tempo até o diagnóstico é de 5 anos, ao
passo que em estudos mais antigos, mostrava-se tempo de até 15 anos.

Gigantismo:
Apesar de haver poucos estudos epidemiológicos, estima-se que a
prevalência mundial de casos gira na casa de 70 casos por milhão, sen-
do, portanto, equivalente à média de prevalência de casos de acrome-
galia. Algumas evidências têm mais apoio da literatura, como a predo-
minância no sexo masculino e a falta de etiologia genética identificável
em aproximadamente 50 por cento dos casos. O gigantismo já foi obser-
vado desde os primeiros dois a três meses de vida.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
168

3. Fisiopatologia:

Podemos imaginar que quando chega essa parte do capítulo você


respira fundo e fica sem muita paciência, mas iremos tentar resumir ao
máximo os mecanismos ligados à acromegalia e ao gigantismo. Antes,
no entanto, vale relembrar um pouco de como é a fisiologia normal da
secreção de GH e IGF-1.

Fisiologia da secreção de GH e IGF-1:


A secreção e a produção de GH são reguladas pelo hormônio libera-
dor de GH hipotalâmico (GNRH), pela grelina e pela somatostatina (esta
inibe a produção de GH). O controle de feedback da secreção de GH é
regulado pela hipófise, pelo hipotálamo, e pelo próprio GH, que faz fee-
dback negativo em sua liberação como também na liberação do IGF-1.
Além disso, é importante saber que a produção de GH exibe um ritmo
circadiano, com aproximadamente dois terços da secreção diária total
de GH sendo produzida à noite (responsável por até 70% da secreção di-
ária do hormônio), independente do início do sono, mas favorecida por
este. Com o avançar da idade, já na terceira década de vida, a secreção
de GH começa a diminuir para cerca de 50%. Alguns fatores são impor-
tantes na estimulação da secreção do hormônio, como hipoglicemia,
exercício e estresse físico.
Está bem, entendi até aqui, mas o que esse hormônio faz ao longo do
dia, além do “crescimento”? Bom, durante o jejum, o GH promove a lipó-
lise e a oxidação de ácidos graxos, além de inibir a oxidação da glicose
e estimular a gliconeogênese hepática. Já no período pós-prandial, ele
estimula a síntese proteica. Outro parceiro do GH é o IGF-1, também de-
nominado Somatomedina C. Esta correspondência próxima ao longo
da vida torna o nível de IGF-1 um valioso marcador sérico do nível de
GH em ambos os sexos. Além disso, o GH e o IGF-1 atuam de forma
independente e dependente para induzir características de hipersoma-
totropismo.

Acromegalia:
Mais de 95% dos pacientes com acromegalia apresentam um quadro
esporádico de adenoma secretor de GH, o qual a regulação positiva de
STAT3 (transdutor de sinal e ativador da transcrição 3) resulta em hi-
persecreção de GH. Raramente, a acromegalia pode surgir de um tumor
familiar ou ser devido a produção ectópica de GH ou GHRH.
Ainda, os adenomas são classificados de acordo com a morfologia
celular, expressão de produto gênico, extensão de granularidade intra-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
169

celular de GH e invasão de tecidos vizinhos. Adenomas do tipo 1 são


tumores menores e densamente granulados que ocorrem predominan-
temente em pacientes mais velhos e estão associados com resultado
favorável do tratamento. Os adenomas do tipo 2 têm fenótipos inter-
mediários entre o tipo 1 e tipo 3. Por contraste ao tipo 1, os adenomas do
tipo 3 são esparsamente granulados, maiores, mais invasivos, ocorrem
predominantemente em jovens e geralmente são mais resistentes ao
tratamento do que adenomas tipo 1 e 2. A patogênese de tumores se-
cretores de GH esporádico permanece desconhecida, embora mostrem
anormalidades em alguns aspectos: no fator de crescimento ou na ex-
pressão do receptor do fator de crescimento, na desregulação do ciclo
celular e transdução de sinal, na expressão alterada de genes do ciclo
celular e perda de expressão do gene supressor.

Gigantismo:
Deve ser considerado em crianças com mais de 3 desvios acima da
altura média normal para a idade ou mais de 2 desvios padrão sobre
sua altura parental média ajustada. Mas como eu vou saber quando a
criança está fora da sua curva de crescimento? Confere o capítulo de
puberdade precoce em que esta explicação está bem detalhada, vale a
pena! Da mesma forma que a acromegalia, o gigantismo pode ser cau-
sado por um tumor hipofisário secretor de GH ou hiperplasia associada
a várias síndromes específicas. O adenoma, em 57% das vezes, é espo-
rádico, ao passo que o restante é ligado a alguma alteração genética.
Ainda, citamos alguns dos principais distúrbios genéticos que estão li-
gados com o risco de tumor de hipófise secretor de GH: Neoplasia Endó-
crina Múltipla tipo 1, Síndrome do Acrogigantismo ligado ao X (X-LAG),
Complexo Carney, Síndrome McCune–Albright e Adenomas hipofisá-
rios familiares isolados (FIPA).

4. Anamnese:

Acromegalia:
As modificações decorrentes da acromegalia ocorrem de forma len-
ta, contribuindo para o atraso de 5 a 10 anos entre o surgimento dos pri-
meiros sinais e sintomas e o diagnóstico da doença. As manifestações
podem ser decorrentes do excesso de GH/IGF-1 ou secundárias ao efeito
de massa exercido pelo tumor. Muitos pacientes são diagnosticados por
acaso, quando procuram atendimento médico por cefaleia, distúrbios
visuais, alterações odontológicas, distúrbios menstruais, artralgias ou
apneia do sono. Por exemplo, aumento no sapato, anel e chapéu que
começam a ficar apertados são situações comumente relatadas.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
170

Um adenoma secretor de GH também pode fazer com que prolactina


seja secretada concomitantemente, seja pelo potencial do GH de se com-
portar como agonista da prolactina ou seja pela perda da ação inibitória
da dopamina sobre a prolactina no eixo hipotálamo-hipófise. Ainda, si-
nais e sintomas de amenorreia ou impotência, além de disfunção tireoi-
diana e insuficiência adrenal devem ser indagados ao paciente.

Gigantismo:
As características físicas podem se assemelhar com as vistas
em pacientes com acromegalia, como mãos e pés grandes, aspereza
das características faciais com protuberância frontal e prognatismo
(projeção da mandíbula), cefaleia e suor excessivo. Os adenomas se-
cretores de GH em adolescentes estão frequentemente associados a
amenorreia com ou sem galactorreia em meninas e sintomas de com-
pressão tumoral em meninos. Características faciais dismórficas e/ou
problemas neurocognitivos podem sugerir uma causa sindrômica ou
cromossômica de estatura alta (por exemplo, Sotos, Marshall-Smith,
Klinefelter ou síndrome XYY). Distúrbios coexistentes, como neurofi-
bromatose ou síndrome de McCune-Albright, também devem ser con-
siderados.

5. Exame físico:

A revisão de fotos antigas costuma ajudar na observação do pro-


gresso de mudanças físicas sutis. Alguns aspectos, como o engros-
samento da voz ocorre em associação com hipertrofia laríngea e dos
seios paranasais aumentados. Também, pode ser visto cifose dorsal.
A Síndrome do túnel do carpo é um achado recorrente em pacientes
com acromegalia, já que há o aumento neural e edema do tecido do
pulso. Para melhor facilitar o foco da sua atenção, listamos as carac-
terísticas mais vistas na clínica:
Aumento de extremidades, características faciais ásperas e au-
mento da espessura da pele.
Cefaleia, macroglossia, hiperidrose, artralgias, ronco, cansaço e
síndrome do túnel do carpo.

Essas citadas são as mais vistas, mas existem outros sinais que
paciente com acromegalia apresenta frequentemente, como mãos em
forma de espada, visceromegalia (tireoide, coração, fígado e baço), de-
feitos visuais, aumento de lábios e de nariz, prognatismo, separação
dos dentes, pele oleosa, Skin tags (manchas pigmentadas na pele e
UNIDADE 3. HIPÓFISE
171

papiloma cutâneo), rugas faciais e espessamento dos pelos do corpo.


A doença cardíaca sintomática está presente em cerca de 20% dos pa-
cientes no diagnóstico. Veja a Figura 2.
Particularmente no gigantismo, os pacientes podem não ter um
quadro tão característico, já que estamos falando de pacientes com
menos tempo de exposição aos níveis suprafisiológicos dos hormô-
nios. Porém, pode-se encontrar ainda várias das características vistas
acima na descrição da acromegalia, como alteração dentária, aumen-
to de pés e mãos.

Efeito tumoral local


A lterações na aparência Cefaleia
Proeminência da região frontale da testa Deficiência visual
Prognatismo Hiperprolactinemia
Macroglossia Hipopituitarismo
Hiperhidrose
Alargamento de nariz e lábios
hipertrofia de tecidos moles
Suprecrescimento acral

Complicações cardiovasculares
Hipetensão
Hipertrofia biventricular
Cardiomiopatia
Insuficiência cardíaca congestiva
Arritmia
Doença Valvar
Complicações endócrinas e metabólicas
Tolerância à glicose reduzida
DM2
Complicações respiratórias
Resistência insulínica
Obstrução de via aérea superior
Dislipidemia
Ronco excessivo
Nódulos de tireoide
Apneia do sono
Disfunção ventilatória
Complicações gastrointestinais
Pólipos colônicos
Complicações do sistema musculoesquelético
Dolicomegacólon
Fraturas vertebrais
Artropatia
Desordens reprodutivas Parestesia
Distúrbios menstruais Aumento da espessura da cartilagem articular
Disfunção erétil Síndrome do túnel do carpo

Figura 2: Possíveis mudanças físicas e comorbidades em paciente


com acromegalia.
Adaptado de: COLAO, A. et al. Acromegaly. Nature Reviews Disease Primers, v. 5, n. 1, p. 1–17, 2019.

6. Exames complementares:

GH basal: como a secreção de GH é pulsátil e estimulada por uma sé-


rie de fatores, há grande variabilidade da concentração sérica ao longo
do dia. Ainda, existe grande sobreposição de valores entre os acromegá-
licos e pessoas sem a patologia, sendo necessários outros parâmetros
além da medida de GH basal para o diagnóstico de acromegalia e de
gigantismo.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
172

IGF-1: os níveis séricos de IGF-1 não apresentam secreção pulsátil


nem variação circadiana e, por isso, é o marcador de escolha para ava-
liar a secreção de GH das últimas 24 horas. O IGF-1 está elevado em
praticamente todos os indivíduos com acromegalia ou gigantismo e
fornece boa distinção entre indivíduos sem patologia. Contudo, os re-
sultados devem ser interpretados de acordo com a idade e o sexo de
cada paciente.

Teste de tolerância oral à glicose (TOTG): um teste de supressão de


GH é o padrão ouro para fazer um diagnóstico definitivo e deve ser rea-
lizado se os testes de rastreamento, leia-se dosagem de IGF-1, sugerirem
excesso de GH. Em indivíduos saudáveis, existe supressão dos níveis de
GH após sobrecarga oral de glicose, possivelmente pela ação estimula-
dora da glicose sobre a secreção de somatostatina. O teste é realizado
dosando o GH basal (antes da ingestão de glicose) e 120 minutos após a
administração de 75 g de glicose via oral. A resposta ao teste é conside-
rada diagnóstica de acromegalia quando o menor valor de GH (NADIR)
for > 0,4 ng/mL após a ingestão de glicose.

Função hipofisária: todos os pacientes com acromegalia ou gigan-


tismo, confirmado laboratorialmente, devem realizar também dosagem
de prolactina e avaliação do restante da função hipofisária. Níveis mui-
to elevados da prolactina (acima de 200 ng/mL) demonstram sua se-
creção concomitante, e níveis intermediários são sugestivos de hiper-
prolactinemia funcional decorrente da interferência de macroadenoma
(maior ou igual que 10 mm) hipofisário no sistema dopaminérgico tú-
bero-infundibular. A avaliação da função hipofisária é fundamental no
sentido de detectar graus variados de hipopituitarismo que necessitam
de reposição e manejo específico.

Exames de imagem: após a confirmação laboratorial de excesso de


GH, é necessário localizar anatomicamente o tumor, e a ressonância
magnética com contraste (RM) de sela túrcica é o exame de escolha.
Vide a Figura 3. Tamanho tumoral, proximidade ao quiasma óptico, ex-
pansão e invasão extrasselar pelo tumor são importantes para determi-
nar o tratamento. Na suspeita de tumor ectópico, o Octreoscan (cintilo-
grafia marcada com octreotide) ou o PET-Scan podem ser necessários,
junto com exames de imagens do tórax e abdome.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
173

Figura 3: RM de sela túrcica com contraste evidenciando adenoma hipofisário.


Fonte: COLAO, A. et al. Acromegaly. Nature Reviews Disease Primers, v. 5, n. 1, p. 1–17, 2019.

Particularidades do gigantismo:
Dependendo dos achados clínicos, a avaliação inicial pode incluir a de-
terminação da idade óssea, testes de função tireoidiana, concentrações de
hormônios esteróides sexuais, cariótipo e estudos relacionados ao GH.

7. Diagnóstico:

Então, o paciente veio com sinais e sintomas clínicos até você e, ob-
servando o paciente, você suspeitou de acromegalia. Logo, você lembrou
que precisamos avaliar o nível de GH e IGF-1, como mencionado anterior-
mente. Você vai pedir quais exames? Na prática, vamos iniciar pedindo
IGF-1. Se a concentração sérica de IGF-1 for elevada, partimos para o teste
que confirmará o diagnóstico: TOTG para medir a secreção do GH sérico. A
supressão inadequada de GH após uma carga de glicose confirma o diag-
nóstico de acromegalia. Ao realizar o teste, medimos o GH sérico antes e
duas horas após a administração da glicose e o critério para o diagnós-
tico de acromegalia é uma concentração de GH superior a 1 ng/mL após
essa segunda avaliação. Lembre-se, esse caminho base até o diagnóstico é
igual no caso de gigantismo. Uma pequena particularidade do gigantismo
é que, nas crianças em surtos de crescimento puberal, as respostas do GH
à glicose podem ser paradoxais, e as concentrações de IGF-1 costumam ser
fisiologicamente elevadas. Assim, o diagnóstico requer evidências claras
de ressonância magnética para uma lesão hipofisária.

Diagnóstico diferencial:
A fonte de secreção excessiva de GH na acromegalia ou no gigan-
tismo pode não ser necessariamente de origem hipofisária. Secreção
ectópica de GHRH em tumores carcinoides, tumores de células das ilho-
tas pancreáticas, carcinoma de células pequenas do pulmão, adenomas
UNIDADE 3. HIPÓFISE
174

adrenais ou feocromocitoma são alguns exemplos que podem produzir


GH ectópico. O excesso de ação do GHRH pode resultar em hiperplasia ou
aumento da glândula pituitária.

8. Tratamento:

O objetivo do tratamento é controlar o tamanho do adenoma hipofi-


sário, a secreção de GH e IGF1, e prevenir sequelas clínicas ao longo dos
anos, mantendo a função normal da hipófise. Os níveis séricos de GH
devem ser suprimidos a, pelo menos, 1 μg/L, após uma carga oral de gli-
cose, e os níveis séricos de IGF-1, de mesma idade e gênero, devem ser
normalizados. Ademais, a decisão de tratar e a intervenção terapêutica
utilizada é baseada em um ambiente multidisciplinar.

Tratamento cirúrgico:
A opção cirúrgica é o tratamento de primeira linha e a ressecção tran-
sesfenoidal é o técnica de escolha para microadenomas, macroadeno-
mas restritos à sela túrcica ou macroadenoma que comprimem o ner-
vo óptico, sempre com o objetivo de preservação da função hipofisária.
Ainda, a cirurgia pode ser considerada em macroadenomas não inteira-
mente ressecáveis, com a finalidade de reduzir o volume tumoral para
aumentar a eficácia do tratamento farmacológico. Hipopituitarismo se
desenvolve em aproximadamente 20% dos pacientes, refletindo danos ao
tecido hipofisário normal circundante. As complicações graves como al-
teração visual e meningite são raras, e outras complicações, como sinu-
site, fístula liquórica e diabetes insípido permanente ocorrem em torno
de 5% dos casos. No pós-operatório, o nível de GH medido por meio de
TOTG nas primeiras 24 horas após a cirurgia é um significativo preditor
de resultados. Após a cirurgia, sugerimos medir o IGF-1 em 12 semanas,
além de avaliação de ressonância de sela túrcica no mesmo momento.

Tratamento medicamentoso:
Recomenda-se terapia farmacológica em paciente com doença per-
sistente após cirurgia ou em paciente com doença significativa (ou seja,
com sinais e sintomas moderados a graves de excesso de GH e sem efei-
tos de massa local). A terapia inicial deve ser com Análogos de Somatos-
tatina (SRL).

Análogos da somatostatina:
Dos cinco subtipos de receptor de somatostatina, SST2 e SST5 são
expressos preferencialmente em superfícies de células somatotróficas
e é por esses receptores que os medicamentos irão mediar a supressão
UNIDADE 3. HIPÓFISE
175

da secreção de GH. O Octreotide se liga predominantemente ao SST2


e inibe a secreção de GH com uma potência 45 vezes maior do que a
somatostatina natural. Então, a responsividade do GH se correlaciona
diretamente com a abundância de receptores SST2 no adenoma hipofi-
sário. Essa classe pode ser usada com segurança em crianças com gi-
gantismo e em pacientes com acromegalia por longos períodos sozinha
ou em combinação com análogos da dopamina. Pasireotide, ligante do
receptor de somatostatina de segunda geração, apresenta maior afini-
dade para SST5, o que faz dela uma alternativa de mesma classe quan-
do o tumor não responde ao tratamento com Octreotide, por exemplo.
O principal efeito colateral de todos os análogos da somatostatina é um
risco aumentado de cálculos biliares após o uso prolongado.

Agonistas dopaminérgicos:
Servem, principalmente, como adjuvantes dos análogos da somatos-
tatina, quando a hiperprolactinemia simultânea está presente. A eficá-
cia do agonista da dopamina parece ser independente das concentra-
ções de prolactina. O representante máximo da classe é a Cabergolina.

Antagonistas do receptor de GH:


Particularmente úteis para o tratamento de doenças refratárias. Tem
sido usado como substituto ou em combinação com análogos da soma-
tostatina. Pegvisomant é o principal nome da classe. O mecanismo de
ação é o seguinte: o sinal de GH pós-receptor não é eliciado se o receptor
estiver ligado ao Pegvisomant, que bloqueia a geração subsequente de
IGF 1. Assim, a droga bloqueia a ação periférica do GH e não tem como
alvo o tumor pituitário.

Radioterapia:
É sempre bom lembrar que a radioterapia deve ser evitada, princi-
palmente em crianças, sendo usada, sempre, como última opção. As
duas modalidades de terapia de radiação comumente utilizadas são a
irradiação externa (convencional) e a irradiação estereotáxica de alta
dose única. Ambas as técnicas podem servir como terapia adjuvante à
cirurgia ou a opção farmacológica.

Particularidades do Gigantismo:
No gigantismo, a agressividade da doença hipofisária é visível, pois
no momento do diagnóstico, mais de 75% dos pacientes têm extensão
extrasselar e cerca de 55% dos tumores já são invasivos. Ainda, tanto para
os adultos como para os pacientes pediátricos o tratamento tem o mes-
mo princípio, já que não há estudos robustos sobre terapêutica para estes.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
176

Tratamento para alta estatura:


Um dos objetivos no tratamento do gigantismo deve ser a preven-
ção do crescimento linear excessivo posterior ao diagnóstico. Quando
este for o caso, a aceleração da fusão epifisária pode ser alcançada com
esteroides sexuais exógenos, para que o crescimento cesse e as comor-
bidades das altas estaturas sejam minimizadas. Ainda, grandes soma-
totropinomas que comumente ocorrem em pacientes com gigantismo
hipofisário leva ao hipopituitarismo no diagnóstico em 25% dos pacien-
tes e a falta de hormônios sexuais pode levar ao atraso no fechamento
das epífises e aumento da altura final.

Intervenção ortopédica:
A intervenção cirúrgica ortopédica, para desgastar as placas epifi-
sárias no nível do fêmur e da tíbia (epifisiodese), tem sido usada para
limitar a ganho de altura. Claro, é um meio que não serve para todos os
casos e é reservado para os pós-púberes, pois a terapia hormonal tem
baixa eficácia nessa faixa etária. Essa técnica, pode reduzir a estatura
em até 7 cm nos meninos e 5,9 cm nas meninas.

Suspeita clínica de Gigantismo ou Acromegalia?

Elevado? Solicitar IGF-1 Normal?

Solicitar TOTG
GH não para avaliar
suprimido? supressão Acromegalia
de GH GH suprimido? ou Gigantismo
estão
excluídos!
Diagnóstico Solicitar RM
de de sela túrcica
Acromegalia para localizar
ou Gigantismo provável
confirmado Adenoma Solicitar TC
de Tórax e
Massa tumoral Massa tumoral abdomên
encontrada? não encontrada? +
dosagem de
GHRH

Avaliar opção Gigantismo ou


cirúrgica Retirada
Encontrou massa Acromegalia
Resposta + Análogo da Doença de tumor
tumoral? extrapituitários
insuficiente? Somatostatina controlada cirurgicamente
confirmado

Antagonista de GH+
Análogo da
Somatostatina +
radioterapia

Figura 4: Fluxograma do manejo de pacientes com suspeita de acromegalia


ou gigantismo.
Elaborado pelo autor.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
177

Acompanhamento:
Os pacientes devem ser acompanhados até que o controle bioquí-
mico seja alcançado. Depois disso, a avaliação hormonal é realizada
semestralmente. Naqueles com remissão vista laboratorialmente e em
quem não há nenhum tecido tumoral residual, a ressonância magné-
tica deve ser repetida a cada 1 a 2 anos. O acompanhamento inclui o
tratamento de novos supercrescimentos de tecidos moles, compressão
de nervos e comprometimento odontológico, além de avaliações reu-
matológicas, cardíaca e metabólica.
Em resumo, os objetivos do tratamento da acromegalia são:
Reduzir os níveis séricos de GH basal < 1 ng/mL ou nadir GH < 0,4 ng/mL
durante o TOTG e normalizar os níveis de IGF-1 para sexo e idade
Reduzir o volume tumoral e preservar a função hipofisária.

São critérios laboratoriais de inatividade da acromegalia: GH basal <


1 ng/mL ou nadir GH < 0,4 ng/mL no TOTG e IGF-1 normal.

9. Prognóstico:

O prognóstico depende da fase em que é feito o diagnóstico e da res-


posta dos níveis hormonais ao tratamento. No geral, a taxa de morta-
lidade de pacientes com acromegalia ativa é 1,7 vezes maior do que a
população em geral. Entretanto, com a normalização dos níveis de GH e
IGF-1, a sobrevida pode se igualar à da população de mesma faixa etária.
Os determinantes de mortalidade mais significativos são os níveis
de GH superiores a 2,5 μg/L, níveis elevados de IGF 1, a presença de hi-
pertensão coexistente, doença cardíaca, idade avançada, insuficiência
adrenal dependente de ACTH e Diabetes Mellitus. As doenças cardio-
vasculares são a principal causa de morte, seguida por doenças respi-
ratórias e doença cerebrovascular.
No que tange às comorbidades, a hipertensão arterial está presente
em cerca de metade de todos os pacientes e até metade dos pacientes
pode apresentar sintomas articulares graves (o suficiente para limitar
as atividades diárias). Ainda, o risco de pólipos adenomatosos e câncer
colorretal pode aumentar cerca de 2,5 vezes e 4,4 vezes, respectivamen-
te. Esse parece ser particularmente preocupante, necessitando a reali-
zação de colonoscopia de triagem, em todos os pacientes, no momento
do diagnóstico. A disfunção tireoidiana pode estar associada a bócio
nodular tóxico ou não tóxico ou a doença de Graves, especialmente por
causa de o IGF1 ser o principal determinante do crescimento das célu-
las da tireoide. Embora a maioria das comorbidades que afetam tecidos
UNIDADE 3. HIPÓFISE
178

moles sejam melhoradas uma vez que o controle bioquímico foi alcan-
çado, medidas de baixa qualidade de vida, incluindo ansiedade e de-
pressão, podem persistir. Hipertensão arterial, estreitamento do espaço
articular e novas fraturas vertebrais não parecem melhorar apesar do
GH e IGF-1 atingirem níveis dentro da normalidade.
E quanto ao prognóstico e comorbidades do gigantismo? Pois bem,
tudo isso dependerá, também, da idade e da fase em que é feito o diag-
nóstico, se conseguirmos controlar a altura final do paciente e se o pa-
ciente não teve muito tempo de exposição a níveis excessivos de GH
e IGF-1. Caso não tenhamos conseguido controlar a altura final do pa-
ciente, ele terá maior risco com artropatias e doenças musculoesquelé-
ticas, como hipercifose, discopatia e osteoartrose em idade precoce de
coluna vertebral. Já se ele teve muito tempo de exposição ao excesso
hormonal, o paciente terá os mesmo fatores de risco que pacientes com
acromegalia, como maior risco para doenças cardiovasculares, para
diabetes melittus tipo 2, além de risco aumentado de novas neoplasias.

10. Tabela de resumo:

GIGANTISMO ACROMEGALIA
Acontece antes da fusão das epífises ósseas. Acontece após a fusão das epífises ósseas.
Deve ser considerado em crianças com mais de 3 A idade média de diagnóstico é entre 40 e 50 anos
desvios acima da altura média normal para a idade e não há diferença de gênero.
ou mais de 2 desvios padrão sobre sua altura
parental média ajustada.
O adenoma, em 57% das vezes, é esporádico, ao Mais de 95% dos pacientes com acromegalia
passo que o restante é ligado a alguma alteração apresentam um quadro esporádico de adenoma
genética: Neoplasia Endócrina Múltipla tipo 1, secretor de GH, o qual a regulação positiva
Síndrome do Acrogigantismo ligado ao X (X-LAG), de STAT3 (transdutor de sinal e ativador da
Complexo Carney, Síndrome McCune–Albright e transcrição 3) resulta em hipersecreção de GH.
adenomas hipofisários familiares isolados (FIPA).
Em mais de 95% dos casos, ambas as doenças são As características mais vistas na clínica são:
causadas por um adenoma hipofisário secretor de aumento de extremidades, características faciais
GH, que é um tumor de crescimento geralmente ásperas, aumento da espessura da pele, cefaleia,
lento e benigno, com a secreção de GH ocorrendo de macroglossia, hiperidrose, artralgias, ronco, cansaço
forma pulsátil, ainda, em aproximadamente 30% dos e síndrome do túnel do carpo.
tumores, existe a secreção associada de prolactina.
Há grande variabilidade da concentração sérica de GH ao longo do dia, sendo necessários outros
parâmetros além da medida de GH basal para o diagnóstico de acromegalia e de gigantismo.
IGF-1: é o marcador de escolha para avaliar a secreção de GH das últimas 24 horas. Fornece boa
distinção entre indivíduos sem patologia. Contudo, os resultados devem ser interpretados de acordo
com a idade e o sexo de cada paciente.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
179

O teste de supressão de GH é o padrão ouro para fazer um diagnóstico definitivo e deve ser realizado se
a dosagem de IGF-1 sugerir excesso de GH.
Todos os pacientes com acromegalia ou gigantismo, confirmado laboratorialmente, devem realizar
também dosagem de prolactina e avaliação do restante da função hipofisária.
É necessário, também, localizar anatomicamente o tumor, e a ressonância magnética com contraste
(RM) de sela túrcica é o exame de escolha.
A fonte de secreção excessiva de GH na acromegalia ou no gigantismo pode não ser de origem
hipofisária. Secreção ectópica de GHRH em tumores carcinoides, tumores de células das ilhotas
pancreáticas, carcinoma de células pequenas do pulmão, adenomas adrenais ou feocromocitomas são
alguns exemplos que podem produzir GH ectópico.
O objetivo do tratamento é controlar o tamanho do adenoma hipofisário, a secreção de GH e IGF1, e
prevenir sequelas clínicas ao longo dos anos, mantendo a função normal da hipófise.
A opção cirúrgica é o tratamento de primeira linha e a ressecção transesfenoidal é a técnica de escolha
para microadenomas, macroadenomas restritos à sela túrcica ou macroadenoma que comprimem o
nervo óptico.
A cirurgia pode ser considerada em macroadenomas não inteiramente ressecáveis, com a finalidade de
reduzir o volume tumoral.
Recomenda-se terapia farmacológica em pacientes com doença persistente após cirurgia. A terapia
inicial deve ser com Análogos de Somatostatina (SRL).
Agonistas dopaminérgicos: servem, principalmente, como adjuvantes dos análogos da somatostatina,
quando a hiperprolactinemia simultânea está presente.
Antagonistas do receptor de GH: particularmente úteis para o tratamento de doenças refratárias.
A radioterapia deve ser evitada, principalmente em crianças, sendo usada, sempre, como última opção.
Os pacientes devem ser acompanhados até que o controle bioquímico seja alcançado. Depois disso, a
avaliação hormonal é realizada semestralmente.

11. Leitura recomendada:

BECKERS, A. et al. The causes and consequences of pituitary gigantism. Nature


Reviews Endocrinology, v. 14, n. 12, p. 705–720, 2018.

COLAO, A. et al. Acromegaly. Nature Reviews Disease Primers, v. 5, n. 1, p. 1–17, 2019.

GADELHA, M. R. et al. Systemic complications of acromegaly and the impact


of the current treatment landscape: An update. Endocrine Reviews, v. 40, n. 1,
p. 268–332, 2018.

KATZNELSON, L. et al. Acromegaly: An endocrine society clinical practice


guideline. Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism, v. 99, n. 11, p.
3933–3951, 2014

ROSTOMYAN, L.; DALY, A. F.; BECKERS, A. Pituitary gigantism: Causes and


clinical characteristics. Annales d’Endocrinologie, v. 76, n. 6, p. 643–649, 2015.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
180

Capítulo 11

Síndrome de Cushing
Luana Mendes de Oliveira
Isabela Batista dos Santos
Rafael Vaz Machry

1. Introdução:

Você já ouviu falar em Síndrome de Cushing? Pois bem, a Síndrome


de Cushing (SC) ou hipercortisolismo, é um distúrbio endócrino que re-
sulta da exposição prolongada ao excesso de cortisol, sendo mais fre-
quentemente causada pela administração exógena de glicocorticoides.
Esta situação é bem definida na anamnese, quando há história do uso
prolongado dessa classe de medicamentos. Já a SC resultante da produ-
ção endógena de cortisol parece ser um desafio médico maior. O nome
dessa condição vem do médico Harvey William Cushing, um neuroci-
rurgião norte-americano que em 1912 descreveu uma doença marcada
pelo excesso de cortisol no sangue devido à disfunção da hipófise. Esta
doença é denominada Doença de Cushing (DC) em sua homenagem.
O hipercortisolismo primário (ou ACTH independente) é o resul-
tado da superprodução autônoma de cortisol pela glândula adrenal
(hiperplasia, adenoma ou carcinoma adrenal). O hipercortisolismo
secundário (ACTH dependente), por outro lado, é o resultado da produ-
ção aumentada de hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), seja por mi-
croadenomas hipofisários (Doença de Cushing) ou por focos ectópicos
paraneoplásicos (como no câncer de pulmão de pequenas células). As
características clínicas típicas incluem obesidade central, pele fina e
frágil, estrias abdominais largas e purpúricas, hipertensão arterial sis-
têmica, hiperglicemia e fraqueza muscular proximal.
Como os níveis de cortisol sérico variam diuturnamente, a medição
do cortisol na urina de 24 horas, os níveis de cortisol da saliva noturno
e/ou o teste de supressão de dexametasona são usados para diagnosti-
car o hipercortisolismo. Os níveis séricos de ACTH e o teste de estimu-
lação de CRH são usados para identificar a causa do hipercortisolismo,
sendo a imagem empregada para localizar tumores. O tratamento do
hipercortisolismo endógeno envolve principalmente a remoção cirúr-
gica da fonte de cortisol excessivo (por exemplo, adrenalectomia) ou
ACTH (por exemplo, hipofisectomia transesfenoidal). Se a cirurgia for
UNIDADE 3. HIPÓFISE
181

contraindicada, podem ser usados medicamentos que suprimem a sín-


tese de cortisol (por exemplo, metirapona). Após esse breve resumo do
assunto, vamos aprofundar nos próximos tópicos.

2. Epidemiologia:

De modo geral, indivíduos com SC têm o risco aumentado de mor-


talidade cardiovascular em comparação com a população em geral. A
causa exógena é a forma mais comum de hipercortisolismo e se carac-
teriza pela SC iatrogênica. Entre as causas endógenas, podemos dividir
em dependentes de ACTH e independentes de ACTH.
Entre as causas dependentes de ACTH, aquelas que afetam o eixo
hipotálamo-hipófise, 65 a 70% dos casos são devido a tumores hipofi-
sários produtores de ACTH (Doença de Cushing) e apenas 10 a 15% dos
casos são devido à secreção ectópica de ACTH por tumores não hipo-
fisários. A produção de ACTH ectópico é mais comum após os 50 anos
de idade e acompanha a incidência do carcinoma de pequenas células
do pulmão, entre outros. A DC é a causa de hipercortisolismo endóge-
no mais frequente. Ocorre mais em mulheres, e afeta principalmente a
faixa etária dos 25 aos 45 anos de idade, sendo que 90% dos casos da DC
ocorrem devido a presença de um microadenoma hipofisário.
Já as causas independentes de ACTH, ou seja, aquelas que ocorrem
devido a doenças primárias das adrenais, 18 a 20% dos casos são decor-
rentes de um tumor (adenoma ou carcinoma) ou hiperplasia das adre-
nais, sendo mais comum em mulheres. Os tumores adrenais responsá-
veis por essa forma de hipercortisolismo primário têm maior incidência
em três grupos de idade: nos primeiros 10 anos de idade e por volta dos 40
anos de idade (carcinomas) e aos 50 anos de idade (adenomas).

3. Fisiopatologia:

É importante lembrar que cortisol é um hormônio esteroide produ-


zido na zona fasciculada do córtex adrenal. Seus efeitos mais impor-
tantes incluem o estímulo à formação de glicose (via estimulação da
gliconeogênese), lipólise e catabolismo proteico; imunossupressão e
efeito anti-inflamatório (via produção diminuída de fatores pró-infla-
matórios, por exemplo, IL-1, IL-2, TNF-α); elevação da pressão arterial
(potencialização dos efeitos das catecolaminas, como a epinefrina e a
norepinefrina, regulando positivamente seus receptores e retenção hi-
drossalina). Além disso, o cortisol age também no metabolismo ósseo
promovendo a inibição da formação e aumento da reabsorção óssea.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
182

Como vimos, a SC resulta da exposição crônica a concentrações ele-


vadas de cortisol, podendo ser exógena, devido à ingestão crônica de
glicocorticoides, ou endógena, em decorrência do aumento da secreção
adrenal de cortisol ou da produção de ACTH pela hipófise ou por fontes
ectópicas.
A SC exógena (iatrogênica) é a causa mais comum de hipercortiso-
lismo e se desenvolve após a terapia prolongada com glicocorticoides,
sendo o uso de prednisona a causa mais comum. A presença destes
fármacos resulta na diminuição do nível sérico do hormônio ACTH e do
nível sérico do hormônio liberador de corticotrofina (CRH), o que culmi-
na na atrofia bilateral da adrenal, gerando um quadro de Insuficiência
Adrenal Secundária se o uso contínuo do glicocorticoide for pausado
abruptamente.
A SC dependente de ACTH, também conhecida como hipercortiso-
lismo secundário, é caracterizada por níveis elevados de ACTH. O au-
mento dos níveis de ACTH geralmente é devido a um adenoma da hipó-
fise anterior, que resulta no aumento da secreção de ACTH pelas células
corticotróficas. Esse hormônio é liberado na circulação e atua no córtex
adrenal produzindo hiperplasia bilateral da glândula adrenal, e estimu-
lando a secreção de esteroides adrenais. Essa produção de ACTH hipo-
fisário consiste na Doença de Cushing clássica (60 a 70%), e em estados
avançados de crescimento do tumor pode resultar na perda da produ-
ção de outros hormônios da hipófise anterior (hipopituitarismo). Outra
possibilidade para o aumento dos níveis de ACTH é a presença de fontes
ectópicas não hipofisárias de ACTH, à exemplo disso há o carcinoma
de células pequenas do pulmão, carcinoma de células renais, tumores
carcinoides pancreáticos ou brônquicos, feocromocitoma e carcinoma
medular da tireoide. Eles representam síndromes paraneoplásicas que
podem resultar em níveis elevados de ACTH, e consequentemente, em
hipercortisolismo e hiperplasia bilateral da glândula adrenal. Ressalta-
-se ainda que embora o termo “Síndrome de Cushing” possa ser aplica-
do a qualquer causa de hipercortisolismo, o termo “Doença de Cushing”
se refere especificamente ao hipercortisolismo secundário à produção
excessiva de ACTH por adenomas hipofisários.
O hipercortisolismo primário, também conhecido como SC indepen-
dente de ACTH, ocorre devido à superprodução autônoma de cortisol
pela glândula adrenal, o que leva à supressão da produção de ACTH e à
atrofia da glândula adrenal contralateral. Portanto, o nível de ACTH na
SC independente de ACTH é baixo devido ao feedback negativo do alto
nível de cortisol sérico às células corticotróficas hipofisárias. A cau-
sa mais comum dessa superprodução é a presença de adenomas na
UNIDADE 3. HIPÓFISE
183

glândula adrenal, sendo que carcinoma adrenal e a hiperplasia adrenal


macronodular são causas menos frequentes.

4. Anamnese:

Na história médica pregressa, pacientes com síndrome de Cushing


podem referir ganho de peso, estrias abdominais classicamente violá-
ceas e largas, hematomas, hirsutismo, acne, equimoses devido à ma-
chucados frequentes, cicatrização retardada de feridas, rubor facial, fra-
queza proximal, além de outros achados menos frequentes. Por causa
da fraqueza muscular proximal progressiva, os pacientes podem apre-
sentar dificuldade para tarefas cotidianas simples, como subir escadas
ou se levantar sem auxílio.
A inibição da secreção pulsátil do hormônio luteinizante (LH) e do
hormônio folículo-estimulante (FSH) resulta em irregularidades mens-
truais, amenorreia, infertilidade e diminuição da libido. Além disso,
os pacientes podem apresentar problemas neuropsicológicos como
letargia, depressão, disfunção cognitiva, distúrbios do sono, psicose e
instabilidade emocional. Pode ocorrer novo início ou agravamento da
hipertensão e diabetes mellitus, dislipidemia, aumento de infecções,
osteopenia e fraturas osteoporóticas.
Caso haja produção ectópica de ACTH (você se lembra que falamos
das síndromes paraneoplásicas que levam ao hipercortisolismo?), pode
ocorrer hiperpigmentação, devido ao estímulo excessivo de melanina.
Essa hiperpigmentação é causada pela produção aumentada do hormô-
nio estimulador dos melanócitos (MSH), o qual é clivado do mesmo pre-
cursor do ACTH, chamado de proopiomelanocortina (POMC). Nestes ca-
sos, o quadro clínico em geral não é acompanhado de ganho de peso e,
sim, de emagrecimento pela neoplasia maligna de base estranhamento
associado ao início de hipertensão arterial sistêmica e hipocalemia.
Ressalta-se ainda sinais e sintomas especificamente dos tumores
hipofisários grandes: cefaleia, diabetes insipidus (por compressão da
neuro-hipófise) e hemianopsia bitemporal (por compressão do quias-
ma óptico). Também há a deficiência dos outros hormônios hipofisários
e hiperprolactinemia por compressão da haste hipofisária (falaremos
mais no próximo capítulo).
Por fim, pacientes com carcinoma adrenal como causa subjacente
da SC relatam o início mais rápido e progressivo dos sintomas de hi-
percortisolismo em conjunto com hiperandrogenismo (lembre-se que
as adrenais também produzem androgênios) que se apresenta como
virilização em mulheres.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
184

5. Exame físico:

Você vai observar no exame físico de um paciente com hipercortiso-


lismo o aumento do tecido adiposo na face (fácies em lua-cheia), parte
superior das costas na base do pescoço (giba de búfalo) e acima das cla-
vículas (coxins de gordura supraclaviculares). Além disso, a obesidade
central também pode aparecer como tecido adiposo aumentado no tórax
e abdome, com membros finos.
Ao inspecionar a pele, encontraremos pletora facial (rubor cutâneo),
especialmente nas bochechas. No abdômen, nádegas, parte inferior das
costas, parte superior das coxas, braços e tórax poderão ser observadas
estrias “violáceas” de cor púrpura com mais de 1 cm de diâmetro. Equi-
moses, telangiectasias, púrpura, atrofia cutânea com exposição do tecido
da vasculatura subcutânea, estiramento da pele e acne esteroide, tam-
bém podem estar presentes. O excesso de glicocorticoides pode causar
aumento dos pelos faciais de lanugo. A acantose nigricans, que está as-
sociada à resistência insulínica e à hiperinsulinemia, também pode ser
um sinal presente. Intolerância à glicose ocorre em 20 a 30 % dos pacien-
tes e diabetes mellitus em 30 a 40%.
Se o excesso de glicocorticoides for acompanhado por excesso de an-
drogênios, o hirsutismo e a alopecia frontoparietal podem estar presentes
nas mulheres, à exemplo do que ocorre em carcinomas adrenocorticais.
Eventos cardiovasculares, incluindo infarto agudo do miocárdio, aci-
dente vascular encefálico e tromboembolismo pulmonar, são as prin-
cipais causas de morte na SC. Cerca de 75% dos pacientes apresentam
hipertensão arterial. Também pode haver edema, devido à ativação do
cortisol do receptor mineralocorticoide, o que resulta na retenção de só-
dio e água. A SC também está associada a alterações estruturais e funcio-
nais cardíacas reversíveis com a normalização do excesso de corticos-
teroide, como hipertrofia ventricular esquerda (VE) e função diastólica
diminuída do ventrículo esquerdo. Também é comum a dislipidemia,
com aumento do LDL e hipertrigliceridemia. A ulceração péptica pode
ocorrer com ou sem sintomas.
A galactorreia pode ocorrer quando os tumores da hipófise anterior
comprimem a haste hipofisária, levando a níveis elevados de prolactina.
Sinais de hipotireoidismo acontecem a partir de um tumor da hipófise
anterior cujo tamanho interfere na síntese e liberação do hormônio esti-
mulador da tireoide (TSH). Da mesma forma, outras funções hipofisárias
também podem ser afetadas.
O simples hipercortisolismo pode suprimir outros hormônios hipo-
fisários, como o FSH e o LH. Níveis baixos de testosterona em homens
UNIDADE 3. HIPÓFISE
185

podem levar à diminuição do volume testicular devido à inibição da


função de LHRH e LH/FSH.
A fraqueza muscular proximal pode ser evidente (peça que o pacien-
te se abaixe e levante sem se apoiar na cadeira, ele não vai conseguir),
sendo que a osteoporose e a osteopenia são achados comuns (50% dos
pacientes), com risco de fraturas patológicas e cifose incidente. A ne-
crose avascular da cabeça do fêmur é uma condição rara, que também
é possível devido ao excesso de glicocorticoides.

6. Exames complementares:

Entre os achados laboratoriais gerais, observa-se a presença de hi-


pernatremia (nem sempre, pela capacidade de reter água), hipocalemia
e alcalose metabólica (menos frequentes que no hiperaldosteronismo).
Além disso, também se verifica hiperglicemia devido à estimulação da
gliconeogênese e à inibição da captação de glicose no tecido periférico.
A hiperlipidemia também ocorre, seja através da hipercolesterolemia ou
da hipertrigliceridemia. Outros achados laboratoriais são a leucocitose
(predominantemente neutrofílica) e também a eosinopenia. Os exames
necessários para o diagnóstico serão abordados no próximo tópico.

7. Diagnóstico:

Vimos então que as características clínicas incluem um amplo es-


pectro de anormalidades em diferentes sistemas, com muitos sinais
e sintomas inespecíficos. Desse modo, testes bioquímicos são neces-
sários para estabelecer o diagnóstico, sendo o primeiro passo detectar
laboratorialmente a existência de hipercortisolismo, o segundo passo
determinar se há dependência ou não de ACTH, e o terceiro passo é
esclarecer o fator etiológico.
Inicialmente, deve-se excluir o uso de glicocorticoides exógenos
através da revisão do uso e dosagens de glicocorticoides orais, injetá-
veis, inaláveis e tópicos do paciente (esses dois últimos em situações
raras). Deve-se analisar, ainda, interações medicamentosas. Como
exemplo, temos o medicamento ritonavir, que atrasa a depuração de
esteroides inalados. Uma vez excluído o uso de glicocorticoides exóge-
nos, qualquer um dos testes a seguir pode ser usado como um teste de
triagem para hipercortisolismo:

Dosagem de cortisol livre urinário;


Teste de supressão com 1mg de dexametasona;
Dosagem de cortisol salivar noturno.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
186

O teste de cortisol na urina de 24 horas (cortisolúria) é o teste mais


preciso na triagem de hipercortisolismo, sendo necessário pelo menos
duas dosagens. A cortisolúria reflete os níveis não ligados de cortisol
sérico e também tem a vantagem adicional de permanecer livre da in-
fluência dos ritmos circadianos. Elevações a partir de três vezes maior
que o valor normal indica hipercortisolismo. No entanto, em ambientes
ambulatoriais, as amostras de cortisol de urina de 24 horas são difíceis
de coletar e um teste de dexametasona em baixa dose é usado em seu
lugar. Nesse teste, 1 mg de dexametasona é administrado às 23 horas e o
cortisol sérico é medido na manhã seguinte às 8 horas. A dexametaso-
na, sendo um poderoso glicocorticoide, suprime o ACTH sem interferir
significativamente na dosagem laboratorial do cortisol sérico. Em indi-
víduos normais, a dexametasona suprime a secreção de ACTH e, portan-
to, diminui o nível de cortisol. Valores menores de 1,8 μg/dL (50 nmol/L)
praticamente descartam o hipercortisolismo. Por fim, o aumento do cor-
tisol salivar à meia-noite (> 4 nmol/L) ou o aumento do cortisol sérico da
meia-noite (> 7,5 μg/dL) também podem ser realizados para diagnóstico
do hipercortisolismo. Este último é pouco prático e pouco utilizado, ten-
do sem benefício primordialmente em pacientes internados. Não indica-
mos sua realização em pacientes ambulatoriais.
O diagnóstico de hipercortisolismo é confirmado se pelo menos dois
dos testes de triagem mencionados acima estiverem presentes. O próxi-
mo passo é identificar a etiologia, que pode ser primária ou secundária.
Após a confirmação dos níveis elevados de cortisol, a determinação da
etiologia começa com a dosagem do ACTH, através de duas dosagens em
dias diferentes, entre as 8 e 9 horas da manhã. O quadro de hipercorti-
solismo primário resulta na diminuição do ACTH (< 10 ng/L) e, por outro
lado, o aumento do nível sérico de ACTH (> 20 a 30 ng/L) corresponde
ao hipercortisolismo secundário. O resultado intermediário dos níveis de
ACTH (10 a 20 ng/L) indica a necessidade de utilização de testes dinâmi-
cos, como o teste de estímulo com CRH.
O nível diminuído de ACTH indica etiologia independente do ACTH,
ou seja, hipercortisolismo primário. Nesse caso, a causa da síndrome se
encontra na glândula adrenal, que atua no feedback negativo para a hi-
pófise. Portanto, deve-se prosseguir com a tomografia computadorizada
ou ressonância magnética das glândulas adrenais, em busca de possível
lesão adrenal (adenoma, hiperplasia bilateral, ou até mesmo carcinoma
adrenal). Em caso de adenoma unilateral, o córtex adrenal contralateral
ao tumor se mostra atrofiado devido à estimulação reduzida do ACTH.
O nível normal ou aumentado ACTH indica etiologia provavelmen-
te dependente de ACTH, ou seja, hipercortisolismo secundário. Nesse
UNIDADE 3. HIPÓFISE
187

caso, deve-se prosseguir com os testes para determinar o diagnóstico


de DC ou SC ectópica. O Teste CRH é feito através da dosagem da con-
centração de ACTH antes e após a administração de CRH, o aumento
ainda maior do ACTH após essa administração indica adenoma hipo-
fisário, enquanto a ausência do aumento do ACTH ou do cortisol indi-
ca síndrome de produção ectópica de ACTH. O teste de supressão de
alta dose é feito através da administração de 8 mg de dexametasona,
caso o cortisol seja suprimido sugere-se adenoma hipofisário, porém
a falta de supressão do ACTH indica a SC com produção ectópica de
ACTH. Isso ocorre pois doses mais altas de dexametasona suprimem
a secreção de ACTH a tal ponto que os níveis de cortisol, que não di-
minuíram com baixas doses de dexametasona, agora mostram-se su-
primidos. Todavia, mesmo altas doses de dexametasona não podem
suprimir a produção de ACTH a partir de focos ectópicos (resistentes
ao feedback negativo) e, portanto, os níveis de cortisol permanecem
elevados entre os pacientes com produção ectópica de ACTH.
Se a etiologia for adenoma hipofisário, deve-se prosseguir com
ressonância magnética de sela túrcica, sendo que alguns microade-
nomas hipofisários são muito pequenos para serem detectados por
neuroimagem. Na ausência de achados de neuroimagem, na presença
de lesão hipofisária < 6 mm, ou respostas mistas em CRH e teste de
supressão com alta dose de dexametasona, indica-se a realização de
uma amostragem bilateral do seio petroso inferior pode ser útil para
medir os níveis de ACTH. Esse, embora seja um procedimento invasi-
vo, caro e associado a possíveis riscos (por exemplo acidente vascular
cerebral e tromboembolismo).
Há uma mensagem muito importante para você: no diagnóstico de
hipercortisolismo, a análise hormonal sempre precede os exames de
imagem porque os microadenomas da hipófise nem sempre aparecem
na imagem. Além disso, a imagem pode revelar tumores adrenais ina-
tivos e assintomáticos (incidentalomas) e tumores hipofisários sem
funcionalidade em muitos indivíduos saudáveis.
Para organizar melhor o seu pensamento, apresentamos um fluxo-
grama na página a seguir.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
188

Suspeita clínica de Síndrome de Cushing

SIM
Terapia prolongada com glicocorticoide? Provável Síndrome de Cushing exógena

NÃO

Testes de triagem
Dosagem do cortisol livre urinário NEGATIVO
Improvável Síndrome de Cushing exógena
Teste de supressão de dexametasona de baixa dose
Dosagem de cortisol salivar noturno

POSITIVO

BAIXO ACTH plasmático NORMAL OU ELEVADO

SÍNDROME DE CUSHING SÍNDROME DE CUSHING


INDEPENDENTE DE ACTH DEPENDENTE DE ACTH
Produção autônoma de Produção central ou
cortisol pela glândula adrenal ectópica de ACTH

TC ou RM do abdômen
Testes Confirmatórios
Teste 1: Supressão com dexametasona de alta dose
Adenoma, carcinoma
Teste 2: Teste do CRH
ou hiperplasia da glândula
adrenal
Supressão do ACTH no teste 1 Sem supressão do ACTH no teste 1
Aumento do ACTH/Cortisol no teste 2 Sem aumento do ACTH/Cortisol no teste 2

Avaliação para cirurgia TC ou RM cranial Produção ectópica de ACTH

Adenoma hipofisário Suspeita de câncer de pulmão de pequenas


(doença de Cushing) células, carcinoma de células renais,
tumor carcinoide

Avaliação para cirurgia Investigação de malignidade primária

Figura 1: Fluxograma de diagnóstico para a Síndrome de Cushing.


Elaborado pelo autor.

8. Tratamento:

Para o tratamento da SC exógena, deve-se considerar a redução da


dose de glicocorticoides ou o uso de alternativas aos glicocorticoides. O
tratamento da SC endógena varia conforme a etiologia.
Caso a doença seja inoperável (por exemplo, carcinomas adrenais
inoperáveis, carcinoma de células pequenas avançado do pulmão), o
tratamento consiste em medicamentos que suprimem a síntese de cor-
tisol (por exemplo, metirapona, mitotano, cetoconazol). Caso a doença
seja operável, a terapia cirúrgica é o tratamento de escolha. Dessa for-
ma, pode ser realizada a adrenalectomia laparoscópica ou aberta para
remoção de tumor adrenocortical, a ressecção transesfenoidal para re-
moção do adenoma hipofisário, ou a ressecção dos focos ectópicos (por
exemplo, carcinoide brônquico) - no caso de tumor ectópico secretor de
UNIDADE 3. HIPÓFISE
189

ACTH. Após a terapia cirúrgica, os pacientes que desenvolvem insufi-


ciência adrenal requerem terapia de reposição de glicocorticoides por
toda a vida. Os pacientes que desenvolvem hipocalemia grave devido
ao efeito mineralocorticoide do cortisol podem ser tratados com espiro-
nolactona (antagonista da aldosterona).

9. Prognóstico:

Com o tratamento, os sinais e sintomas regridem em meses a um


ano. Algumas complicações (HAS, diabetes mellitus) podem persistir,
mas melhoram com o tempo, sendo que pacientes com risco de insu-
ficiência adrenal (por exemplo, adrenalectomia bilateral) precisam de
reposição de glicocorticoide e mineralocorticoide.
A síndrome de Nelson pode se desenvolver em até 25% dos pacien-
tes submetidos a adrenalectomia bilateral, em pacientes com adenoma
hipofisário previamente desconhecido. Sem glândulas adrenais, não há
feedback negativo de glicocorticoides; assim, o crescimento da hipófise
é facilitado. O aumento descontrolado de adenoma hipofisário secretor
de ACTH pré-existente leva à secreção aumentada de ACTH e MSH e,
consequentemente, a sintomas de adenoma hipofisário e aumento do
MSH. À exemplo das características clínicas apresentadas, observa-se
cefaleia, hemianopsia bitemporal (efeito de massa), e hiperpigmenta-
ção cutânea. A SC é fatal sem tratamento, tem grandes repercussões e
está relacionada a doenças cardiovasculares, eventos tromboembóli-
cos e infecções. Se o hipercortisolismo estiver associado a um tumor, o
prognóstico está relacionado à natureza (por exemplo, malignidade) do
tumor e à gravidade do hipercortisolismo.

10. Tabela de resumo:

Definição de Síndrome de É um distúrbio que resulta da exposição crônica ao excesso de cortisol.


Cushing (hipercortisolismo)
Hipercortisolismo ACTH-dependente:
• Doença de Cushing: aumento da produção de ACTH hipofisário levando
à hiperplasia da glândula adrenal.
• Síndrome de ACTH ectópico: aumento da produção de ACTH, cuja fonte
não se encontra na glândula hipófise ou nas glândulas adrenais (como
no câncer de pulmão).
Classificação
Hipercortisolismo ACTH-independente:
• Hipercortisolismo primário: aumento na produção de cortisol pelas
glândulas adrenais (possível adenoma, carcinoma ou hiperplasia
bilateral).
• Síndrome de Cushing exógena/iatrogênica: uso de glicocorticoides é a
causa mais comum de hipercortisolismo.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
190

Acne, pletora facial, estrias violáceas, hirsutismo, e hiperpigmentação


(hipercortisolismo secundário).
Presença de fácies em lua cheia, obesidade central, e giba.
Osteopenia, osteoporose e aumento do risco de necrose avascular.
Manifestações Clínicas Depressão, labilidade emocional, distúrbios do sono, psicose.
Hipertensão secundária, hiperglicemia, dislipidemia, aterosclerose,
fraqueza muscular proximal, úlceras gastrointestinais e maior
suscetibilidade à infecção.
Baixa estatura em crianças.
Rastreio:
• Teste de supressão de cortisol com dexametasona 1 mg
• Cortisolúria de 24h
Diagnóstico • Cortisol salivar
● • Determinar se é ACTH dependente ou independente:
● • Dosagem de ACTH matinal
● Localizar etiologia:
● • Se ACTH independente (ACTH baixo): realizar tomografia
● computadorizada/ressonância magnética de adrenais.
● • Se níveis normais ou elevados de ACTH plasmático: realizar
ressonância magnética de hipófise, teste de estímulo com CRH ou
DDAVP, cateterismo de seio petroso para dosagem de ACTH e/ou teste
de supressão com alta dose de dexametasona.
Síndrome de Cushing endógena:
• Tratamento de escolha: a remoção cirúrgica da fonte de cortisol
Tratamento excessivo (por exemplo, adrenalectomia) ou ACTH (por exemplo,
● hipofisectomia transesfenoidal).
● • Doença inoperável: drogas para suprimir a síntese de cortisol
● (cetoconazol, por exemplo).
Síndrome de Cushing exógena/iatrogênica:
• Reduzir a dose de glicocorticoides gradativamente até a suspensão.

11. Leitura recomendada:

NIEMAN, L. K. et al. The Diagnosis of Cushing’s Syndrome: An Endocrine Society


Clinical Practice Guideline. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism,
v. 93, n. 5, p. 1526–1540, 1 maio 2008.
ILIAS, I. et al. Cushing’s Syndrome Due to Ectopic Corticotropin Secretion: Twenty
Years’ Experience at the National Institutes of Health. The Journal of Clinical
Endocrinology & Metabolism, v. 90, n. 8, p. 4955–4962, ago. 2005.
NIEMAN, L. K. et al. Treatment of Cushing’s Syndrome: An Endocrine Society
Clinical Practice Guideline. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism,
v. 100, n. 8, p. 2807–2831, ago. 2015.
NIEMAN, L. K. Cushing’s syndrome: update on signs, symptoms and biochemical
screening. European Journal of Endocrinology, v. 173, n. 4, p. M33–M38, out. 2015.
STARKMAN, M. N. Neuropsychiatric Findings in Cushing Syndrome and
Exogenous Glucocorticoid Administration. Endocrinology and Metabolism Clinics
of North America, v. 42, n. 3, p. 477–488, set. 2013.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
191

Capítulo 12

Adenomas Hipofisários Não Funcionantes


Guilherme Luis Figueiró
Thiane Barbieri Silva Coser
Pietra Fischer Pascoal
Milene Moehlecke

1. Introdução:

Os adenomas hipofisários não funcionantes (AHNF), também cha-


mados de adenomas pituitários não funcionantes, são neoplasias be-
nignas da hipófise e estão entre os tumores mais comuns da região
selar. Apesar de serem caracterizados por um crescimento lento e não
estarem associados a síndromes hipersecretoras, os AHNF podem
apresentar potencial invasivo e levar a complicações pelo aumento da
massa tumoral. Não raramente, esses adenomas são encontrados de
forma incidental. Fora isso, o diagnóstico geralmente é feito quando o
tumor atinge volume suficiente para comprimir estruturas adjacen-
tes, sobretudo o quiasma óptico.
O paciente pode ser completamente assintomático ou pode ter sin-
tomas compressivos devido à massa tumoral. A maioria dos pacientes
apresenta sintomas de efeito de massa (compressão), como cefaleia,
defeitos do campo visual, oftalmoplegias e hipopituitarismo. Sinto-
mas menos frequentes incluem hiperprolactinemia devido ao desvio
da haste hipofisária e, mais raramente, apoplexia hipofisária.
A abordagem diagnóstica inclui imagem de ressonância magné-
tica da região selar, avaliações laboratoriais, rastreamento de hiper-
secreção hormonal ou de hipopituitarismo, além de exame de campo
visual se a lesão estiver em contato com o quiasma.
Uma mensagem importante é que todos os pacientes com tumo-
res hipofisários devem ser tratados por uma equipe multidisciplinar
incluindo endocrinologista, neurocirurgião, patologista, neuro-oftal-
mologista, neurorradiologista e oncologista, em centros de excelência
em atendimento.

2. Epidemiologia:

Os AHNF estão entre o subtipo mais comum de tumores que surgem


da adeno-hipófise e são responsáveis por até 54% dos adenomas hipo-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
192

fisários. Sua taxa de incidência padronizada é de 0,65–2,34 / 100.000 e


o pico de incidência é entre a quarta e a oitava década de vida.

3. Fisiopatologia:

Os adenomas hipofisários não funcionantes são tumores que sur-


gem a partir da expansão de uma única linhagem de células adeno-hi-
pofisárias precursoras. Temos que atentar que, embora sejam tumores
benignos, eles têm a capacidade de crescer e invadir, comprimindo
estruturas próximas.
Ao contrário dos adenomas funcionantes, os AHNF não estão asso-
ciados a evidências clínicas de hipersecreção hormonal e são, portan-
to, clinicamente silenciosos. Sinais de hiperprolactinemia, incluindo
hipogonadismo e galactorreia, podem estar presentes em alguns ca-
sos devido à compressão e desvio da haste hipofisária que resultará
em interrupção da inibição tônica da prolactina via fibras dopaminér-
gicas – conforme vimos no capítulo 9.
Técnicas moleculares e imuno-histoquímicas mostram que a maio-
ria dos AHNF tem diferenciação gonadotrófica, ou seja, expressam LH
e FSH. O restante pode expressar outros hormônios, incluindo ACTH
(adenomas corticotróficos silenciosos), GH (adenomas somatrotóficos
silenciosos), PRL (adenomas lactotróficos silenciosos) e TSH (adeno-
mas tireotróficos silenciosos).
A classificação histopatológica é guiada pelas diretrizes da Organi-
zação Mundial da Saúde (OMS) e baseia-se na coloração imuno-histo-
química para hormônios adeno-hipofisários, combinada com o uso de
fatores de transcrição para determinar a linhagem do tumor.

4. Anamnese:

Conforme ressaltado anteriormente, grande parte dos AHNF é cli-


nicamente silencioso. Dessa forma, quando há presença de manifes-
tações clínicas, comumente elas resultam do efeito de massa do tu-
mor. Cefaleia e anormalidades do campo visual estão presentes em
cerca de 60 a 80% dos pacientes acometidos, respectivamente. Entre
os sintomas visuais, podemos destacar as manifestações da perda de
visão periférica: visão em túnel, dificuldade de enxergar com pouca
luz e perda da capacidade de se orientar.
Durante a anamnese, além de buscar sintomas visuais, é impor-
tante identificar características da cefaleia que sugiram uma causa
secundária para este sintoma, tais como surgimento recente ou mu-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
193

dança no padrão da cefaleia (piora da frequência e ou da intensidade),


associada ou não a déficits neurológicos. Embora nenhum padrão es-
pecífico esteja relacionado à cefaleia induzida por um adenoma, estes
questionamentos são importantes para diferenciação entre cefaleia
primária ou essencial da cefaleia secundária associada a um tumor,
por exemplo.
Vale destacar que a maioria dos AHNF surge por mudanças aleató-
rias do ponto de vista genético, ou seja, não têm relação com histórico
familiar ou síndromes genéticas, não sendo necessário, portanto, ras-
treio de rotina.

5. Exame físico:

Aproximadamente 70% dos pacientes com AHNF apresentam re-


dução da acuidade visual ao diagnóstico e a maioria dos pacientes
apresenta deficiência combinada de hormônio do crescimento (GH)
e hipogonadismo. Portanto, um exame físico completo em busca de
achados sugestivos de hipopituitarismo, hipersecreção hormonal e/
ou efeito de massa deve sempre ser realizado.
Os testes neurológicos realizados no próprio consultório são ca-
pazes de reafirmar uma suspeita de compressão do quiasma óptico
como responsável pelos sinais e sintomas apresentados pelo pacien-
te. Além disso, quando a hipótese é de AHNF, os pares cranianos II, III,
IV e VI devem ser testados.

Par craniano II (óptico): o comprometimento do nervo óptico pode


levar a defeitos do campo visual lateralmente, papiledema e atrofia
óptica. A principal alteração campimétrica relacionada à compressão
medial do quiasma óptico é a hemianopsia bitemporal. Ou seja, quan-
do ocorre perda visual na metade lateral de ambos os campos visuais.

Pares craniano III (oculomotor), IV (troclear) e VI (abducente): o


acometimento desses nervos causa alteração da motilidade ocular
extrínseca, podendo ser observada paralisia de um ou mais nervos.
O acometimento do IV e do VI par craniano pode levar à diplopia. Já
o acometimento do nervo oculomotor mais comumente cursa com
ptose palpebral e midríase. Vale ressaltar que o acometimento desses
pares cranianos por tumores hipofisários é bem menos frequente que
o da via óptica.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
194

6. Exames complementares:

Exame de imagem: a ressonância magnética de sela túrcica real-


çada com gadolínio é o exame de eleição para visualizar a região selar,
uma vez que é um exame com elevada sensibilidade para detecção
de microadenomas. Com a administração do contraste, esses tumores
benignos caracteristicamente apresentam realce tardio em compara-
ção à glândula remanescente.

1 2

Imagem 1: Microadenoma (até 9 mm) evidenciado em Ressonância Magnética.


Imagem 2: Macroadenoma (10 mm ou mais) evidenciado em Ressonância
Magnética.
Fonte: Bonneville, J.-F. (n.d.). Magnetic Resonance Imaging of Pituitary Tumors. Frontiers of
Hormone Research

Exames laboratoriais: todo paciente com diagnóstico de micro ou


macroadenoma deve ter uma investigação laboratorial para pesquisa
de disfunção hormonal.
Os AHNF podem apresentar manifestações clínicas e laboratoriais de
hipopituitarismo, incluindo hipogonadismo, hipotireoidismo secundá-
rio e insuficiência adrenal central, devido às deficiências de hormônios
gonadotróficos (LH/FSH), hormônio tireoestimulante (TSH) e hormônio
adrenocorticotrófico (ACTH), respectivamente. Contudo, a deficiência do
hormônio do crescimento (GH) e o hipogonadismo são os achados bio-
químicos mais prevalentes, seguidos do hipotireoidismo e da insuficiên-
cia adrenal secundária ou central.
O diagnóstico de hipogonadismo central é sugerido quando houver
redução dos níveis de testosterona (em homens) e estradiol (em mulhe-
res) e valores normais ou inapropriadamente baixos de FSH e LH. Em
relação ao hipotireoidismo espera-se encontrar tanto o TSH quanto o T4
UNIDADE 3. HIPÓFISE
195

livre reduzidos. Pacientes com deficiência de GH podem apresentar sin-


tomas inespecíficos como fadiga, depressão, redução da massa magra e
da capacidade para o exercício e aumento da massa gorda, com distri-
buição predominante no tronco. O diagnóstico costuma ser desafiador
em adultos, tendo em vista que os sintomas são bastante inespecíficos
e os níveis de IGF-1 e GH são de pouca utilidade. A dosagem de GH após
testes de estímulo farmacológicos, como o teste de tolerância à insulina,
são considerados padrão-ouro. Em pacientes com manifestações clíni-
cas sugestivas de hipocortisolismo, tais como hipotensão, hipoglicemia
e tontura, a detecção de níveis de cortisol sérico basal matinal abaixo do
limite inferior do valor de referência, em 2 medidas, associado a níveis de
ACTH reduzidos confirma o diagnóstico de insuficiência adrenal central
ou secundária.
Por fim, pacientes com AHNF podem também apresentar hiperpro-
lactinemia discreta, com níveis de prolactina usualmente abaixo de 100
ng/mL, decorrente da compressão e desvio da haste hipofisária.

Avaliação oftalmológica: vimos que o comprometimento visual é uma


característica comum de apresentação dos AHNF. Cabe a nós, portanto,
a testagem dos pares de nervos cranianos, conforme citados no exame
físico, para a avaliação de defeitos no campo visual. Déficits visuais são
mais comumente associados aos AHNF quando comparados a outros ti-
pos de adenomas funcionantes, muito provavelmente em decorrência do
maior atraso no diagnóstico. Mesmo na ausência de queixas relativas à
visão, a investigação oftalmológica é muito importante quando há sus-
peita de adenoma hipofisário, uma vez que o comprometimento visual é
uma característica comum e às vezes discreta de apresentação dessas
neoplasias. Sendo assim, a avaliação dos pares cranianos, a acuidade vi-
sual e a campimetria devem sempre ser realizada na suspeita de AHNF.

Os déficits visuais são mais comumente associados aos adenomas não


funcionantes quando comparados a outros tipos de adenomas funcionantes,
muito provavelmente em decorrência do maior atraso no diagnóstico.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
196

7. Diagnóstico:

O diagnóstico é baseado em achados de imagem compatíveis com


adenoma na ausência de anormalidades que sugiram hipersecreção
hormonal. O anatomopatológico, embora padrão-ouro, é feito após o tra-
tamento cirúrgico, quando há retirada da lesão.
Microadenomas, em sua maioria, são diagnosticados como inciden-
talomas, ou seja, lesões descobertas ao acaso durante a realização de exa-
mes de imagem solicitados por outro motivo. Já os macroadenomas, de-
vido ao seu maior tamanho, mais frequentemente cursam com sintomas
compressivos ou déficits visuais.
Embora os adenomas sejam o tipo mais comum de tumor selar, o
diagnóstico diferencial de lesões nessa área inclui craniofaringioma, cis-
to da bolsa de Ratke, meningioma, hipofisite e metástases hipofisárias.

8. Tratamento:

As opções terapêuticas para os AHNF recaem sobre a cirurgia e a ra-


dioterapia. Pacientes com macroadenoma e sintomas compressivos (ce-
faleia ou alterações visuais) deverão ser submetidos à ressecção tumo-
ral, preferencialmente por via transesfenoidal. A radioterapia pode ser
uma alternativa a pacientes que apresentam contraindicações ao pro-
cedimento cirúrgico, como idosos com elevado risco cirúrgico ou para
aqueles que apresentam recidiva tumoral após ressecção inicial. A tera-
pia farmacológica para AHNF carece de ensaios clínicos randomizados
sendo, por isso, de indicação limitada.
Pacientes com microadenoma ou macroadenoma sem disfunção vi-
sual podem ser observados conservadoramente com avaliação hormo-
nal e exames de imagem periódicos.

9. Prognóstico:

Cerca de 60% dos AHNF são macroadenomas (≥ 10 mm de diâmetro)


e apenas 50% destes podem ser ressecados totalmente. Aproximada-
mente 10 a 20% dos AHNF completamente ressecados recidivam após
5 a 10 anos de acompanhamento. Quando um tumor residual persiste
após a cirurgia, as taxas de recorrência chegam a 40% em 5 anos e a 50%
em 10 anos.
Pacientes abordados cirurgicamente poderão apresentar após esta
abordagem um quadro transitório de síndrome da secreção inapro-
priada do hormônio antidiurético (SIADH), diabetes insipidus, defici-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
197

ência na produção do hormônio do crescimento, hipotireoidismo cen-


tral, entre outras alterações relacionadas ao eixo hipotálamo-hipófise
– o que vai requerer acompanhamento ambulatorial. Mas saiba que
para todos os pacientes, submetidos ou não a intervenção terapêutica,
é necessário acompanhamento periódico para o restante da vida. Não
há, entretanto, estudos prospectivos para determinar o intervalo ideal
para as reavaliações periódicas. Sugere-se uma ressonância magnéti-
ca anual nos primeiros três anos para microadenomas e após 6 meses
e depois anualmente nos primeiros três anos para macroadenomas.

10. Tabela de resumo:

MASSA HIPOFISÁRIA

ACHADOS CLÍNICOS INVESTIGAÇÃO LABORATORIAL:


Importante descartar excesso de
Neurológicos e oftalmológicos: dor de GH
produção de algum hormônio
cabeça, alterações visuais, paralisia dos TSH/LH e hormônios gonadais
músculos oculares; Prolactina
Endocrinológicos: amenorreia, ciclos TSH e T4 Livre
menstruais irregulares, diminuição da
libido, infertilidade;
Déficit de produção hormonal. Diferenciar de outras lesões
não hipofisiárias

Adenomas
não funcionantes

Microadenomas < 10mm Macroadenomas ≥ 10mm

Na ausência de sintomas compressivos, Cirurgia e radioterapia


manter em observação em casos selecionados

Seguindo com RNM e


acompanhamento por toda a vida
UNIDADE 3. HIPÓFISE
198

11. Leitura recomendada:

Di Somma, C., Scarano, E., de Alteriis, G. et al. Is there any gender difference
in epidemiology, clinical presentation and co-morbidities of non-functioning
pituitary adenomas? A prospective survey of a National Referral Center and
review of the literature. J Endocrinol Invest 44, 957–968 (2021).

Esposito, D., Olsson, D. S., Ragnarsson, O., Buchfelder, M., Skoglund, T., &
Johannsson, G. (2019). Non-functioning pituitary adenomas: indications for
pituitary surgery and post-surgical management. Pituitary.

Ntali, G., Wass, J.A. Epidemiology, clinical presentation and diagnosis of


non-functioning pituitary adenomas. Pituitary 21, 111–118 (2018). Taniguchi-
Ponciano, K., Gomez-Apo, E., Chavez-Macias, L., Vargas, G., Espinosa-Cardenas,
E., Ramirez-Renteria, C.,Mercado, M. (2020). Molecular alterations in non-
functioning pituitary adenomas. Cancer Biomarkers, 1–7.

Solari, D., Zenga, F., Angileri, F. F., Barbanera, A., Berlucchi, S., Bernucci,
C.,Cappabianca, P. (2018). A Survey on Pituitary Surgery In Italy. World
Neurosurgery.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
199

Capítulo 13

Hipopituitarismo
Ariel Parcianello Melo Vieira
Rafael Fortes Locateli
Rafael Vaz Machry

1. Introdução:

A hipófise é uma glândula situada na sela túrcica do osso esfenoi-


de, sendo constituída pela adeno-hipófise (anterior) e neuro-hipófise
(posterior), os quais, na vida embrionária, surgem a partir do teto da
cavidade oral primitiva e do desdobramento ectodérmico do assoalho
do diencéfalo, respectivamente. Os hormônios da adeno-hipófise são:
hormônio do crescimento (GH), regulador do crescimento dos tecidos
e órgãos; hormônio tireoestimulante (TSH), regulador da atividade se-
cretora da glândula tireoide; hormônio adrenocorticotrófico (ACTH),
regulador da atividade das glândulas adrenais; hormônio folículoesti-
mulante (FSH) e hormônio luteinizante (LH), reguladores da atividade
das gônadas; e a prolactina (PRL), regulador da produção de leite pelas
glândulas mamárias durante a lactação. Os neuro-hormônios da hipó-
fise posterior são: hormônio antidiurético (ADH), que atua nos rins, e
ocitocina, que atua na musculatura uterina para contração no trabalho
de parto, e nas mamas para a apojadura.
Vamos lembrar um pouco da fisiologia da hipófise? Bem, depois de
você entender que essa pequena glândula é capaz de produzir vários
hormônios, vamos discutir como eles são secretados. Os hormônios da
adeno-hipófise são secretados por estímulo de hormônios hipotalâmi-
cos. O hormônio liberador de corticotrofina (CRH) estimula a hipófise
a secretar ACTH, o hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) - se-
cretado em pulsos - ativa a secreção de LH e FSH, o hormônio liberador
de tireotrofina (TRH) estimula a síntese de TSH e o hormônio liberador
de GH (GHRH) estimula a liberação de GH. Mas há alguma influência
dos hormônios periféricos? Sim! Caso não houvesse, a secreção seria
constante. Os hormônios secretados nas glândulas efetoras (adrenais,
tireoide e gônadas), também controlam a secreção dos hormônios hipo-
fisários por retroalimentação. Ou seja, a produção de tiroxina (T4), por
exemplo, reduz a secreção de TSH. Este mecanismo de feedback nega-
tivo faz com que a “orquestra hormonal” se mantenha funcionante e
interligada. Se tivermos secreção autônoma de uma glândula, como um
UNIDADE 3. HIPÓFISE
200

adenoma produtor de cortisol nas adrenais, haverá inibição da secre-


ção de ACTH. Isso acontece em qualquer binômio “hipófise e glândula
efetora”. Existe uma exceção à regra: a secreção de prolactina é inibida
pela dopamina hipofisária. Ou seja, situações que reduzam a comuni-
cação do hipotálamo e a hipófise (como ruptura da haste hipofisária),
causarão hiperprolactinemia, enquanto para os outros hormônios hi-
pofisários, ocorrerá deficiência. Vamos discutir este ponto com mais
detalhes no capítulo de hiperprolactinemia.
Os distúrbios da secreção hipofisária caracterizam-se por hipopitui-
tarismo com diminuição da liberação hormonal e tumores com produ-
ção hormonal excessiva (acromegalia e gigantismo, doença de Cushing,
entre outros). Neste capítulo, você irá aprender sobre hipopituitarismo.
Nos próximos capítulos, falaremos das demais doenças da hipófise.
O hipopituitarismo é definido como a deficiência isolada ou múltipla
de hormônios da adeno-hipófise, resultante de distúrbios hipofisários
ou hipotalâmicos adquiridos ou, mais raramente, hereditários.
Se não adequadamente tratado, o hipopituitarismo resulta em eleva-
da morbimortalidade! O quadro clínico e as complicações dependem da
etiologia, do tipo e da gravidade da insuficiência hormonal. Interessan-
te observar que a reserva funcional da hipófise é grande, e as manifes-
tações clínicas são evidentes apenas quando ocorre o comprometimen-
to de pelo menos 75% de seu parênquima. As deficiências na secreção
dos hormônios hipofisários se manifestam, em geral, na seguinte sequ-
ência: gonadotrofinas (FSH e LH), GH, TSH, ACTH e, por último, PRL. O
termo pan-hipopituitarismo tem sido aplicado diante da deficiência de
dois ou mais hormônios hipofisários.

2. Epidemiologia:

As taxas relatadas de incidência (12 a 42 novos casos por milhão


ao ano) e prevalência (300 a 455 por milhão) são provavelmente su-
bestimadas, caso se considere a frequente ocorrência (25 a 50%) após
traumatismo cranioencefálico.

3. Fisiopatologia:

Em síntese, o hipopituitarismo pode ocorrer por meio de três me-


canismos: (1) redução da secreção/liberação dos hormônios hipo-
talâmicos, (2) interrupção da entrega dos hormônios hipotalâmicos
à adeno-hipófise, e (3) ausência ou destruição das células hipofisárias
produtoras de hormônios.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
201

Hipopituitarismo Adquirido
A etiologia do hipopituitarismo adquirido pode resultar de várias
condições que acometem a hipófise e/ou hipotálamo (Tabela 1). As
principais causas, em ordem decrescente de ocorrência, foram: tumor
hipofisários ou consequência do seu tratamento (cirurgias e/ou radio-
terapia); tumor extra-hipofisário (craniofaringioma, cordomas, glio-
mas, menigiomas); idiopáticos; doenças inflamatórias e infiltrativas;
e síndrome de Sheehan.

Adenoma hipofisários: São as neoplasias intracranianas mais co-


muns e responsáveis por 10,7% dos tumores primários do sistema
nervoso central (SNC). Podem ser classificados em macroadeno-
mas (> 10 mm) ou microadenomas (< 10 mm) e funcionantes (3/4
dos casos) ou não funcionantes (1/4 dos casos). O hipopituitarismo
causado por adenomas pode resultar da compressão ou destruição
do parênquima hipofisário ou compressão da haste hipofisária pelo
tumor. Nos casos de prolactinomas (principal tumor da subdivisão
dos funcionantes), o hipogonadismo hipogonadotrófico resulta da
inibição, pela hiperprolactinemia, da secreção da kisspeptina por
neurônios hipotalâmicos, uma vez que este neuropeptídeo é um po-
tente secretagogo da secreção de GnRH.
Síndrome da sela vazia: sela vazia, ou aracnoidocele selar, é um
achado de imagem caracterizado pela presença de herniação arac-
nóidea (uma das meninges cranianas) para dentro do espaço selar,
o que resulta em compressão da hipófise contra o assoalho da sela.
Pode ser uma sela vazia primária (incompetência congênita do dia-
fragma selar), ou secundária (infarto de adenoma hipofisário, dano
no assoalho selar por cirurgia ou radioterapia, hipofisites, síndrome
de Sheehan, etc.). Embora a sela vazia seja, em geral, um achado aci-
dental, o hipopituitarismo tende a acontecer se mais de 90% do teci-
do hipofisário estiver comprimido ou atrofiado.

Tabela 1: Etiologia do hipopituitarismo adquirido.

Lesões neoplásicas da região selar


Adenoma hipofisário
Tumores hipotalâmicos
Meningiomas, linfoma, plasmocitoma e cordomas
Metástases hipofisárias ou hipotalâmicas
Neoplasias hematológicas (leucemia, linfoma)
UNIDADE 3. HIPÓFISE
202

Doenças selares compressivas não neoplásicas


Síndrome da sela vazia, cisto da bolsa de Rathke, cistos dermoide, epidermoide o aracnoide
Doenças vasculares
Apoplexia hipofisárias, síndrome de Sheehan, arterite, aneurismas, anemia falciforme, acidente vascular
cerebral isquêmico, síndrome do anticorpo antifosfolipídio (síndrome de Hughes).
Doenças infiltrativas
Sarcoidose, granulomatose de Wegener, Hemocromatose, histiocitose das células de Langerhans
Doenças infecciosas ou parasitárias
Neurocisticercose, tuberculose, abscesso hipofisário, toxoplasmose, infecções virais (p.e CMV) ou
fúngicas (p.e Histoplasmose), meningite aguda (viral ou bacteriana), sífilis
Doenças inflamatórias
Hipofisites (primárias ou secundárias)
Hipopituitarismo de causa traumática
Cirurgia, traumatismo cranioencefálico, radioterapia
Hipopituitarismo funcional
Nutricional (desnutrição, anorexia nervosa, restrição alimentar)
Atividade física excessiva
Distúrbios endócrinos (hipotireoidismo, hiperprolactinemia, Hipercortisolismo etc.)
Doenças críticas (Insuficiência renal crônica ou hepática, SIDA, doenças agudas)
Hipopituitarismo induzido por medicamentos ou drogas ilícitas
Imunomoduladores (interferon-α)
Quimioterápicos
Drogas ilícitas (cocaína e maconha)
Medicações (esteroides anabolizantes, glicocorticoides, estrogenioterapia, agonistas do GnRH)
GnRH: hormônio liberador de gonadotrofina
Adaptado de Pekic e Popovic, 2017; Alxandraki e Grossman,2019.

Apoplexia hipofisária: é um distúrbio grave e potencialmente fa-


tal. Resulta da destruição abrupta do tecido hipofisário, devido ao
infarto agudo hemorrágico da glândula. Em geral, está associada
à presença de tumores hipofisários, sobretudo de macroadeno-
mas, ou decorre de seu tratamento (por exemplo pós-radioterapia
ou após medicamentos agonistas dopaminérgicos ou análogos
da somatostatina). Contudo, pode ocorrer espontaneamente em
uma glândula normal, após hemorragia obstétrica (síndrome de
Sheehan), em síndromes de hipertensão intracraniana ou como
complicações de anticoagulação sistêmica. A apresentação clínica
é variável e consiste em sinais e sintomas neurológicos e endocri-
nológicos. A cefaleia é a queixa mais frequente, seguida de déficits
visuais, paralisia de nervos cranianos, náuseas e vômitos. Hipopi-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
203

tuitarismo ocorre em 80% dos casos: deficiência de ACTH, em até


80%; de TSH até 50%; e gonadotrofinas em até 75%.
Síndrome de Sheehan: conhecida também como necrose hipo-
fisária pós-parto, caracteriza-se pelo hipopituitarismo pós-par-
to secundário à necrose hipofisária, decorrente de hipotensão ou
choque, em virtude de hemorragia maciça durante ou logo após
o parto. A síndrome de Sheehan pode levar a graus variados de
hipopituitarismo, agalactia e hipoplasia hipofisária ou síndrome
da sela vazia secundária. Os sinais e sintomas costumam aparecer
lentamente, após um período de meses a anos. Contudo, é frequen-
te a ausência de lactação (agalactia) após o parto.

Hipopituitarismo Congênito
O hipopituitarismo congênito ocorre a partir de anomalias estrutu-
rais da hipófise ou de distúrbios hereditários que levam a desordens
na citodiferenciação e na secreção hormonal de uma ou mais linha-
gens celulares. Ocorrem de maneira habitual na infância e adolescên-
cia, com manifestação clínica variável.

Anomalias estruturais: costumam ser raras e se manifestam com


aplasia (ausência), hipoplasia parcial ou tecido hipofisários rudi-
mentares ectópicos. Estas alterações podem vir acompanhadas
de outras anormalidades, como encefalocele basal, hipoplasia do
nervo óptico, anencefalia, lábio leporino e palato em ogiva. A repo-
sição de hormônios hipofisários passa a ser necessária para toda
vida nos indivíduos sobreviventes.
Distúrbios hereditários: ao nascimento, a adeno-hipófise é com-
posta por cinco tipos celulares, classificados de acordo com os hor-
mônios que secretam: tireotrofos (TSH), somatotrofos (GH), gona-
dotrofos (LH e FSH), corticotrofos (ACTH) e lactotrofos (prolactina).
Para diferenciação e proliferação destas células, participam vários
fatores transcritores que são necessários para adequada produção
hormonal. Quando ocorrem mutações dos genes que codificam es-
tes fatores transcritores, hormônios ou receptores, podemos ter de-
ficiências isoladas ou combinantes dos hormônios hipofisários.
Doenças congênitas: fazem parte do rol de doenças congênitas o
hipogonadismo hipogonadotrófico congênito e as síndromes de
Prader-Willi, Kallmann e Laurence-Moon-Biedl. No entanto, a sín-
drome de Prader-Willi costuma ser a principal representante da
classe. Esta síndrome é caracterizada por retardo mental discreto,
como o primiro sinal de puberdade, hipotonia muscular, hiperfagia
intensa e obesidade. Esta condição tem sido atribuída a translo-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
204

cação do cromossomo 15. Acredita-se que isso leva à disfunção de


vários centros hipotalâmicos, sendo a deficiência de GH e o hipogo-
nadismo os mais comuns.

4. Anamnese e exame físico:

Em relação à deficiência hormonal, o quadro clínico costuma ser


variável e dependente da causa de base, do grau de comprometimen-
to da glândula e da época em que a doença surgiu (Tabela 2). Já os
pacientes com lesões hipotalâmico-hipofisárias, geralmente expan-
sivas, podem apresentar também sintomas compressivos, caracteri-
zados por cefaleia (compressão da dura-máter ou hipertensão intra-
craniana), alterações de campo visual (compressão de nervo óptico)
e paralisia de nervos periféricos III, IV, V e VI (extensão lateral lesão).

Deficiência de GH: esta deficiência surge sempre quando há defici-


ência de outras duas ou mais trofinas hipofisárias. Na criança, mani-
festa-se por redução da velocidade de crescimento, baixa estatura, mi-
cropênis, lipodistrofia abdominal, hipoglicemia, hipotrofia muscular
e implantação incorreta dos dentes. No adulto, observa-se fraqueza,
depressão, osteoporose, labilidade emocional, redução de massa ma-
gra, aumento de massa gorda, esteatose hepática, aumento de LDL-co-
lesterol. Em razão da alta prevalência de síndrome metabólica nesse
grupo de pacientes, verifica-se aumento do risco cardiovascular.

Deficiência de gonadotrofinas: esta deficiência costuma ser a mais


precoce no curso do hipopituitarismo. Se ocorre antes da puberdade,
os pacientes não apresentam os caracteres sexuais secundários. Após
a puberdade, as principais manifestações na mulher são amenorreia
secundária, perda da libido, atrofia mamária, osteopenia ou osteopo-
rose, infertilidade e dispareunia. No homem, o quadro é caracterizado
por redução da massa muscular, astenia, atrofia testicular, gineco-
mastia, redução do líquido ejaculado e azoospermia.

Deficiência de ACTH: esta deficiência leva à perda da estimulação


das camadas reticular e fasciculada das glândulas adrenais, preju-
dicando a secreção de glicocorticoides (principalmente o cortisol) e
androgênios. A secreção de mineralocorticoides é pouco ou nada afe-
tada, pois seu eixo principal de regulação é o sistema renina-angio-
tensina-aldosterona; logo, são pouco comuns os sintomas referentes a
distúrbios hidroeletrolíticos graves. Das manifestações clínicas des-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
205

se distúrbio, pode-se destacar a fraqueza, astenia, anorexia, perda de


peso, hipotensão postural leve, hipoglicemia, e em casos mais graves,
hiponatremia.

Deficiência de TSH: a deficiência de TSH costuma ocorrer quando


o hipopituitarismo já se encontra avançado e tem manifestações clí-
nicas mais marcantes (astenia, sonolência, pele seca e descamativa,
intolerância ao frio, hiporreflexia profunda, edema facial, bradicardia
e anemia). Contudo, a grande maioria dos pacientes é assintomática
ou oligossintomática. Isso ocorre, pois 10 a 15% da produção tireoidia-
na é independente do TSH.

Deficiência de prolactina: bastante rara, ocorre apenas quando a


hipófise anterior é completamente destruída ou em paciente com de-
ficiência congênita de prolactina. Quando presente, está relacionada
à deficiência grave de outros hormônios, sendo o principal sintoma
clínico a ausência de lactação. Na verdade, a maioria das doenças es-
truturais da hipófise cursa com hiperprolactinemia por compressão.
Lembra que falamos, lá no início, que o controle da prolactina era uma
exceção (efeito inibitório da dopamina)? Pois bem, deve haver a des-
truição completa da glândula para não ocorrer secreção de prolacti-
na. O exemplo clássico é a Síndrome de Sheehan. Como já descrito
anteriormente, há isquemia completa da hipófise, e o quadro clínico
anedótico é de uma mulher com sangramento intenso e hipotensão
arterial no parto, às vezes necessitando transfusão, que não conse-
guiu amamentar o bebê.

Tabela 2: Manifestações clínicas do hipopituitarismo.

Deficiência hormonal Sinais e sintomas


Fraqueza, depressão, diminuição da densidade mineral óssea, labilidade
emocional, redução da massa magra e na capacidade de esforço físico,
GH (adultos)
aumento da massa gorda (predominante no tronco), esteatose hepática,
aumento do LDL-colesterol, aumento do risco de doença cardiovascular, etc.
Atraso na velocidade de crescimento, baixa estatura, micropênis,
GH (crianças) implantação anômala de dentes, hipoglicemia, lipodistrofia abdominal,
hipotrofia muscular, etc.
Fraqueza, astenia, constipação intestinal, intolerância ao frio, etc. (leia no
TSH (adultos)
capítulo de hipotireoidismo).
TSH (crianças) Atraso no crescimento.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
206

Agudo: fraqueza, astenia, hipotensão postural, náusea e vômitos, diarreia,


ACTH mialgias, etc.
Crônico: astenia, perda ponderal, náusea.
Deficiência hormonal Sinais e sintomas
Pré-puberal: puberdade atrasada, amenorreia primária, etc.
Gonadotrofinas – LH e
Pós-puberal: distúrbio menstrual (oligomenorreia ou amenorreia),
FSH (sexo feminino)
diminuição da libido, ressecamento vaginal, infertilidade etc.
Pré-puberal: puberdade atrasada, micropênis, hipotrofia testicular, etc.
Gonadotrofinas – LH e
Pós-puberal: diminuição da libido, disfunção erétil, infertilidade, síndrome
FSH (sexo masculino)
metabólica, etc.
Prolactina Ausência de lactação.

5. Exames complementares:

A tabela 3 cita os principais exames complementares utilizados


para investigação e diagnóstico de hipopituitarismo. Observe tam-
bém os achados esperados em cada exame diante de um quadro de
hipopituitarismo. Você deve estar imaginando que as dosagens de
hormônios hipofisários devem estar baixas ou indetectáveis, pois não
há secreção adequada. Surpreenda-se que elas podem estar normais
e, mesmo assim, deficientes. Dependendo do indivíduo, pode haver
uma produção insuficiente para estimular qualquer glândula efetora,
mesmo com valores considerados “adequados” pelos valores de refe-
rência do laboratório. Por isso, deve-se atentar com a dosagem dos
hormônios finais (T4 em relação à função tireoidiana, por exemplo,
que estará baixo no hipotireoidismo central) e na história clínica do
paciente. Aí também entra o importante papel dos testes dinâmicos
para avaliar a função hipofisária (descritos na tabela 4).

Tabela 3: Principais características laboratoriais do hipopituitarismo.

Deficiência de gonadrotrofina
LH e FSH basais: baixos ou normais
Testosterona matinal baixa (em homens)
Estradiol baixo (em mulheres)
Deficiência de TSH
TSH basal: baixo ou normal; às vezes, algo elevado (em geral, < 10 mUI/L)
T4 livre baixo, T3 normal ou baixo
Deficiência de ACTH
ACTH basal: baixo ou normal (< 10 pg/mL)
Cortisol basal < 3 µg/dL
Durante ITT ou após estímulo com ACTH sintético (250 µg), pico de cortisol < 18 µg/dL
Deficiência de GH
UNIDADE 3. HIPÓFISE
207

GH basal, IGF-1 e IGFBP-3 baixos ou normais


Durante teste de tolerância à insulina (ITT), pico de GH < 3 a 5 ng/mL em adultos e < 5 ng/mL em crianças
TSH biologicamente inativo. IGFBP-3: proteína ligadora de IGF tipo 3; ITT: teste de intolerância à insulina.
Tabela 4: Testes dinâmicos para avaliação da função da adeno-hipófise.

Teste Procedimento Resposta normal Efeitos adversos Contraindicações


ACTH
Teste de tolerância Coletar amostras Pico de cortisol Sudorese, Idosos, portadores
à insulina (ITT) para dosagem do ≥ 18 µg/dL, com palpitação, tremor; de doenças
cortisol, basal de documentação crise convulsiva vasculares,
30, 60, 90 e 120 min de hipoglicemia por hipoglicemia cardiopatias,
após a administração (glicose < 40 indivíduos com
EV de insulina mg/dl) durante história de
Regular (0,05 a 0,1 o teste convulsão
U/Kg)
Estímulo de ACTH Administrar ACTH Pico de cortisol ≥ Raros
(1 µg) IM e dosar 18 µg/dL
cortisol nos tempos
0’, 30’ e 60’
GH
Teste de tolerância Coletar amostras Pico de GH > Sudorese, Idosos, portadores
à insulina (ITT) para dosagem do GH 5 ng/mL (em palpitação, tremor; de doenças
e glicemia basal e adultos) e > crise convulsiva vasculares,
30, 60, 90 e 120 min 3,3 ng/mL (em por hipoglicemia cardiopatias,
após administração crianças) indivíduos
EV de insulina com história
Regular (0,05 a 0,1 U/ de convulsão,
Kg). Jejum de 6h para crianças com
< 5 anos e de 8h para menos de 2 anos
> 5 anos.
Teste de estímulo Administrar glucagon Pico de GH > Náusea, vômito e Menores de 1 ano.
com glucagon 0,03 mg/kg (máx. 5 ng/mL (em cefaleia
(GST) 1 mg). Dosar GH e adultos) e >
glicemia nos tempos 3,3 ng/mL (em
0’, 30’, 60’, 90’, 120’, crianças)
150’, 180’, 210’ e
240’. Jejum de 6h
para < 5 anos e de 8h
para > 5 anos.
Teste de estímulo Administrar 0,15 Pico de GH > Hipotensão Menores de 2
com clonidina mg/m² da superfície 3,3 ng/mL (em arterial, sonolência anos, presença de
(CST) corporal (máx. 0,2 crianças) e broncoespasmo. bradiarritmias.
mg) VO. Dosar GH
nos tempos 0’, 60’,
90’ e 120´. Jejum de
6h para < 5 anos e de
8h para > 5 anos.

IM: via intramuscular; EV: via endovenosa; VO; via oral. Adaptado de Toogood e Stewart, 2008;
UNIDADE 3. HIPÓFISE
208

Chung et al., 2018; Yuen, 2018.

6. Diagnóstico:

A avaliação diagnóstica do paciente com suspeita de hipopituita-


rismo deve determinar: (1) a presença, o tipo e o grau de deficiência
hormonal; (2) a etiologia; e (3) a presença de alterações visuais. Um
rastreamento inicial da função hipofisária pode ser realizado a partir
das dosagens basais dos hormônios hipofisários e/ou das glândulas-
-alvo (conforme tabela 3).
A dosagem rotineira de cortisol, TSH e T4 livre, IGF-1, PRL, LH, FSH,
testosterona (homens) ou estradiol (mulheres) costuma ser suficiente
para o diagnóstico da maioria das deficiências. No entanto, para o diag-
nóstico de GH e ACTH, fazem-se necessários testes de estímulo, como o
teste de tolerância à insulina (ITT), ou outros (conforme tabela 4).

Deficiência de LH e FSH: o diagnóstico de hipogonadismo central é


sugerido por níveis reduzidos de testosterona, nos homens, e estradiol,
nas mulheres, quando os valores de LH e FSH estão baixos ou inapropria-
damente normais. As dosagens devem ser na primeira hora da manhã.

Deficiência de TSH: a confirmação do diagnóstico de hipotireoidis-


mo central se dá por níveis baixos de TSH e T4 (tiroxina) livre. Contudo,
alguns indivíduos acometidos, o TSH pode estar discretamente elevado
(porém < 10 mUI/L) ou normal, o que reflete um TSH imunologicamente
ativo, mas biologicamente inativo.

Deficiência de ACTH: o diagnóstico de insuficiência adrenal (IA) se-


cundária praticamente é confirmado, em pacientes com manifestação
sugestivas de IA (p.e., tontura, hipotensão e hipoglicemia), com detec-
ção em pelo menos duas ocasiões, de cortisol sérico basal matinal < 3
ug/dL e níveis de ACTH < 19 a 20 pg/mL. Porém, em um mesmo contex-
to clínico, um valor > 15 a 18 µg/dL virtualmente exclui a IA. O padrão
ouro é o ITT, no qual o cortisol e a glicemia são dosados. O teste avalia a
capacidade do córtex adrenal em responder ao ACTH. Para que o teste
seja considerado válido e confirmatório de IA secundária, é necessário,
respectivamente, que a glicemia caia abaixo de 40 mg/dL e ocorra um
pico de cortisol < 18 µg/dL. O ITT está contraindicado nos casos citados
na Tabela 4 e IA secundária recente (< 2 meses). Na suspeita de doença
hipofisária, se faz o teste com 1µg de cortrosina. Em resumo, pequena
dose já estimula as adrenais. Logo, conclui-se que a doença é central e
UNIDADE 3. HIPÓFISE
209

o córtex adrenal está preservado. Na suspeita da doença primária das


adrenais (este assunto é do capítulo de insuficiência adrenal), usa-se
dose maior (250 µg) de cortrosina. Ou seja, nem com uma dose alta, não
se consegue estimular o córtex adrenal. Assim há evidência de que aí
está o problema.

Deficiência de GH: o diagnóstico desta deficiência costuma ser desa-


fiador, principalmente, em adultos, por causa das manifestações clíni-
cas inespecíficas e da pouca utilidade dos níveis basais de GH e IGF-1.
O ITT é considerado o padrão-ouro (tabelas 4 e 5). Há alternativas ao
ITT, e os principais são o teste de estímulo com glucagon (GST) e o tes-
te de estímulo com clonidina (CST). Apesar dos pontos de corte para
considerar o exame normal estarem apresentados na Tabela 4, não há
consenso na comunidade médica nos diferentes testes, e estes devem
ser interpretados junto às informações clínicas.

7. Tratamento:

Em razão da secreção pulsátil e ritmos secretórios que variam por


inúmeros fatores, não é possível realizar uma reposição fisiológica dos
hormônios hipofisários no tratamento do hipopituitarismo, que é qua-
se sempre mediante a substituição dos hormônios dos órgãos-alvo.
Dependendo da deficiência hormonal a ser tratada, a abordagem e os
objetivos podem variar de acordo com o sexo e faixa etária, disponi-
bilidade e custo da medicação, e preferências do paciente. Contudo, a
questão-chave é conhecer as interações fisiológicas existentes entre os
eixos hipofisários, que são modificadas tanto pela doença quanto por
seu tratamento. Por fim, deve-se saber a finalidade a ser alcançada com
o tratamento, das quais o alívio dos sintomas, melhora da qualidade de
vida e a normalização ou redução das morbidades e das taxas de mor-
talidade associadas à doença são os principais objetivos. Acompanhe
estas informações na Tabela 6.

Deficiência de GH (DGH): a medicação de escolha é o GH humano re-


combinante (rhGH). Nas crianças, o objetivo é aumentar o crescimento
linear, normalizar a velocidade de crescimento e levar o paciente a alcan-
çar uma estatura final dentro da sua média familiar. A dose preconizada
é de 0,1 - 0,3 mg/kg/dia via subcutânea ao deitar-se. A resposta adequada
é influenciada pela adesão e duração da terapia com rhGH, e pela pre-
cocidade do tratamento. A melhor maneira de monitorar o tratamento é
acompanhando a curva de crescimento.
Pode-se manter a terapia com rhGH nos pacientes que estão transi-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
210

tando para a vida adulta, os quais persistam com DGH, em especial aque-
les sintomáticos, com baixa massa óssea para a idade. Nestes casos, o
esquema padrão de reposição é feito com base na vida adulta, com doses
menores e não calculadas por peso corporal, e monitoramento realizado
pela dosagem do fator de crescimento semelhante à insulina (IGF-1).
Nos adultos, raramente é necessário repor rhGH). A dose inicial de
rhGH é de 0,1 a 0,4 mg/dia, administrada por via subcutânea ao deitar-se,
sem relação com peso corporal. Na presença de deficiências hormonais
combinadas, o ideal é iniciar com a reposição de rhGH somente quando
as outras deficiências já estiverem compensadas. Na fase de titulação, a
dosagem do rhGH é ajustada a cada 4 a 6 semanas de acordo com os efei-
tos colaterais e os níveis plasmáticos de IGF-1, que devem ser mantidos
entre o valor médio e o limite superior da faixa de referência ajustada
para a idade do paciente. Os ajustes consistem em variações da dose de
0,1 a 0,2 mg/dia para mais ou para menos. No momento em que se alcan-
ça a dose de manutenção, a qual possui grande variabilidade individual,
o monitoramento com IGF-1 pode ser semestral ou anual.
Adverte-se que as mulheres que façam uso simultâneo de terapia es-
trogênica deem preferência às preparações transdérmicas (adesivos e
gel), pois o estrogênio oral antagoniza os efeitos do GH, sendo necessário
aumentar a dosagem de rhGH, o que reduz a eficiência e aumenta o cus-
to. O monitoramento terapêutico engloba avaliação anual da composição
corporal e da massa óssea por meio dos dados antropométricos, bioim-
pedância e/ou DXA.
Deve-se atentar para o surgimento de sinais e sintomas de insuficiên-
cia adrenal e hipotireoidismo e monitorar os níveis plasmáticos de cor-
tisol e T4 livre, pois o rhGH causa redução do T4 livre, associada ou não
com aumento do T3. Nesses casos, é necessário a reposição com levotiro-
xina após o início do rhGH. Na deficiência de GH há um aumento da ati-
vidade da 11β-hidroiesteroide desidrogena tipo 1 (HSD11B1), enzima que
converte a inativa cortisona em cortisol, e ao iniciar a terapia com rhGH,
cessa a atividade da HSD11B1 e o hipocortisolismo pode se fazer evidente.
Os efeitos colaterais são dose-dependente e têm relação com a reten-
ção hídrica provocada pelo GH. Nos adultos, a terapia inicial com baixa
dosagem, não relacionada com o peso corporal e paulatinamente titula-
da até a dose de manutenção, atenua o surgimento dos efeitos adversos,
os quais frequentemente são cefaleia, artralgias, mialgias, edema de ex-
tremidades e síndromes do túnel do carpo.
As contraindicações absolutas ao uso do rhGH são doenças malignas
ativas, retinopatia diabética proliferativa e hipertensão intracraniana be-
nigna. Ademais, não há contraindicação ao uso para diabéticos, contudo
é necessária monitorização frequente da glicemia de jejum e hemoglo-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
211

bina glicada nos pacientes obesos, com mais de 60 anos de idade e com
histórico familiar de diabete melito tipo 2.
Não há evidências que suportem a hipótese da recorrência de doen-
ças neoplásicas, novos tumores ou lesões hipofisárias, quanto ao uso do
rhGH. Por este motivo, o rastreio de neoplasias na população adulta tra-
tada ou em tratamento com rhGH deve seguir as ferramentas-padrão re-
comendadas para a população geral.

Tabela 5: Doses e monitoramentos da terapia de reposição hormonal do paciente


adulto com hipopituitarismo

Hormônio Reposição Dose habitual Monitoramento


GH humano Dose inicial: 0,1 a 0,3 mg/dia (0,45 a Resposta clínica, qualidade
recombinante (rhGH) 0,9 UI/dia) SC à noite, com titulação de vida, composição
GH até dose de manutenção (média de corporal, perfil metabólico,
0,43 mg/dia para homens e 0,53 mg/ IGF-1 (limite superior da
dia para mulheres) mediana)
Hidrocortisona 10 a 20 mg/dia VO, 2 a 3 tomadas Resposta clínica,
Acetato de cortisona 15 a 25 mg/dia VO, 2 a 3 tomadas observando os sinais de sub
ACTH
e superdosagem, e cartão/
Prednisona 2,5 a 7,5 mg/dia VO, 1 a 2 tomadas bracelete de alerta
Levotiroxina sódica Dose inicial: 25 a 100 µg/dia VO, 1 T4 livre (acima do terço
tomada, com titulação até a dose de superior)
TSH
manutenção [0,7 a 1,6 µg/Kg/dia (50
a 200 µg/dia)]
Estrogênios conjugados: 0,3 a 1,25
mg/dia VO
Estradiol micronizado: 1 a 2 mg/
dia VO
Etinilestradiol: 0,01 a 0,03 mg/dia VO
Estrogênio
Valerato de estradiol: 2mg/dia VO
Estrogênios transdérmicos: 25 a 50
ug, 2 vezes/semana Resposta clínica, exames
LH e FSH Estrigênios em gel hemi-hidratados: ginecológicos, perfil
(feminino) 0,5 a 1,5 g/dia cardiovascular, perfil
metabólico e hepático
Medroxiprogesterona: 2,5 mg a 10
mg/dia VO*
Progesterona micronizada: 100 a
Progesterona 200 mg/dia VO*
Noretindrona 0,35 mg/dia VO*
Gestodeno: 0,75 mg/dia VO*
Levonogestrel: 0,075 mg/dia VO*
Ésteres de testosterona: 250 mg IM,
durante 2-4 semanas
Resposta clínica,
Ciponato de testosterona: 200mg IM,
testosterona total,
LH e FSH durante 2-4 semanas
Testosterona hematócrito, PSA (>45
(masculino) Gel: 25 a 100 mg/dia
anos), perfil metabólico e
Undecaoato de testosterona: 1.000mg
hepático
Im, durante 3 meses
Solução tópica a 2%: 60 a 120 mg/dia
*7 a 10 dias do ciclo estrogênico. GH: hormônio do crescimento; TSH: hormônio tireoestimulante; LH:
hormônio luteinizante; FSH: hormônio folículo estimulante; ACTH: hormônio adrenocorticotrófico;
IGF-1: fator de crescimento semelhante à insulina; T4: tiroxina; PSA: antígeno prostático específico;
UNIDADE 3. HIPÓFISE
212

SC: via subcutânea; IM: via intramuscular; VO: via oral

Deficiência de ACTH - insuficiência adrenal secundária ou terciária:


particularmente, nos quadros de insuficiência adrenal secundária à
deficiência de ACTH, não há comprometimento do eixo renina-angio-
tensina-aldosterona, não sendo necessário a reposição com minera-
locorticoides.
A preocupação da deficiência de ACTH reside na grande possibili-
dade do paciente de desenvolver uma crise adrenal (hipotensão, hipo-
glicemia e choque), seja por um quadro agudo, como apoplexia hipo-
fisária, ou um quadro crônico, assintomático e estável sem reposição
de glicocorticoide. Nos dois casos, os gatilhos para a crise adrenal são
situações de estresse (infecções, traumas, cirurgias, etc.) que podem
ser agravadas por vômitos, hiponatremia e fadiga extrema.
Pacientes que tenham insuficiência adrenal devem ser orientados
a carregar consigo uma identificação (bracelete, cartão ou corrente)
com informações sobre a doença e da possibilidade de crise adrenal,
devendo ter uma preparação com corticoide injetável de uso emer-
gencial.
O foco do tratamento é repor, o mais fisiologicamente possível, a
menor dose de glicocorticoide que mantenha o paciente livre dos sin-
tomas de insuficiência adrenal e sem os riscos do hipercortisolismo
iatrogênico. Logo, deve-se lembrar que a produção diária de cortisol
nos pacientes saudáveis é de 5 a 10 mg/m² de área corporal, o que
corresponde a dose de 10 a 20 mg/dia de hidrocortisona. Nas crianças,
a reposição oral diária com hidrocortisona está entre 10 e 25 mg/m².
Os efeitos colaterais do uso de glicocorticoides decorrem de doses
suprafisiológicas, até mesmo discretas, e podem provocar obesidade
visceral, aumento da pressão arterial, dislipidemia, perda acentuada
de massa óssea e vertebral, e aumento da mortalidade.
Existem diversas formulações e esquemas terapêuticos para repo-
sição de glicocorticoide. O mais utilizado é a reposição com hidrocor-
tisona oral, dose de 20 mg/dia, feita da seguinte maneira: 10 mg ao
acordar, 5 mg ao meio-dia e 5 mg no final da tarde.
Há também a prednisona que, devido sua meia-vida prolongada,
pode ser usada em dose única pela manhã, variando de 2,5 a 5mg, ou
em duas doses diária (2/3 pela manhã e 1/3 no meio da tarde), com
dosagens de até 7,5 mg/dia.
Alguns pacientes podem necessitar de alteração nas doses quando
iniciam tratamento simultâneo com rhGH. Como visto anteriormente,
o início da terapia com rhGH pode tornar clinicamente visível uma
UNIDADE 3. HIPÓFISE
213

insuficiência adrenal secundária até então desconhecida, pois o GH


inibe a atividade da HSD11B1, a qual converte cortisona em cortisol.
Quaisquer ajustes neste ou em outros casos depende de análise da si-
tuação clínica do paciente (anamnese e exame físico), pois nenhuma
dosagem hormonal é útil para monitoramento.
Nas situações a seguir, é necessário que o paciente dobre ou tri-
plique a dose de glicocorticoide oral ou reponha por via parenteral:
gastroenterite, cirurgia de grande e médio porte, traumatismos e do-
enças infecciosas agudas. Se houver qualquer sinal de crise adrenal
aguda, devem ser aplicados 50 a 100 mg de hidrocortisona endoveno-
sa ou intramuscular, e, dependendo da situação, essa dose deverá ser
repetida outras vezes até a resolução da crise adrenal e seus gatilhos
desencadeante.

Deficiência de TSH - hipotireoidismo central: a reposição com le-


votiroxina sódica é feita em doses orais únicas ao acordar pela manhã,
aproximadamente, 30 minutos antes de se alimentar. Nos adultos, po-
de-se iniciar o tratamento com doses variando entre 50 e 100 µg/dia,
exceto nos cardiopatas e idosos, nos convém usar doses menores que
25 µg/dia, ajustando a cada 15 dias até atingir a dose de manutenção.
A posologia de manutenção é de 0,7 a 1,6 µg/Kg/dia, devendo ser um
pouco maior nos pacientes que necessitam de reposição com rhGH e/
ou estrogênios. Deve-se monitorar em 6 semanas os níveis de T4 li-
vre, nos pacientes que iniciam reposição com rhGH e/ou estrogênios,
para ajuste da dose de manutenção. Isso se dá em razão da queda dos
níveis de T4 livre para faixa mediana dos valores de referência, não
requerendo aumento da dose de levotiroxina, uma vez que ocorre au-
mento simultâneo nos níveis de tri-iodotironina (T3) sérica, devido a
maior conversão de T4 em T3 promovida pelo o GH. Deve-se atentar
que, nesta situação, convém dosar o nível total de T3 para averiguar
uma possível superdosagem de levotiroxina.
Nos pacientes com níveis reduzidos de cortisol há a necessidade
de documentar tal estado e iniciar, antes ou ao mesmo tempo, a repo-
sição com levotiroxina, pois o hormônio tireoidiano pode aumentar a
demanda por glicocorticoides e eventualmente precipitar uma crise
adrenal.

Deficiência de FSH e LH – hipogonadismo hipogonadotrófico: no


público masculino adulto, a reposição com androgênios oferece be-
nefícios sobre a densidade mineral óssea, eritropoiese, composição
corporal, função sexual, humor e comportamento. Contudo a resposta
UNIDADE 3. HIPÓFISE
214

a reposição androgênica, quanto aos sintomas sexuais, é maior nos


pacientes com hipogonadismo recente, em comparação com aqueles
portadores de longa duração e naqueles com hipogonadismo congêni-
to ou adquirido na vida adulta.
O arsenal terapêutico é variado, e conta com medicações de va-
lor acessível e posologia confortável. Os ésteres de testosterona são
uma terapia barata e rotineiramente utilizados na prática clínica,
por via intramuscular (região glútea), com dosagem individualizada,
uma dose a cada 2 a 4 semanas. Contudo, o uso deste medicamento
está associado a flutuações importantes nos níveis de testosterona. A
apresentação comercial no Brasil pode ser encontrada em cipionato
de testosterona em ampolas de 2 mL com 200 mg, e um combinado de
ésteres de testosterona em 1 mL com 250 mg. Majoritariamente, apli-
ca-se a dose de uma ampola inteira, mas doses menores (110 a 150 mg)
e alteração nos intervalos de aplicação podem ser feitos para evitar as
oscilações, especialmente em crianças, adolescentes e idosos.
Buscando evitar as flutuações nos níveis de testosterona, dispõe-se
de uma formulação de undecanoato de testosterona de longa dura-
ção, na qual a principal vantagem é a manutenção de concentrações
séricas mais estáveis de testosterona, porém a um custo terapêutico
maior. Outra apresentação é em forma de gel, contendo 25 ou 50 mg
de testosterona para aplicação sobre a pele dos braços e/ou ombros,
com dosagem inicial de 50 mg, não devendo ultrapassar 100 mg. Estas
apresentações tópicas podem causar irritação no local de aplicação.
Deve-se lavar as mãos após a aplicação do produto para evitar a trans-
ferência para outras pessoas.
A terapia de reposição androgênica está contraindicada nos homens
com câncer de mama ou próstata. Ademais, não devem ser iniciadas
nos pacientes com níveis de antígeno prostático específico (PSA) > 4
ng/mL ou 3 ng/mL naqueles com elevado risco para câncer de prósta-
ta, hiperplasia prostática benigna com sintomas urinários obstrutivos
(escore internacional de sintomas prostáticos [IPSS] > 19), hematócrito
> 52%, nódulo prostático palpável, apneia obstrutiva do sono grave não
tratada, ou com insuficiência cardíaca congestiva grau III e IV.
Deve-se, inicialmente, monitorizar o tratamento a cada 3 a 6 meses,
com atenção a sintomatologia clínica, eventos adversos e níveis de
testosterona total. O monitoramento pode ser anual após a estabili-
zação. O sangue para dosagem de testosterona total deve ser coletado
em jejum pela manhã, no mesmo dia da injeção ou no anterior. Nestas
três situações, os níveis plasmáticos devem estar no limite inferior
da normalidade. Caso a amostra seja coletada uma semana após a
UNIDADE 3. HIPÓFISE
215

aplicação, os níveis de testosterona sérica têm de estar na média da


faixa de referência. Os pacientes que repõem de maneira tópica ou
duração prolongada, tem como meta manter os níveis de testosterona
no meio da faixa de referência normal. Devem ser monitorados tri-
mestralmente após cada ajuste na dose, e depois anualmente: hemo-
globina, hematócrito, função hepática e perfil lipídico. Sugere-se sus-
pender temporariamente a reposição com testosterona nos pacientes
com hematócrito > 54% ou que apresentem piora da apneia obstrutiva
do sono. A densitometria óssea deve ser realizada antes da reposição
e, após, a cada 1 ou 2 anos. O monitoramento prostático tem de ser
feito nos pacientes com mais de 45 anos de idade, por meio do toque
retal, ecografia prostática e aferições sequências de PSA, observado se
não ocorrem aumentos superiores do que 1,4 ng/dL nas concentrações
plasmáticas em um período de 1 ano de tratamento.
Quanto ao público feminino adulto, é importante salientar que as
mulheres com útero devem ser sempre acompanhadas com adminis-
tração cíclica ou contínua de progestógenos. Há variadas formas de
apresentação, desde comprimidos até adesivos, implantes ou géis.
A reposição de progesterona somada a terapia estrogênica evita a
hiperplasia endometrial e regulariza a menstruação. A escolha é in-
dividualizada, de acordo com a preferência e reposta terapêutica. As
formulações disponíveis são a progesterona micronizada (100 a 200
mg), o acetato de medroxiprogesterona (2,5 a 10 mg) e os progestóge-
nos tipo 19-nor: gestodeno 0,75 mg, levonogestrel 0,075 mg ou noretin-
drona 0,35 mg. Essas medicações podem ser utilizadas nos últimos 7
a 10 dias do ciclo estrogênico.
Uma das principais desvantagens do uso oral de estrogenioterapia
em comparação com a via transdérmica ou tópica, é a primeira pas-
sagem hepática, que resulta em estímulos para a síntese de proteínas
pró-trombóticas e pró-inflamatórias, e tem efeitos indesejáveis sobre
a pressão arterial e os níveis de globulina ligadora de hormônios se-
xuais. Ademais, o estrogênio oral reduz a síntese hepática de IGF-1,
podendo ser necessário o aumento da dose de rhGH nos tratamentos
simultâneos.
Por outro lado, a vantagem da terapia oral é a redução do colesterol
LDL e aumento do colesterol HDL, propiciando um perfil lipídico me-
nos aterogênico.
O acompanhamento terapêutico é feito com base no quadro clí-
nico, não tendo grande utilidade a dosagem de gonadotrofinas ou de
esteroides sexuais para determinar a segurança do tratamento e sua
efetividade. Os maiores cuidados são referentes aos potenciais efeitos
UNIDADE 3. HIPÓFISE
216

adversos sobre o sistema cardiovascular, risco de câncer de mama,


peso e doença trombótica.
Miscelâneas: as mulheres gestantes com diagnóstico de hipopi-
tuitarismo possuem particularidades quanto ao tratamento. Quando a
deficiência é de ACTH, o glicocorticoide de escolha é a hidrocortisona,
pois ela é degradada pela enzima 11β-hidroxiesteroide deidrogenase-2
e não passa a barreira placentária. A dosagem é mantida entre 12 e 15
mg/m² de área corporal, com ajuste conforme análise clínica. Durante
o trabalho de parto, deve ser administrada uma dose de estresse de 50
mg de hidrocortisona parenteral, e no caso de procedimento cesáreo,
recomenda-se doses de 100 mg a cada 6 a 8 horas. Nas deficiências
de TSH, a reposição com levotiroxina tem que ser monitorizada com
dosagens de T4 livre ou T4 total a cada 4 a 6 semanas. Pode ser ne-
cessário ajustes de dosagem na fase inicial da gestação, similar as
mulheres com hipotireoidismo primário, porém mais discreto, pois a
tireoide normal das mulheres com hipotireoidismo central costuma
responder ao estímulo do hCG. Por fim, as mulheres em tratamento
com rhGH devem descontinuá-lo, sobretudo, após o primeiro trimes-
tre, uma vez que nessa fase gestacional a produção placentária de GH
se inicia e substitui, de maneira fisiológica, a secreção hipofisária.

8. Prognóstico:

O prognóstico do hipopituitarismo costuma ser bastante variável.


É dependente da fisiopatologia (congênito ou adquirido, por exemplo,
sendo diferente de acordo com cada etiologia), do tempo de duração
da síndrome e do quanto os níveis hormonais foram afetados. Estes
pacientes devem ser, portanto, acompanhados de forma integral e lon-
gitudinal, com ênfase na avaliação dos hormônios afetados e em rela-
ção à necessidade ou não de terapia medicamentosa.

9. Tabela de resumo:

Epidemiologia As taxas relatadas de incidência (12 a 42 novos casos por milhão ao ano)
e prevalência (300 a 455 por milhão) são provavelmente subestimadas,
caso se considere a frequente ocorrência (25 a 50%) após traumatismo
cranioencefálico.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
217

A doença pode surgir por meio de três mecanismos:


1) Redução da secreção/liberação dos hormônios hipotalâmicos, exemplo
são os casos de hipopituitarismo funcional.
Fisiopatologia 2) Interrupção da entrega dos hormônios hipotalâmicos à adeno-hipófise,
exemplo são os adenomas hipofisários compressivos.
3) Ausência ou destruição das células hipofisárias produtoras de hormônios,
exemplo é a síndrome de Sheehan.
Anamnese e exame físico Costuma ser variável e dependente da causa de base, do grau de
comprometimento da glândula e da época em que a doença surgiu.
Lesões hipotalâmico-hipofisárias, geralmente expansivas, podem
apresentar também sintomas compressivos, caracterizados por cefaleia
(compressão da dura-máter ou hipertensão intracraniana), alterações de
campo visual (compressão de nervo óptico) e paralisia de nervos periféricos
III, IV, V e VI (extensão lateral lesão).
Exames complementares Avaliação dos eixos tireotrófico e gonadotrófico: dosagem de TSH,
hormônios tireoidianos, LH, FSH, hormônios sexuais e prolactina.
Avaliação de deficiência de GH ou ACTH: testes dinâmicos, particularmente
o teste de tolerância à insulina (ITT).
Diagnóstico É feito com base em amostras de sangue basais para avaliação dos eixos
tireotrófico e gonadotrófico. Contudo, para o diagnóstico de deficiência de
GH e ACTH, são necessários na maioria dos casos testes dinâmicos.
Tratamento Reposição dos hormônios que estão deficientes, de acordo com cada caso:
reposição androgênica (no sexo masculino) ou estroprogestogênica (no
feminino), reposição de hormônio do crescimento (GH), administração de
glicocorticoide e/ou terapia com levotiroxina.

10. Leitura recomendada:

ALAXANDRAKI KI, Grossman A. Management of hypititarism. J Clin Med.


2019; 8:2153.

ALLEN DB, Backeljauw P, Bidlingmaier M et al. GH safety workshop position


paper: a critical appraisal of recombinant human GH therapy in children and
adults. Eur J Endocrinol. 2015; 174:P1-9.

TAKAHASHI Y. Mechanisms in endocrinology: autoimmune hypopituitarism:


novel mechanistic insights. Eur J Endocrinol. 2020; 182(4):R59-66.

VAN BUNDEREN CC, Glad C, Johannsson G et al. Personalized approach to growth


UNIDADE 3. HIPÓFISE
218

Capítulo 14

Diabetes Insipidus
Nina Guterres Ragagnin
Bruna Luisa Franke
Rafael Vaz Machry

1. Introdução:

O Diabetes Insipidus (DI) é uma síndrome que se caracteriza pela inca-


pacidade de concentração do filtrado urinário, acarretando aumento do
volume urinário e urina hipotônica (mais diluída). Esta síndrome pode
ocorrer por deficiência do hormônio antidiurético (ADH), sendo chamado
de DI central, neurogênico ou neuro-hipofisário, ou ocorrer pela resistên-
cia do efeito do ADH nos túbulos renais, sendo chamado então de DI renal
ou nefrogênico. Ainda podemos incluir uma forma rara e transitória da
doença, o DI gestacional, que ocorre a partir de enzimas que degradam
o ADH pela placenta. O quadro se manifesta comumente no terceiro tri-
mestre gestacional e tem sua resolução alguns dias após o parto.
É importante que façamos a diferenciação dos tipos de DI para ade-
quar corretamente o tratamento. O prognóstico dos pacientes portado-
res desta doença depende da etiologia, comorbidades associadas e da
realização do tratamento adequado.

2. Epidemiologia:

Nos anos de 2008 e 2009, foram registrados no SUS, respectivamen-


te, 63.863 e 73.768 procedimentos relacionados com o código de DI. Não
há dados consistentes de prevalência, mas geralmente a forma central é
mais frequente entre pacientes com outras doenças hipofisárias e a for-
ma renal acompanha a doença renal crônica. Neste capítulo, você vai
aprender sobre o DI central. Deixamos para a nefrologia as formas renais
.
3. Fisiopatologia:

O DI central se caracteriza pela diminuição da liberação do ADH,


também chamado de arginina-vasopressina, que é secretado na hipó-
fise posterior. Sua principal função é a conservação da água corpórea,
pela formação de urina hipertônica (bem concentrada - o que poupa a
perda hídrica) e regulação da osmolalidade dos líquidos corporais. A li-
UNIDADE 3. HIPÓFISE
219

beração deste hormônio é regulada por estímulos osmóticos e de volume


detectados por osmorreceptores localizados na região anteroventral do
terceiro ventrículo. Dessa forma, sua diminuição desencadeia um grau
variável de poliúria e decorre de distúrbios que afetam os osmorrecepto-
res hipotalâmicos, os núcleos paraventriculares ou a porção superior do
trato supra óptico-hipofisário.
As causas mais comuns de DI central incluem a idiopática, responsá-
vel pela maioria dos casos, tumores ou doenças infiltrativas, neurocirur-
gia e trauma.

DI central idiopática: está relacionada com a destruição das células


secretoras de hormônio nos núcleos hipotalâmicos. Além disso, um pro-
cesso autoimune está envolvido em muitos dos pacientes. Nesses indi-
víduos é possível encontrar a presença de anticorpos citoplasmáticos
dirigidos contra células vasopressinas. O processo autoimune se carac-
teriza por uma inflamação linfocítica da haste hipofisária e da hipófise
posterior.

DI central familiar: é uma doença autossômica dominante causada


por mutações no gene que codifica o hormônio antidiurético.

DI central por Síndrome de Wolfram: caracteriza-se por DI, diabetes


mellitus, atrofia óptica e surdez, com problemas cognitivos e psiquiátri-
cos que podem aparecer mais tardiamente. O DI neste distúrbio é devido
à perda de neurônios secretores de vasopressina no núcleo supraóptico e
ao processamento prejudicado dos precursores da vasopressina.

DI central por neurocirurgia ou trauma: o DI pode ser induzido por


neurocirurgia ou trauma no hipotálamo e na hipófise posterior. O cranio-
faringioma tem sido associado com quadros de DI antes e após a cirurgia.
Danos graves ao hipotálamo por neurocirurgia ou trauma resultam em
uma resposta trifásica típica ocorrendo uma fase poliúrica inicial (início
em 24 horas e duração de 4 a 5 dias), seguido por uma fase antidiurética
(nos 6 a 11 dias que se seguirem) e então DI permanente pode ocorrer
após o esgotamento dos estoques hipofisários. A maioria dos casos não é
permanente, cursando com DI transitória.

DI central por câncer: tumores primários ou secundários cerebrais


podem envolver a região do hipotálamo-hipófise e desenvolver DI.

DI central por encefalopatia hipóxica: uma encefalopatia hipóxica ou


isquêmica grave pode diminuir a liberação de ADH.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
220

4. Anamnese:

Os pacientes com DI irão relatar na anamnese quadro de poliúria


(volume urinário em 24 horas > 3 L [> 40 ml/kg] em adolescentes e adul-
tos). Muitos chegam a urinar mais de 10 litros ao dia! Também referem
noctúria (pela perda da capacidade de concentração da urina no pe-
ríodo da noite), polidipsia e desejo por líquidos gelados (pela elevação
inicial do sódio sérico e da osmolaridade).
O início dos sintomas costuma se dar de forma súbita e o aumento
do volume urinário, que pode chegar a até 18 litros em 24 horas, é com-
pensado com o aumento da ingestão hídrica. Diante disso, é importante
ficar sempre atento a distúrbios hidroeletrolíticos nesses pacientes!

5. Exame físico:

O exame físico destes pacientes costuma se apresentar sem altera-


ções ou com algum grau de desidratação, como pele e fâneros secos, xe-
rostomia, cefaleia, entre outros, especialmente se a perda urinária não
for rapidamente reposta.

6. Exames complementares:

Exames laboratoriais: pacientes com poliúria e concentração de só-


dio plasmático acima de 142 mEq/L sugerem o diagnóstico de DI cen-
tral. No diagnóstico diferencial entre DI central e polidipsia primária
pode ser necessário realizar teste de restrição hídrica. Para sua reali-
zação, sugere-se que o paciente seja internado em ambiente hospitalar,
pelo risco de desidratação e distúrbios hidroeletrolíticos graves. O obje-
tivo do teste é elevar a osmolalidade plasmática acima de 295 mOsmol/
kg ou o sódio plasmático acima de 145 mEq/L e avaliar a resposta à
administração de desmopressina. No próximo item você vai conhecer
o teste de restrição hídrica.
Exames de imagem: todos os pacientes com diagnóstico de DI cen-
tral devem se submeter a ressonância magnética de sela túrcica para
investigação etiológica e para afastar a presença de tumor. Há um
achado típico, mas não obrigatório: a ressonância cursa com ausência
de brilho na hipófise posterior.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
221

7. Diagnóstico:

O diagnóstico desta doença é clínico, podendo ter auxílio dos tes-


tes laboratoriais e de imagem. Sendo assim, os pacientes que cursa-
rem com poliúria e com resposta à administração de desmopressina
em vigência de osmolalidade plasmática acima de 295 mOsm/kg ou
sódio plasmático acima de 145 mEq/L, com aumento na osmolalidade
urinária acima de 15% e osmolalidade urinária acima de 300 mOsm/kg
são diagnosticados com a doença. O paciente que se encaixa em qual-
quer um desses critérios encontra-se apto a receber o tratamento para
DI central. Há também um grande diagnóstico diferencial, que é a po-
lidipsia primária. Nesta situação, o paciente toma muita água sem ter
disfunção da secreção de ADH ou resposta renal ao ADH. Pode ser de
cunho psiquiátrico ou social.

Como é feito o teste de restrição hídrica? Bem, veja o passo a passo:

1. Tomar água livremente na véspera do teste.


2. Suspender a ingestão de qualquer alimento ou líquidos (restrição hí-
drica). Controlar peso, pressão arterial, frequência cardíaca, volume
de diurese, osmolalidade urinária e plasmática no início e a cada
hora.
3. Primeira parte: considerar o teste positivo se em 1h haver:
Perda de peso maior ou igual a 3% para adolescentes/adultos e a 5%
para crianças;
Incremento da osmolalidade urinária superior a 10%;
Osmolalidade plasmática inferior a 295 mOsm/kg com osmolalida-
de urinária maior que 300 mOsm/kg;
Osmolalidade urinária menor que 600 mOsm/kg; ou
Término de 8 horas sem os critérios acima.
4. Quando o teste for suspenso, passa-se para a segunda parte: admi-
nistrar ADH sintético (DDAVP) por via intranasal 10 mcg e liberar
ingestão hídrica. Coletar amostra de sangue e urina 1h após.

Interpretação:
Primeira parte: osmolalidade urinária menor que 600 mOsm/kg e
osmolalidade plasmática maior que 295 mOsm/kg sugerem DI.
Segunda parte (após administração de DDAVP): aumento da osmo-
lalidade urinária superior a 50% sugere DI central, se aumento da
osmolalidade urinária menor que 10%, indica DI nefrogênico, e poli-
dipsia primária se osmolalidade urinária maior que 600 mOsm/kg.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
222

8. Tratamento:

O tratamento medicamentoso é realizado com desmopressina, um


análogo sintético do ADH. Além disso, a educação do paciente com DI
central é de suma importância. O paciente deve ser orientado a evitar a
ingestão de líquidos por qualquer outra razão que não seja saciar a sede,
para evitar uma intoxicação hídrica, ou seja, quando muito líquido é in-
gerido sem sede. Por fim, um ponto complementar na orientação desses
pacientes é evitar a diminuição do débito urinário abaixo do normal (15
a 30 mL/kg/dia).
A desmopressina é utilizada na dose: 0,1 mg/mL (100 mcg/mL) com
aplicação nasal (frasco de 2,5 mL em solução ou spray) e comprimi-
dos de 0,1 e 0,2 mg. A dose inicial de desmopressina de aplicação nasal
recomendada é de 10 mcg em adultos e adolescentes e de 5 mcg em
crianças e a dose inicial da apresentação oral é de 0,05 a 0,1 mg. O tra-
tamento do DI central deve ser mantido por toda a vida, evitando que a
sua suspensão cause danos ao paciente. Os efeitos adversos ao uso da
medicação incluem retenção hídrica, hiponatremia e ganho de peso.
Náusea, cefaleia e hipotensão são alguns sintomas adversos que ocor-
rem em menor frequência.

9. Prognóstico:

Os pacientes que fazem corretamente o tratamento possuem um


bom prognóstico, ocasionando melhora dos sintomas e da qualidade
de vida. Além disso, evitam complicações decorrentes de distúrbios hi-
droeletrolíticos.

10. Tabela de resumo:

Fisiopatologia Distúrbio na síntese, secreção ou ação do hormônio antidiurético ocasionando dificuldade


de concentração da urina e poliúria com secreção elevada de urina hipotônica.
Causas Genética, idiopática, adquirida, trauma, hipoxêmica e por tumores.
Sintomas Surgimento abrupto de poliúria, polidipsia e noctúria, inicialmente a osmolalidade
urinária é normal. Com a persistência dos sintomas o paciente pode evoluir com
desidratação e até mesmo hipovolemia.
Exames Hemograma, que mostrará hipernatremia; exame de restrição hídrica, para excluir
Complementares diagnósticos diferenciais; ressonância magnética, para avaliar a etiologia e existência
de tumores.
Diagnóstico Pacientes que cursam com poliúria e com resposta a administração de desmopressina
(teste de restrição hídrica).
Tratamento Administração de desmopressina e reeducação do paciente.
Prognóstico Depende da etiologia, comorbidades associadas e da realização do tratamento adequado.
UNIDADE 3. HIPÓFISE
223

11. Leitura recomendada:

De Souza, Mariana Cristina Alves, et al. “Aspectos clínicos, fisiológicos e


patológicos do Diabetes Insipidus Nefrogênico: uma revisão literária / Clinical,
physiological and pathological aspects of Nephrogenic Diabetes Insipidus: a
literary review”. Brazilian Journal of Health Review, vol. 4, no 2, abril de 2021,
p. 8198–215.

Figueiredo, Danielly Mesquita, e Flávia Lúcia Abreu Rabelo. “Diabetes insipidus:


principais aspectos e análise comparativa com diabetes mellitus”. Semina:
Ciências Biológicas e da Saúde, vol. 30, no 2, dezembro de 2009, p. 155–62.

Machado, Evelyn Cardinalli, et al. “RELATO DE CASO: HIPERNATREMIA POR


DIABETES INSIPIDUS / CASE REPORT: HYPERNATREMIA BY DIABETES
INSIPIDUS”. Brazilian Journal of Development, vol. 7, no 2, 2021, p. 16493–98.

Turcu, Adina F., et al. “Pituitary Stalk Lesions: The Mayo Clinic Experience”.
The Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism, vol. 98, no 5, maio de
2013, p. 1812–18.
UNIDADE 2. TIREOIDE
224

UNIDADE 4:

ADRENAIS
UNIDADE 4. ADRENAIS
225

Capítulo 15

Insuficiência Adrenal
Virgínia Nascimento Reinert
Gabrielle Simon Tronco
Graziella Rissetti

1. Introdução:

Iremos abordar agora as glândulas suprarrenais. Essas glândulas


estão localizadas no retroperitônio acima da face medial dos pólos su-
periores renais e podem ser divididas em medula e córtex. A medula
é responsável pela produção de catecolaminas (abordaremos melhor
no capítulo de feocromocitoma) e o córtex se subdivide em 3 camadas.
A mais externa se chama glomerulosa, e é responsável pela produção
de aldosterona. A intermediária é a fasciculada, que produz cortisol. A
camada mais interna é a reticular, que produz androgênios. A hipófise
anterior, por meio da produção de ACTH, estimula a secreção adrenal
de cortisol e androgênios. Já a produção da aldosterona é principal-
mente mediada pelo sistema renina-angiotensina-aldosterona, que
abordaremos no capítulo de hiperaldosteronismo.
Neste capítulo, você vai aprofundar seus conhecimentos sobre a
insuficiência adrenal. Ou seja, quando a função dessas pequenas glân-
dulas está prejudicada. Quando falamos sobre insuficiência adrenal,
estamos nos referindo à incapacidade de produção hormonal do cór-
tex glandular, seja por causas primárias (doenças que atacam direta-
mente as adrenais) ou por causas centrais ou secundárias (quando o
problema está na hipófise).
A insuficiência adrenal (IA) primária também conhecida como Do-
ença de Addison (DA) se caracteriza por uma deficiência de produção
hormonal de cortisol, aldosterona e androgênios (todas as camadas
estão prejudicadas). Causas que propiciam uma falta de hormônio
adrenocorticotrófico (ACTH) liberado pela hipófise ou causas hipo-
talâmicas de disfunção na liberação de hormônio liberador de corti-
cotropina (CRH) também podem precipitar uma IA, porém somente a
secreção de cortisol e androgênios está prejudicada, já que a aldoste-
rona sofre pouco controle do ACTH. Esta falta de comando por parte
do ACTH ou do CRH prejudica o adequado estímulo para o córtex da
adrenal, ocasionando IA secundária.
UNIDADE 4. ADRENAIS
226

2. Etiologias:

Primárias (Doença de Addison):


Usualmente decorrem de uma destruição anatômica da glândula
(adrenalites, doenças infiltrativas, hemorragia adrenal), de uma falência
metabólica da produção hormonal (hiperplasia adrenal congênita, agen-
tes citotóxicos e fármacos que são inibidores enzimáticos) ou de causas
genéticas. Vamos detalhar melhor a seguir?
A adrenalite autoimune corresponde a destruição do córtex adrenal
por mecanismos celulares imunes e humorais. Estes mecanismos tam-
bém podem estar associados à destruição autoimune de outras glându-
las endócrinas ocasionando as síndromes autoimunes poliglandulares.
Em média, metade dos pacientes acometidos com esta causa têm doen-
ças autoimunes adicionais.

A síndrome autoimune poliglandular tipo I é uma doença autossômica


recessiva rara que consiste principalmente em insuficiência adrenal, hi-
poparatireoidismo e candidíase mucocutânea. Porém outras comorbidades
como hipogonadismo primário, tireoidite de Hashimoto, anemia pernicio-
sa, hepatite autoimune, vitiligo podem aparecer.
A síndrome poliglandular tipo II é mais prevalente e a principal ma-
nifestação consiste na insuficiência adrenal primária juntamente com a
doença autoimune da tireoide e o diabetes mellitus tipo 1. Estes pacientes
também podem apresentar vitiligo, doença de Graves, hipogonadismo pri-
mário e outras comorbidades associadas. O tipo II ocorre mais tarde do que
o tipo 1, apresentando-se usualmente aos 40 anos de idade e com modos de
herança poligênica.

Uma variedade de doenças infecciosas pode ocasionar adrenalite e


consequentemente levar à uma insuficiência adrenal. Dentre elas: tu-
berculose (TB), infecções fúngicas, citomegalovírus e Mycobacterium
avium (geralmente paciente imunossuprimido), sífilis e tripanossomí-
ase africana. A TB no sítio das adrenais resulta da disseminação he-
matogênica de uma infecção ativa em outras partes do corpo. Várias
espécies de fungos nas infecções fúngicas disseminadas podem envol-
ver as adrenais com destaque para Histoplasmose e Paracoccidioido-
micose. Vale destacar nestas causas que pacientes com síndrome da
imunodeficiência adquirida precoce (AIDS) têm maior propensão a in-
fecções oportunistas.
UNIDADE 4. ADRENAIS
227

Trauma físico, pós-operatórios (estresse grave), sepse, anormali-


dades de coagulação (medicamentos anticoagulante como varfarina,
terapia com heparina, coagulopatias, doenças tromboembólicas e es-
tados hipercoaguláveis, como síndrome antifosfolípide) e infecções
disseminadas (Meningococo, Pseudomonas aeruginosa, Streptococ-
cus pneumoniae, Neisseria gonorrhoeae, Escherichia coli, Haemophilus
influenzae e Staphylococcus aureus) podem provocar hemorragia
adrenal, precipitando IA.
As doenças infiltrativas também ocasionam IA primária. Podem
ser tanto infiltrativo-neoplásicas (metástases de câncer de pulmão,
mama, estômago, melanoma e linfoma), quanto infiltrativo-metabóli-
cas como hemocromatose, sarcoidose ou amiloidose.
Ainda, é importante conhecer os medicamentos com potencial de
causar IA primária. Etomidato, cetoconazol, fluconazol, metirapona,
mitotano e suramina inibem a biossíntese do cortisol. Fenitoína, bar-
bitúricos, mitotano e rifampicina aceleram o metabolismo do corti-
sol e da maioria dos glicocorticoides sintéticos. Causas genéticas são
mais raras e incluem adrenoleucodistrofia, hiperplasia adrenal con-
gênita e síndromes de insensibilidade ao ACTH.

Secundárias ou terciárias:
A diferença entre IA secundária e terciária reside no local e, con-
sequentemente, no hormônio afetado. Quando há interferência na li-
beração de ACTH pela hipófise, estaremos diante da IA secundária.
Diferentemente, ao intervir na secreção do CRH pelo hipotálamo, esta-
remos falando de uma IA terciária.
Alguns autores não fazem essa distinção entre secundária e terciá-
ria, gerando certa confusão. Contudo, isso é um pequeno detalhe entre
causas hipofisárias (secundária) e hipotalâmicas (terciária). Você irá
entender melhor depois (ver item fisiopatologia).
Uma causa de IA secundária corresponde ao hipopituitarismo con-
gênito ou adquirido. O adquirido pode ser devido a trauma, infecção,
granulomas ou tumores em área hipofisária. A deficiência isolada de
ACTH é rara (geralmente com etiologia autoimune), sendo as IA se-
cundárias, em sua maioria, associadas a um quadro de pan-hipopitui-
tarismo (pois faltam outros hormônios além do ACTH).
O uso crônico, mais de 3 semanas, de glicocorticoides por qualquer
via (oral, inalatória ou tópica) em doses suprafisiológicas constitui o
principal motivo para deflagrar uma IA terciária/secundária. A para-
da abrupta ou situações estressoras em que não houve ajuste do GC
UNIDADE 4. ADRENAIS
228

podem levar à supressão do eixo hipotálamo-hipófise com redução


da secreção de ACTH e CRH causando atrofia suprarrenal. É necessário
ser cauteloso nas prescrições de GC e realizar o desmame de forma res-
ponsável, pois este quadro pode perdurar por até 1 ano após interrupção
do tratamento com GC.

Doses altas de GC exógeno suprimem o eixo hipotálamo-hipófise-adre-


nal. A secreção de ACTH é bloqueada, atrofiando a adrenal e ocasionando
uma IA terciária após interrupção abrupta do esquema terapêutico. Pacien-
tes com síndrome de Cushing (concentrações cronicamente altas de corti-
sol) também necessitam de uma avaliação após tratamento, pois possuem
risco de desenvolver uma IA secundária.

3. Epidemiologia:

A forma primária é rara (4 a 11 casos por 100.000), mais predominante


na 4ª década de vida, e acomete comumente mulheres jovens (20 a 40
anos). Dentro das síndromes autoimunes poliglandulares, os pacientes
que se apresentam com IA são, em sua maioria, mulheres (70%), diferente
do que acontece quando a IA primária é isolada, já que a preferência por
sexo se modifica com a idade. Nas primeiras duas décadas de vida, 71%
são homens; já na terceira década, homens e mulheres são igualmente
acometidos e, como dito anteriormente, a partir da quarta década de vida
81% são pacientes mulheres.
Nos EUA, a principal causa da doença de Addison em adultos corres-
ponde a adrenalite autoimune (70 a 90%) e é seguida pela tuberculose (7
a 20%), com o restante sendo derivado de outras causas. Nas crianças,
a IA primária é desencadeada principalmente pela hiperplasia adrenal
congênita (Ver Capítulo 28). A forma secundária/terciária tem prevalên-
cia de 15 a 28 casos por 100.000 com pico na 6ª década de vida, tendo sua
principal causa o uso de GC seguida de suspensão abrupta.

4. Fisiopatologia:

Para entendermos melhor acerca das alterações clínicas, do diagnós-


tico laboratorial e de como abordaremos o tratamento, devemos entender
amplamente como funcionam as camadas da adrenal e como ela se cor-
relaciona com o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal.
UNIDADE 4. ADRENAIS
229

As suprarrenais são divididas em duas camadas: córtex e medula.

Córtex: proveniente do mesoderma, ele corresponde a aproximada-


mente 80% do peso da glândula adrenal e se divide histologicamente
em três zonas que sintetizam e liberam hormônios específicos denomi-
nados esteroides (pois todos tem como precursor o colesterol).
Zona Glomerulosa (15%) - Aldosterona - Mineralocorticoide (MC)
Zona Fasciculada (75%) - Cortisol (95% da atividade) - Glicocorticoide (GC)
Zona Reticular (10%) - Cortisol e Andrógenos

Medula: proveniente da crista neural em sua embriologia, localiza-
-se internamente ao córtex e atua produzindo catecolaminas, ou seja,
dopamina, adrenalina e noradrenalina.

E como todos esses hormônios são estimulados a serem produzidos?


Veja as imagens a seguir e correlacione atentamente a explicação abaixo:

COLESTEROL

17-α-Hidroxilase 17-α-Hidroxilase
PREGNENOLONA 17 - α - hidroxilase pregnenolona DHEA DHEAS

3-β-Hidroxiesteroide desidrogenese 3-β-Hidroxiesteroide desidrogenese 3-β-Hidroxiesteroide


desidrogenese

17-α-Hidroxilase 17-α-Hidroxilase Aromatase


17 - α - hidroxilase
PROGESTERONA Androstenediona Estrona
progesterona

21-β-Hidroxilase 21-β-Hidroxilase

Aromatase
DESOXICORTICOESTERONA Desoxicortisol Testosterona Estradiol

11-β-Hidroxilase 11-β-Hidroxilase

CORTICOESTERONA Cortisol DHT

Aldosterona-sintetase

ALDOSTERONA

Figura 1: Esteroidogênese adrenal. Em destaque: enzimas com possível


acometimento nas diversas formas de hiperplasia adrenal congênita.
Elaborado pelo autor.
UNIDADE 4. ADRENAIS
230

HIPOTÁLAMO HIPOTÁLAMO HIPOTÁLAMO

CRH CRH CRH

HIPÓFISE HIPÓFISE HIPÓFISE

ACTH ACTH ACTH

ADRENAL ADRENAL ADRENAL

CORTISOL CORTISOL CORTISOL

FISIOLOGIA NORMAL IA PRIMÁRIA IA SECUNDÁRIA

Figura 2: Eixo hipotálamo-hipófise-adrenal com sistema de ‘’feedback’’ negativo.


O esquema do meio evidencia um acometimento primário, ou seja, na adrenal
provocando aumento de CRH e ACTH. Na IA secundária um acometimento da
hipófise irá suprimir o ACTH.
Elaborado pelo autor.

O CRH produzido pelo hipotálamo irá estimular a hipófise a produzir


ACTH. O ACTH, responsável por controlar a produção de cortisol, andro-
gênios (S-DHEA e androstenediona) e de aldosterona, possui efeito trófico
sobre a adrenal. Assim, em sua ausência há atrofia do córtex e, em exces-
so, há hiperplasia.

Somente 10 a 20% da zona glomerulosa é controlada por estímulos do ACTH,


pois ele só consegue estimular as enzimas iniciais da síntese de aldosterona.
Ou seja, ele age de maneira reservada na síntese de aldosterona. O principal
sistema atuante na produção de aldosterona é o sistema renina-angiotensi-
na (SRAA). Uma hipercalemia também pode estimular a zona glomerulosa a
produzir mineralocorticoides, pois a aldosterona atua aumentando a excreção
de potássio. Em caso de falta de MC, o paciente pode ficar hipercalêmico (ver
mais sobre o SRAA no Capítulo 16).

Assim como outros hormônios do eixo hipotálamo-hipófise (HH), o


cortisol em níveis suprafisiológicos produz uma alça de feedback nega-
tivo com o eixo, inibindo síntese de ACTH e CRH. Devido à uma maior
sensibilidade ou à uma agressão inicial na zona glomerulosa a primeira
evidência bioquímica de IA primária é subclínica, ou seja, sem sintomas,
UNIDADE 4. ADRENAIS
231

manifestada somente por um aumento na atividade plasmática da re-


nina (APR) com níveis normais/diminuídos de aldosterona. À medida
que a lesão adrenal avança, começa a ocorrer a elevação do ACTH basal
no feedback negativo do eixo HH devido a redução da síntese de corti-
sol. Assim, durante eventos estressores, o paciente fica suscetível a um
quadro de IA aguda, também denominado Crise Adrenal. Um quarto dos
diagnósticos são feitos diante desse cenário. Quando a destruição da
glândula é lenta e gradual, o hipocortisolismo, juntamente com o aumen-
to do ACTH, geram um quadro crônico.
Na IA secundária/terciária haverá diminuição da produção de ACTH
ou CRH que reduzirá os níveis séricos de cortisol. Todavia, como comen-
tado anteriormente a síntese de aldosterona não sofre influência. Lem-
bre-se, o SRAA está íntegro, a função mineralocorticoide fica preservada
e, portanto, não haverá hipercalemia. Entretanto, tanto na forma primá-
ria, quanto na central podemos observar hiponatremia. Isso acontece
porque o hipocortisolismo estimula a liberação de hormônio antidiuré-
tico, o ADH. Por fim, em qualquer forma de IA podemos ter defeitos na
produção de andrógenos suprarrenais.
Para entendermos as repercussões clínicas é necessário nos aprofun-
darmos também no papel dos hormônios produzidos pela suprarrenal.
Vamos lá!

Glicocorticoides – Cortisol:
Este hormônio é nosso primordial glicocorticoide endógeno, ele é libe-
rado de maneira pulsátil de acordo com o ritmo circadiano e suas concen-
trações máximas se dão pouco antes do indivíduo despertar pela manhã e
mínimas ao redor da meia-noite (quando ele começa a dormir). Somente 5
a 10% do cortisol circula em fração biologicamente ativa, ou seja, na forma
livre. Mais de 90% do cortisol circulante está ligado a proteínas, com des-
taque para a transcortina ou CBG (globulina ligadora de corticosteroides),
a principal determinante do cortisol plasmático total. Diversas situações
alteram a CGB como, por exemplo, hiperestrogenismo.
Os glicocorticoides possuem inúmeras funções, algumas delas são:
Promover a regulação do metabolismo intermediário (proteínas,
lipídeos e carboidratos) atuando de forma catabólica e hiperglice-
miante. Como? Estimulando a degradação de proteínas e lipídios
para a geração de substratos para a gliconeogênese hepática e a gli-
cogenólise e também agindo como contra-regulador da insulina.
Atuar no sistema cardiovascular. Como? O cortisol estimula a ex-
pressão de receptores para catecolaminas (receptores alfa e beta)
consequentemente aumentando a resposta simpática e atuando na
contratilidade cardíaca.
UNIDADE 4. ADRENAIS
232

Modular o sistema imune, reduzindo a sua ativação exagerada.


Como? Reduz citocinas inflamatórias, ação linfocitárias e produção
de anticorpos. Inibe a produção de óxido nítrico e a conversão de
ácido aracdônico.
Atuar na maturação pulmonar do feto. Como? O cortisol produzido
pela mãe auxilia na maturação pulmonar do feto ao estimular a pro-
dução de surfactantes.

Mineraloc orticoides – Aldosterona:


A aldosterona auxilia na homeostase hidroeletrolítica estimulando a
reabsorção de Na+ e a expulsão de K+ e H+. Seu principal local de atuação
é no túbulo coletor e sofre menor influência dos níveis de proteínas liga-
doras (50% da aldosterona circula na forma livre)

Andrógeno s:
O sulfato de dehidroepiandrosterona (S-DHEA), a androstenediona e a
testosterona são os principais.
Os efeitos fisiológicos dos esteróides sexuais adrenais geralmente são
fracos em comparação com os gonadais. Efeitos maiores são vistos nas
mulheres e consequentemente a isso, as alterações clínicas são mais
pronunciadas. Lembre-se: a formação de andrógenos na suprarrenal é
regulada pelo ACTH, e não pelas gonadotrofinas. Na zona reticular, o Sul-
fato de Diidroepiandrosterona (S-DHEA) é o principal precursor androgê-
nico fabricado.

Macete: S de suprarrenal. O S-DHEA e a androstenediona são andrógenos


fracos, necessitando de conversão para testosterona nos tecidos periféricos.

Medula adrenal – Catecolaminas:


As catecolaminas provêm de reações enzimáticas a partir do amino-
ácido tirosina e fenilalanina, sendo que 80% das catecolaminas secreta-
das pela adrenal correspondem à adrenalina (também denominada de
epinefrina). Esta não é sintetizada em nenhum outro tecido!
As catecolaminas atuam no sistema de “ataque e defesa” ocasionando
alterações em todo organismo. O estímulo para liberação de catecolami-
nas da medula não é o ACTH ou SRAA. O sistema nervoso simpático,
mais precisamente os neurônios simpáticos pré ganglionares da medula
espinhal que enviam esta informação de síntese/liberação. (ver capítu-
UNIDADE 4. ADRENAIS
233

lo sobre Feocromocitoma). Em uma adrenalite (IA primária) a medula


geralmente é poupada. Entretanto, a fabricação de epinefrina na medu-
la depende de altas concentrações locais de cortisol. Uma disfunção ou
destruição adrenomedular (por exemplo, na adrenalite tuberculosa) pode
agravar alguns sintomas como, por exemplo, a hipoglicemia.

Qual o achado físico que auxilia a diferenciar IA primária de secundária/


terciária?

Devido ao feedback negativo de hipocortisolismo da adrenal que ocorre
na IA primária, temos aumento de CRH e ACTH. A Corticotrofina (CRH) es-
timula a secreção de pró-opiomelanocortina (POMC) pela hipófise. A POMC
é clivada em beta-endorfina, hormônio estimulador de melanócitos (MSH) e
em ACTH. Na deficiência de cortisol há um aumento de produção da POMC
e consequentemente aumento na produção de ACTH e MSH. O MSH elevado,
por consequência, irá aumentar a síntese de melanina, principalmente, na
camada basal da epiderme causando a hiperpigmentação cutânea. Esta é a
principal diferença clínica no exame físico que diferenciaria uma IA primá-
ria de uma IA central (secundária/terciária).

5. Manifestações clínicas:

Uma IA pode apresenta-se agudamente (crise adrenal) ou de forma


crônica. Os sintomas dependem da causa e da extensão da doença, as-
sim como do comprometimento da produção de mineralocorticoides e
da exposição a estressores agudos, visto que habitualmente uma crise
de IA aguda decorre de algum evento como infecção ou trauma. As ma-
nifestações clínicas da IA crônica são inespecíficas e geralmente insi-
diosas, com o quadro manifestando-se somente após a perda de mais
de 90% do córtex suprarrenal.
Os sintomas de IA incluem fadiga, fraqueza, anorexia, perda ponderal,
tontura, náusea, vômito, mialgia difusa, artralgia e sintomas psiquiátricos
como síndrome cerebral orgânica, comprometimento da memória e de-
pressão.
A hiperpigmentação mucocutânea (já comentada anteriormente como
indicativo de IA primária) pode ser generalizada. O cabelo, as unhas e
membranas mucosas (bucal, vaginal e anal) podem ficar mais escuras.
UNIDADE 4. ADRENAIS
234

Usualmente, áreas expostas ao sol, pontos de pressão, dobras cutâneas,


palmas das mãos, cicatrizes recentes e mucosa oral são os locais onde
mais observa-se pigmentação.
Outra alteração clínica da DA discutida na literatura médica é o desejo
do paciente por sal que decorre da hiponatremia ocasionada pelo aumento
de ADH. A prevalência desse sintoma difere entre os estudos disponíveis (8
a 64%). Na mulher, a redução de andrógenos suprarrenais é clinicamente
mais perceptível do que em homens, podendo ocorrer rarefação de pelos,
xerodermia e libido diminuído. A amenorreia concomitante pode ter di-
versas causas como a perda ponderal, doença crônica de base ou falência
ovariana primária associada (associada à etiologia autoimune).

Achados laboratoriais:

Hiponatremia (Na < 135): Devido à deficiência de cortisol que cau-


sa aumento inadequado da secreção ou ação da vasopressina. Esta
alteração hidroeletrolítica, juntamente com desidratação e hipoten-
são, é mais comum na forma primária (70 a 80%) pela depleção de
volume decorrente da deficiência de mineralocorticoide. (A saber,
normalmente pacientes com IA secundária/terciária irão apresentar
função mineralocorticoide preservada.).

Hipercalemia (K > 5,5): Devido à deficiência de mineralocorticoides.


Pode estar associada a acidose hiperclorêmica leve.

Hipercalcemia: Raro e pode associar-se à insuficiência adrenal aguda.

Hipoglicemia: Mais comum na IA secundária. Já na IA primária, é


mais encontrada em crianças e em casos com diabetes mellitus do
tipo I (DM 1) associado.

Achados hematológicos:

Podemos encontrar anemia normocítica e, anemia perniciosa em


pacientes com síndrome autoimune poliglandular tipo 1 e 2.
UNIDADE 4. ADRENAIS
235

Devemos lembrar de outras endocrinopatias ou doenças de etiologia


autoimune na investigação de uma IA autoimune! Hipoparatiroidismo, hi-
pogonadismo hipergonadotrófico, vitiligo, anemia perniciosa, alopecia, sín-
dromes de má absorção, doenças tiroidianas autoimunes e DM1 devem ser
avaliados. Na IA secundária/terciária, é importante investigarmos sintomas
e sinais de um possível tumor hipofisário ou hipotalâmico, como deficiência
de outros hormônios da hipófise anterior, cefaleia ou defeitos do campo vi-
sual (como hemianopsia bitemporal por acometimento do quiasma óptico) e
diabetes insípidus central (pela falta da secreção de ADH).

6. Diagnóstico:

O primeiro passo é a realização de uma anamnese e exame físico


detalhados, na tentativa de captar todos sintomas e sinais do paciente,
além de investigar diretamente todas as possíveis causas, bem como
medicações em uso e comorbidades associadas.
A investigação clínica e laboratorial consiste em: verificar o hipocor-
tisolismo, determinando se a deficiência é ACTH dependente ou inde-
pendente; também, avaliar a secreção mineralocorticoide e buscar por
possíveis causas tratáveis, como TB adrenal ou adenoma hipofisário.
Ademais, uma maneira de minimizar erros laboratoriais é a realização
de diferentes testes os quais podem apresentar resultados consistentes e,
assim confirmar, a hipótese.
Na DA foram observados quatro estágios no desenvolvimento da IA.
Nesse cenário, quando o paciente apresenta hipocortisolismo sérico, sig-
nifica que a destruição adrenal já está avançada (estágio 4). Observe:

Estágio 1: Aldosterona sérica normal ou baixa com ARP alta


Estágio 2: Resposta prejudicada do cortisol sérico à estimulação de
ACTH
Estágio 3: Aumento do ACTH plasmático matinal com cortisol sérico
normal
Estágio 4: Cortisol sérico matinal baixo e insuficiência adrenal clíni-
ca evidente

Para conduzir uma investigação assertiva devemos entender os exa-


mes laboratoriais a serem solicitados. Um formato adequado de inves-
tigação é medir o cortisol sérico matinal, o ACTH plasmático e também
UNIDADE 4. ADRENAIS
236

realizar um teste de estimulação de ACTH de 250 mcg em alta dose.


Se houver suspeita de deficiência de ACTH recente (por exemplo, uma
cirurgia hipofisária nos últimos 4 meses ou radioterapia recente), é su-
gerido teste de estimulação de ACTH em dose baixa (1 mcg).

Cortisol:
Sempre deve ser dosado pela manhã! (Ver item Fisiopatologia).
Para iniciar o diagnóstico laboratorial, uma dosagem de cortisol
plasmático basal deve ser realizada no início da manhã como primeiro
teste. Valores iguais ou menores que 3 µg/dL sugerem IA, ao passo que
valores maiores ou iguais a 19 µg/dL podem excluir o diagnóstico.
Devemos lembrar que o cortisol plasmático não é composto apenas
pela fração livre, ou seja, se houver suspeita de aumento dos níveis de
CBG, como por exemplo no hiperestrogenismo, o exame pode estar alte-
rado. Geralmente os casos irão se apresentar com cortisol basal entre 3
e 19 µg/dL, fazendo com que testes adicionais sejam necessários.
Em relação ao cortisol urinário, sua excreção basal torna-se baixa
somente em pacientes com IA grave, não sendo um bom exame isolado
para triagem. Na dosagem de cortisol salivar, um valor de 1,8 ng/mL
aumenta a probabilidade de ser IA e valores acima de 5,8 ng/mL conse-
guem excluir a hipótese diagnóstica.

ACTH plasmático basal:


Também sempre deve ser realizada pela manhã. O valor normal de
ACTH no sangue é de até 46 pg/mL.

Como diferenciar insuficiência adrenal primária e secundária com base


nos exames laboratoriais?

Cortisol = 3 µg/dL: níveis de ACTH acima de 100 pg/mL = IA primária.


IA primária: cortisol baixo e concentração plasmática de ACTH alta.
Valores igual ou menores que 100 pg/mL indicam IA secundária.
IA secundária/terciária: cortisol sérico e ACTH plasmático baixos.

Quando o cortisol está entre 3 e 19 µg/dL, o ACTH orienta o segui-


mento de testes ou fecha o diagnóstico. Níveis de ACTH acima de 100
pg/mL sugerem IA primária e, então, podemos iniciar a investigação
adicional de etiologias possíveis. Já em alguns quadros de IA secun-
dária ou ausência de IA podemos ter níveis normais ou baixos de
UNIDADE 4. ADRENAIS
237

ACTH, o que faz ser necessários testes adicionais para chegarmos a um


diagnóstico.

Na investigação de IA primária (ACTH normal ou alto) devemos avaliar a


deficiência simultânea de mineralocorticoides! A concentração plasmática de
ACTH às 8 horas da manhã às vezes é superior a 4000 pg/mL e, juntamente
com isso, poderá haver concentração ou atividade da renina plasmática eleva-
da com níveis de aldosterona baixos, além de hiponatremia com hipercalemia.

Teste da cortrosina ou teste de estímulo com ACTH:


Deve ser realizado em quase todos os pacientes.
Estão disponíveis uma dose alta (padrão) e um teste de baixa dose de
cortrosina, ACTH sintético. Esse teste é melhor realizado pela manhã
evitando falso positivo em indivíduos saudáveis.
Teste padrão de alta dose (250 mcg): é realizado estímulo com cor-
trosina (análogo do ACTH) com administração intravenosa ou in-
tramuscular. Se após 30 ou 60 minutos houver aumento na concen-
tração de cortisol sérico (≥ 18 mcg/dL), a resposta do teste é normal,
excluindo IA primária e a maior parte dos pacientes com IA secun-
dária/terciária.
Teste de baixa dose (1 mcg): utiliza-se baixa dose de cortrosina
(1 mcg como bolus IV) esperando uma resposta normal de 17 a 22,5
mcg/dL de cortisol após 20 ou 30 minutos.

Teste de tolerância à insulina (ITT):


Padrão-ouro quando suspeitamos de IA secundária! A hipoglicemia
ativa o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. Assim, ao administrarmos
insulina regular intravenosa 0,1 a 0,15 UI/kg iremos provocar queda na
glicemia com consequente estímulo adrenal. A coleta para mensura
glicêmica e do cortisol acontece no primeiro momento e 30, 45, 60, 90 e
120 minutos após.
Um teste adequado é aquele que provoca sinais de hipoglicemia e/
ou glicemia < 40 mg/dL. Por conta disso, é arriscado e necessita de ECG
prévio, internação e supervisão médica para manejo de suporte durante
sua realização. Há contraindicação para pacientes coronariopatas, epi-
lépticos e com suspeita de hipocortisolismo grave (cortisol basal < 6,5 µg/
dL). Esse teste pode ser uma alternativa ao Teste de estímulo com ACTH.
UNIDADE 4. ADRENAIS
238

Teste da metirapona:
A metirapona é um inibidor da enzima 11ß-hidroxilase que irá supri-
mir a síntese de cortisol. Espera-se que os níveis de ACTH e 11-desco-
xicortisol aumentem, já que o 11-desoxicortisol deixa de ser convertido
neste hormônio. É um teste não muito realizado, pois a hipercortisolemia
não funciona como um estímulo tão forte para o ACTH ser secretado se
comparado ao estresse da hipoglicemia. Além disso, há dificuldade em
conseguir a droga para realização. O teste consiste em administrar 30
mg/kg de metirapona à meia-noite e, pela manhã, verificar se há valores
de ACTH > 100 pg/mL e um nível de 11-desoxicortisol > 7 µg/dL, ou seja,
uma resposta fisiológica adequada.

Teste do hormônio liberador da corticotropina (CRH):


Utiliza-se esse teste para diferenciar IA secundária e terciária, em-
bora essa distinção não seja primordial para a terapêutica. Ademais, o
teste CRH é caro e requer muitas amostras sanguíneas. Administra-se
100 mcg (ou 1 mcg/kg) de CRH IV. Pacientes com IA hipofisária não terão
elevação do ACTH plasmático, ao passo que um comprometimento hipo-
talâmico terá uma resposta exagerada e prolongada.

Em um paciente com suspeita de crise adrenal, deve-se iniciar a terapia


antes dos testes laboratoriais que irão estabelecer o diagnóstico. Deve-se co-
letar sangue para o cortisol sérico e eletrólitos assim como amostras para
dosagem posterior de ACTH, renina e aldosterona.
A terapia empírica é imediatamente iniciada com solução salina IV e
hidrocortisona (glicocorticoide). A manifestação clínica predominante é o
choque e sintomas como anorexia, náusea, vômito, dor abdominal, letargia,
febre, confusão e até mesmo coma.

7. Investigação etiológica:

Uma vez estabelecido o diagnóstico devemos iniciar a investigação


etiológica que irá nortear o tratamento. Antes de qualquer exame, é impor-
tante lembrar as medicações em uso. Etomidato, cetoconazol, fluconazol,
metirapona, mitotano, suramina podem ser a causa do quadro clínico.

IA primária:
Por conta de a adrenalite autoimune ser a causa mais prevalente des-
se subtipo de IA, é necessário investigá-la. Para isso, podemos:
UNIDADE 4. ADRENAIS
239

Analisar outras disfunções de glândulas endócrinas medindo cál-


cio, fósforo, glicose e tireotropina (TSH) séricos. Se houver hipocal-
cemia, devemos dosar o paratormônio ou PTH. Caso exista sinal ou
sintoma clínico de hipogonadismo medir o hormônio folículo-esti-
mulante (FSH) em mulheres, testosterona sérica em homens e hor-
mônio luteinizante (LH) em ambos.
Dosar anticorpos contra córtex adrenal ou anticorpos anti-21-hidro-
xilase. Em mais da metade dos pacientes acometidos esses autoan-
ticorpos são positivos já no início do quadro.

Ainda, devemos investigar adrenalite infecciosa, doenças infiltra-


tivas, causas hemorrágicas ou traumáticas e, para isso, é necessário
realizar exames de imagem! Na tomografia computadorizada (TC) ab-
dominal, as glândulas adrenais poderão estar aumentadas, apresentar
calcificação, sinais de invasão tecidual ou até mesmo hemorragia.
Na adrenalite causada por TB, por exemplo, ocorre aumento das
adrenais, e com a progressão se desenvolvem calcificações. Esses
achados eliminam uma possível etiologia autoimune e podem ser vis-
tos em uma radiografia de abdome em aproximadamente 50% dos ca-
sos. Entretanto, não é possível excluir a adrenalite tuberculosa caso as
adrenais não estejam aumentadas ou calcificadas. Devido a isso, se o
diagnóstico não for esclarecido, devemos, ainda, realizar radiografia de
tórax (RX), cultura de urina para Mycobacterium tuberculosis e teste
cutâneo de tuberculina. Investigação para outras infecções também
podem ser realizadas como, por exemplo, títulos de fixação do comple-
mento para Histoplasma capsulatum.
Alguns métodos invasivos, como aspiração percutânea das adrenais
com agulha fina dirigida por TC, são raramente utilizados. Esses po-
dem estabelecer a presença de metástases na ausência da suspeita de
sítio primário, por exemplo, carcinoma de pequenas células do pulmão
ou carcinoma da mama. Ainda pode-se lançar mão da tomografia por
emissão de pósitrons (PET) com fluorodeoxiglicose (FDG) para identifi-
car a origem da possível metástase.
Para investigar adrenoleucodistrofia (ALD) podemos dosar ácidos
graxos de cadeia muito longa (VLCFA), porém esse exame laboratorial
não é comum na rotina clínica. A ALD pode iniciar sem manifestações
neurológicas e esse exame é capaz de afastar esse diagnóstico em ho-
mens com IA primária sem evidências de adrenalite autoimune ou ou-
tras causas primárias.

IA secundária/terciária:
Primeiramente, investigamos o uso prévio de GC, já que se configura
UNIDADE 4. ADRENAIS
240

como a causa mais comum de IA. Após, devemos investigar laboratorial-


mente outros hormônios hipofisários, pois a disfunção isolada de ACTH
é rara. (Ver capítulo 13 – Hipopituitarismo).
A fim de identificarmos tumores na região hipotálamo-hipofisária
solicitamos uma ressonância nuclear magnética de sela túrcica (RNM)
para analisar a existência de patologias como adenomas (principalmen-
te macroadenomas que possuem >1cm), hipofisite linfocítica ou até mes-
mo uma atrofia hipofisária.

8. Tratamento:

Glicocorticoides (GC): reposição hormonal é primordial para vida do


paciente. Reposições inadequadamente baixas aumentam o risco de cri-
se adrenal. Como vimos anteriormente, o cortisol é secretado de maneira
pulsátil em nível máximo pela manhã e mínimo à noite. Diante disso,
podemos tratar os pacientes com 15 a 25 mg/dia de hidrocortisona divi-
didos em duas ou três doses:

2 doses: primeiros 2/3 da dose ao acordar e 1/3 restante da dose cerca


de 6 a 8 horas após;
3 doses: 10 mg pela manhã, 5 mg no almoço e 5 mg no início da noite.

A prednisona pode ser utilizada em 5 a 10 mg/dia em dose única ou


fracionada. Um exemplo de uso fracionado seria prescrever 4 a 5 mg por
via oral pela manhã e 2,5 mg por via oral no início da noite. Devemos
lembrar que doses antes de dormir devem ser evitadas, pois podem cau-
sar insônia e que a reposição hormonal deve ser a mais fisiológica possí-
vel evitando falta de GC (que irá manter os sintomas de IA) ou o excesso
(que causará sintomas/sinais cushingoides – Ver capítulo 11 Doença de
Cushing).

Mineralocorticoides (MC): etilizada somente na IA primária, 0,05 a 0,15
mg (50 a 200 µg) por dia de fludrocortisona em dose única pela manhã.
Contudo, essa droga não é facilmente disponível para compra no Brasil.
Para monitorar a dose de reposição de mineralocorticoide verifica-
mos a presença de sintomas, como edema e hipotensão postural, medi-
mos a pressão arterial (PA) e dosamos sódio, potássio e ARP.
Diante da presença de IA e hipertensão primária/essencial, os pa-
cientes devem restringir sódio, utilizar a dose mais baixa possível de
fludrocortisona e não fazer uso de diuréticos e a espironolactona, dado
que estes neutralizam a ação da fludrocortisona. Na gestação, frequen-
UNIDADE 4. ADRENAIS
241

temente a dose de MC é modificada baseada na PA e na calemia, pois


altos níveis de progesterona atuam com função anti-mineralocorticoide.
dependendo da dose. É importante ressaltar que, dependendo da dose,
os GC exercem efeito MC, por exemplo: 20 mg de hidrocortisona pode ter
ação equivalente a 50 µg de fludrocortisona.

Andrógenos adrenais: repor DHEA (25 a 50 mg/dia) é uma conduta


opcional, pois não há evidências suficientes para sua recomendação.
Essa terapia pode ser benéfica para mulheres com IA que tenham a qua-
lidade de vida prejudicada mesmo com a reposição adequada de GC e
MC. Estudos indicam melhora leve na depressão, sensação de bem estar
e manutenção adequada da pilificação axilar e pubiana nessas pacien-
tes. Se após seis meses de terapia nenhum benefício foi observado ou se
ocorrerem efeitos adversos como pele oleosa, hirsutismo, acne, aumento
da sudorese, diminuição nas concentrações séricas de lipoproteínas de
alta densidade (HDL), o DHEA é descontinuado.

Devemos abordar a causa base da IA caso esta tenha tratamento além


da reposição hormonal Por exemplo, tratar outras deficiências da hipófise;
tratar tuberculose com esquema adequado.
OBS: para tratar tuberculose com esquema utilizando rifampicina, a dose de
GC deve ser dobrada, uma vez que o fármaco aumenta o clearance de cortisol.

É altamente recomendado que todos pacientes com IA possuam uma pul-


seira, colar ou cartão contendo informações acerca do seu diagnóstico, me-
dicamentos, doses diárias e o médico a ser chamado em caso de emergência.

Em caso de infecção, cirurgia ou trauma, há o risco de crise adrenal


nos portadores de IA, a qual deve ser manejada da seguinte forma:

Hidrocortisona 100 mg IV em bolus + 50 mg IV a cada 6 horas (ou 200


mg como infusão IV contínua nas primeiras 24 horas).
1 a 3 litros de solução salina a 0,9% IV nas primeiras 12 a 24 horas
avaliando volemia e débito urinário.
Prednisolona, prednisona e dexametasona (frascos de 4 mg) podem
ser utilizadas em suas devidas doses caso a hidrocortisona não es-
UNIDADE 4. ADRENAIS
242

teja disponível. Entretanto, pacientes com IA primária conhecida ou


com K > 6,0 mEq/L, a hidrocortisona seria a melhor escolha por sua
ação mineralocorticoide. A reposição de MC não é necessária de for-
ma aguda.
Após o manejo inicial deve-se investigar e tratar a causa base da crise.

Alguns outros acontecimentos necessitam de doses suplementares


para evitar uma crise adrenal:
Em infecções sem repercussões sistêmicas ou febre é indicado dobrar
ou triplicar a dose diária por três dias analisando a evolução do quadro.
Em atividades físicas extenuantes pode-se adicionar 5 a 10mg de hi-
drocortisona ao esquema terapêutico.
Em caso de hipertireoidismo associado a IA, a dose de GC deve dobrar
ou triplicar, pois a reposição com levotiroxina aumenta o clearance de
cortisol. A introdução de reposição dos hormônios tireoidianos é realiza-
da somente após o manejo adequado da IA.
Em procedimentos menores a moderados (por exemplo, em hernior-
rafia ou colecistectomia) é sugerido prescrever 25 mg a 75 mg de hi-
drocortisona. Fica a critério do médico administrar somente no dia da
operação, como também no primeiro dia do pós-operatório, retornando
à dose usual após.
Em cirurgias de grande porte recomenda-se 100 a 150 mg de hidrocor-
tisona IV com redução progressiva a partir do segundo ou terceiro dia de
pós-operatório. Conforme a recuperação do paciente após o terceiro dia o
desmame rápido pode ser feito.
No terceiro trimestre da gravidez recomenda-se dobrar a dose de GC
e no período periparto, a estratégia de reposição segue as orientações de
cirurgia de grande porte.
UNIDADE 4. ADRENAIS
243

9. Tabela de resumo:

Insuficiência adrenal primária Insuficiência adrenal secundária


• Adrenalite auto-imune: isolada ou • Hipercortisolismo crônico prévio,
como parte das SPA. exógeno (iatrogênico) ou endógeno
• Adrenalite Infecciosa: fúngica, (síndrome de Cushing).
TB, HIV. • Traumas, tumores, granulomas e
• Doenças genéticas como irradiações na região hipotálamo-
hiperplasia/hipoplasia adrenal hipofisária.
congênita, adrenoleucodistrofia, • Hipofisite linfocítica autoimune.
Causas Síndromes de insensibilidade ao • Deficiência de ACTH isolada.
ACTH. • Síndrome de Sheehan.
• Hemorragia adrenal.
• Doenças infiltrativas como
metástases, linfoma primário de
adrenal, sarcoidose.
• Induzida por drogas ou por
adrenalectomia bilateral.
• Déficit de glicocorticoide: perda • Déficit de glicocorticoide e déficit de
de peso, fadiga, anorexia, vômitos, andrógenos sem aumento do ACTH.
mialgias, hiponatremia, anemia, • Importante analisar sintomas do uso
hipoglicemia, náuseas. prévio de glicocorticoides, sintomas
• Déficit de andrógenos: Redução de deficiência de outros hormônios
da pilificação, redução da libido, da hipófise, sinais de tumores
Manifestações Clínicas
pele seca. hipofisários como galactorreia, face
• Déficit de mineralocorticoide: acromegálica, déficit visual por
Hipotensão, hipercalemia, acidose compressão das vias ópticas.
metabólica, avidez por sal.
• Aumento de ACTH:
Hiperpigmentação cutânea.
• Reposição de glicocorticoide: hidrocortisona 15 a 25 mg/dia ou prednisona
5 a 10 mg/dia sempre dando preferência para doses fracionadas. (Ex: 3
doses diárias sendo ⅔ da dose total administrada pela manhã).
Anamnese e exame físico
• Reposição mineralocorticoide: dose única matinal de fludrocortisona 0,05 a
0,15 mg (50 a 200 µg)
• Reposição com andrógenos adrenais - a critério do endocrinologista.
UNIDADE 4. ADRENAIS
244

CORTISOL PLASMÁTICO

≤ 3 μg/dL ≥ 19 μg/dL 3 - 19 μg/dL

IA Confirmada Hipótese de IA excluída IA possível

Dosar ACTH e realizar outros


testes confirmatórios

Exemplo:
Dosar ACTH
Se acima de 100 pg/ml: IA primária Teste da cortrosina
ACTH normal ou diminuído: IA secundária ITT (IA secundária)
Teste da Metirapona
Prosseguir investigação etiológica

Figura 3: Esquema ilustrativo acerca da investigação diagnóstica


da Insuficiência Adrenal.
Elaborado pelo autor.

10. Leitura recomendada:

Hahner S, Loeffler M, Bleicken B, et al. Epidemiology of adrenal crisis in chronic


adrenal insufficiency: the need for new prevention strategies. Eur J Endocrinol
2010; 162:597.

Bleicken B, Hahner S, Ventz M, Quinkler M. Delayed diagnosis of adrenal


insufficiency is common: a cross-sectional study in 216 patients. Am J Med Sci
2010; 339:525.

Bornstein SR, Allolio B, Arlt W, et al. Diagnosis and Treatment of Primary


Adrenal Insufficiency: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin
Endocrinol Metab 2016; 101:364

Stewart, P.M. (2007) The adrenal cortex. In Williams Textbook of Endocrinology


eds. H. M. Kronenberg, S. Melmed, K. S. Polonsly & P. R. Larsen). Saunders
Elsevier, Philadelphia, PA, pp. 445-503.

Grossman AB. Clinical Review: The diagnosis and management of central


hypoadrenalism. J Clin Endocrinol Metab 2010; 95:4855.
UNIDADE 4. ADRENAIS
245

Capítulo 16

Hiperaldosteronismo
Igor Reis Pereira
Murilo Daminelli
Graziella Rissetti

1. Introdução:

Hiperaldosteronismo é o nome dado à produção excessiva de mine-


ralocorticoides, principalmente de aldosterona, pela zona glomerulosa
do córtex das glândulas suprarrenais. Essa produção pode ocorrer de-
pendente ou não do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA).
O hiperaldosteronismo primário, também chamado de doença de
Conn, é a causa mais comum do excesso de aldosterona e tem como
principais etiologias a hiperplasia glandular bilateral e o adenoma pro-
dutor de aldosterona, podendo estar relacionado ao hiperaldosteronis-
mo familiar e ao carcinoma produtor de aldosterona. Adenoma produ-
tor de aldosterona costuma medir menos de dois centímetros, logo, em
nódulos maiores e nos pacientes mais jovens, a possibilidade de carci-
noma deverá ser investigada. Por sua vez, o hiperaldosteronismo se-
cundário ocorre em resposta ao aumento da produção de renina pelas
células justaglomerulares dos rins que pode se relacionar à isquemia
renal, queda do volume intravascular, desordens na excreção de sódio,
hiperplasia do aparato justaglomerular (vale lembrar que essas células
são células musculares lisas modificadas presentes nos rins) ou, mais
raramente, por tumores secretores de renina.
Tanto o hiperaldosteronismo primário quanto o secundário podem
resultar em elevação da pressão arterial, e são um importante diagnós-
tico diferencial em pacientes com hipertensão refratária, principal-
mente quando associados à hipocalemia, estando relacionados, tam-
bém, à hipertensão de início precoce e a acidente vascular encefálico
em pacientes jovens, sendo uma entidade responsável pelo aumento do
risco cardiovascular a longo prazo.

2. Epidemiologia:

O hiperaldosteronismo é a principal causa de hipertensão secun-


dária e pode estar associado a 5 a 12% dos pacientes com elevação
nos níveis pressóricos. Um estudo multicêntrico (Douma S. e colabo-
UNIDADE 4. ADRENAIS
246

radores) que utilizou a relação entre aldosterona e atividade de renina


plasmática em pacientes sabidamente hipertensos, demonstrou um
aumento na detecção da relação entre hipertensão e hiperaldostero-
nismo primário. Com isso, se observou certo aumento no diagnóstico
dessa patologia, considerando que até 20% dos pacientes hipertensos
podem ter quadro de hiperaldosteronismo primário concomitante.

3. Fisiopatologia:

Os sintomas do hiperaldosteronismo ocorrem devido ao aumento na


secreção de aldosterona intrínseco ou secundário e a hipertensão arte-
rial resultante se relaciona aos mecanismos de elevação da pressão ar-
terial do SRAA. No hiperaldosteronismo primário ocorre um aumento
autônomo na produção de aldosterona pela zona glomerulosa, seja por
hiperplasia glandular ou pela presença de adenoma, com consequente
supressão da renina plasmática, enquanto que, no hiperaldosteronismo
secundário, não há supressão da renina plasmática, sendo esse aumen-
to de renina a causa da secreção aumentada de aldosterona.
Você sabe como funciona o mecanismo de hipertensão arterial no hi-
peraldosteronismo? A elevação da pressão arterial no hiperaldosteronis-
mo se liga, direta ou indiretamente, ao SRAA. Esse sistema é um dos res-
ponsáveis pela manutenção dos níveis pressóricos do organismo e pela
regulação dos níveis tensionais frente a variáveis como ingestão hídri-
ca e de sal ao longo do dia. Também auxilia no controle pressórico para
manter o fluxo sanguíneo estável, evitando hipotensão postural quando
levantamos da cama, por exemplo. O SRAA é composto pela renina, en-
zima liberada pelos rins na baixa ingestão hidrossalina ou hipotensão
arterial; pela angiotensina, que é formada a partir da reação catalisada
pela renina (transforma angiotensinogênio em angiotensina I que, por
sua vez, perde aminoácidos e origina a angiotensina II). A angiotensina
II age diretamente fazendo vasoconstrição e retenção de cloreto de sódio
(NaCl) e água, o que faz com que haja aumento da pressão arterial. A an-
giotensina II também é responsável por estimular a secreção da aldoste-
rona, nas células da zona glomerulosa das adrenais. Por sua vez, a aldos-
terona ativa canais no túbulo distal dos néfrons para reter água e sódio.
Vale lembrar que no hiperaldosteronismo primário há uma supres-
são nos níveis plasmáticos de renina em resposta ao aumento primário
da aldosterona, enquanto que no hiperaldosteronismo secundário, o au-
mento da aldosterona está mais ligado aos mecanismos de aumento da
liberação de renina pelos rins e não pela secreção autônoma da glân-
dula adrenal. O mecanismo de regulação da pressão arterial do sistema
renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) é descrito na Figura 1.
UNIDADE 4. ADRENAIS
247

Queda da pressão arterial Liberação de RENINA pelas células


justaglomerulares dos rins

Renina plasmática

Angiotensinogênio Angiotensina I

Enzima conversora
de angiotensina

Vasoconstrição
ELEVAÇÃO
DA PRESSÃO Angiotensina II
ARTERIAL
Retenção de sal e água

Liberação de
ALDOSTERONA pelas
suprarrenais

Figura 1: Mecanismo de elevação da pressão arterial pelo Sistema


Renina-Angiotensina-Aldosterona (SRAA).
Elaborado pelo autor.

E como ocorre o aumento na secreção da aldosterona?

Hiperaldosteronismo primário: na maioria dos casos, a hipersecre-


ção de aldosterona resulta da presença de um adenoma produtor no
córtex da glândula adrenal ou da hiperplasia bilateral da zona glo-
merulosa, que por sua vez pode se associar à presença de micronódu-
los. Os adenomas produtores de aldosterona são menores que os pro-
dutores de cortisol, que também podem estar presentes na glândula,
sendo essa uma forma de diferenciação. A hiperplasia bilateral das
glândulas suprarrenais são causa de até 70% dos casos de hiperaldos-
teronismo que não se relacionam à presença de adenoma produtor. O
tecido da zona glomerulosa aumentado acaba produzindo e liberando
maior quantidade da substância. Causas mais raras de hiperaldoste-
ronismo primário são a hiperplasia unilateral da glândula, na qual
apenas uma das adrenais possui aumento de tamanho na zona glo-
merulosa (nesses casos, o diagnóstico por imagem é mais evidente ao
se comparar ambas as glândulas) e o carcinoma adrenocortical, que
possui tamanho maior que os adenomas.
E o ACTH tem algum papel? Na verdade, o controle da secreção da
aldosterona é principalmente mediado pelo SRAA. Se você não enten-
deu até aqui, sugerimos reler este tópico antes de prosseguir. O ACTH
tem um pequeno papel adicional para estimular a secreção de aldoste-
UNIDADE 4. ADRENAIS
248

rona. No hiperaldosteronismo primário, este hormônio hipofisário não


auxilia a investigação.

Hiperaldosteronismo secundário: como já foi dito, o hiperaldostero-


nismo secundário resulta do aumento da renina plasmática. A resposta
ao aumento da renina pode ocorrer por:

Tabela 1: Mecanismos responsáveis pelo aumento da renina e suas consequências.

Mecanismo Causa
Estenose da artéria renal
Isquemia renal
Hipertensão maligna
Insuficiência cardíaca
Cirrose hepática
Queda do volume intravascular
Síndrome nefrótica
Uso excessivo de laxante ou diurético
Doença renal crônica
Distúrbios de perda de sódio
Acidose tubular renal
Hiperplasia do aparelho justaglomerular Síndrome de Bartter
Tumor secretor de renina

4. Anamnese:

A maioria dos pacientes são assintomáticos. Quando os sintomas


estão presentes, o mais comum é que haja hipertensão arterial refra-
tária à medicação, que pode ser de moderada a grave.
O excesso de aldosterona estimula a retenção de sódio e a excreção
de potássio e de hidrogênio. Portanto, devemos questionar a ocorrên-
cia de poliúria e noctúria, fraqueza muscular, cãibras e parestesias,
sintomas associados à hipocalemia, além da pesquisa de fibrilação
ventricular, tetraparesia e rabdomiólise, presentes em casos de hipo-
calemia grave.
É válido pensar que a retenção de sódio e água levaria a algum grau
de edema no paciente com hiperaldosteronismo. Mas, por que isso
não acontece? Bom, quando ocorre certa expansão do volume extrace-
lular, a excreção de sódio volta a acontecer, provavelmente associada
à secreção do peptídeo natriurético atrial. Isso pode ser chamado de
“escape mineralocorticoide”. Esse fenômeno não ocorre nos túbulos
contorcidos distais, onde a excreção de potássio continua a ocorrer e
pode levar ao quadro de alcalose metabólica.
Bioquimicamente, pode ocorrer hipernatremia moderada devido à re-
tenção de água junto ao sódio, hipermagnesemia e alcalose metabólica.
UNIDADE 4. ADRENAIS
249

Pontos Importantes na Investigação de um Paciente


com Suspeita de Hiperaldosteronismo
Hipertensão arterial refratária ao uso de medicamentos.
Cansaço, fadiga, noctúria.
Poliúria, fraqueza muscular, cãibras, parestesias.
Fibrilação ventricular, tetraparesia, rabdomiólise.
Hipocalemia, hipernatremia, hipermagnesemia, alcalose metabólica.

5. Exame físico:

Os principais sinais clínicos que nos levariam a pensar na possibi-


lidade de quadro de hiperaldosteronismo são os sinais de Trousseau
(espasmo carpal ao se bloquear o fluxo sanguíneo para as mãos) e de
Chvostek (contratura dos músculos da face ao se estimular o nervo fa-
cial). Tais sinais se relacionam a alcalose metabólica a à hipocalemia.
Mesmo que o edema não seja comum, devido ao “escape de aldoste-
rona”, é importante pesquisar este sinal no momento do exame físico
quando se suspeita de hiperaldosteronismo.

6. Diagnóstico e exames complementares:

O diagnóstico do hiperaldosteronismo começa com a suspeita no


paciente com hipertensão refratária e se divide entre testes de ras-
treamento e confirmatórios. O diagnóstico e o tratamento do hiperal-
dosteronismo secundário estão ligados às causas responsáveis pela
liberação exacerbada de renina plasmática, portanto, a partir de agora,
iremos nos atentar ao hiperaldosteronismo primário que possui a glân-
dula adrenal como fonte dos mecanismos de liberação da aldosterona.
A primeira pergunta a se fazer é: quem deve ser submetido ao ras-
treamento? Todos os pacientes hipertensos com risco de hiperaldos-
teronismo, que são: HAS e hipocalemia, com ou sem uso de diuréticos;
HAS grave com PAS > 160 mmHg ou PAD > 100 mmHg; HAS resistente
ao uso de três anti-hipertensivos em doses plenas, sendo um diuré-
tico; HAS com achado em exame de imagem de incidentaloma em
suprarrenal; HAS com história familiar de hipertensão precoce ou do-
ença cerebrovascular antes dos 40 anos; familiar de primeiro grau com
hiperaldosteronismo.
O rastreamento é realizado com a dosagem de aldosterona plasmáti-
ca e de renina plasmática, mais especificamente da atividade da renina
UNIDADE 4. ADRENAIS
250

plasmática. A coleta deve ser realizada entre 8 e 10 horas da manhã


após duas horas de deambulação seguidas de 5 a 15 minutos com o
paciente em repouso e sentado. A ingesta de sal deve ser normal, já
que a restrição iria elevar os níveis de renina e induzir a ocorrência
de falsos negativos no exame. De forma semelhante, o potássio sérico
deve ser mantido acima de 3,5 mEq/L e, caso necessário, deve-se fazer
suplementação oral até que se atinja esse nível, já que a hipocalemia
tende a reduzir os níveis de aldosterona, afetado os resultados do tes-
te. O uso de anti-hipertensivos deve ser suspenso, sempre que possí-
vel, principalmente a espironolactona que deve ser descontinuada de
4 a 6 semanas antes do teste.
Devemos nos atentar a outros fatores que afetam os níveis de al-
dosterona e da atividade da renina plasmática e, sempre que possível,
descontinuar o uso ou estar atento à sua presença no momento da in-
terpretação dos resultados. São eles: betabloqueadores, inibidores da
enzima conversora de angiotensina, bloqueadores dos canais de cál-
cio, inibidores da renina, AINE, diuréticos espoliadores ou poupadores
de potássio, agonistas alfa. Além das medicações, idade avançada,
insuficiência renal, gravidez, hipertensão renovascular e hipertensão
maligna também afetam os resultados dos testes de rastreio.
Com isso em mente, podemos analisar os resultados.

Hiperaldosteronismo primário é considerado quando:


Aldosterona plasmática maior ou igual a 15 ng/dL E
Relação aldosterona/atividade da renina plasmática (A/ARP)
maior ou igual a 30.

Caso os valores de aldosterona plasmática sejam menores que 15 ng/


dL e a relação A/ARP seja menor que 30, a investigação se encerra pois,
com esses resultados, o hiperaldosteronismo primário é descartado.
A partir disso, seguimos com os testes confirmatórios, que são de
dois tipos: teste de infusão salina intravenosa ou teste de sobrecarga
oral de sódio. Podemos lançar mão de um ou de outro a critério do pro-
fissional e da disponibilidade. Para realização desses testes deve-se
suspender, por duas semanas, o uso de inibidores da enzima conver-
sora de angiotensina, bloqueadores dos receptores de angiotensina,
betabloqueadores, clonidina, metildopa, bloqueadores dos canais de
cálcio e AINE. Os testes são contraindicados em casos de hipertensão
grave não controlada, insuficiência renal, insuficiência cardíaca, ar-
ritmias e hipocalemia grave e são úteis para comprovar a autonomia
da secreção da aldosterona. A tabela 2 demonstra como são feitos es-
ses testes:
UNIDADE 4. ADRENAIS
251

Tabela 2: Testes confirmatórios para Hiperaldosteronismo.

Teste de infusão salina intravenosa Teste de sobrecarga oral de sódio


Paciente em posiçao supina (deitado) Aumento da ingestão de sódio para mais
1h antes do início do teste até o fim do de 6g/dia por 3 dias (com uso de 10 a 12
teste, após ter ficado em repouso por 8h gramas de sal de cozinha por dia)
Início do teste: entre 8h e 9h30 Coleta de urina de 24h + dosagem
da manhã - infusão de 2 L de soro de aldosterona, creatinina e sódio na
Princípios gerais
fisiológico 0,9% em 4 horas - dosagem amostra
de aldosterona após infusão A coleta deve ser feita da manhã do
Antes e depois da infusão: dosar terceiro dia de sobrecarga de sódio até a
aldosterona plasmática, atividade de manhã do quarto dia.
renina plasmática e potássio sérico.
Aldosterona plasmática ao final do teste Aldosteronúria < 10 ug/24h na ausência
< 5 ng/dL: diagnóstico pouco provável de doença renal: diagnóstico improvável
Aldosterona plasmática ao final do teste Aldosteronúria entre 10 e 12 ug/24h:
Resultados
entre 5 e 10 ng/dL: teste inconclusivo teste inconclusivo
Aldosterona plasmática ao final do teste Aldosteronúria > 12 ug/24h: diagnóstico
> 10 ng/dL: diagnóstico muito provável. muito provável.
Potássio sérico < 3,5 mEq/L após a Dosar potássio sérico e suplementar
infusão, com aldosterona baixa: pode caso esteja abaixo dos níveis da
ser falso negativo, pois potássio baixo normalidade
leva à queda nos níveis de aldosterona. Sódio urinária em 24h maior que 200
mEq/L confirma a adesão correta à
sobrecaraga
Observações
Creatinina urinária em 24h > 15 mg/kg
de peso ideal em mulheres ou > 20 mg/
kg de peso ideal em homens confirma
coleta de urina adequada (em maiores
de 50 anos os valores são > 7,5mg/kg
em mulheres e > 10 mg/kg em homens).

Após a realização dos testes confirmatórios, temos a seguinte inter-


pretação:

Hiperaldosteronismo primário é confirmado quando:


Aldosterona plasmática maior que 10 ng/dL no teste de infusão sali-
na intravenosa OU
Aldosterona urinária maior que 12 ug em 24 horas com sódio uriná-
rio maior que 200 mEq em 24 horas.

Após o diagnóstico clínico-laboratorial, devemos partir para o diag-


nóstico por imagem, utilizando a tomografia computadorizada (TC)
para guiar essa etapa e classificar a possível etiologia do quadro. Essa
determinação será útil, também, para guiar o tratamento do paciente.
As etapas diagnósticas do hiperaldosteronismo primário estão resu-
midas na Figura 2. Vale lembrar que a ressonância magnética (RM)
UNIDADE 4. ADRENAIS
252

também pode ser utilizada, porém é um exame mais caro e, nesses


casos, possui uma menor resolução quando comparada à TC, além de
não ser capaz de distinguir incidentalomas de microadenomas.

PACIENTE DE RISCO PARA


HIPERALDOSTERONISMO PRIMÁRIO

RASTREIO por meio da dosagem de aldosterona +


atividade da renina plasmática

Alta probabilidade de hiperaldosteronismo primário

Realização de teste CONFIRMATÓRIO

Exame de IMAGEM

Figura 2: Etapas diagnósticas do hiperaldosteronismo primário - resumo


esquemático dos passos a serem seguidos na investigação clínica,
laboratorial e de imagem.
Elaborado pelo autor.

7. Tratamento:

O tratamento varia de acordo com os achados tomográficos, que


serão descritos a seguir. De acordo com cada probabilidade, identifi-
cada com o estudo da tomografia, o tratamento poderá ser com uso de
fármacos ou cirúrgico.
Hiperplasia unilateral da glândula adrenal ou adenoma produtor
de aldosterona: a hiperplasia unilateral é observada quando há um
aumento do tecido glandular comparado à glândula contralateral. Por
outro lado, o adenoma é sugerido na TC pela visualização de nódu-
lo maior que 1 cm em paciente com idade menor que 40 anos ou na
presença de nódulo unilateral com alta probabilidade de adenoma ou
nódulo menor que 1 cm ou qualquer alteração em idade maior que 40
anos ou espessamento ou nódulo bilateral das glândulas.
Nesses casos o tratamento é preferencialmente cirúrgico, por vide-
olaparoscopia.
Pré operatório: controle da pressão arterial e da hipocalemia, com
uso de espironolactona e suplementação de potássio.
Pós operatório: devemos suspender a administração de fármacos
antagonistas da aldosterona e ajustar a dose dos outros anti hiper-
tensivos em uso.
UNIDADE 4. ADRENAIS
253

O hiperaldosteronismo se associa à hiperfiltração renal e pode masca-


rar doença renal crônica pré-existente, portanto, no pós-operatório, devemos
monitorar a função renal e prescrever dieta rica em sal, nas primeiras sema-
nas, para evitar hipercalemia.

Nos pacientes que não podem ser submetidos ao procedimento ci-


rúrgico, fazemos uso de antagonistas da aldosterona, restrição de só-
dio (menos que 100 mEq/dia), manutenção do peso ideal e abstinência
alcoólica. Podemos utilizar:
Espironolactona 25 a 200 mg, 1 a 2 vezes por dia.
Eplerenona 25 a 100 mg, 2 vezes por dia.

Hiperplasia suprarrenal bilateral: nesses casos, faz-se uso de tra-


tamento farmacológico.
Espironolactona 25 a 200 mg, 1 a 2 vezes por dia.
Eplerenona 25 a 100 mg, 2 vezes por dia.

Hiperaldosteronismo remediável com glicocorticoide/hiperaldos-


teronismo familiar do tipo 1:
Deve-se proceder com teste genético para confirmar a hipótese an-
tes de iniciar o tratamento que é feito com o uso de prednisona, pred-
nisolona ou dexametasona em dose suficiente para se manter os ní-
veis fisiológicos para o paciente em questão.

8. Prognóstico:

No geral, o prognóstico é bom, com melhora da hipertensão na


maioria dos pacientes e cura em cerca de 35 a 60% daqueles que são
submetidos à cirurgia.
UNIDADE 4. ADRENAIS
254

9. Tabela de resumo:

Quais as principais etiologias do Hiperplasia glandular bilateral e adenoma produtor


hiperaldosteronismo primário? de aldosterona
Qual a porcentagem de hiperaldosteronismo Estudos recentes demonstraram que até 20%
primário em pacientes com hipertensão de difícil dos pacientes com hipertensão refratária podem
controle? possuir hiperaldosteronismo primário
Qual a função da aldosterona na elevação da Ela potencializa a retenção de sal e água pelos
pressão junto ao SRAA? rins, que também é feita pela angiotensina II
Qual o principal sintoma que leva à suspeita de Hipertensão refratária com ou sem hipocalemia
hiperaldosteronismo?
Qual sinal semiológico pode estar presente nessa Sinais de Trousseau e de Chvostek
patologia e o que indica? Estão relacionados à alcalose metabólica e à
hipocalemia
Quais pacientes devem ser rastreados para HAS + hipocalemia
hiperaldosteronismo primário? HAS grave com PAS > 160 e PAD > 100 mmHg
HAS resistente ao uso de mais de três medicações,
sendo uma diurética
HAS + incidentaloma suprarrenal
HAS + HF de hipertensão precoce ou doença
cerebrovascular antes de 40 anos
Familiar de primeiro grau com hiperaldosteronismo
Quais exames utilizados no rastreio? Dosagem de aldosterona plasmática + atividade da
renina plasmática
Quais as possibilidades de testes confirmatórios? Infusão salina intravenosa
Teste de sobrecarga oral de sódio
Qual exame de imagem utilizado para definir a Tomografia computadorizada
etiologia do hiperaldosteronismo?

10. Leitura recomendada:

Douma S, Petidis K, Doumas M, et al. Prevalence of primary hyperaldosteronism


in resistant hypertension: a retrospective observational study. Lancet 2008;
371:1921.

Monticone S, Burrello J, Tizzani D, et al. Prevalence and Clinical Manifestations


of Primary Aldosteronism Encountered in Primary Care Practice. J Am Coll
Cardiol 2017; 69:1811.

Käyser SC, Dekkers T, Groenewoud HJ, et al. Study Heterogeneity and


Estimation of Prevalence of Primary Aldosteronism: A Systematic Review and
Meta-Regression Analysis. J Clin Endocrinol Metab 2016; 101:2826.

Stewart PM. Mineralocorticoid hypertension. Lancet 1999; 353:1341.

Young WF Jr. Diagnosis and treatment of primary aldosteronism: practical


clinical perspectives. J Intern Med 2019; 285:126
UNIDADE 4. ADRENAIS
255

Capítulo 17

Feocromocitoma
Igor Reis Pereira
Murilo Daminelli Favaro
Iuri Martin Goemann

1. Introdução:

Feocromocitoma é o nome dado ao tumor originário das células


cromafins da medula adrenal. Essa nomenclatura se relaciona com
a presença do tumor nas glândulas suprarrenais. Quando as mesmas
células dão origem a tumores localizados fora da glândula adrenal
(cadeias ganglionares simpáticas e parassimpáticas, o mesmo é deno-
minado paraganglioma. O surgimento do tumor pode ser esporádico
ou em associação genética, em até 40% dos casos, como em neoplasia
endócrina múltipla do tipo 2 (NEM 2), doença de von Hippel-Lindau
(VHL), neurofibromatose, paraganglioma ou feocromocitoma associa-
do a mutações no complexo SDHx, casos em que a história familiar
deve ser investigada. Esse tumor pode se associar com hipertensão
grave, de difícil controle, sendo um importante diagnóstico diferen-
cial de causa reversível do descontrole pressórico.

2. Epidemiologia:

São neoplasias raras que podem estar presentes em 0,1 a 0,2% dos
pacientes com hipertensão e a estimativa é de que ocorra, anualmen-
te, em cerca de 2 a 8 pessoas por milhão. Não há preferência por sexo,
sendo a idade média de diagnóstico 40 anos, mas podendo ocorrer
em crianças ou idosos. Até 50% dos tumores são diagnosticados em
autópsias. Os tumores extra-adrenais ou bilaterais costumam possuir
associação genética, com história familiar positiva para a neoplasia,
ocorrendo em idade mais precoce.
UNIDADE 4. ADRENAIS
256

Essa regra era utilizada para determinar algumas variações comuns des-
ses tumores, entretanto foi descoberto que a porcentagem fixa de 10% não
apresentava valores tão fiéis. Dessa forma, hoje sabemos que os tumores po-
dem se distribuir da seguinte forma:
20% são extra-adrenais.
10% são bilaterais.
25% são malignos (até 36%, se considerar paragangliomas).
13 a 25% são assintomáticos.
30 a 40% são hereditários.

3. Fisiopatologia:
Os feocromocitomas ou paragangliomas, originam-se de células cro-
mafins da medula das glândulas adrenais e de gânglios simpáticos ou
parassimpáticos e podem ser chamados de tumores secretores de ca-
tecolaminas. Seu nome faz referência à coloração escura que resulta
da oxidação, nas células cromafins, das catecolaminas produzidas em
grande quantidade nesses tumores, que são bem vascularizados.
Os locais de origem tumoral variam desde medula suprarrenal ou
tronco simpático (gânglios simpáticos) até glomo carotídeo (quimiorre-
ceptor que está localizado medialmente à bifurcação da artéria carótida
comum), timpânico, jugular ou vagal (gânglios parassimpáticos), corres-
pondentes do sistema paraganglionar.
A glândula suprarrenal, mais especificamente a região medular, é res-
ponsável pela produção e secreção de três catecolaminas (epinefrina, no-
repinefrina e dopamina). A liberação dessas substâncias para a corrente
sanguínea, provenientes das células cromafins, ocorre após a secreção de
acetilcolina por neurônios paraganglionares (responsáveis pelo estímulo
à liberação), que inervam diretamente a glândula. Cerca de 80% da secre-
ção é na forma de epinefrina, devido à ação da enzima feniletanolamina
N-metiltransferase (PNMT), que converte localmente a norepinefrina em
epinefrina e é estimulada e regulada pela ação do cortisol, presente na
glândula e proveniente do córtex suprarrenal. Em Paragangliomas, a se-
creção de norepinefrina ocorre em maior quantidade por conta da menor
ação da PNMT. Grande parte dessas catecolaminas circulam no sangue
conjugadas a sulfatos, portanto são inativas, porém, na presença do tumor
a secreção ocorre de forma exacerbada e parte das catecolaminas produ-
zidas irão circular livremente na corrente sanguínea.
Essas catecolaminas, como epinefrina e norepinefrina, são conheci-
das como “hormônios de luta e fuga” e são liberadas em maior quanti-
UNIDADE 4. ADRENAIS
257

dade, fisiologicamente, em situações de estresse, com sua liberação di-


minuída no estado basal e durante o sono. Estresse físico, psicológico ou
metabólico são capazes de aumentar a secreção desses hormônios por
estimular o sistema nervoso e resultar no aumento da liberação de neu-
rotransmissores, como a acetilcolina, que agirá diretamente na glândula
adrenal. A ação das catecolaminas ocorre, preferencialmente, mediada
por receptores alfa e beta adrenérgicos. De acordo com cada receptor, a
resposta do organismo se dá de forma diferente e o maior estímulo que
ocorre na presença de feocromocitoma ou paraganglioma determina os
sinais e sintomas dessa patologia.

Tabela 1: Principais efeitos das catecolaminas em receptores adrenérgicos.


Principais efeitos das catecolaminas em receptores adrenérgicos
Órgão / Tecido Receptor Efeito
Miocárdio β¹ Aumento da força de contração (inotropismo).
β¹ e α¹ Aumento na excitabilidade do miocárdio, predispondo a arritmias.
Aumento na frequência cardíaca (cronotropismo).
Vasos sanguíneos α¹ e α² Vasoconstrição 4 Hipertensão
Musculatura lisa dos vasos β² Vasodilatação
Sistema nervoso central α Aumento do estado de alerta
Ansiedade e medo
Pele α¹ Sudorese
Glândulas apócrinas
Adaptado de: Pathophysiology of Disease: An Introduction to Clinical Medicine, 8ª edição.

Os feocromocitomas são caracterizados pela liberação exacerbada


de epinefrina e/ou norepinefrina e, mais raramente, de dopamina (a
maioria secreta norepinefrina, causando hipertensão sustentada). Os
tumores que liberam, predominantemente, epinefrina se relacionam
com efeitos metabólicos, como hiperglicemia.

Você sabe quais são os mecanismos de elevação da pressão arterial


na presença de um feocromocitoma?
A elevação da pressão arterial decorre de dois mecanismos, ambos me-
diados pelo excesso de catecolaminas: vasoconstrição arterial mediada por
receptores alfa adrenérgicos, que resulta em aumento da resistência vascu-
lar periférica; e aumento do débito cardíaco e da liberação de renina plasmá-
tica, em resposta a quedas na pressão arterial, resultando em aumento da
angiotensina II circulante.

No feocromocitoma, o aumento da resistência vascular periférica


é o mecanismo mais comum e provável de hipertensão, enquanto no
UNIDADE 4. ADRENAIS
258

hiperaldosteronismo primário, o mecanismo mais comum envolve o


sistema renina-angiotensina-aldosterona.

4. Anamnese:

O diagnóstico é suspeitado em pacientes com hipertensão refratá-


ria à medicação usual e é importante devido aos riscos que a presença
do tumor trás em cirurgias, no uso de anestésicos ou durante o parto,
podendo evoluir com desfecho fatal. Além disso, podemos suspeitar
no paciente com achado incidental de massa na suprarrenal no exa-
me de imagem.
Devemos lembrar da tríade clássica de sintomas: cefaleia, sudorese
e taquicardia. Tais sintomas podem não estar presentes em todo pa-
ciente, mas são indicativos naqueles com suspeita clínica por hiper-
tensão resistente. A hipertensão pode ser paroxística ou sustentada,
ou ainda estar ausente em pacientes com incidentaloma ou naqueles
que passam por screening periódico para doença familiar. Crise hi-
pertensiva pode ser precipitada pelo uso de antidepressivos tricícli-
cos, agentes antidopaminérgicos e metoclopramida. Alguns pacien-
tes podem se apresentar com “crise multissistêmica”, apresentando
hipertensão ou hipotensão, temperatura acima de 40ºC, alteração no
nível de consciência e disfunção orgânica.
No geral, outros sintomas que podem ocorrer são: ansiedade, pali-
dez, náuseas, dor abdominal, fraqueza, perda de peso, resposta para-
doxal ao uso de anti-hipertensivos, poliúria, polidipsia, constipação,
zumbido, hipotensão ortostática, miocardiopatia dilatada, eritrocitose,
elevação da glicemia e hipercalemia. Durante os eventos paroxísticos,
nos quais ocorre aumento episódico da secreção de catecolaminas, o
paciente poderá se apresentar com quadro de ansiedade, com fadiga
ou sensação de exaustão. A vasoconstrição periférica é a responsável
pelo surgimento de palidez e pela sudorese de extremidades e, nos
casos crônicos, predispõe hipotensão postural.
É importante investigarmos na anamnese a presença de outras ne-
oplasias no paciente ou na família, pensando na associação a quadros
genéticos como doença de Von Hippel Lindau, neurofibromatose e ne-
oplasia endócrina múltipla.

5. Exame físico:

Achados no exame físico podem se relacionar à palidez, devido à


vasoconstrição periférica, e à palpação de massa abdominal em tu-
mores maiores, hipotensão postural. Durante a crise hipertensiva po-
UNIDADE 4. ADRENAIS
259

demos observar flush facial, taquicardia e hipertensão. Em casos de


NEM 2, do tipo B, podemos identificar neuromas de mucosa, principal-
mente na língua.

6. Exames complementares:

Para avaliar os pacientes com suspeita de feocromocitoma, leva-


mos em consideração alguns exames complementares.
As catecolaminas e as metanefrinas (produtos da metabolização da
epinefrina e norepinefrina, com meia vida plasmática maior que das
catecolaminas em si) podem ser medidas por testes urinários e plas-
máticos, ambos úteis na determinação do excesso dessas substâncias.
A urina de 24 horas é o teste mais utilizado para avaliação inicial desses
pacientes e nele podemos pesquisar a presença de catecolaminas e de
metanefrinas fracionadas e totais. Por outro lado, os testes plasmáticos
são mais práticos, já que necessitam apenas da retirada de sangue em
um único momento, e podem determinar os níveis de catecolaminas e
de metanefrinas livres. Todos os testes possuem boa sensibilidade e es-
pecificidade para o diagnóstico e resultados duas a três vezes acima do
limite superior da normalidade indicam uma alta probabilidade diag-
nóstica, independentemente do método de escolha para o diagnóstico
bioquímico. Porém, em resultados limítrofes, devemos levar em consi-
deração testes mais sensíveis e específicos para uma análise correta
dos resultados. Além disso, podemos dosar a cromogranina A (CgA)
que é um peptídeo secretado pelas células cromafins junto às cateco-
laminas. Esse peptídeo pode estar elevado em outras situações, como
tumores carcinoides e tumores neuroendócrinos pancreáticos não fun-
cionantes, portanto não são específicos do feocromocitoma mesmo es-
tando presentes em 91% dos pacientes.
Para a localização do tumor, exames de imagem são necessários.
Nesse sentido, podemos lançar mão de exames contrastados de to-
mografia computadorizada ou de ressonância nuclear magnética, que
possuem sensibilidades semelhantes. Outros exames de imagem po-
dem ser utilizados, como a cintilografia e tomografia por emissão de
pósitrons. A tomografia e a ressonância são exames muito sensíveis
e possuem cerca 70% de especificidade para feocromocitoma, já que
identificam bem os incidentalomas suprarrenais de forma geral. Vale
lembrar que na ressonância magnética, o feocromocitoma, que apa-
rece hiperintenso em T2, se diferencia de outros tumores de adrenal,
que aparecem isointensos. A cintilografia com metaiodobenzilguani-
dina, composto que se assemelha à norepinefrina e é absorvido por
UNIDADE 4. ADRENAIS
260

tecidos de origem adrenérgica, é indicada em tumores maiores que 10


cm, com risco aumentado para metástases, e em paragangliomas, a
fim de se identificar, por meio da captação da molécula pelo tumor, os
locais acometidos.
A biópsia de lesões suspeitas de feocromocitoma, em especial na
adrenal devem ser evitadas, tanto pelo risco de disseminação tumoral
no trajeto como pelo risco de desencadeamento de uma crise adrenér-
gica. A biópsia é indicada quando há suspeita de lesão metastática de
outro sítio primário.

7. Diagnóstico:

O diagnóstico consiste em duas etapas: a confirmação bioquímica


da secreção exacerbada de catecolaminas e a identificação do tumor
em exames de imagem. A análise de níveis séricos e urinários de ca-
tecolaminas constituem a base desse diagnóstico. Vale lembrar que,
devido à secreção aumentada, nem todas as moléculas liberadas irão
agir nos receptores correspondentes e uma parte irá circular na cor-
rente sanguínea e ser excretada na urina. Pacientes assintomáticos,
com achado incidental de massa pobre em lipídios na adrenal podem
não apresentar alterações laboratoriais quando o diagnóstico é feito
na “fase pré bioquímica”.

Quando devemos fazer screening para feocromocitoma?


As indicações de screening são: pacientes com tríade clássica com ou
sem hipertensão; pacientes com palpitação, sudorese, cefaleia, tremor ou
palidez; hipertensão de diagnóstico precoce, hipertensão resistente, hiper-
tensão de início recente ou diabetes mellitus atípico, como surgimento de
diabetes tipo 2 em pessoa não obesa; NEM 2, VHL, NF 1; história familiar;
incidentaloma suprarrenal; cardiomiopatia dilatada idiopática; crise hiper-
tensiva durante anestesia, cirurgia ou angiografia.

Para um diagnóstico mais preciso, devemos nos atentar aos me-


dicamentos que podem aumentar os níveis plasmáticos de catecola-
minas e metanefrinas e, sempre que possível, descontinuar seu uso
e optar por opções terapêuticas que não possuam esse efeito colate-
ral. Com isso, ao se realizar os exames diagnósticos, os resultados se
tornarão mais confiáveis. Tais medicamentos são os antidepressivos
UNIDADE 4. ADRENAIS
261

tricíclicos, levodopa, anfetaminas, buspirona, reserpina, clonidina e


o etanol. Vale ressaltar que os níveis plasmáticos das catecolaminas
podem sofrer flutuações de acordo com os picos de liberação pelo tu-
mor, entretanto, os metabólitos que são detectados por meio da de-
terminação das metanefrinas plasmáticas são produzidos continua-
mente na maioria dos tumores.
A figura 1 mostra um resumo das etapas diagnósticas necessárias.

DIAGNÓSTICO FEOCROMOCITOMA

Dosagem de metanefrinas e catecolaminas


plasmáticas e urinárias

Níveis maiores que três vezes Níveis até três vezes o limite
o limite superior da normalidade superior da normalidade

Revisar fatores confundidores


e solicitar exames novamente

Exame de Novos resultados com níveis três


Sim Não
imagem vezes o limite superior da normalidade

Identificação de
massa tumoral em
glândula suprerrenal

Ausência de imagem Diagnóstico


compatível improvável

Diagnóstico
provável Instituição de tratamento e preparo pré-operatório

Figura 1: Diagnóstico do feocromocitoma.


Elaborado pelo autor.

8. Tratamento:

O tratamento consiste em adrenalectomia, que é indicada em to-


dos os casos e feita, de preferência, por via laparoscópica. Em casos
de feocromocitoma que acomete as duas glândulas, comum em pa-
cientes com NEM 2, optamos por adrenalectomia parcial. Em casos de
tumores metastáticos, a ressecção cirúrgica das metástases é a única
opção de cura. Entretanto, é necessário que haja um preparo pré-ope-
UNIDADE 4. ADRENAIS
262

ratório devido à alta liberação de catecolaminas com a manipulação do


tumor que pode induzir quadro de crise hipertensiva potencialmente fatal,
arritmias malignas e falência múltipla de órgãos. Classicamente, o pre-
paro pré-operatório é feito com terapia combinada de bloqueadores alfa e
beta adrenérgico, monitoramento da pressão arterial e prescrição de dieta
rica em sal.
Bloqueio alfa adrenérgico: deve ser feito 7 dias antes da cirurgia, com
uso de prazosina, doxazosina ou terazosina e visa o controle da pressão
arterial com diminuição da resistência vascular periférica por meio da va-
sodilatação. O fármaco de escolha é a fenoxibenzamina na dose de 10 mg
1 ou 2 vezes ao dia com aumento de 10 a 20 mg a cada três dias até que se
consiga manutenção dos níveis pressóricos, visando uma dose final de 20
a 100 mg. Os efeitos adversos possíveis são hipotensão ortostática, conges-
tão nasal e fadiga.
Bloqueio beta adrenérgico: visa manter a frequência cardíaca entre 60
e 80 bpm e deve ser iniciado após se atingir a meta com o bloqueador alfa
adrenérgico, dois a três dias antes da cirurgia. Deve-se usar com cuidado e
maior monitoramento em paciente asmático e naqueles com insuficiência
cardíaca e lembrar que no paciente com miocardiopatia causada pelo ex-
cesso de catecolaminas o uso de betabloqueadores pode predispor edema
agudo de pulmão. As drogas de escolha são propranolol 10 mg, via oral, a
cada seis horas no primeiro dia com meta de 120 mg diárias em dose única
de longa duração ou metoprolol 12,5 mg, via oral, a cada 12 horas no primei-
ro dia com meta de 200 mg diárias em dose única.
O monitoramento da pressão arterial deve ser, preferencialmente, intra-
-arterial e nos casos de insuficiência cardíaca ou queda do débito cardíaco
temos como opção monitorar a pressão capilar pulmonar. Deve ser aferida
duas vezes ao dia com o paciente sentado e em pé, mantendo os níveis
menores que 120/80 mmHg e PAS maior que 90 mmHg, levando em conta
a idade do paciente e as comorbidades presente.
Nos pacientes com depleção de volume o aporte de sal em grande quan-
tidade e a reposição volêmica são úteis para evitar hipotensão ortostática.
Deve-se prescrever dieta com mais de 5000 mg de sal por dia, a partir do
segundo ou terceiro dia do bloqueio alfa adrenérgico, devido à contração
de volume causada pelas catecolaminas e pelo risco de hipotensão causa-
do pelo bloqueio alfa. Pacientes com insuficiência cardíaca e doença renal
crônica devem ser analisados quanto à prescrição dessa dieta.

9. Prognóstico:

Com diagnóstico e tratamento adequados, o prognóstico é bom,


com obtenção de cura e melhora da hipertensão arterial em grande
UNIDADE 4. ADRENAIS
263

parte dos casos. Após a adrenalectomia, até 75% dos pacientes podem
voltar ao estado de normotensão e recidivas podem ocorrer em 5 a
10%, sendo recomendada a dosagem de catecolaminas e metanefrinas
anualmente por cinco anos após a cirurgia.

10. Tabela de resumo:

Quais as principais substâncias produzidas pelos Catecolaminas


feocromocitomas? (epinefrina e norepinefrina)
Com quais síndromes genéticas o tumor pode estar NEM 2, VHL e NF 1, SDHx
associado?
Em quais receptores as catecolaminas se ligam para Receptores α e β adrenérgicos
desempenhar suas funções?
Quando suspeitar de feocromocitoma? Na presença de hipertensão refratária a
tratamento associada ou não a sudorese,
taquicardia e palpitações
Qual a tríade clássica de apresentação do Cefaleia, palpitação e sudorese
feocromocitoma?
Quais exames diagnósticos utilizados na Dosagem de catecolaminas e metanefrinas
investigação? plasmáticas e urinárias
Quais os principais exames de imagem úteis ao TC e RM
diagnóstico? Cintilografia e PET-CT podem ser utilizados
Quais os pontos principais do preparo pré-operatório Terapia sequencial de bloqueio alfa e beta
de um paciente com feocromocitoma? adrenérgico
Monitoramento da pressão arterial
Dieta rica em sal e reposição volêmica

11. Leitura recomendada:

Neumann HPH, Young WF Jr, Eng C. Pheochromocytoma and Paraganglioma. N


Engl J Med 2019; 381:552.

Young WF Jr. Adrenal causes of hypertension: pheochromocytoma and primary


aldosteronism. Rev Endocr Metab Disord 2007; 8:309.

Lenders JW, Duh QY, Eisenhofer G, et al. Pheochromocytoma and paraganglioma: an


endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab 2014; 99:1915.

Sibal L, Jovanovic A, Agarwal SC, et al. Phaeochromocytomas presenting as acute


crises after beta blockade therapy. Clin Endocrinol (Oxf) 2006; 65:186.

Gruber LM, Hartman RP, Thompson GB, et al. Pheochromocytoma Characteristics


and Behavior Differ Depending on Method of Discovery. J Clin Endocrinol Metab
2019; 104:1386.
UNIDADE 4. ADRENAIS
264

Capítulo 18

Carcinoma Adrenal
Cícero Toniolo
Laura Nilsson Vincensi
Thaís Gilioli
Pietra Fischer Pascoal
Bruno Schmidt Dellaméa

1. Introdução:

O Carcinoma adrenocortical (CAC), também chamado de carcinoma


suprarrenal, corresponde a uma massa maligna no córtex adrenal, rara,
correspondendo à 0,02% de todas as neoplasias e pouco menos de 5% dos
incidentalomas adrenais.
São derivados de diversos tipos histológicos e têm manifestação clíni-
ca variada, dependendo da produção ou não de hormônios. Cerca de 80%
dos tumores são funcionantes, e podem secretar glicocorticoides isolada-
mente (45%), glicocorticoides e androgênios (45%) e androgênios isolada-
mente (10%) e menos de 1% de todos os casos secretam aldosterona.

2. Epidemiologia:

Sua incidência é de 1 a cada milhão habitantes por ano e é discretamen-


te mais frequente em mulheres (2,5:1). Ocorre em uma distribuição bimo-
dal, com o primeiro pico em crianças com menos de 5 anos e o segundo em
adultos na 4ª e 5ª décadas de vida.

3. Fisiopatologia:

A origem para o desenvolvimento tumoral na suprarrenal é desconhe-


cida. A análise clonal sugere progressão de tecido normal para lesão ade-
nomatosa e para lesão carcinomatosa, mas as vias moleculares permane-
cem desconhecidas. Ainda não está definido se o carcinoma suprarrenal
esporádico tem origem em lesões benignas (adenomas ou hiperplasia) ou
se trata de alguma doença distinta.
O carcinoma adrenal está presente em uma série de síndromes neo-
plásicas de origem familiar. Nesses casos, foram demonstradas diversas
alterações moleculares genéticas associadas a malignidade:
UNIDADE 4. ADRENAIS
265

Síndrome de Li-Fraumeni: alterações no gene p53;


Neoplasia endócrina múltipla do tipo 1: alterações no gene menin;
Síndrome de Carney: perda da heterogeneidade;
Síndrome de Beckwith–Wiedemann: alterações de IGF2 (insulin-
-like growth factor 2).

Ademais, alguns estudos mostram associação de carcinoma su-


prarrenal com elevação de IGF1 e IGF2, fatores normalmente associa-
dos à diferenciação do córtex da glândula e sua elevação pode estar
associada à gênese e diferenciação tumoral.

4. Anamnese e exame físico:

Aproximadamente 60% dos Carcinomas de Adrenal produzem hor-


mônio suficiente para gerar síndromes clínicas de excesso hormonal.
Dentre essas síndromes, a mais comum em adultos é a Síndrome de
Cushing isolada. Por outro lado, feminilização e hiperaldosteronismo
ocorrem em menos de 10% dos casos. Em crianças, geralmente, os sin-
tomas são causados pelo excesso de androgênios que o tumor secreta.
A maioria dos pacientes com carcinoma adrenal não-funcionante,
ou seja, que não produz hormônios, apresenta manifestações clínicas
relacionadas ao efeito de massa causado pelo crescimento tumoral,
como dor abdominal, lombar ou em flancos, vômitos e náuseas, mas-
sa palpável e sinais de síndrome de compressão da veia cava inferior
(taquicardia, hipotensão, taquipneia, hipoxemia e dispneia). Pacientes
com tumores não-funcionantes também podem ser assintomáticos, e
o diagnóstico pode ser feito por um achado incidental em exame ra-
diográfico (incidentalomas). Temos que lembrar, portanto, que massa
palpável, dor abdominal e sinais de síndrome de compressão da veia
cava são altamente sugestivos de CA.
Na investigação é importante levar em consideração os picos de
surgimento tumoral e ter em mente que apesar de a maioria não es-
tar relacionada com hereditariedade, até 15% pode estar ligado a um
defeito genético - afetando, nesses casos, principalmente crianças.
Devemos então, além de questionar o paciente sobre tabagismo, que
é um dos principais fatores de risco, investigar síndromes genéticas.
Dentre essas síndromes, as mais importantes são:
Síndrome de Li-Fraumeni
Síndrome de Beckwith-Wiedemann
Síndrome de Lynch
Doença de Von Hippel-Lindau
UNIDADE 4. ADRENAIS
266

Neoplasia endócrina múltipla (tipos 1 e 2)


Polipose adenomatosa familiar
Complexo de Carney

Os sinais e sintomas que podem se associar ao carcinoma adre-


nal secretor de corticosteroides (Síndrome de Cushing) são: obesidade
central, estrias violáceas na pele, atrofia muscular, osteoporose, hiper-
tensão artéria, intolerância à glicose, distúrbios psiquiátricos, pletora
facial e fácies em lua cheia. Pode ocorrer a presença de Síndrome de
Cushing subclínica, com a apresentação dos fatores de risco cardio-
vascular, como hipertensão arterial, diabetes tipo 2, dislipidemia e
eventos tromboembólicos, mas com nenhum ou poucos achados fe-
notípicos clássicos.
Em relação aos carcinomas de produtores de hormônios sexuais,
algumas considerações devem ser levadas em conta: os sintomas
causados por níveis elevados de hormônios sexuais são menos per-
ceptíveis em adultos, porque eles já passaram pela puberdade. Nesses
casos, o paciente terá sintomas quando o hormônio produzido for do
sexo oposto, como mulheres com tumor produtor de androgênios e ho-
mens com tumor que produz estrogênios. Vale lembrar que sintomas
também podem surgir secundários ao efeito de massa do carcinoma.
Carcinoma adrenal produtor de androgênios: mulheres podem apre-
sentar hirsutismo, queda de cabelo, ciclos menstruais irregulares,
engrossamento da voz, aumento do odor corporal, acne, hipertrofia
do clitóris.
Carcinoma adrenal produtor de estrogênios: os sintomas que obser-
vamos em homens são ginecomastia, atrofia testicular e perda de li-
bido. Por outro lado, em mulheres podemos observar a ocorrência de
puberdade precoce, sensibilidade mamária e alterações menstruais.
Por fim, os carcinomas produtores de aldosterona podem cursar
com clínica de hiperaldosteronismo primário clássico, incluindo hi-
pertensão arterial refratária, hipocalemia, fraqueza e cãibras.

5. Exames complementares:

Os exames complementares avaliam a produção hormonal pelo tu-


mor. Dado isso, de acordo com o diagnóstico, iremos observar alguns
testes que nos guiarão na definição do produto secretado pelo carcino-
ma. Dentre as possibilidades, temos:
Carcinoma secretor de corticoesteroides (Síndrome de Cushing):
ACTH plasmático, cortisol sérico, teste de supressão com dexameta-
sona, cortisol urinário de 24 horas, cortisol salivar.
UNIDADE 4. ADRENAIS
267

Carcinoma secretor de androgênios: DHEA-S, androstenediona, tes-


tosterona, 17-OH-progesterona.
Carcinoma secretor de estrogênios: 17-beta-estradiol.
Carcinoma secretor de aldosterona: potássio sérico, renina, aldosterona.

6. Diagnóstico:

Para concluir o diagnóstico, é imprescindível que se realize exames


laboratoriais e de imagem. A tomografia computadorizada é o principal
exame para avaliar lesões adrenais, mas pode ser necessária a utili-
zação de ressonância magnésica, cintilografia e, mais recentemente,
de PET-scan. A PAAF é dispensável para a maioria dos casos, sendo a
avaliação histopatológica essencial, a qual deve ser realizada por dois
ou mais patologias experientes nessa neoplasia, devido à dificuldade
técnica.
Os exames laboratoriais que podem ser solicitados dependem da
suspeita clínica da produção tumoral incluem:
Excesso de glicocorticoides: teste de supressão com dexametasona
1 mg overnight, cortisol livre urinário de 24 horas e cortisol salivar à
meia-noite; ACTH basal (plasmático);
Esteroides sexuais e precursores de esteroides: DHEAS (sérico);
17-OH-progesterona (sérico); androstenediona (sérico); testosterona
(sérico, apenas em mulheres); 17-β-estradiol (sérico, apenas em ho-
mens e mulheres pós menopausa); 11-desoxicortisol.
Excesso de mineralocorticoides: potássio sérico; renina sérica; al-
dosterona sérica.
Exclusão de feocromocitoma: catecolaminas e metanefrinas uriná-
rias de 24 horas; metanefrinas plasmáticas.

Em relação aos exames de imagem, quando se suspeita de carcino-


ma adrenal, há indicação da realização de TC de tórax, além de TC ou
RM de abdome e pelve, a fim de avaliar invasão e metástase tumoral
(metástases são mais comuns em fígado e pulmões), uma vez que o
resultado desses exames pode vir a modificar a decisão terapêutica do
paciente. Os principais achados dos exames de imagem são:
Lesões geralmente > 6 cm;
Heterogêneas;
Margens irregulares;
Calcificações e hemorragia;
Densidade > 10 HU na TC sem contraste;
Clareamento (washout) absoluto < 50%, 15 minutos após a injeção do
contraste.
UNIDADE 4. ADRENAIS
268

O exame histopatológico, última etapa diagnóstica é avaliado de


acordo com o sistema de Weiss, que leva em conta 9 critérios de ma-
lignidade, sendo 3 relacionados à estrutura do tumor (presença de ne-
crose, arquitetura difusa e potencial de células claras), 3 à estrutura
celular (mitoses atípicas, número de mitoses e atipia nuclear) e 3 à
invasão (vascular, sinusoidal e capsular). O diagnóstico de carcinoma
adrenal é feito caso esteja presente 3 ou mais critérios de malignidade.

7. Tratamento:

O único tratamento para o carcinoma adrenal com potencial cura-


tivo é a ressecção cirúrgica completa do tumor. O tratamento adju-
vante é feito com quimioterapia com mitotano e tem a finalidade de
diminuir o risco de recorrência (que ocorre em 60 a 80% dos casos).
Essas duas abordagens são indicadas para pacientes com doença
localizada ao diagnóstico (estádios 1, 2 e, em alguns casos, 3, sendo
candidatos à ressecção radical do tumor primário. Já para os pacien-
tes com doença irressecável ou metastática ao diagnóstico, todas as
alternativas terapêuticas que se dispõe são paliativas, inclusive o tra-
tamento cirúrgico, quando considerado.

8. Prognóstico:

O prognóstico do paciente com carcinoma adrenal depende de di-


versos fatores, sendo eles: estadiamento, status de ressecção (quando
feita ressecção completa, há melhor prognóstico), idade (quanto mais
jovem, melhor prognóstico) e a funcionalidade do tumor (o hiperan-
drogenismo isolado está relacionado a um melhor prognóstico, en-
quanto tumores secretores de cortisol, mistos ou de estrogênio - por
serem, em geral, mais agressivos, ocasionam um pior prognóstico).
A sobrevida, quando analisamos o estadiamento do tumor, se dá da
seguinte forma:
Estádio I: sobrevida de 66-82% em 5 anos.
Estádio II: sobrevida de 58-64% em 5 anos.
Estádio III: sobrevida de 24-50% em 5 anos.
Estádio IV: sobrevida de 0-28% em 5 anos.
UNIDADE 4. ADRENAIS
269

Tabela 1:estádios e classificação dos carcinomas adrenais.


Estádio Classificação
I T1,N0, M0
II T2,N0, M0
III T1-2,N1, M0 / T3-4,N0-1, M0
IV T1-4,N0-1, M1
Legenda: T1, tumor ≤ 5cm; T2, tumor > 5cm; T3, infiltração do tumor no tecido circundante; T4,
invasão de tumor em órgãos adjacentes ou trombo de tumor venoso em veia cava ou veia renal;
N0, nenhum linfonodo positivo; N1, linfonodo (s) positivo (s); M0, sem metástases à distância; M1,
presença de metástase à distância.
Adaptado de: Endocrinologia Clínica de Lúcio Vilar.

9. Tabela de resumo:

Fisiopatologia Origem da gênese tumoral suprarrenal é desconhecida. Análise clonal


sugere progressão de tecido normal para lesão adenomatosa e para lesão
carcinomatosa. Presente em uma série de síndromes neoplásicas de origem
familiar.
Ainda não está definido se o carcinoma suprarrenal esporádico tem origem
em lesões benignas ou se trata de doença distinta.
Anamnese e exame físico Carcinoma secretor de corticoesteróides: Obesidade central, estrias
violáceas, HAS, intolerância à glicose, resistência à insulina, osteoporose,
atrofia muscular, pletora facial, rosto em lua cheia.
Carcinoma secretor de androgênios (em mulheres): Hirsutismo, acne, queda
de cabelo, hipertrofia do clitóris, irregularidade menstrual, engrossamento
da voz e aumento do odor corporal.
Carcinoma secretor de estrogênios (em homens): Ginecomastia, atrofia
testicular, perda de libido.
Carcinoma secretor de estrogênios (em mulheres): Puberdade precoce,
sensibilidade mamária e alterações menstruais.
Carcinoma secretor de aldosterona: HAS, hipocalemia, cãibra e fraqueza.
Exames complementares Carcinoma secretor de corticosteroides: ACTH, cortisol sérico, teste de
supressão com Dexametasona e cortisol urinário de 24h.
Carcinoma secretor de androgênios: DHEA-S, androstenediona,
testosterona, 17-OH-Progesterona
Carcinoma secretor de estrogênios: 17-beta-estradiol
Carcinoma secretor de aldosterona: potássio sérico e razão aldosterona-
renina
Diagnóstico Exames laboratoriais são úteis para verificar o excesso de glicocorticoides,
esteroides sexuais e precursores de esteroides, excesso de
mineralocorticoides e exclusão de feocromocitoma)
Exames de imagem (TC de tórax e TC/RM de abdome e pelve)
Exame histopatológico (determinante para diagnóstico final)
Tratamento A única opção de cura é a ressecção cirúrgica completa do tumor.
O tratamento adjuvante diminui a recorrência.
Em pacientes com doença irressecável ou metastática, o único tratamento é
o paliativo (inclusive a cirurgia)
UNIDADE 4. ADRENAIS
270

10. Leitura recomendada:

FASSNACHT, Martin; DEKKERS, Olaf M.; ELSE, Tobias; et al. European


Society of Endocrinology Clinical Practice Guidelines on the management
of adrenocortical carcinoma in adults, in collaboration with the European
Network for the Study of Adrenal Tumors. European Journal of Endocrinology,
v. 179, n. 4, p. G1–G46, 2018.

FASSNACHT, Martin; KROISS, Matthias; ALLOLIO, Bruno. Update in


Adrenocortical Carcinoma. The Journal of Clinical Endocrinology &
Metabolism, v. 98, n. 12, p. 4551–4564, 2013.

KEBEBEW, Electron, Adrenal Incidentaloma, The New England Journal of


Medicine, v. 384, n. 16, p. 1542–1551, 2021.

LIBÉ, Rossella. Adrenocortical carcinoma (ACC): diagnosis, prognosis, and


treatment. Frontiers in Cell and Developmental Biology, v. 3, p. 45, 2015.

MELMED, Sholmo; AUCHUS, Richard J; GOLDFINE, Allison B; KOENIG, Ronald J;


ROSEN, Clifford J. Williams Textbook of endocrinology. 14th ed. Philadelphia:
Elsevier, 2020.
UNIDADE 4. ADRENAIS
271

UNIDADE 5:

GÔNADAS
UNIDADE 5. GÔNADAS
272

Capítulo 19

Síndrome dos Ovários Policísticos


Isabela Batista dos Santos
Jéssica Nascimento Monte
Thizá Massaia Londero Gai

1. Introdução:

A síndrome dos ovários policísticos (SOP), também chamada de


síndrome da anovulação crônica hiperandrogênica, consiste em uma
disfunção endócrina associada ao eixo hormonal feminino. Na maior
parte dos casos, as pacientes se apresentam com queixas relacionadas
à irregularidade menstrual ou amenorreia, sintomas relacionados ao
hiperandrogenismo (como hirsutismo), além de obesidade e manifes-
tações de resistência à insulina, como a acantose nigricans.
A SOP representa a endocrinopatia mais comum durante a vida re-
produtiva da mulher, sendo presente em cerca de 5 a 10% das mulheres.
Ela é marcada por excessiva produção de hormônios masculinos (an-
drogênios), principalmente de testosterona, em comparação aos hor-
mônios femininos (estrogênios), associada à resistência insulínica.
Devido ao hiperandrogenismo, a SOP pode ter grande influência na
vida de uma mulher que deseja uma gestação, por exemplo, já que esta é
uma condição que requer um bom funcionamento do eixo hormonal fe-
minino, que atua como regulador dos ciclos menstruais e da ovulação.
Apesar de não possuir cura, várias ações podem ser tomadas para
garantir uma melhor qualidade de vida para essas pacientes, conforme
mostraremos ao longo do capítulo.

Hiperandrogenismo Oligomenorreia

Morfologia Ovariana Policística


Figura 1: Características clínicas da Síndrome dos Ovários Policísticos.
Elaborado pelo autor.
UNIDADE 5. GÔNADAS
273

2. Epidemiologia:

Qual é, de fato, o peso dessa síndrome na população feminina em ida-


de reprodutiva? Como citado anteriormente, até 10% das mulheres dentro
da faixa etária ativa podem ter SOP. Dessas mulheres, 33 a 43% desenvol-
vem síndrome metabólica, isto é, um conjunto de condições que aumen-
tam o risco de doenças cardiovasculares e diabetes mellitus, sendo essa
prevalência duas vezes maior em comparação com mulheres da popu-
lação em geral. Nesse sentido, os efeitos da SOP no organismo feminino
não se restringem ao ciclo reprodutivo, mas também se conectam com a
regulação metabólica e com a qualidade de vida no geral.
Em mulheres jovens com SOP, o risco de desenvolvimento de doen-
ças cardiovasculares é cerca de sete vezes maior que a média popula-
cional. Além disso, é imprescindível nos atentarmos ao fato de que a
própria obesidade em si já é uma causa de resistência insulínica perifé-
rica. Assim, pacientes com sobrepeso e diagnosticadas com SOP devem
ser alertadas imediatamente sobre a importância de uma mudança de
estilo de vida nesse sentido.
É importante destacar que a presença de ovários policísticos na ul-
trassonografia não é o suficiente para o diagnóstico, uma vez que até
20% das mulheres saudáveis podem ter esse achado.

3. Fisiopatologia:

Mas afinal, quais mecanismos estão envolvidos na síndrome dos


ovários policísticos? A origem da síndrome não é totalmente clara, e
alguns estudiosos apontam para uma origem genética. Apesar disso,
independentemente da sua causa, explicaremos a fisiopatologia para
que você entenda o seu funcionamento.
Um dos principais pontos que moldam o cenário dessa síndrome é o
descompasso da esteroidogênese nas células da teca ovarianas. Fisio-
logicamente, o GnRH (hormônio liberador de gonadotrofinas) é liberado
pelo hipotálamo e estimula a hipófise a liberar FSH (hormônio folículo-
-estimulante) e LH (hormônio luteinizante).

No folículo ovariano em desenvolvimento, as células da teca são es-


timuladas pelo LH a converterem o colesterol em androstenediona e
testosterona;
Já as células da granulosa convertem a testosterona em estradiol
(e a androstenediona em estrona) sob estímulo do FSH e mediante
ação da aromatase (enzima conversora).
UNIDADE 5. GÔNADAS
274

LH
CÉLULA DA TECA

COLESTEROL PREGNELONONA

PROGESTERONA

17-0HP

ANDROSTENEDIONA

TESTOSTERONA

FSH

ANDROSTENEDIONA ESTRONA
TESTOSTERONA AROMATASE ESTRADIOL

CÉLULA DA GRANULOSA

Figura 2: A produção de estrogênios no ovário acontece mediante o trabalho


conjunto das células da teca e da granulosa sob o controle do hormônio
luteinizante (LH) e do hormônio folículo-estimulante (FSH).
Elaborado pelo autor. Adaptado de: Medicina Interna de Harrison, 20ª Ed.

No cenário da SOP, os neurônios hipotalâmicos secretores de GnRH


estão menos sensibilizados e não respondem à retroalimentação nega-
tiva que ocorre quando a progesterona e os estrógenos estão aumenta-
dos. Em vista disso, existe uma maior frequência e amplitude da pul-
satilidade do GnRH que, por consequência, resulta em uma relação LH/
FSH aumentada. Com isso, as células da teca ficam muito mais estimu-
ladas em detrimento às células da granulosa.
Nesse sentido, a produção de testosterona fica hiperestimulada, sem
uma estimulação proporcional da sua conversão em estradiol. Isso re-
sulta no hiperandrogenismo, que é a expressão aumentada dos hormô-
nios masculinos no organismo feminino. Tanto o aumento do tônus do
LH quanto à hiperinsulinemia promovem essa maior secreção de an-
drogênios pelas células da teca.
No fígado, o excesso de insulina e o hiperandrogenismo reduzem as
globulinas ligadoras de hormônios sexuais (SHBG), aumentando a fra-
ção de testosterona livre circulante, responsável pela ação periférica.
UNIDADE 5. GÔNADAS
275

Juntamente a isso, a menor atuação do FSH (que também sofre fe-


edback negativo pelos níveis aumentados de andrógenos circulantes)
não estimula suficientemente o desenvolvimento ovariano e reduz a
ação da aromatase, amplificando a concentração de androgênios. Esse
prejuízo compromete a maturação do folículo, impedindo a evolução
para ovulação.

Pulsatilidade do GnRH

Amplitude e frequência do LH Síntese alterada de FSH

(Células da Teca) (Células da Granulosa)


Biossíntese de Androgênios Atividade da aromatase
Androgênios ovarianos

SHBG Maturação folicular

Insulina Testosterona Livre

Figura 3: A disfunção na pulsatilidade do GnRH desencadeia um aumento


da amplitude e da frequência dos pulsos de LH, e deficiência relativa de
FSH, com efeitos nas células da teca e da granulosa. A resistência insulínica
também tem responsabilidade na disfunção ovariana. A hiperinsulinemia e o
hiperandrogenismo inibem a produção da SHBG no fígado, aumentando, assim,
a testosterona livre circulante.
Elaborado pelo autor. Adaptado de: Endocrinologia Clínica, 7ª Ed, Lucio Vilar.

A respeito do metabolismo da glicose na síndrome, a resistência


insulínica resulta em uma hiperinsulinemia compensatória, que atua
como fator de risco para toda a desregulação hormonal, uma vez que ela:

Agrava a produção de androgênios, tanto ovarianos, quanto adrenais;


Diminui a produção hepática de SHBG, o que equivale a mais testos-
terona livre circulante;
Intensifica a pulsatilidade do GnRH.

Por outro lado, os próprios andrógenos em excesso também favo-


recem o surgimento da resistência insulínica, gerando uma cadeia de
disfunções que se retroalimentam.
UNIDADE 5. GÔNADAS
276

Cada organismo se comporta de uma maneira muito particular e,


como consequência disso, a fisiopatologia da SOP pode cursar com mais
ou menos aspectos a depender da paciente. Portanto, torna-se crucial o
estudo individual de cada caso para um bom tratamento.
A variedade de vias envolvidas na disfunção hormonal atestam a
etiologia multifatorial da patologia, reforçando mais uma vez o seu ca-
ráter de síndrome, e não de doença.

E a Síndrome Metabólica?
Além da resistência insulínica, o perfil lipídico anormal e a presen-
ça de marcadores de inflamação compõem a síndrome metabólica nas
pacientes. Acometendo mais de um terço das mulheres com SOP, essa
síndrome representa uma série de fatores de risco que aumentam a
propensão ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares e diabetes
mellitus. Apesar disso, alguns estudiosos defendem que o risco cardio-
vascular não deve ser generalizado para todas as pacientes com SOP, e
sim, especificamente para aquelas com os sintomas clássicos na pre-
sença de obesidade e diabetes.
De qualquer modo, o risco existe e deve ser considerado mesmo em
pacientes jovens com síndrome dos ovários policísticos. Por isso, o es-
tilo de vida deve ser uma preocupação do profissional de saúde para um
bom prognóstico. Do ponto de vista do tratamento da SOP, já que o uso
de anticoncepcionais orais (ACO) é uma das opções terapêuticas (como
veremos adiante), o risco cardiovascular pode se tornar uma preocu-
pação ainda maior quando destacamos que o ACO estão associados ao
tromboembolismo venoso e piora do perfil lipídico.

Aumento na
relação
LH / FSH
Alteração na
pulsatilidade Hiperandrogenismo

do GnRH

FISIOPATOLOGIA
Sangramento Redução da
uterino ação da
anormal aromatase

Atresia Redução dos


folicular estrogênios

Figura 4: Mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese da Síndrome dos


Ovários Policísticos.
Elaborado pelo autor.
UNIDADE 5. GÔNADAS
277

Mulheres com SOP têm maior risco de desenvolver câncer de endométrio?


Diante da propensão à hiperplasia endometrial, mulheres com SOP pos-
suem um risco aumentado para o desenvolvimento de câncer de endométrio,
mas têm perspectivas iguais à população geral para as neoplasias de ovário e
de mama. Esse risco é mais comum em mulheres na pós-menopausa, contu-
do, toda paciente que possui hipersecreção estrogênica, sem oposição da pro-
gesterona, são mais suscetíveis à hiperplasia endometrial.

4. Manifestações clínicas:

Como vimos até agora, a entidade clínica representada pela síndro-


me dos ovários policísticos se baseia em três condições importantes:
irregularidade menstrual, hiperandrogenismo e resistência insulínica.
A partir disso, podemos prever algumas das queixas mais relatadas pe-
las pacientes com SOP.
Em relação à primeira condição, as pacientes com SOP podem apre-
sentar amenorreia (ausência de menstruação por ao menos 3 meses) ou
oligomenorreia, que consiste em ciclo menstrual maior que 35 dias, ou
menos de 10 ciclos durante 1 ano. Por outro lado, devido à falta de pro-
dução de progesterona pela anovulação, as pacientes com SOP também
podem apresentar sangramentos não cíclicos e intensos. Nessas mu-
lheres, como o estímulo do estrogênio sobre o endométrio não é antago-
nizado pela progesterona, isso pode levar, a longo prazo, à hiperplasia
endometrial e, até mesmo, ao carcinoma, como falado acima.
Como resultado dos ciclos anovulatórios, muitas pacientes com sín-
drome dos ovários policísticos podem se queixar de dificuldade para
engravidar, uma vez que a SOP constitui a causa mais comum de in-
fertilidade secundária à anovulação. Além disso, quando conseguem
concretizar a gestação, pacientes com a síndrome apresentam risco
elevado de abortamento precoce, além de maior prevalência de compli-
cações gestacionais como diabetes, doença hipertensiva, parto prema-
turo e mortalidade perinatal. Por isso, pacientes com SOP que conse-
guem gestar devem ser tratadas como gestantes de risco.
De acordo com o processo fisiopatológico relacionado ao hiperan-
drogenismo, as pacientes com a síndrome apresentam maior fração de
testosterona livre circulante, assim como menor quantidade de SHBG.
Essas duas características levam à maior ação dos hormônios masculi-
nos na periferia, o que pode se manifestar por meio de hirsutismo, acne
vulgar, seborreia e alopecia androgênica.
UNIDADE 5. GÔNADAS
278

Quando nos referimos ao hirsutismo, que consiste na manifesta-


ção mais comum do hiperandrogenismo, devemos diferenciá-lo da
hipertricose. Esta se refere ao aumento da quantidade de pêlos velus
(com aspecto suave) de forma generalizada. Já o hirsutismo costuma
se manifestar na fase final da adolescência e é resultante do aumento
da produção e da sensibilidade cutânea aos androgênios, tendo como
consequência um padrão de pilificação masculino e formação de pêlos
terminais (mais grossos). A partir disso, mulheres com hirsutismo não
possuem apenas uma maior quantidade de pêlos, mas também com
distribuição corporal (face, tórax, abdome) e características (mais áspe-
ros, grossos e escuros) masculinas.
A SOP é responsável por cerca de 70 a 80% dos casos de hirsutis-
mo, e para a sua determinação podemos utilizar a escala de Ferriman e
Gallwey. Essa escala determina uma pontuação de 0 a 4 pontos para a in-
tensidade do aumento de pelos, em nove regiões diferentes do corpo. Em
pacientes com 8 pontos ou mais, fica atestada a presença do hirsutismo.

Figura 5: Escala de Ferriman e Gallwey para o diagnóstico de hirsutismo.


Fonte: Moura HHG, Costa DLM, Bagatin E, Sodré CT, Azulay MM. Síndrome do ovário policístico:
abordagem dermatológica. An Bras Dermatol. 2011;86(1):111-9.

Além disso, devemos lembrar que existe uma série de medicamen-


tos que podem ser responsáveis pelo surgimento do hirsutismo. Como
a SOP é um diagnóstico de exclusão, quando o hirsutismo for a única
UNIDADE 5. GÔNADAS
279

manifestação do hiperandrogenismo, devemos descartar o uso desses


fármacos para que possamos incluí-lo nos critérios diagnósticos da
síndrome.
Outros sinais clínicos que podem ser causados pelo hiperandro-
genismo são a acne vulgar, a seborreia e a alopecia androgênica. Nas
mulheres com excesso de androgênio circulante, a mesma estimula-
ção excessiva sobre a unidade pilossebácea que resulta na modificação
dos pelos, leva ao aumento da produção de sebo, que causa a seborreia
e, consequentemente, a acne vulgar. Já a alopecia androgênica é um
sinal raramente encontrado nas mulheres com SOP, mas resulta do au-
mento dos receptores androgênicos no folículo piloso, e leva à queda de
cabelo e afinamento do fio no topo da cabeça (“região da coroa”), com
manutenção do contorno frontal do couro cabeludo. Como a alopecia
androgênica dificilmente é causada pela SOP, diante de pacientes com
esse sinal clínico, convém a pesquisa de outras afecções, como doenças
tireoidianas e anemia.
Em relação às manifestações clínicas causadas pela resistência in-
sulínica (RI), podemos destacar obesidade, dislipidemia, hipertensão
arterial e diabetes mellitus tipo 2, além da acantose nigricans. A obesi-
dade está presente em mais de 50% das pacientes com SOP e costuma
ter padrão central, em “forma de maçã”, com aumento da circunferên-
cia abdominal. Ainda que a obesidade seja um fator agravante para a
resistência insulínica, devemos ter em mente que a RI se faz presente
mesmo nas pacientes com que não têm excesso de peso, e está relacio-
nada também ao desenvolvimento de diabetes mellitus tipo 2.
Pacientes com SOP apresentam cerca de 40% de incidência de hiper-
tensão arterial sistêmica na perimenopausa, enquanto as alterações no
perfil lipídico (dislipidemia) ocorrem em até 70% dos casos. Elas cos-
tumam apresentar níveis elevados de LDL-C e de triglicerídeos, níveis
reduzidos de HDL-C e aumento no colesterol não-HDL.
Quanto à acantose nigricans, esta consiste em uma manifestação
cutânea da resistência insulínica que leva ao escurecimento da pele
em áreas de dobras e atrito. Na SOP, ela é mais frequente nas pacientes
que têm obesidade e é mais comumente encontrada na vulva, axila e
região cervical.
Por fim, podemos citar outros achados que podem ser encontrados
nas pacientes com síndrome dos ovários policísticos, como apneia obs-
trutiva do sono e distúrbios psicológicos, com maior incidência de an-
siedade, depressão, baixa autoestima e imagem corporal negativa.
UNIDADE 5. GÔNADAS
280

5. Exames complementares:

A síndrome dos ovários policísticos pode se apresentar de uma for-


ma clínica bastante variável, sendo necessário, muitas vezes, exames
complementares para conduzir um bom tratamento. Além do diagnós-
tico clínico, os exames laboratoriais são importantes para o diagnóstico
diferencial com outras condições, visto que a SOP é considerada um
diagnóstico de exclusão.
Alguns dos exames que auxiliam na compreensão do perfil hormo-
nal da paciente são:

Ultrassonografia transvaginal: é o principal exame de imagem com-


plementar, permitindo a observação do volume ovariano, da textura e
da presença ou ausência de cistos.
Avaliação hormonal: na investigação da SOP, podemos solicitar as
dosagens de:

LH e FSH: geralmente são encontrados na proporção 3:1 na síndrome;


17-alfa-hidroxiprogesterona (17-OHP): importante para descartar hi-
perplasia adrenal congênita;
Prolactina sérica: para descartar hiperprolactinemia. Na SOP, espe-
ra-se que os valores de prolactina sejam normais, mas em 10% dos
casos, a prolactina pode estar elevada
Androgênios: a dosagem da testosterona total e de SHGB (para cálcu-
lo da testosterona livre, ver site http://www.issam.ch/freetesto.htm)
é necessária para a documentação do hiperandrogenismo laborato-
rial (observado em 60 a 80% das pacientes), que é um dos critérios
diagnósticos possíveis para SOP (ver abaixo). Outros andrógenos,
como SDHEA (sulfato de dehidroepiandrosterona) e androstenedio-
na, também podem estar aumentados, mas não necessitam ser sis-
tematicamente dosados.
Se a paciente apresentar características suspeitas para Síndrome de
Cushing, será necessário testes de triagem específicos (ver capítulo 11).
Perfil glicêmico: hemoglobina glicada (HbA1c), glicemia de jejum e
teste oral de tolerância à glicose (TOTG) indicam o perfil de resistên-
cia insulínica.

6. Diagnóstico:

Os primeiros critérios diagnósticos propostos para a SOP foram esta-


belecidos em 1990 pelo Consenso de Bethesda. No entanto, atualmente
utilizamos os critérios do Consenso de Rotterdam, proposto em 2004.
UNIDADE 5. GÔNADAS
281

Para conseguirmos diagnosticar as pacientes com SOP, é necessário


a existência de no mínimo dois dos três critérios abaixo, que consti-
tuem uma tríade que orienta o raciocínio clínico.
1. Disfunção menstrual anovulatória: oligomenorreia (ciclo menstrual
maior que 35 dias, ou menos de 10 ciclos durante um ano) ou ame-
norreia (ausência de menstruação num período de 3 a 6 meses);
2. Hiperandrogenismo clínico (detectado visualmente) ou laboratorial
(níveis hormonais alterados);
3. Morfologia ovariana policística à ultrassonografia (USG), determi-
nado pela presença de 20 ou mais folículos, medindo de 2 a 9 mm de
diâmetro, e/ou volume ovariano superior a 10 cm³ (na ausência de
folículo dominante presente).

É importante destacar que o volume ovariano é mais utilizado na prá-


tica em detrimento da morfologia ovariana policística. Esta não pode ser
usada como critério em mulheres com menos de 8 anos após a menarca.
Além disso, a ecografia deve ser feita na fase folicular precoce (ou após 3
a 5 dias de fluxo induzido), e via transvaginal preferencialmente.

A partir dos critérios de Rotterdam, as pacientes com SOP também


podem ser classificadas em diferentes fenótipos, de acordo com o con-
junto de características clínicas e laboratoriais que apresentam.

Fenótipo AO-HA-OP: é o fenótipo clássico da síndrome. Nele, as pa-


cientes apresentam os três critérios diagnósticos: disfunção mens-
trual anovulatória (AO), hiperandrogenismo (HA) e ovários policísti-
cos (OP). Pode ser visto em até 72% dos casos.
Fenótipo HA-OP: as pacientes apresentam hiperandrogenismo (HA)
e morfologia ovariana policística. Corresponde a cerca de 18% dos
casos.
Fenótipo AO-OP: nele, encontramos disfunção menstrual anovula-
tória (AO) e morfologia ovariana policística (OP), mas sem evidên-
cias de hiperandrogenismo. Representa cerca de 8% dos casos.
Fenótipo HA-AO: as pacientes apresentam hiperandrogenismo (HA)
e disfunção menstrual anovulatória (AO), sem, no entanto, apresen-
tar morfologia ovariana policística. Equivale à minoria dos casos,
aproximadamente 1%.

Com base neste último fenótipo e de acordo com os critérios de diag-


nósticos, é importante nos atentarmos a um fato: como são necessários
apenas dois dos três critérios acima, e nenhum deles é obrigatório, é
possível sim que uma paciente receba o diagnóstico de síndrome dos
UNIDADE 5. GÔNADAS
282

ovários policísticos sem que, de fato, apresente morfologia ovariana po-


licística. Da mesma forma, a presença única de morfologia policística
ovariana à ultrassonografia não determina o diagnóstico, uma vez que
até 20% das mulheres normais apresentam esse aspecto ao USG.
A título de curiosidade, a Androgenic Excess Society (AES), em 2006,
propôs quatro critérios diagnósticos para a SOP, de modo a acrescentar
mais seis fenótipos aos quatro já apresentados. A comunidade científi-
ca considerou esse acréscimo uma complicação diagnóstica desneces-
sária, de forma que esses critérios e fenótipos não foram incorporados
à prática clínica.

Oligomenorreia
ou Amenorreia

Morfologia Hiperandrogenismo
Ovariana Policística clínico
à ultrassonografia ou laboratorial

Figura 6: Critérios diagnósticos para a síndrome dos ovários policísticos.


Fonte: elaborado pelo autor.

Com base no que vimos, é suficiente a utilização dos critérios de


Rotterdam para fechar o diagnóstico das pacientes com síndrome dos
ovários policísticos? Não. Antes disso, é imprescindível se atentar aos
diagnósticos diferenciais que apresentam as mesmas características
clínicas, que uma paciente com SOP pode ter.
O que isso significa? Significa que é necessário excluir outras causas
de irregularidade menstrual e de hiperandrogenismo antes de fecharmos
o diagnóstico da paciente. A SOP é, portanto, um diagnóstico de exclusão.

6.1 Diagnósticos diferenciais:

No diagnóstico da SOP, devemos lembrar que ela é uma síndrome, e


não uma doença. Com isso, características comuns a ela podem apre-
sentar inúmeras causas comuns a outras patologias. Assim, é crucial
descartar outras condições em que os sinais e sintomas se assemelham
com os da síndrome. Por essa razão, o diagnóstico da síndrome dos ová-
rios policísticos se torna um diagnóstico de exclusão.
UNIDADE 5. GÔNADAS
283

Na tabela abaixo, destacamos os diagnósticos diferenciais que apre-


sentam achados clínicos que podem ser semelhantes aos da SOP, e
como você pode fazer essa diferenciação na busca do diagnóstico.

Tabela 1: Diagnósticos diferenciais da síndrome dos ovários policísticos.

Outro possível diagnóstico Achados clínicos Como investigar


Gravidez Amenorreia ou atraso menstrual; Dosagem de beta-HCG
aumento de peso
Tumores secretores de Hirsutismo elevado; virilização Dosar testosterona e SHDEA
androgênios (ovarianos e (atrofia de mamas, alopecia séricos (geralmente elevados); USG
adrenais) androgênica, hipertrofia de clitóris, ovariano e TC de adrenais
amenorreia); alteração da voz
Síndrome de Cushing Manifestações de resistência Teste de supressão com
insulínica; sobrepeso, fácies típica dexametasona
Amenorreia hipotalâmica Amenorreia associada à tríade da Dosar LH, FSH e estradiol, que
mulher atleta ou estressores geralmente estarão com níveis
normais (difícil diagnóstico)
Insuficiência ovariana Amenorreia e sintomas de deficiência Dosar FSH (elevado) e estradiol
primária estrogênica, como fogachos (baixo)
Hiperprolactinemia Oligomenorreia; aumento de peso Dosar LH e FSH (baixos) e
prolactina (alta)
Forma não clássica Quadro clínico pode ser idêntico ao Dosar hormônios adrenais,
da hiperplasia adrenal fenótipo clássico da SOP principalmente 17-OHP
congênita
Uso de medicamentos Sintomas característicos da SOP Checar se a paciente utiliza:
ácido valproico, esteroides,
glicocorticoides ou anabolizantes
com efeito androgênico

7. Tratamento:

Modificação do estilo de vida:


Você deve estar pensando: mas em qual patologia não devemos in-
dicar uma mudança dos hábitos de vida, não é mesmo? Por mais batido
que isso pareça ser, a implementação de práticas que levam à perda de
peso, por meio de uma alimentação balanceada e da prática de exercí-
cios físicos, se faz extremamente necessária no cenário da síndrome
dos ovários policísticos.
Com a obesidade, existe uma maior conversão periférica dos estro-
gênios em androgênios no tecido adiposo, o que contribui ainda mais
para o hiperandrogenismo e para a anovulação. A partir disso, é com-
provado que uma redução de 5 a 10% do peso corporal causa redução
dos níveis de testosterona livre e apresenta eficácia na restauração da
UNIDADE 5. GÔNADAS
284

ovulação em até 75% das pacientes com SOP, mesmo sem a inserção de
nenhuma terapia medicamentosa.
Além disso, a prática de exercícios físicos também atua na redução
da resistência insulínica, além de ser fator protetor para as doenças
cardiovasculares associadas à síndrome metabólica.

Anticoncepcionais hormonais:
Depois de entender o organismo da paciente portadora dessa sín-
drome, qual o tratamento principal que somos induzidos a pensar? Que
é necessário restaurar o equilíbrio entre andrógenos e estrógenos. Os
contraceptivos hormonais são uma ferramenta terapêutica útil, pois
promovem feedback negativo hipotalâmico-hipofisário (minimizando
a alteração da pulsatilidade do GnRH), diminuem o hiperestímulo à teca
e reduzem a produção dos androgênios ovarianos.
Os progestágenos (combinados ou isolados) protegem o endométrio.
No caso dos contraceptivos combinados, a porção estrogênica incre-
menta os níveis de SHBG, o que diminui os níveis de androgênios circu-
lantes, aliviando os sintomas do hiperandrogenismo.
Em mulheres que não necessitam de contracepção e que não se
queixam de hirsutismo, mas apresentam anovulação resistente às me-
didas de estilo de vida, os progestágenos servem como reguladores do
ciclo menstrual e atuam na prevenção do câncer endometrial por per-
mitir a descamação cíclica do endométrio.

Antiandrogênicos:
Além dos contraceptivos hormonais, existem medicamentos como
a espironolactona e o acetato de ciproterona que agem como bloquea-
dores fracos de receptores andrógenos, atuando como inibidores an-
drogênicos, sendo estratégias úteis na terapêutica da acne, alopecia e
hirsutismo. Em relação específica ao hirsutismo, podemos utilizar os
mesmos fármacos antiandrogênicos (espironolactona e acetato de ci-
proterona), além do uso da finasterida (inibidor da enzima 5-alfa-redu-
tase tipo 2). Por fim, também podemos lançar mão de métodos de re-
moção mecânica dos pelos, como a depilação à laser. Para o tratamento
específico da acne e alopecia, outros tratamentos dermatológicos adi-
cionais podem ser necessários.

Tratamento da síndrome metabólica:


Além da terapia hormonal, é importante tratar as consequências me-
tabólicas das pacientes com SOP. Em relação à síndrome metabólica, de-
vemos estimular a realização de atividades físicas, alimentação balance-
ada e mínima em carboidratos, além da interrupção do tabagismo.
UNIDADE 5. GÔNADAS
285

Para o tratamento da resistência insulínica, a metformina (fármaco


de primeira linha usado no tratamento de diabetes mellitus) pode ser
considerada.

Tratamento da infertilidade:
No que se refere ao desejo de gestação, o tratamento da infertilidade
pode ser feito com alguns medicamentos: o citrato de clomifeno (anta-
gonista estrogênico que atua no hipotálamo e na hipófise) e o letrozol
(inibidor da aromatase) são ótimos como terapia de primeira linha, e
a metformina também pode ser utilizada para auxiliar na indução da
ovulação, além do tratamento da resistência à insulina. Em caso de in-
sucesso na ovulação ou de resistência a outros indutores, indução do ci-
clo com gonadotrofinas exógenas são uma opção. A fertilização in vitro
(FIV) pode ser empregada na falha dos demais métodos.
Ainda assim, é importante lembrar que a perda de peso deve ser
sempre reforçada, pois uma redução de 5 a 10% está comprovadamente
associada à restauração da ovulação na maioria das mulheres com SOP.

8. Prognóstico:

Como vimos, a síndrome dos ovários policísticos não possui uma


cura específica, mas possui diversos tratamentos para as comorbida-
des associadas. A perspectiva das pacientes é boa, caso elas se com-
prometam com as várias facetas da terapêutica. A própria mudança
no estilo de vida e, consequentemente, a redução de peso, já auxilia na
retomada da ovulação, por exemplo.
Atualmente, diante do amplo espectro de tratamento e opções de in-
dução da ovulação, a paciente com a síndrome pode sim cogitar uma
gestação. Na gravidez, mulheres com SOP têm uma inclinação maior
para o desenvolvimento de diabetes gestacional, hipertensão, quadro de
pré-eclâmpsia e parto prematuro. Apesar disso, elas podem sim ter uma
gestação de qualidade, sempre valendo-se de um pré-natal de qualidade.
Em relação à mortalidade por doenças cardiovasculares, não exis-
tem dados suficientes que indiquem maiores taxas entre elas, mas há
maior prevalência no período pós-menopausa.
Diante de tudo que foi estudado até aqui, torna-se notável que ape-
nas o ginecologista ou o endocrinologista sozinhos não serão os únicos
profissionais responsáveis pelo bom prognóstico de uma mulher com
síndrome dos ovários policísticos. Profissionais da nutrição, psicologia
e educação física também são essenciais no manejo das pacientes que
almejam uma boa qualidade de vida em geral.
UNIDADE 5. GÔNADAS
286

9. Esquema de resumo:

Morfologia Ovariana Policística


Oligomenorreia Hiperandrogenismo

DIAGNÓSTICO
Anticoncepcionais Aumento LH / FSH

Estilo de vida Redução estrogênios

Metformina
TRATAMENTO
SOP FISIOPATOLOGIA
Redução da aromatase
Antiandrogênicos
Atresia folicular
QUADRO CLÍNICO

Hirsutismo Acantose nigricans Obesidade

Alopecia Acne persistente Infertilidade Síndrome metabólica

Figura 7: Aspectos gerais envolvidos na síndrome dos ovários policísticos.


Fonte: elaborado pelo autor.

10. Leitura recomendada:

CARMINA, E.; LOBO, R. A. Is There Really Increased Cardiovascular Morbidity


in Women with Polycystic Ovary Syndrome? Journal of Women’s Health, v. 27,
n. 11, p. 1385–1388, nov. 2018.

GOTTSCHAU, M. et al. Risk of cancer among women with polycystic ovary


syndrome: A Danish cohort study. Gynecologic Oncology, v. 136, n. 1, p. 99–103,
jan. 2015.

JUNQUEIRA, P. A. DE A.; FONSECA, A. M. DA; ALDRIGHI, J. M. Síndrome dos


ovários policísticos. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 49, n. 1, p. 13–
14, jan. 2003.

ROSENFIELD, R. L.; EHRMANN, D. A. The Pathogenesis of Polycystic Ovary Syndrome


(PCOS): The Hypothesis of PCOS as Functional Ovarian Hyperandrogenism
Revisited. Endocrine Reviews, v. 37, n. 5, p. 467–520, 1 out. 2016.
UNIDADE 5. GÔNADAS
287

SILVA, R. DO C.; PARDINI, D. P.; KATER, C. E. Síndrome dos ovários policísticos,


síndrome metabólica, risco cardiovascular e o papel dos agentes sensibilizadores
da insulina. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, v. 50, n. 2, p.
281–290, abr. 2006.

TEEDE, H. J. et al. Recommendations from the international evidence-based


guideline for the assessment and management of polycystic ovary syndrome†‡.
Human Reproduction, v. 33, n. 9, p. 1602–1618, 1 set. 2018
UNIDADE 5. GÔNADAS
288

Capítulo 20

Hipogonadismo Feminino e Climatério


Luísa Thomas Nascimento
Nathaly Michaela Melo da Conceição
Rafaela Fenalti Salla

Hipogonadismo Feminino
1. Introdução:

Hipogonadismo é caracterizado pela ausência ou redução de níveis


de hormônios gonadais na corrente sanguínea. No hipogonadismo fe-
minino, esses hormônios são o estrogênio e a progesterona, os quais
são produzidos pelos ovários.
A queixa mais frequente associada ao hipogonadismo feminino que
você irá encontrar é a amenorreia (ausência de menstruação), seja ela
primária ou secundária. Na amenorreia primária, a paciente possui 14
anos ou mais, nunca menstruou e não apresenta caracteres sexuais se-
cundários, ou então, aos 16 anos de idade ou mais, mesmo na presença
de caracteres sexuais secundários ainda não teve a menarca. Na ame-
norreia secundária, a paciente já menstruou, porém está sem menstru-
ar há 6 meses ou 3 ciclos menstruais. Além da amenorreia, o hipogona-
dismo pode resultar em muitas outras alterações clínicas a depender
de sua etiologia, que serão abordadas no decorrer do capítulo.

O hipogonadismo feminino pode ser dividido em hipogonadismo hi-


pergonadotrófico e em hipogonadismo hipogonadotrófico.

Hipogonadismo hipergonadotrófico: quando o ovário recebe estí-


mulo hipofisário adequado, porém não responde adequadamente a este
estímulo. Portanto, é um problema gonadal. Nestes casos os níveis de
estrogênio e progesterona estão baixos apesar de apresentar altos ní-
veis de hormônio folículo estimulante (FSH).

Hipogonadismo hipogonadotrófico: ocorre quando o ovário não re-


cebe o estímulo hipofisário adequado para manter suas funções ativas.
É um problema de origem central, hipofisário ou hipotalâmico. Nestes
casos, os níveis de FSH estão baixos assim como os níveis de estrogê-
nio e progesterona.
UNIDADE 5. GÔNADAS
289

2. Fisiopatologia:

Para uma produção adequada de estrogênio e progesterona, é neces-


sário o adequado funcionamento do eixo hipotálamo-hipófise-ovariano
(HHO). Os ovários recebem estímulos cerebrais através do eixo HHO,
produzindo então diversos hormônios esteroidais.
O hipotálamo secreta o GnRH (hormônio estimulador das gonadotro-
finas) de maneira pulsátil ao longo do dia. O GnRH é o hormônio que esti-
mula a secreção de gonadotrofinas (FSH e LH) pela hipófise, que por sua
vez irão estimular os ovários a produzirem o estrogênio e a progesterona.
Qualquer desequilíbrio nesse eixo pode acarretar hipogonadismo.
Quando o problema resulta na secreção deficiente de GnRH, cha-
mamos de hipogonadismo hipogonadotrófico de origem hipotalâmica.
Assim, não haverá estimulação hipofisária e, consequentemente, a es-
timulação ovariana estará ausente.
Por outro lado, quando os níveis de GnRH estão adequados, mas há
secreção deficiente de gonadotrofinas, chamamos de hipogonadismo
hipogonadotrófico de origem hipofisária. Nesse caso, a hipófise não res-
ponde aos estímulos do hipotálamo, não estimulando, por sua vez, os
ovários.
Uma vez que o hipotálamo e hipófise secretam seus hormônios
adequadamente e os níveis de estrogênio e progesterona permanecem
baixos na corrente sanguínea, chamamos de hipogonadismo hipergo-
nadotrófico, pois apesar de haver a estimulação central, os ovários não
respondem ao estímulo. Ao não haver resposta ovariana pelos seus es-
tímulos, a hipófise aumenta sua secreção de gonadotrofinas a fim de
proporcionar uma maior estimulação ovariana, mantendo níveis de
FSH e LH aumentados.
Existem diversas causas para cada condição, havendo uma série de
passos na investigação do hipogonadismo. Muitas destas condições
são congênitas e outras são adquiridas com o tempo.

3. Etiologias:

As causas de hipogonadismo hipogonadotrófico podem ser dividi-


das em hipotalâmicas e hipofisárias:

Hipotalâmicas:
Tumores;
Infecções e doenças granulomatosas;
Trauma que comprometa a comunicação do eixo hipotálamo-hipófise;
UNIDADE 5. GÔNADAS
290

Cirurgia ou radioterapia;
Síndrome de Kallmann;
Funcional;
Distúrbios alimentares;
Exercício físico extenuante;
Estresse emocional;
Doença crônica debilitante;
Hiperprolactinemia;
Hipotireoidismo;

Hipofisárias:
Tumores de hipófise;
Cirurgia ou radioterapia;
Infecções e doenças granulomatosas;
Síndrome de Sheehan;
Apoplexia hipofisária;
Hipofisite linfocítica;
Síndrome da sela vazia;

As causas de hipogonadismo hipergonadotrófico são causas gonadais:


Síndrome de Turner (45,X);
Agenesia ou disgenesia gonadal;
Síndrome de Savage (Síndrome dos ovários resistentes);
Deficiência de 17 alfa hidroxilase;
Falência ovariana prematura;
Por toxicidade (quimioterapia ou radioterapia);

4. Manifestações clínicas:

As principais manifestações clínicas do hipogonadismo são conse-


quência da deficiência estrogênica. Nas mulheres com hipogonadismo
congênito, haverá ausência do desenvolvimento de caracteres sexuais
secundários e amenorreia primária. Já no hipogonadismo adquirido,
as manifestações são decorrentes do hipoestrogenismo, sendo a mais
evidente a amenorreia secundária.
Abaixo apresentamos as manifestações clínicas conforme a etiolo-
gia do hipogonadismo.
UNIDADE 5. GÔNADAS
291

Hipogonadismo hipogonadotrófico hipotalâmico (distúrbio na secre-


ção de GnRH):

Condição Fisiopatologia e Manifestações clínicas Classificação


Suas manifestações clínicas consistem na
Síndrome de Kallmann tríade: hiposmia/ anosmia, amenorreia primária e Hipogonadismo congênito
cegueira para cores.
A anorexia nervosa e distúrbios alimentares
podem ser responsáveis por hipogonadismo
de origem hipotalâmica por supressão da
Distúrbios Alimentares secreção de GnRH. Principais manifestações Hipogonadismo adquirido
clínicas: irregularidade menstrual e amenorreia,
associadas a baixo peso e preocupação excessiva
com a imagem corporal
A prática de exercícios físicos de forma
extenuante sem o adequado aporte energético
pode induzir hipogonadismo, a chamada ‘’tríade
Exercícios físicos
da mulher atleta’’. A causa da supressão de Hipogonadismo adquirido
intensos
GnRH neste caso é multifatorial. Principais
manifestações clínicas: amenorreia, osteoporose
e distúrbios alimentares
Tumores mais comuns: craniofaringiomas.
Suspeitar em caso de cefaleia, alteração da
Tumores Hipogonadismo adquirido
motricidade ocular extrínseca e surgimento de
diabetes insipidus associado à amenorreia.

Hipogonadismo hipogonadotrófico hipofisário (distúrbio na secreção


de gonadotrofinas):

Condição Fisiopatologia e Manifestações Clínicas Classificação


São tumores benignos chamados de adenomas,
sendo uma das principais causas de hipogonadismo
de origem hipofisária. Dentre estes, o principal é
o prolactinoma. O prolactinoma é um tumor de
crescimento lento que pode se manifestar na mulher
como amenorreia, galactorreia e infertilidade.
Tumores hipofisários A hiperprolactinemia causa hipogonadismo Hipogonadismo adquirido
hipogonadotrófico principalmente por inibir
a secreção pulsátil do GnRH. Ademais, essas
pacientes também podem apresentar adenomas
hipofisários não funcionantes e, mais raramente,
acromegalia (adenoma secretor de GH) e Doença de
Cushing (adenoma secretor de ACTH
Necrose hipofisária secundária à isquemia
local por redução do aporte sanguíneo devido à
Síndrome de Sheehan hemorragia no parto. Apresenta-se semanas a Hipogonadismo adquirido
meses após o parto como pan-hipopituitarismo,
frequentemente com agalactia.
UNIDADE 5. GÔNADAS
292

Hipogonadismo hipergonadotrófico (ausência de resposta aos estímulos


centrais):

Condição Fisiopatologia e Manifestações clínicas Classificação


É a principal causa de disgenesia gonadal, sendo
causa importante de amenorreia primária, acometendo
1:2000-4000 mulheres. Estas pacientes apresentam
apenas 1 cromossomo X completo e o segundo é
ausente ou parcialmente presente, ou apresenta uma
estrutura diferente. O cariótipo 45,X é o mais frequente
(50%), podendo haver mosaicismos inclusive com o
cromossomo Y. As alterações clínicas da síndrome Hipogonadismo
Síndrome de Turner
de Turner podem ser identificadas no pré-natal, ao congênito
nascimento, infância ou na investigação de amenorreia
primária/secundária. As mulheres com síndrome de
Turner apresentam baixa estatura, micrognatismo,
pescoço alado, implantação baixa das orelhas, cubitus
valgus, hipertelorismo mamário, linfedema, defeitos
cardíacos, maior risco de distúrbios autoimunes como
diabetes e tireoidite de Hashimoto.
É determinada pela resistência ou ausência dos
receptores ovarianos à ação das gonadotrofinas.
Não há o feedback negativo exercido pelos produtos
Hipogonadismo
Síndrome de Savage de síntese ovariana, estando as gonadotrofinas
congênito ou adquirido
aumentadas. É uma doença rara, e o diagnóstico
diferencial com a falência ovariana precoce é feito
apenas através de biópsia do ovário.
Ocorre quando a falência ovariana ocorre antes dos
40 anos de idade. Pode ser resultante de irradiação
pélvica, quimioterapia, processos infecciosos ou
Falência Ovariana autoimunes, cirurgias, tumores, entre outros. Na Hipogonadismo
Precoce pré-puberdade, a deficiência estrogênica causa adquirido
o hipodesenvolvimento dos caracteres sexuais
secundários. Já quando ocorre em idades mais
avançadas, podem aparecer sintomas climatéricos.

5. Anamnese:

Na suspeita de hipogonadismo vale abordar:

Há presença ou ausência de caracteres sexuais secundários? A au-


sência de caracteres sexuais secundários nos remete a causas de
ausência de estrogênio nestas mulheres, sugerindo disgenesia go-
nadal, hipopituitarismo congênito, entre outros. Já a presença de ca-
racteres sexuais secundários significa que esta mulher apresentou
níveis de estrogênio necessários para formação destes caracteres,
sugerindo, então, hipogonadismo adquirido.
UNIDADE 5. GÔNADAS
293

Há crescimento estatural adequado? Baixa estatura frequentemente


é observada em 95-100% dos casos de Síndrome de Turner.
Há estresse, ou alteração de peso, ou alteração de hábitos alimenta-
res e atividade física, ou presença de doenças crônicas? Essas mani-
festações podem associar-se à hipogonadismo hipotalâmico
Há secreção nas mamas? Galactorreia sugere hiperprolactinemia.
Ausência da menstruação pós-parto? Especialmente com a caracte-
rização de agalactia, pode sugerir síndrome de Sheehan.
Amenorreia primária ou secundária? Amenorreia primária é a au-
sência de menarca em meninas com 14 anos ou mais sem a presen-
ça de caracteres sexuais secundários ou em meninas com 16 anos
ou mais com caracteres sexuais secundários presentes. Já a ame-
norreia secundária é aquela que ocorre quando a mulher já mens-
truava e, por algum motivo, apresenta atraso de sua menstruação
por 3 ciclos (se ciclos regulares) ou 6 ou mais meses (se ciclos irre-
gulares). São exemplos de causas de amenorreia primária: Síndro-
me de Kallman, disgenesia gonadal, alterações anatômicas na via
de saída do fluxo menstrual, Síndrome de Savage, estresse, anorexia
nervosa, entre outros. Já a amenorreia secundária pode ser causada
por: Síndrome de Savage, Síndrome de Sheehan, gestação, tumores,
hiperprolactinemia, insuficiência ovariana precoce, entre outros.

6. Exame físico:

Altura, peso, índice de massa corporal: na síndrome de Turner, a


estatura baixa costuma fazer parte das características sugestivas da
doença. O baixo peso pode estar associado com distúrbios alimenta-
res ou exercícios físicos intensos.
Estágio de desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários
(estágios de Tanner), para avaliar o status de estímulo estrogênico
prévio da paciente.
Presença de estigmas genéticos (baixa estatura, pouco desenvolvi-
mento das mamas, tórax em escudo, ulna valga, pescoço alado são
manifestações que sugerem síndrome de Turner).

7. Diagnóstico:

Uma vez levantada a suspeita de hipogonadismo (níveis de estro-


gênio e progesterona baixos), você deve realizar a dosagem de FSH
sanguíneo. Níveis elevados de FSH com baixos níveis de estrogênio e
progesterona indica hipogonadismo hipergonadotrófico (problema de
UNIDADE 5. GÔNADAS
294

origem gonadal). Já se os níveis de FSH e dos hormônios gonadais se


encontram baixos, sugere hipogonadismo hipogonadotrófico.
Uma vez que os níveis de FSH se encontram baixos, você deve dife-
renciar se a causa é hipotalâmica ou hipofisária.
Assim que definida a origem da alteração hormonal que esteja cau-
sando o hipogonadismo, você pode direcionar a investigação para as
etiologias específicas de cada origem, sendo hipotalâmica, hipofisária
ou gonadal.
A investigação da causa central (hipofisária ou hipotalâmica) se-
gue com avaliação de imagem para afastar causas tumorais. A grande
maioria dos diagnósticos de amenorreia é hipotalâmica.
O exame Beta HCG faz-se necessário, também, para excluir possí-
vel gestação em mulheres em idade fértil.

8. Tratamento:

O tratamento do hipogonadismo deve ser direcionado de acordo


com sua etiologia, realizando-se reposição hormonal principalmente
nas causas ovarianas, assim como nas causas de pan-hipopituitaris-
mo congênito, como Síndrome de Sheehan e Síndrome de Kallman.
Nas mulheres com anorexia nervosa deve-se abordar um trata-
mento que envolva reabilitação nutricional, psicoterapia e farmacote-
rapia, quando indicado.
O tratamento dos prolactinomas possui como objetivo o tratamento
da infertilidade, eugonadismo e redução do crescimento do tumor. O
principal tratamento farmacológico para o tratamento dos prolacti-
nomas são os agonistas dopaminérgicos, como a Cabergolina e a Bro-
mocriptina. Quando indicada, em raras exceções, pode-se realizar a
cirurgia transesfenoidal. A principal indicação de cirurgia nos casos
de prolactinomas é a falta de resposta ao tratamento clínico com ago-
nista dopaminérgico.
Para os casos de hipogonadismo ainda detectados na infância é
necessária a indução da puberdade. Para o início do desenvolvimento
sexual secundário em meninas pré-púberes e para construir e man-
ter a massa óssea e muscular normal, pode ser utilizado estrogênio
exógeno por via oral ou transdérmica. Assim que concluída a indução
puberal, a terapia com estrogênio e progesterona é continuada inde-
finidamente.
UNIDADE 5. GÔNADAS
295

9. Tabela de resumo:

É a ausência ou redução de níveis de hormônios gonadais na corrente


Hipogonadismo sanguínea. No hipogonadismo feminino, esses hormônios são o
estrogênio e a progesterona, os quais são produzidos pelos ovários.
Hipogonadismo hipogonadotrófico feminino: quando os hormônios
gonadais estão reduzidos ou ausentes na corrente sanguínea
decorrente da falta de estimulação ovariana, seja por problema
hipofisário ou hipotalâmico.
Hipogonadismo hipergonadotrófico feminino: quando os hormônios
gonadais estão reduzidos ou ausentes na corrente sanguínea,
Classificação decorrente da redução da secreção de hormônios pelo ovário apesar
da estimulação adequada da hipófise.
Hipogonadismo congênito: quando o problema que resultará em
hipogonadismo já está presente desde o nascimento, não tendo
desenvolvimento de caracteres sexuais secundários.
Hipogonadismo adquirido: quando o problema que resultará
em hipogonadismo surge durante a vida, tendo esta mulher,
provavelmente, seus caracteres sexuais secundários presentes.
Hormônios gonadais femininos Estrogênio e progesterona
(produzidos nos ovários)
Gonadotrofinas (secretadas pela FSH (Hormônio folículo estimulante) e LH (Hormônio luteinizante)
hipófise e estimulam os ovários)
Hormônio secretado pelo GnRH
hipotálamo que estimula a
secreção de gonadotrofinas pela
hipófise
Diagnóstico Clínico-laboratorial
No hipogonadismo congênito, haverá ausência do desenvolvimento
de caracteres sexuais secundários e amenorreia primária. Já no
Manifestações Clínicas
hipogonadismo adquirido, as manifestações são decorrentes do
hipoestrogenismo, sendo a mais evidente a amenorreia secundária.
Depende da etiologia do hipogonadismo. Deve ser tratada a causa
Tratamento
de base do problema.

Climatério
1. Introdução:

O climatério é um período fisiológico da vida da mulher que com-


preende a transição entre a sua fase reprodutiva e não reprodutiva. Ele
envolve a pré-menopausa, a menopausa e a pós-menopausa. Esse pe-
ríodo é caracterizado por uma série de alterações hormonais que po-
dem alterar a qualidade de vida da mulher. Durante essa fase, os ciclos
menstruais passam a se tornar irregulares, associado a uma gama de
sintomas característicos que podem estar presentes ou não, como foga-
UNIDADE 5. GÔNADAS
296

chos, distúrbios do humor e do sono, atrofia da parede vaginal, entre ou-


tros. O início do climatério não possui uma idade definida, porém costuma
ocorrer em torno dos 40 anos de vida, estendendo-se até os 65 anos.
Ainda na vida uterina, a mulher já possui todos seus folículos primor-
diais que darão origem aos óvulos. Mesmo antes do nascimento, estes fo-
lículos imaturos já iniciaram sua redução em número, aumentando seu
declínio a cada ciclo ovulatório da mulher. Quando a mulher chega na fase
climatérica, ela apresenta pequena quantidade de folículos funcionantes
em seus ovários, o que acarreta uma menor produção de estrogênio pelas
gônadas (hipoestrogenismo) e consequente aumento da secreção do FSH
na tentativa de compensar a falta estrogênica. Níveis de FSH altos e estro-
gênio baixos são os marcos laboratoriais do climatério.
Quando há a depleção completa ou quase completa dos folículos fun-
cionantes nos ovários, ocorre a menopausa. A menopausa representa o
fim da função reprodutora natural, ocasionando um decréscimo impor-
tante da produção hormonal feminina, sendo um marco dentro do período
climatérico. A menopausa é um acontecimento normal e natural e é defi-
nida como a última menstruação, confirmada após doze meses consecu-
tivos de amenorreia, a não ser que haja outras causas aparentes. A idade
média da ocorrência da menopausa é em torno dos 48 a 51 anos de vida.
A redução dos níveis de estrogênio também apresenta possíveis con-
sequências a longo prazo, como osteoporose, aumento da incidência de
doenças cardiovasculares, alterações do padrão de composição corporal,
osteoartrite, demência, entre outros.
O período do climatério e da menopausa é composto por diversas mu-
danças na vida da mulher. Essas mudanças, de origem biológica, social e
psíquica, afetam claramente a saúde da mulher. As expectativas de cada
mulher quanto a essa fase da vida também são importantes. Estes são al-
guns motivos pelos quais se faz importante a abordagem integral da mu-
lher no climatério.

2. Epidemiologia:

O climatério é uma fase comum na vida de todas as mulheres acima


de 35 anos. De acordo com estimativas do DATASUS, em 2020, a população
feminina brasileira totaliza mais de 108 milhões de mulheres, represen-
tando cerca de 51% da população total. Deste total, cerca de 40% possuem
idade igual ou superior a 40 anos, ou seja, quase metade das mulheres no
Brasil estão na faixa etária em que ocorre o climatério. Além disso, com o
aumento da expectativa e longevidade da vida no Brasil, há maior aumen-
to de mulheres que estão passando por este período.
UNIDADE 5. GÔNADAS
297

3. Fisiopatologia:

Todos os folículos primordiais de uma mulher, aqueles que gerarão


óvulos, já estão presentes desde a vida intraútero. As mulheres já nas-
cem com todos os folículos que terão durante a sua vida. Ocorre que,
com o passar dos anos e a cada ciclo menstrual, o número desses folí-
culos vai diminuindo gradualmente.
A partir dos 40 anos de idade, nota-se uma aceleração na perda dos
folículos ovarianos, além de uma má resposta ao estímulo hipofisário,
gerando um aumento de FSH a fim de compensar a insuficiência ova-
riana através de sua estimulação. Este aumento do FSH na fase da peri-
menopausa acarreta ciclos anovulatórios e irregularidades menstruais.
A perimenopausa pode durar de dois a seis anos.
Devido ao pequeno número de folículos restantes e a má resposta
hipofisária, há queda nos níveis circulantes de estrogênio e progeste-
rona, uma vez que são produzidos pelos ovários. Assim, há um início
progressivo de um hipoestrogenismo, causando os sintomas típicos do
climatério. A etiologia destes sintomas é essencialmente a baixa circu-
lação sanguínea de estrogênio oriundo dos ovários.
Aos poucos, o pequeno número restante de folículos se esgota. Neste
momento, há a insuficiência ovariana propriamente dita, cessando a
vida reprodutiva da mulher. Este fato é caracterizado pela menopausa.

4. Anamnese:

O diagnóstico do climatério é essencialmente clínico, baseado na


faixa etária, alteração do padrão menstrual e manifestações clínicas.
Ao avaliar os sintomas climatéricos, temos que ter em mente suas prin-
cipais queixas a fim de rastrear durante a anamnese:

Queixa de alterações da pele e fâneros:


Devido ao hipoestrogenismo, o cabelo tende a ficar mais fino e a cair
mais. Também ocorre aumento da predisposição do envelhecimento da
pele, que fica mais fina e seca.

Sintomas vasomotores:
Os fogachos são ondas de calor que geralmente iniciam com uma
sensação repentina de calor na parte superior do tórax e no rosto, que
logo se generaliza, sendo o sintoma mais comum do climatério. Pode es-
tar associado a palpitações, sensação de ansiedade e transpiração. Ques-
tione sobre os fogachos, sua incidência, momento do dia, intensidade -
“tem sentido algum tipo de desconforto anormal em relação ao calor?”
UNIDADE 5. GÔNADAS
298

Alterações no padrão do sono:


Avalie a presença de queixas quanto ao padrão de sono da paciente,
o qual pode ser alterado pela maior incidência de depressão e ansieda-
de nas pacientes climatéricas.

Alterações metabólicas e corporais:


É comum que pacientes no climatério apresentem aumento de gor-
dura corporal associada a perda de massa muscular, aumentando risco
de síndrome metabólica. Questione sobre aumento de peso. Associado
a isto, é válido abordar questões associadas a desgaste e dor articular,
pois as mulheres no climatério têm maior chance de apresentar osteo-
artrite.

Alterações Ósseas:
A osteoporose é uma patologia muito frequentemente associada a
mulheres no climatério. Questione fraturas prévias recentes da pacien-
te e fatores de risco para osteoporose.

Queixas genitourinárias:
O hipoestrogenismo altera o epitélio da vulva e da vagina. Isso re-
sulta na redução da lubrificação e menor elasticidade. Tais fatores
associam-se a disfunções sexuais na mulher, sendo a principal a dis-
pareunia. Ademais, a mulher climatérica tem um enfraquecimento do
assoalho pélvico, predispondo a maiores riscos de cistocele, ureteroce-
le e incontinência urinária. Lembre-se de abordar estas queixas, pois
muitas mulheres acabam não relatando num primeiro momento.

Alteração do humor:
Devido às alterações corporais e hormonais, as mulheres climaté-
ricas têm maior predisposição à depressão e à ansiedade. Questionar
a paciente sobre sentimentos de tristeza, desânimo, cansaço, falta de
energia, humor depressivo, ansiedade, irritabilidade, déficit de atenção,
concentração e memória, diminuição da libido.

Também é importante questionar a mulher sobre:


A data da sua última menstruação e como está seu padrão menstrual
(frequência, intensidade, duração). Esta questão é muito importante,
pois permite identificar irregularidades no ciclo menstrual, um dos
principais marcos do climatério.
Uso de métodos anticoncepcionais;
Medicamentos de uso contínuo.
UNIDADE 5. GÔNADAS
299

Vale lembrar que a consulta com a paciente com queixas do período cli-
matérico é uma ferramenta para abordar questões de prevenção em saúde
da mulher como a coleta de preventivo do colo de útero.

5. Exame Físico:

O exame físico da mulher no climatério é multissistêmico. Devemos


avaliar:

IMC da paciente, medida da pressão arterial e medida da circunferên-


cia abdominal para rastreio de síndrome metabólica e risco de doença
cardiovascular (avaliar risco cardiovascular através de calculadoras de
risco cardiovascular, como o ASCVD).
Avaliar pele e fâneros da paciente. A pele da paciente no climatério ten-
de a ser mais flácida e seus fâneros com maior tendência a queda;
Avaliar articulações desta paciente a fim de rastreio de osteoartrites;
Exame físico das mamas, inspeção estática e dinâmica, palpação em
busca de nódulos associados e se há presença de descarga de conteúdo
mamilar (diagnóstico diferencial de amenorreia: hiperprolactinemia);
Inspeção de assoalho pélvico para identificação de cistocele e uterocele
(vale pedir para a paciente realizar manobra de valsalva para melhor
avaliação destes quando em pequeno grau);

6. Exames Complementares:

O diagnóstico do climatério é clínico, sem necessidade de exames com-


plementares para confirmação diagnóstica.
Não há indicação da realização de exames de rotina no climatério, eles
devem ser orientados de forma individualizada, quando necessário.
Mulheres na transição para menopausa devem ter seu risco de fraturas
osteoporóticas avaliado, para que seja indicado exames adicionais como a
densitometria óssea (DMO).

7. Diagnóstico:

O diagnóstico do climatério é realizado em mulheres com idade su-


perior a 40 anos com base nas queixas de ciclos menstruais irregulares
e sintomas típicos do climatério, como fogachos, mudanças do humor,
distúrbios do sono, entre outros.
Já a menopausa (última menstruação da vida da mulher) pode ser
diagnosticada após 12 meses em amenorreia na ausência de outras
causas fisiológicas, biológicas ou patológicas.
UNIDADE 5. GÔNADAS
300

8. Tratamento:

O climatério não é uma doença, então, não há um tratamento específi-


co. Porém, algumas terapias farmacológicas e não-farmacológicas podem
auxiliar a amenizar os sintomas decorrentes desta condição.
Um dos principais pilares para o bem-estar da mulher no climatério é
a qualidade de vida. Esses pontos devem ser abordados por uma equipe
multiprofissional. Fatores envolvidos na qualidade de vida do climatério:

Realização de atividade física e boa alimentação: além de ser um ex-


celente aliado no tratamento de sintomas depressivos e de ansiedade, a
realização de atividade física e uma dieta adequada ajudam a reduzir os
riscos de doença cardiovascular e de osteoporose.
Reduzir ou cessar a ingestão de bebidas alcoólicas e cafeína, pois pare-
cem aumentar a incidência dos fogachos na mulher no climatério.
Uma ingestão adequada de cálcio é muito importante para a preven-
ção da osteoporose. Alimentos como queijo, leites, iogurtes, amêndoas são
exemplos de alimentos ricos em cálcio que podem ser introduzidos na die-
ta da paciente no climatério. É importante lembrar que a baixa ingesta de
cálcio na dieta é um dos fatores de risco prováveis para a ocorrência da
osteoporose. Aliada ao cálcio, a vitamina D também é muito importante
nesse cenário. É válida a introdução de alimentos ricos em vitamina D na
dieta (queijos, ovos, salmão, sardinha) e a exposição segura ao sol (antes
das 10h e após as 15h) por cerca de 15 minutos por dia.

Cessação do tabagismo: a cessação ao tabagismo deve ser incentivada


em mulheres tabagistas, uma vez que o fumo é um grande fator de risco
para doenças crônicas não transmissíveis, agindo sinergicamente com o
climatério que também é um fator de risco.

Acompanhamento psicológico: vale lembrar que os sintomas do clima-


tério envolvem muito a questão psíquica da paciente.
Mudanças no seu corpo, maior predisposição a doenças crônicas não
transmissíveis, alteração na sua vida sexual, entre outros, são gatilhos
para ansiedade e sintomas depressivos. Além disso, muitos pacientes
mantêm muitos estigmas ou desinformação sobre este período de suas
vidas, gerando mais ansiedade. Assim, é importante abordar os aspectos
psicológicos, sociais e ambientais desta paciente e auxiliar na ressignifi-
cação dessa fase de vida, que pode ser saudável, produtiva e feliz. Consi-
dere o encaminhamento psicológico e/ou psiquiátrico quando necessário.
O tratamento farmacológico no climatério é dividido em não-hormonal
e hormonal:
UNIDADE 5. GÔNADAS
301

Tratamento farmacológico não-hormonal: envolve o tratamento far-


macológico específico para outras condições associadas ao climatério
quando presentes, como depressão, hipertensão arterial, hipercolesterole-
mia, apoio para cessação do tabagismo e osteoporose. Avaliar a necessida-
de de cada um antes de prescrevê-lo, pois não são medicamentos de rotina
no climatério. Alguns antidepressivos inibidores seletivos da recaptação
da serotonina, inibidores seletivos da recaptação da serotonina e noradre-
nalina, clonidina e gabapentina também parecem auxiliar no manejo das
queixas de fogachos.

Tratamento hormonal: o principal objetivo do tratamento hormonal é o


alívio das sensações de calor e fogachos. Além disso, a terapia hormonal
pode ser um aliado nos transtornos do sono e sintomas depressivos. Os
componentes do tratamento hormonal são o estrogênio isolado e estrogê-
nio associado à progesterona.
Como o estrogênio tem ação proliferativa do endométrio, o seu uso iso-
lado é permitido somente nas pacientes já histerectomizadas, isto é, sem
útero. Nas pacientes com útero faz-se necessário a adição de progesterona
ao estrogênio como medida de proteção ao endométrio.
A ação sistêmica da terapia hormonal pode ocorrer por diversas vias de
administração, como via oral, transdérmica, gel, spray ou implantes sub-
cutâneos.
Para paciente com queixas geniturinárias somente, baixas doses locais
de estrogênio aplicadas diretamente na vagina tratam sintomas vaginais,
como secura e dispareunia.
Deve-se avaliar individualmente o risco e o benéfico da terapia hormo-
nal para cada paciente, além das contraindicações. Ao optar pelo uso, ini-
ciar com baixas dosagens e manter a menor dosagem necessária para ate-
nuar os sintomas da paciente. Classicamente, deve ser mantida por curto
período (5 anos ou menos, sem ultrapassar os 60 anos de idade).
Contraindicações do uso da terapia hormonal: câncer de mama
prévio ou atual, carcinoma de endométrio e sangramento vaginal não
diagnosticado, doença tromboembólica ou cardiovascular, doença he-
patobiliar grave.

9. Prognóstico:

Apesar de ser um momento de muitas alterações na vida da mulher,


com diferentes sintomas indesejados, o climatério pode ser manejado
para que a mulher mantenha sua qualidade de vida.
Tanto as manifestações transitórias quanto as manifestações per-
manentes do climatério podem ser rastreadas e adequadamente trata-
UNIDADE 5. GÔNADAS
302

das. O papel do médico e da equipe multiprofissional é fundamental para


o apoio dessas pacientes.

10. Tabela de resumo:

Primeiros indícios de falência ovariana. É o período fisiológico de transição


da fase reprodutiva para a não reprodutiva da vida da mulher. Engloba a
Climatério
pré-menopausa, menopausa e a pós-menopausa. Ocorre entre 40-65 anos
de vida, sem uma idade definida.
Última menstruação da vida da mulher. Diagnóstico é dado a posteriori, após
Menopausa 12 meses em amenorreia. Ovário não produz estrogênio nem progesterona:
falência ovariana.
Irregularidade menstrual, fogachos (principal), atrofia vaginal, labilidade
Manifestações clínicas emocional, distúrbios do sono.
do climatério Lembre-se, nem todas as mulheres no climatério irão apresentar sintomas
típicos.
Diagnóstico Essencialmente clínico, sem necessidade de exames de rotina.
Complicações Aumento do risco cardiovascular e osteoporose.
Inclui tratamento não-farmacológico e tratamento farmacológico.
Tratamento não-farmacológico: mudanças no estilo de vida e manutenção
da qualidade de vida.
Tratamento Tratamento farmacológico hormonal: indicado na presença de queixas
de fogachos e atrofia genital. Usar em doses baixas, idealmente por até 5
anos. Paciente com útero: progesterona + estrogênio. Paciente sem útero:
estrogênio isolado.

11. Leitura recomendada:

BENETTI-PINTO, C.L., SOARES, J.M., YELA, D.A. Federação Brasileira das


Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO). Protocolo FEBRASGO -
Ginecologia, São Paulo, n. 38, 2018.

COELHO, E. A. C. et al, Integralidade do cuidado à saúde da mulher: limites da


prática profissional. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro,
v. 13, n. 1, p. 154-160, 2009.

DELIGEOROGLOU, Efthimios et al, Evaluation and management of adolescent


amenorrhea: Adolescent amenorrhea, Annals of the New York Academy of
Sciences, v. 1205, n. 1, p. 23–32, 2010.

GLEZER, Andrea; BRONSTEIN, Marcello D., Prolactinoma, Arquivos Brasileiros


de Endocrinologia & Metabologia, v. 58, n. 2, p. 118–123, 2014.

THE NORTH AMERICAN MENOPAUSE SOCIETY. Guia da menopausa.


[Tradução: Associação Brasileira de Climatério]. São Paulo: SOBRAC, 2013.
UNIDADE 5. GÔNADAS
303

Capítulo 21

Hipogonadismo Masculino
Rodolfo Martins Hernandes
Luisa Trentini Zanferari
Virgínia Nascimento Reinert
Rafaela Fenalti Salla

1. Introdução:

O hipogonadismo masculino se refere à diminuição da produção fi-


siológica testicular de testosterona, de espermatozoides ou de ambos.
Essas anormalidades podem ser de origem testicular, denominando-
-se hipogonadismo primário/hipergonadotrófico, ou de origem hipofi-
sária/hipotalâmica, também denominado hipogonadismo secundário/
hipogonadotrófico. No hipogonadismo primário ocorre a diminuição
dos níveis de testosterona e aumento dos hormônios luteinizante (LH)
e foliculoestimulante (FSH), enquanto no hipogonadismo secundário a
redução da testosterona é acompanhada por níveis inapropriadamente
normais ou até reduzidos das gonadotrofinas.

HIPOTÁLAMO

HIPÓFISE

TESTÍCULOS

Figura 1A: Desenho esquemático demonstrando local acometido no


hipogonadismo primário.

HIPOTÁLAMO

HIPÓFISE

TESTÍCULOS

Figura 1B: Desenho esquemático demonstrando local acometido no


hipogonadismo secundário.
UNIDADE 5. GÔNADAS
304

2. Epidemiologia e Etiologias:

Abaixo apresentamos as principais causas de hipogonadismo mas-


culino e sua epidemiologia, divididos pelo local de acometimento (pri-
mário ou secundário).

Hipogonadismo primário (hipogonadismo hipergonadotrófico):

Doenças c ongênitas:
Síndrome de Klinefelter (SK) é a causa genética mais comum de hi-
pogonadismo masculino, tendo sua incidência entre 1:500 e 1:1.000
meninos nascidos vivos;
Síndrome do homem XX (variante da SK): acomete cerca de 1 em
cada 9.000 a 20.000 meninos;
Criptorquidismo é observado em até 3% dos meninos nascidos a ter-
mo e em 30% dos prematuros com idade gestacional ≤ 30 semanas.
Após 6-9 meses de vida a incidência é semelhante a população adul-
ta (entre 0,7 e 0,8%);
Síndrome da regressão testicular ocorre em 1 a cada 20.000 nascidos
do sexo masculino e em 1 a 5% daqueles com criptorquidismo;
Distrofia miotônica é uma doença com incidência entre 1 e 35 por
100.000 habitantes, que em homens cursa com insuficiência testicu-
lar primária em até 80% dos acometidos;
Hipoplasia de células de Leydig é uma patologia de herança autossô-
mica recessiva com incidência estimada em 1:1.000.000;
Síndrome de Noonan (pseudo-Turner ou Síndrome de Ullrich) tem
incidência entre 1:1.000 e 1:5.000.

Defeitos Adquiridos:
Orquite viral é a principal causa de insuficiência testicular pós-pu-
beral, principalmente pós parotidite viral (25% dos casos desenvol-
vem orquite clínica);
Traumatismo ou torção são a segunda maior causa de atrofia testi-
cular em adultos;
Varicocele, radiação, fármacos (cetoconazol, espironolactona, cipro-
terona, glicocorticoides e agentes quimioterápicos como ciclofosfa-
mida e procarbazina) e toxinas (álcool, fungicidas e inseticidas como
dibromocloropropano - DBCP ou metais pesados como chumbo e cá-
dmio) também podem causar redução ou até inibição da biossíntese
de testosterona.
Doenças sistêmicas podem cursar com hipogonadismo hipergona-
dotrófico: insuficiência renal, doença pulmonar obstrutiva crônica
UNIDADE 5. GÔNADAS
305

(DPOC), desnutrição grave, insuficiência hepática, síndrome da imu-


nodeficiência adquirida (SIDA), anemia falciforme, doenças infiltra-
tivas como hemocromatose e neoplasias.

Hipogonadismo secundário (hipogonadismo hipogonadotrófico):

Doenças congênitas:
Deficiência isolada de hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH)
é rara. Quando acompanhada de anosmia ou hiposmia chama-se
Síndrome de Kallmann. Outras doenças genéticas que também cur-
sam com hipogonadismo são Síndrome de Prader-Willi e Síndrome
de Laurence-Moon-Biedl. Nesses casos, a etiologia do hipogonadis-
mo é variada.
Deficiências isoladas de LH e FSH são ainda mais raras.

Distúrbios adquiridos orgânicos que acometem região selar podem


causar deficiência na produção de gonadotrofinas de forma isolada ou,
mais comumente, associada a outros déficits hormonais:
Lesões inflamatórias, infiltrativas, neoplásicas.
Pós-traumática.
Pós-isquêmica.

Outras causas de hipogonadismo masculino:

Deficiência de 5α-redutase tipo 2:


É outra síndrome rara que cursa com conversão defeituosa de tes-
tosterona em sua forma ativa, a di-hidrotestosterona.

Síndrome da insensibilidade androgênica:


Resistência androgênica completa (Síndrome de Morris ou femini-
zação testicular) - tem prevalência entre 1:20.000 e 1:60.000 meninos
nascidos vivos;
Resistência androgênica incompleta – a prevalência varia entre
1:40.000 e 1:100.000.

Síndrome de Klinefelter
A síndrome de Klinefelter (SK) é a principal causa genética de hipogona-
dismo primário e infertilidade em homens, possuindo uma incidência entre
1:500 e 1:1.000 meninos nascidos vivos. Em instituições psiquiátricas há uma
incidência de 1:169 homens, homens com déficit intelectual 1:100 e homens
UNIDADE 5. GÔNADAS
306

inférteis com azoospermia 1:10. A alteração genética encontrada nessa sín-


drome é uma trissomia, ou seja, são cromossomos sexuais X “extras” resul-
tante da não disjunção na fase meiótica da gametogênese, sendo o cariótipo
mais comum o 47, XXY (forma clássica da doença – até 2/3 dos casos), se-
guido da forma em mosaico 46, XY/47, XXY.
Os sinais mais clássicos desta síndrome são a alta estatura com propor-
ções eunucoides, os quadris largos, a ginecomastia que ocorre no final da pu-
berdade, déficits neurocognitivos, pilosidade facial e pubiana reduzidas com
disposição triangular no caso dos pelos pubianos, pênis de tamanho reduzido
(raramente micropênis), criptorquidia, hipogonadismo (testículos endurecidos
por fibrose e hialinização dos túbulos seminíferos), infertilidade (casos excep-
cionais, geralmente na forma de mosaico podem ser férteis) e baixos níveis de
testosterona sérica na idade adulta (até 14 anos geralmente apresentam níveis
normais de testosterona), com altos níveis de LH e FSH (hipogonadismo hi-
pergonadotrófico). No entanto, esses sinais e sintomas podem manifestar-se
em momentos diferentes e com frequências distintas, o que pode dificultar o
diagnóstico, permanecendo, dessa forma, muitos pacientes portadores de SK
com sinais e sintomas leves sem serem diagnosticados.
Os portadores da Síndrome de Klinefelter apresentam maior incidência de
síndrome metabólica, diabetes mellitus, doenças tireoidianas, DPOC, lúpus eri-
tematoso sistêmico (LES), veias varicosas, doença cerebrovascular, ruptura de
aneurismas, osteoporose, taurodontismo e tremores na vida adulta. Ademais,
tem maior risco de desenvolvimento de neoplasias (tumores testiculares, de
células germinativas, carcinomas, leucemia linfocítica aguda e principalmen-
te câncer de mama). Observa-se também maior descontrole dos impulsos e
dificuldade de aprendizado, o que ocasiona maior frequência de portadores
dessa síndrome em instituições penais e psiquiátricas. Anomalias somáticas
e retardo mental são mais comuns nos cariótipos 48,XXXY e 48, XXYY.

Figura 2: Representação de indivíduo do sexo masculino com cariótipo


normal (46, XY) e com cariótipo alterado: Síndrome de Klinefelter (47, XXY).
Figura retirada de banco de imagens sem direitos autorais do google.
UNIDADE 5. GÔNADAS
307

3. Fisiopatologia:

Nos testículos, os túbulos seminíferos são compostos pelas células


de Sertoli e células germinativas (80 a 90% da massa testicular), além
das células de Leydig localizadas entre os túbulos seminíferos (intersti-
ciais). Basicamente, como em diversas glândulas do corpo, a produção
hormonal e de gametas nos testículos ocorre devido à ação do eixo Hi-
potálamo (GnRH) - Hipófise (LH e FSH) - Glândula, que nesse caso são os
testículos responsáveis pela produção de espermatozoides e de hormô-
nios (testosterona, inibina, entre outros). O LH se liga especificamente
ao receptor de membrana das células de Leydig, estimulando síntese
e secreção de testosterona; e o FSH se liga ao receptor das células de
Sertoli*, estimulando a produção de inibina, folistatina e ativina. A ini-
bina e a testosterona induzem e mantêm a espermatogênese e, princi-
palmente a segunda, é responsável pelo feedback negativo na hipófise
e no hipotálamo. A testosterona circula, em sua maior parte, ligada a
proteínas: 44% ligada à albumina e 54% ligada à globulina ligadora de
hormônios sexuais (SHBG), restando apenas 2 a 3% na fração livre. A
ligação com a SHBG é forte e com a albumina é fraca, o que permite
rápida e fácil dissociação, logo denomina-se de testosterona biodispo-
nível as frações livre e ligada à albumina.

Macete: LH com a inicial de Leydig e FSH tem a letra “S” de Sertoli.

No hipogonadismo masculino ocorre deficiência na produção de


testosterona, de espermatozoides ou de ambos, podendo decorrer de
anomalias em quaisquer fases do eixo descrito no parágrafo anterior.
No hipogonadismo primário a anormalidade encontra-se nos testícu-
los, já no hipogonadismo secundário decorre da secreção insuficiente
de gonadotrofinas devido a distúrbios hipotalâmicos ou hipofisários.
Formas raras de hipogonadismo resultam de mutações nos recepto-
res androgênicos ou incapacidade de conversão de testosterona em
seu metabólito ativo, a di-hidrotestosterona. As causas congênitas e
adquiridas mais comuns de hipogonadismo primário são Síndrome de
Klinefelter e a orquite viral, respectivamente. A Síndrome de Kallmann
é a principal causa de hipogonadismo secundário. O hipogonadismo de
início tardio é uma síndrome clínica relacionada ao envelhecimento,
sendo considerada uma forma mista de hipogonadismo.
UNIDADE 5. GÔNADAS
308

Defeitos testiculares associados a doenças sistêmicas


Doença renal crônica (DRC): ocorre redução da libido, disfunção erétil e
infertilidade em aproximadamente 50% dos pacientes submetidos à hemodi-
álise. Observa-se nesses pacientes a redução da testosterona e elevação das
gonadotrofinas bem como ocorre hiperprolactinemia. Tais alterações hor-
monais geralmente revertem após transplante renal.
Cirrose hepática: ginecomastia, redução da espermatogênese e atrofia
testicular são encontrados em torno de 50% dos pacientes com cirrose. A dis-
função erétil é vista em até 75% desses casos. Os níveis de SHBG e de estra-
diol geralmente estão altos ao passo que a produção e depuração de testoste-
rona está reduzida. A abstinência alcoólica geralmente reverte a disfunção
sexual nos casos de cirrose alcoólica, bem como o transplante hepático pode
melhorar as anormalidades hormonais.
Infecção pelo HIV: atualmente é uma das causas mais frequentes de dis-
função testicular, decorrente de hipogonadismo primário ou secundário. Mais
frequente em pacientes com doença avançada e em casos de perda ponderal
importante. Até 50% dos portadores de SIDA apresentam níveis baixos de tes-
tosterona com níveis baixos ou normais de LH. Nos casos em que é realizada
terapia antirretroviral adequada, a ocorrência de hipogonadismo cai para 20%.

4. Anamnese:

Para o correto diagnóstico da patologia, é de fundamental importân-


cia que você colha uma História detalhada e realize um exame físico
minucioso. Iniciar desde a história pregressa na infância, perguntando
sobre a descida testicular e averiguar se o hipogonadismo ocorreu an-
tes ou após a puberdade. Questionar sobre doenças atuais e anteriores,
sobre cirurgias prévias (se realizou correção de varicocele, vasectomia,
prostatectomia, reparo de hérnia) e se já sofreu algum trauma testicular
ou se teve exposição à radiação. Perguntar se há modificações da pili-
ficação corporal e sobre a frequência para se barbear, bem como sobre
alterações no olfato (anosmia ou hiposmia) e na visão para investigar
Síndrome de Kalmann ou tumores em área selar, respectivamente. Co-
lher todas as informações sobre história sexual (redução de libido, fun-
ções erétil e ejaculatória, masturbação, atividade sexual e fertilidade).
Indagar sobre falta de motivação e de energia. Interrogar o paciente so-
bre uso prévio e/ou atual de drogas, álcool, maconha e de medicações
que possam cursar com hipogonadismo.
UNIDADE 5. GÔNADAS
309

5. Exame físico:

Deparando-se com um paciente na fase pré-puberdade, você deve


atentar no exame físico principalmente para:
Procurar achados compatíveis com hábitos eunucoides (o crescimen-
to maior de ossos longos determina uma envergadura maior do que a
altura e uma distância púbis-plantar maior do que vértice-púbis);
Exame minucioso da genitália, características da bolsa escrotal, vo-
lume e consistência testicular e comprimento do pênis tracionado;
Verificar distribuição de pelos faciais, pubianos e corporais;
Avaliar presença de ginecomastia e galactorreia.

Se o paciente apresenta sintomas na fase adulta ou pós-puberdade


fazem parte do exame físico verificar:
Se há diminuição dos pelos corporais;
Se há perda de libido ou disfunção erétil/impotência;
Distribuição de gordura corporal;
Diminuição da densidade mineral óssea;
Infertilidade;
Se relata aumento da fadiga ou humor depressivo;
Alterações de funções cognitivas;
Pesquisar alterações no campo visual.

6. Exames complementares:

A investigação laboratorial está indicada em pacientes com queixas


de hipogonadismo devendo-se iniciar com:
Dosagem da testosterona total (TT) sérica, idealmente realizada no
início da manhã quando a testosterona está fisiologicamente mais
alta. Sempre deve ser confirmada com uma nova coleta 2 a 3 sema-
nas após primeira;
Dosagem de testosterona livre (TL) em situações que afetem a SHBG
como obesidade (↓SHBG) ou idade avançada (↑SHBG);
Após confirmação do hipogonadismo, dosa-se LH e FSH:
_ LH e FSH ↑: hipogonadismo primário;
_ LH e FSH ↓ ou inapropriadamente normais para o nível de testos-
terona: hipogonadismo secundário.

O espermograma é um exame muito importante para avaliar inferti-


lidade, mas também pode ser útil na diferenciação entre hipogonadis-
mo primário e secundário, pois oligospermia grave/azoospermia indica
lesão testicular.
UNIDADE 5. GÔNADAS
310

Com a definição de qual é a forma de hipogonadismo, é importante


investigar:
Para hipogonadismo primário:
_ Cariótipo (na suspeita de Síndrome de Klinefelter);
_ Pesquisar doenças testiculares (varicocele, orquite, torção, entre
outras);
_ Ferritina, índice de saturação da transferrina (pesquisa de hemo-
cromatose).
E para hipogonadismo secundário:
_ Prolactina;
_ Outros hormônios hipofisários;
_ Ferritina, índice de saturação da transferrina (pesquisa de hemo-
cromatose);
_ Excluir uso de opioides, glicocorticoides e esteroides anabolizantes;
_ Avaliar causas de hipogonadismo funcional (diabetes mellitus tipo
2, síndrome metabólica, obesidade grave, anorexia nervosa, ativida-
de física excessiva, doenças sistêmicas graves, entre outras);
_ Ressonância magnética de sela túrcica;
_ Dosar di-hidrotestosterona em caso de alterações na diferencia-
ção da genitália masculina.
Dosar TT em jejum, entre 7 a 10h (TL se houver condições que alteram SHBG,
e espermograma se houver preocupação com a fertilidade

TT normal Suspeita clínica de hipogonadismo TT < 230ng/dl

Repetir TT

TT intermediária

Repetir TT/TL
TT < 230ng/dl
TT normal/baixa TT normal/baixa
TL normal TL baixa

Considerar outras causas para os sintomas Hipogonadismo confirmado

Dosar LH e FSH

LH e FSH normais/baixos LH e FSH elevados

Avaliar causas de hipogonadismo secundário Avaliar causas de hipogonadismo primário

Figura 3: Avaliação diagnóstica do hipogonadismo masculino.


Elaborado pelo autor.
UNIDADE 5. GÔNADAS
311

7. Diagnóstico:

É feito a partir da suspeita clínica e dos exames laboratoriais:


Testosterona total maior ou igual a 350 ng/dL: exclui hipótese de hi-
pogonadismo;
Testosterona total entre 230 ng/dL e 350 ng/dL: necessário dosar
também a TL; se TL ≥ 6,5 ng/dL, hipogonadismo é excluído, se < 6,5
ng/dL, hipogonadismo confirmado;
Testosterona total menor que 230 ng/dL: hipogonadismo confirmado.

8. Tratamento:

O tratamento visa reduzir sintomas, restaurar os níveis normais de


testosterona, melhorar a qualidade de vida e a reduzir mortalidade.

Terapias androgênicas:
A testosterona pode ser administrada por via oral, nasal, intramus-
cular (IM), transdérmica, na forma de gel ou adesivos, ou subcutânea
através de implantes ou injeções. Dentre essas opções temos como
mais recomendadas/utilizadas:
Undecilato de Testosterona (1000 mg/4ml) 1 ampola IM a cada 10 a
14 semanas
Cipionato de Testosterona (200 mg/2ml) 200mg IM a cada 2 a 4 se-
manas
Enantato de Testosterona 200 mg IM a cada 2 a 4 semanas.

Em caso de doença prostática o uso de androgênios ainda é contro-


verso, pois podem facilitar o desenvolvimento de hiperplasia prostática
e estimular o crescimento de câncer de próstata preexistente.
Contraindicadas em pacientes com: câncer de mama ou próstata, eri-
trocitose (hematócrito > 50%), PSA > 4 ng/mL (> 3 ng/mL em pacientes
com alto risco de câncer de próstata, como negros ou indivíduos com
parentes de primeiro grau com câncer de próstata), pacientes que não
tenham avaliação urológica adicional, com nódulo ou endurecimento
palpável na próstata, hipertrofia prostática benigna com sintomas de
trato urinário baixo intensos ou escore de sintomas IPSS > 19, apneia
do sono obstrutiva grave não tratada, insuficiência cardíaca congestiva
grave não controlada.
A monitorização do tratamento é necessária: mantendo níveis de
testosterona total entre 400 e 700 ng/dL e a frequência de monitoriza-
ção depende da formulação de testosterona que está sendo utilizada no
tratamento.
UNIDADE 5. GÔNADAS
312

O toque retal deve ser feito de maneira semestral do primeiro ano


de tratamento até os 60 anos de idade, e depois deve-se realizar o toque
retal a cada 3 meses no primeiro ano e a cada 6 meses após. Determina-
ção do PSA antes de cada toque retal. US de próstata por via transretal,
caso haja suspeita de patologia. Hematócrito, colesterol total e frações
devem ser solicitados a cada 3 meses.

Outras abordagens para o tratamento:


Perda de peso e controle metabólico: a perda de peso é capaz de re-
verter o hipogonadismo em até 80% dos pacientes em que a causa é
a obesidade.
Agonistas dopaminérgicos: indicado para pacientes com prolactino-
mas ou hiperprolactinemia idiopática, revertendo o hipogonadismo.
Citrato de clomifeno: tem mostrado bons resultados em homens que
querem manter a fertilidade.
GnRH e gonadotrofinas: pode ser uma boa opção quando há o objeti-
vo de restauração de fertilidade no hipogonadismo secundário.

9. Prognóstico:

O prognóstico em se tratando de hipogonadismo masculino está di-


retamente relacionado com a causa de tal afecção. Anomalias genéti-
cas, por exemplo, geralmente cursam com uma gama de comorbidades
além do hipogonadismo, o que frequentemente prejudica o manejo do
hipogonadismo devido às outras afecções coexistentes. Já no hipogo-
nadismo de início tardio, relacionado ao envelhecimento, quando não
há outra comorbidade que contraindique a terapia de reposição hor-
monal (TRH), excelentes respostas ao tratamento medicamentoso são
obtidas. O mesmo vale para situações de hipogonadismo secundário a
obesidade e/ou ao diabetes mellitus, em que apenas a redução do peso e
o controle metabólico revertem o quadro de hipogonadismo na grande
maioria dos casos.
UNIDADE 5. GÔNADAS
313

10. Tabela de resumo:

Definição Redução em uma ou ambas as funções principais dos testículos: produção de esperma
e de testosterona.
Classificação Hipogonadismo primário (doença dos testículos)
Hipogonadismo secundário (doença da hipófise ou hipotálamo).
Sintomas Redução da energia, libido, massa muscular e pelos do corpo, bem como ondas de
calor, ginecomastia e infertilidade
Diagnóstico Clínica + Testosterona Total matinal (entre 8h e 10h) abaixo de 230 ng/dL ou TT entre
230 e 350 com TL abaixo de TL < 6,5 ng/dL.
Primário: testosterona sérica ou contagem de espermatozoides reduzidos e LH e/ou
FSH séricos acima do normal.
Secundário: testosterona sérica ou contagem de espermatozoides reduzidos e LH e/ou
FSH séricos normais ou diminuídos.
Tratamento Varia de acordo com a etiologia e sintomatologia:
Terapia androgênica – de acordo com níveis de testosterona.
Perda de peso e controle metabólico.
Agonistas dopaminérgicos prolactinomas ou hiperprolactinemia idiopática.
Citrato de clomifeno – para manter a fertilidade.
GnRH e gonadotrofinas – restauração de fertilidade no hipogonadismo secundário.

11. Leitura recomendada:

Testosterone Therapy in Men With Hypogonadism: An Endocrine Society


Clinical Practice Guideline 2018.

International Society For The Study of the Aging Male (ISSAM): Recommendations
on the diagnosis, treatment and monitoring of hypogonadism in men 2015.

Glass AR, Swerdloff RS, Bray GA, et al. Baixa testosterona sérica e globulina
ligadora de hormônio sexual em homens maciçamente obesos. J Clin
Endocrinol Metab 1977; 45: 1211.

Sartorius G, Spasevska S, Idan A, et al. Concentrações séricas de testosterona,


dihidrotestosterona e estradiol em homens idosos que relatam saúde muito
boa: o estudo do homem saudável. Clin Endocrinol (Oxf) 2012; 77: 755.

Caronia LM, Dwyer AA, Hayden D, et al. Diminuição abrupta dos níveis séricos
de testosterona após uma carga oral de glicose em homens: implicações para o
rastreamento de hipogonadismo. Clin Endocrinol (Oxf) 2013; 78: 291.
UNIDADE 5. GÔNADAS
314

UNIDADE 6:

OSTEOMETABOLISMO
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
315

Capítulo 22

Hiperparatireoidismo
Bruna Luisa Franke
Rafael Fortes Locateli
Eduardo Holshbach Cantarelli
Rafael Vaz Machry

1. Introdução:

Você deve estar iniciando a leitura desse capítulo com muito medo
de não entender o metabolismo do cálcio. E isso é muito comum. Respira
fundo! Vamos tentar entender juntos essa doença tão complexa e, quando
compreendida, se torna fácil.
As glândulas paratireoides são derivadas da terceira e quarta bolsa fa-
ríngea. Grande parte dos indivíduos possuem 4 glândulas paratireoides,
ovais e amarelas, localizadas na face posterior dos lobos da glândula tire-
óide. Todavia, essa localização pode variar em algumas pessoas, podendo
ser encontradas desde a bifurcação da artéria carótida até o mediastino.
Tais glândulas são responsáveis pela regulação dos níveis de cálcio e de
fósforo através do hormônio produzido por elas, o paratormônio (PTH).
Dessa forma, como os paratireoides trabalham? Essas glândulas pos-
suem receptores sensíveis ao cálcio (CaSR) que reagem às quedas na con-
centração de cálcio iônico, estimulando a produção de PTH. Por outro lado,
o excesso de cálcio no organismo ativa os receptores CaSR, diminuindo a
liberação de paratormônio. A figura 1 sintetiza o metabolismo deste con-
trole fisiológico.
Ação do PTH Ação do PTH
sobre os sobre os rins
óssos
Paratireoides
Aumento da Redução de secreção de
reabsorção PTH pelas paratireoides
óssea
CÁLCIO SÉRICO
Rins
Ossos Aumento da
absorção instestinal Ação do calcitriol
de cácio e fósforo no intestino Conversão da vitamina
Intestino D para sua forma ativa
1,25 (OH)2 D

Figura 1: Mecanismos de ação normal do PTH para o controle da calcemia.


Elaborado pelo autor.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
316

O PTH é um hormônio com várias ações. Nos rins, o PTH leva à di-
minuição da excreção urinária de cálcio (calciúria), ao aumento da ex-
creção de fósforo (fosfatúria), e induz a conversão da vitamina D para
a sua forma mais ativa, a 1,25-di-hidroxivitamina D ou calcitriol. Você
vai entender melhor no capítulo que aborda Vitamina D. Esta atua no
intestino aumentando a absorção de cálcio e fósforo. Nos ossos, o PTH
causa o aumento da reabsorção óssea (ação osteoclástica).
Chegando direto ao ponto, o hiperparatireoidismo primário (HPP)
é uma patologia caracterizada pela hipersecreção de PTH por uma ou
mais glândulas paratireoides, resultando em hipercalcemia e hipofosfa-
temia. Essa condição é relativamente comum e pode causar complica-
ções renais e esqueléticas principalmente. Atualmente, grande parte das
pessoas diagnosticadas com HPP apresentam a forma assintomática, ou
seja, com grau leve de hipercalcemia sem outras repercussões. O HPP é
a causa mais comum de hipercalcemia no ambiente ambulatorial e, em
geral, resulta de adenomas solitários ou de hiperplasia das paratireoides.

2. Epidemiologia:

O HPP é considerado um distúrbio relativamente comum. A incidên-


cia de HPP mudou muito ao longo dos anos devido à introdução de me-
dições de cálcio sérico de rotina. Se antes o diagnóstico era mais tardio,
já com complicações (como nefrolitíase e osteoporose), atualmente a
maior parte dos diagnósticos de HPP realizados são feitos por acaso.
A incidência do HPP aumenta com a idade, sendo mais frequente na
faixa etária entre 50 e 60 anos, porém pode ocorrer em qualquer idade.
As mulheres são mais afetadas que os homens em uma relação de 3-4:1.
Quando diagnosticado na infância ou na adolescência, corresponde,
principalmente, às endocrinopatias de origem genética.

3. Fisiopatologia:

É importante lembrar que o HPP pode ocorrer basicamente de duas


maneiras: a esporádica ou a familiar. As formas esporádicas corres-
pondem ao adenoma, à hiperplasia e ao carcinoma de paratireoide.
Já as formas familiares correspondem à famosa neoplasia endócrina
múltipla do tipo I ou do tipo IIA (NEM I ou IIA), ao hiperparatireoidismo
familiar isolado, à hipercalcemia hipocalciúrica familiar e à síndrome
de hiperparatireoidismo com tumor de mandíbula.
A maioria dos casos de HPP (cerca de 85%) é decorrente de adenoma
solitário de paratireoide, seguindo de hiperfunção em múltiplas glân-
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
317

dulas paratireoides, como os adenomas múltiplos ou a hiperplasia (15%


dos casos). Vale lembrar da possibilidade de existirem adenomas de pa-
ratireoide ectópicos, sendo mais comumente encontrados na glândula
tireoide, no mediastino superior e no timo.
Independentemente da etiologia, o aumento sérico de PTH, quando a
produção é autônoma, irá acarretar em hipercalcemia: uma vez que esse
hormônio atua nos ossos, promovendo o aumento da reabsorção óssea,
e nos rins, favorecendo a reabsorção tubular de cálcio e a excreção de
fosfato. Em adição, o PTH estimula, de forma indireta, a conversão da
vitamina D inativa em 1,25 diidroxi-vitamina D, através do aumento na
síntese da enzima 1-alfa-hidroxilase. Esta enzima é responsável por ca-
talisar a formação da forma ativa da vitamina D. Tal vitamina promove
um aumento na absorção intestinal de cálcio.
Além do HPP, existe o hiperparatireoidismo secundário (HPS), que
pode ocorrer devido à deficiência de vitamina D, incapacidade de trans-
formar a forma inativa na forma ativa de vitamina D (como na doença
renal crônica, por exemplo), ou devido à pouca ingestão de cálcio. A
maioria dos casos de HPS é decorrente de complicações da insuficiên-
cia renal crônica. A progressiva perda da função renal acarreta na re-
tenção de fósforo, que se liga aos íons de cálcio, com consequente dimi-
nuição nos níveis séricos de cálcio iônico livre. Essa redução do cálcio
estimula a secreção de PTH. Além disso, a perda funcional do rim leva a
uma redução na produção de 1,25-dihidroxivitamina D3. Logo, na HPS,
os níveis séricos de cálcio estão normais ou baixos e os de PTH estão
elevados, na tentativa de manter os níveis de cálcio adequados.
Após um longo período apresentando expressiva secreção de PTH
devido ao hiperparatireoidismo secundário, o paciente pode evoluir
para um hiperparatireoidismo terciário (HPT). Nesse momento, as
glândulas paratireoides estão hiperplásicas e a secreção excessiva de
PTH resulta em hipercalcemia, ocasionando, não apenas doenças ós-
seas, mas, também, calcificações extraósseas, como nos rins, causando
nefrolitíase.

Quando pensamos na fisiologia das paratireoides devemos ter sempre em


mente que o PTH é um hormônio FANÁTICO por cálcio; ele faz de TUDO para
aumentar os níveis séricos de cálcio, sendo inimigo total da hipocalcemia.
Como ele faz isso? O PTH é responsável por estimular a reabsorção óssea de
cálcio e fosfato, o que aumenta os níveis séricos desses dois íons. No entanto,
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
318

há um grande problema: muito fosfato no sangue tende a quelar o cálcio iônico,


que é a forma ativa do íon responsável por suas funções orgânicas. Isso é um
grande insulto para o PTH que gosta de cálcio livre e solto no sangue. O PTH,
então, vai atuar nos rins aumentando a reabsorção de cálcio e estimulando a ex-
creção de fosfato, resolvendo o problema do cálcio quelado. Em outras palavras,
o PTH é hipocalciúrico e hiperfosfatúrico. Além de tudo isso, como já foi visto,
o PTH estimula a hidroxilação renal da vitamina D em sua forma ativa, que por
sua vez irá aumentar a absorção intestinal de cálcio. Portanto, o hiperparatireoi-
dismo secundário à deficiência de vitamina D é uma forma do organismo de se
defender, a todo custo, da hipocalcemia. Assim, em um quadro de deficiência de
vitamina D, seguidamente temos níveis normais de cálcio - às custas do aumen-
to do PTH - e baixos níveis de fosfato, o que prejudica a mineralização óssea.

4. Anamnese:

Podemos dividir o quadro clínico do HPP pode ser dividido em assinto-


mático e sintomático. O HPP assintomático é definido como a presença de
níveis elevados de PTH, porém, não apresentando sinais e sintomas clás-
sicos da doença, podendo apresentar apenas sintomas vagos e inespecífi-
cos, como astenia, cansaço e depressão. Essa manifestação está presente
na maioria dos pacientes (80-90%). Já o HPP sintomático é caracterizado
por manifestações, principalmente, esqueléticas e renais, podendo afetar
outros sistemas também.
Há informação importante que você deve ficar alerta. Quadros mais ar-
rastados e crônicos de hipercalcemia podem se apresentar com poucos
sintomas, mesmo com níveis mais elevados de cálcio. Já causas agudas
de hipercalcemia tendem a apresentar quadro clínico mais pronunciado.
O envolvimento ósseo é caracterizado por uma perda maior de osso
cortical em relação ao osso trabecular, uma vez que o PTH desempenha
um efeito catabólico no esqueleto apendicular e anabólico no axial. Dessa
forma, alguns dos sintomas que podemos encontrar são fraturas, dores ós-
seas e deformidades que podem comprometer a deambulação do paciente.
Uma manifestação óssea que era muito característica do HPP é a osteíte
fibrosa cística, caracterizada pela reabsorção óssea subperiosteal, visto,
principalmente, nas falanges e nas porções distais das clavículas. Além
disso, apareciam rarefações do tipo sal e pimenta no crânio e tumores
marrons ou osteoclastomas. Curiosamente, nas últimas décadas temos
observado cada vez menos a ocorrência dessas manifestações devido ao
diagnóstico precoce da HPP.
Em relação ao envolvimento do sistema renal, pode-se destacar a
nefrolitíase como uma das manifestações mais comuns. Os episódios
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
319

recorrentes de nefrolitíase e/ou a formação de cálculos renais podem


acarretar a obstrução do trato urinário, infecções e, até mesmo, insufi-
ciência renal. Ainda, pode ocorrer nefrocalcinose, ou seja, depósito de
cálcio no parênquima dos rins.
Além dos rins e do osso, outros sistemas também podem ser atingidos,
como o sistema cardiovascular. A hipercalcemia está associada ao au-
mento da pressão arterial, à hipertrofia do ventrículo esquerdo, à hipercon-
tratilidade do músculo e a arritmias. Em adição, pode ocorrer o depósito de
cálcio nas valvas cardíacas, no miocárdio e nas paredes arteriais.
Acerca das manifestações gastrintestinais, encontramos anorexia,
constipação, úlcera péptica e pancreatite. Manifestações neuromus-
culares como fraqueza muscular e atrofia muscular e manifestações
psiquiátricas, como ansiedade, depressão, dificuldade de concentração,
disfunção cognitiva e alterações do sono são relatadas.
Logo, a partir dessas possíveis manifestações clínicas, é importante
questionar o paciente sobre alguns sinais e sintomas associados à hi-
percalcemia. Deve-se perguntar sobre o histórico de cálculo renal, uso
de diuréticos tiazídicos ou de lítio, produtos de cálcio ou suplementação
de vitamina D. Além disso, quando o HPP for diagnosticado em uma
idade precoce, pode-se considerar uma suspeita de síndrome familiar.

5. Exame físico:

De forma geral, o exame físico no paciente com HPP não apresenta


grandes alterações, uma vez que grande parte dos adenomas de para-
tireóide não são palpáveis. Todavia, é necessário investigar caso apa-
reça uma massa grande e firme no pescoço, uma vez que poderá ser
um carcinoma de paratireoide. De qualquer maneira, o carcinoma de
paratireoide é uma causa rara, com HPP grave (níveis extremamente
elevados de PTH e de evolução desfavorável). Além disso, as apresenta-
ções do exame físico vão depender do sistema acometido.

6. Exames complementares:

Exames Laboratoriais:
Cálcio total: valores de referência na tabela 1, lembrando que pode
variar de acordo com cada laboratório. Encontraremos hipercalcemia
no HPP (exceto na apresentação normocalcêmica). Noventa por cento
das hipercalcemias estão relacionadas ao HPP ou à malignidade. Ide-
almente, deve ser mensurado mais de uma vez (fatores pré-analíticos
e analíticos interferem). Conferir diagnóstico diferencial no quadro 1 e
fluxograma de investigação na figura 1.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
320

Tabela 1: Severidade da hipercalcemia de acordo com o cálcio total e ionizado.


Total: 8-10 mg/dL
Normal
Ionizado: até 5,2 mg/dL
Total: 10,5-11,9 mg/dL
Leve
Ionizado: 5,2-6 mg/dL
Total: 12-13,9 mg/dL
Moderada
Ionizado: 6-7 mg/dL
Total: 14-16 mg/dL
Crise hipercalcêmica (tratamento em unidade de emergência)
Ionizado: > 7 mg/dL

Albumina: deve ser solicitada para fórmula de correção do cálcio to-


tal, uma vez que a hipoalbuminemia pode mascarar a calcemia sérica.

Cálcio corrigido:
Cálcio Corrigido = Cálcio Total Medido + 0,8 × (4 -Albumina Medida)

Cálcio ionizado: em casos selecionados (indivíduos com distúrbios


acidobásicos, internados em unidade de terapia intensiva ou com do-
ença renal crônica avançada), quando há dúvidas sobre a acurácia do
cálcio corrigido.

PTH: o iPTH (intacto) estará elevado no HPP. Caso esteja normal ou


baixo (< 20 pg/mL), sugere-se prosseguir a investigação com a dosagem
de vitamina D e metabólitos ou PTHrp (proteína relacionado), se dispo-
nível - elevado na malignidade (alguns tumores sólidos podem produz
proteína capaz de mimetizar o PTH, é uma síndrome paraneoplásica).

Fósforo: pode haver presença de hipofosfatemia tanto no HPP quan-


to na malignidade.

Creatinina e ureia: avaliação da função renal.

Fosfatase alcalina: reflete a formação óssea, logo, pode estar eleva-


da no HPP.

Vitamina D e metabólitos: se estiverem normais, a depender da clí-


nica, podemos pensar em outras causas de hipercalcemia (tireotoxico-
se, doença de Paget, intoxicação por vitamina A).
25-OH-vitD (calcidiol) elevada: ingestão excessiva de vitamina D.
Em geral está baixa no HPP, pelo estímulo aumentado da conversão
desta na forma ativa (calcitriol) pelo PTH.
1,25-OH-vitD (calcitriol) elevada: pensar em linfoma, doenças gra-
nulomatosas ou aumento da ingesta de calcitriol.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
321

Urina de 24 horas:
Cálcio e creatinina urinários: usados para avaliar a proporção en-
tre a depuração de cálcio e a de creatinina (DCa), diferenciando o HPP
(DCa > 0,01) da hipercalcemia hipocalciúrica familiar (HPF) (DCa < 0,01),
já que ambas as condições cursam com PTH elevado. Aqui surge uma
dúvida importante: Se o PTH aumenta a reabsorção de cálcio, por que
há hipercalcemia no HPP? Na verdade, em qualquer causa de hiper-
calcemia, haverá hipercalciúria por transbordamento, independente do
efeito do PTH.

Depuração de Cálcio/Creatinina = ([Cálcio Urinário de 24 horas × Cre-


atinina Sérica])/(Cálcio Sérico × Creatinina Urinária de 24 horas])

Outros Exames:
Eletrocardiograma: a hipercalcemia pode causar encurtamento do
intervalo QT devido à redução do segmento ST.
Densitometria mineral óssea (DMO): solicitar, além do quadril e da
coluna lombar, avaliação do ⅓ distal do rádio. Este é o local de maior e
mais precoce reabsorção óssea.
Exames de imagem: suspeitando-se de HPP, é importante conhecer
a anatomia das glândulas paratireoides para avaliação pré-cirúrgica,
quando indicada. Estes exames também podem ajudar na identifica-
ção de glândulas ectópicas (pescoço ou mediastino, por exemplo) e em
casos de recidiva após a cirurgia. Recomenda-se a realização tanto da
cintilografia (com sestamibi marcado com tecnécio-99) quanto do ul-
trassom (US) cervical, pois juntos são mais sensíveis.
Tomografia computadorizada (TC) cervical: assim como US e cinti-
lografia, está indicada somente para avaliação pré-operatória, não para
o diagnóstico do hiperparatireoidismo.
Exame de imagem renal: US, TC ou raio X abdominal para avaliar
presença de nefrolitíase ou nefrocalcinose.
Testes genéticos em indivíduos selecionados: suspeita de síndro-
mes genéticas.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
322

Tabela 2: HPP e outras causas de hipercalcemia.


Condição clínica Comentários
Hiperparatireoidismo Apresentação típica com hipercalcemia, PTH elevado, hipofosfatemia,
primário hipercalciúria e hiperfostatúra. Causa mais comum de hipercalcemia a nível
ambulatorial, frequentemente assintomático.
Malignidade Hipercalcemia com hipofosfatemia e supressão do PTH. A maioria dos
pacientes com hipercalcemia da malignidade sabe que estão com câncer
ou a doença é detectável na avaliação inicial, sendo incomum que cânceres
clinicamente ocultos causem elevação do cálcio sérico. Considerar
solicitar PTHrp. Mais comum a nível de emergência, sendo frequentemente
sintomático. Os níveis de cálcio costumam ser mais altos que no HPP.
Hiperparatireoidismo Causado por hiperplasia das glândulas paratireoides após HPS crônico.
secundário Apresenta-se com PTH e cálcio elevados - ao contrário do HPS, que
apresenta PTH elevado, cálcio sérico normal ou baixo e fósforo alto.
Imobilização prolongada Aumento da reabsorção óssea, especialmente em indivíduos com
remodelamento aumentado (crianças, adolescentes, adultos jovens,
pacientes com doença de Paget, câncer).
Excesso de vitamina D Intoxicação por vitamina D. Em níveis séricos elevados, geralmente maiores
que 100 ng/ml, a forma que seria inativa da vitamina D consegue estimular
os receptores de vitamina D. Em condições normais, estes receptores
somente são ativados pela 1,25–OH-vitD.
Excesso de vitamina A Decorrente do aumento da reabsorção óssea pela atividade osteoclástica.
Doenças granulomatosas Tuberculose, hanseníase, histoplasmose, sarcoidose, granulomatose de
e linfomas Wegener, granuloma eosinofílico, por síntese aumentada de 1,25–OH-vitD.
Tireotoxicose Decorrente do aumento da reabsorção óssea pela atividade osteoclástica.
Hipercalcemia Apresenta DCa < 0,01. Diagnóstico reforçado quando < 40 anos e presença
Hipocalciúrica familiar de histórico familiar.
Uso excessivo de álcalis Consumo excessivo de cálcio e antiácidos absorvíveis, como o carbonato
de cálcio. A ingestão não precisa ser tão significante se houver outro fator
agravante, como doença renal prévia ou uso de diuréticos tiazídicos.
Doença de Paget Geralmente, em conjunto com imobilização.
Doença renal crônica Ocorre por administração excessiva de vitamina D, imobilização e HPT.
Feocromocitoma Produção de PTHrp.
Doença de Addison Causa não estabelecida, mas a hipercalcemia está presente
em até 20% dos pacientes.
Causas genéticas Neoplasia Endócrina Múltipla tipo I
Neoplasia Endócrina Múltipla tipo IIA
Medicamentos Lítio: 900 - 1500mg pode causar hipercalcemia em 5% dos pacientes
Diuréticos tiazídicos: diminuem a excreção e aumentam a absorção
renal de cálcio. Caso o paciente esteja em uso, considerar suspensão do
medicamento e reavaliação do cálcio em 2 semanas - 3 meses (divergência
na literatura) para diagnóstico de HPP
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
323

Avaliação clínica + hipercalcemia

Deve-se: confirmar hipercalcemia (usar cálcio corrigido, repetir exame se necessário) e dosar PTH

PTH aumentado PTH normal ou baixo ou sintomas de malignidade

DCa Metabólitos da vitamina D e exames


conforme suspeita clínica

Normais: considerar outras causas


(tiretoxicose, intoxicação por vitamina A,
imobilização prolongada)
DCa < 0,01 DCa > 0,01
25-OH-vitD elevada: intoxicação
por vitamina D

HHF HPP 1,25-OH-vitD elevada: linfoma,


doenças granulomatosas

Malignidade: PTHrp, outros exames


conforme necessidade

Figura 2: Fluxograma de avaliação e investigação de hipercalcemia.


Legenda: PTH: paratormônio; DCa: depuração de cálcio; HHF: hipercalcemia hipocalciúrica familiar;
HPP: hiperparatireoidismo primário; PTHrp: peptídeo relacionado ao PTH.

7. Diagnóstico:

Frente a um quadro de hipercalcemia, a primeira coisa que devemos


fazer é definirmos a causa desse achado laboratorial. Ela pode ser do
HPP, mas há outras situações clínicas que necessitam reconhecimento
como vimos na tabela 2. Para ilustrar melhor, preste atenção no fluxo-
grama presente na figura 2.

Hiperparatireoidismo Primário: o diagnóstico se dá pela presença


de hipercalcemia associada a níveis elevados ou inapropriadamente
normais de PTH. Existem três formas de apresentação:
HPP assintomático: torna-se mais comum em países com cultura
de realizar exames de screening. Entretanto, não recomendamos
rotineiramente a dosagem de PTH ou cálcio em pacientes sem sus-
peita clínica.
HPP sintomático: presença de alterações ósseas, renais, gastrointes-
tinais, neuromusculares, neurocognitivas e/ou cardiovasculares.
HPP normocalcêmico: ocorrem níveis normais de cálcio na presen-
ça de PTH elevado. Só pode ser diagnosticado após excluir causas de
HPS. Pode ser considerada uma forma frustra do HPP ou como uma
manifestação inicial.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
324

Como estarão os exames laboratoriais no HPP? O PTH estará eleva-


do, o cálcio total elevado, e o fósforo, baixo. Quanto aos exames uriná-
rios, o fósforo estará alto (efeito fosfatúrico do PTH). E o Cálcio urinário?
Também estará alto. Evite ficar confuso e vamos pensar. Tem muito
cálcio circulante. Mesmo que por vias da vitamina D, no HPP há maior
retenção urinária de cálcio, há um transbordamento. Secundariamente
à hipercalcemia, haverá hipercalciúria aumentada.

Hiperparatireoidismo Secundário: o diagnóstico é feito quando


existe elevação de PTH associada a níveis baixos ou normais de cál-
cio sérico. Está relacionado com doença renal crônica, deficiência de
vitamina D e síndromes de má absorção. Nesse caso, o PTH sobe para
tentar compensar a hiperfosfatúria que está quelando cálcio, causando
ou tendendo à hipocalcemia.

Hiperparatireoidismo Terciário: é uma evolução de um HPS severo e


prolongado, sendo causado pelo desenvolvimento de uma ou mais glân-
dulas paratireoides hiperplásicas. É observado em pacientes em diálise ou
após transplante renal, sendo caracterizado laboratorialmente por PTH e
cálcio elevados. Excluindo os achados urinários do HPP, já que a maioria
dos pacientes são dialíticos, nada mais é do que um HPP sobre um HPS.

8. Tratamento:

Hiperparatireoidismo Primário

HPP sintomático: tratamento definitivo com paratireoidectomia,


quando clinicamente viável.

Tabela 3: Generalidades sobre paratireoidectomia.


Melhora dos níveis de PTH e cálcio, além de aumentar a DMO e reduz risco de fraturas
Benefícios Reduz risco de nefrolitíase
Melhora qualidade de vida
Hipocalcemia pós-operatória (nadir em 24-36h)
Hipoparatireoidismo transitório ou permanente
Hipomagnesemia
Complicações Síndrome da fome óssea (maior risco em grandes adenomas)
Sangramentos
Lesão do nervo laríngeo recorrente
Laringoespasmo
Boa hidratação
Cuidados
Evitar medicamentos que aumentem calcemia
pós-operatórios
Ingestão de 1000 - 1200 mg de cálcio ao dia, após normalização do cálcio sérico
Em grávidas, a cirurgia pode ser feita após o primeiro trimestre
Hipercalcemia persistente e PTHi elevados podem ser causados por um adenoma
Observações
“esquecido”, ressecção incompleta de uma glândula hiperplásica, erro diagnóstico de
HPP ou falha de reconhecimento de um câncer de paratireoide
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
325

HPP assintomático: pode ser submetido a cirurgia ou acompanhado


clinicamente. Apesar de não serem dogmas, existem recomendações
para o tratamento cirúrgico, listadas abaixo:
Cálcio sérico > 1 mg/dL do limite superior da normalidade.
Idade < 50 anos.
Osteoporose (T score ≤ - 2,5).
Taxa de filtração glomerular < 60 mL/min/1.73m².
Cálcio urinário > 400 mg/24h e risco aumentado para cálculos.
Evidência em imagem de nefrolitíase ou nefrocalcinose.

Caso o paciente não atenda às indicações, pode ser monitorizado


com os seguintes exames: cálcio sérico anualmente, creatinina anual-
mente, DMO a cada 1-2 anos (nos três locais já descritos). Ao longo do
tempo, o HPP assintomático pode evoluir com elevação da calcemia e
piora da DMO. Pacientes que não são candidatos à cirurgia podem se
beneficiar do tratamento clínico, que inclui:
Hidratação e atividade física.
Ingestão de 1000 a 1200 mg de cálcio ao dia.
Reposição de vitamina D se a dosagem for < 20 ng/mL (reduz níveis de
PTH sem aumentar o cálcio, mas é importante ficar atento caso isso
aconteça) - meta de vitamina D > 30-50 (divergência na literatura). Veja
mais no capítulo específico de Vitamina D.
Bifosfonatos: aumentam DMO nos pacientes com osteoporose ou osteo-
penia (não reduzem cálcio e PTH). Veja mais no capítulo de osteoporose.
Cinacalcete (calcimimético): reduz níveis de cálcio e de PTH, mas não
melhora a DMO.
Terapia hormonal: estrogênios parecem reduzir a reabsorção óssea in-
duzida pelo PTH em pacientes do sexo feminino na pós-menopausa.

HPPN: abordagem conservadora, havendo indicação cirúrgica


quando houver evolução da doença (hipercalcemia, problemas renais,
fraturas, queda da DMO).

Hiperparatireoidismo Secundário e Terciário

Objetivos: reduzir níveis de fósforo e PTH, normalizando os níveis


de cálcio.
Quelantes de fósforo (sevelamer, carbonato de cálcio)
Ativadores da vitamina D (calcitriol, paricalcitol)
Calcimiméticos (cinacalcete)
Se falha clínica, especialmente na presença de hipercalcemia: para-
tireoidectomia.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
326

9. Prognóstico:

Pacientes que realizam paratireoidectomia bem-sucedida evoluem


com normalização dos níveis de PTH e de cálcio séricos. Há uma me-
lhora da DMO, com bom prognóstico. Esses resultados parecem ter
sido observados tanto nos pacientes que possuíam indicação cirúrgica
quanto nos que, mesmo sem indicação, realizaram o procedimento. Há
melhoras inconsistentes de sintomas psicológicos e da qualidade de
vida com a cirurgia.
Naqueles que optaram pelo seguimento clínico, ou nos que tinham
contraindicações cirúrgicas por comorbidades, os níveis de cálcio e
PTH tendem a permanecer estáveis por mais de 10 anos, assim como
a DMO. Depois desse período, há um aumento do cálcio e uma redução
da DMO. Aproximadamente ¼ dos pacientes acompanhados por 15 anos
tendem a apresentar alguma indicação cirúrgica formal.

10. Tabela de resumo:

Incidência aumenta com a idade (mais frequente entre 50 e 60 anos).


Epidemiologia
Mulheres são mais afetadas que homens (3-4:1).
Ocorre de forma esporádica ou familiar.
A maioria dos casos é devido a um adenoma solitário de paratireoide.
Fisiopatologia Aumento de PTH acarreta hipercalcemia (aumento da reabsorção óssea e
da reabsorção tubular de cálcio e, indiretamente, aumento da reabsorção
intestinal de cálcio).
Manifestações ósseas (fraturas, dores ósseas, deformidades,
osteíte fibrosa cística).
Manifestações renais (nefrolitíase recorrente, nefrocalcinose).
Anamnese + Exame físico
Outras manifestações (aumento da pressão arterial, hipertrofia do ventrículo
esquerdo, depósitos de cálcio, anorexia, constipação, úlcera péptica,
pancreatite, ansiedade, depressão, fraqueza muscular).
Confirmar hipercalcemia.
Dosagem de PTH.
Dosagem de vitamina D e metabólitos.
Dosagem de PTHrp.
Fósforo.
Exames complementares
Creatinina e ureia.
Albumina.
Fosfatase alcalina.
Outros: cálcio urinário, cintilografia, US, DMO, exames de imagem renal,
eletrocardiograma.
Diagnóstico Hipercalcemia associada a PTH aumentado ou inapropriadamente normal
Definitivo, especialmente se sintomático/com repercussões clínicas:
paratireoidectomia.
Para assintomáticos, avaliar indicações cirúrgicas e preferência do paciente.
Tratamento
Seguir acompanhamento ambulatorial com tratamento clínico (vitamina D,
cálcio, calcimiméticos, bifosfonatos, terapia hormonal - conforme
necessidade) e exames anuais (cálcio, creatinina, DMO).
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
327

11. Leitura recomendada:

Bilezikian JP, Bandeira L, Khan A, Cusano NE. Hyperparathyroidism. Lancet.


2018 Jan 13;391(10116):168-178. doi: 10.1016/S0140-6736(17)31430-7. Epub 2017
Sep 17. PMID: 28923463.

Clarke BL. Asymptomatic Primary Hyperparathyroidism. Front Horm Res.


2019;51:13-22. doi: 10.1159/000491035. Epub 2018 Nov 19. PMID: 30641522.

Corbetta S. Normocalcemic Hyperparathyroidism. Front Horm Res. 2019;51:23-


39. doi: 10.1159/000491036. Epub 2018 Nov 19. PMID: 30641527.

Jamal SA, Miller PD. Secondary and tertiary hyperparathyroidism. J Clin


Densitom. 2013 Jan-Mar;16(1):64-8. doi: 10.1016/j.jocd.2012.11.012. Epub 2012 Dec
23. PMID: 23267748. PMID: 28533500.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
328

Capítulo 23

Hipoparatireoidismo
Yasmin Lima Santos
Jéssica Nascimento Monte
Eduardo Bardou Yunes Filho

1. Introdução:

Depois de ter entendido o quadro de hiperfunção das paratireoides


no capítulo anterior, vamos aprender agora sobre o hipoparatireoidis-
mo. Esta doença, na imensa maioria das vezes, ocorre em decorrência
de procedimentos cirúrgicos cervicais, mas outras causas podem exis-
tir. O objetivo desse capítulo é reconhecer os sinais e sintomas carac-
terísticos do hipoparatireoidismo e saber manejá-lo rapidamente para
evitar maiores complicações da doença.
Localizadas na região cervical, as paratireoides estão posteriores à ti-
reoide, com duas glândulas superiores e duas inferiores dos lados direito
e esquerdo. Elas atuam regulando o metabolismo do cálcio no corpo, por
meio do paratormônio (PTH). Normalmente, o PTH mantém o cálcio total
entre uma faixa de 8,5 e 10 mg/dL e o cálcio iônico entre 4,65 e 5,25 mg/
dL, o que depende do método utilizado para a dosagem, de acordo com o
valor de referência fornecido pelo laboratório. Essa faixa estreita se dá
em vista do feedback regulado pelas funções do PTH sobre o íon cálcio e
sobre a forma ativa da vitamina D (1,25-di-hidroxivitamina D), que atuam
em órgãos como rins, intestinos e ossos. Veremos a seguir quais altera-
ções nos mecanismos que regulam o PTH podem causar hipoparatireoi-
dismo, com consequente diminuição do cálcio sérico.

2. Epidemiologia:

Dentre as endocrinopatias, o hipoparatireoidismo é uma doença


pouco comum, afetando cerca de 25 a 35 pessoas a cada 100 mil ha-
bitantes.
Podemos dividir as etiologias do hipoparatireoidismo em três gran-
des grupos:
Hipoparatireoidismo por destruição das paratireoides: ocorre em
circunstâncias como sequelas pós-operatórias, doenças autoimunes
(Síndrome Poliglandular Autoimune - SPA 1), radiação, metástases
ou doenças granulomatosas. O hipoparatireoidismo pós-tireoidecto-
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
329

mia pode ocorrer de maneira transitória em cerca de 20% dos casos,


havendo recuperação da função das paratireoides em até seis meses
após o procedimento cirúrgico.
Desenvolvimento anormal das glândulas paratireoides: pode ocor-
rer de forma isolada ou associado a condições como as síndromes
de DiGeorge, de HDR, de Sanjad-Sakati, de Kenny-Caffey, de Kearns-
-Sayre, MELAS, entre outras.
Alterações na regulação, produção e secreção do PTH: ocorrem na
hipomagnesemia e na hipocalcemia autossômica dominante, cau-
sada por mutações ativadoras do receptor sensível ao cálcio (CaSR)
e alterações na sinalização celular mediadas por proteínas G.

Como falado no início do capítulo, a etiologia mais comum do hi-


poparatireoidismo é a sequela pós-operatória, após cirurgias cervicais
– de 1 a 2% dos pacientes que realizam a retirada da glândula tireoide
cursam com hipoparatireoidismo definitivo ou transitório. A segunda
causa mais comum são as doenças autoimunes, com maior incidência
na infância, assim como as causas genéticas.

3. Fisiopatologia:

O metabolismo do cálcio e o funcionamento do PTH já foram ex-


plicados com detalhes no capítulo anterior sobre hiperparatireoidismo.
Vale a pena você retornar lá e reler para fixar!
Neste capítulo, resta-nos dizer que a falta do PTH leva à hipocalce-
mia e à hiperfosfatemia, pois o seu efeito fosfatúrico se perde. Além
disso, devido à falta de PTH, a conversão da vitamina D em sua forma
ativa não acontece. A principal consequência de tudo isso é: a absorção
intestinal de cálcio é prejudicada, levando à hipocalcemia, e resta fós-
foro para quelar ainda mais o cálcio.

4. Anamnese:

Na abordagem de um paciente com suspeita de hipoparatireoidis-


mo, em primeiro lugar, devemos colher uma boa história médica pre-
gressa do paciente, com foco especial às cirurgias recentes ou prévias,
como tireoidectomia. Além disso, a presença de neoplasias, doenças
granulomatosas e autoimunes, histórico de radiação prévia e doenças
hereditárias devem ser consideradas fatores de risco.
Como a hipocalcemia é um dado laboratorial muito importante para
o diagnóstico do hipoparatireoidismo, a maioria dos achados na anam-
nese são decorrentes das baixas concentrações séricas de cálcio.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
330

É essencial o questionamento a respeito de medicações em uso para


o diagnóstico diferencial, pois alguns fármacos, como os diuréticos de
alça, podem aumentar a excreção de cálcio e intensificar a hipocalce-
mia. Além disso, os hábitos sociais dos pacientes devem ser indagados,
uma vez que o alcoolismo crônico pode afetar a absorção e excreção do
magnésio.
É importante lembrar que a maioria dos pacientes com essa condi-
ção podem ser assintomáticos, principalmente se a hipocalcemia for
crônica ou de baixa intensidade. Pacientes com grau mais acentuado
de hipocalcemia podem se queixar de queda de cabelos, crises convul-
sivas, unhas frágeis e quebradiças, dentes hipoplásicos, catarata e pa-
restesias nas mãos, nos pés e na região perioral, que ocorre devido à
hiperexcitabilidade neuromuscular. A intensidade das manifestações
clínicas depende da duração do quadro e da velocidade de instalação
do hipoparatireoidismo.

5. Exame físico:

O exame físico do hipoparatireoidismo deve ser pensado como um


exame físico de hipocalcemia e todos os achados que essa entidade la-
boratorial pode expressar clinicamente no paciente. Dessa forma, deve-
mos lançar mão de manobras que induzem um estado de tetania, que
são os achados mais característicos dessa patologia. A partir delas, ob-
têm-se dois achados semiológicos clássicos, mas que, quando ausentes,
não excluem o diagnóstico de hipocalcemia.

Sinal de Chvostek: a percussão do nervo facial na região zigomática


(próxima à orelha) provoca a contração ipsilateral involuntária dos
músculos faciais, levando ao repuxamento da boca. É um sinal me-
nos específico, podendo ser positivo em até 10% dos indivíduos sem
hipocalcemia.
Sinal de Trousseau: insufla-se um esfigmomanômetro 20 mmHg
acima da pressão arterial sistólica do paciente, por cerca de 3 mi-
nutos. O sinal é positivo quando a oclusão da circulação leva a um
espasmo do carpo chamado de “mão de parteira”, com a flexão do
punho e dos músculos metacarpofalangianos, adução do polegar e
extensão dos interfalangianos. Esse sinal é um pouco mais específi-
co para a hipocalcemia.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
331

Sinal de Chvostek Sinal de Trousseau

Figura 1: Sinais semiológicos de Chvostek e Trousseau, característicos


de hipocalcemia.
Fonte: elaborado pelo autor.

6. Exames complementares:

Em relação aos exames laboratoriais, é importante solicitarmos a


dosagem das substâncias que podem estar envolvidas na nossa suspei-
ta clínica de hipocalcemia, bem como na investigação da sua etiologia.
Dessa forma, devemos solicitar a dosagem de PTH e de cálcio séricos,
além dos níveis de albumina, magnésio, fósforo e vitamina D, para ex-
cluir outras causas que também cursam com hipocalcemia.
Cálcio: já sabemos que no hipoparatireoidismo ocorre a diminui-
ção do cálcio sérico, mas ele também pode cursar com normocalce-
mia. Dentre as suas formas circulantes, dosar o cálcio iônico é a opção
mais rápida, pois como não se liga à albumina, os valores não precisam
de correção, como necessita o cálcio total (1 g/dL de albumina altera
o nível de cálcio em 0,8 mg/dL, tanto para mais quanto para menos).
Outras condições que reduzem os níveis de cálcio são deficiência de
vitamina D (lembrar que ela também é a principal causa de hiperparati-
reoidismo), fármacos quelantes de cálcio, pseudo-hipoparatireoidismo
(causado por alterações na proteína G), queimaduras, síndrome da lise
tumoral, pancreatite e rabdomiólise.
PTH: no hipoparatireoidismo, os níveis de PTH se encontram muito
baixos. Níveis elevados, por outro lado, indicam hiperparatireoidismo
secundário, pseudo-hipoparatireoidismo, insuficiência renal ou defici-
ência de vitamina D. Níveis baixos ou normais podem ser encontrados
diante de hipocalcemia autossômica dominante ou hipomagnesemia.
Fosfato: o hipoparatireoidismo causa hiperfosfatemia devido à di-
minuição da excreção renal de fosfato, mediada pelo PTH. Isso o difere
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
332

do hiperparatireoidismo secundário, que cursa com hipofosfatemia por


aumento dos níveis de PTH.
Vitamina D: níveis normais de 25-OH vitamina D (calcidiol) e níveis
baixos de sua forma ativa (conversão dependente do PTH), o 1,25-di-hi-
dro-xivitamina D (calcitriol) são encontrados no hipoparatireoidismo.
A medida do 25-OH vitamina D é mais precisa por se tratar da reser-
va da vitamina. Nos quadros sugestivos de hipoparatireoidismo, reco-
menda-se a dosagem de 25-OH vitamina D. Já a dosagem do calcitriol
é indicada em situações bem específicas, como para o diagnóstico di-
ferencial de condições como insuficiência renal, resistência à vitamina
D e hiperparatireoidismo secundário, uma vez que sua conversão está
diretamente relacionada à função renal.
Magnésio: na investigação da hipocalcemia, a dosagem de magné-
sio é importante, especialmente nos sem causa esclarecida para o qua-
dro. A hipomagnesemia (níveis séricos de magnésio inferiores a 1,8
mg/dL) pode levar à resistência à ação do PTH ou, em casos extremos, à
diminuição da sua secreção. Algumas causas de baixas concentrações
de magnésio são alcoolismo, administração prolongada de fluidos por
via intravenosa e uso de diuréticos ou aminoglicosídeos. A hipermag-
nesemia (níveis séricos superiores a 6 mg/dL), por outro lado, também
pode causar resistência à ação do PTH.
Outros exames que podem ser solicitados são o eletroencefalograma
(EEG) e o eletrocardiograma (ECG). No primeiro, pode-se observar ondas
lentas paroxísticas de alta voltagem e espículas. No último, pode haver
prolongamento do intervalo QT que pode precipitar Torsades de Pointes
e, mais raramente, arritmias e bloqueios de condução.

7. Diagnóstico:

O diagnóstico de hipoparatireoidismo é feito por meio da história


clínica, das manifestações, do exame físico e da evidência laboratorial
de baixos níveis séricos de cálcio e de paratormônio.
As principais manifestações clínicas de instalação aguda são con-
traturas musculares, parestesias, tetania e taquicardia. Na hipocalce-
mia aguda grave pode haver convulsão, laringo e broncospasmo e pro-
longamento do intervalo QT no eletrocardiograma. Já na hipocalcemia
de instalação crônica, podem ocorrer alterações dentárias (como hipo-
plasia, fragilidade e cáries), catarata, pele seca, unhas frágeis e quebra-
diças, cefaleia crônica, insuficiência cardíaca, hiperreflexia, hiperten-
são intracraniana e calcificações de gânglios da base.
Pacientes após tireoidectomia ou paratireoidectomia devem ser
monitorados de forma clínica e laboratorial (dosagem de cálcio e PTH)
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
333

para manutenção da calcemia. A maioria dos pacientes começa a apre-


sentar sintomas leves, como parestesias e cãibras, após 24 horas do
procedimento.

8. Tratamento:

O objetivo do tratamento da hipocalcemia é manter o cálcio em uma


faixa controlada, com a finalidade de evitar sintomas e suas complica-
ções (hipercalciúria, que pode levar à nefrocalcinose, nefrolitíase e até
mesmo insuficiência renal).
Nos casos de tireoidectomia ou paratireoidectomia, a reposição de
cálcio deve ser iniciada logo após o diagnóstico do hipoparatireoidis-
mo. Em casos graves de hipomagnesemia, deve-se repor magnésio EV.
Fase aguda: pacientes com cálcio total abaixo de 7,5 mg/dL devem ter
administração intravenosa imediata de gluconato de cálcio a 10% (90 mg
de cálcio por ampola de 10 ml), diluído em soro glicosilado ou fisiológico.
A velocidade de aplicação deve ser lenta, maior que 5 a 10 minutos. Se
ocorrer outra crise hipocalcêmica, a medicação deve ser repetida e pos-
teriormente em infusão contínua. Se houver hipomagnesemia concomi-
tante, devem ser administrados suplementos de magnésio.
Fase crônica: deve-se prescrever suplementos orais de cálcio (1000 a
2000 mg/dia de cálcio elementar/puro, em doses fracionadas) e vitamina
D2 ou D3 (25.000 a 100.000 U/dia) ou calcitriol (0,25 a 2 μg/dia). Recente-
mente, a agência americana Food na Drug Administration (FDA) aprovou
o uso do PTH (1-84) para o tratamento do hipoparatireoidismo. Em casos
especiais, devido ao seu custo elevado, o PTH (1-34) recombinante huma-
no pode ser utilizado por via intramuscular de 12 em 12 horas.

9. Prognóstico:

Quando o diagnóstico é feito de forma precoce, o prognóstico geral-


mente é positivo. Em crianças com hipoparatireoidismo que não rece-
beram o diagnóstico durante a fase de crescimento, algumas complica-
ções não podem ser revertidas, como é o caso das alterações nos dentes,
da catarata e das calcificações nos gânglios da base.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
334

10. Tabela de resumo:


O que é hipoparatireoidismo? Deficiência na secreção ou na ação do
paratormônio (PTH)
Quadro laboratorial característico Hipocalcemia, hiperfosfatemia, PTH baixo
Causa mais comum Pós-operatório de cirurgias cervicais. O
hipoparatireoidismo definitivo ocorre em
cerca de 1 a 2% das tireoidectomias totais,
e o hipoparatireoidismo transitório pode ser
observado em até 20%.
Quadro clínico Manifestações de hiperexcitabilidade
neuromuscular: parestesias nas mãos, nos pés e
periorais, cãibras frequentes e tetania.
Achados clássicos ao exame físico Sinal de Chvostek e Sinal de Trousseau
Diagnósticos diferenciais Pseudo-hipoparatireoidismo ou resistência ao
PTH e deficiência de vitamina D
Tratamento Reposição de cálcio e de vitamina D;
suplementação de magnésio em pacientes com
hipomagnesemia; uso de PTH recombinante em
casos selecionados.

11. Leitura recomendada:

BOLLERSLEV, Jens; REJNMARK, Lars; MARCOCCI, Claudio; et al. European


Society of Endocrinology Clinical Guideline: Treatment of chronic
hypoparathyroidism in adults. European Journal of Endocrinology, v. 173, n. 2,
p. G1–G20, 2015.

GAFNI, Rachel I.; COLLINS, Michael T. Hypoparathyroidism. New England


Journal of Medicine, v. 380, n. 18, p. 1738–1747, 2019.

MAEDA, Sergio Setsuo; MOREIRA, Carolina Aguiar; BORBA, Victória Zeghbi


Cochenski; et al. Diagnosis and treatment of hypoparathyroidism: a position
statement from the Brazilian Society of Endocrinology and Metabolism.
Archives of Endocrinology and Metabolism, v. 62, n. 1, p. 106–124, 2018.

ORLOFF, Lisa A.; WISEMAN, Sam M.; BERNET, Victor J.; et al. American Thyroid
Association Statement on Postoperative Hypoparathyroidism: Diagnosis,
Prevention, and Management in Adults. Thyroid, v. 28, n. 7, p. 830–841, 2018.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
335

Capítulo 24

Vitamina D
André Luiz Loeser Corazza
Larissa Maria Faccin Blás
Rafael Vaz Machry

1. Introdução:

A partir de agora entraremos no mundo da vitamina D, substância de


suma importância para o metabolismo ósseo e que é alvo de muitas es-
peculações quanto a seus potenciais efeitos “milagrosos”. Este capítulo
tem como objetivo pontuar os efeitos osteometabólicos da vitamina D.
Conversaremos sobre os efeitos extraesqueléticos e também falaremos
sobre hipovitaminose e intoxicação por vitamina D.
A vitamina D, apesar de chamada de vitamina, conceitualmente se
trata de um pré-hormônio lipossolúvel que, juntamente com o parator-
mônio (PTH), atua na regulação da homeostase do cálcio e no metabo-
lismo ósseo. As principais fontes de vitamina D são a partir da clivagem
da pró-vitamina D na pele pela radiação UVB e, em menor quantidade,
pela ingestão de alimentos como peixes gordurosos, gema de ovo e óleo
de fígado de bacalhau. Quando a origem da vitamina D ingerida é ani-
mal, denomina-se de colecalciferol ou vitamina D3, e quando é de ori-
gem vegetal é chamada de ergocalciferol ou vitamina D2.

Conceitos importantes e frequentemente confundidos:


Vitamina D3 = colecalciferol.
Vitamina D2 = ergocalciferol.
25 hidroxivitamina D = calcidiol = mais abundante.
1,25 di-hidroxivitamina D = calcitriol = forma ativa.

2. Metabolismo da vitamina D:

Quando falamos sobre a vitamina D, a primeira coisa que nos vem


à cabeça é “a vitamina do sol”. E não está errado este conceito! De fato,
grande parte do aporte de vitamina D do nosso organismo acontece a
partir da exposição à radiação solar. No entanto existem muitas outras
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
336

etapas no metabolismo da vitamina D que também são fundamentais


para que ela chegue em sua forma ativa, veja com detalhes na figura 1.

Figura 1: As vias do metabolismo da vitamina D.


Elaborado pelo autor.

As vias de produção da vitamina D se iniciam na pele a partir da


clivagem de um “colesterol” – o 7-dehidrocolesterol ou pró-vitamina
D – pela radiação ultravioleta. Essa clivagem resulta na produção do
colecalciferol, a vitamina D3. O colecalciferol é então transportado na
corrente sanguínea ligado a proteínas (DPB - vitamin D binding protein)
até o fígado, onde vai sofrer hidroxilação no carbono 25, formando a 25
hidroxivitamina D (25OHD), também chamada de calcidiol - uma subs-
tância lipossolúvel que é armazenada no tecido gorduroso, o principal
depósito de vitamina D. Para se tornar ativa, a 25OHD ainda precisa so-
frer uma última hidroxilação, agora no carbono 1, que será feita nos rins
a partir da enzima 1 alfa-hidroxilase, formando a 1,25 di-hidroxivitami-
na D (1,25OHD), a forma ativa da vitamina D, o calcitriol.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
337

A hidroxilação hepática do colecalciferol é rápida e sofre quase ne-


nhuma regulação. Ou seja, a concentração sérica de 25OHD reflete a re-
serva corporal da vitamina D. A passagem renal, ao contrário da hepáti-
ca, é fortemente regulada por vários fatores, como o PTH, fosfato sérico,
FGF-23 e o próprio calcitriol. A elevação dos níveis séricos de PTH e a
diminuição do fosfato sérico estimulam a atividade da 1 alfa-hidroxi-
lase. Por outro lado, a 1,25OHD irá retrorregular sua produção inibindo
a atividade da enzima 1 alfa-hidroxilase em um sistema de feedback
negativo. O FGF-23 também atua inibindo a atividade dessa enzima.

O calcitriol é a forma ativa da vitamina D. Sua ação primordial é no


trato digestivo, aumentando a absorção de cálcio e fósforo, e no rim,
aumentando a reabsorção de cálcio no túbulo contorcido distal. O calci-
triol também opera fisiologicamente no osso a partir da mineralização
da matriz proteica.

3. As funções da vitamina D:

A principal função da vitamina D está relacionada à regulação da


homeostase do cálcio e do fosfato, que ocorre em consonância com o
PTH. Os tecidos-alvos mais importantes para essa regulação são o in-
testino, rins e ossos. A maioria dos processos biológicos realizados pela
1,25OHD envolvem o receptor nuclear da vitamina D, o chamado VDR.
É imprescindível lembrar que temos receptores de vitamina D em pra-
ticamente todo o corpo, porém ainda há controvérsias sobre suas fun-
ções fora do metabolismo ósseo.

Vitamina D e o intestino:

O mecanismo de ação da vitamina D na absorção intestinal de cál-


cio é a resposta mais bem compreendida de um tecido à 1,25 OH D. O
transporte do cálcio através do lúmen intestinal se dá pela membrana
da borda em escova dos enterócitos, a favor de um gradiente de con-
centração. Nesse local a 1,25 OH D induz uma alteração na ligação da
calmodulina à miosina 1, o que pode auxiliar na remoção do cálcio do
lúmen para o interior das células.
A passagem do cálcio no citosol da célula intestinal até a membrana
basolateral requer outra proteína induzível pela vitamina D, a calbindi-
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
338

na. Já para passagem pela membrana basolateral das células intesti-


nais, o cálcio precisa ser removido contra um forte gradiente eletroquí-
mico. Para isso é indispensável uma bomba movida a ATP, no caso a Ca
ATPase, uma proteína também induzida pela 1,25 OH D.

Vitamina D e a saúde óssea:

Várias evidências sugerem que a vitamina D estimula a minerali-


zação óssea indiretamente a partir do aumento da absorção intestinal
de minerais (cálcio e fosfato) que serão incorporados na matriz óssea.
Outras evidências indicam que a vitamina D atua diretamente no osso
a partir do estímulo aos osteoblastos para sintetizar a proteína osteo-
calcina de ligação ao cálcio, que por sua vez irá promover a deposição
de cálcio no osso.
Curiosamente, o calcitriol em concentrações fisiológicas promove a
mobilização do cálcio para o osso. No entanto, a administração de gran-
des doses de vitamina D gera remodelação óssea a partir da estimula-
ção da expressão gênica da fosfatase alcalina e osteocalcina nos os-
teoblastos que estimula a atividade osteoclástica. Ou seja, no processo
de remodelação óssea, a vitamina D é essencial tanto para a formação
quanto para a reabsorção do osso.

Vitamina D e os rins:

A hidroxilação renal da 25OHD em 1,25 OH D é feita nos rins e é for-


temente regulada por vários fatores como hipofosfatemia, PTH, FGF-23
e o próprio calcitriol. Importante lembrar ainda que um quadro de hipo-
calcemia estimula as paratireoides a liberar mais PTH, que por sua vez
irá estimular a hidroxilação renal da vitamina D.
A forma ativa da vitamina D irá atuar nos rins a partir da reabsorção
de cálcio no túbulo contorcido distal.

Vitamina D e seus efeitos extra esqueléticos:

As principais funções da vitamina D estão relacionadas à homeos-


tase do cálcio e fósforo e ao metabolismo ósseo. Apesar disso, muito se
fala sobre várias funções extraesqueléticas da vitamina D, como seu
suposto papel no câncer, em infecções e até mesmo em doenças au-
toimunes. Vamos tentar entender um pouco mais sobre isso tudo.
Que a vitamina D tem um papel importantíssimo na saúde óssea e
no metabolismo do cálcio e fósforo, isso já foi visto e está muito bem
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
339

documentado na literatura científica. E de fato, a suplementação de vi-


tamina D em grupos de risco específicos tem vários benefícios quanto
à prevenção de quedas e de osteoporose em idosos, por exemplo. Mas
quando se fala nos efeitos da vitamina D fora do osso, o assunto fica
bem mais complicado.
O fato é que vários estudos epidemiológicos mostram uma associa-
ção clara entre baixos níveis de vitamina D e estado de saúde mais pre-
cário, com aumento de incidência de câncer, de doença cardiovascular,
de infecções severas, doenças autoimunes e até mesmo de aumento de
mortalidade pela COVID-19.
Um dos raciocínios que podem ser feitos a partir dessa informação é
que “suplementar vitamina D em toda população seria, então, uma boa
solução, pois aumentando os níveis dela iríamos conseguir evitar vá-
rias enfermidades...”. No entanto, isso não acontece na prática. Os me-
lhores estudos randomizados e metanálises que analisaram a eficácia
da suplementação de vitamina D na possível melhora desses desfechos
extraesqueléticos não mostraram benefício.
Ou seja, suplementar vitamina D não diminui câncer ou prognóstico
de câncer, risco de infecções ou severidade de infecções, e isso serve da
mesma forma para a mortalidade da COVID-19 e prevenção de doenças
autoimunes.
Inclusive, a “função” do coronavírus e baixos níveis de vitamina D é
mais complicada ainda, já que existem importantes fatores de confusão
a serem discutidos. A maior mortalidade da doença está sim associada
a baixos níveis séricos de vitamina D. No entanto, grande parte da po-
pulação vítima da COVID-19 é obesa, e vale lembrar que obesidade é um
fator de risco importante para a deficiência de vitamina D.
Ou seja, resumindo, a vitamina D baixa está sim relacionada a um
estado de saúde mais precário! Mas isso não significa que a suplemen-
tação de vitamina D vai mudar alguma coisa fora do osso.

4. Quando dosar os níveis séricos de vitamina D?

Antes de explicar qualquer aspecto sobre a dosagem de vitamina


D e algumas questões referentes ao screening de hipovitaminose D é
importante ter a seguinte afirmação bem clara: Não é recomendado a
dosagem rotineira dos níveis de vitamina D em indivíduos saudáveis e
sem fatores de risco para a deficiência de vitamina D.
Na seção de metabolismo da vitamina D foi visto que existem em
torno de 3 formas principais de apresentação da vitamina D: colecalci-
ferol (a vitamina D3), a 25OHD (após hidroxilação hepática) e a 1,25OHD
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
340

(forma ativa, após hidroxilação renal). No entanto, quando se pensa em


dosar a vitamina D, a forma que é utilizada é a 25OHD, o calcidiol, pois
é a forma mais abundante no organismo e a que é a melhor avaliadora
do status de vitamina D. No entanto, não há um consenso quanto aos
níveis séricos considerados suficientes de vitamina D.
Até o momento não há fortes evidências demonstrando benefícios
custo-efetivos e até mesmo em termos de melhoria de desfechos clí-
nicos na dosagem rotineira dos níveis de vitamina D na população em
geral. Parece razoável que a dosagem dos níveis de 25OHD seja restrita
a grupos de risco específicos para deficiência da vitamina D (tabela 1).

Tabela 1: Grupos de risco para deficiência de vitamina D.


Raquitismo Pele escura
Osteomalácia Gestantes e lactantes
Osteoporose Idosos com histórico de quedas e fraturas de baixo impacto
Doença renal crônica Obesidade
Insuficiência hepática Doenças granulomatosas
Síndromes disabsortivas: Medicamentos que interfiram no metabolismo da vitamina D:
• Doença celíaca • Anticonvulsivantes
• Doença inflamatória intestinal • Glicocorticoides
• Cirurgia bariátrica • Terapia antirretroviral
• Colestiramina
• Alguns antifúngicos
Hiperparatireoidismo Alguns tipos de linfomas

5. Quais são os níveis séricos ótimos de vitamina D?


Quais níveis séricos podem ser considerados deficientes
e quais os níveis tóxicos?

Existem muitas divergências entre sociedades sobre quais seriam


os valores ótimos de vitamina D para a população em geral. Comumen-
te, os estudos realizados para esse fim são feitos em populações de risco
específicas, a partir de desfechos clínicos como hiperparatireoidismo
secundário, raquitismo, osteomalácia e osteoporose. Pensando nesses
desfechos, populações de risco para deficiência de vitamina D (tabela 1)
devem ter valores de 25OHD acima de 30 ng/mL para prevenir o surgi-
mento dessas enfermidades. No entanto, na população sem risco para a
deficiência de vitamina D, os níveis considerados ótimos seriam acima
de 20 ng/mL a fim de garantir uma adequada saúde óssea.
Um dos grandes questionamentos sobre a vitamina D é a respeito da
interpretação dos seus níveis séricos na população saudável. Afinal, se
grande parte dos estudos sobre os níveis séricos ideais de 25OHD é feita
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
341

em populações de risco para hipovitaminose D e se indicamos não dosar


rotineiramente os níveis de 25OHD em indivíduos saudáveis sem fatores
de risco para deficiência, como vamos interpretar os níveis de 25OHD de
uma pessoa saudável?
O problema iniciou, sem dúvidas, na dosagem sem indicação. No entan-
to, se o resultado do exame vier abaixo de 20 ng/ml por exemplo, podemos
indicar com certeza a reposição de vitamina D nesse indivíduo “saudá-
vel”. Ele iria ter algum desfecho ósseo negativo se mantivesse com esses
baixos níveis de vitamina D por muito tempo? Muitos estudos dizem que
sim. Mas a questão é que indivíduos sem fatores de risco para deficiência
de vitamina D em geral têm uma flutuação dos níveis de 25OHD ao longo
do ano, levando em conta todos os fatores associados na síntese dessa vi-
tamina, como exposição solar e ingestão dietética. Ou seja, ele pode estar
com níveis baixos de vitamina D agora, mas quem garante que no próximo
mês ele não irá “pegar mais sol” ou comer mais “peixes gordurosos” e seus
níveis não aumentarão? Enfim, repor vitamina D nesse paciente em doses
usuais até 2000 UI por dia, provavelmente não traria nenhum malefício
para esse indivíduo, mas se não tivéssemos dosado seus níveis 25OHD
provavelmente ele ficaria bem da mesma forma.

6. Deficiência de vitamina D:

A hipovitaminose D é um problema de saúde pública mundial. A


prevalência de baixos níveis de 25OHD na população tem aumentado
drasticamente. Algumas teorias têm sido sugeridas para explicar esse
aumento, como a baixa exposição solar, uso frequente de protetores so-
lares e aumento das taxas de obesidade na população.

Fisiopatologia:

Basicamente temos duas principais fontes de vitamina D: a síntese


cutânea e a ingestão dietética. Quando não há exposição solar adequa-
da aos raios ultravioletas ou diminuição da ingestão/absorção intesti-
nal de vitamina D pode ser observado um quadro de hipovitaminose D.
Qualquer situação que interfira no metabolismo da vitamina D, como
medicamentos, doença renal crônica, insuficiência hepática e obesida-
de pode também gerar um quadro de hipovitaminose D.

Hiperparatireoidismo secundário:
Bem, já falamos disso no primeiro capítulo deste módulo. Mas va-
mos repetir aqui! Quando há falta de substrato para a 1 alfa-hidroxilase
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
342

renal sintetizar o calcitriol, ou seja, a partir do déficit das vias de produ-


ção da 25OHD, estamos diante de um quadro de deficiência de vitami-
na D. Pelos mesmos mecanismos que regulam a hidroxilação renal da
25OHD – PTH, FGF-23, hipocalcemia – teremos os achados clínicos e
laboratoriais da hipovitaminose D.
Hipocalcemia: Os baixos níveis de vitamina D irão diminuir a absor-
ção intestinal e a reabsorção renal de cálcio e fósforo. A hipocalce-
mia ativa a glândula paratireoide a produzir mais PTH.
PTH: Já foi visto que o paratormônio estimula a conversão renal de
25OHD em 1,25OHD. No momento em que estamos diante de um qua-
dro de deficiência do substrato calcidiol e consequente hipocalcemia,
as paratireoides aumentam a produção de PTH com vistas a estimu-
lar os rins a hidroxilação do restante de 25OHD. Esse quadro é chama-
do de hiperparatireoidismo secundário à deficiência de vitamina D.

Doença Renal Crônica (DRC):


Danos severos no parênquima renal podem levar a deficiência de vi-
tamina D a partir do prejuízo da hidroxilação renal pela 1 alfa-hidroxila-
se. Devemos ficar atentos à hipovitaminose D secundária a DRC quando
temos uma taxa de filtração glomerular abaixo de 30 a 40 ml/min.

Os danos esqueléticos causados pela falência renal crônica são com-


plexos. Além da diminuição da absorção intestinal de cálcio pela redução
da conversão renal de calcitriol, a diminuição do clearance de fosfato irá
quelar o cálcio presente no sangue e elevar os níveis de FGF-23 que, como
visto na seção de metabolismo, irá reduzir ainda mais os níveis de 1,25OHD
e cálcio. O hiperparatireoidismo secundário resultante irá reabsorver ainda
mais cálcio e fostato dos ossos, porém agora com a falência renal, o PTH
perde seu poder fosfatúrico e esse íon irá se acumular no sangue.

Obesidade:
A vitamina D sendo uma molécula lipossolúvel é facilmente “seques-
trada” pelo tecido adiposo. Dessa forma, a obesidade está associada a uma
maior prevalência de deficiência de vitamina D pelo fato de o excesso de
gordura corporal reter a 25OHD, diminuindo a sua biodisponibilidade.
Pelo mesmo raciocínio podemos antever que em pacientes obesos
será necessário maiores doses de colecalciferol para repor os níveis sé-
ricos de vitamina D, devido a esse sequestro do tecido adiposo.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
343

Idosos:
Vários fatores contribuem para a deficiência de vitamina D ser mais
prevalente na população idosa, dentre eles podemos citar:
Síntese cutânea de colecalciferol prejudicada, seja por baixas reser-
vas de 7-dehidrocolesterol, seja por baixa exposição solar.
Perda da função renal, o que pode contribuir para menor hidroxila-
ção renal da vitamina D.
Baixa ingesta de vitamina D.
Aumento da massa gorda.

Grávidas e lactantes:
Durante a gestação, sobretudo nos primeiros trimestres, o feto de-
senvolve a maioria dos seus sistemas e órgãos, entre eles, a matriz e
colágeno para o seu esqueleto. No último trimestre o feto passa a cal-
cificar o esqueleto, o que aumenta a demanda materna de cálcio. Essa
demanda é atendida sobretudo pelo aumento da produção de 1,25OHD
pelos rins da mãe e da placenta. A deficiência de vitamina D materna
está relacionada a alguns desfechos negativos como baixo peso ao nas-
cimento e o aumento de cesarianas.
Já nas lactantes, a mulher necessita de um aumento da eficiência na
absorção de cálcio da dieta, uma vez que necessita garantir adequados
níveis de cálcio no leite. Mais uma vez, a vitamina D tem papel crucial
nesse aumento de demanda de cálcio.
Como podemos observar tanto as gestantes como as lactantes são
populações de risco para hipovitaminose D e precisam de atenção es-
pecial quanto à necessidade de suplementação dessa vitamina.

Síndromes disabsortivas:
No caso das síndromes disabsortivas, como doença celíaca, doença
inflamatória intestinal e cirurgia bariátrica, podemos ter má absorção
intestinal da vitamina D3/D2. Com isso, a fonte dietética de vitamina D
fica prejudicada, podendo levar a um quadro de hipovitaminose D.

Quadro clínico:

A clínica do paciente com hipovitaminose D invariavelmente irá de-


pender da severidade da deficiência da vitamina D. Classicamente, temos
2 quadros clínicos causados pela hipovitaminose D: em crianças, o raqui-
tismo (veja com detalhes no capítulo 26), e em adultos, a osteomalácia.
Os sintomas clínicos da deficiência de vitamina D são inespecíficos,
porém os mais relatados são a fraqueza muscular proximal, letargia e
a famosa “dor óssea”. No entanto, grande parte das vezes os indivíduos
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
344

se surpreendem com baixos níveis de vitamina D na investigação de


outras patologias como hiperparatireoidismo secundário, osteoporose,
hipertensão, doença cardiovascular e até mesmo neoplasias.

É importante lembrar que a vitamina D pode ser considerada um marca-


dor de saúde do indivíduo. Baixos níveis de vitamina D podem ser vistos em
diversas patologias como câncer, infecções severas, doença cardiovascular
e diabetes. Mas é preciso ter cuidado na interpretação desses resultados: em
um paciente que apresente níveis baixos de vitamina D em conjunto com
outras patologias, existe sim a indicação de repor vitamina D. Mas para tra-
tar a deficiência de vitamina D e evitar suas consequências osseometabó-
licas! Ou seja, não há evidências que repor vitamina D reduz os desfechos
extraesqueléticos e nem que a suplementação irá prevenir a ocorrência das
outras doenças. Para desfechos ósseos como osteoporose, osteomalácia, ra-
quitismo, quedas e fraturas em idosos, a conversa é outra. Nessas entidades a
reposição de vitamina D passa ser um fator chave no tratamento da doença.

Diagnóstico e exames complementares:

O diagnóstico da deficiência de vitamina D é feito através da dosa-


gem dos níveis séricos de 25OHD devido a sua maior biodisponibili-
dade. Os níveis de 25OHD a serem considerados como deficientes ou
suficientes dependem da população em estudo. Em caso de uma pessoa
saudável, sem comorbidades ou fatores de risco para hipovitaminose D
(tabela 1), os níveis considerados adequados de vitamina D são acima
de 20 ng/mL. Agora, em populações de risco para a deficiência os níveis
adequados de vitamina D passam a ser acima de 30 ng/mL.
Além de baixos níveis de 25OHD, laboratorialmente pode-se observar
níveis normais ou diminuídos de cálcio e fosfato, baixos níveis uriná-
rios de cálcio. O que é mais interessante é que frequentemente quando
são dosados os níveis de 1,25OHD esses parecem normais, o que reflete
o aumento da atividade da 1 alfa-hidroxilase por estímulo extra do PTH
(o hiperparatireoidismo secundário).

Pontos corte da dosagem de 25OHD para deficiência de vitamina D:


< 30 ng/ml = Grupos de risco (tabela 1)
< 20 ng/ml = População geral
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
345

Tratamento:

O tratamento da hipovitaminose D gira em torno da reposição far-


macológica de vitamina D. O metabólito de escolha para a reposição
depende das causas da deficiência que podem ser divididas em causas
dependentes ou independentes da enzima 1 alfa-hidroxilase. As causas
pré hidroxilação renal, isto é, independentes da 1 alfa-hidroxilase, são as
mais comuns, sendo devido desordens de mal absorção de vitamina D,
seja cutânea ou intestinal, aumento da perda/inativação de vitamina D
ou até diminuição da biodisponibilidade dessa vitamina. Nessas situa-
ções o tratamento da deficiência se dá basicamente com administração
de doses de colecalciferol, a vitamina D3. Nas causas dependentes da 1
alfa-hidroxilase, podemos ressaltar o hipoparatireoidismo ou resistência
ao PTH, raquitismo dependente de vitamina D e doença renal crônica,
nessas situações deve-se administrar um tratamento à base de calcitriol.

Por que em patologias independentes da enzima 1 alfa-hidroxilase o me-


tabólito de escolha é o colecalciferol e em patologias dependentes da enzima
o metabólito é o calcitriol?
Em endocrinologia, a fisiologia comanda tudo. Lembre-se que o calcidiol,
ou 25OHD, é o metabólito da vitamina D formado após a hidroxilação hepáti-
ca do colecalciferol, enquanto o calcitriol, ou 1,25OHD, é o metabólito ativo da
vitamina D formado após a conversão renal do calcidiol pela enzima 1 alfa-hi-
droxilase. Em patologias dependentes da enzima renal, ou seja, naquelas em
que a enzima por algum motivo não está funcionando adequadamente, do que
adianta eu a abastecer de substrato? Nesses casos, se eu repuser colecalciferol,
que naturalmente será convertido em calcidiol pela via hepática, esse não será
transformado em calcitriol pelo rim. Portanto, em patologias dependentes da 1
alfa-hidroxilase eu preciso repor o metabólito final, o calcitriol, já que a via de
metabolização da vitamina D está comprometida. Por outro lado, nas patolo-
gias independentes da 1 alfa-hidroxilase, a enzima está trabalhando bem e as
vias de metabolização estão funcionando, logo é possível realizar a reposição
de vitamina D pela administração de colecalciferol, que torna o processo mais
“natural” e com menor risco de efeitos adversos e intoxicação.

A dosagem utilizada para a reposição de vitamina D é bem variável e


depende muito das condições do indivíduo (idade, peso, comorbidades)
e da severidade da deficiência.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
346

Em geral, a reposição inicial das reservas de vitamina D pode ser


feita a partir de uma dose de ataque de 50000 UI por semana, por 8 se-
manas, seguida de dose diária de manutenção que pode variar muito de
acordo com o perfil do paciente, mas geralmente gira em torno de 800
a 2000 UI por dia ou 14000 UI por semana de colecalciferol. Pacientes
com doenças disabsortivas devem receber doses maiores, assim como
idosos e obesos.

7. Intoxicação por vitamina D:

A intoxicação por vitamina D é uma entidade rara cuja principal


causa é a suplementação inadvertida de colecalciferol que irá culminar
em um quadro de hipercalcemia que pode ser devastador. Os níveis tó-
xicos de vitamina D podem ser atingidos a partir de megadoses de vita-
mina D por dia. Deve-se ter cuidado com uso de fórmulas manipuladas
ou marcas sem controle de qualidade.
Entre os sintomas relacionados destacam-se a náusea, vômito, fra-
queza muscular e alteração do nível de consciência. A hipercalcemia
pode ser grave e prolongada (devido ao estoque de vitamina D no tecido
adiposo). Devido à hipercalcemia, os níveis de PTH estão suprimidos, e
os níveis de 25OHD estão excessivamente elevados. Entretanto, os ní-
veis de 1,25OHD nem sempre estão elevados; frequentemente estão nor-
mais ou até mesmo baixos. Isso ocorre por conta do “downregulation”
devido a diminuição PTH e a elevação dos níveis de 1,25OHD, FGF-23,
cálcio e fosfato. Perceba: embora o calcitriol seja o metabólito ativo que
realiza a maioria das funções orgânicas da vitamina D, a 25OHD e ou-
tros metabólitos em concentrações extremamente altas são suficientes
para levar a um quadro de hipercalcemia.
Dentre os desfechos da intoxicação por vitamina D destacam-se a
nefrolitíase e a nefrocalcinose, que pode levar a danos irreversíveis ao
parênquima renal e falência renal crônica. Além dos rins pode ocorrer
calcificação dos vasos sanguíneos, coração, pulmão e pele.
O tratamento da intoxicação de vitamina D inicia com a retirada da
suplementação de vitamina D, hidratação, redução da ingesta de cálcio
e administração de glicocorticóides (que podem antagonizar a ação da
vitamina D de absorção intestinal de cálcio).
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
347

8. Leitura recomendada:

LIBMAN, H. et al. Should we screen for vitamin D deficiency?: Grand rounds


discussion from Beth Israel deaconess medical center. Annals of Internal
Medicine, v. 165, n. 11, p. 800–807, 2016.

MAEDA, S. S. et al. Recomendações da Sociedade Brasileira de Endocrinologia


e Metabologia (SBEM) para o diagnóstico e tratamento da hipovitaminose D.
Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabologia, v. 58, n. 5, p. 411–433, 2014.

NEED, A. G. et al. Vitamin D metabolites and calcium absorption in severe


vitamin D deficiency. Journal of Bone and Mineral Research, v. 23, n. 11, p.
1859–1863, 2008.

PLUDOWSKI, P. et al. Vitamin D supplementation guidelines. Journal of Steroid


Biochemistry and Molecular Biology, v. 175, n. 2016, p. 125–135, 2018.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
348

Capítulo 25

Osteoporose
Virgínia Vezzosi Fournier
André Luiz Loeser Corazza
Rafael Vaz Machry

1. Introdução:

Vamos começar a entender o conceito de osteoporose. Essa é uma


doença caracterizada por perda de massa óssea associada à fragilida-
de óssea (destruição da microarquitetura do osso), levando a um maior
risco de fraturas. Nesse ponto, é crucial entendermos que a perda de
massa óssea por si só não define a doença: o ponto chave é o risco au-
mentado de fraturas. Esse é justamente o ponto que queremos modificar
quando rastreamos, diagnosticamos e tratamos a osteoporose: prevenir
a ocorrência de fraturas, tendo em vista a grande morbimortalidade as-
sociada. Entender isso será muito importante para as demais etapas.
Não podemos seguir sem relembrar alguns conceitos lá da geriatria!
Você se lembra do que é uma fratura por fragilidade? Uma fratura por
fragilidade, ou fratura de “baixo impacto”, é aquela que ocorre após trau-
ma mínimo, como por exemplo queda da própria altura. São as famo-
sas “fraturas osteoporóticas” que queremos evitar. Os locais clássicos
de fraturas por fragilidade são a coluna (fraturas por compressão, que
geralmente não envolvem trauma algum - pense naquela senhora que
vem perdendo altura ao longo dos anos, ou ficando mais “curvada”), o
colo do fêmur e o segmento distal do rádio (fratura de Colles).

2. Epidemiologia:

Você já sabe que a osteoporose é uma doença da senilidade. Apesar


de, por muitos anos, ser considerada uma condição inevitável da idade
avançada, sabemos hoje, devido aos diversos estudos sobre a condição,
que a osteoporose pode ser evitada e tratada, através das diversas me-
didas farmacológicas e não-farmacológicas. Mesmo assim, o envelhe-
cimento da população e o estilo de vida moderno faz com que a osteo-
porose ainda seja uma doença com incidência crescente na população
mundial, gerando alto impacto socioeconômico, apesar da redução do
risco de fraturas em razão da otimização do tratamento.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
349

Seguindo a tendência de aumento do número de casos de osteoporo-


se, também aumenta a porcentagem de fraturas. A taxa de incidência
de fratura de quadril, por exemplo, duplica a cada 5 anos após os 70 anos
de idade. A morbidade é tanta, que 80% dos pacientes após um ano de
fratura de quadril ficam impossibilitados de realizar pelo menos uma
atividade diária de modo independente. Até aqui, tudo muito simples:
população mais velha = mais perda de massa óssea = mais osteoporose
= mais fraturas = mais idosos acamados, mais morbimortalidade, mais
gastos para o sistema de saúde… ou seja, precisamos saber identificar e
tratar a osteoporose!
Nas mulheres, a menopausa resultante da perda de função ovaria-
na está relacionada com o aumento na perda de massa óssea, razão
pela qual a população feminina pós-menopausa é a principal afetada
pela doença. Pelo mesmo mecanismo da diminuição do estrogênio pós
menopausa, qualquer mulher jovem que cursar com insuficiência ova-
riana por tempo prolongado, seja de causa central ou gonadal, também
está sob risco de osteoporose também. Em breve você entenderá as ra-
zões pelas quais isso ocorre!
Outras populações também estão em risco aumentado para a doen-
ça, como usuários de glicocorticoides e anticonvulsivantes por longos
períodos, indivíduos com síndromes disabsortivas como doença infla-
matória intestinal e doença celíaca, portadores de hiperparatireoidis-
mo e hipertireoidismo.

3. Fisiopatologia:

Esse é o tópico mais importante do capítulo! A partir dele, você en-


tenderá todo o resto, eu garanto. Antes de relembrarmos o metabolis-
mo, lembre-se de um conceito aprendido lá nos primeiros semestres do
Curso de Medicina: a diferença entre osso cortical e trabecular. O osso
cortical é denso, compacto, formado por uma estrutura bem formada e
complexa (o sistema Harvesiano). Esse tipo está presente na face exter-
na dos ossos e compõem a maior parte da massa dos ossos longos. O
osso trabecular (ou osso esponjoso) é diferente. Apresenta microarqui-
tetura formada por um sistema de microtrabéculas, com bastante es-
paço livre entre elas (menos compacto), conferindo menor rigidez. Esse
tipo está presente na parte interna das estruturas ósseas e compõem
a maior parte da estrutura de ossos muito importantes: as vértebras.
Nossas vértebras são compostas quase só por osso esponjoso.
Agora que já entendemos essa diferença, vamos revisar o funciona-
mento do metabolismo ósseo? O osso é um órgão vivo! Está em cons-
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
350

tante mudança e não é feito apenas de matéria mineral. Desde quando


nascemos, nossos ossos iniciam um processo chamado “modelagem”,
que é responsável por dar aos ossos do corpo o formato adequado para a
vida adulta. Juntamente com esse processo, ocorre o aumento da mas-
sa óssea até por volta dos 20 a 25 anos de idade, momento em que a
massa óssea atinge seu pico. A partir de então, um novo processo muito
importante se torna responsável pelo metabolismo ósseo: o remodela-
mento. Esse mecanismo pode ocorrer em qualquer lugar do osso, tanto
no osso cortical e no osso medular, e tem por objetivo:
Recrutar cálcio da matriz mineral óssea para ser usado pelo organismo.
Reparar microtraumas.
Manter a vitalidade do tecido.

O remodelamento ocorre em cinco etapas, vamos entender em deta-


lhes como cada uma delas ocorre a seguir.

Figura 1: As etapas do remodelamento ósseo em função do tempo.


Elaborado pelo autor.

I. Ativação:
O “gatilho” para que o remodelamento ocorra é a exposição da ma-
triz óssea, que pode ocorrer de duas maneiras distintas: por microtrau-
ma na região (que por si só leva à exposição) ou de forma fisiológica,
através da retração das células de revestimento ósseo e degradação
da membrana colágena por colagenases. A exposição da matriz atrai
células precursoras dos osteoclastos da circulação sanguínea. Os pre-
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
351

cursores são recrutados e, então, sofrem diferenciação e se fundem em


células gigantes, multinucleadas, responsáveis pela reabsorção da ma-
triz óssea: os osteoclastos. Esses, por sua vez, se ligam à matriz óssea,
dando início à próxima fase.

II. Reabsorção:
Ligados à matriz, os osteoclastos liberam fatores responsáveis pela
degradação dos componentes da matriz óssea (mineral e orgânica), sen-
do os principais responsáveis os íons H+ e diversos tipos de lisoenzimas.
A matriz mineral é dissolvida e a matriz orgânica é degradada, sendo o
processo auxiliado por macrófagos da região. O resultado é literalmen-
te um buraco microscópico no osso. Você não lembra, mas você já sabe
como se chama esse buraco! No osso cortical (aquele que tem a estrutura
Harvesiana organizada) esse “buraco” nada mais é do que o canal Harve-
siano (lembrou daquela estrutura bonitinha da aula de histologia?), em
formato cilíndrico. No osso trabecular, a ausência dessa estrutura com-
pacta encontrada no osso cortical gera uma cavidade irregular, chama-
da “lacuna de Howship”. Dica importante: você não precisa saber esses
nomes nem pra prova e nem pra vida. A formação dessa cavidade acaba
liberando diversos fatores de crescimento presentes na matriz. Esses fa-
tores são responsáveis pela quimiotaxia e pela ativação dos próximos
protagonistas do remodelamento: os osteoclastos.

III.Reversão:
Ao final da formação da cavidade realizada pelos osteoclastos, o “bu-
raco” já está repleto de novos soldados prontos para continuar o proces-
so. Os pré-osteoblastos são atraídos até o local, e são, então, ativados em
osteoblastos. Com o trabalho terminado, os osteoclastos se desprendem
da superfície óssea, dando espaço para os osteoblastos trabalharem.
Essa fase representa nada mais do que a transição entre reabsorção e
formação da matriz óssea.

IV. Formação:
Os osteoblastos, então, iniciam sua longa jornada de trabalho (a for-
mação completa da matriz pode levar mais de 1 ano, acredita?). A ma-
triz orgânica (que recebe o nome de osteoide), que é formada principal-
mente por fibras colágenas tipo I e proteoglicanos, é a primeira a ser
sintetizada e depositada sobre a cavidade. A matriz mineral, por sua
vez, é composta por sais de cálcio e fósforo. O principal cristal recebe o
nome chique de hidroxiapatita. A deposição da matriz mineral ocorre
em duas etapas, uma “imediatamente” após a deposição de osteoide e
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
352

outra que inicia 30 dias após, levando até mais de 100 dias no osso corti-
cal para a mineralização completa (no osso trabecular, por não ter uma
estrutura tão rígida, o processo é um pouco mais rápido). Essa é a fase
mais demorada do remodelamento.

V. Quiescência:
Osso novo pronto = osso pode descansar. A fase de quiescência nada
mais é do que o osso em descanso após o término do remodelamento.
Depois desse processo, um fator é determinante: a quantidade de osso
reabsorvido tem que ser exatamente igual à quantidade de osso novo
depositado, para que não haja um balanço negativo, certo? Certo! Va-
mos analisar o gráfico (figura 2).

Figura 2: Remodelamento ósseo, a matriz óssea inicial e final.


Fonte: Elaborado pelo autor.

O balanço entre matriz óssea reabsorvida e depositada é igual a 0. Isso


é o que precisamos para manter a massa óssea. Agora veja a linha de
baixo. Aqui, a reabsorção foi maior do que a deposição. Ou seja, temos
um balanço negativo. O processo de remodelamento resultou em perda
de massa óssea. Agora você já entendeu um dos mecanismos que ocorre
na osteoporose! Mas e a destruição da microarquitetura? Lembra do osso
esponjoso, que é formado por micro-trabéculas e não tem aquela estru-
tura bem delimitada? No momento em que há perda de massa óssea nas
trabéculas, também há perda do molde onde a matriz seria depositada.
Isso faz com o que a arquitetura do osso trabecular se perca, agravando a
fragilidade dessa estrutura, como você pode ver na figura abaixo.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
353

E quem comanda o remodelamento?


Dentre muitas outras coisas (o metabolismo ósseo tem uma regula-
ção muito complexa), duas moléculas principais regulam o remodela-
mento: o ligante de RANK (RANK-L) e a osteoprotegina (OPG) (figura 3).
Esses dois fatores são secretados pelos próprios osteoblastos durante o
processo (autorregulação) e por outras células do sistema imunológico
presentes no ambiente. O RANK-L tem esse nome pois ele se liga a um
receptor chamado RANK, presente na superfície dos pré-osteoclastos e
osteoclastos maduros, sendo responsável pela diferenciação, matura-
ção e ativação dos osteoclastos (ou seja, o RANK-L perpetua o processo
de reabsorção da matriz). A OPG, também secretada pelos osteoblastos,
faz um contrabalanço desse processo. Afinal, a reabsorção óssea não
pode continuar indefinidamente. Ela se liga ao RANK-L, impedindo que
este se ligue ao RANK. Dessa forma, os pré-osteoclastos, não recebendo
a sinalização do RANK-L, não sofrem maturação e os osteoclastos ma-
duros entram em apoptose, pois não são ativados.

Figura 3: Na seta 1, o RANK-L se liga ao RANK, sinaliza a maturação dos


pré-osteoclastos e ativa os osteoclastos maduros. Na seta 2, a OPG impede a
ligação do RANK-L, levando as células osteoclásticas a entrarem em apoptose e
cassarem o processo de reabsorção.
Elaborado pelo autor.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
354

Se você entendeu até aqui, agora você está pronto. Prepare-se para um
momento mindblowing da fisiologia.
A expressão das moléculas do RANK-L e da OPG sofre regulação hormo-
nal. Dentre muitos hormônios e fatores que fazem parte dessa regulação, al-
guns são muito importantes: os estrogênios, o paratormônio e os glicocorti-
coides. Os estrogênios atuam aumentando a expressão da osteoprotegina e
reduzindo a expressão do RANK-L, reduzindo a taxa de reabsorção pelos os-
teoclastos. Ou seja: é um hormônio osteoprotetor. Na menopausa, a falência
ovariana leva à queda dos níveis dos estrogênios, e o mecanismo osteoprote-
tor é perdido = aumento da atividade osteoclástica = aumento da reabsorção
= perda de massa óssea. Agora você entendeu com propriedade os principais
fatores de risco da osteoporose: mulheres na pós-menopausa.
O paratormônio (se você não lembra dele, sugiro que vá novamente ao
capítulo 22 sobre hiperparatireoidismo) e os glicocorticoides atuam de for-
ma semelhante entre si: ambos reduzem a expressão de osteoprotegerina e
aumentam a expressão do RANK-L, aumentando a taxa de reabsorção óssea.
Lembrando que o objetivo final do paratormônio é elevar o cálcio sérico, e,
portanto, essa característica faz todo sentido. Assim, tanto o hiperparatireoi-
dismo (por qualquer causa) quanto o hipercortisolismo são fatores de risco
para a osteoporose. Lembra que o processo de reabsorção é muito mais rá-
pido do que o processo de deposição de osso novo? Então, caso o controle
hormonal do remodelamento não esteja balanceado, os osteoblastos sofrem
para conseguir suprir a reabsorção.

Agora você já sabe os fatores de risco para osteoporose! Tudo base-


ado na fisiologia. Observe a tabela 1 sobre os fatores de risco para a os-
teoporose. Você não precisa decorar nenhum deles! O que você precisa
saber é que qualquer coisa que curse com hipogonadismo (fisiológico
ou não - lembrando que a menopausa é um estado de hipogonadismo
fisiológico na mulher), hiperparatireoidismo (primário, secundário ou
terciário) ou hipercortisolismo, é fator de risco para o desenvolvimento
de osteoporose. Chamamos de osteoporose secundária aquela que de-
corre de outras doenças ou do uso de medicamentos. A principal repre-
sentante desse grupo é a osteoporose induzida por glicocorticoides.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
355

Tabela 1: Fatores de risco para osteoporose.


IDADE AVANÇADA
HIPOGONADISMO GASTROINTESTINAIS DROGAS
Menopausa MÁ ABSORÇÃO Corticoides
Falência ovariana precoce Doença celíaca Inibidores da aromatase
Hiperprolactinemia Gastrectomia Tamoxifeno
Hipopituitarismo Bypass Anticonvulsivantes barbitúricos
Síndromes de Turner e Klinefelter Doenças inflamatórias intestinais
Deficiência de vitamina D
Deficiência de cálcio
DOENÇAS ENDÓCRINAS DOENÇAS REUMATOLÓGICAS ESTILO DE VIDA
Hiperparatireoidismo Artrite reumatoide Uso de álcool
Doença de Cushing Espondilite Anquilosante Tabagismo
Síndrome de Cushing Lúpus Eritematoso Sistêmico Imobilização
Diabetes mellitus 1 e 2 Sedentarismo
Hipertireoidismo Baixo peso

A idade avançada é o principal fator de risco, sendo um preditor de


fratura mais forte que a própria redução de massa óssea medida pela
densitometria (como veremos adiante). Lembrando que o conceito
de osteoporose é o aumento do risco de fraturas, e não a redução de
massa óssea por si só.
A deficiência androgênica dos homens com hipogonadismo por
qualquer causa leva a um processo muito semelhante à deficiência
estrogênica nas mulheres (os hormônios têm ações semelhantes).
A deficiência de vitamina D e cálcio levam ao hiperparatireoidismo
secundário compensatório.
As doenças gastrointestinais levam à deficiência de cálcio por má
absorção, e, portanto, ao hiperparatireoidismo secundário (viu como
tudo fica fácil quando a gente entende fisiologia?).
O tamoxifeno e inibidores da aromatase são fatores de risco quando
seu uso ocorre nas mulheres pré-menopausa. Por bloquearem a ação
do estrogênio, “simulam” um período de menopausa.
A maioria das doenças reumatológicas e autoimunes é fator de risco
para osteoporose. O mecanismo não é bem esclarecido;
Atletas têm uma densidade óssea maior do que a população geral, e
a atividade física na infância são determinantes para a massa óssea
na vida adulta (crianças têm maior capacidade de geração óssea do
que os adultos).
Os glicocorticoides aumentam o risco de osteoporose quando em
doses superiores 5 mg de prednisona ou equivalente por 3 meses ou
mais O risco aumenta quanto maior a dose e maior o tempo de uso.
O baixo peso (IMC < 17 kg/m²) é fator de risco pois o aumento da
sobrecarga no osso é um estímulo para formação de nova massa ós-
sea. Osso gosta de impacto e sobrecarga! Mesmo motivo pelo qual os
atletas possuem maior massa óssea.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
356

4. Anamnese:

Aviso prévio: talvez você se decepcione um pouco nos próximos tó-


picos. Depois da explicação mindblowing sobre fisiopatologia da osteo-
porose, o que você precisa saber sobre apresentação clínica da doença
é muito simples: nada. Isso mesmo, nada! A osteoporose é uma doen-
ça assintomática, até o momento em que haja fratura. Nesse caso, os
sintomas são decorrentes da fratura (complicação que queremos evitar
buscando diagnosticar e tratar a doença). Esse caráter assintomático
faz com que muitos pacientes, por não sentirem nada, não acreditem
que possuam a doença ou atribuam sintomas equivocadamente à os-
teoporose.
A fratura mais comum nos pacientes com osteoporose é a fratura
de vértebras por compressão (se você não se lembra o porquê, sugiro
que volte nos tópicos de fisiopatologia). Mesmo quando há fratura de
vértebras, dois terços delas são assintomáticas, e são diagnosticadas
em exames de imagem solicitados por outros motivos. Quando há sin-
tomas, os mais comuns são a dor e diminuição da altura.

5. Exame físico:

No exame físico, o mesmo conceito se aplica. Podemos encontrar


achados específicos de fraturas de fragilidade, especialmente a fratura
de vértebras. Nesse caso, achados comuns são: cifose, alterações do ali-
nhamento da coluna e a perda de altura (quando medida pelo médico e
não relatada pelo paciente). É isso! Fácil, né?

6. Exames complementares:

A principal ferramenta diagnóstica e de rastreio é a densitometria


óssea (DMO). É um exame simples, relativamente barato, e com pouca
radiação. Pode ser feito na coluna lombar, quadril ou rádio distal. A es-
colha do local depende das características do paciente. Por exemplo, não
pediremos DMO no quadril para um paciente com prótese. De forma se-
melhante, uma DMO de coluna lombar em um paciente com artrose de
coluna pode ter um resultado equivocado. Na densitometria, a densidade
óssea é medida em g/cm². Para padronizar o resultado, foram definidos
2 escores baseados em desvios-padrão da normalidade: o escore T e o
escore Z. O escore T compara o paciente com um adulto jovem normal.
O escore Z compara com indivíduos da mesma idade. O escore que usa-
mos para o diagnóstico é o T, sendo os valores de referência:
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
357

T ≥-1: normal.
T entre -1 e -2,5: osteopenia.
T ≤ -2,5: osteoporose.

E qual a finalidade do escore Z? O escore Z serve para duas coisas: 1.


quando muito baixo, é indicativo de osteoporose secundária. Pacientes
com escore Z ≤ -2 merecem investigação complementar para osteoporose
secundária. E 2. para avaliar osteoporose em pacientes jovens e crianças.
Apesar de ser o método mais utilizado, a densitometria tem algumas
limitações. Por ser um método bidimensional, algumas falhas podem
ocorrer. Pessoas muito magras ou obesas podem ter equívocos na es-
timativa. Pacientes com artrose com a presença de osteófitos podem
ter a massa óssea superestimada. Mas a principal limitação está nos
pacientes que estão dentro da faixa de normalidade ou de osteopenia.
Pela maioria dos pacientes se encontrarem nessa faixa, são nesses pa-
cientes que ocorrem a maioria das fraturas. Ou seja, o exame perde a
sensibilidade para avaliar o risco de fraturas. Você sabe por que isso
ocorre! O risco aumentado de fraturas (que, como vimos muitas vezes, é
o definidor da osteoporose), não depende apenas da redução de massa
óssea. Como resolver esse problema se a maioria dos pacientes com
fratura por fragilidade não é considerado como tendo osteoporose pela
densitometria?
Algumas ferramentas vieram para nos auxiliar a resolver essa
questão: são os escores de risco de fraturas. O principal deles é o FRAX
(Fracture Risk Assessment Tool). O FRAX estima o risco de fraturas em
10 anos - fraturas osteoporóticas maiores (quadril, vértebras, úmero e
punho) e fraturas de quadril isoladamente - baseado nos fatores de ris-
co e no valor da densitometria (sendo este facultativo para a realização
do escore). O resultado é em porcentagem de risco em 10 anos. O escore
é validado no Brasil e pode ser acessado gratuitamente na internet, no
site oficial da ferramenta.
Pacientes que recebem o diagnóstico de osteoporose devem reali-
zar exames laboratoriais complementares, incluindo cálcio, vitamina D
(esses exames serão importantes no tratamento, como veremos adian-
te), função renal e da tireoide e hemograma.

7. Diagnóstico:

Como é feito o diagnóstico, então, havendo mais de uma ferramenta


disponível? Juntando todas essas informações, os critérios diagnósti-
cos são os seguintes:
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
358

Densitometria com escore T ≤ -2,5; OU


Fratura por fragilidade prévia; OU
Risco de fratura claramente aumentado.

Mas o que é exatamente um risco de fratura claramente aumentado?


É aí que entra o FRAX! Um método acurado é a utilização do “FRAX ti-
tulado”, recomendado pela Sociedade Brasileira de Reumatologia. Nada
mais é do que um gráfico comparativo, que faz uma proporção entre a
idade do paciente e a probabilidade de fratura calculada pela ferramen-
ta e está disponível online.

Devemos rastrear a osteoporose?


Sim! A osteoporose tem grande impacto socioeconômico, sendo o
rastreamento custoefetivo. As indicações para rastreamento da doença
são as seguintes:
Mulheres > 65 anos e homens > 70 anos na ausência de fatores de risco;
Mulheres mais jovens que já estejam na menopausa na presença de
fatores de risco;
População com alguma doença ou utilizando alguma medicação re-
lacionada com perda de massa óssea.

Essa última indicação torna o rastreamento um pouco subjetivo: temos


muitos pacientes nesse grupo. Mas os principais representantes, que você
precisa lembrar, são usuários crônicos de glicocorticoides (≥ 5 mg de pred-
nisona ou equivalente por 3 ou mais meses). Nos demais, a decisão pelo
rastreamento é individualizada. Juntando todas essas informações, pode-
mos fazer a seguinte abordagem de rastreamento:
Quando há acesso fácil à densitometria, podemos pedir para todos
os pacientes com recomendação de rastreamento. Tendo resultado de
escore T ≤ -2,5, está indicado o tratamento. Caso a DMO indique oste-
openia ou normalidade, calculamos o FRAX com o resultado da DMO,
colocando no gráfico para avaliar a necessidade de intervenção;
Caso não haja acesso fácil ao exame, podemos fazer o rastreamen-
to diretamente com o FRAX, colocando no gráfico para analisar qual
será o passo seguinte: iniciar o tratamento, solicitar a DMO para melhor
avaliação ou sem necessidade de intervenção nenhuma no momento.
O ideal é que, caso o paciente seja diagnosticado somente pelo FRAX,
seja solicitada DMO (sem urgência) que servirá como parâmetro para
avaliação do tratamento.
O intervalo para repetir o rastreamento é controverso, mas as reco-
mendações variam de 2-5 anos.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
359

8. Tratamento:

Feito o diagnóstico, vamos direto dar uma medicação pro nosso pa-
ciente, certo? Não! Antes de qualquer coisa, não podemos esquecer do
tratamento não farmacológico! Essa parte do tratamento é com frequ-
ência negligenciada pelos profissionais e pacientes, apesar da sua im-
portância. O incentivo à atividade física é uma das principais medidas,
já que a prática está relacionada com o aumento da massa óssea (lem-
bra que o osso gosta de carga e impacto?). Deve ser preconizada a reali-
zação de pelo menos 150 minutos por semana da atividade que for mais
prazerosa para o paciente, visando a manutenção no longo prazo. Não
só em relação à osteoporose, mas o abandono do etilismo e tabagismo
também merece atenção especial. A ingestão de quantidade adequada
de calorias e nutrientes deve ser incentivada, especialmente o cálcio -
alerta de polêmica nesse tópico, vamos entender melhor.

Existe papel na suplementação de cálcio e vitamina D?


Sabemos da importância deles no metabolismo ósseo e na fisiopa-
tologia da osteoporose. Níveis adequados de cálcio e vitamina D são
essenciais para o tratamento. A ingesta de cálcio diária ideal para um
adulto é de 1200 a 1500 mg por dia. Trazendo esse número para uma for-
ma mais palpável: um copo de leite tem aproximadamente 250 mg de
cálcio. Pouco cálcio é ingerido por outros alimentos além dos laticínios,
ou seja: é necessária uma ingesta de grande quantidade de laticínios
para atingir a quantidade ideal. Então precisamos repor cálcio em todos
os pacientes? Não! Caso a ingesta diária esteja adequada e os níveis de
cálcio dentro da normalidade, não há necessidade de suplementação.
Caso seja necessário suplementar cálcio, sugere-se o uso de carbonato
de cálcio ou citrato de cálcio. O primeiro tem disponibilidade de 40% da
dose ingerida, enquanto o segundo, em torno de 20 a 25%. Recomen-
da-se tomar longe das refeições, com dose fracionada ao longo do dia,
para melhor absorção.
Em relação à vitamina D, o que vai guiar a necessidade ou não de
reposição é o exame laboratorial. Apesar das muitas controvérsias so-
bre qual o limite da normalidade, pacientes osteoporóticos que se reve-
lam deficientes em vitamina D pela dosagem sanguínea devem receber
reposição. Caso contrário, não há necessidade. Resumindo: diferente-
mente do senso comum, não são todos os pacientes com osteoporose
que precisam da suplementação desses nutrientes. A recomendação
é que eles estejam em níveis adequados, independente se for pela ali-
mentação e hábitos usuais ou com suplementação.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
360

Tratamento farmacológico:
Além da abordagem não farmacológica, todos os pacientes com
osteoporose devem receber tratamento farmacológico. A primeira li-
nha de tratamento são os bisfosfonatos (BFs), medicações compro-
vadamente eficazes em reduzir o risco de fraturas em diversos sítios
(quadril, vértebras e outras). Eles funcionam como inibidores da ação
osteoclástica, induzindo a apoptose dessas células. Existem vários re-
presentantes dessa classe. O alendronato está disponível no SUS e tem
o benefício do uso 1x/semana, posologia mais confortável para o pa-
ciente. Os principais problemas dos bisfosfonatos estão relacionados
à intolerância gastroesofágica, que acarreta regras para o uso desses
medicamentos, com o risco de estenose de esôfago caso não sejam se-
guidas. Os BFs disponíveis via oral devem ser tomados em jejum, com
grande quantidade de água, e os pacientes não podem se deitar por 30
minutos após a ingesta. Efeito adverso raro (mas que seguidamente é
cobrado em provas de residência) é a osteonecrose de mandíbula. O uso
dos BFs é contraindicado em pacientes com TFG < 30 ml/min.

Tabela 2: Principais fármacos usados no tratamento da osteoporose, posologia e


via de administração.
Medicamento Dose Via
Alendronato 10 mg/dia ou 70 mg 1x/semana Oral
Risedronato 5 mg/dia, 35 mg 1x/semana ou 150 mg 1x/mês Oral
Ácido Zoledrônico 5 mg 1x/ano Intravenoso
Denosumab 60 mg 2x/ano Subcutâneo
Teriparatida 20 mcg/dia Subcutâneo

Em caso de intolerância ou CI aos BFs, a alternativa disponível que


tem se mostrado relevante no tratamento da osteoporose é o denozu-
mabe, um anticorpo monoclonal contra o RANK-L. O medicamento é
realizado em forma de injeção semestral, com pouco efeitos adversos, e
pode ser usado nos pacientes com doença renal crônica, diferente dos
BFs. Muito conveniente, né? Entretanto, o denozumabe tem um incon-
veniente importante: o preço.
Outros tratamentos menos utilizados com antirreabsortivos (que
não serão explorados em detalhes aqui, melhor deixá-los para o espe-
cialista), incluem os estrogênios ou moduladores de seus receptores,
calcitonina. Há também agentes anabólicos como o romosozumab (um
outro anticorpo monoclonal) e a teriparatida, um análogo do PTH que,
quando administrado de forma intermitente, promove a formação de
massa óssea, mas só pode ser usada em no máximo dois anos.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
361

Até quando mantemos o tratamento? O tratamento para osteoporose


não deve ser feito ad eternum, devendo-se manter o tratamento por 3
a 5 anos, dependendo da resposta do paciente e de qual medicamento
foi usando, podendo se estender por mais 3 a 5 anos, se necessário. A
resposta ao tratamento deve ser avaliada com DMO, não existindo um
intervalo padronizado para sua realização, mas de 2 a 3 anos após início
do tratamento é um tempo razoável.

9. Prognóstico:

A osteoporose tem um caráter crônico. Apesar da redução do risco


de fraturas com o tratamento, muitos dos fatores que levam à osteo-
porose não podem ser revertidos (menopausa, doenças reumatológi-
cas). Por outro lado, alguns fatores de risco são evitáveis ou reversíveis
(tabagismo, síndrome de Cushing por uso de glicocorticoides). Apesar
desse caráter, após a interrupção do fator de risco (caso haja osteopo-
rose) o que ocorre é a impedição de perda de mais massa óssea, e não a
recuperação total da massa óssea já perdida.

10. Tabela de resumo:

O que é a osteoporose? Doença caracterizada por aumento do risco de fraturas, em função


da redução da massa óssea e da destruição da microarquitetura.
Como acontece a osteoporose? Ocorre um balanço negativo entre reabsorção e deposição de matriz
óssea, por desregulação hormonal.
Quais são os fatores de risco? Qualquer coisa que leve à um aumento de hormônios que aumentam
a reabsorção (paratormônio e corticoides) ou redução de hormônios
osteoprotetores (estrogênios e androgênios).
Quais são as ferramentas para o Densitometria e escore FRAX
diagnóstico?
Quais os critérios diagnósticos? Escore Z < -2,5
Fratura por fragilidade prévia
Risco de fraturas claramente elevado (FRAX ALTO)
Quem deve ser rastreado? Mulheres com mais de 65 anos e Homens com mais de 70 anos
na ausência de FR; Mulheres na menopausa na presença de FR;
Pacientes com condições ou em uso de medicamentos associados
com aumento no risco de fraturas (uso crônico de glicocorticoides)
Como é o tratamento? Incentivo à atividade física, cessação de fatores de risco
modificáveis e tratamento farmacológico para todos (primeira linha:
bisfosfonatos).
Quais as consequências do Lembrar dos EA gastrointestinais e das orientações para uso dos
tratamento farmacológico? bisfosfonatos. Risco de EA raro de osteonecrose de mandíbula com
os BFs.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
362

11. Leitura recomendada:

HOWE, Tracey E; SHEA, Beverley; DAWSON, Lesley J; et al. Exercise for


preventing and treating osteoporosis in postmenopausal women. Cochrane
Database of Systematic Reviews, 2011. Disponível em: https://doi.wiley.
com/10.1002/14651858.CD000333.pub2

MERLIJN, T.; SWART, K.M.A.; VAN DER HORST, H.E.; et al. Fracture prevention
by screening for high fracture risk: a systematic review and meta-analysis.
Osteoporosis International, v. 31, n. 2, p. 251–257, 2020.

RADOMINSKI, Sebastião Cezar; BERNARDO, Wanderley; PAULA, Ana Patrícia


de; et al. Diretrizes brasileiras para o diagnóstico e tratamento da osteoporose
em mulheres na pós-menopausa. Revista Brasileira de Reumatologia, v. 57, p.
452–466, 2017.

SHOBACK, Dolores; ROSEN, Clifford J; BLACK, Dennis M; et al. Pharmacological


Management of Osteoporosis in Postmenopausal Women: An Endocrine
Society Guideline Update. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism,
v. 105, n. 3, p. 587–594, 2020.

THE NATIONAL OSTEOPOROSIS GUIDELINE GROUP (NOGG); COMPSTON, J.;


COOPER, A.; et al. UK clinical guideline for the prevention and treatment of
osteoporosis. Archives of Osteoporosis, v. 12, n. 1, p. 43, 2017.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
363

Capítulo 26

Raquitismo
Samira Mohamad Bjaige Collins
Mizaéli da Silva Rodrigues
André Luiz Loeser Corazza
Iuri Martin Goemann

1. Introdução:

Depois de ler os capítulos anteriores, você já deve estar “craque” em


metabolismo ósseo. Entender o osso como um tecido vivo faz toda a
diferença! Neste capítulo, falaremos de uma condição infrequente. Mas
seu conhecimento é essencial frente aos danos a longo prazo se não
percebida de forma precoce.
Antes de entrarmos no raquitismo, é fundamental lembrarmos a di-
ferença entre raquitismo e osteomalácia. Quando pensamos em raqui-
tismo, temos em mente uma criança em fase de crescimento, ou seja,
o defeito da mineralização óssea está na placa de crescimento, assim
como na disfunção arquitetônica dessa estrutura. Por outro lado, a os-
teomalácia refere-se à uma mineralização prejudicada da matriz óssea.
O raquitismo e a osteomalácia geralmente ocorrem juntos, contanto que
as epífises de crescimento estejam abertas, caso contrário, ocorrerá so-
mente a osteomalácia.
O raquitismo é uma doença que ocorre durante a fase de crescimen-
to do indivíduo e sua principal causa é a deficiência da vitamina D. É ca-
racterizada pela redução da mineralização óssea da placa epifisária de
crescimento, levando ao acúmulo de tecido osteoide (tecido sem matriz
mineralizada). Devido à redução da mineralização, os ossos poderão
apresentar uma consistência diminuída, com a parada do crescimen-
to nas cartilagens de conjugação e poderão apresentar deformidades
nos ossos longos. A diminuição da mineralização óssea ocorre princi-
palmente por falhas nos mecanismos que controlam as concentrações
de fósforo e cálcio no osso. A partir da análise desses dois elementos,
observamos duas classificações: o raquitismo hipocalcêmico (especial-
mente por deficiência da vitamina D) e o raquitismo hipofosfatêmico.

A mineralização óssea ocorre pela deposição de cristais de hidroxiapatita.


UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
364

Uma característica interessante do raquitismo é que as deformida-


des ósseas mais frequentemente observadas são encontradas nos os-
sos longos. Isso decorre pelo fato que os ossos longos, em geral, são
submetidos a maior carga e impacto, ficando mais suscetíveis às defor-
midades. As deformidades clássicas são o “geno varo” e o “geno valgo”.
O raquitismo possui uma peculiaridade que são as pseudofraturas,
caracterizadas por rarefações ósseas lineares e localizadas mais fre-
quentemente nas costelas, pelve, escápulas e tíbia. As pseudofraturas
são caracterizadas pela diminuição da densidade óssea, alargamen-
to das epífises de crescimento, erosões subperiosteais e linhas finas.
Quanto menor a idade da criança essas deformidades tendem a ser
mais relevantes clinicamente pois apresentam alargamento das sutu-
ras cranianas, bossa frontal, achatamento do crânio e rosário raquítico.
Essas deformidades podem ser explicadas pelo fato de o raquitismo au-
mentar a elasticidade do osso, por isso, nesses pacientes os ossos que
recebem mais carga tendem a ficar mais deformados. No crânio podem
aparecer deformidades nos occipitais e zonas de descalcificação em
outras áreas. O comprometimento das articulações condroesternais re-
sulta em protrusão do esterno (tórax em quilha) e formação do “rosário
raquítico” devido ao aumento de volume dessas ao longo do esterno.

2. Fisiopatologia:

Para entender o raquitismo é fundamental o entendimento do meta-


bolismo da vitamina D. Para isso sugerimos que volte ao capítulo 24 e
revise esse tópico explicado lá com detalhes.
Em geral, em um quadro de deficiência de vitamina D, outros meta-
bólitos envolvidos no metabolismo desta vitamina sofrem alterações,
tanto por feedback negativo quanto positivo. É o caso do PTH, que por
feedback negativo a partir da hipocalcemia irá aumentar seus níveis
séricos, gerando um quadro de hiperparatireoidismo secundário à hipo-
vitaminose D, cursando com aumento da reabsorção óssea e hiperfos-
fatúria. Como consequência, teremos falha da mineralização normal da
cartilagem de crescimento no nível da camada de calcificação provisória.

Raquitismo hipofosfatêmico vs raquitismo hipocalcêmico:

A causa mais comum de raquitismo calcipênico é a nutricional, a


qual poderá ser resultado tanto de uma ingestão diminuída, como por
uma síndrome disabsortiva ou aumento da excreção renal de cálcio. Por
conta da hipocalcemia resultante pode ser observado um aumento com-
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
365

pensatório do PTH sérico, podendo levar a uma diminuição dos níveis


de fósforo. Além da causa nutricional, o raquitismo hipocalcêmico pode
ocorrer por níveis séricos de 1,25(OH) baixos por um defeito na enzima
1-alfa-hidroxilase (anteriormente chamada de raquitismo dependente de
vitamina D tipo I) ou por uma resistência hereditária a vitamina D cau-
sado por uma variante do gene que codifica o receptor da vitamina D (an-
teriormente chamado de raquitismo dependente de vitamina D tipo II).
A respeito do raquitismo fosfopênico, sabemos que a causa renal é
mais comum, que ocorre a partir de causa isolada ou por um distúrbio
tubular renal, como na Síndrome de Fanconi. A causa mais comum de
fosfatúria isolada é um distúrbio hereditário causado por variantes na
endopeptidase reguladora de fosfato. Laboratorialmente, o raquitismo
hipofosfatêmico apresenta, além de níveis baixos de fósforo, níveis de
PTH normais ou até mesmo moderadamente elevados.

3. Anamnese:

O que você acha de simularmos uma anamnese de um caso clínico


para exemplificar melhor?
Identificação: M.D., 1 ano e 7 meses, branca, feminino, nascida e resi-
dente de Porto Alegre.
Queixa principal: “minha filha tem os ossos tortos”.
História da doença atual (HDA): lactente, 1 ano e 7 meses, acompa-
nhada da mãe, comparece a consulta pediátrica. Mãe se queixa que
a filha está com baixa estatura e possui tortuosidades ósseas, essas
observações iniciaram há seis meses, de caráter progressivo, até que
há 20 dias a mãe observou uma tentativa dos primeiros passos a
qual não foram efetivas.
A partir de agora, como você prosseguiria a anamnese?
Devemos estar atentos aos achados da HDA e obter um pensamento
clínico crítico. Itens que devem ser interrogados:
Questionar a mãe sobre a base alimentar de M.D. e casos similares
na família, a fim de tentar delimitar uma causa genética ou nutricio-
nal para a hipótese diagnóstica de raquitismo.
Perguntar sobre a realização de exames laboratoriais para uma pos-
sível análise dos níveis séricos de PTH.
Avaliar com maior foco as tortuosidades ósseas relatadas pela mãe,
questionando sobre o surgimento deste arqueamento dos membros
inferiores, pois a perda renal de fosfato pode estar clinicamente apa-
rente quando a criança começa a andar, mesmo a fosfatúria estando
presente desde o nascimento.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
366

Ao questionar a base alimentar atual da criança também deve-se


atentar ao período de aleitamento materno exclusivo ou uso de fór-
mula, pois poderá refletir em um baixo teor de fosfato e cálcio que
poderá acarretar baixa estatura.
Além disso, o raquitismo pode levar a fraqueza muscular, e nos ca-
sos de hipocalcemia pode ocasionar tetania, laringoespasmo e con-
vulsões, então falar sobre esses sinais e sintomas é fundamental.
Atentar também para o desenvolvimento dentário, manifestando-se
com atraso na erupção, na hipoplasia do esmalte e em cáries precoces.

4. Exame físico:

No exame físico, é fundamental que o local da realização esteja bem


iluminado e que possa haver a exposição das partes examinadas. Ade-
mais, é necessário que cada segmento seja analisado de maneira ho-
móloga, com fim de comparação.
Os achados da inspeção estática incluem encurtamento ósseo, geno
varo (figura 1), geno valgo, rosário raquítico, tórax em sino, fronte olím-
pica (figura 2) e déficit de crescimento; já na inspeção dinâmica pode-se
observar alterações em marcha, postura e crepitação óssea; além disso,
na inspeção dinâmica é de suma importância avaliar a mobilidade dos
membros. Entre os achados da palpação, pode-se encontrar consistência
óssea alterada, dor, malformações, suturas amplas, fraturas e craniotabes.

Figura 1: geno varo em paciente de 9 anos.


Retirado de: Botz, B., 2020. Genu varum | Radiology Reference Article | Radiopaedia.org. Disponível
em: https://radiopaedia.org/articles/genu-varum
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
367

Suturas amplas

Fronte olímpica Craniotabes

Tórax em sino e rosário raquitico

Deformidades em membros inferiores

Figura 2: possíveis achados do exame físico.


Adaptado de: The Monitor, Volume 32, Issue 1 Summer 2013 – The ABC’s of Pediatric Laboratory
Medicine – R is for Rickets. Disponível em: https://www.aacc.org/-/media/Files/Divisions/
Pediatric-and-Maternal-and-Fetal/PMF_V31_No1_2013.pdf

Lembre-se que as avaliações clínicas citadas na tabela acima deve-


rão ser realizadas com o paciente em posição: de pé, sentado e, por fim,
em decúbito dorsal.
Como descrever os achados do exame físico?
Você deverá caracterizar a forma, densidade, tamanho, localização
e possível relação com tecidos moles adjacentes. Por exemplo: “consis-
tência óssea diminuída em diáfise femoral bilateral associada a geno
varo, sem alterações em tecidos moles adjacentes à palpação”.

O geno varo pode ser fisiológico no desenvolvimento de crianças de 0 a 18


anos, bem como o geno valgo em crianças de 3 a 5 anos, conforme a figura 3.

Distância intercondilar Distância intermaleolar

Figura 3: Em (A) geno varo fisiológico: 0 a 18 meses e em (B) geno valgo fisiológico: 3 a 5 anos.
Adaptado de: SCHÜNKE, M. Prometheus, atlas de anatomia: anatomia geral e aparelho locomotor.
2ª Edição. Guanabara Koogan. Rio de Janeiro, 2013.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
368

5. Exames complementares:

Os exames complementares são utilizados para tornar a avaliação


do paciente mais precisa. No entanto, para um diagnóstico, tratamento
e prognóstico corretos é imprescindível que você associe os resultados
dos exames complementares com os dados obtidos na história clínica
do paciente e do exame físico.
Radiografia: nesse exame de imagem é importante que você obser-
ve o aspecto do modelamento ósseo. Essa característica de contorno
pode evidenciar as diversas distrofias ósseas observadas no raquitis-
mo. O sinal radiológico de destaque no diagnóstico de raquitismo é o
alargamento das cartilagens de crescimento devido à falta de depósito
de cálcio na zona de calcificação provisória. Tal fator corrobora para o
alargamento da epífise nas crianças acometidas pelo raquitismo.
Densitometria Óssea: você poderá solicitar esse exame com intuito
de quantificar a massa óssea do paciente, geralmente diminuída em ca-
sos de raquitismo devido à falta de mineralização.
Ressonância magnética: raramente solicitado, mas esse exame de
imagem proporciona contraste entre camada cortical e medular óssea,
portanto, é utilizado para que você consiga avaliar casos de suspeita de
fraturas ósseas.
Exames laboratoriais: a partir dos resultados você conseguirá dis-
tinguir os tipos de raquitismo e até mesmo realizar o diagnóstico di-
ferencial. Poderão ser solicitados as dosagens de paratormônio (PTH),
fósforo sérico, cálcio sérico, 25-OH-vitamina D, creatinina, enzimas he-
páticas e taxa de reabsorção tubular de fósforo (TRP).

6. Diagnóstico:

Para um diagnóstico correto é fundamental questionarmos o pa-


ciente acerca de seus hábitos alimentares como a ingestão de cálcio
e vitamina D, além da exposição solar e o uso de medicamentos que
possam alterar o metabolismo ósseo.

Diagnóstico clínico:
Baixa estatura.
Diminuição da velocidade de crescimento.
Deformidades esqueléticas (principalmente em membros inferiores
devido à pressão em crianças deambulantes).
Atraso no fechamento das fontanelas.
Craniotabes.
Rosário raquítico.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
369

Em casos de raquitismo hipocalcêmico, além das alterações supra-


citadas podemos observar também:
Hipoplasia do esmalte dentário.
Convulsões neonatais.
Diminuição do tônus muscular.
Aumento de infecções.

No raquitismo hipofosfatêmico:
Abscesso dentário.
Alopecia, comum em pacientes com raquitismo dependente de vita-
mina D tipo II.

Diagnóstico laboratorial:
Você percebe sinais de raquitismo em seu paciente, qual o próximo
passo?
Inicialmente, será necessário solicitar exames laboratoriais para
dosagem de PTH, concentrações séricas de fósforo e cálcio, com o ob-
jetivo de determinar a classificação inicial de raquitismo. A partir dos
resultados, você deverá interpretar o tipo de raquitismo: calcipênico ou
fosfopênico e solicitar exames laboratoriais direcionados. Além disso,
é necessário analisar a dosagem da fosfatase alcalina sérica - geral-
mente encontra-se muito acima da referência para a idade – a fim de
acompanhar a evolução do raquitismo.

Tabela 1: classificações de raquitismo e suas respectivas alterações laboratoriais.


Calcipênico Fosfopênico
Nutricional Deficiência Resistência Defeitos Distúrbios Raquitismo Raquitismo
de 1-alfa- hereditária à secundários tubulares renais hipofosfatêmico hereditário
hidroxilase ou vitamina D ou no ligado ao X hipofosfatêmico
Raquitismo Raquitismo metabolismo com hipercalciúria
dependente dependente da vitamina D
de vitamina D de vitamina D
tipo I tipo II
PTH elevado PTH elevado PTH elevado PTH elevado PTH normal ou PTH normal ou PTH normal ou
elevado elevado elevado
Fósforo sérico Fósforo sérico Fósforo sérico Fósforo Fósforo sérico Fósforo sérico Fósforo sérico
baixo baixo baixo sérico baixo baixo baixo baixo
25-OH- 25-OH- 25-OH- Excreção de Excreção de Excreção de cálcio
vitamina D vitamina D vitamina D fósforo elevada fósforo elevada elevada
tipicamente normal normal
baixa
Atividade 1,25(OH)2D Cálcio sérico Atividade 1,25(OH)2D
enzimática elevado normal enzimática Elevado
1-alfa- 1-alfa-
hidroxilase hidroxilase
diminuída diminuída
1,25(OH)2D Glicosúria, Cálcio sérico Cálcio sérico
baixo proteinúria e normal normal
acidose urinária

UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
370

Diagnóstico diferencial:
O diagnóstico diferencial pesquisa as possíveis causas do raquitis-
mo ou patologias não relacionadas que tenham sintomatologia e acha-
dos à inspeção similares.

Displasias esqueléticas: também podem causar arqueamento de si-


métrico bilateral das pernas, achado clássico na inspeção em casos
de raquitismo. Para realizar o diagnóstico diferencial, é importante
observar que em exames laboratoriais as concentrações de fósforo e
PTH geralmente são normais.
Doença de Blount: é uma patologia que advém da interrupção do
crescimento normal da cartilagem no aspecto medial da tíbia. Com
isso, pode-se observar a deformidade patológica de joelho em varo.
Com intuito de diferenciá-la do raquitismo, pode-se observar acha-
dos radiográficos distintos e valores inalterados dos exames séricos
laboratoriais.
Doença hepática: a elevação da atividade da fosfatase alcalina sé-
rica é observada no raquitismo, mas também pode ser causada por
doença hepática. Para diferenciação, a possibilidade de doença he-
pática pode ser avaliada com a mensuração de enzimas hepáticas:
alanina aminotransferase sérica (ALT), aspartato aminotransferase
(AST) e gama-glutamil transpeptidase (GGT).
Hiperfosfatasemia transitória: é uma condição que surge após uma
doença infecciosa leve e que regride de maneira natural após alguns
meses. O diagnóstico diferencial pode mostrar elevações isoladas de
fosfatase alcalina sérica, associadas a enzimas hepáticas normais.
Nessa condição, nenhuma evidência radiográfica de raquitismo por
hiperfosfatasemia transitória na primeira infância é observada;
Hipofosfatasia: é uma doença genética rara relacionada à atividade
enzimática da fosfatase alcalina e é, assim como o raquitismo, ca-
racterizada pelo processo de desmineralização óssea. Para realizar
o diagnóstico diferencial, observa-se a atividade da fosfatase alcali-
na sérica muito baixa;
Hipoparatireoidismo primário: o hipoparatireoidismo primário cau-
sa hipocalcemia acentuada. No entanto, geralmente não está asso-
ciado ao raquitismo. Sendo assim, para avaliação, observa-se baixo
nível de fósforo sérico e/ou PTH, que podem desempenhar papéis na
mediação da lesão na placa de crescimento.
Insuficiência renal: a disfunção renal é uma causa importante de os-
teodistrofia renal, que pode incluir o raquitismo. Em casos de suspeita
de raquitismo renal, a função deve ser avaliada mensurando-se a cre-
atinina sérica. A doença óssea renal ocorre por diversas razões, in-
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
371

cluindo redução da formação de 1,25-dihidroxivitamina D (1,25[OH]


D), acidose metabólica, administração de alumínio e hiperparati-
reoidismo secundário.

Em resumo:
Os exames laboratoriais que devem ser solicitados para excluir a hi-
pótese de raquitismo por doença renal ou hepática são creatinina e
enzimas hepáticas.
O TRP é útil para o diagnóstico das formas de raquitismo secundá-
rias à perda renal de fósforo.

Taxa de Reabsorção Tubular de Fósforo (TRP)=(1-Fração de Excreção de Fósforo)×100

Na qual,
Fração de Excreção de Fósforo=(Concentração de Fósforo Urinário×Con-
centração de Creatinina Plasmática)/(Concentração de Fósforo Plasmático
×Concentração de Creatinina Urinária)

Se TRP > 85%, fosfatúria.


Diagnóstico histopatológico e genético:


O diagnóstico histopatológico pode ser usado como exame padrão-
-ouro para quadros de raquitismo. Essa análise é feita com marcação
pelo antibiótico fluorescente tetraciclina. A partir da observação da
distância entre duas bandas de tetraciclina – depositada em porções
de mineralização óssea – pode-se estimar a taxa de crescimento ósseo
do paciente. Entretanto, essa forma de diagnóstico tem sido substituída
cada vez mais pela análise genética na busca de variantes patogênicas
associadas aos diferentes tipos de raquitismo.

7. Tratamento:

Os fármacos indicados para tratamento de quadros de raquitismo


são: vitamina D, calcitriol, preparações de cálcio e preparações de fós-
foro. É importante lembrar que doses e concentrações variam de acordo
com recomendação atual, características fisiológicas e quadro clínico-
-laboratorial do paciente.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
372

Tabela 2: fármacos recomendados de acordo com tipo de raquitismo.


Suplementação Calcitriol Preparações de Cálcio Preparações de Fósforo
Vitamina D + Cálcio
Raquitismo dependente Raquitismo dependente Raquitismo secundário Distúrbios tubulares
de vitamina D tipo I de vitamina D tipo I à deficiência de cálcio renais
Nutricional Raquitismo dependente Raquitismo
de vitamina D do tipo II hipofosfatêmico ligado
ao X
Raquitismo
hipofosfatêmico
secundário à perda
tubular de fósforo

Existe um período pré-estabelecido para duração do tratamento? Não!


Em casos de raquitismo secundário à deficiência de vitamina D, a suplemen-
tação dessa vitamina deverá ser mantida até a normalização das alterações
metabólicas e sintomatológicas do paciente. Após o fim das doses para re-
posição da deficiência da vitamina D, são necessárias apenas doses de ma-
nutenção. Quando se trata de pacientes em uso de calcitriol, esses deverão
seguir em tratamento até o término do crescimento ósseo da criança. Mesmo
após fim do tratamento e sintomatologia, pacientes com histórico de raqui-
tismo devem realizar acompanhamento médico anualmente. Muitas vezes,
a depender da etiologia do quadro, o tratamento deve ser realizado por tempo
indeterminado.

8. Prognóstico:

Em casos de raquitismo secundário à deficiência de vitamina D tem-se


um bom prognóstico, pois espera-se que haja melhora dos sintomas e das
alterações no metabolismo ósseo com o tratamento adequado. Por outro
lado, o prognóstico das formas hipofosfatêmicas de raquitismo não é tão
favorável em comparação às demais, visto que apesar de reduzir os níveis
séricos de fosfatase alcalina, o tratamento não resulta em normalização
dos níveis de fósforo séricos ou da reabsorção tubular de fosfato. Sendo
assim, o tratamento não é capaz de restaurar plenamente a taxa de cresci-
mento normal do paciente.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
373

Tabela de resumo:

Uma doença que ocorre durante a fase de


crescimento do indivíduo e sua principal causa é
O que é raquitismo? a deficiência da vitamina D, é caracterizada pela
redução da mineração óssea da placa epifisária de
crescimento.
A forma mais abundante da vitamina D (25OHD) é
convertida em 1,25-dihidroxivitamina D regulada
pelo PTH e mantém os níveis de cálcio sérico,
na absorção de cálcio e fósforo. De forma que
se a calcemia for reduzida teremos um aumento
Como ocorre o raquitismo? na secreção de PTH que estimulará a formação
de 1,25 dihidroxivitamina D o que favorece a
hipofosfatemia. Como consequência, teremos
falha da mineralização normal da cartilagem de
crescimento no nível da camada de calcificação
provisória.
Hipocalcemia: hiperexcitabilidade neuromuscular,
recusa alimentar e prejuízo no crescimento.
Hipofosfatemia: deficiência na produção de ATP,
dor muscular e hipotonia.
Doenças genéticas?
Como conduzir o pensamento clínico? Histórico familiar?
Base alimentar?
Uso de medicamentos?
Quando os sintomas começaram?
O paciente sente dor? se sim, classificar a dor.
Alterações no desenvolvimento?
Encurtamento ósseo, alterações na coluna
Quais são os achados de destaque no exame físico vertebral, geno varo (fisiológico 0-18 meses), geno
em quadros de raquitismo? valgo (fisiológico 3-5 anos), rosário raquítico,
déficit de crescimento e craniotabes.
Os sinais radiológicos em destaque no diagnóstico
Exames complementares: quais são os sinais
de raquitismo são o alargamento das cartilagens
radiológicos principais?
de crescimento e o alargamento das físis.
Avaliação histopatológica! Nesse exame podem
ser observadas: alterações na placa epifisária de
crescimento, calcificação diminuída ou ausente,
Qual é o exame padrão-ouro no que diz respeito ao
vascularização irregular com presença de canais
diagnóstico de raquitismo?
defeituosos e, por fim, a camada esponjosa
das metáfises com barras de cartilagem não
calcificadas.
Quais são os quatro fármacos utilizados no Vitamina D, calcitriol, preparações de cálcio e
tratamento dos diversos tipos de raquitismo? preparações de fósforo.
Não! O prognóstico das formas hipofosfatêmicas
Os prognósticos são os mesmos nas diferentes de raquitismo não é tão favorável quando
classificações de raquitismo? comparado às formas de raquitismo secundárias à
deficiência de vitamina D.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
374

10. Leitura recomendada:

BIANCO, S. et al. Raquitismo: uma visão ortopédica*. Disponível em: https://cdn.


publisher.gn1.link/rbo.org.br/pdf/29-11/1994_novdez_51.pdf

de Menezes Filho H, de Castro LC, Damiani D. Hypophosphatemic rickets and


osteomalacia. Arq Bras Endocrinol Metabol. 2006;50(4):802-13.

de Menezes Filho HC, Corea PHS; Sociedade Brasileira de Endocrinologia e


Metabologia. Raquitismo hipofosfatêmico ligado ao X [Internet]. Associação
Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina; 2004. Disponível em http://
www.projetodiretrizes.org.br/4_volume/29-RaquitisH.pdf.

Holick MF, Binkley NC, Bischoff-Ferrari HA, Gordon CM, Hanley DA, Heaney
RP, et al. Evaluation, treatment, and prevention of vitamin D deficiency: an
Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab.
2011;96(7):1911-30.
UNIDADE 6. OSTEOMETABOLISMO
375

UNIDADE 7:

ENDOCRINOPEDIATRIA
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
376

Capítulo 27

Distúrbios da Diferenciação Sexual


Luisa Trentini Zanferari
Eduarda Ruch
Jéssica Nascimento Monte
Thizá Massaia Londero Gai

1. Introdução:

Os distúrbios de diferenciação sexual (DDS) são condições congêni-


tas nas quais o desenvolvimento e funcionamento do sexo cromossô-
mico, gonadal ou anatômico é atípico. Desde o Consenso Internacional
de Chicago, publicado em 2006, os DDS são usualmente agrupados em
três grandes grupos: alterações cromossômicas (anomalias nos cro-
mossomos sexuais), DDS em indivíduos 46,XX e DDS em indivíduos
46,XY. Nesses dois últimos grupos, a alteração do desenvolvimento que
causa do DDS pode ser gonadal ou pós-gonadal.
Para você conseguir entender melhor como acontecem esses dis-
túrbios, é preciso entender um pouco sobre o desenvolvimento sexual
fisiológico.

O desenvolvimento sexual:
O cariótipo humano é formado por 46 cromossomos, sendo 22 pares
de cromossomos autossômicos e dois cromossomos sexuais, que podem
ser XX ou XY. O cromossomo Y normal carrega o gene SRY no seu bra-
ço curto, e este gene é responsável pela produção do fator determinan-
te testicular. Portanto, um indivíduo 46,XY com o gene SRY presente irá
diferenciar a sua gônada bipotencial em testículos. Uma outra situação
que pode ocorrer é a translocação do gene SRY para outro cromossomo
qualquer, culminando também na formação testicular. No indivíduo XX,
como não há gene SRY, ocorre a diferenciação gonadal com formação
dos ovários. Existem diversos outros genes que também foram relacio-
nados à diferenciação sexual, como por exemplo, os genes WT1, SF-1,
DMRT1, que possuem papel importante na determinação do sexo e po-
dem, quando danificados, causar alterações na organogênese da gônada
bipotencial. O gene SOX9 atua juntamente com o gene SRY na diferen-
ciação das células de Sertoli e no desenvolvimento testicular. Os genes
DAX1, WNT4 e SRPO1 foram relacionados à diferenciação ovariana e, em
casos de mutação, deleção ou duplicação, culminam em um distúrbio
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
377

da diferenciação sexual. Todos esses genes precisam estar funcionando


adequadamente para que a organogênese aconteça perfeitamente.
Por volta dos 24 dias de gestação, as células germinativas primordiais
migram da região próxima à vesícula umbilical até a crista gonadal,
onde são envolvidas e formam a gônada indiferenciada. Neste ponto, não
há nenhuma manifestação sobre qual será o sexo do embrião. A partir
da sexta semana, estas gônadas recebem as células germinativas, que
possuem o potencial de se transformarem em ovogônias ou espermato-
gônias. Estas células se juntam às células de suporte e às células esteroi-
dogênicas para iniciar o processo de diferenciação sexual, que acontece
a partir da sétima semana no sexo masculino e um pouco mais tarde no
sexo feminino. No estágio indiferenciado, o embrião possui dois conjun-
tos de ductos: os ductos de Muller, que irão gerar as tubas uterinas, o útero
e o terço proximal da vagina; e os ductos de Wolff, que formam o epidídi-
mo, os ductos deferentes, os ductos ejaculatórios e as vesículas seminais.

Organogênese masculina:
O processo de diferenciação masculino inicia com a expressão do
gene SRY, que causa a ativação de outros genes e a formação testicular.
As células de suporte se tornam células pré-Sertoli e as células esteroi-
dogênicas viram células de Leydig. O gene SRY e o gene SOX9 são res-
ponsáveis por impedir o desenvolvimento ovariano.
Quando formadas, as células de Sertoli produzem o Hormônio Anti-
mulleriano (responsável por provocar a regressão dos ductos de Muller).
Já as células de Leydig - estimuladas pela gonadotrofina coriônica hu-
mana - produzem a testosterona, que é responsável por induzir a diferen-
ciação dos ductos de Wolff, e o fator-3 semelhante à insulina, que provo-
ca a descida dos testículos para o saco escrotal.
Entre a 8ª e a 12ª semana de gestação, inicia-se o processo de forma-
ção da genitália externa, quando a testosterona, produzida pelas células
de Leydig, é convertida em diidrotestosterona (DHT) por uma enzima
chamada 5α-redutase. A DHT é o hormônio responsável pela virilização
da genitália masculina. O tubérculo genital cresce para formar a glande
do pênis, as pregas urogenitais se unem para formar a uretra esponjosa
e as saliências labioescrotais se desenvolvem em bolsas escrotais e pre-
param o espaço para a descida dos testículos, como ilustrado na Figura 1.

Organogênese feminina:
A formação dos ovários inicia apenas a partir da 12ª semana de ges-
tação e depende da ausência dos fatores da diferenciação masculina, ou
seja, da ausência do SRY e do hormônio antimulleriano. Durante mui-
to tempo, acreditava-se que a diferenciação feminina era um processo
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
378

passivo, que ocorria apenas pela ausência dos fatores masculinos. Con-
tudo, diversos genes foram sequenciados e identificados como essen-
ciais para a formação ovariana, como por exemplo os genes DAX1, WNT4
e RSPO1, atuando de forma antagônica aos estímulos masculinos. Na or-
ganogênese feminina, as células de suporte se diferenciam em células
da granulosa e as células esteroidogênicas se tornam células da teca.
A formação da genitália externa feminina ocorre na presença de um
ovário (normal ou em fita) ou na ausência de gônadas. O ovário não pro-
duz hormônios durante o período fetal. Após a 12ª semana, a glândula
suprarrenal fetal produz sulfato de dehidroepiandrosterona (SDHEA), um
androgênio que é metabolizado em testosterona, que é então aromatiza-
da em estrogênio pela aromatase placentária. Na diferenciação femini-
na, o tubérculo genital gera o clitóris, a saliência labioescrotal forma os
grandes lábios e as pregas uretrais formam os pequenos lábios, como
ilustrado na Figura 1.

Membrana cloacal
Saliências labioescrotais
A
Pregas uretrais
Estágio indiferenciado
Falo primordial
Tubérculo genital
Membrana cloacal
B Membrana anal

Glande do pênis Glande do clitóris


em desenvolvimento em desenvolvimento
Pregas uretrais
Pequenos lábios
Ectoderma fundiodas
Saliências Sulco uretral
labioescrotais
Prega uretral C fundidas D

Sulco uretral Glande do pênis


Sulco uretral Glande do clitóris
Pequenos lábios
Rafe periana
Escroto Grandes lábios

Ânus Frênulo dos pequenos lábios


E F

Corpo cavernoso
Prepúcio Monte pubiano
Uretra esponjosa
Orifício uretral
externo
Clitóris
Corpo esponjoso
Escroto Comissura anterior
Rafe periana
Orifício uretral externo
(linha de fusão das pregas uretrais)

Orifício vaginal
G Rafe escrotal H
(linha de fusão das saliências labioescrotais)
Comissura labial externa

Figura 1: Estágios de diferenciação das genitálias externas masculina (C, E e G)


e feminina (D, F e H). Adaptado de: Moore, Persuad e Torcha, 2016.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
379

2. Epidemiologia:

A incidência dos distúrbios da diferenciação sexual é cerca de 1:200-


300 indivíduos, quando consideradas todas as anomalias genitais con-
gênitas. Contudo, esse número varia muito quando estudamos cada
doença em particular. Estima-se que a formação de genitália ambígua
ocorra em aproximadamente 1 a cada 4.500 nascidos vivos. As formas
mais comuns de anomalias no desenvolvimento sexual são a hiper-
plasia adrenal congênita, as síndromes genéticas com mosaicismo e a
síndrome de insensibilidade androgênica.

3. Fisiopatologia e Classificação:

Os DDS são classificados em três grandes grupos, conforme a tabela


abaixo. Do ponto de vista fisiopatológico, os defeitos que podem pro-
vocar um DDS são: excesso de virilização de um indivíduo 46,XX (DDS
46,XX), hipovirilização em um indivíduo 46,XY (DDS 46,XY) ou anor-
malidades cromossômicas que conduzem a um quadro de hipogona-
dismo (Turner e Klinefelter) ou à má formação das gônadas (disgenesia
gonadal ou DDS ovotesticular). Em seguida, falaremos um pouco sobre
as principais etiologias de cada grupo.

Tabela 1: Classificação dos DDS proposta no Consenso de Chicago.

DDS por anomalia de


DDS 46,XY DDS 46,XX
cromossomos sexuais
Síndrome de Turner: Distúrbios da diferenciação gonadal: Distúrbios da diferenciação gonadal:
45,X e variantes Disgenesia gonadal completa ou Disgenesia gonadal completa, DDS
parcial XY, regressão testicular ou testicular e DDS ovotesticular.
DDS ovotesticular.
Síndrome de Klinefelter: Distúrbios da síntese ou ação de Excesso de andrógenos:
47,XXY e variantes hormônios testiculares: Podem ser fetais (HAC),
Defeito na síntese de testosterona; fetoplacentários (deficiência de
deficiência de 5α-redutase tipo 2, aromatase placentária) ou maternos
defeito do receptor de andrógenos, (luteoma ou origem exógena).
persistência dos ductos de Muller.
Disgenesia gonadal mista: Outros: Outros:
Ambiguidade genital Quadros sindrômicos. Síndrome de Rokitansky e quadros
associada a 45,X/46,XY e sindrômicos.
variantes
DDS ovotesticular
Adaptado de: Lee, et al.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
380

Distúrbios da diferenciação sexual por anomalias


de cromossomos sexuais:
As anomalias sexuais cromossômicas mais comuns são as sín-
dromes de Turner e Klinefelter. Em ambas as situações, não se espera
ocorrência de genitália ambígua, mas sim, hipogonadismo que muitas
vezes é diagnosticado através de atraso puberal. Já nos casos de cari-
ótipo com mosaicismo, o fenótipo, genitália interna e gônadas podem
ser bastante variáveis.

Síndrome de Klinefelter:
A síndrome de Klinefelter (SK) é a principal causa de hipogonadis-
mo primário e infertilidade em homens. Nestes pacientes, o cariótipo
mais comum é 47,XXY, e a apresentação clínica cursa com alta esta-
tura, quadris largos, ginecomastia no final da puberdade, déficits neu-
rocognitivos, pelos corporais reduzidos, criptorquidia, hipogonadismo,
infertilidade e baixa testosterona sérica, com altos níveis de hormônio
luteinizante (LH) e hormônio folículo-estimulante (FSH). Essa síndro-
me está associada a maior ocorrência de diabetes, síndrome metabóli-
ca, osteoporose e tremores. As crianças podem apresentar dificuldades
na aprendizagem e no desenvolvimento da fala, além de micropênis.
Outras informações mais aprofundadas sobre essa síndrome estão
no capítulo 20 deste livro, que trata sobre Hipogonadismo masculino.
Vale a pena conferir.

Síndrome de Turner:
A síndrome de Turner é a anormalidade cromossômica mais co-
mum em mulheres, ocorrendo com uma incidência aproximada de
1:2500 nascidos vivos femininos. Nesta síndrome, ocorre uma haploin-
suficiência do cromossomo X (monossomia X), causada pela perda de
um cromossomo X ou parte dele. Cerca de 45% das pacientes portadoras
da síndrome de Turner possuem cariótipo 45,X, mas aproximadamente
50% das pacientes portadoras dessa síndrome possuem cariótipo em
mosaico (45,X/46,XX; 45,X/47,XXX ou variantes). Isso significa que,
nestas meninas, o erro genético ocorreu após a fecundação, na divisão
celular pós-zigótica. O fenótipo irá variar conforme os tecidos que fo-
ram acometidos, mas costuma ser mais leve nos mosaicismos do que
nas pacientes com monossomia completa.
As características mais comuns da síndrome de Turner são a baixa
estatura, baixa implantação das orelhas, pescoço curto e alado, tórax
alargado, quarto metacarpo curto e cúbito valgo (deformidade no co-
tovelo). Estas pacientes apresentam hipogonadismo primário e insufi-
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
381

ciência ovariana. Na maioria das pacientes, a formação mamária não


acontece e elas apresentam amenorréia primária. A manifestação mais
fácil de ser identificada em recém-nascidos é o linfedema congênito
nas mãos e pés, podendo ser feita a suspeita da síndrome ainda no pré-
-natal, se transluscência nucal alterada.
As pacientes portadoras desta síndrome frequentemente apresen-
tam anomalias cardiovasculares congênitas e aumento do risco para
diversas doenças autoimunes, sendo as mais comuns a tireoidite de
Hashimoto e o diabetes mellitus tipo 1. A principal causa de mortalida-
de são as doenças cardiovasculares. Além disso, ocorre mais frequen-
temente hipertensão arterial, doença hepática, alterações renais, perda
auditiva e desordens no desenvolvimento esquelético (cifose em 50%).
Outras informações mais aprofundadas sobre essa síndrome estão no
capítulo 21 deste livro, sobre Hipogonadismo feminino.

Disgenesia Gonadal Mista:


Grupo heterogêneo de anomalias gonadais, cromossômicas e feno-
típicas, comumente caracterizadas pela presença de testículo disgené-
tico bilateralmente ou associado à gônada disgenética unilateral (em
fita), persistência de derivados mullerianos e graus variados de ambi-
guidade genital. Associa-se ao mosaicismo com linhagem 45,X e outra
46,XY (cariótipo 45,X/46,XY), podendo o cromossomo Y ser normal ou
estruturalmente anômalo. O espectro fenotípico varia de homem usual
com criptorquidia até mulheres com quadro semelhante ao da Síndro-
me de Turner (mais comum). A genitália externa pode ser assimétrica
pela presença de apenas um testículo. A gônada disgenética aumenta o
risco de malignidade por gonadoblastoma e germinoma, portanto, deve
ser retirada assim que possível. Como a função hormonal da gônada
habitualmente é inadequada, não se justifica mantê-la com este fim,
sendo necessária terapia de reposição hormonal para indução/manu-
tenção dos caracteres sexuais secundários. O sexo de criação depende
do grau de virilização observado.

DDS Ovotesticular:
DDS ovotesticular é o nome dado ao raro distúrbio de diferencia-
ção sexual no qual ocorre a formação de tecido testicular e ovariano
no mesmo indivíduo, seja em gônadas separadas (ovário de um lado e
testículo de outro) ou ambos os tecidos em uma mesma gônada (ovo-
testis). Antigamente era denominado ‘’hermafroditismo verdadeiro’’. O
cariótipo é variável, sendo mais comum o 46,XX (60%), seguido dos mo-
saicismos ou quimeras (46,XX/46,XY ou 45,X/46,XY) em 20% dos casos,
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
382

e por fim, em 10 a 20%, o cariótipo 46,XY. O fenótipo também é variável


e nenhuma característica clínica diferencia este DDS claramente dos
outros, sendo um diagnóstico notadamente histopatológico. O sexo de
criação vai depender do momento do diagnóstico.

Distúrbios da diferenciação sexual 46,XY (DDS 46,XY):


São DDS que decorrem da virilização inapropriada de um indivíduo
46,XY. Antigamente era chamado de pseudo-hermafroditismo mascu-
lino. As causas são variadas, podendo ser por distúrbios na diferencia-
ção gonadal (destacamos a disgenesia gonadal completa), distúrbios na
síntese (como casos de HAC e deficiência de 5α-redutase) ou na ação
dos andrógenos, ou por quadros sindrômicos com múltiplas malforma-
ções (por uma questão de extensão, não entraremos em maiores de-
talhes, mas como exemplos, há a Síndrome de Smith-Lemli-Opitz e a
Síndrome IMAGe).

Hipotálamo

GnRH Atua sobre a hipófise anterior para estimular a produção de LH e FSH

Hipófise anterior Atua sobre as células de Sertoli e,


mediante elas, sobre a formação
de espermatozóides

Testosterona
Produzida pelas as células
Atua sobre o hipotálamo e sobre de Sertoli, atua sobre a
FSH
a hipófise anterior para inibir a hipófise anterior para inibir
produção e liberação de LH LH a produção de FSH
Atua sobre as células
de Leydig para Inibina B
estimular a produção Testículo
de testosterona

Células de Leydig Células de Sertoli

Figura 2: Esquema ilustrativo sobre os hormônios masculinos.


Adaptado de Controle Hormonal, disponível em: http://stef-0107.no.comunidades.net/controlo-
hormonal.

Distúrbios na diferenciação gonadal 46,XY:

Disgenesia gonadal completa (DGC) 46,XY:


A disgenesia gonadal completa ou pura 46,XY (Síndrome de Swyer)
é um distúrbio da diferenciação sexual raro, que ocorre por mutações
nos genes responsáveis pela organogênese masculina, sendo o SRY
um deles.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
383

Na DGC 46,XY, as gônadas não recebem o estímulo esperado e


então não se diferenciam em testículos, resultando nas chamadas gô-
nadas estriadas. Essas gônadas não produzem hormônios, logo, não há
AMH para promover a regressão dos ductos de Muller, nem testoste-
rona para induzir a diferenciação dos ductos de Wolff. Os indivíduos
portadores dessa anomalia desenvolverão genitálias externa e interna
femininas e são reconhecidas como mulheres ao nascimento. Essas
pacientes vivem uma vida completamente normal até a adolescência,
quando vem ao consultório médico com queixa de amenorreia primária
e atraso puberal, pois não produzem níveis de estrogênios suficientes
para iniciar a puberdade ou desenvolver caracteres sexuais secundá-
rios (mas apresentam adrenarca/pubarca normal). O desenvolvimento
de gonadoblastoma é comum nessas pacientes se a gônada disgenética
é mantida, atingindo 80% delas até os 40 anos. Como não é esperada
ocorrência de telarca e menarca espontâneas, em pacientes com cres-
cimento mamário e sangramento menstrual, deve-se pensar em produ-
ção tumoral de hormônios esteroides.

Distúrbios da diferenciação sexual por defeito na síntese


de andrógenos:

Deficiência da 5α-redutase tipo 2:


A enzima 5α-redutase tipo 2 realiza a conversão da testosterona em
dihidrotestosterona (DHT), o hormônio que é responsável pela forma-
ção embriogênica da genitália externa masculina. Quando essa enzima
está deficiente, a virilização do indivíduo 46,XY não ocorre perfeita-
mente, resultando em uma genitália ambígua, com variados fenótipos,
ou genitália feminina típica (mais comum). Essa deficiência possui ori-
gem autossômica recessiva e diferentes mutações no gene SRD5A2 já
foram identificados como sendo responsáveis por esta alteração.
O indivíduo XY portador desse DDS terá desenvolvimento dos testí-
culos e de toda a genitália interna masculina adequadamente, estando
apenas a genitália externa afetada. Apresentam níveis plasmáticos de
testosterona e estrogênio dentro do esperado para homens, portanto não
apresentam desenvolvimento mamário. Na puberdade ocorre aumento
da massa muscular, dos testículos e do falo e engrossamento da voz,
sendo muitas vezes os fatores que levam o indivíduo fenotipicamente
feminino a procurar atendimento médico. Estes pacientes apresentam
ereções e ejaculações e possuem libido, porém não desenvolvem barba.
Os exames laboratoriais na adolescência evidenciam níveis normais
ou elevados de testosterona, com grande aumento na relação T/DHT
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
384

(geralmente mais de dez vezes, quanto maior a relação, mais sugestivo).


Os exames laboratoriais podem não ser suficientes para definir o diag-
nóstico, sendo necessária a realização de um estudo genético.

Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC):


A hiperplasia adrenal congênita (HAC) é um distúrbio autossômico
recessivo que afeta a produção de esteroides pela glândula adrenal e é a
forma de distúrbio do desenvolvimento sexual mais comum. São vários
defeitos enzimáticos que levam a um quadro de HAC. Nos indivíduos
46,XY, devemos nos atentar para as formas que cursam com defeito na
produção de testosterona, como a deficiência de 3β-hidroxiesteroide-
-desidrogenase tipo II, deficiência da 17β-hidroxiesteroide desidrogena-
se tipo III e deficiência de 17αOH/17,20liase. Este assunto será pormeno-
rizado no próximo capítulo deste livro.

Distúrbios da diferenciação sexual


por defeito na ação de andrógenos (Síndrome
de Insensibilidade Androgênica):
Esta síndrome ocorre em indivíduos 46,XY que apresentam organo-
gênese normal com testículos produtores de androgênios, mas que pos-
suem um distúrbio nos receptores androgênicos, impedindo seu pleno
desenvolvimento. Existem duas classes principais, a insensibilidade
androgênica completa e a insensibilidade androgênica parcial.

Insensibilidade androgênica completa (CAIS):


Esse DDS se dá por um distúrbio nos receptores androgênicos e pode
atingir uma incidência de 1:20000 indivíduos, sendo mais comum do
que a insensibilidade parcial. Os indivíduos 46,XY com CAIS, pela pre-
sença do SRY, desenvolvem testículos. Porém, estes são criptorquídicos,
já que não respondem à ação da testosterona, assim como os ductos de
Wolff - não havendo genitália interna masculina. Como o AMH é nor-
malmente produzido, não ocorre também desenvolvimento de genitá-
lia interna feminina (útero, cérvice e vagina proximal). Contudo, como
o terço externo da vagina não depende do controle do AMH, ela está
presente, sendo normalmente curta e em fundo cego. Ocorre desenvol-
vimento mamário e padrão de distribuição de gordura corporal tipica-
mente feminino por ação estrogênica decorrente da aromatização peri-
férica da testosterona. Porém, pelos pubianos e axilares não costumam
ser observados ou são em pouca quantidade, já que sua existência de-
pende da ação androgênica.
Normalmente esses indivíduos são designados como sexo feminino
ao nascimento e procuram atendimento médico na adolescência, quando
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
385

apresentam puberdade lentamente progressiva após telarca, amenorreia


primária e ausência de desenvolvimento de pelos pubianos e axilares.
Em alguns casos, os recém-nascidos apresentam hérnias ou mas-
sas inguinais que contém os testículos, o que estimula o estudo de um
possível DDS e auxilia no diagnóstico precoce. Na infância (exceto na
mini-puberdade), os níveis séricos de androgênios são normalmente
baixos, dificultando a análise. Nesses casos, pode-se realizar a estimu-
lação com gonadotrofina coriônica exógena e exames de imagem, que
irão evidenciar a presença dos testículos e ausência de útero, com va-
gina em fundo cego.
A maioria das crianças, contudo, é diagnosticada por estudo genéti-
co. Geralmente esses indivíduos identificam-se como mulheres e levam
uma vida sexual normal, por vezes apresentando dispareunia, baixa li-
bido ou vagina pequena, que pode ser tratada por dilatação ou vagino-
plastia. Algumas pacientes podem se beneficiar de cirurgias estéticas.
A gonadectomia é fortemente recomendada pelo risco de malignidade
(gonadoblastoma), já que os testículos são ectópicos.
Os pacientes portadores de insensibilidade completa apresentam
níveis elevados de LH, devido à falta do feedback negativo hipotalâmi-
co e hipofisário. Consequentemente, também ocorre elevação da tes-
tosterona sérica, podendo haver um aumento de globulina ligadora de
hormônio sexual (SHBG) devido à deficiência do receptor androgênico.

Insensibilidade androgênica parcial (PAIS):


Os pacientes que possuem uma insensibilidade parcial aos andro-
gênios podem apresentar variados fenótipos com diferentes graus de
genitália ambígua. Nos casos em que ocorre pouca virilização e o fe-
nótipo se mantém feminino ocorre um quadro semelhante àquele da
insensibilidade completa, variando apenas alguns aspectos de diferen-
ciação sexual secundária, como aparecimento de pelos, crescimento do
clitóris e fechamento parcial das dobras escrotais. Possuem vagina em
fundo cego e os órgãos sexuais internos podem estar subdesenvolvidos
(epidídimo, ducto deferente, ductos ejaculatórios e vesículas seminais).
Os pacientes que desenvolvem um fenótipo mais próximo ao masculi-
no podem apresentar alterações mais leves, como hipospádia e escroto
bífido, mas possuem desenvolvimento mamário típico feminino na pu-
berdade. Raramente, alguns portadores de PAIS podem apresentar es-
permatogênese e infertilidade, mas isso ocorre apenas em casos mais
brandos onde o fenótipo é tipicamente masculino, com desenvolvimen-
to dos caracteres sexuais secundários esperados. Podem apresentar
também micropênis.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
386

Distúrbios da diferenciação sexual 46,XX (DDS 46,XX):


Os DDS 46,XX, chamados antigamente de pseudo-hermafroditismo
feminino, são as causas mais comuns de DDS e ocorrem quando há vi-
rilização de um indivíduo geneticamente feminino. Podem ter como
etiologias alterações na formação gonadal (aqui destacamos a DDS tes-
ticular) e excesso de andrógenos de origem materna ou fetal.

Distúrbios na diferenciação gonadal 46,XX:

DDS testicular 46,XX:


Chamamos de DDS testicular o raro distúrbio de diferenciação se-
xual no qual ocorre a formação de testículos em indivíduos 46,XX (o
cromossomo Y não pode ser detectado citogeneticamente, ou seja, pelo
cariótipo convencional). Antigamente era referido como ‘’homem XX’’.
Existem várias causas para essa anomalia, mas a principal delas é a
translocação do gene SRY para um cromossomo X (90%) ou para outro
cromossomo autossômico (menos comum). A presença do SRY irá esti-
mular o desenvolvimento dos testículos e inibir a formação dos ovários.
Outras causas menos comuns são a superexpressão de genes pró-testí-
culo ou falhas nos genes pró-ovário, mas a identificação do gene espe-
cífico causador da anormalidade ainda é difícil.
Essas anomalias acima citadas podem levar à virilização do indiví-
duo XX, sendo que o grau de virilização varia conforme o nível de expres-
são do gene SRY e da capacidade testicular de produção de testosterona
e hormônio antimulleriano (AMH). Por isso, são encontrados diversos
fenótipos nestes pacientes, desde uma genitália ambígua até uma virili-
zação completa. O sexo de criação mais comum é o masculino.
Os pacientes que apresentam virilização completa podem viver sem
diagnóstico até a vida adulta e reprodutiva, quando geralmente procu-
ram atendimento médico devido à infertilidade. Apenas uma minoria
deles é diagnosticada na infância, quando investigam problemas como
baixa estatura e microrquidia bilateral. O aumento do volume testicular
que normalmente ocorre na puberdade masculina se dá pelo aumento
do número de células germinativas. Como não há cromossomo Y, es-
sas células são degeneradas, resultando em hipogonadismo e azoos-
permia. Além disso, esses indivíduos não produzem a Inibina B, que
em indivíduos normais é produzida no processo de espermatogênese
para inibir a secreção de FSH. Portanto, esses pacientes irão apresentar
níveis de FSH elevados.
Em 10 a 20% dos pacientes cujo tecido testicular não funciona ade-
quadamente, pode haver o desenvolvimento de uma genitália ambígua.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
387

A genitália interna costuma corresponder à genitália externa, com a


presença de ductos de Muller em pacientes menos virilizados, por
exemplo.

Distúrbios na diferenciação sexual por excesso de andrógenos re-


lacionados à gestação:

Hiperandrogenismo de origem materna:


Durante o período gestacional ocorre um aumento fisiológico dos
andrógenos maternos advindos dos ovários e das glândulas adrenais
maternas e fetais. Esses andrógenos são convertidos em estrógenos
pela aromatase placentária para possibilitar a gravidez e o trabalho
de parto. Quando a produção destes andrógenos atinge níveis supra
fisiológicos, algumas alterações podem ocorrer na mãe e também no
bebê. Se essa elevação anormal de andrógenos ocorrer entre a 7ª e a
12ª semana de gestação, o feto XX pode sofrer virilização. A origem
mais comum dos andrógenos é fetal (ver abaixo), mas podem ter ori-
gem materna, como uso/contato com androgênios tópicos (às vezes,
gel de testosterona utilizado pelo parceiro da mãe), luteoma gravídico
(neste caso, ocorre virilização também da mãe) e hiper reação luteini-
zante (Hyperreactio luteinalis).

Deficiência da aromatase placentária:


A enzima aromatase expressa na placenta é responsável pela con-
versão dos andrógenos fetais em estrógeno. Isso protege tanto o feto
quanto a mãe de exposições exageradas a estes hormônios. Além da
placenta, outros órgãos fetais também apresentam a aromatase como
as gônadas, o fígado, o tecido adiposo, os ossos e o cérebro. Em algumas
situações, a atividade desta enzima pode estar prejudicada, gerando
um estado de hiperandrogenismo e, consequentemente, a virilização
do feto feminino. Geralmente, a mãe também apresenta algum grau de
virilização, podendo ocorrer hirsutismo, acne, engrossamento da voz e
clitoromegalia. Estes sintomas maternos devem servir de alarme para
a investigação de um possível distúrbio no bebê.
A deficiência da aromatase é um distúrbio autossômico recessivo
muito raro, causado por uma mutação no gene do CYP19A1. Nos indiví-
duos 46,XX, a suspeita diagnóstica é realizada no pré-natal (por virili-
zação materna) ou ao nascimento, por genitália ambígua (se mais tar-
diamente, em geral por amenorreia primária). Pode acometer também
indivíduos 46,XY, mas as manifestações clínicas costumam aparecer
somente no período pós-puberal.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
388

Distúrbios na diferenciação sexual por excesso de andrógenos de


origem fetal:

Hiperplasia adrenal congênita (HAC):


Como comentado anteriormente, a HAC é uma doença autossômi-
ca recessiva, que pode ser causada pela mutação de diferentes genes
que alteram a função de enzimas presentes na glândula adrenal e que
são fundamentais para o processo de esteroidogênese. A HAC é a causa
mais frequente de DDS, mas sua manifestação clínica é variada, depen-
dendo do nível de ação enzimática residual. A forma mais comum de
HAC e a mais importante causa de DDS 46,XX é a deficiência de 21-hi-
droxilase, na qual os precursores acumulados são a progesterona e a
17-hidroxiprogesterona, o que promove o desvio da via para a produção
de androstenediona e testosterona. Na forma clássica com perda de sal,
o indivíduo afetado irá apresentar um quadro de hiperandrogenismo e
insuficiência adrenal primária.
Outras formas de HAC que causam DDS 46,XX incluem a deficiência
da 3β-hidroxiesteroide desidrogenase tipo II (3β-HSD tipo II) e deficiên-
cia de 11β-hidroxilase. Na primeira, ocorre um acúmulo de pregnenolo-
na, 17OH pregnenolona e DHEA, cursando com insuficiência adrenal.
Já foi comentado que nos indivíduos XY, ela causa hipovirilização (o
DHEA é um andrógeno fraco). Porém, como o DHEA pode ser convertido
em testosterona pela enzima 3β-HSD tipo I, pode haver virilização da
genitália externa feminina. Já na deficiência da 11β-hidroxilase ocor-
re prejuízo na conversão da desoxicorticosterona em corticosterona e
do desoxicortisol em cortisol, com acúmulo de andrógenos. Pode haver
hipertensão arterial pela ação mineralocorticoide do precursor deso-
xicorticosterona. Este assunto será abordado mais detalhadamente no
próximo capítulo deste livro.

4. Anamnese:

Ao nascimento:
Muitos casos serão de genitália ambígua descoberta no momento do
parto. A ambiguidade genital é uma emergência médica, principalmen-
te pelo risco de morte associado à insuficiência adrenal no caso de uma
HAC, mas também pela designação do sexo social. Pela complexidade
do tema, faz-se necessária uma abordagem multidisciplinar.
Sempre que houver a suspeita de um possível distúrbio da diferen-
ciação sexual, os cuidadores devem ser questionados sobre a realiza-
ção da rotina pré-natal, as medicações que utilizadas pela mãe durante
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
389

o período gestacional para investigar possível exposição a andrógenos


exógenos, histórico de gestações e abortos prévios e virilização materna
durante a gestação. Se a mãe apresentar sintomas hiperandrogênicos,
devemos perguntar quando foi o início desses sintomas, a velocidade
do aparecimento e as características do ciclo menstrual pré-gestação. A
idade gestacional e peso ao nascer são informações importantes para se-
rem correlacionadas aos exames laboratoriais e alguns achados clínicos
que são mais comuns em prematuros (criptorquidia, por exemplo).
No histórico familiar devem-se investigar doenças genéticas e dis-
túrbios de diferenciação sexual, história de mulheres que não consegui-
ram ter filhos ou apresentam amenorreia, histórico de consanguinida-
de e mortes no período neonatal ou lactância.

Na adolescência:
Nos adolescentes, a coleta da anamnese deve incluir todos os dados
perinatais comentados acima, acrescida do desenvolvimento dos ca-
racteres sexuais secundários esperados para a idade. Todos devem ser
questionados sobre o aparecimento de pelos pubianos, axilares, apa-
recimento de barba, engrossamento da voz, aumento do tamanho das
gônadas e do pênis ou clitóris, sobre a ocorrência de ereções e ejacula-
ções. Também deve ser perguntado se ocorreu sangramento vaginal ou
crescimento mamário.

5. Exame físico:

O exame físico do bebê com suspeita de distúrbio da diferenciação


sexual deve iniciar com uma inspeção completa, com especial cuida-
do na região da genitália, observando a presença de genitália ambígua,
que deve ser minuciosamente descrita. O número de aberturas urogeni-
tais deve ser avaliado, bem como a presença ou ausência de gônadas no
saco escrotal. Para avaliar a abertura uretral, o ideal é acompanhar um
evento miccional. Em caso de suspeita de virilização (DDS 46,XX), pode
ser classificada conforme a escala de Prader (figura 3). Na suspeita de
DDS 46,XY pode-se utilizar o escore de masculinização externa.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
390

Figura 3: Estágios de virilização. Escala de Prader. Retirado de: L. Allen.


Desordens do desenvolvimento sexual. Clínicas de Obstetrícia e Ginecologia na
América do Norte, 36, p. 27. 2009.

Tabela 2: Escore de masculinização externa proposto por Ahmed e cols para


indivíduos portadores de cromossomo Y. Leva em consideração a fusão escrotal,
micropênis, localização do meato uretral e das gônadas, chegando a uma
pontuação máxima de 12 pontos quando a masculinização é completa.

Estrutura Característica Pontuação


Sim 3
Fusão escrotal
Não 0
Sim 0
Micropênis
Não 3
Normal 3
Distal 2
Meato Uretral
Médio 1
Proximal 0
Labioescrotal 1,5
Inguinal 1
Gônada direita
Abdominal 0,5
Ausente 0
Labioescrotal 1,5
Inguinal 1
Gônada esquerda
Abdominal 0,5
Ausente 0
Adaptado de: AHMED, SF et al.

A inspeção deve ser seguida pela palpação, principalmente na re-


gião inguinal para identificar gônadas ectópicas. A característica que
mais orienta a investigação diagnóstica é a presença de gônadas pal-
páveis (caso estejam localizadas abaixo do ligamento inguinal, em ge-
ral são considerados testículos). Se os testículos estiverem presentes
devemos estimar seu volume ou tamanho em cm com o orquidômetro,
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
391

assim como analisar características da bolsa escrotal, como pigmenta-


ção e rugosidade (você pode ler mais sobre o desenvolvimento sexual
típico nos capítulos 30 e 31, sobre puberdade precoce e atraso puberal).
A medição do falo deve ser realizada em todos os recém-nascidos, com
auxílio de fita métrica ou régua. São analisados o seu comprimento e
largura. Em indivíduos fenotipicamente masculinos, o comprimento
típico do pênis não ereto é em torno de 2,5cm e o diâmetro peniano é
igual ou superior a 0,9cm. Valores inferiores a estes sugerem um possí-
vel DDS e devem ser investigados. Em pacientes fenotipicamente femi-
ninas, devemos realizar a medição do clitóris e investigar todos os ca-
sos que ultrapassarem 8 a 9mm. Quando a medida do pênis for inferior
a 2,5 desvios-padrões da média, chama-se de micropênis, conforme a
Tabela 3 abaixo, que elenca o tamanho peniano mínimo de acordo com
a faixa etária.

Tabela 3: Média e cálculo de - 2,5 desvios padrões (DP) da média do tamanho do


pênis esticado em diferentes faixas etárias, em cm.

Idade Média - 2.5 DP


RNs:
Pré-termos até 30 semanas 2.5±0.4 1.5
Pré-termos até 34 semanas 3.0±0.4 2.0
A termos 3.5±0.4 2.5
Crianças:
0-5 meses 3.9±0.8 1.9
6-12 meses 4.3±0.8 2.3
1-2 anos 4.7±0.8 2.6
2-3 anos 5.1±0.9 2.9
3-4 anos 5.5±0.9 3.3
4-5 anos 5.7±0.9 3.5
5-6 anos 6.0±0.9 3.8
6-7 anos 6.1±0.9 3.9
7-8 anos 6.2±1.0 3.7
8-9 anos 6.3±1.0 3.8
9-10 anos 6.3±1.0 3.8
10-11 anos 6.4±1.1 3.7
Adultos 13.3±1.6 9.3
Adaptado de Hatipoğlu, N eKurtoğlu, S.

Além da genitália, quaisquer outras alterações anatômicas devem


ser analisadas, como a estatura, envergadura, implantação das orelhas,
formação do ânus e estruturas gastrintestinais, anormalidades cranio-
faciais e nos membros, como polidactilia e cúbito valgo, por exemplo.
O exame físico deve contemplar a aferição da pressão arterial para
investigar possíveis alterações causadas pela hiperplasia adrenal con-
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
392

gênita. Na suspeita de hiperandrogenismo gestacional, devemos exa-


minar a mãe (biológica) em busca de sinais como hirsutismo, clitoro-
megalia, acne e engrossamento da voz no período gestacional.

6. Exames complementares:

Investigação da ambiguidade genital no recém-nascido:


Como dito anteriormente, ambiguidade genital é uma emergência
médica. Dadas as diferentes etiologias possíveis e como a investigação
depende do sexo genético, é mandatória a coleta do cariótipo. A ava-
liação bioquímica inclui eletrólitos e exames hormonais como testos-
terona, DHT, 17OH-progesterona, FSH, LH, ACTH e cortisol. A coleta de
exames pode ser direcionada se gônadas impalpáveis (aumenta a pro-
babilidade de DDS 46,XX, principalmente por HAC virilizante) ou pal-
páveis (sugere DDS 46,XY ou DDS cromossômica). A ultrassonografia
pélvica é útil para avaliar a presença de gônadas ou genitália interna
feminina, e identificar possíveis tumores gonadais.
Quando a suspeita está principalmente em um estado hiperandrogê-
nico gestacional, será necessário solicitar as dosagens de testosterona,
androstenediona, DHEA, SDHEA, SHBG, cortisol e estrogênios séricos
maternos. Uma ultrassonografia de abdome pode ser útil para avaliar
as características dos ovários e das glândulas adrenais da mãe, em bus-
ca de luteoma gravídico ou tumores.

Investigação dos DDS na infância ou adolescência:


A realização do cariótipo convencional (leucócitos) é mandatória,
principalmente nos quadros sindrômicos que apontam para Turner
e Klinefelter. Se o primeiro cariótipo estiver normal em paciente com
sinais e sintomas fortemente sugestivos destas síndromes, uma nova
cariotipagem deve ser realizada, a partir de outro tecido. Os exames bio-
químicos coletados dependem da apresentação clínica (virilização em
indivíduos fenotipicamente femininos, hipovirilização em indivíduos
fenotipicamente masculinos, quadro sindrômico). As gonadotrofinas
são úteis em casos de suspeita de má formação gonadal (DDS cromos-
sômicos), quando se espera seu aumento, e dosagem de ACTH, cortisol,
eletrólitos e precursores adrenais orientam se suspeita de HAC. A partir
do quarto mês de vida (após o período da mini puberdade) até a adoles-
cência, a função da célula de Leydig deve ser testada através do estímu-
lo com gonadotrofina coriônica (teste do hCG – ver quadro abaixo), pois
durante a infância os níveis dos hormônios sexuais são normalmente
indetectáveis ou muito baixos.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
393

Tabela 4: Principais protocolos de testes de estímulos de hCG.

Tipo de hCG Regime Tempos de coleta Idade recomendada


hCGu 1000 UI, IM, 1x/dia, 3 dias Basal e 24 horas após a última Crianças
Basal + 72 e 120 horas após a
hCGu 2000 UI, IM, 1x/dia, 3 dias
última
Crianças e adolescentes
Basal + 24 e 72 horas após a
hCGu 5.000 UI/m², IM, 1dia
última
1.000 UI, IM, 3x/semana, 3
hCGu Basal e 24 horas após a última
semanas
Crianças
1.500 UI, IM, a cada 2 dias, 7
hCGu Basal e 24 horas após a última
aplicações
Basal + 72 horas e 7 dias após
hCGr 250 µg, IM, dose única Crianças e adultos
a última
Adaptado de Bertelloni et al.
Legenda: hCGu = hCG urinário; hCGr = hCG recombinante; IM = intramuscular.
Orientação interpretação do teste: coletam-se testosterona e DHT (dependendo da suspeita, também
estradiol, DHEA, androstenediona, progesterona, 17 OH-progesterona e 17 OH-pregnenolona). Na
interpretação do teste, deve ocorrer uma elevação dos níveis de testosterona de 3 a 6 vezes os níveis
basais, usualmente acima de 2,5 a 3,5 ng/mL. Uma relação superior a 1 entre um precursor e a
testosterona é indicativa do nível do defeito na síntese de testosterona.

A relação T/DHT é útil para o diagnóstico de deficiência da enzima


5α-redutase tipo 2, que geralmente está acima de 20 em pacientes afe-
tados, e a globulina ligadora de hormônio sexual (SHBG) pode estar au-
mentada em casos de insensibilidade androgênica. A ultrassonografia
pélvica pode ser solicitada para avaliação da presença de órgãos sexu-
ais internos femininos, gônadas ou tumores.

7. Diagnóstico:

Alterações cromossômicas:
Será pela realização do cariótipo conforme exposto na seção 4. Usu-
almente esses casos também cursam com gonadotrofinas elevadas.

Distúrbios da diferenciação gonadal:


São os diagnósticos mais difíceis e raros. Além da propedêutica com
exames bioquímicos e de imagem, exigem realização pelo menos do
cariótipo convencional e estudo histopatológico da gônada.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
394

DDS pós-gonadais:

DDS 46,XX por excesso de androgênios:

Hiperandrogenismo gestacional:
O diagnóstico é feito principalmente pela anamnese e exame físi-
co. A mãe geralmente apresenta sinais de excesso desses hormônios,
como hirsutismo, clitoromegalia, engrossamento da voz e acne. Altera-
ções na ultrassonografia abdominal materna podem indicar a etiologia
da doença, como a presença de ovários policísticos ou luteoma.

Deficiência de aromatase:
O diagnóstico é feito a partir da anamnese, exame físico e exames
laboratoriais. A suspeita é reforçada nos casos de virilização materna
que cessa após o parto. Nos indivíduos 46,XY, as manifestações clínicas
costumam aparecer somente no período pós-puberal, com crescimento
linear exacerbado, ausência de estirão, osteopenia e hábito eunucoide,
devido ao atraso do fechamento das epífises, visto que o estrógeno é o
principal fator para maturação da idade óssea, tanto em homens quanto
mulheres. A investigação envolve radiografia de mãos e punhos (com
atraso da idade óssea), níveis plasmáticos de FSH (elevados na maioria
dos casos), de estradiol (muito baixos) e de testosterona (variável). A
avaliação clínica seleciona os indivíduos que devem realizar o estudo
genético (mutações no gene CYP19A1) para diagnóstico definitivo.

DDS 46,XY por defeito na síntese ou ação androgênica:

Deficiência de 5α-redutase tipo 2:


O diagnóstico dessa síndrome é feito usualmente na adolescência.
Isso ocorre porque geralmente o indivíduo apresenta um fenótipo femi-
nino típico, portanto não ocorre suspeita do diagnóstico no nascimento.
Contudo, na puberdade essas pacientes apresentam engrossamento da
voz e aumento do falo, associado à amenorreia primária. Quanto aos
achados laboratoriais, esses pacientes apresentam níveis plasmáticos
de testosterona normais para indivíduos masculinos e uma despropor-
ção entre testosterona e DHT (>20). No caso dos pacientes nascidos com
genitália ambígua, o diagnóstico dessa anomalia deve ser suspeitado e
outras formas mais comuns devem ser excluídas, conforme investiga-
ção geral do RN com ambiguidade genital. A avaliação dos níveis séri-
cos de testosterona e DHT em indivíduos pré-púberes não é confiável,
por isso está indicado teste de estímulo com gonadotrofina coriônica
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
395

humana (ver acima). De forma geral, a análise genética em centros de re-


ferência está indicada para comprovação do diagnóstico, se disponível.

Síndrome de insensibilidade androgênica:


O diagnóstico é realizado a partir da avaliação bioquímica e de ima-
gem, as quais demonstram níveis elevados de LH (FSH costuma estar
dentro do esperado pela ação da inibina B), de testosterona (para um
indivíduo do sexo feminino) e ausência de genitália interna, sendo a
confirmação por estudo genético. Nesses pacientes, a proporção T/DHT
estará normal, diferenciando da deficiência de 5α-redutase. Os níveis
séricos de inibina B e AMH nos pacientes menores de 1 ano geralmente
estão normais, confirmando o funcionamento adequado dos testículos.

DDS por Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC):


O diagnóstico de HAC por deficiência de 21-hidroxilase é feito pela
detecção de níveis elevados de 17-hidroxiprogesterona, sejam basais
ou após estímulo com cortrosina (ACTH sintético). No Brasil, triagem
para HAC é realizada em todos os recém-nascidos a partir do teste do
pezinho, coletado entre o 3º e o 5º dia de vida. Toda investigação está
detalhada no capítulo seguinte.

8. Tratamento:

Depois de realizado o diagnóstico de um DDS, o tratamento depende-


rá da etiologia do distúrbio. O ponto inicial - e fundamental - do trata-
mento é definir se o quadro é oriundo de causa potencialmente reversí-
vel ou irreversível, além de definir o sexo de criação. Em alguns casos
de DDS 46, XX por HAC e deficiência de 21-hidroxilase, por exemplo, a
reposição de glicocorticoide reduz os níveis de andrógenos e pode ser o
único tratamento necessário para corrigir uma genitália inicialmente
ambígua. No caso de hiperandrogenismo gestacional por luteoma gra-
vídico, este tende a regredir de forma espontânea em até 3 meses, com
uma queda considerável do nível de androgênios nas duas semanas se-
guintes ao parto. Os sinais hiperandrogênicos maternos também ten-
dem a desaparecer após o parto, com exceção da clitoromegalia.
Nos casos irreversíveis, o tratamento varia de acordo com a identi-
dade de gênero do indivíduo afetado. A grande maioria dos DDS neces-
sitará de reposição hormonal (desde indução da puberdade) e alguns
poderão necessitar de cirurgias reparadoras como genitoplastia. A
gonadectomia pode ser necessária para evitar o desenvolvimento dos
caracteres sexuais secundários indesejados quando o sexo social não
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
396

estiver de acordo com o sexo gonadal e principalmente para reduzir o


risco de gonadoblastoma e disgerminoma. A terapia de reposição hor-
monal não costuma restaurar a fertilidade.
Todas essas informações são de extrema importância que sejam re-
passadas aos pais, de forma clara, objetiva e com vocabulário simples.
Esse apoio no início do tratamento é fundamental para a relação médi-
co-paciente e, consequente, cuidado integral. A equipe de atendimento
deve ser multidisciplinar para orientar a família na decisão do sexo de
criação, além do apoio educacional e psicológico que são de extrema
importância. Desde 2019, os recém-nascidos com sexo indefinido têm
direito ao registro (certidão de nascimento, fundamental para ter aces-
so aos programas sociais, vacinação, plano de saúde, etc) mesmo sem
a definição do sexo social. Nele, o campo destinado ao nome fica como
“RN de” seguido do nome da mãe, pai ou ambos. Após a decisão do sexo
e do nome, o documento pode ser retificado por qualquer responsável
gratuitamente no cartório.

9. Prognóstico:

O diagnóstico precoce é a etapa decisiva para a qualidade do atendi-


mento e da vida deste paciente. O tratamento adequado dos distúrbios
de diferenciação sexual, de acordo com a identidade de gênero, confe-
re ao indivíduo um bom prognóstico, sendo fundamental acompanha-
mento em serviço especializado com equipe multidisciplinar. Esses
pacientes devem ser acompanhados durante toda a vida, e aqueles que
fazem terapia de reposição hormonal deverão receber na vida adulta o
mesmo tipo de cuidado abordado nos capítulos 20 e 21.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
397

10. Tabela de resumo:

Formação Função Características


DDS Alteração Tratamento
gonadal gonadal clínicas
Hipogonadismo
Síndrome de
Alta estatura
Klinefelter
Ginecomastia Reposição
Cromossômica Preservadas Prejudicada
Baixa estatura hormonal
Síndrome de Turner Pescoço alado
Tórax alargado
Genitália ambígua
Disgenesia gonadal
Variável Hipogonadismo Gonadectomia
XX
Infertilidade
Genitália interna/
Gonadal Defeituosas externa feminina
Reposição
Disgenesia Gonadal Presença de pubarca
hormonal
Completa XY Amenorreia
Gonadectomia
Atraso puberal
Ausência de mamas
Genitália ambígua
Hiperandrogenismo Pós-gonadal Tratamento da
em XX
gestacional (multifatorial) causa base
Virilização materna
Genitália ambígua
Amenorreia
Deficiência da Reposição
Crescimento linear
aromatase hormonal
exacerbado
Idade óssea atrasada
Genitália ambígua
Hiperplasia adrenal Reposição
Desequilíbrio
congênita Pós-gonadal Prejudicada hormonal
hidroeletrolítico
Genitália ambígua ou
Reposição
feminina
Preservadas hormonal
Deficiência de Engrossamento da
Gonadectomia
5α-redutase voz
Cirurgias
Crescimento do falo
estéticas
Ausência de mama
Amenorreia
Atraso puberal Reposição
CAIS
Presença de mama hormonal
Pós-gonadal Ausência de pubarca
(receptor Reposição
androgênico) hormonal
PAIS Variável Gonadectomia
Cirurgias
estéticas
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
398

11. Leitura recomendada:

ACIÉN, P.; ACIÉN, M. Disorders of Sex Development: Classification, Review, and


Impact on Fertility. Journal of Clinical Medicine, v. 9, n. 11, p. 3555, 4 nov. 2020.

GRAVHOLT, C. H. et al. Klinefelter Syndrome: Integrating Genetics,


Neuropsychology, and Endocrinology. Endocrine Reviews, v. 39, n. 4, p. 389–
423, 1 ago. 2018.

ON BEHALF OF THE KLINEFELTER ITALIAN GROUP (KING) et al. Klinefelter


syndrome (KS): genetics, clinical phenotype and hypogonadism. Journal of
Endocrinological Investigation, v. 40, n. 2, p. 123–134, fev. 2017.

STOPPA-VAUCHER, S. et al. Disgenesia gonadal 46, XY: nova mutação


pontual SRY em dois irmãos com mosaicismo de linha germinativa paterna.
ClinicalGenetics, v. 82, n. 6, pág. 505-513, 2012.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
399

Capítulo 28

Hiperplasia Adrenal Congênita


Virgínia Nascimento Reinert
Jéssica Nascimento Monte
Leila Cristina Pedroso de Paula

1. Introdução:

Agora que você já aprendeu sobre as glândulas adrenais (vide unida-


de 4 deste livro) e sobre as desordens de diferenciação sexual no capí-
tulo anterior, vamos entender melhor sobre uma condição autossômica
recessiva que acomete as suprarrenais e é descoberta principalmente
no nascimento: a hiperplasia adrenal congênita (HAC).
A HAC abrange uma série de síndromes causadas por deficiências
enzimáticas variadas no processo de esteroidogênese adrenal, sendo
as manifestações clínicas dependentes da enzima acometida e do grau
de deficiência enzimática. Há 20 anos, foi criado o Programa Nacional
de Triagem Neonatal (PNTN) para todo o território nacional, e em de-
zembro de 2012 a dosagem de 17-OH progesterona (17-OHP) foi incluída
neste programa pelo Ministério da Saúde, facilitando o rastreio da HAC
ao nascimento e prevenindo crises adrenais.
A principal enzima acometida é a 21-hidroxilase (21-OH), corres-
pondendo entre 90 e 95% dos casos. Condições mais raras ocorrem
com o acometimento de outras enzimas, como 11-beta-hidroxilase
(CYP11B1), 17-alfa-hidroxilase (CYP17), 3-beta-hidroxiesteroide-desi-
drogenase (HSD3B2), aldosterona sintase (CYP11B2), 20,22-desmolase
(CYP11A1), entre outras.
Mas calma, você não precisará saber isso tudo por completo, visto
que essas outras alterações são raras e competentes aos médicos espe-
cialistas. Aqui, neste capítulo, vamos nos atentar à deficiência de 21-hi-
droxilase e, principalmente, em como reconhecer as manifestações
clínicas desse distúrbio que acomete a rota de síntese dos hormônios
adrenais.
A deficiência da enzima 21-OH engloba um espectro de manifes-
tações clínicas, conforme o grau da deficiência enzimática, divididas
conforme a (in)suficiência de cortisol em: forma clássica (perdedora de
sal e virilizante simples) e forma não clássica. Algumas literaturas, no
entanto, a subdivisão das formas clássicas se encontra em desuso.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
400

2. Epidemiologia:

A deficiência de 21-hidroxilase corresponde a uma das doenças he-


reditárias mais comuns. Na literatura, as taxas de incidência da HAC
clássica variam de 1 caso a cada 10 ou 20 mil nascidos vivos, e no Bra-
sil a forma perdedora de sal (apresentação mais grave) varia de 1:7500
a 1:10000 nascidos vivos. Assim como muitas outras patologias, essas
taxas podem variar de acordo com a etnia e a região geográfica. No Rio
Grande do Sul, segundo dados do programa de triagem, a incidência é
de 1:13551 nascidos vivos.
A forma não clássica, que usualmente não é identificada na tria-
gem neonatal, possui a maior prevalência entre as doenças autossô-
micas recessivas, variando de 1 caso para 200 ou 1000 pessoas, com
destaque para populações caucasianas.
A deficiência de 11-beta-hidroxilase corresponde a, aproximada-
mente, 5 a 8% de todos os casos de HAC. Nós iremos falar brevemente
sobre ela ao final deste capítulo, a título de curiosidade e de conheci-
mento para as provas de residência médica.

3. Fisiopatologia:

Na hiperplasia adrenal congênita, as enzimas afetadas atuam na


biossíntese de esteroides adrenais, especificamente de cortisol, aldos-
terona e androgênios, como foi visto na fisiopatologia do capítulo de
insuficiência adrenal.
Mutações no gene CYP21A2, responsável por codificar a enzima 21-
OH, comprometem a sua atividade de maneira específica, conforme o
grau de deficiência enzimática. Ou seja, o grau de mutação (genótipo)
pode presumir o fenótipo do quadro clínico.
Por exemplo, na forma não clássica existe de 20 a 60% da atividade
da 21-OH; esses pacientes não possuem alterações significativas no
eixo mineralocorticoide e no cortisol, em comparação aos 0 a 10% de
atividade enzimática que ocorre na forma clássica. Dentro das sub-
divisões do fenótipo clássico da doença, na forma perdedora de sal
a falta de atividade enzimática ocorre devido a grandes deleções ou
mutações, enquanto na forma virilizante simples ainda existe uma
mínima atividade detectável da enzima (de 2 a 10%), suportando algu-
ma produção de aldosterona. A forma perdedora de sal, portanto, tem
um fenótipo de doença mais grave, já que se estima que a atividade da
enzima seja inferior a 1 ou 2%.
A partir disso, observe a imagem e a explicação a seguir:
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
401

COLESTEROL

17-α-Hidroxilase 17-α-Hidroxilase
PREGNENOLONA 17 - α - hidroxilase pregnenolona DHEA DHEAS

3-β-Hidroxiesteroide desidrogenese 3-β-Hidroxiesteroide desidrogenese 3-β-Hidroxiesteroide


desidrogenese

17-α-Hidroxilase 17-α-Hidroxilase Aromatase


17 - α - hidroxilase
PROGESTERONA Androstenediona Estrona
progesterona
21-β-Hidroxilase 21-β-Hidroxilase

Aromatase
DESOXICORTICOESTERONA Desoxicortisol Testosterona Estradiol

11-β-Hidroxilase 11-β-Hidroxilase

CORTICOESTERONA Cortisol DHT

Aldosterona-sintetase

ALDOSTERONA

Figura 1: Esteroidogênese adrenal e consequências da deficiência


de 21-beta-hidroxilase.
Elaborado pelo autor.

A enzima 21-OH catalisa a conversão da 17-OH-progesterona em


11-desoxicortisol (precursor de cortisol), e da progesterona em desoxi-
corticosterona (precursor da aldosterona). A sua deficiência tem um
efeito em cascata: haverá prejuízo na síntese de cortisol e, devido ao
feedback negativo do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, os níveis de
corticotrofina (ACTH) irão aumentar. O córtex adrenal, por sua vez, sob
efeito do ACTH, sofre hiperplasia e estimula uma produção excessiva
de precursores do cortisol (como a 17-hidroxiprogesterona), que irão
se acumular e ser desviados para o aumento da síntese de andrógenos
adrenais.
Resumidamente, as manifestações clínicas ocorrem devido à redu-
ção na produção de cortisol, ocorrendo a translocação da produção de
hormônios dentro das vias da esteroidogênese adrenal e afetando a sín-
tese de aldosterona e/ou de andrógenos.

4. Manifestações clínicas:

Os sinais e sintomas da deficiência de 21-OH decorrem da deficiência


de glicocorticoide (cortisol) associada a um excesso de andrógenos e,
possivelmente, à deficiência de mineralocorticoides (aldosterona). Para
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
402

facilitar a visualização das manifestações clínicas, a HAC é dividida


em forma clássica e não clássica. A primeira possui manifestações ao
nascimento e é mais grave, ao passo que a segunda pode se apresentar
na infância, puberdade ou vida adulta.

Forma clássica:

A forma clássica é a causa mais comum de genitália atípica em me-


ninas recém-nascidas (DDS 46 XX), sendo este um dos principais sinais
clínicos no sexo feminino.
Podemos perceber uma genitália externa ambígua com aumento
do clitóris, fusão labial em variados graus e formação de seio urogeni-
tal (abertura comum entre uretra e vagina). A clitoromegalia eventu-
almente pode ser confundida com um pênis e, por a uretra ser pouco
visível, diagnósticos errôneos como criptorquidia e hipospadia podem
ocorrer. Você pode aprender mais sobre este assunto no capítulo ante-
rior, sobre os distúrbios da diferenciação sexual.
Recém-nascidos do sexo masculino podem apresentar achados
sutis como hiperpigmentação do escroto e/ou falo aumentado, mas
geralmente possuem desenvolvimento genital normal e só são diag-
nosticados através de triagem neonatal, deficiência aguda de minera-
locorticoide (crise adrenal ou perdedora de sal), ou tardiamente com
sinais de pubarca precoce.
Algumas literaturas subdividem a forma clássica em forma perde-
dora de sal e forma virilizante simples, embora ambas cursem com vi-
rilização.

Forma clássica perdedora de sal:


Esta forma de apresentação clínica é a mais agressiva e, infelizmen-
te, a forma mais comum de deficiência de 21-OH clássica, correspon-
dendo a cerca de 70% dos casos. A sua peculiaridade, além dos níveis
altíssimos de 17-hidroxiprogesterona (17-OHP), consiste no fato de que
também há deficiência mineralocorticoide (com hipercalemia e hipo-
natremia), sendo detectadas baixas taxas de aldosterona e altos níveis
de renina, com possível evolução para crise adrenal, choque hipovolê-
mico e morte, caso não seja reconhecida a tempo.
Aqui é importante lembrar que a crise adrenal é um quadro agudo e
grave em que ocorre depleção de volume, desidratação hiponatrêmica,
hipotensão, vômito, diarreia e hipoglicemia, entre outros sinais. Os ne-
onatos podem abrir um quadro de perda ponderal progressiva, desidra-
tação, vômitos, anorexia, distúrbios no ritmo cardíaco e cianose dentro
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
403

das três primeiras semanas de vida (comumente entre o 8º e 15º dia).


Assim, é fundamental, além da triagem neonatal, que todos os médicos
estejam atentos ao reconhecimento da crise adrenal nos pacientes com
hiperplasia adrenal congênita, uma vez que sem o diagnóstico e trata-
mento adequados, o quadro evolui para óbito.

Forma clássica não perdedora de sal ou


virilizante simples:
A diferença para esta forma fica nítida só pela maneira como foi de-
nominada: nela, não há perda de sal, somente virilização. Dessa forma,
a atividade mineralocorticoide está preservada, com níveis de aldos-
terona e renina normais e, assim como na forma perdedora de sal, há́
virilização da genitália externa no sexo feminino e sinais de adrenarca
precoce no sexo masculino. Nos homens, essas manifestações surgem
nos primeiros seis meses de vida ou, em casos mais arrastados, por
volta dos cinco anos de idade.
Alguns achados decorrentes da virilização pós-natal são: aumento
progressivo do clitóris ou pênis; surgimento precoce de pelos pubianos
e odor androgênico; acne ou comedões, voz progressivamente mais
grave e avanço da idade óssea, com comprometimento da estatura fi-
nal, algumas vezes ainda associado à puberdade precoce central.

Forma não clássica:

Cerca de 15 vezes mais prevalente que a clássica, essa forma inicia


as suas manifestações tardiamente, pois ainda existe certa atividade
enzimática residual da 21-OH, o que ocasiona hiperandrogenismo sem
alterações na atividade mineralocorticoide e nem deficiência de glico-
corticoide em situação basal.
Crianças com pubarca precoce ou com velocidade de crescimento
acelerada (idade óssea avançada) devem ser investigadas. Adolescentes
e adultas do sexo feminino com hiperplasia adrenal congênita da forma
não clássica apresentam sintomas como hirsutismo, acne, amenorreia/
oligomenorreia e infertilidade, o que pode ser confundido com a síndro-
me dos ovários policísticos (SOP), um importante diagnóstico diferencial.
Assim, recomenda-se a dosagem dos níveis de 17-OHP basal em to-
das as mulheres que apresentam quadro clínico suspeito de SOP, pois,
nessa investigação, 10% delas recebem o diagnóstico de HAC. Além dis-
so, a ausência de tratamento leva ao aumento do risco de abortamento.
No sexo masculino, são poucos os casos que recebem o diagnóstico,
uma vez que a maioria deles é assintomático. Muitos são identifica-
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
404

dos devido a testagem após diagnóstico de um membro familiar. Duas


características que podem ser percebidas são oligospermia isolada e
tumores testiculares de restos adrenais (TTRA).
O diagnóstico da HAC não clássica é suspeito em pacientes com ní-
veis de 17-OHP acima de 200 ng/dl.

Os TTRA são tumorações originadas da hiperplasia de restos adrenais in-


tratesticulares. Geralmente são bilaterais e acometem pacientes portadores de
HAC em corticoterapia insuficiente. O mau controle dos níveis de andrógenos
adrenais impede a ação apropriada de gonadotrofinas nos testículos, eviden-
ciando um quadro clínico de infertilidade e oligospermia (produção de testos-
terona e espermatogênese comprometida).
Estes tumores testiculares são raros e podem ser confundidos na histolo-
gia com tumores de células de Leydig, que possuem um tratamento e prognós-
tico extremamente discrepante. Assim, é necessário, na prática clínica, corre-
lacionar HAC no paciente masculino com aumento/tumoração testicular.

5. Diagnóstico:

Juntamente aos sinais clínicos, mais visíveis nas pacientes do sexo


feminino, pela virilização da genitália feminina ao nascer, o acúmulo
de metabólitos precursores da esteroidogênese adrenal, que ocorre de-
vido às deficiências enzimáticas da HAC, pode auxiliar no diagnóstico
laboratorial.
Nesse sentido, a triagem neonatal, conhecida como “teste do pezinho”,
permite o rastreio da deficiência de 21-OH por meio da quantificação dos
níveis de 17-hidroxi-progesterona. Quanto maior a deficiência enzimáti-
ca, maior serão os níveis de 17-OHP. Assim, pacientes sintomáticos com
as formas clássicas apresentam dosagens de 17-OHP muito maiores do
que as de pacientes diagnosticados com a forma não clássica.
Esse diagnóstico precoce, possibilitado pela triagem, além de per-
mitir o início rápido da terapia de reposição hormonal, pode antever
crises adrenais, prevenir complicações como a hiponatremia neonatal
(que leva a déficits cognitivos) e corrigir possíveis erros de registro de
sexo social.
O teste do pezinho se baseia em uma punção do calcanhar em car-
tões de papel-filtro e é realizado, em média, de dois a sete dias após
o nascimento. Resultados moderadamente alterados são convocados
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
405

para uma nova coleta, e resultados muito elevados são encaminhados


para centro especializado e coleta de exames confirmatórios séricos.
Algumas situações podem alterar os resultados desse exame:
Resultados falso-positivos podem ocorrer em recém-nascidos com
baixo peso ao nascer (< 2500 g); prematuros (< 36 semanas); desi-
dratados, ictéricos ou submetidos a estresse perinatal; ou devido à
metodologia utilizada no exame, como reação cruzada com outros
esteroides.
Resultados falso-negativos podem ocorrer em recém-nascidos trata-
dos com corticosteroide; filhos de mães que foram tratadas com corti-
costeroide durante a gestação; recém-nascidos submetidos à transfu-
são sanguínea; ou coleta de amostras antes de 24 a 48 horas de vida.

Nesses casos especiais, deve-se repetir a triagem quando o bebê ti-


ver entre uma e duas semanas de vida, além de monitorar a perda de sal
entre o intervalo das amostras.
A tabela a seguir mostra qual a conduta a ser seguida, conforme os
níveis séricos de 17-OHP.

Tabela 1: Conduta a ser tomada quando do recebimento dos resultados da triagem


neonatal da 17OHP no papel de filtro, de acordo com peso ao nascimento, tempo
de vida na coleta (3º a 5º dia), utilizando o percentil 99% recomendado pelo
Ministério da Saúde.
Fonte: Triagem Neonatal Biológica: Manual Técnico (2016).

17-OHP (ng/ml) entre 17-OHP (ng/ml) entre 17-OHP (ng/ml) entre


Peso ao nascimento (g)
3º e 5º dia de vida 3º e 5º dia de vida 3º e 5º dia de vida
< 1500 < 110 ≥ 110 e < 220 ≥ 220
≥ 1501-1999 < 43 ≥ 43 e < 86 ≥ 86
≥ 2000-2499 < 28 ≥ 28 e < 56 ≥ 56
≥ 2501 < 15 ≥ 15 e < 30 ≥ 30
Interpretação 17-OHP normal 17-OHP elevada 17-OHP muito elevada
Convocação de
Desnecessários novas Repetir dosagem em
Conduta emergência para teste
investigações papel-filtro
confirmatório sérico

Na maior parte dos neonatos com a forma clássica, encontramos con-


centrações de 17-OHP acima de 35 a 50 ng/ml, sendo que a maioria dos
pacientes tem o diagnóstico confirmado com valores acima de 100 ng/
ml. Embora valores inferiores a 10 ng/ml excluam a HAC, valores suspei-
tos, ou seja, moderadamente elevados, deverão ter a coleta no papel-filtro
repetida e prosseguimento da investigação diagnóstica por meio de ou-
tros testes confirmatórios no soro, além de acompanhamento médico.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
406

O seguimento ideal para bebês suspeitos ou confirmados na triagem


consiste na dosagem sérica de 17-OHP, cortisol, androstenediona e tes-
tosterona. É fundamental a solicitação de eletrólitos séricos (sódio e po-
tássio) para avaliar a perda de sal. Alguns protocolos também citam a
solicitação de ureia, creatinina, glicemia e gasometria.
O diagnóstico é confirmado com altos níveis de 17-OHP, e altos níveis
androstenediona e testosterona. Vale lembrar que os níveis séricos de
testosterona em pacientes 46XY são naturalmente elevados após 7-10
dias de vida devido à minipuberdde. Não se recomenda a dosagem de
SDHEA e DHEA no período neonatal, pelos níveis fisiologicamente mais
altos nesta fase produzidos pela adrenal fetal e também por serem en-
saios pouco específicos. Os níveis de cortisol usualmente estão baixos
ou inadequadamente normais para a situação de estresse. Além disso,
ACTH (corticotrofina), renina e aldosterona fazem parte dos exames la-
boratoriais para o diagnóstico.
Resultados incertos e limítrofes são raros, mas diante desse impasse
podemos lançar mão de testes adicionais como teste de estimulação de
ACTH, testagem por biologia molecular ou exames de esteroides inter-
mediários.

6. Exames complementares:

Teste de estímulo com ACTH: é geralmente realizado na investiga-


ção da forma não clássica, pois nela os níveis de 17-OHP não são muito
elevados. O teste é feito com a administração de 250 mcg de ACTH na
forma de cosintropina, e dosagem do cortisol e da 17 OH progesterona
basais e uma hora após o estímulo farmacológico. Para a confirmação
diagnóstica, são esperados níveis de 17-OH-progesterona superiores a
1000 a 1500 ng/ml.

Ultrassonografia pélvica: requer auxílio de um profissional experien-


te na avalição de estruturas mullerianas em recém-nascidos com atipia
genital, auxiliando na investigação do sexo genético. Nesse cenário, é
importante salientar que pacientes com genitália atípica podem buscar
alternativas com resultado mais rápido, como o cariótipo ou a reação em
cadeia da polimerase (PCR) para sequências do cromossomo Y.

Teste genético: é um teste caro e, por isso, tem indicações limitadas:


resultado inconclusivo do teste de estímulo com ACTH; assintomáticos,
mas com níveis de 17-OHP persistentemente elevados; persistência da
suspeita clínica apesar do uso de glicocorticoides; e aconselhamento
genético de pacientes em busca de fertilidade.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
407

Diagnóstico pré-natal: embora também seja um teste caro, esse mé-


todo consiste na análise molecular por amniocentese ou amostras de
vilosidades coriônicas dos genes CYP21A2 fetais. Essa triagem pré-natal
geralmente é realizada quando há risco de HAC (situações como irmão
afetado com defeito genético, ou parceiros que sabidamente são heterozi-
gotos para mutações graves), devido à possibilidade de prever o diagnós-
tico e indicação de tratamento experimental.

7. Tratamento:

Forma clássica:
O objetivo do tratamento, que deve ser feito de forma precoce e ao longo
de toda a vida do paciente, consiste em:
Repor as deficiências de glicocorticoides e mineralocorticoides, pre-
venindo crises adrenais e mantendo um volume plasmático ideal e o
equilíbrio fisiológico.
Atenuar os sinais e sintomas do hiperandrogenismo, permitindo o
crescimento e desenvolvimento normal do infante.

Em relação à administração de glicocorticoides na HAC durante a in-


fância, a droga de primeira escolha é a hidrocortisona em uma dosagem
semelhante à síntese fisiológica diária de cortisol (10-15 mg2/m2/dia). Para
mimetizar o padrão circadiano de produção, faz-se importante adminis-
trar 50 a 75% da dose diária pela manhã (o mais cedo que o paciente con-
seguir) e fracioná-la em três ou quatro doses de maneira decrescente ao
longo do dia, evitando uma grande dose noturna que possivelmente não
irá conseguir suprimir o pico de ACTH matinal.
Considerando repor hidrocortisona 10 a 15 mg/m² por dia para uma
criança de 155 cm e 50 kg, o esquema ideal seria:
Como o paciente possui 1,47 m² de superfície corporal, logo, de 14,7 a 22
mg de hidrocortisona devem ser repostos.
Essas doses calculadas são, respectivamente, associadas a 10 mg/m²
e 15 mg/m². Nesse caso, vamos optar pelo meio termo: 20 mg de hidro-
cortisona VO.
Pela manhã essa criança deveria ingerir no mínimo 10 mg de hidro-
cortisona, 6 mg à tarde e 4 mg ao escurecer.

Doses superiores a 20 mg/m² já foram associadas à supressão do


crescimento na infância. Ainda não há hidrocortisona comercialmente
disponível no Brasil. Na prática clínica, o paciente pode comprar a me-
dicação no exterior ou o profissional pode encomendar na farmácia da
Universidade de São Paulo (USP). Uma dúvida frequente dos cuidadores
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
408

de crianças com HAC refere-se à suspensão líquida de hidrocortisona,


ela não possui atividade bioequivalente ao comprimido, portanto não é
recomendada. Medicações que aceleram o metabolismo do cortisol (por
exemplo, anticonvulsivantes ou antirretrovirais) devem ser consideradas
no momento de definir uma reposição de cortisol suficiente.
Prednisona, prednisolona e dexametasona podem ser administradas
em dose única como segunda opção, entretanto associam-se à supressão
do crescimento e ganho de peso na infância assim como maior risco de
Síndrome de Cushing iatrogênica. Durante o monitoramento ambulato-
rial não se objetiva normalizar os níveis séricos de 17-OH progesterona,
mas sim normalizar conforme faixa etária e sexo os níveis de androste-
nediona e testosterona.
O tratamento com mineralocorticoides demonstrou melhora no des-
fecho de altura em todas as formas de HAC clássica. O fármaco utilizado
é a fludrocortisona, na dose de 0,1 mg, uma vez ao dia, podendo variar de
0,05 a 0,4 mg/dia. A dose costuma ser maior em pacientes mais novos e
reduzir gradativamente.
Deve-se manter o monitoramento da hiponatremia, hipercalemia, re-
nina plasmática, e aldosterona em seus respectivos valores de referência.
Para lactentes (zero a doze meses), prescreve-se a suplementação oral
de sal durante um ano. Essa indicação ocorre porque essa faixa etária
possui menor sensibilidade renal aos mineralocorticoides, além de não
existir a possibilidade de adição de sal na alimentação, pois ainda não
houve a introdução alimentar. Assim, utiliza-se de um a dois gramas de
sal por dia, diluído em 20 a 30 ml de água, oferecendo entre as mamadas.
De modo prático, uma tampinha de caneta Bic = 1g de sal

Ajustes de dose e monitoramento ambulatorial:


Segundo as recomendações do Ministério da Saúde, a frequência das
consultas deve ser gradualmente modificada. Nos primeiros dois meses
de vida, sugere-se acompanhamento semanal com dosagens de eletróli-
tos. Após isso, a consulta passa a ser mensal até os seis meses. Dos sete
aos doze meses, preconiza-se consultas a cada dois meses e, após um ano
de vida da criança, as consultas de seguimento podem ser feitas a cada
três ou quatro meses, do mesmo modo que a forma não clássica.

Tabela 2: Frequência recomendada pelo Ministério da Saúde para o


acompanhamento de pacientes com HAC não clássica.
Idade da criança Frequência de acompanhamento
0 a 2 meses Semanalmente
3 a 6 meses Mensalmente
7 a 12 meses A cada 2 meses
13 ou mais meses A cada 3 ou 4 meses
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
409

Pontos importantes a serem analisados no monitoramento ambu-


latorial são ganhos ponderais e de estatura, com destaque para sinais
cushingoides, que podem indicar superdosagem de glicocorticoides.
Após os dois anos de idade, deve ser realizada, anualmente, uma
avaliação da idade óssea por meio da radiografia de mãos e punhos,
com o intuito de analisar o crescimento e a maturação óssea. O hipe-
randrogenismo causa aceleração da velocidade de crescimento e fe-
chamento prematuro das epífises, levando à baixa estatura. Por outro
lado, doses exageradas de glicocorticoides e mineralocorticoides levam
à lentificação da taxa de crescimento e da idade óssea. Isso torna um
verdadeiro desafio a determinação de uma dose que suprima a secreção
andrógena e, ao mesmo tempo, permita uma taxa de crescimento ideal.

Em relação ao controle laboratorial, são preconizadas as medições


dos níveis séricos de 17-OHP, androstenediona e testosterona, além do
cálculo da atividade da renina plasmática (ARP) e da dosagem de ele-
trólitos. Baixos níveis de potássio e ARP suprimida indicam dosagem
exagerada de mineralocorticoides, levando à hipertensão. Por isso,
em todo o seguimento ambulatorial se recomenda a monitorização da
pressão arterial do paciente. Visto que o objetivo do tratamento não é
normalizar a 17OHP, o valor pode ficar acima de 1000 ng/dl.

Genitália ambígua:
Recém-nascidos com genitália atípica sem gônadas palpáveis de-
vem ter eletrólitos monitorados a partir do terceiro dia de vida e, após
coleta dos exames basais, é possível acompanhar o paciente internado
com eletrólitos diários ou iniciar tratamento empírico para HAC. Para
saber mais sobre o assunto, você pode voltar ao capítulo anterior.
Alguns casos de virilização, como por exemplo uma clitoromegalia
sem demais alterações, a genitália pode normalizar somente com o tra-
tamento clínico.
Quando há uma alteração anatômica virilizante mais significativa,
essas pacientes são encaminhadas para centros especializados em re-
construção cirúrgica. A idade correta para a genitoplastia feminizante
é controversa e algumas literaturas citam que seja realizada antes dos
dois anos de idade, pois, quando o diagnóstico é tardio, há a necessi-
dade de avaliação psicológica para definição da identidade de gênero
antes da realização da cirurgia.
Caso a paciente não tenha sido submetida ao procedimento, um exa-
me para avaliar possível obstrução anatômica ao fluxo menstrual deve
ser realizado antes da puberdade.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
410

Crises adrenais:
Você já sabe que devemos ficar extremamente atentos à possibilida-
de de uma crise adrenal nos primeiros dias de vida de um recém-nasci-
do. No entanto, essa crise também pode ser desencadeada por doenças
adjacentes, traumas e situações de estresse, caso não haja um reajuste
da dose da terapia habitual do paciente com HAC clássica.
Os objetivos iniciais são o tratamento da desidratação, da hipoten-
são e dos distúrbios eletrolíticos, além da correção do hipocortisolismo
e da possível hipoglicemia. Sugerimos fortemente que, se você ainda
não viu, leia (ou releia!) o item “crise adrenal” do capítulo 15, pois lá es-
tará explicado todo o manejo de uma crise adrenal, independentemente
da etiologia.
Caso tenhamos a suspeita da forma perdedora de sal ou a confirma-
ção de uma crise adrenal, o tratamento hospitalar deve ser feito com
urgência, com a infusão de bolus intravenoso (IV) de 10 a 20 ml/kg de
solução salina a 0,9%, além de doses de ataque de hidrocortisona admi-
nistradas por infusão IV contínua. Não se deve utilizar soro fisiológico
hipotônico, pois pode piorar a hiponatremia.
A hidrocortisona intravenosa em meio hospitalar pode ser infundida,
em bolus, da seguinte forma:
Lactentes e pré-escolares com até 3 anos: hidrocortisona 25 mg IV.
Escolares com idade entre 3 e 12 anos: hidrocortisona 50 mg IV.
Adolescentes com 12 anos ou mais: hidrocortisona 100 mg IV.

Após o bolus, essa dosagem torna-se a dose diária e deve ser admi-
nistrada por via intravenosa dividida a cada seis horas. Se durante a
evolução clínica o paciente apresentar melhora e aceitação normal da
dieta, as doses subsequentes poderão ser reduzidas para ½ e ¼, até a
dose usual por via oral, juntamente à alta hospitalar.
Como a hidrocortisona nessas dosagens também apresenta ação
mineralocorticoide, torna-se desnecessária a reposição mineralocorti-
coide, embora alguns hospitais iniciem fludrocortisona durante a redu-
ção para a dose de manutenção.
Pacientes portadores de HAC clássica que sofreram traumas, ou com
doenças associadas à febre, vômito e/ou diarreia acentuados, devem ter
a dose de glicocorticoide dobrada ou triplicada durante o quadro, se to-
lerarem medicação por via oral. Nesses casos, é primordial se atentar
ao risco de hipoglicemia. Caso o quadro clínico seja mais grave, com
desidratação significativa, a criança deve receber glicocorticoides in-
travenosos, conforme indicado acima na administração hospitalar de
hidrocortisona IV.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
411

Forma não clássica:

Após o diagnóstico ser estabelecido, o tratamento da forma não


clássica é voltado para pacientes mulheres com hiperandrogenismo
presente, e crianças com sintomas clínicos. Pacientes assintomáticos,
habitualmente homens, não necessitam de tratamento.
Os pacientes devem monitorar as concentrações séricas de 17-OHP,
androstenediona e testosterona, a cada três a quatro meses, para ajus-
tes de dose e acompanhamento dos sintomas. Se o paciente precisar
de glicocorticoides, a regra geral da reposição hormonal sempre será:
a menor dose possível que melhore o quadro do paciente. A reposição
mineralocorticoide não é necessária.
Crianças com pubarca precoce ou acelerada juntamente com uma
velocidade de crescimento que cruza os percentis de altura e matura-
ção óssea significativamente avançada (dois anos ou mais) devem re-
ceber corticoterapia a fim de suprimir o hiperandrogenismo. Crianças
assintomáticas ou com pubarca precoce sem déficit no crescimento,
podem realizar a monitorização da maturação óssea e da velocidade
de crescimento a cada seis meses, sem a necessidade de tratamento
com glicocorticoides. É importante ressaltar que altas doses de glico-
corticoides (acima de 15 mg/m2/dia) ou GC de alta potência e longa
ação como dexametasona têm impacto negativo sobre o crescimento.
O ideal seria utilizar uma dose mínima eficaz. Na HAC, quando há um
quadro de puberdade precoce associado, por exemplo, existem tam-
bém outras terapias como o bloqueio de esteroides sexuais e o uso de
hormônio do crescimento e de agonistas do hormônio liberador de go-
nadotrofina (GnRH).
Nas mulheres com HAC não clássica, os sintomas de hiperandro-
genismo são manejados de forma semelhante ao tratamento das pa-
cientes com SOP (vide capítulo 19). Utiliza-se anticoncepcionais orais
(principalmente aqueles com progestágeno de ação antiandrogênica,
como o acetato de ciproterona) e espironolactona. Pacientes que não
toleram essas medicações ou que desejam gestar se beneficiam com
o uso de glicocorticoides para manter os ciclos ovulatórios e reduzir
as concentrações de androgênio adrenal sérico, como a deidroepian-
drosterona (DHEA) e o sulfato de DHEA (DHEAS). A espironolactona é
contraindicada na gestação, pois pode feminilizar um feto masculino.
Ao nos depararmos com uma paciente com HAC não clássica que
possui infertilidade anovulatória e tem o desejo de engravidar, deve-
mos lembrar que a progesterona da fase folicular advinda da adrenal
deve ser suprimida para menos de 0,6 ng/ml, sendo os glicocorticoides
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
412

o tratamento inicial para a indução da ovulação. Pode-se administrar


dexametasona de 0,25 a 0,5 mg, uma vez ao dia, ou prednisona, de 5 a 7,5
mg por dia, dividida em duas doses.
Caso os pacientes do sexo masculino, que geralmente são assinto-
máticos, apresentem TTRA, deve ser instituído o mesmo esquema de
indução de fertilidade com glicocorticoides que é prescrito para as mu-
lheres a fim de restaurar a fertilidade, reduzir o volume da lesão testicu-
lar e normalizar os níveis de andrógenos adrenais.

Adrenalectomia cirúrgica:
Em pacientes refratários, com hiperandrogenismo não controlado
ou que tiveram Síndrome de Cushing iatrogênica (vide capítulo 11), a
adrenalectomia pode ser considerada. Ela permite uma reposição de
glicocorticoides em doses mais baixas devido à redução dos níveis cir-
culantes de 17-OHP. Entretanto, a terapia com fludrocortisona perma-
nece necessária.
Alguns estudos citam um maior risco de crise adrenal após a cirurgia.

8. Prognóstico:

A triagem neonatal para a hiperplasia adrenal congênita permitiu a


redução nas taxas de mortalidade infantil. No entanto, pacientes de to-
das as faixas etárias apresentam maior risco de mortalidade por crises
adrenais, principalmente precipitadas por doenças infecciosas (com
destaque para as gastrointestinais) e por erros de compreensão a res-
peito do tratamento.
Nas crises adrenais, a hipoglicemia parece causar maior deterio-
ração clínica do que os distúrbios eletrolíticos, aumentando o risco de
morte e podendo causar convulsões, principalmente em crianças. Na
forma não clássica, as crises adrenais também podem ser resultantes
de uma insuficiência adrenal secundária à interrupção abrupta da tera-
pia com glicocorticoides (vide capítulo 15).
O tratamento da HAC auxilia os pacientes a ter um padrão de cresci-
mento normal. Entretanto, na maior parte dos casos, a altura final per-
manece abaixo da altura alvo familiar.
Quando a secreção adrenal de andrógenos é mal controlada (e em
virtude de um diagnóstico muitas vezes tardio), crianças com HAC
têm maior propensão a desenvolver puberdade precoce do tipo central,
como você irá aprender no capítulo 30.
Deve-se manter o monitoramento, orientação e manejo das compli-
cações da terapia, como Síndrome de Cushing, obesidade e osteopenia,
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
413

causadas pelo uso crônico de glicocorticoides. Pacientes que tratam a


doença desde a infância podem apresentar densidade mineral óssea
significativamente menor, em comparação à população de referência.
Nesse caso, recomenda-se que pacientes adultos realizem, periodica-
mente, medições por meio do exame de densitometria óssea.

Deficiência de 11-beta-hidroxilase (CYP11B1):


Responsável por 5 a 8% dos casos de HAC, a deficiência da enzima
CYP11B1 também envolve hipocortisolemia e virilização devido à produção
exagerada de andrógenos. Entretanto, nesse caso, ocorre um acúmulo dos
precursores de mineralocorticoides.
Na via glicocorticoide, essa enzima converte o desoxicortisol em corti-
sol, e na via mineralocorticoide, converte a desoxicorticosterona (DOC) em
corticosterona. Anormalidades ou inativação da CYP11B1 causam excesso
de DOC, que por sua vez estimula os receptores mineralocorticoides, levando
à reabsorção de sal. Esse mecanismo ocasiona exatamente o oposto da defi-
ciência de 21-OH – ou, se você preferir pensar deste modo: leva a um quadro
semelhante ao de excesso na dosagem de mineralocorticoides.

COLESTEROL

17-α-Hidroxilase 17-α-Hidroxilase
PREGNENOLONA 17 - α - hidroxilase pregnenolona DHEA DHEAS

3-β-Hidroxiesteroide desidrogenese 3-β-Hidroxiesteroide desidrogenese 3-β-Hidroxiesteroide


desidrogenese

17-α-Hidroxilase 17-α-Hidroxilase Aromatase


17 - α - hidroxilase
PROGESTERONA Androstenediona Estrona
progesterona
21-β-Hidroxilase 21-β-Hidroxilase

Aromatase
DESOXICORTICOESTERONA Desoxicortisol Testosterona Estradiol

11-β-Hidroxilase 11-β-Hidroxilase

CORTICOESTERONA Cortisol DHT

Aldosterona-sintetase

ALDOSTERONA

Figura 2: Esteroidogênese adrenal e consequências da deficiência de 11-beta-hidroxilase.


Elaborado pelo autor.

Os pacientes manifestam hipernatremia, hipocalemia e hipertensão (em


2/3 dos casos), e o diagnóstico é estabelecido por altos níveis plasmáticos de
11-desoxicortisol e de androgênios adrenais (DHEA, androstenediona e testos-
terona). Os níveis de aldosterona são baixos, mas a atividade da renina plas-
mática também é baixa, devido ao aumento dos níveis de DOC com atividade
mineralocorticoide.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
414

Caso os resultados sejam inconclusivos, pode-se realizar o teste de estímu-


lo com ACTH, com dosagem de 11-desoxicortisol e androgênios adrenais antes
e depois da administração, como foi explicado anteriormente.
Na triagem neonatal, os níveis de 17-OHP também podem estar aleatoria-
mente elevados, assim como em outros tipos raros de HAC, como a deficiência
de P450 oxidoredutase.
O tratamento dessa forma de HAC consiste em: realização de cirurgia re-
paradora nos casos de meninas virilizadas; terapia anti-hipertensiva com
diuréticos poupadores de potássio ou bloqueadores dos canais de cálcio, caso
necessário; e reposição de glicocorticoides, pois levam à redução dos níveis
de 11-desoxicortisol, desoxicorticosterona e androgênios adrenais. A terapia
mineralocorticoide não é necessária, e o monitoramento é similar ao realizado
na deficiência de 21-OH.

Deficiência de 17-alfa-hidroxilase:
Assim como ocorre nas outras formas de HAC há um acúmulo dos precur-
sores (neste caso são a pregnenolona e progesterona) que geram um desvio na
rota e aumentam a quantidade de desoxicorticosterona. Assim, devido ao efei-
to mineralocorticoide, os pacientes cursam com hipocalemia e hipertensão.
Como essa deficiência cursa com uma supressão leve dos níveis de glico-
corticoides, o que a diferencia da deficiência de 21-OH e de CYP11B1 consiste
na deficiência grave de esteroides sexuais, com consequente ambiguidade ge-
nital no sexo masculino.
A suspeita clínica e o diagnóstico geralmente ocorrem devido ao atraso do
desenvolvimento puberal em uma mulher, seja ela 46XX ou 46XY com fenó-
tipo feminino.

COLESTEROL

17-α-Hidroxilase 17-α-Hidroxilase
PREGNENOLONA 17 - α - hidroxilase pregnenolona DHEA DHEAS

3-β-Hidroxiesteroide desidrogenese 3-β-Hidroxiesteroide desidrogenese 3-β-Hidroxiesteroide


desidrogenese

17-α-Hidroxilase 17-α-Hidroxilase Aromatase


17 - α - hidroxilase
PROGESTERONA Androstenediona Estrona
progesterona
21-β-Hidroxilase 21-β-Hidroxilase

Aromatase
DESOXICORTICOESTERONA Desoxicortisol Testosterona Estradiol

11-β-Hidroxilase 11-β-Hidroxilase

CORTICOESTERONA Cortisol DHT

Aldosterona-sintetase

ALDOSTERONA

Figura 3: Esteroidogênese adrenal e consequências da deficiência de 17-alfa-hidroxilase.


Elaborado pelo autor.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
415

9. Tabela de resumo:
Definição Síndromes causadas por deficiências enzimáticas variadas no processo de
esteroidogênese adrenal.
Classificação Forma clássica: com deficiência glicocorticoide, diagnosticada ao nascimento,
mais agressiva e rara, pode ocasionar crise perdedora de sal devido à deficiência
mineralocorticoide. Subdividida em perdedora de sal ou virilizante simples se há
ou não deficiência de mineralocorticoide.
Forma não clássica: sem deficiência glicocorticoide, diagnosticada tardiamente,
mais branda e comum.
Manifestações Clínicas São dependentes da enzima acometida e do grau de deficiência enzimática.
Forma clássica:- deficiência de 21-OH: genitália externa ambígua em meninas,
recém-nascidos do sexo masculino podem apresentar hiperpigmentação da
bolsa escrotal ou falo aumentado. Além disso, hiponatremia, hipercalemia e
crise adrenal.

Forma não clássica: hiperandrogenismo sem alterações na atividade


mineralocorticoide. Crianças com pubarca precoce ou com velocidade de
crescimento acelerada (idade óssea avançada). Mulheres com hirsutismo,
acne, amenorreia/oligomenorreia e infertilidade. No sexo masculino, a maioria é
oligossintomática, podendo apresentar oligospermia ou infertilidade.
Diagnóstico ●Forma clássica: triagem neonatal dosando níveis de 17-OHP (Tabela 1). Se houver
● suspeita, realiza-se testes confirmatórios: 17-OHP, cortisol, androstenediona e
testosterona no soro. Além disso, avalia-se eletrólitos para perda de sal.

Forma não clássica: suspeita clínica + crianças com dosagem de 17-OHP


> 0,8 ng/ml; mulheres adultas com níveis acima de 2 ng/ml (durante a fase
folicular do ciclo menstrual). Geralmente o teste de estímulo com ACTH deve ser
realizado, pois na investigação da forma não clássica, os níveis de 17-OHP não
são muito elevados.

Testes adicionais: estimulação de ACTH, testagem por biologia molecular,


exames de esteroides intermediários, ultrassonografia adrenal, diagnóstico
pré-natal.
Tratamento Varia de acordo com a etiologia e sintomatologia:
Forma clássica:
Corrigir a virilização da genitália feminina;
Mineralocorticoides: fludrocortisona 0,1 mg, uma vez ao dia, podendo variar de
0,05 a 0,4 mg/dia;
Glicocorticoides: hidrocortisona 10 a 15 mg/m², três vezes ao dia; ou
dexametasona 0,25 a 0,5 mg (em crianças, 0,23 mg/m² de superfície corporal),
uma vez ao dia; ou prednisona/prednisolona 5 a 20 mg (em crianças, 3 a 3,5
mg/m² de superfície corporal), uma vez ao dia;
1 a 2 g de sal por dia, diluído em 20 a 30 ml de água entre as mamadas dos
lactentes.

Forma não clássica:


Se a velocidade de crescimento e maturação óssea estiverem significativamente
avançadas: hidrocortisona 10 a 15 mg/m², dividida em três doses diárias para
suprimir o hiperandrogenismo.
Terapias experimentais: bloqueio de esteroides sexuais e uso de GnRHa.
Mulheres com sintomas de hiperandrogenismo:
Anticoncepcionais orais com acetato de ciproterona, espironolactona e, em
alguns casos, glicocorticoides para manter os ciclos ovulatórios.
Em caso de infertilidade feminina ou masculina pode-se administrar
dexametasona de 0,25 a 0,5 mg, uma vez ao dia, ou prednisona, de 4 a 7,5 mg
por dia, dividida em duas doses. Caso se utilize na população pediátrica, deve-
se ajustar a dose por superfície corporal.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
416

10. Leitura recomendada:

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de


Atenção Especializada e Temática. Triagem neonatal biológica: manual técnico
/ Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção
Especializada e Temática. – Brasília: Ministério da Saúde, 2016. 80 p. : il. ISBN
978-85-334-2407-4

Guia Prático de Atualização – Hiperplasia adrenal congênita: triagem neonatal.


Departamento Científico de Endocrinologia (2019-2021). Disponível em: < https://
www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/22106c-GPA_-_Hiperplasia_Adrenal_
Congenita-TriagemNeonatal.pdf>

MERKE, D. P.; AUCHUS, R. J. Congenital Adrenal Hyperplasia Due to 21-Hydroxylase


Deficiency. New England Journal of Medicine, v. 383, n. 13, p. 1248–1261, 24 set.
2020.

Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) – Hiperplasia Adrenal


Congênita. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/protocolos-
clinicos-e-diretrizes-terapeuticas-pcdt/arquivos/2010/hiperplasia-adrenal-
congenita-pcdt.pdf

SPEISER, P. W. et al. Congenital Adrenal Hyperplasia Due to Steroid 21-Hydroxylase


Deficiency: An Endocrine Society* Clinical Practice Guideline. The Journal of
Clinical Endocrinology & Metabolism, v. 103, n. 11, p. 4043–4088, 1 nov. 2018.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
417

Capítulo 29

Baixa Estatura
Mariana Penteado Borges
Tanize Louize Milbradt
Tatiane de Campos

1. Introdução:

O crescimento é um dos parâmetros mais importantes de avalia-


ção durante as consultas de puericultura, pois é um indicador global
de saúde da criança. Os dados antropométricos (peso e comprimento)
devem ser acompanhados no primeiro, segundo, quarto, sexto e décimo
segundo mês de vida e, após, anualmente até que se complete a puber-
dade. Para esse acompanhamento, conta-se com o auxílio das curvas
de crescimento, que são instrumentos adaptados para sexo e idade nas
quais se observa a evolução do ganho pondero-estatural ao longo do
tempo. Atualmente, o Ministério da Saúde, recomenda as curvas da Or-
ganização Mundial de Saúde (OMS) que estão disponíveis em desvio
padrão (DP) e em percentis.

2. Epidemiologia:

A prevalência da baixa estatura (BE) é avaliada considerando a dis-


tribuição gaussiana da altura, e se estima que 2,5% da população a apre-
senta. A queixa de BE é mais frequente em escolares, principalmente em
torno de 7 a 10 anos de idade, e suas causas mais comuns (80%) são fi-
siológicas, como BE familiar e retardo constitucional do crescimento e
puberdade (RCCP).
A deficiência de hormônio do crescimento (GH) é uma causa rara de
baixa estatura, sendo responsável por 1 a cada 10000 casos.

3. Fisiopatologia:

Para entendermos os mecanismos que levam à baixa estatura, pre-


cisamos relembrar como ocorre o processo de crescimento normal ao
longo da infância e da adolescência.
O ganho de estatura é um processo contínuo, mas não linear. Isso
significa que existem períodos da vida em que a criança cresce mais
e períodos de menor ganho de estatura. No entanto, a curva de cres-
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
418

cimento normal é sempre ascendente e segue o padrão esperado para


idade, sexo e potencial familiar. As fases de crescimento são semelhan-
tes entre os meninos e as meninas, porém, podem ocorrer em tempos e
durações diferentes, especialmente na puberdade, que costuma iniciar
antes no sexo feminino.
O crescimento intrauterino é orientado, principalmente, pela nutrição
materna e por genes que determinam fatores intrauterinos e placentá-
rios. No início da gestação, ocorre um ganho de comprimento rápido e
que desacelera até o momento do parto. Entretanto, é importante ressal-
tar que nem todos os genes que expressam o crescimento estão ativa-
dos na vida intrauterina. Por isso, crianças que nasceram pequenas para
a idade gestacional (PIG) podem ser altas na vida adulta, assim como
crianças grandes para idade gestacional (GIG) podem apresentar baixa
estatura futuramente.
Durante a primeira infância, os dois primeiros anos de vida são mar-
cados por aumentos significativos na estatura. Nesse período, o cresci-
mento ainda sofre influência dos fatores genéticos, mas existe grande
contribuição da nutrição infantil. Além disso, é durante essa fase da
vida que pode ocorrer a chamada “mudança de canal”, quando crianças
que nasceram PIG ganham estatura rapidamente (chamado de “catch
up”) e crianças GIG reduzem a velocidade de crescimento (VC) e se ade-
quam ao canal genético.
No restante da infância, após os dois primeiros anos de vida, o cres-
cimento passa a seguir um padrão mais linear, com uma velocidade de
crescimento constante, e que reduz levemente antes de preceder o esti-
rão puberal. São esperados ganhos médios de:

0 a 12 meses: 25 cm/ano.
1 a 2 anos: 12 cm/ano.
2 a 3 anos: 10 cm/ano.
4 a 8 anos: 5 a 7 cm/ano.
8 anos até puberdade: 5 cm/ano.

Na puberdade, o crescimento é conhecido como “estirão”, ocorrendo


aumento significativo da estatura em um curto período. Espera-se um
crescimento de 8 a 12 cm/ano, influenciado pela sinergia entre os hormô-
nios sexuais e o hormônio do crescimento (GH). Nas meninas, a puberda-
de se inicia, em geral, a partir dos 10 anos, com o aparecimento do broto
mamário, e é considerada normal se começar entre os 8 e 13 anos. Em
relação aos meninos, a puberdade deve iniciar entre 9 e 14 anos, sendo o
marco inicial caracterizado pelo aumento do volume testicular.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
419

Para que as metas de crescimento sejam alcançadas, o sistema endó-


crino precisa funcionar de maneira harmônica e sinérgica. O principal
fator de crescimento no período pós-natal é o IGF-1 (fator de crescimento
semelhante à insulina tipo 1 ou somatomedina C), que é regulado pelo
GH e age sobre a placa de crescimento. Esse fator é produzido no fígado e
diretamente na epífise óssea. Os hormônios tireoidianos estimulam a se-
creção de GH e a exposição crônica à níveis elevados de glicocorticoides
leva a diminuição da síntese de GH.

Hipotálamo
GnRH

Hipófise
Secreção pulsátil
GH

Fígado Crescimento
IGF-1

Ossos

Músculos

Figura 1: Eixo de ação do GH e do IGF-1.


Elaborado pelo autor.

4. Diagnóstico:

Critérios diagnósticos:
O déficit de crescimento pode ser diagnosticado por vários critérios,
devendo-se atentar a estas situações.
Estatura de - 2 DP ou mais abaixo da média para idade e sexo ou
abaixo do percentil 3 (definição clássica de BE).
Estatura de - 1 DP da estatura-alvo familiar.
Velocidade de crescimento abaixo de - 2 DP para a idade cronológica
no último ano, ou abaixo de - 1,5 DP por mais de dois anos, na ausên-
cia de baixa estatura.
Previsão de estatura final abaixo de - 2 DP em relação à estatura-alvo.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
420

5. Etiologia:

Retardo constitucional do crescimento


e da puberdade (RCCP):
Ocorre devido a variações genéticas próprias do indivíduo que retar-
dam o crescimento e a maturação óssea e sexual. É a causa mais comum
de atraso puberal e tende a causar baixa estatura por um padrão de he-
rança familiar, muitas vezes autossômico dominante. Nele, várias pesso-
as da família apresentam história de um início da puberdade e “estirão”
tardios, porém com estatura final dentro do esperado para aquela família.

Baixa estatura familiar:


Essa causa de BE também tem origem na genética da família. O início
da puberdade e do estirão puberal são normais, porém a estatura alvo da
criança é menor do que a média populacional, com velocidade de cresci-
mento normal durante toda a infância.

Crianças com perfil de BE familiar merecem investigação, pois seus pais


podem ter sido afetados por patologia não identificada na infância.

Pequeno para idade gestacional (PIG):


Crianças PIG são aquelas que apresentaram um peso e/ou compri-
mento ao nascer abaixo de -2DP ou abaixo do percentil 3 para a idade
gestacional (IG). É um acometimento multifatorial e apresenta fatores
de risco maternos (filho prévio PIG, história pessoal de PIG, aporte nu-
tricional deficiente, idade menor que 18 anos, tabagismo, uso de álcool e
drogas), obstétricos (primiparidade, intervalo interpartal curto, insufici-
ência placentária, pré-eclâmpsia, ganho de peso inadequado, infecção e
anemia na gravidez), fatores epigenéticos próprios do feto e fatores am-
bientais e socioeconômicos (altitude elevada, poluição, baixa escolarida-
de materna, renda familiar baixa).
Cerca de 90% dessas crianças apresentam um ganho rápido de peso
e estatura até os dois anos de vida (processo de “catch up”) e possuem
altura adequada para a idade, entretanto em torno de 10% das crianças
mantêm crescimento reduzido e apresentam baixa estatura. Reconhe-
cer uma criança PIG é muito importante, visto que elas apresentam risco
aumentado para desenvolver doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2
e hipertensão.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
421

Baixa estatura nas doenças crônicas:


Frente à queixa de BE, devemos sempre descartar a presença de do-
enças crônicas. Cada patologia pode causar alteração do crescimento
de maneira diferente. O uso de glicocorticoides tópicos e sistêmicos,
por exemplo, pode levar à BE por desregulação hormonal e distúrbio na
formação do colágeno. Outra causa de baixa estatura relacionada a pa-
tologias crônicas é a desnutrição, principalmente na primeira infância,
já que, nessa fase, o crescimento depende diretamente do aporte ener-
gético. Doenças gastrointestinais, como a doença celíaca e a doença de
Crohn, diminuem a absorção intestinal de nutrientes e podem levar à
baixo peso e BE. A artrite idiopática juvenil sistêmica provoca baixa
estatura pelo estado pró-inflamatório e crianças com doença renal crô-
nica apresentam metabolismo errático do GH, principalmente por dis-
túrbios funcionais do IGF-1. Além disso, apresentam acidose, anorexia,
necessidade de dieta hipoproteica, perda proteica urinária e hipóxia
crônica (associada à anemia).
Doenças respiratórias crônicas, como a asma, podem se associar a BE,
por hipóxia, menor disponibilidade de nutrientes, dietas hipoalergênicas
e infecções de repetição.

Baixa estatura de etiologia endócrina:


Causas endócrinas primárias de baixa estatura são raras, mas devem
ser descartadas durante o processo de diagnóstico.
O hipotireoidismo pode causar BE por déficit nos hormônios tireoide-
anos (T3 e T4), os quais atuam na regulação do metabolismo energético,
do desenvolvimento, do crescimento e da diferenciação celular.
A deficiência do hormônio do crescimento (DGH) pode ser de origem
congênita, em que a criança nasce com um defeito na produção e/ou
secreção de um ou mais hormônios hipofisários, ou adquirida, devido a
tumores intracranianos (principalmente, craniofaringioma), radiação ou
traumatismo cranioencefálico (TCE).

Síndromes relacionadas à baixa estatura:


Várias síndromes genéticas estão associadas a BE. A mais comum,
que deve ser pesquisada nas meninas, é a síndrome de Turner, que leva
ao déficit de crescimento com leve redução na fase intrauterina, redução
progressiva da velocidade de crescimento durante a infância, e ausência
de crescimento na fase puberal.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
422

Algumas características fenotípicas da síndrome de Turner:


Micrognatia.
Pescoço curto e/ou alado.
Baixa implantação das orelhas e cabelos.
Quarto metacarpo curto.

Imagem 1: Paciente com Síndrome de Turner.


Retirado de: Abordagem cirúrgica do pescoço alado em uma paciente com Síndrome de Turner:
relato de caso. Rev. Bras. Cir. Plást. 2019;34 (Supl. 3): 109-111

Displasias ósseas:
Causam BE desproporcional por defeitos intrínsecos no desenvolvi-
mento de ossos e cartilagens. Neste grupo se inclui a acondroplasia.

Imagem 2: Displasias ósseas.


Retirado de: DUARTE, M. L. et al. Spondylometaphyseal dysplasia: an uncommon disease. Radiologia
Brasileira, v. 50, n. 1, p. 63–63, fev. 2017.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
423

6. Anamnese:

O primeiro passo para a investigação de baixa estatura é uma anam-


nese completa e que aborda, inclusive, o passado obstétrico materno.
A queixa principal geralmente envolve a própria BE, mas pode ser acom-
panhada por atraso no desenvolvimento puberal, baixo ganho de peso, ou
ainda discrepância de altura entre o paciente e os irmãos, primos e cole-
gas de escola. Outra afecção que pode acompanhar a queixa é o atraso no
desenvolvimento neuropsicomotor.
Na história da doença atual, devemos abordar o início dos sintomas,
principalmente o momento em que os pais ou cuidadores perceberam
que a criança era mais baixa do que o esperado. Além disso, é importan-
te questionar sobre os hábitos alimentares do paciente e da sua família,
pois isso auxilia no diagnóstico de desnutrição por déficit calórico. Nos
casos em que é difícil estabelecer a rotina alimentar da criança, aconse-
lha-se o uso de um diário alimentar para que os responsáveis registrem
os alimentos e as quantidades consumidas.
O sono tem papel importante na rotina da criança e, por isso, também
deve ser questionado. Devemos perguntar sobre a quantidade de horas
dormidas, o uso de telas (principalmente de celular) na hora de dormir,
além da presença de distúrbios do sono, como insônia e despertares no-
turnos frequentes.
Questionar a existência de doenças crônicas e quais as medicações
em uso.
Quanto à história médica pregressa da criança, é importante avaliar
os dados de nascimento, com ênfase em investigar prematuridade, se re-
cém-nascido PIG, internação em unidade de terapia intensiva (UTI) e do-
enças no período neonatal; aleitamento materno e suplementação de vi-
tamina D e sulfato ferroso. Deve-se acrescentar histórico de internações
no período da primeira infância, bem como problemas na introdução ali-
mentar. Outro dado importante é questionar sobre o acompanhamento
em puericultura e analisar os gráficos de crescimento e ganho de peso
que constam na caderneta da criança. Por fim, indagar sobre a pubarca e
a menarca, caso o paciente já esteja na puberdade.
No passado obstétrico da mãe, é necessário investigar sobre doenças
na gestação do paciente e de outros filhos, além do uso de drogas, consu-
mo de álcool, tabagismo e medicações utilizadas no período pré-natal.
O histórico familiar deve incluir as doenças crônicas (como atopias e
doenças autoimunes), a estatura dos pais, existência de história de baixa
estatura e síndromes genéticas, além da idade da menarca materna e da
pubarca paterna. ’Como o primeiro sinal da puberdade em meninos, au-
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
424

mento de testículos, raramente chama a atenção, costumamos perguntar


sobre, costumamos perguntar sobre o aparecimento de pelos pubianos e
a idade em que o pai começou a fazer a barba.
A revisão de sistemas deve abordar hábitos urinários, história de
constipação e diarreia, doenças respiratórias atuais, frequência de ativi-
dades físicas, alterações cardiovasculares e neurológicas.

7. Exame físico:

Inicia-se com a avaliação do estado geral da criança. É importante a


procura por sinais de desnutrição, como baixo peso, saliência de protube-
râncias ósseas e tecido adiposo ínfimo. A análise de fácies do paciente e
a procura por estigmas que corroborem para o diagnóstico de síndromes
genéticas são necessárias.
A avaliação da genitália é importante para classificar a maturação
puberal do paciente de acordo com os estágios de Tanner. Você poderá
consultá-los no próximo capítulo.
Além disso, deve-se pesar e mensurar o comprimento e/ou altura e o
perímetro cefálico da criança. Até os dois anos de idade, o comprimento
é medido com o paciente deitado e, após os dois anos, com a criança em
pé, preferencialmente com o estadiômetro fixado à parede, para evitar er-
ros de mensuração. Outro parâmetro importante é a envergadura, obtida
pela maior distância entre a ponta dos dedos médios direito e esquerdo,
com os braços abertos. Essa mensuração é importante para classificar a
baixa estatura em proporcional ou desproporcional.
A relação entre o segmento superior e inferior (relação SS/SI) também
auxilia no diagnóstico da BE desproporcionada. O segmento inferior cor-
responde a distância entre sínfise púbica e o chão. O segmento superior é
a estatura subtraída do segmento inferior. Outra maneira de avaliar o seg-
mento superior é a medição da altura da criança sentada. No recém-nas-
cido, o valor esperado dessa relação é de 1,7, e a relação SS/SI diminui com
o aumento da idade, até ser equivalente a 1 em crianças com sete anos ou
mais. Esse cálculo sugere as proporções corporais e o seu resultado anor-
mal ajuda a diagnosticar doenças como displasias ósseas e raquitismo.
Existem tabelas com o valor exato dessa relação para sexo e idade.

Relação SS/SI=(Segmento Superior)/(Segmento Inferior)=(Estatura-Segmento


Inferior)/(Distância da Sínfise Púbica até o Chão)

Ademais, devemos avaliar a velocidade de crescimento, calculada


pela diferença entre duas medidas de estatura no intervalo de, pelo me-
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
425

nos, seis meses. É importante lembrar que existem curvas específicas


para a VC que complementam o diagnóstico.
Por fim, deve-se calcular a estatura alvo (EA) a partir da altura dos
genitores. Importante lembrar que esse cálculo não é um valor exato e
que ocorrem variações fisiológicas fisiológicas’’, (até +-10cm da EA calcu-
lada), em torno do “número” encontrado, mas ele auxilia para avaliar se
a previsão de estatura final (PEF) está de acordo com o padrão familiar.

Estatura Alvo para Meninas (cm)=(Altura da Mãe+Altura do Pai -13)/2

Estatura Alvo para Meninos (cm)=(Altura da Mãe+Altura do Pai+13)/2

8. Exames complementares:

Exames laboratoriais:
Os exames laboratoriais são importantes para a investigação de do-
enças crônicas. Alguns dos mais solicitados são: hemograma comple-
to (para avaliar anemia); função renal com exame qualitativo de urina;
função hepática; velocidade de hemossedimentação (avaliação do perfil
inflamatório), TSH (para afastar hipotireoidismo), albumina e ferritina
(para avaliação do estado nutricional); cálcio total, fósforo e fosfatase al-
calina (para pesquisa de distúrbios do metabolismo ósseo) e vitamina D
(para afastar raquitismo).
Solicitar a dosagem de imunoglobulina IgA e de antitransglutami-
nase IgA para investigação de doença celíaca, em crianças com baixo
peso e baixa velocidade de crescimento, com ou sem alteração de hábi-
to intestinal.
Exames mais específicos, como IGF-1, proteína ligadora de IGF-1 (IG-
FBP3) e glicemia são solicitados para avaliar a ação do GH. Quando a
criança apresenta baixa velocidade de crescimento e/ou nível de IGF1
baixo ou normal baixo, na ausência de doenças crônicas, os testes de
estímulo para liberação do hormônio do crescimento são solicitados. Os
mais frequentemente realizados são o teste da clonidina (0,15 mg/m2, por
via oral, máximo de 0,25 mg) e o teste do glucagon (0,03 mg/kg, intrave-
noso, máximo de 1 mg).

Por causa da natureza pulsátil da secreção de GH, a dosagem de GH ba-


sal de maneira isolada traz poucas informações na investigação da baixa
estatura.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
426

Cariótipo:
O cariótipo deve ser solicitado para todas as meninas com baixa es-
tatura, independentemente da presença ou ausência de estigmas para
síndrome de Turner.

Exames de imagem:
A radiografia simples de mão e punho esquerdo em incidência ante-
roposterior (AP) para determinação da idade óssea (IO) é o principal exa-
me de imagem a ser solicitado para crianças com baixa estatura. Para
avaliar a IO, deve-se comparar a radiografia do paciente com o atlas de
idade óssea, disponível em folhetos e aplicativos de celular. O mais uti-
lizado é o Greulich-Pyle. Pela comparação, podemos estabelecer a idade
correspondente ao estágio de maturação óssea que a criança está e ob-
servar se há discrepância com a idade cronológica (IC). A IO auxilia na
predição da estatura final (PEF).
Pode haver uma variação fisiológica (desvio padrão) entre a IO e a IC,
variável conforme a idade e o sexo. Em geral, quando há uma variação
de mais de 12 meses para menos ou mais, estaremos diante de um atraso
e de avanço de idade óssea, respectivamente. O atraso de idade óssea
pode decorrer de um retardo constitucional de crescimento ou de uma
deficiência hormonal. Em crianças menores de 2 anos a avaliação da IO
é menos confiável.
Outro exame a ser solicitado, principalmente na suspeita de deficiên-
cia de GH ou pan-hipopituitarismo, é a ressonância nuclear magnética
(RNM) de sela túrcica. A partir desse método, podemos diagnosticar tu-
mores hipofisários, agenesia da hipófise e outras alterações.

9. Diagnósticos diferenciais:

Estatura abaixo do percentil dos pais, com velocidade de crescimento normal ou


baixa, idade óssea compatível com a idade cronológica ou pouco atrasada, e previsão
BE idiopática
de estatura final abaixo do alvo familiar. A puberdade ocorre em época normal.
Ausência de doenças crônicas. É um diagnóstico de exclusão.
Retardo Velocidade de crescimento normal ou no limite inferior, idade óssea atrasada e atraso
constitucional do do desenvolvimento puberal.
crescimento e da Estatura compatível com IO, mas não com a idade cronológica
puberdade (RCCP) Quase sempre há relato de atraso puberal na família. É um diagnóstico de exclusão.
A velocidade de crescimento está normal ou no limite inferior da normalidade, a idade
óssea é compatível com a idade cronológica, o desenvolvimento puberal é adequado
BE Familiar
e a altura final é compatível com o alvo familiar. Os pais também apresentam baixa
estatura, usualmente abaixo do percentil 10.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
427

Baixa estatura grave com velocidade de crescimento diminuída e atraso da


idade óssea.
Deficiência
Pode haver estigmas associados: voz infantil, distribuição de gordura corporal infantil,
isolada de GH
atraso no desenvolvimento da dentição, ponte nasal baixa e fronte proeminente (face
imatura).
A idade óssea evolui com atraso em relação a idade cronológica, a velocidade de
crescimento diminui entre 6 e 12 meses de vida e piora a partir dos 2 anos de idade.
Hipopituitarismo
Pode haver alterações na genitália, história de hipoglicemia neonatal e icterícia
prolongada.
A deficiência de vitamina D contribui para a formação de ossos arqueados e
Raquitismo deformidades nos segmentos corporais. Há sinais de osteopenia nas metáfises de
ossos longo.
O paciente apresenta peso e estatura inadequados para a idade. A velocidade de
Desnutrição crescimento é menor do que a esperada, e a idade óssea está atrasada em relação à
idade cronológica.

Para a BE desproporcional, devemos investigar as osteocondrodispla-


sias. Já para a BE proporcional, podemos dividir as causas em dois grupos:
Causas endocrinológicas/hipotálamo-hipofisárias: hipotireoidis-
mo, deficiência de GH, pan-hipopituitarismo, síndrome de Cushing.
Causas não-endocrinológicas: doenças crônicas, desnutrição, sín-
dromes genéticas, BE familiar, RCCP e baixa estatura idiopática.

DÉFICIT DE CRESCIMENTO

IO: normal ou pouco atrasada IO: normal


VC: diminuída ou normal VC: normal
PEF: abaixo do alvo PEF: no alvo familiar

AVALIAR IO, VC E PEF

Evidência de desordem
Possível BE familiar
genética?
IO: atrasada
VC: normal
PEF: no alvo familiar

SIM NÃO

RCCP

Encaminhar ao centro Afastar doenças crônicas e


de referência considerar BE idiopática

Figura 2: Algoritmo diagnóstico para a baixa estatura.


Elaborado pelo autor.Legenda: IO - idade óssea; VC - velocidade de crescimento; PEF - previsão de
estatura final; BE - baixa estatura; RCCP - retardo constitucional do crescimento e da puberdade.

10. Tratamento:

O tratamento de baixa estatura depende da causa de base. Indepen-


dente da causa, orientar sono reparador, alimentação saudável para a
idade e prática de atividade física.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
428

Crianças com padrão de crescimento de RCCP e BE familiar devem re-


ceber orientação quanto ao padrão fisiológico de crescimento. Em virtu-
de da discrepância em relação aos pares, o acompanhamento psicológico
pode ser necessário.
No caso de doenças crônicas a patologia de base deve ser tratada de
acordo com a etiologia. Avaliar individualmente e considerar a necessi-
dade de suplementação com ferro, cálcio e zinco.
Com relação ao uso de hormônio de crescimento (somatotropina) há
indicações específicas, entre elas a deficiência do Hormônio do Cresci-
mento, a Síndrome de Turner, Síndrome de Noonan, Síndrome de Pra-
der-Willi, PIGs que não obtiveram recuperação do crescimento até os 2-4
anos, doenças crônicas (como a insuficiência renal crônica) e até mesmo
para BE idiopática, quando a previsão de estatura final é muito abaixo da
média populacional.
No entanto, essa suplementação só é disponibilizada pelo Sistema
Único de Saúde para pacientes com deficiência de GH comprovada e para
meninas com síndrome de Turner. Para pacientes com deficiência de GH
em fase de crescimento, deve-se utilizar uma dose equivalente 0,10 UI/
kg/dia, administrado via subcutânea, à noite, 7 vezes por semana. Para
as meninas com síndrome de Turner a dose é de GH é maior.
A monitorização do tratamento com somatotropina deverá ser rea-
lizada a partir de consultas clínicas com aferição das medidas antro-
pométricas a cada 3 a 6 meses. Exames laboratoriais para avaliação da
glicemia de jejum, função tireoidiana, IGF1 e exame radiológico para ava-
liação da idade óssea devem ser realizados. É importante ressaltar que a
somatotropina é contraindicada em pacientes diabéticos e para aqueles
com epífises ósseas consolidadas. Os principais efeitos adversos podem
ser divididos em curto e longo prazo. Os efeitos colaterais em curto pra-
zo incluem cefaleia de evolução benigna, hipertensão intracraniana, hi-
pertensão intraocular, epifisiolise proximal do fêmur e piora da escoliose
presente. Outros efeitos raros incluem pancreatite, ginecomastia transi-
tória, hiperpigmentação de nevos prévios, síndrome do túnel do carpo,
edema e artralgia.
Por fim, em algumas situações recomenda-se um acompanhamento
multiprofissional, que deve incluir fisioterapeutas (quando a causa da BE
são afecções osteomusculares), educadores físicos, psicólogos e terapeu-
tas ocupacionais.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
429

11. Prognóstico:

O prognóstico dos pacientes com baixa estatura depende da sua cau-


sa. Na BE familiar e no RCCP, a altura da criança será igual ou próxima à
estatura alvo da família. Já nas síndromes genéticas e na deficiência de
GH, a estatura final dependerá do tempo de suplementação de somato-
tropina e da idade de diagnóstico, visto que crianças diagnosticadas na
puberdade ou próximo a ela possuem tempo reduzido para crescimento.

12. Tabela de resumo:

Epidemiologia 80% dos casos ocorrem por BE fisiológica: causa familiar e retardo
constitucional do crescimento e puberdade.
20% dos casos ocorrem por BE patológica, como doenças crônicas, doenças
endócrinas e síndromes genéticas.
Crescimento Normal 12 meses: 25 cm/ano
1 a 2 anos: 12 cm/ano
2 a 3 anos: 10 cm/ano
4 a 8 anos: 5 a 7 cm/ano
8 anos até a puberdade: 5 cm/ano
Puberdade: 8 a 12 cm/ano
Critérios Diagnósticos Estatura de - 2 DP ou mais abaixo da média para idade e sexo ou abaixo do
(déficit de crescimento) percentil 3 (definição clássica de BE).
Estatura de - 1 DP da estatura-alvo familiar.
Velocidade de crescimento abaixo de - 2 DP para a idade cronológica no
último ano, ou abaixo de - 1,5 DP por mais de dois anos, na ausência de baixa
estatura.
Previsão de estatura final abaixo de - 2 DP em relação à estatura-alvo.
Anamnese Idade em que os pais perceberam a BE; uso de medicações e doenças;
desenvolvimento neuropsicomotor, sono e alimentação; menarca e pubarca, se
paciente adolescente.
Dados de nascimento; complicações neonatais e durante a primeira infância;
doenças no primeiro ano de vida.
Intercorrências na gestação; uso de medicações na gravidez; história de uso de
álcool e tabagismo.
História familiar: altura dos pais; menarca da mãe e pubarca do pai; doenças
crônicas e genéticas na família.
Exame Físico Estado geral; hidratação e nutrição; fácies; ausculta cardíaca, respiratória e
exame abdominal.
Maturidade sexual (estágios de Tanner).
Peso; altura; perímetro cefálico; envergadura; relação segmento superior/
inferior; cálculo da velocidade de crescimento.
Estatura Alvo=(Altura da Mãe + Altura do Pai ∓+/-13)/2
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
430

Exames Laboratoriais:
Complementares Hemograma completo
Perfil hepático e renal
Ferritina e albumina
VHS
TSH e T4 livre
Fósforo e fosfatase alcalina
Imunoglobulina IgA e anti-transglutaminase IgA
Dosagem de IGF-1 e glicemia
Cariótipo: para todas as meninas
Imagem:
Rx de punho e mão esquerda em AP;
RNM de sela túrcica (se suspeita de deficiência de GH).
Tratamento Depende da causa de base.
Uso de somatotropina: deficiência de GH (DHG), síndrome de Turner,
Síndrome de Noonan, Síndrome de Prader-Willi, PIGs sem recuperação aos
2 ou 4 anos, doenças crônicas (insuficiência renal crônica), BE idiopática.
O SUS só fornece a suplementação de GH para pacientes com DHG e
síndrome de Turner.
Pode ser necessário acompanhamento multidisciplinar.

13. Leitura recomendada:

ARGENTE J. et al. Genetics of Growth Disorders-Which Patients Require Genetic


Testing? Front Endocrinol, v. 10, p. 602, 2019.

COLLETT-SOLBERG, P.F. et al. Diagnosis, Genetics, and Therapy of Short Stature


in Children: A Growth Hormone Research Society International Perspective.
Hormone Research in Paediatric [s. l.], 2019.

DAUBER A. Genetic Testing for the Child With Short Stature-Has the Time
Come To Change Our Diagnostic Paradigm? J Clin Endocrinol Metab, v.104, n.7,
p.2766-69, 2019.

FINKEN, M.J.J. et al. Children Born Small for Gestational Age: Differential
Diagnosis, Molecular Genetic Evaluation, and Implications. Endocrine Reviews,
v. 39, n. 6, p. 851-894, 2018.

PETRY, C. et al. Endocrinologia: Baixa Estatura. Pediatria: Consulta Rápida,


ArtMed, v.2 n. 55, p. 495 - 502. 2018
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
431

Capítulo 30

Puberdade Precoce
Leonardo Rodrigues
Murilo Daminelli Favero
Virgínia Nascimento Reinert
Tatiane de Campos

1. Introdução:

O termo puberdade é usado para designar as transformações físi-


cas que ocorrem durante a adolescência, geralmente respeitando um
padrão previsível, com algumas possíveis variações quanto ao tempo
de início, ritmo e sequência dos eventos. As alterações mais visíveis
durante esse período são o desenvolvimento dos caracteres sexuais se-
cundários e o aumento da estatura.
A puberdade precoce é definida como a apresentação desses carac-
teres sexuais secundários antes dos 8 anos nas meninas e dos 9 anos
nos meninos. Esses limites são definidos a partir de 2 a 2,5 desvios-pa-
drão (DP) abaixo da idade média de início da puberdade para indivíduos
do mesmo sexo e etnia.
Na maioria das populações, a idade média para início da puberdade
se aproxima dos 10,5 anos nas meninas e 11,5 nos meninos.
Vejamos algumas definições importantes:
Telarca: significa o desenvolvimento e o aparecimento do tecido
mamário.
Menarca: representa o primeiro sangramento menstrual.
Pubarca: representa o aparecimento dos pelos pubianos. O termo
também pode ser estendido ao aparecimento de pelos axilares, acne
ou odor corporal apócrino.
Espermarca: representa a primeira produção de esperma.

2. Epidemiologia:

Por meio da definição tradicional de puberdade precoce, é espera-


do que a taxa de prevalência de apresentação dos caracteres sexuais
secundários antes da idade estimada gire em torno de 1:5000 a 1:10000,
sendo mais frequente no sexo feminino. No entanto, a partir de estudos
populacionais, sabe-se que essas taxas de prevalência variam dentro de
cada população.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
432

Nos Estados Unidos, determinado estudo mostrou que o desenvol-


vimento de mamas e/ou pelos pubianos foi observado em 48% das mu-
lheres negras aos 8 anos, enquanto apenas 15% das mulheres brancas
possuíam esses caracteres já desenvolvidos. Aos 7 anos, essas porcen-
tagens caiam para 27% e 7%, respectivamente. Um outro estudo, envol-
vendo a população dinamarquesa, encontrou uma incidência muito
mais baixa em mulheres aos 8 anos, de 20 em 10000. Tais dados nos
sugerem que a definição de puberdade precoce é complicada e a ava-
liação não depende apenas da idade, mas sim, de uma série de fatores,
como raça/etnia e ausência/presença de obesidade.

3. Fisiopatologia:

No período pós-natal imediato, uma significativa secreção do hor-


mônio liberador das gonadotrofinas (GnRH) de origem hipotalâmica é
evidenciada, seguida de uma fase de relativa quiescência hormonal até
o início da puberdade em humanos. A reativação da secreção pulsátil
do GnRH com consequente ativação do eixo hipotálamo-hipófise-go-
nadal marca o início da puberdade. Os pulsos de GnRH estimulam a
produção das gonadotrofinas, hormônio luteinizante (LH) e hormônio
folículo-estimulante (FSH), pela hipófise anterior, que, por sua vez, pro-
movem a produção dos gametas maduros e a síntese dos esteroides se-
xuais pelas gônadas (testosterona pelas células de Leydig testiculares e
estradiol pelos folículos ovarianos).
Os mecanismos envolvidos na supressão relativa da secreção de
GnRH durante a infância, mantida pelo predomínio de fatores inibitó-
rios, e a subsequente ativação puberal ainda não são totalmente com-
preendidos. Fatores genéticos, nutricionais, ambientais e socioeconô-
micos estão implicados. Entre os fatores genéticos, citam-se os genes
envolvidos na secreção do GnRH, como o da kisspeptina 1 (KISS1) e seu
receptor (KISS1R) e o TAC3. Um outro gene recentemente implicado na
inibição da puberdade é gene MKRN3, no entanto, seu exato mecanis-
mo de ação sobre o GnRH não está esclarecido (Figura 1).
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
433

Figura 1: Fisiologia e fatores genéticos envolvidos no início da puberdade.


Adaptado de: ABREU A.P. et al, 2020.

Nas meninas, essa ativação do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal é


marcada pelo aparecimento do broto mamário e nos meninos pelo au-
mento do volume testicular (> 4 ml).
Associados à maturação sexual e ao desenvolvimento dos caracte-
res sexuais secundários, ocorrem o estirão do crescimento e o desen-
volvimento ósseo.
O estirão do crescimento representa o momento no qual a velocida-
de de crescimento atinge um pico, variando de acordo com o sexo. Nas
meninas, o pico geralmente acontece 2 anos antes da menarca. Embo-
ra elas apresentem um pico mais cedo que os meninos, eles atingem
maior velocidade de crescimento (9 e 10 cm/ano, respectivamente).
O fato de terem mais tempo de crescimento pré-púbere que as meninas,
aliado ao maior pico de velocidade, faz com que os meninos atinjam
alturas maiores, em média de 13 cm.
Em ambos os sexos, habitualmente, o estirão de crescimento tem
duração em torno de dois anos. Devido à diminuição do tempo de cres-
cimento pré-puberal e ao fechamento precoce das epífises, a puberdade
precoce está associada a uma menor altura na vida adulta.
O desenvolvimento ósseo, por outro lado, representa um incremento
do conteúdo e da densidade óssea, e está relacionado temporalmente
com a produção estrogênica decorrente da puberdade, que culminará
com o fechamento das cartilagens de crescimento.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
434

4. Classificação:

O desenvolvimento precoce dos caracteres sexuais secundários va-


ria de acordo com os mecanismos fisiopatológicos e pode ser dividido
em três etiologias distintas.
Puberdade Precoce Central (PPC): também é chamada de puberdade
precoce verdadeira ou puberdade dependente de gonadotrofinas, pois
depende da ativação precoce do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal. Por
ser dependente desse eixo, a maturação sequencial dos caracteres se-
gue a ordem normal de desenvolvimento e é adequada ao sexo da crian-
ça, ou seja, isossexual.
Puberdade Precoce Periférica (PPP): também é chamada de precoci-
dade periférica ou puberdade precoce independente de gonadotrofinas.
Nesse processo, temos produção excessiva de esteroides sexuais a par-
tir das gônadas ou das glândulas adrenais (fonte exógena de esteroides
sexuais) ou produção ectópica de gonadotrofinas, levando a níveis ele-
vados de estradiol e testosterona. O eixo hipotálamo-hipófise, por sua
vez, está suprimido, causando LH e FSH diminuídos. Diferentemente
da PPC, a precocidade periférica pode ser isossexual ou contrassexual,
com sinais de virilização no sexo feminino e sinais de feminilização no
masculino.
Variante puberal benigna ou não progressiva: são consideradas va-
riantes da puberdade normal e incluem o desenvolvimento mamário
isolado (telarca precoce ou prematura), o sangramento vaginal pré-pú-
bere e o desenvolvimento de caracteres sexuais secundários isolados
(adrenarca prematura, pubarca prematura) mediado por androgênios
em meninos ou meninas. Embora ambas as situações não sejam consi-
deradas patológicas, o acompanhamento clínico se faz necessário, nes-
ses casos, para garantir que não se trata de uma variante progressiva.

5. Etiologias:

Puberdade Precoce Central (PPC):


Neste tipo de desenvolvimento puberal precoce, o mecanismo de
ação envolve a ativação prematura do eixo hipotálamo-hipófise-go-
nadal (Tabela 1). Por isso, mesmo que precoce, o padrão e a sequência
de eventos, aqui observados, seguem normais. No entanto, pode haver
uma evolução mais rápida da sequência esperada.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
435

Tabela 1: Causas de Puberdade Precoce Central.


Causas idiopáticas
Lesões do sistema nervoso central
Mutações genéticas
Exposição anterior excessiva a esteroides sexuais
Tumores secretores de gonadotrofinas hipofisárias
Adaptado de: BRITO V.N. et al, 2016.

Causas idiopáticas:
O desenvolvimento precoce central idiopático é uma importante
causa de PPC, principalmente entre o sexo feminino, sendo responsá-
vel por até 80 a 90% dos casos. Já no sexo masculino, a causa idiopáti-
ca corresponde a 30-40% dos casos, sendo necessário mais atenção às
causas orgânicas.

Lesões do sistema nervoso central (SNC):


Várias são as lesões no sistema nervoso central que podem estar re-
lacionadas ao desenvolvimento de puberdade precoce, principalmente
no sexo masculino.
Os hamartomas são massas hipotalâmicas heterotópicas compos-
tas por neurônios neurossecretores de GnRH, por células da glia e por
fibras nervosas, sendo o tipo mais frequente de “tumor” do SNC que cau-
sa puberdade precoce em crianças. Também estão associados à epilep-
sia gelástica (reação de rir e chorar descontroladamente por atividade
elétrica incomum nas áreas que controlam essas ações) e a outros tipos
de convulsões. Outros tumores do SNC relacionados à puberdade preco-
ce incluem pinealomas, gliomas ópticos, astrocitomas e ependimomas.
Outras lesões que acometem o sistema nervoso central além dos tu-
mores, e que podem estar relacionadas com o aparecimento da puber-
dade precoce, como hidrocefalia, doenças inflamatórias do SNC, defei-
tos congênitos da linha média, cistos e trauma. A irradiação do SNC é
considerada uma causa rara de puberdade precoce.

Mutações genéticas:
As mutações genéticas específicas têm sido cada vez mais associa-
das ao desenvolvimento de puberdade precoce, e estão, muitas vezes,
relacionadas às causas idiopáticas. Mutações que culminam em hipe-
rexpressão do gene da kisspeptina 1 (KISS1) e do seu receptor (KISS1R)
estão relacionadas à patogênese da doença.
Mutações que diminuem a expressão hipotalâmica do gene MKRN3,
e consequentemente, os níveis séricos da proteína MKRN3, estão rela-
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
436

cionadas ao desenvolvimento da puberdade precoce. Um terceiro gene


associado é o DLK1 (delta-like 1 homolog), expresso principalmente no
tecido adrenal, pituitário e ovariano. Mutações que geram perda de fun-
ção desse gene causam a redução da concentração sérica da proteína
DLK1 no sangue e, consequentemente, caracterizam causa rara de PPC.
Embora o mecanismo envolvendo o DLK1 e a puberdade precoce não
esteja claro, sabe-se que o polimorfismo neste gene está associado a
variações da idade da menarca. As mutações dos genes DLK1 e MKRN3
só culminam em puberdade precoce quando herdadas do pai.

Exposição anterior excessiva a esteroides sexuais:


Pode se configurar como outra causa de PPC em crianças com sín-
drome de McCune-Albright e hiperplasia adrenal congênita mal con-
trolada, por exemplo. Nesses casos, elas podem desenvolver puberdade
precoce pelo efeito priming (efeito direto que ocorre no momento de re-
cepção do estímulo) da PPP ou em resposta à redução brusca dos níveis
de esteroides após o controle.

Tumores secretores de gonadotrofinas hipofisárias:


Também são causas muito raras de PPC.

Puberdade Precoce Periférica (PPP):


A puberdade precoce periférica tem como mecanismo de ação a se-
creção excessiva de hormônios sexuais (andrógenos e/ou estrógenos)
a partir das gônadas ou das adrenais ou, ainda, a exposição a fontes
externas (Tabela 2). Por esse motivo, os níveis de gonadotrofinas nesses
pacientes geralmente estão suprimidos (em níveis pré-púberes).
Para facilitar o seu entendimento, vamos abordar as causas de acor-
do com o sexo da criança.

Quadro 2: Causas de Puberdade Precoce Periférica.


Meninas Meninos Ambos os sexos
Cistos ovarianos Tumores de células de Leydig Hipotireoidismo primário
Tumores ovarianos Tumores de células germinativas produtoras de hCG Patologias adrenais
Testotoxicose Síndrome de McCune-Albright
Exposição a fontes exógenas
Adaptado de: CAREL J.C and LÉGER J., 2016.

Cistos ovarianos:
São a causa mais comum de PPP em mulheres. Nesses casos, o qua-
dro das pacientes geralmente é composto por crescimento das mamas
acompanhado de sangramento vaginal, haja vista a diminuição dos ní-
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
437

veis de estrogênio com a regressão do cisto. Como eles podem regredir


espontaneamente, o manejo muitas vezes é conservador.

Tumores ovarianos:
Embora raros, também são causa de puberdade precoce periférica.
Dentre eles, o mais comum é o tumor de células da granulosa, que se
manifesta com precocidade isossexual. Por outro lado, existem tam-
bém os arrenoblastomas (tumores de células de Leydig ou Sertoli), ca-
pazes de produzir andrógenos e cursarem, portanto, com precocidade
heterossexual.

Tumores de células de Leydig:


Esses tumores secretores de testosterona são quase sempre benig-
nos e tratados com remoção cirúrgica (orquiectomia radical, por exem-
plo). O diagnóstico deve sempre ser suspeitado quando tivermos cresci-
mento assimétrico dos testículos.

Tumores de células germinativas secretoras de gonadotrofina


coriônica humana (hCG):
Nos homens, a gonadotrofina coriônica (o mesmo hormônio glico-
proteico produzido pelas células do sinciciotrofoblasto da placenta)
liga-se aos receptores das células de Leydig, ativando a produção de
testosterona. Nas mulheres, os tumores secretores de hCG não causam
puberdade precoce, pois para a biossíntese de estrogênio é necessária a
ativação concomitante dos receptores de FSH e LH.
Os disgerminomas e coriocarcinomas fazem parte desses tipos de
tumores, que podem estar localizados tanto nas gônadas, quanto em
outros locais do corpo, como cérebro, fígado e mediastino anterior.

Testotoxicose:
É uma disfunção rara que ocorre devido à mutação envolvendo o
gene do receptor de LH, responsável pela maturação precoce das célu-
las de Leydig e consequente produção de testosterona. Assim como nos
tumores de células germinativas, tal distúrbio não acarreta puberdade
precoce nas mulheres, pois há necessidade da ativação dos receptores
de LH e FSH de forma concomitante.

Hipotireoidismo primário:
O hipotireoidismo primário de longa data em crianças está associa-
do à puberdade precoce tanto em meninos quanto em meninas. O me-
canismo proposto para tal associação está relacionado ao fato de que o
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
438

FSH e o TSH (hormônio estimulador da tireoide que está aumentado no


hipotireoidismo) compartilham de uma subunidade alfa. Logo, grandes
concentrações de TSH nessas crianças podem apresentar ativação cru-
zada do receptor de FSH. A esse quadro, dá-se o nome de síndrome de
Van Wyk-Grumbach.
Nesta situação teremos puberdade precoce e baixa estatura.

Patologias adrenais:
Incluem tumores secretores de andrógenos e defeitos enzimáticos
relacionados à síntese dos esteroides.
No sul e no sudeste do Brasil encontramos uma incidência maior de
carcinoma adrenal, muito relacionado a uma maior prevalência da Sín-
drome de Li Fraumeni, caracterizada por mutação no gene da proteína
p53. Dessa forma, quando temos quadros clínicos exagerados de adre-
narca, sem o desenvolvimento de mamas em meninas, podemos estar
diante de um câncer de adrenal (você pode encontrar mais sobre essa
patologia voltando ao capítulo 18 deste livro). Em meninos observam-se
sinais de virilização acentuados, como acne, pelos pubianos e aumento
peniano. Nos tumores adrenais, os níveis séricos de dehidroepiandros-
terona sulfato (SDHEA) estão bastante elevados.
Diferentemente dos tumores de célula de Leydig, por exemplo, quan-
do a causa é adrenal, os homens não cursam com aumento testicular
(volume < 4 mL ou diâmetro < 2,5 cm). Vale ressaltar que a causa mais
comum de virilização no sexo feminino é devido ao excesso de andró-
genos adrenais.

Síndrome de McCune-Albright:
Essa síndrome tem como tríade clássica manchas da pele “café-
-com-leite”, a displasia fibrosa óssea e a puberdade precoce. Os pa-
cientes possuem uma mutação no gene GNAS, que é responsável pela
codificação da proteína Gs, a qual ativa a adenilil-ciclase. Como conse-
quência, eles ficam suscetíveis a uma estimulação contínua da função
endócrina de algumas glândulas, podendo acarretar puberdade preco-
ce quando o estímulo for sobre as gônadas.
Como se trata de causa periférica de puberdade precoce, a sequên-
cia normal de desenvolvimento não necessariamente deve ser seguida,
podendo o sangramento vaginal acontecer antes do desenvolvimento
das mamas. No entanto, vale lembrar que quando suprimidos os níveis
excessivos de esteroides sexuais, o quadro pode migrar para uma pu-
berdade precoce central, com ativação do eixo hipotálamo-hipófise-go-
nadal e aumento das concentrações de gonadotrofinas.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
439

Exposição a fontes exógenas de hormônios sexuais:


Acredita-se que fontes exógenas de diversas substâncias também
funcionam como desreguladores endócrinos e possam afetar o desen-
volvimento puberal.
Muitos produtos utilizados diariamente por jovens e crianças po-
dem conter substâncias que desregulam a fisiologia hormonal, como é o
caso de cosméticos (esmaltes e perfumes) que apresentem ftalato, ou de
shampoos e cremes hidratantes que apresentem parabenos. Além disso,
filhos de pais que fazem reposição com testosterona ou estrogênio tópi-
cos, podem, inadvertidamente, serem expostos a esses hormônios.

Variante Puberal Benigna ou Não Progressiva:

Telarca precoce:
É definida pelo desenvolvimento isolado da mama, uni ou bilateral-
mente. Na maioria dos casos, está presente abaixo dos dois anos e a
remissão acontece espontaneamente. O desenvolvimento das mamas
é acompanhado de velocidade de crescimento adequada para a idade,
idade óssea normal e ausência de outras características sexuais se-
cundárias. O quadro tende a ser benigno e autolimitado, no entanto, o
acompanhamento desses casos, se faz necessário, pois, em 10 a 20% dos
casos, o aumento das mamas pode representar a apresentação inicial
de uma puberdade precoce central.
A telarca prematura pode ocorrer em dois picos distintos: durante os
dois primeiros anos de vida ou entre os seis e oito anos. Embora a fisio-
patologia seja potencialmente diferente em cada um dos picos, em am-
bos os mecanismos há ativação transitória do eixo hipotálamo-hipófi-
se-gonadal com secreção excessiva de FSH. As concentrações séricas
de LH e estradiol geralmente estão na faixa pré-púbere, mas deve-se
tomar cuidado ao interpretar esses níveis em crianças abaixo de dois
anos, já que níveis elevados nessa idade podem estar relacionados ao
episódio de minipuberdade transitória da infância.

Adrenarca prematura:
É caracterizada pelo aparecimento isolado de pelos pubianos e/ou
axilares, odor apócrino e/ou acne antes do desenvolvimento normal,
podendo estar associados a uma leve elevação dos níveis de SDHEA.
Ela pode ainda estar relacionada a uma leve aceleração da velocidade
de crescimento ou idade óssea avançada.
Esse tipo de distúrbio é mais comum no sexo feminino, em especial
em meninas negras ou hispânicas e/ou com resistência à insulina e
obesidade.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
440

Sangramento vaginal pré-púbere benigno:


É definido como apresentação de sangramento vaginal autolimitado
e isolado, na ausência de demais caracteres sexuais secundários.
Embora não se saiba ao certo o mecanismo fisiopatológico envol-
vido, os potenciais mecanismos estão relacionados com o aumento da
sensibilidade aos estrogênios circulantes ou a ativação transitória do
eixo hipotálamo-hipófise-gonadal. Os níveis séricos de gonadotrofinas
são pré-púberes.

Puberdade precoce não progressiva ou intermitente progressiva:


O quadro, que clinicamente pode ser devido a um desenvolvimento pre-
coce central, tende a se estabilizar ou entrar em progressão muito lenta.

Crianças com sinais puberais entre 2 e 6 anos tem maior probabilidade


de ter causa orgânica como causa do processo. Meninas com telarca entre 6
e 8 anos, tem maior probabilidade de puberdade precoce central idiopática
(antecipação do funcionamento do eixo hipotálamo-hipófise-gônada).

6. Anamnese:

Ao se deparar com uma criança que apresente sinais de desenvol-


vimento precoce dos caracteres sexuais secundários ou aceleração da
velocidade de crescimento, você deve se atentar aos seguintes ques-
tionamentos:

O quão jovem é a criança para ter atingido o marco puberal em questão?


O que está causando o desenvolvimento inicial?
Existe algum sinal associado que direcione o raciocínio clínico?

A sequência de desenvolvimento puberal é um relato importante


presente durante a anamnese e já pode nos ajudar, em alguns casos, a
diferenciar a puberdade precoce central da periférica.
Por outro lado, sinais e sintomas associados podem nos dirigir a de-
terminadas patologias. Queixas de cefaleia, diplopia e poliúria podem
nos levar a crer que existe alguma lesão central, como um tumor, por
exemplo. Além disso, um bócio difuso leva à suspeita clínica de hipo-
tireoidismo, enquanto a presença de pubarca e acne nos faz pensar em
patologia adrenal.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
441

Condições da gestação, bem como peso e comprimento ao nascer


devem ser indagados. O período neonatal também é relevante. Além
disso, doenças crônicas e desenvolvimento neuropsicomotor, antece-
dentes familiares, idade da menarca da mãe, altura dos pais e casos
semelhantes na família devem ser perguntados e são importantes na
formação do raciocínio clínico.
Outro ponto importante a ser coletado na avaliação inicial é qual a
rapidez em que a puberdade está progredindo, já que isso representa
o tempo de exposição à ação dos esteroides sexuais. Enquanto as va-
riantes benignas apresentam crescimento linear normal e idade óssea
normal ou minimamente avançada, as puberdades precoces central e
periférica apresentam alta taxa de crescimento linear ou idade óssea
avançada.
Vale destacar que a progressão puberal é considerada lenta quando,
em 6 meses ou mais, não observamos mudanças no estágio das ma-
mas, dos pelos pubianos ou dos órgãos genitais.
O desenvolvimento heterossexual isolado exclui etiologias centrais.

7. Exame físico:

O exame físico deve incluir, no mínimo, estatura, velocidade de cres-


cimento, peso, índice de massa corporal - os quais devem ser plotados
em gráficos apropriados ao sexo/idade. Os gráficos de crescimento para
crianças e adolescentes podem ser consultados na íntegra nos sites da
Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) ou do Ministério da Saúde (MS).
Além disso, a avaliação do campo visual deve ser incluída naque-
les pacientes em que se suspeita de causa central. Na pele, devemos
observar o aparecimento de manchas, como o padrão “café-com-leite”,
presente na neurofibromatose (mais de seis manchas, pequenas e ova-
ladas) e na síndrome de McCune-Albright (manchas maiores, podendo
seguir a linha média e com bordos irregulares).
Um dos passos mais cruciais durante o exame físico é o estadiamen-
to puberal, que classifica o desenvolvimento dos caracteres sexuais se-
cundários baseado nos estágios de Tanner (tabelas 3 e 4).
Os estágios de Tanner consideram o desenvolvimento das mamas
nas meninas, desenvolvimento genital em meninos e desenvolvimento
de pelos pubianos em ambos os sexos, sendo divididos em 5 estágios. O
estágio 1 representa o estado pré-púbere e o estágio 5 representa o estado
adulto de maturação, enquanto o estágio 2 representa o início da puber-
dade. Nas mulheres, toma-se como base o diâmetro do tecido glandular
das mamas, enquanto nos homens é avaliado o volume testicular.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
442

Tabela 3: Critérios de Marshall e Tanner para o sexo masculino.


Genitália Pelos
Estágio Características Estágio Características
G-1 Pré-púberes, testículos P-1 Sem pelos
< 4 ml

G-2 Aumento do escroto P-2 Pelos espalhados,


e dos testículos, sem pouco curvos na base
aumento do pênis do pênis

G-3 Ocorre também P-3 Pelos mais grossos e


aumento do pênis, em curvos, alcançando o
toda sua extensão monte pubiano

G-4 Aumento em diâmetro P-4 Pelos adultos, sem


do pênis e da glande. chegar às coxas
Crescimento dos
testículos e do escroto,
cuja pela escurece

G-5 Genitália adulta em P-5 Pelos adultos, que


tamanho e forma chegam até as coxas

Adaptado de: MARSHALL W.A. and TANNER J.M., 1970.


UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
443

Tabela 4: Critérios de Marshall e Tanner para o sexo feminino.


Mamas Pelos
Estágio Características Estágio Características
M-1 Mamas pré P-1 Sem pelos
púberes, apenas
elevação do
mamilo

M-2 Brotos P-2 Pelos longos,


mamários, esparsos,
elevação da principalmente
mama e do nos grandes
mamilo, com lábios
aumento do
diâmetro da
aréola
M-3 Maior aumento P-3 Pelos mais
da aréola, sem grossos e
distinção de escuros,
seus contornos cobrindo o
monte pubiano

M-4 Projeção P-4 Pelos adultos


da aréola e que ainda não
do mamilo, chegam até as
formando um coxas
segundo monte

M-5 Mamas adultas P-5 Pelos adultos


que chegam
até a face
medial das
coxas

Adaptado de: MARSHALL W.A. and TANNER, 1969.


UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
444

8. Exames complementares:

Quando há sinais de desenvolvimento precoce ou progressivo dos


caracteres sexuais secundários, uma avaliação laboratorial adicional
se faz necessária. A avaliação laboratorial inicial inclui a dosagem do
hormônio luteinizante basal (LH) e as concentrações séricas de estra-
diol nas meninas e de testosterona e gonadotrofina coriônica (hCG) nos
meninos. Os resultados devem ser analisados em conjunto e orientam
a diferenciação entre causa central e periférica, bem como a solicitação
de testes adicionais.

Hormônio luteinizante (LH) sérico basal:


Ótimo teste para identificar a ativação do eixo hipotálamo-hipófise-
-gonadal. Sua medição deve ser feita preferencialmente pela manhã.
As concentrações podem ser medidas por ensaio quimioluminométri-
co (ICMA) ou ensaio imunofluorométrico (IFMA).
A interpretação varia de acordo com as concentrações:4
Concentrações basais de LH < 0,3 UI/L (ICMA) podem indicar as se-
guintes situações: variante puberal benigna, precocidade periférica
ou puberdade precoce inicial.
Concentrações basais de LH > 0,3 UI/L (ICMA) e LH > 0,6 UI/L (IFMA)
sugerem maturação do eixo e puberdade precoce central.
A avaliação dos níveis séricos deve ser feita com cuidado em meni-
nas com menos de dois anos de idade, devido ao fenômeno da minipu-
berdde da infância.

Níveis basais aumentados de LH confirmam ativação do eixo hipotálamo-


-hipófise-gonadal, mas níveis baixos não excluem essa ativação, pois no iní-
cio da puberdade a secreção de GnRH é pulsátil e o LH pode ainda estar baixo!

Assim, em crianças em que a clínica discorda dos testes laborato-


riais iniciais (puberdade precoce progressiva e LH basal < 0,3 UI/L), uma
investigação adicional deve ser realizada. Trata-se do teste de estimu-
lação com agonista do hormônio liberador de gonadotrofina (aGnRH),
a leuprorrelina. Faz-se a estimulação com 3,75 mg e, duas horas após,
coleta-se o LH. A interpretação dos resultados é a seguinte:
Pico de LH estimulado > 10 UI/L (IFMA) aponta resposta puberal, e,
consequentemente, PPC.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
445

Relação LH:FSH > 1 é mais frequente em indivíduos púberes. Em


casos de puberdade precoce central progressiva, o aumento de LH
após estimulação tende a ser maior.

Hormônio folículo-estimulante (FSH) sérico basal:


Não é utilizado para diferenciação entre PPC e variantes puberais
benignas.
Sua utilidade se resume a indicar supressão ou ativação do eixo
hipotálamo-hipófise-gonadal.

Testosterona sérica:
Concentrações elevadas de testosterona indicam produção testicu-
lar em meninos e exposição exógena ou produção adrenal em ambos
os sexos. Nos casos em que não se sabe a procedência da produção
excessiva de testosterona, testes adicionais devem ser solicitados
(SDHEA, por exemplo) para diferenciar as fontes adrenais das testi-
culares.
Quando as altas concentrações de testosterona estão associadas
a níveis suprimidos das gonadotrofinas, tem-se um possível caso de
PPP.

Estradiol sérico:
Semelhante à testosterona, altos valores de estradiol associados à
supressão de gonadotrofinas estão relacionados com puberdade pre-
coce periférica. Na avaliação da puberdade precoce central tem baixa
sensibilidade.

Esteroides adrenais:
São úteis na diferenciação entre puberdade precoce periférica e
adrenarca prematura isolada.
Na adrenarca prematura, as concentrações de SDHEA giram entre
40 e 135 mcg/dL e os níveis de testosterona estão menores ou iguais a
35 ng/dL. Enquanto isso, níveis elevados de SDHEA são sugestivos de
tumor adrenal.
A 17-hidroxiprogesterona (17-OHP) é um precursor de hormônios
adrenais e níveis superiores a 200 ng/dL são sugestivos de hiperplasia
adrenal congênita não clássica secundária à deficiência de 21-hidro-
xilase, mas necessitam de confirmação diagnóstica.
A gonadotrofina coriônica é dosada em homens para confirmar
ou afastar a possibilidade de tumor secretor de hCG. Porém, quando
o tumor está localizado no mediastino anterior, o cariótipo deve ser
solicitado a fim de investigar a presença da síndrome de Klinefelter.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
446

Radiografia de mão e punho esquerdo para idade óssea (RX IO):


A idade óssea é obtida a partir de um exame radiológico da mão e
punho esquerdo solicitado tanto para fins diagnósticos quanto para fins
prognósticos, predizendo o impacto na estatura final de indivíduos com
idade óssea avançada.

Ressonância nuclear magnética (RNM) de encéfalo:


É recomendada para todos os meninos com puberdade precoce cen-
tral e para meninas com início do desenvolvimento dos caracteres se-
xuais secundários antes dos seis anos de idade. Para meninas entre 6
e 8 anos a solicitação é individualizada. Em uma meta-análise recente,
viu-se que a prevalência de lesões intracranianas em meninas após os
seis anos era de 3%, enquanto antes dessa idade essas taxas subiram
para 35%.

Ultrassonografia pélvica:
Na puberdade precoce central, as meninas geralmente possuem
maior volume uterino e ovariano quando comparadas às com telarca
prematura. São considerados púberes o volume ovariano > 1,5 mL e
comprimento uterino > 3,4 cm. O exame também auxilia na identifi-
cação de um cisto ou tumor ovariano em mulheres com precocidade
periférica.

Ultrassonografia de testículos:
Utilizada em casos de assimetria testicular, pode indicar a presença
de um tumor de células de Leydig em meninos com precocidade peri-
férica.

Ultrassonografia abdominal e/ou tomografia de abdome:


São utilizadas em casos de suspeita de tumor de adrenal.

9. Diagnóstico:

Como a puberdade precoce pode ter várias etiologias como base da


disfunção endócrina, a avaliação diagnóstica deve ser ampla e contem-
plar minuciosamente desde anamnese até exames laboratoriais e de
imagem, de acordo com a suspeita (Figura 2).
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
447

Menino com telarca isolada < 8 anos Menino com aumento testicular < 9 anos Meninas e meninos com sinais de viriização

LH, FSH, estradiol, TSH LH, FSH, TSH, testosterona, beta-HCG, RX IO 17OHP, SDHEA, testosterona total,
US pélvico, RX IO RNM encéfalo androstenediona, RX IO
< 6anos ou queixa de SNC: RNM encéfalo US testículo se assimetria

LH basal < 0,3 UI/L (ICMA) LH basal >0,3 UI/L (ICMA) ßHCG aumentado 17-OHP aumentada SDHEA aumentado

Telarca precoce ou
Tumores
PPP ou Solicitar TC
gonadais,
PPC inicial (teste com PPC Hiperplasia adrenal abdome (tumor
cerebrais, fígado
leuprorrelina conforme adrenal)
ou mediastino
demais exames)

Figura 2: Fluxograma para investigação clínico-laboratorial


na suspeita de Puberdade Precoce.
Elaborado pelo autor.
Legenda: LH: hormônio luteinizante; FSH: hormônio folículo estimulante; TSH: hormônio
tireoestimulante; 17-OHP: 17 hiproxiprogesterona; SDHEA: sulfato de dehidroepiandrosterona; beta-
HCG: gonadotrofina coriônica; PPC; puberdade precoce central; PPP: puberdade precoce periférica;
US: ultrassom; RNM: ressonância nuclear magnética; IO: idade óssea; ICMA: quimioluminométrico.

10. Tratamento:

Puberdade Precoce Central (PPC):


Na maioria dos casos o tratamento da puberdade precoce é feito com
agonistas do hormônio liberador de gonadotrofinas (aGnRH). O objetivo
desse tratamento é fornecer uma estimulação contínua aos receptores
de GnRH nos gonadotrofos hipofisários, no lugar da estimulação pulsátil.
Isso causa uma dessensibilização dessas células, suprimindo as concen-
trações de gonadotrofinas e, consequentemente, de esteroides sexuais.
Esse fenômeno é conhecido como supressão do eixo hipófise-gonadal.
Em geral, crianças mais jovens ou com rápida progressão de matura-
ção se beneficiam mais da terapia com agonistas, pois podem ter fusão
epifisária precoce e altura adulta comprometida quando não tratadas.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
448

Segundo estudos, os meninos se beneficiam mais que as meninas


da terapia.
As formulações de liberação sustentada podem ser encontradas na
forma de implante subcutâneo ou de injeções intramusculares e sub-
cutâneas de liberação lenta. A forma de implante subcutâneo e a gos-
serrelina subcutânea não estão disponíveis no Brasil. A tabela 5 traz
mais informações sobre essas medicações.

Tabela 5: Opções terapêuticas de agonistas de GnRH para o tratamento de


puberdade precoce central.
Medicação Método de Dose e Frequência Nomes Comerciais
Administração
Acetato de histrelina Implante subcutâneo Implante de 50 mg/ano Supprelin LA ®
Gosserrelina Subcutâneo 3,6 mg/mês Zoladex ®
3,75 mg/mês Lupron®, Lectrum®
Intramuscular
7,5 mg/mês
Leuprorrelina
11,25 mg a cada 84 dias Lupron Depot®
Subcutâneo
45 mg/semestral Eligard ®
Triptorrelina 3,75 mg/mês Neo Decapeptyl ®
Intramuscular 22,5 mg/semestral Neo Decapeptyl LP®
11,25 mg a cada 84 dias

Os objetivos do tratamento são permitir que a criança atinja a altura


final adulta estimada, adequar o desenvolvimento puberal à idade cro-
nológica e reduzir o estresse psicossocial.
A terapia é considerada eficaz quando o desenvolvimento subse-
quente da mama e dos testículos e a menstruação cessam, ou quando
a velocidade de crescimento e a taxa de avanço da idade óssea regri-
dem. Por isso, deve-se fazer avaliação do crescimento puberal a cada
seis meses e avaliação da idade óssea a cada seis meses ou um ano. A
terapia será mantida até uma idade óssea em torno de 12 anos para as
meninas e 13 anos para os meninos.
A avaliação laboratorial de LH e esteroides sexuais pode ser usada
para certificar que o eixo hipófise-gonadal está suprimido. Quando, a
partir desses testes, vê-se que o eixo não está suprimido, pode-se au-
mentar a dose do agonista de GnRH ou mudar o tipo de terapia.
No geral, quando interrompida a terapia com agonistas do GnRH, o
desenvolvimento puberal retorna dentro de 12 a 18 meses, em média.

Puberdade Precoce Periférica (PPP):


A terapia, nesse caso, é direcionada a bloquear a produção e/ou res-
posta ao excesso de esteroides.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
449

As opções medicamentosas incluem agentes progestacionais, an-


tiandrogênios (espironolactona e acetato de ciproterona), moduladores
seletivos dos receptores de estrogênio (tamoxifeno), inibidores da aro-
matase (letrozol ou anastrozol) e derivados imidazólicos (cetoconazol).
Além do tratamento clínico, outras opções terapêuticas são direcio-
nadas de acordo com a causa base.
Em tumores de testículo, ovário e glândula adrenal a cirurgia é in-
dicada. Em casos de exposição a esteroides sexuais exógenos, a fonte
deve ser afastada. Na hiperplasia congênita adrenal clássica, o trata-
mento com glicocorticoides é indicado.
Na síndrome de McCune-Albright, as meninas desenvolvem cistos
ovarianos recorrentes, enquanto os meninos, hiperplasia das células de
Leydig. Nesses casos, medicamentos que inibem a esteroidogênese go-
nadal ou a ação dos esteroides são preconizados em relação à cirurgia,
a fim de preservar a fertilidade nesses pacientes.
O tratamento em meninas é feito com inibidores da aromatase e mo-
duladores seletivos dos receptores de estrogênio (tamoxifeno).
Em meninos o tratamento é feito com um antiandrogênico e um ini-
bidor da aromatase.
Em ambos os sexos, a terapia visa diminuir a ação do estradiol, e
consequentemente barrar o avanço acelerado da idade óssea.

Variantes Puberais Benignas ou Não Progressivas:


Pacientes com variantes benignas, como telarca prematura ou adre-
narca prematura, não requerem intervenção na maioria dos casos, em-
bora o acompanhamento se faça necessário para confirmação diagnósti-
ca e exclusão de uma possível evolução para puberdade precoce central.
Da mesma maneira, a puberdade lentamente progressiva ou intermi-
tente não justifica uma intervenção, bastando apenas acompanhamento.

11. Prognóstico:

Puberdade Precoce Central (PPC):


Quando introduzida a terapia com agonistas do GnRH, a evolução
melhora e, em relação ao ganho de altura, seus efeitos são mais bem
vistos no sexo masculino e quanto mais jovem for a criança.
A longo prazo, o tratamento com agonistas de GnRH parece não ter
efeito significativo no eixo hipófise-gonadal. Embora, durante o trata-
mento, possam ser observados ganho de massa gorda e diminuição da
densidade óssea, essas alterações parecem não ser sustentadas após
a terapia. Por outro lado, alguns estudos apontam risco aumentado no
desenvolvimento de síndrome de ovários policísticos.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
450

Puberdade Precoce Periférica (PPP)


A resposta ao tratamento pode variar entre os pacientes, mas o tra-
tamento clínico geralmente é bem-sucedido, embora os efeitos colate-
rais ao uso dos medicamentos possam estar presentes. O prognóstico,
de um modo geral, depende da causa base.

12. Tabela de resumo:

Caracteres sexuais secundários antes dos 8 anos


Definição
nas meninas e dos 9 anos nos meninos
Ativação precoce do eixo-hipotálamo-hipófise-
gônada, caracterizado por aumento das mamas nas
meninas e dos testículos (> 4 ml) nos meninos
Fisiopatologia
Produção adrenal, gonadal ou tumoral de esteroides
sexuais e gonadotrofinas
Exposição a fontes exógenas de hormônios sexuais
Puberdade Precoce Central
Classificação Puberdade Precoce Periférica
Variantes benignas ou não progressivas
Idiopática
Lesões e tumores do sistema nervoso central
Etiologia da PPC
Mutações genéticas
Exposição anterior a esteroides sexuais
Cistos e tumores de ovário
Tumores produtores de HCG e de células de Leydig
(meninos)
Etiologia da PPP Testotoxicose
Patologias adrenais
Hipotireoidismo primário
Síndrome de McCune Albright
Sequência dos eventos puberais
Anamnese Cefaleia, diplopia, poliúria (PPC)
Sinais de virilização
Velocidade de crescimento
Estágio de Tanner
Exame físico
Bócio
Manchas café-com-leite
Níveis séricos de LH, FSH, TSH, testosterona ou
Exames complementares iniciais
estradiol, RX de idade óssea
Principais exames laboratoriais para diferenciação SDHEA, testosterona, androstenediona e 17-OHP
diagnóstica na suspeita de patologias adrenais
Tratamento da PPC Agonistas de GnRH (leuprorrelina e triptorrelina)
Cirurgia no caso de tumores
Antiandrogênios (espironolactona e acetato de
ciproterona)
Tratamento da PPP Moduladores seletivos dos receptores de estrogênio
(tamoxifeno)
Inibidores da aromatase (letrozol ou anastrozol)
Derivados imidazólicos (cetoconazol)
Conduta frente a variantes benignas Seguimento clínico
Depende da causa
Nas causas centrais idiopáticas quanto mais jovem
Prognóstico
a criança, maior o benefício dos agonistas de GnRH
para evitar prejuízo na altura final
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
451

13. Leitura recomendada:

ABREU, A. P. et al. MKRN3 Inhibits the Reproductive Axis through Actions in


Kisspeptin-Expressing Neurons. Journal of Clinical Investigation, v.130, n.8,
p.4486-4500, 2020.

BRITO, V. N. et al. Central precocious puberty: revisiting the diagnosis and


therapeutic management. Archives of Endocrinology and Metabolism, v. 60,
n.2, p. 163-72, 2016.

CHEN, M. and EUGSTER, E. A. Central Precocious Puberty: Update on Diagnosis


and Treatment. Pediatric Drugs, v. 17, n. 4, p. 273-81, 2015.

LATRONICO, A. C., et al. Causes, Diagnosis, and Treatment of Central Precocious


Puberty”. The Lancet Diabetes & Endocrinology, v.4, n.3, p. 265-74, 2016.

MACEDO, D.B. et al. Avanços na etiologia, no diagnóstico e no tratamento


da puberdade precoce central. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia &
Metabologia. v.58, n.2, p.108-17, 2014.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
452

Capítulo 31

Puberdade Tardia
Cícero Toniolo
Laura Nilsson Vincensi
Thaís Gilioli
Jéssica Nascimento Monte
Nathaly Michaela Melo da Conceição
Bruno Schmidt Dellaméa

1. Introdução:

A puberdade tardia ou atraso puberal é definida como a ausência dos


sinais do início da puberdade - aumento testicular em meninos e de-
senvolvimento mamário em meninas - em idade cronológica superior a
2 ou 2,5 desvios padrões (DP) da média populacional, que corresponde a
13 anos em meninas e 14 em meninos. Também pode ser caracterizado
por menarca ausente em meninas com 15 anos ou ausência de estirão
do crescimento em meninos com 16 anos.

2. Epidemiologia:

A puberdade tardia afeta cerca de 2% dos adolescentes, sendo mais fre-


quente no sexo masculino do que no feminino, com uma proporção de 10:1.

3. Fisiopatologia:

Apesar do avanço dos estudos na área e fortes evidências de here-


ditariedade, a fisiopatologia neuroendócrina e sua regulação genética
ainda não são completamente compreendidas na maioria dos pacientes
com retardo puberal. Até o momento, a patogênese da puberdade tardia
parece ter relação com defeitos na migração e no desenvolvimento das
células produtoras de hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) e/
ou anormalidades no seu receptor e na regulação transcricional do eixo
hipotálamo-hipófise-gônadas (HHG).

4. Anamnese:

Na anamnese, é importante você avaliar o padrão de crescimento, o


ganho ou a perda de peso recentes, e o padrão alimentar e de atividade
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
453

física. Também devemos questionar a respeito de antecedentes gesta-


cionais e perinatais, como idade gestacional (IG), peso e comprimento
ao nascimento, além de alterações físicas apresentadas ao nascer. É
importante que o Atraso Constitucional do Crescimento Puberal (ACCP)
seja diferenciado do hipogonadismo.
Indivíduos com ACCP normalmente possuem baixa estatura (dois
desvios-padrão abaixo do valor médio para a altura na idade), e costu-
mam ser mais baixos do que seus colegas de classe durante anos. Geral-
mente, apresentam idade óssea atrasada em até dois anos, mas crescem
ao menos 3,7 cm/ano. Isso significa que a velocidade de crescimento e a
altura geralmente são apropriadas para a idade óssea, e a estatura final
tende a ser normal. Nos casos de ACCP, a história familiar frequentemen-
te identifica menarca tardia da mãe, irmãs ou tias, e/ou puberdade atra-
sada no pai, irmão ou tios. Além disso, tanto adrenarca quanto gonadarca
costumam ocorrem de forma tardia nesses pacientes.
Nos casos de indivíduos com hipogonadismo, a adrenarca geralmen-
te ocorre em idade normal, enquanto a gonadarca ocorre tardiamente.

Hipogonadismo Hipogonadotrófico:
Nesses pacientes, a puberdade não inicia por volta dos 14 anos em
garotos e dos 13 em garotas, ou o amadurecimento puberal é incompleto
ou transitório. A altura é apropriada para a idade, mas devido aos níveis
baixos de esteroides gonadais (como o estradiol), não há fusão epifisária
na idade normal. Isso leva ao crescimento dos braços por mais tempo
e à redução da proporção superior/inferior, chamada de proporção cor-
poral eunucoide. Se não houver tratamento, o crescimento se prolonga,
resultando em altura final elevada.
Adolescentes que apresentaram ao nascer criptorquidia e micro-
pênis por deficiência de testosterona fetal têm maior probabilidade de
apresentar hipogonadismo hipogonadotrófico.
O hipogonadismo hipogonadotrófico pode ser transitório ou defini-
tivo. Fatores desencadeantes para o quadro transitório incluem dese-
quilíbrio nutricional ou bioquímico e estresse metabólico decorrente de
diferentes afecções crônicas, como anorexia nervosa, hemocromatose
ou endocrinopatias como hipotireoidismo, hipercortisolismo e hiper-
prolactinemia. Outros fatores relacionados são desnutrição por má ali-
mentação ou síndrome disabsortiva, exercícios extenuantes, abuso de
álcool e drogas como a maconha, além de amenorreia psicológica.
Quanto ao quadro definitivo, algumas etiologias que podem ser ci-
tadas são: tumores do sistema nervoso central (SNC); malformações
congênitas; radioterapia do SNC; processos inflamatórios; lesões vas-
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
454

culares; deficiência isolada de gonadotrofinas (como a Síndrome de


Kallmann); e síndromes genéticas.

Hipogonadismo Hipergonadotrófico:
Os indivíduos apresentam alturas normais nos anos iniciais ou mé-
dios da adolescência, por isso, as alterações não costumam ser detec-
tadas até a idade esperada para a puberdade. A síndrome de Turner,
explicada anteriormente no capítulo 20, é a causa mais comum de hi-
pogonadismo hipergonadotrófico no sexo feminino. Já no sexo mas-
culino, a síndrome de Klinefelter, explicada no capítulo 21, constitui a
etiologia mais comum.
Na tabela abaixo, listamos algumas características clínicas suges-
tivas e alguns diagnósticos ou etiologias diferenciais relacionadas à
puberdade tardia.

Tabela 1: Diagnósticos diferenciais e etiologias relacionadas à puberdade tardia.


Diagnóstico ou Etiologia Características Clínicas
Síndrome de Kallmann Meninas: amenorreia primária; redução do volume ovariano e uterino;
telarca espontânea ou ausente.
Meninos: micropênis; testículos diminuídos de tamanho.
Anosmia ou hiposmia; agenesia renal; comunicação interatrial;
daltonismo; sincinesia (contrações musculares involuntárias).
Na RNM, apresentam anormalidades nos bulbos olfatórios.
Hipogonadismo associado Baixa estatura; defeitos na linha média; hipoglicemia ao nascer;
a outras deficiências micropênis e criptorquidia; torcicolo congênito.
hipofisárias
Síndrome de Prader-Willi Obesidade mórbida; baixa estatura; mãos e pés pequenos; hipotonia
fetal e do lactente; hipogonadismo hipogonadotrófico; micropênis e
criptorquidia; boca triangular; olhos amendoados.
Síndrome de Turner Estigmas: pescoço curto e alado; cubitus valgus; 4º metacarpo
curto, palato em ogiva; deformidade de Madelung; tórax em escudo;
micrognatia; epicanto.
Baixa estatura; alterações cardíacas; hipertensão; malformações renais;
doenças autoimunes.
Síndrome de Klinefelter Meninos com altura elevada; testículos pequenos e fibróticos; alterações
intelectuais e de comportamento; azoospermia.
Hipotireoidismo Ganho de peso; intolerância ao frio; fadiga.
Hipertireoidismo Perda de peso; intolerância ao calor; insônia.
Anorexia Nervosa Restrição alimentar; atividade física intensa.
Tumor de SNC Cefaleias; convulsões; alterações visuais.
Síndrome CHARGE Hipogonadismo hipogonadotrófico sindrômico caracterizado por
malformações congênitas como coloboma de íris, cardiopatia, atresia
de coanas, atraso do crescimento e desenvolvimento, hipoplasia das
genitais e anomalias dos pavilhões auriculares ou surdez.
Adaptado de: Rotinas em Endocrinologia, Artmed, 2015.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
455

Um dos grandes desafios relacionados a esse tema na prática clínica


é a diferenciação entre o Atraso Constitucional do Crescimento Puberal
(ACCP) e o Hipogonadismo Hipogonadotrófico Isolado (HHI). Por isso,
descrevemos a seguir alguns achados clínicos e laboratoriais que po-
dem auxiliar nessa diferenciação diagnóstica.

Tabela 2: Diferenciação entre Atraso Constitucional do Crescimento Puberal


(ACCP) e Hipogonadismo Hipogonadotrófico Isolado (HHI).
Atraso Puberal HHI ACCP
Frequência Raro Comum
Crescimento Normal Baixa estatura
Idade óssea Normal Atrasada
Volume testicular Reduzido (1 a 2 ml) Normal (> 2 ml)
Adrenarca Idade normal Idade atrasada
Duração Permanente Recuperação completa e espontânea
Idade Ausência de puberdade após 16 anos Desenvolvimento após 13 anos
(meninas) e 18 anos (meninos) (meninas) e 14 anos (meninos).
Massa óssea Diminuída Normal
Progressão espontânea Não Sim
da puberdade após 1 a
2 ciclos de esteroides
sexuais em baixas doses
(teste terapêutico)
Adaptado de: Endocrinologia Clínica de Lúcio Vilar.

5. Exame físico:

Alguns dos itens que você precisa avaliar são altura, peso e pro-
porções, como envergadura e segmentos corporais. No exame geral
sistemático, deve-se examinar a tireoide e atentar para a presença de
estigmas sugestivos de síndromes genéticas (citados acima), além de
observar odor androgênico e pelos axilares.
O estadiamento e a maturação sexual são avaliados de acordo com
os critérios de Tanner e Marshall, que incluem a avaliação do desenvol-
vimento das mamas, testículos e pelos pubianos. Para melhor entender
esses critérios, confira no capítulo de puberdade precoce todos os deta-
lhes dessa análise clínica.

6. Exames complementares:

Como na maioria dos casos o atraso puberal só é identificado em


uma idade em que já ocorreu a reativação do eixo hipotálamo-hipófise-
-gônadas (HHG), a dosagem basal de LH e FSH torna-se o marco divisó-
rio para a investigação posterior.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
456

LH: níveis elevados indicam hipogonadismo primário (ou hipergo-


nadotrófico). Valores > 0,6 UI/L em ensaios imunofluorométricos
(IFMA) são específicos, mas não sensíveis o suficiente para o diag-
nóstico. Nestes casos, deve-se iniciar a investigação por meio da so-
licitação do cariótipo.
FSH: valores acima do limite superior da normalidade são marcadores
de falência gonadal primária com alta especificidade e sensibilidade.

É muito importante saber que as dosagens basais das gonadotrofinas


(LH e FSH) não permitem a diferenciação entre o Atraso Constitucional
(ACCP) e o Hipogonadismo Hipogonadotrófico (HH) permanente ou o HH
funcional. Isso ocorre porque, nessas condições, as dosagens se encon-
tram normais, inapropriadamente normais ou baixas. Nesses casos, algu-
mas condutas devem ser tomadas, como:
Solicitação de hemograma completo; velocidade de sedimentação glo-
bular (VSG); exame qualitativo de urina (EQU); creatinina; enzimas he-
páticas; fosfatase alcalina; eletrólitos (sódio, potássio, cálcio, fósforo).
Dosagem de tiroxina (T4 livre) e tireotrofina (TSH): úteis para o rastreio
do hipotireoidismo, que com frequência pode causar retardo puberal.
Dosagem de prolactina: níveis elevados inibem a liberação das gona-
dotrofinas, podendo levar ao quadro de HH. Além disso, a hiperprolac-
tinemia pode ser indicativo de tumores hipofisários e, nesses casos,
outras deficiências hipofisárias podem estar associadas.
Exames de imagem do SNC: são úteis nas situações de hiperprolacti-
nemia, diabetes insípido, sinais de aumento da pressão intracraniana
(como cefaleia e papiledema) ou casos de anormalidades visuais resul-
tantes de compressão quiasmática (como hemianopsia bilateral. Em
pacientes com síndrome de Kallmann, observa-se hipoplasia ou apla-
sia dos sulcos e bulbos olfatórios.
Dosagem do fator de crescimento semelhante à insulina tipo-1 (IGF-1):
útil quando houver baixa estatura associada.
Radiografia de mão e punho: utilizada para a determinação da ida-
de óssea.
Estudos moleculares: pacientes com hipogonadismo, cariótipo normal
e outras características que sugiram HH congênito são candidatos à
análise genética de mutações em genes associados.
Dosagem sérica de Inibina B sérica: pode auxiliar na diferenciação en-
tre HH isolado e ACCP, já que valores mais altos são encontrados na
última condição.
Teste terapêutico: visa estimular o surgimento do processo puberal,
usando um a três ciclos terapêuticos com esteroides sexuais em baixas
doses. A falta de progressão espontânea da puberdade após a indução
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
457

terapêutica torna o diagnóstico de ACCP menos provável e reforça a


possibilidade do diagnóstico de HH isolado.

7. Diagnóstico:

O diagnóstico do atraso puberal é feito a partir da ausência de si-


nais de puberdade em uma idade dois a três desvios-padrão acima da
idade prevista. Em meninas, a idade máxima para o aparecimento das
mamas é de 12 a 13 anos, enquanto nos meninos a idade para início do
aumento testicular varia de 13 a 14 anos.
Para os pacientes com alguns sinais de desenvolvimento puberal e
sem doenças de base, a avaliação clínica deve ser feita em um intervalo
de três a seis meses, e exames laboratoriais devem ser solicitados caso
a puberdade não progrida. Para pacientes sem sinais de puberdade ou
com puberdade estagnada ou muito tardia, deve-se determinar a idade
óssea e solicitar exames complementares.
O esquema a seguir resume o algoritmo diagnóstico para a investi-
gação da puberdade tardia.
Atraso Puberal
HF de atraso puberal
História de doenças crônicas
Avaliar estágio de Tanner
Exames laboratoriais

LH e FSH normais ou baixos FSH elevado

Hipogonadismo
VC* normal para estágio pré-puberal VC reduzida hipergonadotrófico

ACCP ou HH por deficiência de GnRh HH funcional ou permanente Cariótipo

Imagem do SNC Avaliar doenças crônicas Mulher, 45, X ou mosaico: Turner


Teste olfatório Imagem do SNC Homem, 46, XXY ou mosaico: Klinefelter
Inibina B Prolactina

Afastar doenças crônicas,


desnutrição, hipotireoidismo,
S. de Cushing e hiperprolactinemia

Anosmia ou hiposmia
RNM com lesão expansiva Olfato e RNM normais
Ausência de bulbo olfatório

Tumor do SNC Sd. de Kallmann Outras causas de HH

Figura 1: Algoritmo diagnóstico para a investigação do atraso puberal.


VC: velocidade de crescimento. HH: hipogonadismo hipogonadotrófico.
Adaptado de: Endocrinologia clínica – Lucio Vilar 5ª ed.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
458

8. Tratamento:

Pacientes com atraso puberal devido a uma causa específica: Nes-


ses casos, se uma doença de base for identificada, o tratamento deve
ser voltado para a sua correção. Por exemplo, se a causa for hipotireoi-
dismo, o tratamento deve ser a reposição de hormônio tireoidiano; se a
causa for prolactinoma, o tratamento deve ser feito, na maioria das ve-
zes, com agonistas dopaminérgicos. Em pacientes com hipogonadismo
primário, como na Síndrome de Turner ou de Klinefelter, a terapia de
reposição hormonal faz parte do manejo.

Pacientes com Atraso Constitucional do Crescimento Puberal: para


meninos com mais de 14 anos ou meninas com mais de 12 anos que não
mostraram ainda nenhum sinal de puberdade, fica indicada a terapia de
reposição hormonal (testosterona em meninos e estradiol em meninas)
por um curto período (três a seis meses). Além do acompanhamento
clínico e laboratorial. O suporte psicológico também deve ser realizado.
A testosterona pode ser administrada por diferentes vias, mas a via
intramuscular (IM) é a mais confiável e testada. Ela deve ser iniciada
em doses baixas, como 50 mg de enantato de testosterona ou cipio-
nato de testosterona, uma vez ao mês. Essa dose, geralmente, é sufi-
ciente para atingir a virilização e o crescimento ao longo do tempo.
O estradiol pode ser administrado por via oral ou transdérmica, e as
doses iniciais são menores do que as utilizadas na terapia de repo-
sição hormonal de adultos. Quanto à utilização do adesivo de 17-be-
ta-estradiol, inicia-se cortando o adesivo de liberação de 25 mcg/dia
em quatro partes, utilizando somente ¼ do adesivo. A partir do sexto
mês, aumenta-se para meio adesivo. A partir de 12 meses, aumen-
ta-se para ¾ do adesivo e, a partir do décimo oitavo mês, passa-se a
utilizar o adesivo inteiro. Após dois anos, ou seja, no vigésimo quarto
mês, adiciona-se progestina 200 mg, mantendo-se o adesivo.
O uso de hormônio do crescimento (GH) não é recomendado devido
ao alto custo e à carência de evidências que comprovem seu efeito
benéfico na estatura do adulto.

9. Prognóstico:

O prognóstico dos pacientes com puberdade tardia depende da cau-


sa de base. O Atraso Constitucional do Crescimento Puberal (ACCP)
tende a ter um bom prognóstico e os pacientes não apresentam efeitos
adversos a longo prazo, tanto com terapia expectante quanto com tra-
tamento hormonal.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
459

Nos casos em que o paciente tem outras causas além do ACCP, é es-
sencial que o diagnóstico e o manejo sejam feitos de forma precoce.
Além disso, não podemos esquecer que o atraso puberal pode levar a
um impacto psicológico importante durante o desenvolvimento, cau-
sando estresse emocional, social e escolar.

10. Tabela de resumo:

Fisiopatologia Além das fortes evidências de hereditariedade, a patogênese da puberdade


tardia parece ter relação com defeitos na migração e no desenvolvimento
das células produtoras de hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) e/
ou anormalidades no seu receptor e na regulação transcricional do eixo
hipotálamo-hipófise-gônadas (HHG).
Anamnese Padrão de crescimento; história familiar; doenças prévias; uso de
medicamentos e drogas; revisão de sistemas com especial atenção a
características sindrômicas sugestivas; ganho ou perda de peso, alimentação
e atividades físicas.
Marcos puberais: tanto a adrenarca como a gonadarca ocorrem tardiamente
no ACCP; nos pacientes hipogonádicos, a adrenarca ocorre em idade normal.
Exame Físico Altura e peso; proporções corpóreas; maturação sexual (critérios de Tanner);
exame geral sistemático prestando atenção na presença de características
sindrômicas; observar presença de odor androgênicos e pelos axilares.
Exames Complementares Principal exame: dosagem basal de LH e FSH.
Se gonadotrofinas elevadas: hipogonadismo hipergonadotrófico. Solicitar
cariotipagem.
Gonadotrofinas baixas ou normais: ACCP ou hipogonadismo
hipogonadotrófico. Aumentar a investigação, com exames de rotina e
laboratoriais mais específicos a depender da suspeita.
Diagnóstico Hipogonadismo primário: FSH e LH elevados, estradiol ou testosterona baixos.
Hipogonadismo secundário: FSH e LH baixos, estradiol ou testosterona baixos.
ACCP - causa mais comum: histórico familiar, baixa estatura e atraso puberal,
velocidade de crescimento normal para idade óssea.
Deficiência de GnRh isolada: microfalo ou criptorquidia ao nascimento.
Paciente pode ter anosmia (Síndrome de Kallmann) e outras anomalias
congênitas (lábio leporino, agenesia renal e problemas esqueléticos). É um
diagnóstico de exclusão em paciente com hipogonadismo não explicável.
Tratamento Se atraso devido a uma causa específica: tratamento direcionado.
ACCP: acompanhamento clínico e laboratorial. Pode-se iniciar terapia hormonal
em meninos de 14 anos e meninas de 12 anos sem sinais de puberdade.
Hipogonadismo primário: terapia hormonal.
UNIDADE 7. ENDOCRINOPEDRIATRIA
460

11. Leitura recomendada:

BECCUTI, Guglielmo; GHIZZONI, Lucia. Normal and abnormal puberty.


Endotext, 2015.

KLEIN, David A.; EMERICK, Jill E.; SYLVESTER, Jillian; et al. Disorders of Puberty:
An Approach to Diagnosis and Management. American Family Physician, v. 96,
n. 9, p. 590–599, 2017.

TANG, Christine; ZAFAR GONDAL, Anoosh; DAMIAN, Middey. Delayed Puberty.


In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing, 2021.

WILLIAMS, Robert Hardin; WILSON, Jean D.; FOSTER, Daniel W. (Orgs.).


Williams Textbook of endocrinology. 7th ed. Philadelphia: Saunders, 1985.
Delayed puberty - Symptoms, diagnosis and treatment | BMJ Best Practice US.
UNIDADE 2. TIREOIDE
461

hormone replacement in adults. Arch Endocrinol Metab. 2019; 63:592-600.

YUEN KCJ, Biller BMK, Radovick S et al. American Association of Clinical


Endocrinologists and American College of Guidelines for management of
growth hormone deficiency in adults and patients transitioning from pediatric
to adult care. Endocr Pract. 2019; 25:1191-232.

UNIDADE 8:

URGÊNCIAS E
EMERGÊNCIAS EM
ENDOCRINOLOGIA
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
462

Capítulo 32

Emergências Hiperglicêmicas
Tanize Louize Milbradt
André Luiz Loeser Corazza
Larissa Maria Faccin Blás
Thizá Massaia Londero Gai

1. Introdução

A Cetoacidose diabética (CAD) e o Estado Hiperglicêmico Hipe-


rosmolar (EHH) são as emergências hiperglicêmicas mais sérias que
acometem pacientes com Diabetes Mellitus e representam importante
causa de morbimortalidade no mundo.
Por definição, a CAD possui uma tríade de hiperglicemia, acidose
metabólica e cetonemia, enquanto o EHH é identificado com severa hi-
perglicemia, hiperosmolaridade sérica, desidratação e pouca ou nenhu-
ma cetose. Ambas as condições podem acontecer em pacientes com
diabetes mellitus tipo 1 e tipo 2, apesar de a CAD ser mais frequente no
tipo 1 e o EHH, no tipo 2.
Ainda que sejam condições diferentes, a CAD e o EHH compartilham
características do espectro hiperglicêmico e de falta de insulina, o que
acarreta, muitas vezes, em uma sobreposição de sinais e sintomas clí-
nicos, bem como em uma abordagem muito parecida, como veremos ao
longo do capítulo.
O diagnóstico precoce e o manejo adequado, que envolve intensa rei-
dratação, insulinoterapia e reposição de eletrólitos, somados à identifi-
cação e tratamento do evento ou agente causador, são os pilares para o
sucesso da estabilização clínica do paciente no contexto dessas emer-
gências hiperglicêmicas.

2. Epidemiologia:

A cetoacidose diabética é a primeira manifestação de DM1 em 17%


dos adultos e em até 30% das crianças e dos adolescentes com a doença.
É mais comum no DM1, apesar de um terço dos casos também acon-
tecerem em DM2. Os pacientes portadores de DM1 com maior risco de
CAD, conforme estudos recentes, são aqueles com altos níveis de hemo-
globina glicada (HbA1c), diabetes de longa duração, adolescentes e me-
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
463

ninas. A CAD é a principal causa de morte entre crianças e jovens adul-


tos com DM1, sendo responsável por aproximadamente 50% de todas as
mortes em pacientes diabéticos com menos de 24 anos. Alguns grupos
com comorbidades e com idade avançada possuem mortalidade acima
de 5% com a CAD; porém, o índice fica inferior a 1% em se tratando da
população adulta. Esse baixo índice de mortalidade foi gradualmente
atingido a partir da descoberta da insulina, em 1921, período a partir do
qual a CAD deixou de ser majoritariamente uma doença fatal.
O EHH, por sua vez, possui mortalidade superior à da CAD, poden-
do atingir 20% em adultos com idade avançada e com comorbidades.
Acomete principalmente indivíduos mais velhos com DM2. É menos
comum que a CAD, representando cerca de 1% das admissões hospita-
lares relacionadas à diabetes. Apesar de ser característico de pacientes
com idade mais avançada, a incidência de EHH em crianças e jovens
está aumentando, tendo em vista a ocorrência cada vez maior de DM2
em populações jovens, em virtude, por exemplo, do sedentarismo e de
maus hábitos alimentares.

3. Causas precipitantes:

Antes de entendermos a fisiopatologia da doença, é preciso destacar


os fatores precipitantes das crises hiperglicêmicas. De modo geral, a
maior parte dos casos ocorre pela baixa aderência ao tratamento com
insulina e pela ocorrência de infecções, seguidas pelo desconhecimen-
to prévio do DM e por outros estressores metabólicos.
Como já citado, a CAD é considerada a “primo-descompensação” do
DM1 em 17% dos adultos e em até 30% das crianças. No entanto, a causa
mais comum são as infecções, seguido da baixa aderência à insulino-
terapia e uso de álcool e drogas. Recentemente, vêm sendo relatados
casos de CAD em decorrência do uso de inibidores do contratransporta-
dor de sódio-glicose 2 (SGLT2), uma classe de fármacos antidiabéticos.
O curioso é que a manifestação da CAD nessa situação se dá de forma
“euglicêmica”, ou seja, com glicemia inferior a 300 mg/dL, o que dificul-
ta o diagnóstico e retarda o início do tratamento. Os inibidores de SGLT2
reduzem a glicemia pelo mecanismo de glicosúria, mas, nesse proces-
so, acabam por elevar o glucagon, como forma de compensar a glicose
eliminada. Assim, nesse contexto de aumento de hormônio contrarre-
gulador, somado à insulinopenia, há a formação de um ambiente “ideal”
para a cetoacidose diabética. Segundo estatísticas, cerca de 10% dos pa-
cientes com DM1 em uso dos inibidores de SGLT2 desenvolvem cetose
(produção de corpos cetônicos) e cerca de 5% requerem hospitalização
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
464

por CAD. Assim, é preciso ter maior atenção nos pacientes diabéticos
que fazem uso dessa classe de fármacos hipoglicemiantes.
Além disso, o uso de outras medicações também pode desencadear
crises hiperglicêmicas; é o caso dos glicocorticóides, beta-bloqueado-
res, diuréticos tiazídicos, alguns agentes quimioterápicos e antipsicóti-
cos atípicos, como a olanzapina e a risperidona.
Em relação ao EHH, especificamente, os fatores precipitantes mais
comuns são de origem infecciosa, com destaque para infecções de tra-
to urinário e pneumonias. Em muitos casos, o desencadeador pode ser
uma condição aguda, como infarto agudo do miocárdio, acidente vas-
cular encefálico e traumas.
É importante destacar que a causa motivadora da crise hiperglicê-
mica é desconhecida em 2 a 5% dos casos.

4. Fisiopatologia:

Para o entendimento da fisiopatologia da CAD e do EHH, é interessan-


te fazer o exercício mental inicial de imaginar uma gangorra, conforme
demonstrado na figura 1. De um lado, em concentrações baixíssimas
ou nulas, está a insulina; de outro, em ascensão, com concentrações
elevadas, estão os hormônios contrarreguladores, como glucagon, cate-
colaminas, cortisol e hormônio do crescimento.

HORMÔNIOS
CONTRARREGULARES

GLUCAGON
CATECOLAMINAS
CORTISOL
GH
INSULINA

Figura 1: Representação do mecanismo fisiopatológico comum da CAD e EHH,


com baixas concentrações de insulina e altas concentrações de hormônios
contrarreguladores, como o glucagon.
Elaborada pelo autor.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
465

Fisiopatologia da cetoacidose diabética:


O déficit de insulina na CAD pode ser absoluto, como é o caso dos pa-
cientes com DM1, ou relativo, como observado em pacientes com DM2.
Essa extrema insulinopenia já cursa com aumento da glicemia, tendo
em vista que a glicose, na ausência de insulina, deixa de ser capturada
pelos tecidos (especialmente pelo músculo esquelético). Assim, sem a
entrada de glicose nas células, há a sinalização de que é necessário ha-
ver maior produção dessa substância, o que acarreta a elevação da con-
centração dos hormônios contrarreguladores, em especial o glucagon.
Consequentemente, ocorre o aumento da produção de glicose hepática,
devido ao aumento da gliconeogênese e da glicogenólise. Isso, somado
à redução da utilização da glicose pelos tecidos periféricos, piora ainda
mais a hiperglicemia do paciente, como evidenciado na figura 2.
É interessante destacar que o glucagon, um dos principais hormônios
contrarreguladores liberados, tem seus níveis aumentados primeira-
mente em resposta à ativação do sistema nervoso simpático, que ocor-
re em virtude da depleção de volume, característica dos pacientes com
CAD. Ainda, a perda severa de células beta configura-se como um segun-
do estímulo que impulsiona ainda mais a “descarga” desse hormônio.
Isso ocorre, pois, nesse contexto de perda celular, as células beta deixam
de fazer seu papel de “inibição” sobre as células alfa, o que acarreta au-
mento da função dessas últimas, liberando glucagon em maior quanti-
dade. Nesse contexto, é possível entender também o porquê de alguns
pacientes com DM1 possuírem hipoglicemias frequentes e assintomá-
ticas: com o passar do tempo, há a perda das células alfa produtoras de
glucagon, o que impossibilita o aumento “rebote” em situação de insuli-
nopenia. Assim, sem glucagon, não há o aumento da gliconeogênese e da
glicogenólise, o que impede o aumento da glicemia.
Além de todo esse contexto adverso, a insulinopenia também leva
à ativação da lipase sensível a hormônio, que é responsável por um
processo chamado lipólise, em que ocorre a quebra de triglicerídeos em
ácidos graxos livres (AGL). No fígado, esses AGL são oxidados em cor-
pos cetônicos, o que é predominantemente estimulado pelo glucagon.
Esses corpos cetônicos produzidos nada mais são do que dois ácidos
fortes: o ácido acetoacetato e o ácido beta-hidroxibutirato (esse último
em maior quantidade). Tendo em vista a produção excessiva desses
corpos cetônicos (cetonemia), o sistema tampão do nosso organismo
excede sua capacidade de regular o pH, o que resulta em acidose me-
tabólica. Temos, portanto, uma condição de cetoacidose diabética: ceto,
pois há produção de corpos cetônicos; acidose, pois há diminuição do
pH; e diabética, pois há hiperglicemia. Assim ficou fácil entender, né?
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
466

Nesse momento, o paciente com CAD enfrenta dois processos: a hi-


perglicemia e a alta concentração de corpos cetônicos. Como consequ-
ência, há a ocorrência de glicosúria (eliminação de glicose na urina) e
diurese osmótica. Para maior entendimento desse último conceito, é
preciso destacar que a glicose é, por definição, osmoticamente ativa,
isto é, tende a atrair água e outros eletrólitos do intracelular para o ex-
tracelular. Assim, há perda de água, sódio, potássio, cálcio, magnésio,
cloreto e fosfato, o que contribui para a desidratação e para as anormali-
dades de eletrólitos que cursam com a cetoacidose diabética. A progres-
siva depleção de volume pode levar à hipovolemia e também à diminui-
ção na taxa de filtração glomerular, o que acarreta maior diminuição do
clearance da glicose e dos corpos cetônicos, contribuindo, como em um
ciclo vicioso, para maior hiperglicemia e acidose metabólica.

Fisiopatologia do EHH:
Os mecanismos fisiopatológicos do EHH diferem da CAD no que diz
respeito ao grau de desidratação, bem como pela ausência de cetonemia
significativa, conforme destacado na figura 2. Mas como isso ocorre?
No EHH, o déficit insulínico não é tão grande como na CAD, e a insu-
lina circulante ainda é capaz de suprimir a cetose, já que se sabe que ela
inibe a lipólise (isto é, evita a quebra de triglicerídeos em AGL e, conse-
quentemente, evita a oxidação em corpos cetônicos). Apesar disso, esse
“pouco” de insulina circulante não consegue suprimir a gliconeogênese
hepática e também não é suficiente para favorecer a captura de toda a
glicose nos tecidos periféricos, tendo em vista que neles já há uma im-
portante resistência à ação da insulina. Assim, apesar da ausência ou da
pouca cetose, há um quadro significativo de hiperglicemia (com níveis
superiores aos encontrados na CAD), com osmolalidade sérica elevada,
o que ocasiona a diurese osmótica e, posteriormente, quadros graves de
desidratação. Nesse sentido, pacientes diabéticos que possuem maior
risco de desidratação, como idosos ou indivíduos com acesso restrito
à água, podem ter propensão ao desenvolvimento de EHH, já que, se o
paciente não bebe água, o plasma fica muito hipertônico, favorecendo
todo o processo já descrito.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
467

DEFICIÊNCIA INSULÍNICA ABSOLUTA DEFICIÊNCIA INSULÍNICA RELATIVA

Aumento dos hormônios


contrarreguladores

Lipólise
Utilização
Ácidos da glicose Gliconeogênese Glicogenólise
graxos livres
AUSÊNCIA DE CETOGÊNESE

HIPERGLICEMIA

Glicosúria e diurese osmótica


CEATOACIDOSE
Desidratação HIPEROSMOLALIDADE

EHH
CAD
Figura 2: Representação esquemática do mecanismo fisiopatológico da
Cetoacidose diabética (CAD) e do Estado Hiperosmolar Hiperglicêmico (EHH).
Elaborado pelo autor. Adaptado de Diabetic ketoacidosis and hyperosmolar hyperglycemic state.
Freitas-Foss Mc & Foss MC. Medicina, Ribeirão Preto, 36: 389-393, abril/dez. 2003.

5. Anamnese:

Após o entendimento da fisiopatologia de CAD e do EHH, os sinais e


sintomas clínicos, evidenciados na anamnese, ficam mais elucidativos.
O paciente com CAD geralmente possui um quadro que evolui rápi-
do, em questão de horas a dias, sendo que os principais sinais e sinto-
mas são:
Os famosos 4 “Ps”: poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso;
Fadiga, astenia, prostração, sonolência e alteração do sensório;
Náuseas, vômitos e dor abdominal, o que pode simular, muitas vezes,
um quadro de abdome agudo;
Hálito cetônico (sinal de cetose), taquicardia, hipotensão e respiração
de Kussmaul (respiração rápida e profunda decorrente da acidose);
Membranas mucosas ressecadas e turgor cutâneo diminuído (evi-
dência da depleção de volume e desidratação).

O paciente com EHH, por sua vez, apresenta um quadro mais insidio-
so, que evolui ao longo de dias a semanas. Os sintomas são semelhantes
aos da CAD, exceto pelos quadros de dor abdominal e outros sintomas
relacionados à cetoacidose. A característica mais marcante aqui é a
desidratação grave e o rebaixamento no nível de consciência. Assim,
os pacientes possuem sintomatologia neurológica proeminente, já que
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
468

cerca de metade dos indivíduos com EHH apresenta-se comatosa na


chegada e os demais mostram presença de estupor.
É importante que sejam questionadas a existência e a duração
dos sinais e sintomas descritos acima, a fim de avaliar o grau de hi-
perglicemia e cetoacidose (no caso da CAD). Caso o paciente já tenha
um diagnóstico de DM, é preciso saber sobre as últimas aplicações
de insulina (tipo, dose, horários e local), seus hábitos alimentares e
alimentação nos dias anteriores. Além disso, como parte da investi-
gação da história da doença atual, é imprescindível que sejam inves-
tigados sintomas associados com outras doenças capazes de serem
fatores desencadeantes, como traumas físicos ou emocionais, infec-
ções, abandono do tratamento do DM, infarto do miocárdio, acidentes
neurovasculares, etc.
Quanto à história médica pregressa, faz-se necessário questionar
sobre a ocorrência de outras doenças endócrinas ou autoimunes, bem
como os antecedentes familiares para essas doenças e, principalmen-
te, para o diabetes mellitus tipo I. Ainda, é essencial obter a história
completa do uso de medicamentos, sobretudo corticosteroides, diuré-
ticos tiazídicos, agentes antipsicóticos de segunda geração, inibidores
de SGLT-2, entre outros fármacos que interferem no metabolismo de
carboidratos e podem participar do desenvolvimento de crises hiper-
glicêmicas.

6. Exame físico:

O exame físico das emergências hiperglicêmicas deve ser centrado


na avaliação de via aérea, padrão ventilatório, hemodinâmica, avalia-
ção neurológica e análise do estado de hidratação. Assim, preconiza-
-se a análise de cor (palidez, icterícia, cianose), temperatura, pressão
arterial, frequência e ritmo cardíacos, frequência respiratória, padrão
respiratório, além da classificação do grau de hidratação. A escala de
coma de Glasgow é uma excelente ferramenta para análise do estado
neurológico, em especial na vigência do EHH.
Sendo assim, os achados físicos mais característicos são: pobre
turgor cutâneo, hálito cetônico e respiração de Kussmaul (apenas na
CAD), taquicardia, hipotensão, sinais neurológicos focais (como he-
mianopsia e hemiparesia) e convulsões (no EHH). Apesar de infecções
serem frequentes como fatores desencadeantes da CAD e EHH, o pa-
ciente pode se apresentar normo ou até hipotérmico, como resultado
da vasodilatação periférica. Quando presente, a hipotermia é um sinal
de mau prognóstico.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
469

7. Exames complementares:

Para complementar a avaliação inicial da CAD e do EHH, os exa-


mes necessários são: glicemia, ureia, creatinina, sódio, potássio, ce-
tonemia ou cetonúria, hemograma, gasometria arterial e cálculo do
ânion Gap. O cálculo da osmolalidade efetiva também é imprescindí-
vel e está descrito na seção “Tome nota” a seguir. Culturas, radiografia
de tórax, outros exames de imagem e dosagem de troponinas podem
ser necessários para o diagnóstico etiológico, bem como o eletrocar-
diograma pode ser útil na avaliação de distúrbios eletrolíticos.
Os principais achados laboratoriais serão discutidos a seguir.

Glicemia: sempre aumentada, podendo ter variações amplas, sendo


que, no EHH, pode chegar a valores superiores a 1000 mg/dL. Impor-
tante lembrar que, como comentado anteriormente, há a possibilidade
de a CAD ser “euglicêmica”, como com o uso de inibidores de SGLT2.

Glicosúria/Cetonúria: os testes de presença de glicose e corpos ce-


tônicos na urina são positivos na CAD. Os métodos utilizados são as
fitas reagentes (que estão disponíveis para uso domiciliar, inclusive)
ou métodos realizados em laboratórios de análise. Vale destacar que
a reação com nitroprussiato, um dos reagentes utilizados em fita, não
detecta a presença de beta-hidroxibutirato (BHB); consequentemente,
pode haver uma subestimação da cetonúria, já que o BHB é o principal
corpo cetônico liberado na CAD.

Cetonemia: a concentração de corpos cetônicos no sangue encon-


tra-se elevada na CAD. A sua avaliação geralmente é feita pela reação
de nitroprussiato de sódio, na qual o BHB não é dosado, o que corrobora
resultados pouco fidedignos, como citado anteriormente. Atualmente,
já existem métodos para dosagem exclusiva de BHB, inclusive com fi-
tas reagentes usando sangue de modo similar à glicemia capilar, o que
facilita sua realização. No entanto, nem sempre estão disponíveis no
nosso meio. É importante ressaltar que os achados de cetonemia posi-
tiva vão ao encontro do hálito cetônico, presente em muitos pacientes
com CAD, e que deve ser observado durante o exame físico.

Ureia e creatinina: podem estar normais ou elevadas, em virtude


do catabolismo proteico (originado pelo aumento dos hormônios con-
trarreguladores) e desidratação.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
470

Hemograma completo: a leucocitose com neutrofilia (isto é, aumento


do número de leucócitos, às custas de elevação dos neutrófilos) pode
ser observada. Nos casos não relacionados à infecção, isso se deve ao
aumento do cortisol e das catecolaminas circulantes. Quando a conta-
gem leucocitária é superior a 25.000-30.0000/mm³, sugere-se quadro
infeccioso. Além disso, o hematócrito, que corresponde à porcentagem
de volume ocupado pelas hemácias no volume total de sangue, pode
se elevar em resposta à hemoconcentração e desidratação vigente no
paciente com CAD ou EHH.

Sódio: o sódio (Na) corporal total geralmente é baixo, em virtude da


saída de água e eletrólitos do intra para o extracelular na presença de
hiperglicemia (ficou com dúvida? Releia o conceito de diurese osmó-
tica, descrito no tópico de fisiopatologia!). A concentração plasmática
pode estar normal, elevada ou diminuída. Além disso, como é comum
a presença de vômitos, o sódio também deixa de ser ingerido adequa-
damente; portanto, nem sempre o valor do sódio sérico reflete o grau de
deficiência do íon. Assim, podemos calcular o sódio corrigido, por meio
da seguinte fórmula:

Sódio Corrigido=[Na]+1,6 ×(([Glicose]-100))/100

As alterações de concentração de sódio apresentam maior relevância em


crianças, porque elas possuem maior tendência de evoluir com edema cere-
bral por hiponatremia, que é uma das complicações possíveis no quadro de
CAD e EHH.

Potássio: a maior parte dos pacientes com CAD e EHH possuem dé-
ficit de potássio corporal (5 a 10 mEq/kg). Já a concentração sérica do
íon pode ser normal, alta ou baixa. A diminuição do potássio total se
deve à perda urinária do íon e aos vômitos, quando presentes. Já a hi-
percalemia que pode ocorrer nesses pacientes se deve ao fato de que há
o deslocamento do potássio do meio intracelular para o extracelular,
conforme demonstrado na figura 3. Isso ocorre devido à saída de água
e eletrólitos do interior das células em resposta ao efeito osmótico da
hiperglicemia, bem como em virtude da acidose metabólica e proteó-
lise. Além disso, a falta de insulina diminui a entrada do íon potássio
nas células, o que provoca o seu acúmulo no meio extracelular. A rei-
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
471

dratação, a melhora da acidemia e o uso da insulina promovem rápida


diminuição da calemia em consequência à perda urinária mantida e
ao retorno do potássio para o meio intracelular. Assim, é estritamente
proibido a administração de insulina em pacientes que já se apresen-
tem com hipocalemia na chegada, pois, ao iniciar a insulinoterapia, a
concentração sérica do potássio irá diminuir ainda mais com a entrada
de K na célula, o que pode contribuir para alterações eletrocardiográfi-
cas e arritmias, podendo evoluir para desfechos fatais.

A B
HIPERGLICEMIA VIGENTE
HIPERGLICEMIA

INTRACELULAR
DIURESE OSMÓTICA

EXTRACELULAR
SAÍDA DO POTÁSSIO (K) DO
INTRACELULAR PÁRA O EXTRACELULAR

HIPERGLICEMIA VIGENTE
INSULINO TERAPIA

INTRACELULAR

PERDA DE POTÁSSIO CONCENTRAÇÃO DE


CORPORAL TOTAL K SÉRICA PODE SER
NORMAL, AUMENTADA
OU DIMINUÍDA

C EXTRACELULAR

Figura 3: Em A, evidencia-se a sequência de eventos que contribuem para


a perda de potássio (K) corporal total e presença de concentração sérica
variável do íon. Em B, há a representação esquemática do movimento de
saída do K em resposta à hiperglicemia. Em C, destaca-se o efeito de “retorno”
do K em resposta à insulina, o que pode ser extremamente perigoso caso o
paciente esteja com hipocalemia (K < 3,3 mEq/L).
Elaborado pelo autor.

Cálculo do ânion GAP: o ânion GAP é a soma dos cátions diminuída


da soma dos ânions. Encontra-se aumentado na CAD e pode ser cal-
culado pela seguinte fórmula: AG = Na – (Cl + HCO3). Por convenção,
utiliza-se nessa conta o sódio medido (e não o corrigido!). Os valores
referência são de 8 a 12 mmol/L, sendo que na CAD, esse valor normal-
mente é maior que 12, confirmando a acidose por AG elevado. Isso nada
mais é do que a evidência de que há a formação de outros ânions, no
caso, os cetoácidos.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
472

Durante o tratamento, pode haver oferta excessiva de cloro (por meio de


soro fisiológico, por exemplo), fato que pode desencadear uma acidose me-
tabólica com AG normal (denominada hiperclorêmica), que será revertida,
com o controle do quadro, ao longo de dias e semanas. Essa situação deve ser,
portanto, diferenciada da acidose com AG elevado.

Gasometria arterial: na avaliação dos pacientes com CAD e EHH, é


imprescindível a análise dos três parâmetros descritos a seguir.
pH sanguíneo: estará diminuído (ácido); normal = 7,4;
Bicarbonato (HCO3): diminui à medida que a produção de ácidos or-
gânicos vai aumentando; normal = 24 (2 mEq/L);
Excesso de base (BE): diminuída com o consumo de bases; normal =
+2,5 a -2,5 mEq/L).

Atenção para os diagnósticos diferenciais de CAD. Se o pH é muito baixo


e a cetonúria apenas moderada, a causa pode ser acidose láctica ou acidose
hiperclorêmica, por exemplo. Nessa situação, a dosagem de lactato sérico
pode ser útil. Se lactato sérico baixo, associado com acidose metabólica e
hiperglicemia, esse quadro é altamente sugestivo de CAD.

Osmolalidade efetiva: está elevada em todos os pacientes com EHH


(≥ 320 mOsm/kg) e pode ser variável nos pacientes com CAD. A fórmula
está descrita abaixo na seção “Tome nota”.

A osmolalidade efetiva é calculada da seguinte forma:

Osmolalidade Efetiva=2 ×[Sódio]+(Glicemia/18)

O ânion Gap é calculado utilizando-se o sódio aferido, não o corrigido.

Ânion-Gap (AG)=[Na]-(Cl +HCO3)

A obtenção do sódio corrigido já foi citada anteriormente.


UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
473

8. Diagnóstico:

Os critérios diagnósticos para CAD e EHH variam conforme o guide-


line de referência. Segundo a American Diabetes Association (ADA), os
critérios para confirmação do diagnóstico de CAD são:
Glicemia > 250 mg/dL;
pH < 7,3;
bicarbonato (HCO3) < 18;
Corpos cetônicos presentes na urina.

A figura 4 ilustra a clássica tríade diagnóstica da CAD: hiperglice-


mia, cetose e acidose metabólica.
A ADA ainda classifica o quadro de CAD em leve, moderado e grave,
conforme valores de pH, bicarbonato, ânion-gap e o nível neurológico,
conforme descrito na tabela 1.
Quanto ao EHH, a ADA determina como critérios diagnósticos:
Glicemia > 600 mg/dL;
pH > 7,3;
HCO3 > 18;
Corpos cetônicos ausentes na urina;
Osmolalidade plasmática (> 320 mMol/kg);
Alterações de sensório, como estupor ou coma.

TRÍADE DE
CETOACIDOSE

BICARBONATO
< 15 mEq/L

HIPERGLICEMIA > 250 mg/dL ACIDOSE METABÓLICA

CETOSE pH < 7,3

Figura 4: Representação esquemática da tríade da cetoacidose, evidenciando os


três critérios diagnósticos principais: hiperglicemia, cetose e acidose metabólica.
Elaborado pelo autor.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
474

Tabela 1: Classificação das emergências hiperglicêmicas.


CAD EHH
LEVE MODERADA GRAVE
Glicemia (mg/dL) > 250 > 250 > 250 > 600
pH arterial 7,25 - 7,30 7,00 - 7,24 < 7,0 > 7,30
HCO3 (mEq/L) 15 - 18 10 a < 15 < 10 > 18
Cetonúria Positiva Positiva Positiva Negativa/fracamente positiva
Osmolalidade efetiva Variável Variável Variável > 320 mOsm/kg
Estado mental Alerta Alerta ou Estupor ou coma Estupor ou coma
sonolento
Adaptado de: O essencial em endocrinologia. Patrícia Sales, Alfredo Halpern, Cíntia Cercato. 1. Ed.
Rio de Janeiro: Roca. 2016.

9. Tratamento:

O manejo das emergências hiperglicêmicas se baseia na correção da


desidratação, da hiperglicemia, da hiperosmolalidade (no caso do EHH),
dos distúrbios eletrolíticos e da cetonemia (no caso da CAD). Ainda, é
importante que as causas precipitantes sejam identificadas e tratadas.
A média de tempo para resolução fica em torno de 10 a 18 horas para
a CAD, e aproximadamente 9 a 11 horas para o EHH. Para o sucesso do
tratamento, é imprescindível o monitoramento frequente de todos os
parâmetros clínicos e laboratoriais do paciente.

Manejo da CAD e do EHH:

De início, é preciso pontuar que os casos leves de CAD, em sua gran-


de maioria, não necessitam de internação em Unidades de Terapia In-
tensiva (UTI), podendo ser tratados ambulatorialmente. Em relação ao
EHH, porém, os quadros são sempre considerados graves e requerem
cuidados intensivos.
As recomendações de manejo serão agrupadas em cinco passos:
hidratação, dosagem de potássio, insulinoterapia, correção de outros
distúrbios eletrolíticos e transição para a manutenção com insulina,
quando da resolução do quadro.

Hidrataçã o:
É a primeira ação que deve ser instituída na suspeita de CAD e EHH.
Com ela, objetiva-se expandir o volume intravascular, restaurar a perfu-
são renal e reduzir a resistência insulínica, por meio da diminuição dos
níveis de hormônios contrarreguladores circulantes.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
475

Recomenda-se a infusão de 15 a 20 ml/kg de soro fisiológico (SF)


0,9% (aproximadamente 1000 a 1500 ml/h nas primeiras 2 horas). Nas
demais horas, pode-se infundir 250-500mL, não ultrapassando 50 mL/
kg nas primeiras 4 horas, a fim de evitar edema encefálico. Essa infusão
deve ser adequada ao status volêmico e à presença ou não de comorbi-
dades, como insuficiência cardíaca, doença renal ou idade avançada.
Após a estabilização hemodinâmica, é recomendada a troca por SF
0,45%; porém, essa mudança depende do valor de sódio corrigido:
Se Na corrigido ≥ 135 mEq/L (natremia elevada), usar NaCl 0,45% 250
a 500 mL/h.
Se Na corrigido <135 mEq/L, continuar com NaCl 0,9% 250 a 500mL/h.

Dosagem de potássio:
Mas e a insulinoterapia? Calma! Antes de iniciar a insulina, é im-
prescindível que o potássio seja dosado.
Caso a dosagem de potássio sérico seja menor que 5,2 mEq/L, é re-
comendada a reposição de 20 a 30 mEq de K a cada litro de solução de
hidratação.
Se o potássio inicial for < 3,3 mEq/L, NÃO se deve iniciar insulina!
Como explicado anteriormente, a acidose metabólica e a insulinopenia
fazem com que o potássio saia de dentro da célula e vá para o meio ex-
tracelular. Assim, há depleção do potássio corporal total (por causa da
desidratação), mas o potássio sérico pode estar elevado. A insulinotera-
pia, no entanto, promove o movimento do potássio de volta para dentro
da célula. Assim, se o paciente já chega com uma hipocalemia impor-
tante (dosagem de potássio < 3,3 mEq/L), caso seja administrada insu-
lina, haverá intensificação desse movimento de retorno, ocasionando
uma hipocalemia severa, o que aumenta o risco de arritmias cardíacas
e pode ser fatal.

Insulinoterapia:
Depois de ter certeza de que o nível sérico de potássio é, no mínimo,
≥ 3,3 mEq/L, é hora de administrar a insulina! Com ela será possível
corrigir a hiperglicemia, inibir a lipólise, a cetogênese e a secreção de
glucagon, melhorando, assim, a cetoacidose.
Em quadros de EHH e CAD moderada a grave, a infusão endovenosa
recomendada é de 0,14 UI/kg/h de insulina regular ou a administração
de bolus de 0,1 UI/kg seguida de infusão de 0,1 UI/kg/h. A vazão pode
ser reduzida para 0,02 a 0,05 UI/Kg/h quando for iniciado SG 5% (quando
glicemia < 200 mg/dL e < 300 mg/dL na CAD e EHH, respectivamente). A
meta é uma redução de 50 a 75 mg/dL/h da glicemia.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
476

Preparação da insulina regular endovenosa: diluir 25 UI de insulina


regular em 250 mL de SF (equivalente à dose 0,1 UI/kg/h).

Se quadro de CAD leve, com paciente alerta, capaz de tolerar líquidos


por via oral, pH > 7,0 e HCO3 > 10 mEq/L, pode ser utilizada via sub-
cutânea insulina de ação rápida (Lispro, Aspart ou Glulisina) em bolus
0,3 UI/kg. A manutenção é feita com 0,2 UI/Kg a cada 2 horas. Quando
glicemia < 250 mg/dL, reduzir para 0,05 a 0,1 UI/kg a cada 2 horas até
resolução. Ainda, quando a glicemia for < 200 mg/dL na CAD ou < 300
mg/dL no EHH, é recomendada a adição de soro glicosado (SG) 5% ou
10% à terapia de hidratação, com a finalidade de prevenir a ocorrência
de hipoglicemia.

Correção de outros distúrbios eletrolíticos:


A reposição de bicarbonato não é indicada nas emergências hiper-
glicêmicas, tendo em vista que podem aumentar o risco de hipocalemia
e edema cerebral. No entanto, alguns guidelines recomendam consi-
derar a reposição quando pH < 6,9. Se necessário, utilizar 100 mEq de
bicarbonato de sódio (NaHCO3) em 2 horas.
A administração de fósforo também é controversa, mas pode ser in-
dicada para pacientes com concentração de fosfato sérico < 1,0 mg/dL
ou com hipofosfatemia associada à presença de insuficiência cardíaca,
respiratória ou hemólise. Nessas situações, 20 a 30 mEq/L de fosfato de
potássio podem ser adicionados aos fluidos infundidos.

Resolução e transição para manutenção com insulina:


Após a reidratação, correção dos eletrólitos e insulinoterapia, o qua-
dro de CAD ou EHH tende a normalizar.
Nesse sentido, os critérios de resolução da CAD são:
Glicemia < 200 mg/dL, somada de dois dos seguintes critérios:
AG < 12;
HCO3 ≥ 15 mEq/L;
pH > 7,3

Quanto ao EHH, os critérios são:


Glicemia < 300 mg/dL;
Osmolalidade sérica < 315 mOsm/kg;
Recuperação do nível de consciência.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
477

Após a resolução, deve então ser iniciada insulina subcutânea, sendo


que a primeira dose de insulina de ação prolongada deve ser feita pelo
menos 2 horas antes da suspensão da insulina intravenosa. Isso é neces-
sário tendo em vista que a insulina intravenosa tem tempo de meia-vida
muito pequeno (cerca de 10 minutos); assim, ao fazer a sobreposição dos
dois regimes, evita-se hiperglicemia ou cetoacidose de rebote.
Caso o paciente já seja previamente diagnosticado, com regime de
uso de insulina, recomenda-se o retorno à dose habitual. No entanto,
em casos de “primo-descompensação”, é recomendado 0,5 a 0,7 UI/Kg/
dia divididos em 50% para insulina de ação prolongada, uma vez ao dia,
e 50% para insulina de ação rápida (aqui distribuídos antes do café, al-
moço e jantar).

Outros cuidados importantes no manejo de emergências hiperglicêmicas são:


Monitorização de glicemia capilar de 1 em 1 hora, de eletrólitos e de gaso-
metria venosa a cada 2 a 4 horas;
Profilaxia de trombose venosa profunda para pacientes com indicação de
internação, já que a CAD e o EHH são quadros em que há a instauração de
um estado pró-inflamatório e pró-coagulante.

10. Prognóstico:

Os fatores que culminam em um pior prognóstico nos quadros de


CAD e EHH são, em geral, determinados pelo grau de severidade de
desidratação, extremos de idade, hipotensão ou choque hipovolêmico,
presença de coma e gravidade do fator precipitante.
A mortalidade geral dos pacientes com CAD é menor que 1%, porém,
pode atingir 5% em idosos e pacientes com outras doenças potencial-
mente fatais. Quanto ao EHH, a taxa de mortalidade varia de 5 a 15%, o
que é bem superior à da CAD, tendo em vista o padrão de pacientes aco-
metidos (mais velhos, com outras comorbidades associadas).
As complicações que levam os pacientes ao óbito podem ser relacio-
nadas à própria síndrome hiperglicêmica ou desencadeadas pelo seu
tratamento. No primeiro grupo, destacam-se: desidratação, distúrbios
eletrolíticos, hiperlipidemia, pancreatite, suscetibilidade a infecções e
fenômenos tromboembólicos. Já no segundo grupo, as principais com-
plicações são hipoglicemia, acidose hiperclorêmica, edema cerebral e
edema pulmonar.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
478

11. Tabela de resumo:

Emergências Cetoacidose Diabética Estado Hiperglicêmico Hiperosmolar


Hiperglicêmicas
Epidemiologia Mais comum em pacientes com Ocorre com menor frequência que a CAD
DM1 Mais comum em pacientes com DM2
Principal causa de morte em Paciente típico: indivíduo mais velho, portador
crianças e adolescentes com de DM2 com outras comorbidades.
DM1
Paciente típico: criança
ou adolescente em primo-
descompensação do DM1
Causas Infecções
precipitantes Baixa aderência à insulinoterapia
Uso de drogas ilícitas
Uso de medicações
Causas Primeira descompensação do Infecções do trato urinário
desconhecidas (2 a DM1 Pneumonias
5% dos casos) Condições agudas, como infarto agudo do
miocárdio, acidente vascular encefálico,
traumas
Fisiopatologia Baixos níveis de insulina que cursam com concentrações elevadas de hormônios
contrarreguladores, como glucagon, catecolaminas, cortisol e hormônio do
crescimento
Achados principais Os “4 P’s”: poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso
da anamnese Fadiga, astenia, sonolência e alterações do sensório
Náuseas, vômitos e dor Desidratação mais grave que na CAD e maior
abdominal rebaixamento do nível de consciência
Achados principais Pobre turgor cutâneo
do exame físico Mucosas ressecadas
Taquicardia
Hipotensão
Hálito cetônico Convulsões
Respiração de Kussmaul
Achados Hiperglicemia (no EHH pode ser superior a 1000 mg/dL)
laboratoriais Déficit de Na sérico
principais Déficit de K corporal (5 a 10 mEq/kg)
Concentração sérica de K normal, aumentada ou diminuída
pH sanguíneo diminuído
Bicarbonato diminuído
Cetonúria/cetonemia Pouca ou nenhuma cetonúria/cetonemia
Ânion GAP aumentado Osmolalidade efetiva aumentada (≥ 320 mOsm/kg)
Diagnóstico Glicemia > 250 mg/dL Glicemia > 600 mg/dL
pH < 7,3 pH > 7,3
Bicarbonato < 18 Bicarbonato > 18
Corpos cetônicos presentes na Corpos cetônicos não significativos na urina
urina Osmolalidade plasmática (>320 mMol/kg)
Alterações de sensório (estupor ou coma)
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
479

Tratamento Objetivos: restaurar a volemia, reduzir a glicemia e corrigir os distúrbios


eletrolíticos e acidobásicos
1º passo: HIDRATAÇÃO
2º passo: DOSAGEM DO POTÁSSIO
Se K+ < 3,3 = reponha K+ (não dê insulina, pois há risco de arritmias cardíacas,
podendo ser fatal!)
Se K+ entre 3,3 e 5,3 = reponha K+ (pode dar insulina!)
Se K+ > 5,3 = não reponha K+ por enquanto (dê insulina!)
3º passo: INSULINOTERAPIA
4º passo: CORREÇÃO DE OUTROS DISTÚRBIOS ELETROLÍTICOS
Reposição de bicarbonato apenas se pH < 6,9
Reposição de fósforo apenas se concentração de fosfato sérico < 1,0 mg/dL
5º passo: RESOLUÇÃO E TRANSIÇÃO PARA MANUTENÇÃO COM INSULINA
Critérios de Glicemia < 200 mg/dL + 2 dos Glicemia < 300 mg/dL
resolução seguintes critérios: Osmolalidade sérica < 315 mOsm/kg
Ânion Gap < 12 Recuperação do nível de consciência
Bicarbonato ≥ 15 mEq/L
pH > 7,3
Prognóstico Determinado pelo grau de severidade da desidratação, extremos de idade,
hipotensão ou choque hipovolêmico, presença de coma e gravidade do fator
precipitante
Mortalidade inferior a 1% na Mortalidade superior à da CAD, podendo chegar
população adulta e superior a 5% a 20% em pacientes mais velhos
em crianças e jovens

12. Leitura recomendada:

American Diabetes Association. Standards of medical care in diabetes, 2020.


Disponível em: https://professional.diabetes.org/content-page/practice-guidelines
-resources.

American Diabetes Association. Hyperglycemic crises in adult patients


with diabetes: a consensus statement from American Diabetes Association.
Disponível em: https://care.diabetesjournals.org/content/32/7.

FRENCH, E. K.; DONIHI, A. C; KORYTKOWSKY, M. T. Diabetic ketoacidosis and


hyperosmolar hyperglycemic syndrome: review of acute decompensated
diabetes in adult patients. BMJ, p. 1-15, mai. 2019.

MARTINS, M. A. et al. Clínica Médica: doenças endócrinas e metabólicas,


doenças ósseas, doenças reumatológicas. [S.l: s.n.], 2016.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
480

Capítulo 33

Emergências Tireoidianas
Pietra Fischer Pascoal
Rafael Fortes Locateli
Thizá Massaia Londero Gai

Neste capítulo, iremos abordar as duas patologias emergenciais da


tireoide: o coma mixedematoso e a crise tireotóxica. Ambos os desequi-
líbrios metabólicos cursam com alteração dos hormônios tireoidianos,
sendo o primeiro por depleção severa de T3 e T4 e o segundo por hiper-
secreção aguda. Vamos ver as suas apresentações e manejos a seguir.

COMA MIXEDEMATOSO
1. Introdução:

O coma mixedematoso (CM) pode ser chamado também de estado


mixedematoso, já que nem sempre resultará em coma. É uma urgência
endocrinológica decorrente do hipotireoidismo não diagnosticado ou
não controlado, ou seja, é a expressão mais grave da depleção severa
e prolongada dos hormônios tireoidianos. Geralmente, o corpo vai se
adaptando à diminuição de T4, até que um fator desencadeante quebra
essa homeostasia metabólica frágil.
Embora tenha baixa prevalência, a taxa de mortalidade é alta. Por
isso, é importante suspeitar em pacientes com história de hipotireoi-
dismo que se apresentam na emergência com comprometimento mul-
tissistêmico. Como sua clínica é variada e envolve sintomas sistêmicos
inespecíficos oriundos da desaceleração da função de vários órgãos, o
diagnóstico é desafiador: feito através da apresentação clínica e histó-
ria pregressa.
O bom prognóstico depende de intervenção precoce e, por isso, mui-
tas vezes o manejo começa antes dos resultados dos testes de função
tireoidiana. O tratamento do CM gira em torno da reposição agressiva
de levotiroxina juntamente com manejo de intercorrências clínicas as-
sociadas e do fator desencadeante.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
481

2. Epidemiologia:

Os dados epidemiológicos dos pacientes que desenvolvem CM são


semelhantes ao de hipotireoidismo em geral. Afeta principalmente mu-
lheres, especialmente acima de 60 anos (até 80% dos casos). A grande
maioria, cerca de 90% das ocorrências, acontecem no inverno. A inci-
dência estimada é de apenas 0,22/milhão/ano, embora seja provavel-
mente subdiagnosticada pela dificuldade de reconhecimento e alta
mortalidade relacionada ao quadro. A taxa de mortalidade, antes de 60
a 80%, atualmente é estimada em 15 a 25% devido aos avanços na tera-
pia intensiva e ao diagnóstico precoce.

3. Fisiopatologia:

Resumidamente, no coma mixedematoso devemos pensar que há


uma patologia de base (hipotireoidismo), que leva à adaptação do me-
tabolismo a partir de mecanismos neurovasculares, a fim de manter o
equilíbrio da homeostase corporal. Porém, essa homeostasia é frágil e
pode descompensar de duas maneiras: com a culminação de um hipo-
tireoidismo grave de longa data ou por um evento agudo (fator preci-
pitante). Essa descompensação da atividade metabólica já modificada
resultará no estado mixedematoso.

Patologia de base:
Pode ser tanto o hipotireoidismo primário quanto o central. A maio-
ria, cerca de 85%, é decorrente do hipotireoidismo primário, pois é a
causa mais prevalente da diminuição do hormônio tireoidiano. Entre
os hipotireoidismos primários, vale destacar: 1) tireoidite autoimune
crônica, porque seu curso é insidioso e pode ser subdiagnosticado; 2)
hipotireoidismo pós-cirúrgico ou pós-ablativo, que evolui de forma
mais rápida sem o tratamento hormonal adequado; 3) hipotireoidismo
decorrente do uso crônico de drogas, como amiodarona e lítio.

Mecanismos neurovasculares:
São eles: bradicardia, diminuição do débito cardíaco e vasoconstri-
ção periférica.

Fatores precipitantes:
Certas condições podem romper o equilíbrio no hipotireoidismo gra-
ve ao diminuir o volume sanguíneo e alterar tanto a hematose, quan-
to o controle ventilatório. Os gatilhos mais frequentes são, em ordem:
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
482

abandono da reposição do hormônio tireoidiano, infecções, infarto agu-


do do miocárdio, eventos cerebrovasculares e exposição prolongada ao
frio. Outros desencadeantes: insuficiência cardíaca (IC), sangramen-
tos gastrointestinais, doenças pulmonares (insuficiência respiratória,
pneumonia), hiponatremia, trauma, queimadura extensa e cirurgia.
Também são consideradas precipitantes as drogas: amiodarona, anes-
tésicos, sedativos (especialmente opioides), diuréticos, narcóticos, fe-
notiazidas, inibidores de tirosina quinase e lítio.

Alterações na homeostasia metabólica:


Quadro clínico geral: diminuição do nível de consciência, hipoter-
mia, hipotensão, bradicardia, hiponatremia, hipoglicemia, hipoventila-
ção (acidose respiratória, hipercapnia), hiporreflexia e mixedema.
Sistema cardiovascular: a resistência vascular aumentada e a dimi-
nuição do volume sanguíneo, resultantes do hipotireoidismo de longa
data, podem levar à hipertensão diastólica. A dilatação ventricular e/
ou derrame pericárdico vão remodelando o coração, levando à cardio-
megalia e, assim, diminuindo a contratilidade miocárdica, o volume
sistólico e o débito cardíaco. Essas alterações podem desencadear hi-
potensão/choque. A diminuição da frequência cardíaca (bradicardia),
juntamente com esses outros distúrbios, podem levar a arritmias po-
tencialmente fatais.
Sistema respiratório: a insensibilidade dos centros respiratórios à
hipóxia e à hipercapnia resulta em hipoventilação, levando à acidose
respiratória. Fatores obstrutivos como obesidade (apneia do sono), ma-
croglossia, fraqueza da musculatura respiratória pela miopatia hipoti-
reoidiana, edema de submucosa de vias aéreas, derrames cavitários ou
pneumonia podem piorar ainda mais a ventilação do paciente.
Manifestações renais: a miopatia hipotireoidiana pode levar a rab-
domiólise. Os produtos dessa degradação podem precipitar uma in-
suficiência renal. A síndrome de secreção inapropriada de hormônio
antidiurético (ADH) – agravada por insuficiência adrenal –, com a di-
minuição da excreção renal de água livre, resulta na diminuição do rit-
mo do fluxo renal e da taxa de filtração glomerular, gerando hiponatre-
mia. Além disso, a atonia da bexiga pode levar a uma retenção urinária.
A hiponatremia pode ser atribuída à secreção inapropriada do ADH
e a alterações renais adjacentes e à hiperlipidemia - achado comum
que pode causar valores relativamente baixos de sódio no plasma
(hiponatremia dilucional).
Manifestações adrenais: podem ter causa primária (pela autoimu-
nidade) ou secundária (pela insuficiência hipofisária). Os sinais são
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
483

hipotensão arterial, hiponatremia e hipoglicemia. Hipercalemia e hi-


perpigmentação podem sinalizar uma insuficiência adrenal primária.
A hipoglicemia tem como causa o hipotireoidismo ou, mais frequen-
temente, insuficiência adrenal concomitante. Pode ser explicada
pela menor taxa de gliconeogênese no hipocortisolismo (insuficiên-
cia adrenal), pelo baixo antagonismo periférico à insulina, pela falta
de apetite e, também, pela possível presença de infecção.
Alterações cutâneas: a pele fica fria devido à vasoconstrição cutâ-
nea reflexa, levemente amarelada por causa da anemia e da hiperca-
rotenemia, seca e áspera pela desregulação da produção de suor. Pode
haver a formação do mixedema, que é um edema duro formado pelo
acúmulo de mucopolissacarídeos e água no tecido intersticial, além de
edema periorbital que resulta na fácies mixedematosa.

Imagem 1: Fácies mixedematosa.


Retirado de: SATOH, T. et al. 2016 guidelines for the management of thyroid storm from the Japan
thyroid association and Japan endocrine society (First edition): The Japan thyroid association
and Japan endocrine society taskforce committee for the establishment of diagnostic criteria.
Endocrine Journal, v. 63, n. 12, p. 1025–1064, 2016.

Sistema gastrointestinal: torna-se lentificado, gerando anorexia,


náusea, dor abdominal, constipação e, em casos mais graves, atonia
gástrica e má absorção.
Manifestações hematológicas: embora raro, pode haver maior risco
de sangramento causado pela síndrome de von Willebrand adquirida e/
ou pela redução dos fatores de coagulação V, VII, VIII, IX e X.
Sistema neurológico: a hipofunção desse sistema está relacionada
à hiponatremia, hipóxia e hipoglicemia do quadro mixedematoso. Essa
condição pode levar ao coma e, em casos mais raros, causar danos cere-
brais irreversíveis. Convulsões focais ou generalizadas também podem
estar presentes em até 25% dos casos. O estado de mal epiléptico foi
relatado em pacientes com hiponatremia.
Hipotermia: a diminuição do metabolismo diminui a termogênese e
tem como resultado a hipotermia, sinal muito comum no CM.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
484

HIPOTIREOIDISMO

Fator precipitante

T4

T3 INTRACELULAR

SNC Respiratório Cardiovascular Renal

Termogênese Inotropismo
Bradicardia

Hipotermia Sensibilidade à Permeabilidade vascular


Hipercapnia e à Hipoxemia Retenção de água
Gasto Cardíaco
Vasoconstrição

Insuficiência respiratória

Vaso sanguíneo diminuido

Alteração do estado mental Anoxia cerebral Pressão arterial Edema


Choque Hiponatremia

COMA
MIXEDEMATOSO

Figura 1: Fluxograma representando de forma sistemática a fisiopatologia do


coma mixedematoso.
Adaptado de: SATOH, T. et al. 2016 guidelines for the management of thyroid storm from the Japan
thyroid association and Japan endocrine society (First edition): The Japan thyroid association
and Japan endocrine society taskforce committee for the establishment of diagnostic criteria.
Endocrine Journal, v. 63, n. 12, p. 1025–1064, 2016.

4. Anamnese:

A anamnese no contexto de emergência deverá ser feita com acom-


panhante se o paciente estiver pouco responsivo. Necessário atentar-se
à história médica pregressa para radioterapia cervical, radioiodotera-
pia, cirurgia hipofisária, tireoidectomia, queda/acidente com trauma-
tismo craniano, hemorragia pós-parto e medicamentos de uso contínuo
(levotiroxina, antitireoidianos, amiodarona, lítio e opioides). É muito
importante perguntar sobre a adesão do paciente ao tratamento de re-
posição de levotiroxina.
Na maioria das vezes, os pacientes com estado mixedematoso já têm
história prévia de hipotireoidismo. Porém, caso ainda não haja esse diag-
nóstico, é relevante perguntar sobre sintomas prévios de hipotireoidis-
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
485

mo/disfunção tireoidiana (cansaço, constipação, ganho de peso, perda


de cabelo, pele seca, edema) e quanto a comorbidades autoimunes.
Devemos investigar apneia do sono, disfunção cognitiva, depressão,
esquecimento, hábitos fisiológicos (constipação, retenção urinária), di-
minuição do apetite e comorbidades (problemas renais, diabetes melli-
tus, hipertensão arterial sistêmica).
Vale ressaltar que: como a IC aparece mais em pacientes com doen-
ça cardíaca preexistente pela descompensação do sistema cardiovas-
cular, não podemos esquecer de perguntar sobre esse diagnóstico ou
medicamentos que o apontem.

5. Exame físico:

Primeiramente, devemos iniciar pela inspeção para observar se há


rarefação de pelos e cabelos (alopecia) e Sinal de Hertoghe (Sinal da
Rainha Ana ou madarose supraciliar), que é a perda do terço distal da
sobrancelha. A pele costuma estar fria, seca e áspera (pele de elefante).
Pode estar levemente amarelada, com mixedema e fácies mixedema-
tosa. É importante não esquecermos de observar e palpar a região do
pescoço em busca de cicatriz de tireoidectomia, bócio ou alterações de
volume/consistência da tireóide.
Quanto à parte neurológica, o paciente provavelmente se apresen-
tará letárgico e sonolento. Há uma exceção: nos casos de demência
mixedematosa ou psicose do mixedema, pode estar presente um qua-
dro de agitação. É prudente fazer exame neurológico direcionado para
nível e conteúdo da consciência e da motricidade, incluindo reflexos
tendinosos profundos para averiguar neuropatia periférica sensorial e
motora, além de sinais cerebelares (movimentos descoordenados nas
mãos e pés; ataxia e diadococinesia). Atentar para a possibilidade de
crise convulsiva.
Ao fazer exame cardiovascular, a frequência cardíaca frequente-
mente se encontrará menor que 50 batimentos por minuto (bradicar-
dia). A ausculta poderá estar hipofonética (se IC, derrame pericárdico),
com ritmo irregular ou sopros. Quando aferida a pressão, hipertensão
diastólica ou hipotensão poderão ser percebidas.
Examinando o sistema respiratório, veremos saturação e frequência
respiratória diminuídas. É preciso procurar, então, sinais obstrutivos da
via aérea: bócio volumoso, macroglossia e mixedema supraglótico.
Outros sinais de CM no exame físico incluem: bexigoma (retenção
urinária), sangramento anormal, distensão do abdome (fecaloma, cons-
tipação prolongada) e hiperpigmentação da pele.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
486

6. Exames complementares:

Gasometria arterial: aumento da PaCO2 e diminuição da PaO2 (acido-


se respiratória com hipóxia).
Hemograma: anemia, leucocitose (somente após terapêutica com
hormônio tireoidiano).
Hemocultura, urocultura: se positiva, confirma infecção gatilho do CM.
Renal/eletrólitos: Na (hiponatremia), Cl (hipocloremia), creatinina
(aumentada), K (hipopotassemia).

Osmolaridade Plasmática (POsm)=2×[Sódio] +([Glicose])/18 +([Ureia*])/6


*No lugar da ureia, pode-se utilizar o BUN (nitrogênio ureico sanguíneo), devendo-se substituir
“ureia/6” da equação por “BUN/2,8”.

Os valores de referência variam de 285 a 295 mOsm/L.


As unidades de medida colocadas na equação devem ser sódio em
mmol/L e glicose e ureia em mg/dL.

Enzimas musculares: níveis de CPK e DHL (elevados pela diminui-


ção de depuração metabólica, o nível de CPK pode estar ainda mais
elevado na miopatia do hipotiroidismo).
Glicemia capilar: hipoglicemia.
Perfil lipídico: hipercolesterolemia.
TSH: concentração sérica elevada (hipotireoidismo primário) ou
baixa/normal/alta (hipotireoidismo central).
T3 e T4 livres ou totais: concentrações baixas.
ACTH e cortisol: triagem de insuficiência adrenal. O cortisol deve ser
medido antes da administração de glicocorticoides.
Eletroencefalograma (EEG): achados inespecíficos com lentidão e
amplitude diminuída, com raras ondas trifásicas.
ECG: baixa voltagem, bradicardia sinusal e alterações difusas da onda T.
Radiografia de tórax: grande silhueta cardíaca, derrame pleural ou
pericárdico.

Dependendo do foco de investigação do fator de descompensação: to-


mografia de crânio, troponina, ecocardiograma e peptídeo natriurético.
A análise do líquido cefalorraquidiano pode ser feita para verificar
presença de infecção, mas cuidado: uma elevação modesta dos níveis
de proteína (< 100 mg/dL), sem leucocitose, não sugere infecção.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
487

7. Diagnóstico:

Inicialmente, se baseia na história, exame físico e exclusão de outras


possíveis causas de coma. Em pacientes nos quais há suspeita clínica,
os testes de função tireoidiana confirmam o diagnóstico.
É importante considerar a possibilidade CM em qualquer paciente
com rebaixamento do nível de consciência que tenha infecção, hipona-
tremia, hipotermia e/ou hipercapnia. A hipoglicemia associada à bradi-
cardia também é bastante sugestiva de hipotiroidismo.
Desde 2014 há um sistema de pontuação que sugere a probabilidade
de CM. Mesmo não sendo amplamente validada, já que foi elaborada a
partir da inclusão de poucos pacientes, essa ferramenta pode auxiliar a
nortear o diagnóstico.
Se o somatório resultar 60 pontos ou mais, o quadro é altamente su-
gestivo de coma mixedematoso.
Entre 25 e 59 pontos, considera-se risco de coma mixedematoso.
Se pontuação inferior a 25, o diagnóstico de coma mixedematoso é
improvável.

Tabela 1: Escala diagnóstica para coma mixedematoso.


Parâmetro Pontos
Maior que 35°C 0
Disfunção do sistema
Entre 32 e 35°C 10
termorregulador
Menor que 32°C 20
Alerta 0
Letargia/sonolência 10
Nível de consciência Obnubilado 15
Estupor 20
Coma e/ou convulsões 30
Anorexia, dor abdominal ou constipação 5
Sintomas
Motilidade intestinal diminuída 15
gastrointestinais
Íleo paralítico 20
Ausente 0
Evento precipitante
Presente 10
Frequência cardíaca Maior que 60 bpm 0
Entre 50 e 59 bpm 10
Entre 40 e 49 bpm 20
Menor que 40 bpm 30
Pericardite e derrame pleural 10
Comprometimento do
Edema pulmonar 15
sistema cardiovascular
Cardiomegalia 15
Hipotensão 20
Alterações eletrocardiográficas:
Prolongamento do intervalo QT, baixa voltagem, bloqueios de ramos, 10
alterações inespecíficas do segmento ST.
Hiponatremia 10
Hipoglicemia 10
Alterações metabólicas Hipoxemia 10
Hipercapnia 10
Taxa de filtração glomerular diminuída 10
Adaptado de: SATOH, T. et al. 2016 guidelines for the management of thyroid storm from the Japan
thyroid association and Japan endocrine society (First edition): The Japan thyroid association
and Japan endocrine society task force committee for the establishment of diagnostic criteria.
Endocrine Journal, v. 63, n. 12, p. 1025–1064, 2016.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
488

Diagnósticos diferenciais: intoxicação aguda, hiponatremia, hipogli-


cemia, hipercalcemia, acidente vascular cerebral e hematoma subdural.

8. Tratamento:

Deve ser agressivo e instituído sem espera laboratorial. Consiste em:


Reposição de hormônios da tireoide.
Administração glicocorticoides.
Medidas de apoio/suporte.
Gerenciamento adequado de problemas coexistentes.

Hormônios tireoidianos:
Devemos administrar o quanto antes. A terapia requer monitoriza-
ção cardíaca contínua e redução da dose do hormônio caso haja altera-
ções isquêmicas ou arritmias. O uso correto de hormônios tireoidianos é
capaz de reverter anormalidades cardíacas e hiponatremia decorrentes
do CM. Há controvérsias no que tange à reposição desses hormônios:
incerteza quanto às doses empregadas inicialmente e se os pacientes
devem ser tratados com levotiroxina (T4) isolada, liotironina (T3) isola-
da ou T3 e T4 combinados.
Por que essas controvérsias? Precisamos lembrar que T3 é o hormô-
nio biologicamente ativo, ou seja, é ele que age nos tecidos. Seu efeito
é mais rápido, mais potente e consegue atravessar a barreira hemato-
encefálica. Além disso, no CM há diminuição da 5’-deiodinase tipo I,
enzima que permite conversão de T4 em T3. Então por que não é con-
senso usar T3? Ele tem meia-vida curta, concentração sérica flutuante
e aumenta risco para eventos cardiovasculares e óbito, principalmente
em idosos e cardiopatas. No Brasil, a ANVISA não aprova nenhuma for-
mulação de T3, então esse hormônio só é disponível manipulado, cuja
procedência é incerta.

Esquemas possíveis: T4 isolado, T3 isolado (em desuso), T4 e T3


combinados.
Via de administração: Intravenosa (IV) ou via oral (VO). Como há ab-
sorção errática por via oral (50 a 80%) e pode ser ainda mais prejudicada
pelo mixedema, prefere-se a via endovenosa. No Brasil, em geral, há
apenas disponibilidade das preparações VO, então vamos depender do
uso de sonda nasogástrica, pós-pilórica ou orogástrica ou da via retal,
caso paciente esteja em íleo paralítico ou tenha alguma contraindica-
ção para o uso VO/enteral.
Etapas: dose de ataque e dose de manutenção.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
489

Monitoramento: dosar T4 total, livre e T3 total (este, se disponível)


a cada 24 a 48 horas, pelo menos uma hora após a administração dos
hormônios. O TSH cai a um ritmo de 50% por semana, caso a dose de
reposição seja plena. A meta dos valores de T3 é igual à referência (80
e 180 ng/dL) e, usando o limite inferior em pacientes frágeis, pois esse
hormônio aumenta risco de óbito. Após a dose inicial de ataque, espera-
-se uma elevação de 2 a 4 mcg/dL nos níveis de T4 total.

Tratamento com T4 isolado:


Iniciar com altas doses de levotiroxina (LT4) com o objetivo de repor
o déficit e para saturar os estoques circulantes de hormônio tireoidiano.
Dose de ataque: bolus IV de 300 a 500 μg nas primeiras 48 horas ou
500 μg se VO.
Manutenção: dose mais fisiológica, de 50 a 100 μg/dia IV ou 100 a 175
μg/dia VO/sonda.

Terapia combinada:
Dose de ataque: 200 a 300 μg de T4 com 10 μg de T3, em bolus lento.
Manutenção: T4 50 a 100 μg/dia + T3 10 μg a cada 8 a 12 horas, IV. VO
com 50 a 100 T4 μg/dia.

O limite inferior da dosagem tanto de T3 quanto de T4 é preferido


em pacientes mais frágeis e idosos e naqueles com risco de complica-
ções cardíacas (infarto do miocárdio, arritmia). Doses intermediárias
parecem ser mais eficazes. Altos níveis séricos de T3 durante a terapia
foram associados à mortalidade, pois excesso de liotironina tem o po-
tencial de provocar arritmias.
Com a estabilização do quadro, será feito o tratamento VO, que deve
ser ajustado de acordo com o nível sérico de hormônio tireoidiano (T4
livre e TSH). A dose inicial de T4 deve ser determinada com base no
peso corporal, idade, doença cardiovascular coexistente e dose intrave-
nosa recente.

Tabela 2: Reposição de hormônios tireoidianos no estado mixedematoso.


Via de administração Levotiroxina Liotironina Associados (T4+T3)
TRATAMENTO Ataque 300-500 μg 10-20 μg T4: 200-300 μg
ENDOVENOSO T3: 10 μg
Manutenção 50-100 μg/dia 10 μg a cada 4 horas T4: 50-100 μg/dia
(primeiras 24 horas), T3: 10 μg a cada
depois a cada 6/8 horas 8/12 horas
TRATAMENTO VIA ORAL Ataque 500 μg
Manutenção 100-175 μg/dia T4: 50 a 100 μg/dia
Adaptada de: “Medicina de Emergência: Abordagem Prática”, Martins et al. (2016).
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
490

Glicocorticoides:
Administrar depois da coleta dos níveis basais de cortisol, até que a
possibilidade de insuficiência adrenal coexistente seja excluída (ver ca-
pítulo 15) ou haja melhora clínica.
Os glicocorticoides devem ser utilizados em doses de estresse (hidro-
cortisona IV, dose de ataque de 100 a 200 mg, depois 25 a 50 mg de 6 em
6 horas).
A justificativa desse tratamento é que pacientes com hipotireoidismo
primário autoimune podem ter insuficiência adrenal primária conco-
mitante e pacientes com hipotireoidismo central podem ter hipopitui-
tarismo além da insuficiência adrenal secundária. Ademais, no hipoti-
reoidismo grave há uma resposta alterada do cortisol diante do estresse
e, também, a rápida restauração da taxa metabólica pode precipitar um
quadro de insuficiência adrenal transitória.

Medidas de suporte:
É necessária muitas vezes a internação do paciente em Unidade de
Terapia Intensiva (UTI).
Suporte ventilatório com gasometria regular nas primeiras 48h.
_ Cuidado! A infiltração mixedematosa da faringe dificulta o manejo
de vias aéreas. A depressão do sistema respiratório pode durar de
três a seis meses após o tratamento do hipotireoidismo e o paciente
com consciência rebaixada tem maior risco de broncoaspiração.
Solução salina hipertônica se houver hiponatremia grave. Se hipona-
tremia leve (> 120 mEq/L), a reposição de levotiroxina já é suficiente
para reverter o quadro.
_ Cuidado! Evitar a administração de líquidos IV hipotônicos, pois a
perfusão renal reduzida e a secreção inapropriada de vasopressina
aumentam a possibilidade de retenção de água.
Monitorar drogas e evitar sedativos, uma vez que o metabolismo da
maioria das medicações fica prejudicado.
Controlar hipoglicemia (administração de glicose IV, se necessário).
A hipotensão, em geral, será corrigida pela terapia com hormônio ti-
reoidiano e reposição de volume. Se houver hipotensão grave ou re-
fratária a fluidos, administrar vasopressor (noradrenalina).
Correção de hipotermia: o mais indicado é o reaquecimento passivo
com cobertor, pois o reaquecimento ativo acarreta o risco de vasodi-
latação e, em decorrência disso, pode precipitar uma hipotensão re-
fratária. Se não houver melhora da hipotermia em 48 horas, deve-se
considerar tratamento mais agressivo com hormônios da tireoide, in-
clusive com inclusão de T3.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
491

_ O reaquecimento ativo deve ser utilizado apenas se temperatura


< 30ºC, em que o risco de colapso cardiovascular é mais grave que
o risco de hipotensão refratária.

Gerenciamento adequado de problemas coexistentes:


Em relação à antibioticoterapia, alguns autores sugerem começar
empiricamente com antibiótico de amplo espectro já na suspeita de
coma mixedematoso, principalmente se o estado do paciente for gra-
ve. A justificativa baseia-se no fato que o segundo fator predisponente
mais comum é a infecção. Ajustar a terapia com o resultado dos exa-
mes ou cessar seu uso com a exclusão desse diagnóstico.
Lembrar: o material para cultura deve ser retirado do sítio de suspei-
ta de infecção, de preferência antes do início da antibioticoterapia.

Exames adicionais devem ser solicitados de acordo com a suspeita


do fator precipitante, e, quando diagnosticados, seu manejo é de grande
importância para uma boa evolução do paciente.

Alta hospitalar:
A melhora clínica e bioquímica costuma ser evidente em uma se-
mana e deve ser avaliada ao longo de três parâmetros: estado de cons-
ciência, função cardíaca e função pulmonar. É muito importante frisar
que depois da alta o paciente tem que fazer uso contínuo de levotiroxina
a fim de evitar outro CM.

9. Prognóstico:

O prognóstico depende do rápido reconhecimento da síndrome


clínica e manejo inicial adequado. Não está ligado aos níveis de T4 e
de TSH. Fatores preditivos de pior prognóstico: idade avançada, com-
plicações cardíacas, consciência reduzida, necessidade de ventilação
mecânica, hipotermia persistente (mais baixa a temperatura, maior a
chance de óbito) e sepse. A hiponatremia, presente em 50% dos casos,
quando grave (105 a 120 mEq/L) contribui para o coma e aumenta a taxa
de mortalidade em cerca de 60 vezes. Embora alguns pacientes tenham
uma recuperação completa, uma taxa considerável (15 a 25%) apresenta
desfecho fatal.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
492

10. Tabela de resumo:

COMA MIXEDEMATOSO
O que é Emergência. Níveis baixos de hormônios tireoidianos.
Epidemiologia Rara, mas com alta mortalidade
Fisiopatologia Decorre de hipotireoidismo descompensado por um fator precipitante
Fatores precipitantes Abandono de reposição hormonal
Infecções
IAM
AVC
Exposição prolongada ao frio
Anamnese História ou sintomas de hipotireoidismo
Abandono de reposição de levotiroxina
Ablação da tireoide ou tireoidectomia prévia
Exame físico Bradicardia
Rebaixamento nível de consciência
Mixedema
Hipercapnia
6 “hipo’s”: hipotermia, hipotensão, hipoventilação, hipoglicemia, hiporreflexia,
hiponatremia
Exames laboratoriais •Creatinina
Dosagem do cortisol
ECG
Ecocardiograma e peptídeo natriurético cerebral
Eletrólitos
Enzimas musculares
Gasometria
Glicemia
Hemograma
Hormônios tireoidianos
Perfil lipídico
Radiografia de tórax
Outros exames de acordo com fator precipitante
Diagnóstico Clínica e baixos níveis de hormônios tireoidianos
OBS: Não esperar exames para início de terapia se alta suspeição
Diagnósticos Doença do eutireoidiano doente
diferenciais Intoxicação
AVC
Tratamento Hormônios tireoidianos T4 ou T3 e T4 – preferencialmente IV
Dose de ataque e de manutenção
Glicocorticoides Até descartar insuficiência adrenal
Terapia de suporte Ventilação
Manejo da hipotermia
Reposição volêmica
Tratamento fator precipitante
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
493

11. Leitura recomendada:

SATO, E. I. et al. Atualização Terapêutica de Felício Cintra do Prado, Jairo de


Almeida Ramos, José Ribeiro do Valle: Urgências e Emergências. 3a ed. São
Paulo: Artes Médicas, 2017.

RIZZO, L. F. L. et al. Coma mixedematoso. Medicina (Buenos Aires), v. 77, n. 4, 2017.

CALDERÓN, I. C. G. et al. Urgencias endocrinológicas: coma mixedematoso.


Revista Repertorio de Medicina y Cirugía, 2021.

RUBÉN PÉREZ-NIETO, Orlando et al. Coma mixedematoso. Medicina Interna de


Mexico, v. 36, n. 6, 2020.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
494

CRISE TIREOTÓXICA
1. Introdução:

A crise tireotóxica (CT), também chamada de tempestade tireoi-


diana, hipertireoidismo acelerado ou síndrome do hipertireoidismo
descompensado, é uma emergência caracterizada por manifestações
clínicas exacerbadas de tireotoxicose (ver capítulo 5).
O quadro se deve à hipersecreção aguda de tiroxina (T4) e triiodo-
tironina (T3) e essa tempestade de hormônios tireoidianos resulta em
um estado hipermetabólico com resposta adrenérgica excessiva.
A CT pode ser desencadeada por um evento agudo (abandono de
terapia antitireoidiana, infecção) ou pelo próprio hipertireoidismo não
diagnosticado, não tratado ou tratado de forma incorreta. Embora so-
mente 1% dos casos evolua de tireotoxicose para CT, sua taxa de mor-
talidade pode chegar a 30% se o tratamento não for iniciado rapida-
mente. Acomete mais mulheres de meia idade portadoras da doença
de Graves.
Como é uma crise multissistêmica, seu reconhecimento precoce é
difícil, mas imprescindível para um melhor prognóstico deste quadro
agudo e ameaçador a vida. O tratamento abrange, além da terapia es-
pecífica antitireoidiana, o suporte em uma unidade de terapia intensi-
va (UTI) e o manejo dos fatores precipitantes.

2. Epidemiologia:

A CT é responsável por 1% a 2% das admissões por hipertireoidismo,


ou seja, felizmente é uma apresentação rara. A incidência nos Estados
Unidos variou de 0,57 a 0,76 casos por 100.000 por ano, chegando a ser
quase 10 vezes maior em pacientes hospitalizados. Entre os pacientes
internados com tireotoxicose, 16% foram diagnosticados com CT. No
Brasil, a prevalência da CT foi de 0,2 a cada 100.000 pacientes hospi-
talizados. Esta complicação aguda atinge mais mulheres (proporção
de 3-5:1), com idade média de 40 anos (epidemiologia semelhante à
tireotoxicose).

3. Fisiopatologia:

A CT é desencadeada pela descompensação da patologia de base


(hipertireoidismo). O rápido aumento dos hormônios tireoidianos
ocorre por tratamento inadequado ou inexistente do hipertireoidismo
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
495

de longa data ou, mais frequentemente, por um evento agudo (fator


precipitante). Esse fator é relacionado a condições que interferem na
ligação do T4 com proteínas ligadoras (proteína ligadora da tiroxina,
albumina, pré-albumina e transtiretina) e que, dessa forma, podem
aumentar os níveis de hormônios tireoidianos livres, uma vez que a
concentração de T4 livre se relaciona diretamente com essa capaci-
dade de ligação.
Na hipótese mais aceita, o binômio “hipertireoidismo-fator desen-
cadeante” resulta nessa tempestade de hormônios tireoidianos a par-
tir da redução da depuração renal e hepática destes produtos, maior
sensibilidade às catecolaminas, hiperatividade do sistema nervoso
simpático e/ou maiores respostas celulares ao T3, o que causa libera-
ção de citocinas e distúrbios imunológicos.
A hiperatividade metabólica aumenta a necessidade de oxigênio.
O corpo reflete isso através da taquicardia, que pode induzir sinais e
sintomas de insuficiência cardíaca (IC), predispondo o paciente a ar-
ritmias cardíacas. Outra repercussão da hiperatividade metabólica é a
hipercalcemia decorrente do aumento da reabsorção óssea.
As manifestações da CT no sistema nervoso central são irritabilida-
de, convulsões, alucinações, delirium e, em casos mais graves, coma.
A hiperglicemia é multifatorial. As principais hipóteses são: inibi-
ção da liberação de insulina devido à contrarregulação por catecolami-
nas, aumento da glicogenólise e inibição da gliconeogênese hepática.

Patologia de base:
Pode ser um hipertireoidismo já diagnosticado ou não. A etiologia
mais comum é a doença de Graves, mas outras situações de tireotoxi-
cose endógena, como bócio multinodular tóxico e adenoma tóxico da
tireoide, podem ser responsáveis.

Fatores precipitantes/desencadeadores:
Descontinuação do medicamento antitireoidiano e infecção são os
principais.
Cirurgias (de tireoide ou não) são um fator mais raro atualmente.
Trauma, cetoacidose diabética, infarto agudo do miocárdio, aciden-
te vascular cerebral, isquemia mesentérica, transtornos psicóticos,
IC, toxemia gravídica, parto, terapia com radioiodo (raro), queima-
duras, excesso de hormônio tireoidiano exógeno, excesso de iodo
(contraste iodado ou sobrecarga de ingestão de iodo) e medicações
como amiodarona, anestésicos e salicilatos também podem ser fa-
tores desencadeadores.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
496

4. Anamnese:

Na anamnese em contexto de emergência devemos direcionar ao


histórico de uso de antitireoidiano (ver se faz uso correto de terapia me-
dicamentosa para hipertireoidismo), cirurgia recente de qualquer sítio,
exposição recente a contraste contendo iodo. É imprescindível ques-
tionarmos também sobre comorbidades (principalmente cardíacas e
metabólicas), uso de drogas e possibilidade de intoxicação com iodo.
Dado o contexto atual de autoprescrição de polivitamínicos e fórmulas
manipuladas, devemos ficar atentos à possibilidade de intoxicação por
iodo a partir do uso indiscriminado de formulações contendo esse mi-
cronutriente.
Habitualmente, o paciente já possui um diagnóstico de hipertireoi-
dismo. Se não for o caso, devemos investigar sobre perda de peso não
intencional, insônia, palpitações, agitação, suor excessivo, aumento de
apetite, diarreia e outros sintomas dessa patologia (ver capítulo 5).

5. Exame físico:

O quadro clínico do paciente com CT se caracteriza pela exacerbação


dos sintomas de hipertireoidismo, como taquicardia (muitas vezes >
120 bpm), hiperpirexia (≥ 39,4 ºC), disfunção do sistema nervoso central
(agitação, ansiedade, delirium, psicose, labilidade emocional, coma),
bócio, alterações cutâneas (pele úmida e quente), tremores, diaforese,
hipersensibilidade ao calor, palpitações, fadiga, perda de peso, sopro na
tireoide (geralmente sistólico, relacionado à doença de Graves), disp-
neia, oftalmopatia (na presença da doença de Graves), fraqueza, edema
de membros inferiores, sintomas gastrointestinais (diarreia, vômito,
dor abdominal, obstrução intestinal), esplenomegalia, ginecomastia,
anorexia, baqueteamento digital e eritema palmar.
Além disso, podemos encontrar achados como hiperreflexia, alar-
gamento da pressão de pulso (pressão sistólica aumentada e diastólica
diminuída), convulsões e arritmia cardíaca (fibrilação atrial - ritmo ir-
regularmente irregular).
Menos comuns: abdome agudo, infarto cerebral não-embólico, qua-
driplegia com paralisia flácida, rabdomiólise, bloqueio atrioventricular
total, IC, edema pulmonar, edema periférico e morte por colapso cardio-
vascular (parada cardíaca). A sudorese excessiva pode levar a desidrata-
ção e, assim, à injúria renal aguda por mecanismo pré-renal. A insufici-
ência hepática aguda e a icterícia podem ser decorrentes da IC, da ação
direta dos hormônios tireoidianos no fígado ou de desnutrição.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
497

Idosos (principalmente a partir da 7ª década de vida) podem ter apresen-


tação apática com sintomas atípicos: quadro mais arrastado, apatia, perda de
peso acentuada, bócio discreto, fibrilação atrial, fraqueza, confusão, sem agi-
tação ou febre intensa. Então, a presença de taquicardia será o principal sinal.

6. Exames complementares:

O principal exame complementar é o teste de função tireoidiana, que


vai ser indistinguível do encontrado em hipertireoidismo não compli-
cado: hormônio estimulador da tireoide (TSH) diminuído ou indetectá-
vel, T4 total, T4 livre e T3 total elevados.
Outros achados laboratoriais:
Ecocardiograma e/ou radiografia de tórax: sinais de IC pela presen-
ça de edema pulmonar, derrames pleurais ou congestão vascular
pulmonar na radiografia ou sinais de isquemia miocárdica no ECG
(atentar especialmente em pacientes com diagnóstico prévio de car-
diopatia isquêmica), como ondas Q, anormalidades das ondas ST e T.
Glicemia: hiperglicemia leve (caso hiperglicemia importante, com
acidose, glicosúria e cetonúria, considerar concomitância de cetoa-
cidose diabética e realizar manejo apropriado em conjunto).
Eletrólitos: hipercalcemia leve, hipocalemia (por hiperatividade
simpática).
Função renal: creatinina e ureia aumentadas se desidratação grave.
Avaliação hepática: a albumina pode estar alterada, assim como
exames de coagulação (TP e TTPa encurtados). Há também aumen-
to de AST/TGO, ALT/TGP, fosfatase alcalina e bilirrubinas.
Hemograma: leucocitose (mesmo sem evidência de infecção) ou
leucopenia.
ECG: taquicardia sinusal ou taquiarritmias.
TC de crânio: ajuda a excluir causa neurológica em pacientes sele-
cionados.
Culturas: de acordo com sítio de suspensão de infecção.
Anticorpos do receptor de tireotropina (TRAb): investigação tireoto-
xicose, exame de sangue que não exige preparo especial.

7. Diagnóstico:

O diagnóstico é essencialmente clínico. Anamnese apontando para


hipertireoidismo prévio e exame físico evidenciando sintomas graves
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
498

(hiperpirexia, disfunção cardiovascular, nível de consciência alterado)


são suficientes para iniciar tratamento antes dos resultados laborato-
riais. O diagnóstico pode ser corroborado com evidências bioquímicas
de hipertireoidismo, sendo que os níveis de T3 e T4 não precisam ser
muito altos para confirmar o diagnóstico (não existe um ponto de corte
a partir do qual se suspeita de CT pelos níveis laboratoriais de hormô-
nios tireoidianos, a suspeita é clínica).

Raramente uma intoxicação exógena por ingestão exacerbada de levoti-


roxina resulta em CT. A maioria dos estudos demonstra que o nível absoluto
de hormônio tireoidiano não define gravidade. Dessa forma, o grau de hiper-
tireoidismo não é critério diagnóstico dessa patologia e exames laboratoriais
isolados não fazem diagnóstico de CT. No entanto, artigos recentes relataram
que o nível de hormônios T3 e T4 livres eram maiores em pacientes com CT
do que naqueles com tireotoxicose não complicada, embora as concentra-
ções totais de T4 e T3 fossem semelhantes.

Existem sistemas de pontuação que servem como parâmetro diag-


nóstico para a identificação da CT. Como ainda não há critérios uni-
versalmente aceitos ou ferramentas clínicas validadas, são apenas di-
retrizes baseadas em critérios clínicos. Abaixo, estão apresentadas na
tabela 1, a clássica escala de Burch-Wartofsky, e na tabela 2, a da Japa-
nese Thyroid Association (JTA). A primeira é mais sensível se compa-
rada à da JTA.

Tabela 1: Escala de pontos de Burch-Wartofsky (BWPS).


Se pontuação total maior ou igual a 45 é altamente sugestiva de crise tireotóxica, entre 25 e 44 é
sugestiva ou iminente, e menor que 25, torna este diagnóstico improvável.

Variáveis Pontos
Termorregulação 37,2 – 37,7°C 5
37,8 - 38,2°C 10
38,3 – 38,8°C 15
38,9 – 39,3°C 20
39,4 – 39,9°C 25
40°C 30
Efeitos no SNC Ausente 0
Leves: agitação 10
Moderados: delirium, psicose, letargia intensa 20
Graves: convulsão, coma 30
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
499

Difusão do TGI Ausente 0


Moderada: diarreia, náusea, vômitos, dor abdominal 10
Grave: icterícia inexplicável 20
Frequência cardíaca 99 – 109 bpm 5
110 – 119 bpm 10
120 – 129 bpm 15
130 – 139 bpm 20
≥ 140 bpm 25
Insuficiência cardíaca Ausente 0
Leve: edema de membros inferiores 5
Moderada: crepitação bilateral das bases 10
Grave: edema pulmonar 15
Fibrilação atrial Ausente 0
Presente 10
Evento precipitante Ausente 0
Presente 10
Adaptado de: Burch HB, Wartofsky L. Life-threatening thyrotoxicosis. Thyroid storm. Endocrinol
Metab Clin North Am 1993; 22:263.

Tabela 2: Critérios necessários para diagnóstico da crise tireotóxica segundo


The Japanese Thyroid Association, no qual a tireotoxicose é uma manifestação
obrigatória.
The Japanese Thyroid Association (JTA)
Tireotoxicose T3 e/ou T4 elevados
Manifestação do SNC Inquietação, delirium, psicose, letargia/sonolência, coma
Febre Tº ≥ 38ºC
Insuficiência Cardíaca (IC) Edema pulmonar, estertores, choque cardiogênico ou
Sinais e sintomas
NYHA IV
Taquicardia ≥ 130 bpm
Manifestação gastrointestinal Bilirrubina total ≥ 3 mg/dl, vômito, diarreia, náusea
(GI) ou hepática
Tireotoxicose
1 ou + manifestações do SNC
1 ou + sintomas (febre, taquicardia, IC, manifestação
Tempestade tireoidiana
GI/hepática)
definitiva (TS1)
Tireotoxicose
Critérios 3 ou + características entre febre, manifestação GI/
necessários para hepática, IC ou taquicardia
diagnóstico da Tireotoxicose
crise tireotóxica 2 ou + características entre taquicardia, IC,
manifestação GI/hepática, febre
Suspeita de tempestade
Tireotoxicose
tireoidiana (TS2)
Paciente com doença da tireoide, bócio e exoftalmia
que atende aos critérios para TS1, mas dosagens de
T3 e T4 não disponíveis
Adaptado de: SATOH, T. et al. 2016 guidelines for the management of thyroid storm from the Japan
thyroid association and Japan endocrine society (First edition): The Japan thyroid association
and Japan endocrine society taskforce committee for the establishment of diagnostic criteria.
Endocrine Journal, v. 63, n. 12, p. 1025–1064, 2016.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
500

Diagnósticos diferenciais: sepse, infecção, psicose, intoxicação agu-


da catecolinérgica (cocaína, efedrina) ou anticolinérgica, feocromocito-
ma, síndrome maligna neuroléptica, síndrome de abstinência alcóolica
e hipertermia maligna. Devemos fazer diagnóstico diferencial com do-
enças com hiperatividade adrenérgica e/ou com hipertermia.

8. Tratamento:

Iniciamos imediatamente após a suspeita clínica de CT, indepen-


dentemente da chegada dos resultados laboratoriais. O tratamento tem
por objetivo manter o paciente estável, diminuir a concentração de
hormônios tireoidianos e tratar o fator desencadeante do processo. É
geralmente realizado em UTI, com monitorização contínua e suporte
ventilatório.

Terapia de suporte:
Assegurar via aérea e status cardiovascular.
A necessidade de fluidos intravenosos depende da evolução do
quadro e das comorbidades do paciente - a maioria vai necessitar
reposição volêmica, mas deve ser cautelosa para não deixarmos o
paciente ainda mais hipervolêmico.
Corrigir distúrbios eletrolíticos (ex. hipercalcemia).
Drogas vasoativas podem ser utilizadas para controlar hipotensão.
A saturação e o nível de consciência determinarão a necessidade de
oxigenioterapia ou ventilação mecânica.
A correção da hiperpirexia deve ser precoce e agressiva com mantas
de resfriamento (resfriamento passivo) e antitérmicos (dipirona ou
paracetamol - não usar aspirina, pois esta pode interferir na proteí-
na de ligação da tireoide e, assim, aumentar as concentrações séri-
cas de T4 e T3 livre).
Monitorar glicemia.
A busca e o tratamento de fator precipitante devem ser feitos assim
que possível.
No controle de IC e arritmias, deve-se ser criterioso no uso de diuréti-
cos e digitálicos - se não for IC grave, controlar a frequência cardíaca
com um betabloqueador pode ser suficiente. Avaliar necessidade de
anticoagulante, principalmente se houver fibrilação atrial.

Em casos de arritmias, é necessário evitar o uso de amiodarona, pois seu


uso atrapalha a investigação e o tratamento das alterações tireoidianas.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
501

Estratégias terapêuticas:
Existem cinco passos estratégicos específicos no tratamento de CT
que, embora sem estudos prospectivos, são utilizados no manejo, são eles:

Betabloqueador:
Deve ser iniciado após as medidas de suporte iniciais. Controla o au-
mento do tônus adrenérgico (melhora sudorese, pressão arterial, tremor,
arritmias, taquicardia e ansiedade), diminui a longo prazo a conversão pe-
riférica de T4 e T3 e ajuda a diminuir metabolismo acelerado das drogas.
Propranolol: 60 a 80 mg a cada 4 horas via oral/nasogástrica ou 0,5
a 1 mg por 10 minutos, seguida de 1 a 2 mg em 10 a 15 minutos por
via endovenosa. Normalmente é a escolha inicial, porque, em dose
alta, inibe a desiodase tipo 1, reduzindo os níveis séricos de T3. A do-
sagem deve ser controlada pela frequência cardíaca e pela pressão
arterial. Cuidar hipotensão e agravamento da IC preexistente.
Esmolol: dose de ataque de 500 mcg/kg durante um minuto, seguida
por 50 a 100 mcg/kg/minuto. Por ser um betabloqueador de curta
ação permite titulação rápida e minimiza as reações adversas.
Atenolol ou metoprolol: betabloqueadores cardiosseletivos para pa-
cientes com doença reativa das vias aéreas (asma ou doença pulmo-
nar obstrutiva crônica). O metoprolol IV é utilizado na dose de 5 a 10
mg a cada 4 horas.
Diltiazem ou verapamil: podem ser usados como alternativa em pa-
cientes com contraindicação ao uso de betabloqueadores, pois são
bloqueadores de canais de cálcio. A dose de ataque do diltiazem IV
de 0,25 mg/kg por 2 minutos, e a manutenção é feita com infusão de
10 mg/min. Se optarmos pela via oral, a dose de diltiazem é de 60 a
90 mg a cada 6 a 8 horas.

O betabloqueador deve ser usado com extremo cuidado se o paciente es-


tiver com descompensação da IC. Seu uso deve ser bastante cauteloso, mas
não é contraindicado, uma vez que o controle da taquicardia pode levar à
melhora da função cardíaca.

Antitireoidiano:
Bloqueiam a síntese do hormônio tireoidiano dentro de uma a duas
horas após a administração. No entanto, eles não têm efeito na libera-
ção do hormônio pré-formado da glândula tireoide. As tionamidas são
a classe utilizada.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
502

Propiltiouracil (PTU), comprimidos de 100 mg: 500 a 1000 mg se-


guido de 600 a 1200 mg/dia, divididos a cada 4 horas. Preferido em
casos que ameaçam a vida do paciente por também bloquear a con-
versão periférica de T4 em T3, embora esse efeito seja pequeno. Nas
primeiras 24 horas, diminui em até 3 vezes mais o nível de T3 que o
metimazol.
Metimazol (MMI), comprimidos de 5 e 10 mg: 20 mg a cada 4 a 6 ho-
ras. Normaliza de forma mais rápida o nível sérico de T3 após algu-
mas semanas de tratamento e é menos hepatotóxico se comparado
ao PTU.

Pacientes que não podem tomar medicamentos antitireoidianos via


oral ou via sonda nasogástrica, podem recebê-los via intravenosa (bai-
xa disponibilidade no Brasil) ou via retal (enema ou supositório).
Contraindicações às tionamidas: se efeitos colaterais raros, como
agranulocitose, hepatotoxicidade ou alergia, deve-se descontinuar a
medicação.
Existem relatos de CT em pacientes com doença de Graves após a
descontinuação desses medicamentos. Nesses casos, a tireoidectomia
é o tratamento de escolha.

Soluções de iodo:
Bloqueiam secreção de hormônio tireoidiano pré-formado e, em al-
tas doses, podem diminuir a taxa de síntese também. Como a etiologia
da tireotoxicose é normalmente desconhecida na admissão, temos que
administrar a solução de iodo pelo menos uma hora após a adminis-
tração da primeira dose de tionamida, para evitar que o iodo seja usado
como substrato para a síntese de novos hormônios em pacientes com
adenoma tóxico ou bócio multinodular tóxico. As doses orais são:
Solução de iodeto-iodo de potássio (Lugol): 10 gotas (6,25 mg de io-
deto/iodo por gota [0,05 mL]), 3 vezes ao dia. Diluir e ingerir com ali-
mentos: mesmo que geralmente bem tolerado, há relatos de lesão
local da mucosa duodenal ou esofágica e hemorragia.
_ O lugol é estéril, então pode ser adicionado diretamente aos flui-
dos intravenosos ou administrado via retal.
Iodeto de potássio supersaturado (SSKI): 5 gotas (50 mg de iodeto/
gota [0,05mL]) a cada 6 horas.
Agentes de contraste iodados (pouco disponíveis): são inibidores
potentes da conversão de T4 em T3 e bloqueiam a ligação de T3 a
seu receptor e a liberação do hormônio tireoidiano. Há poucos dados
publicados sobre sua eficácia na CT, embora já preconizados na pre-
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
503

paração de pacientes com hipertireoidismo para cirurgia de urgên-


cia e para tratar o hipertireoidismo.
_ Ácido iopanoico: 0,5 a 1 g a cada 12 horas por via oral.
_ Ipodato de sódio: 0,5 a 1,5 g a cada 12 horas por via oral.

Glicocorticoides:
Reduzem conversão de T4 em T3, promovem estabilidade vasomo-
tora, diminuem liberação de hormônios tireoidianos, possivelmente
reduzem o processo autoimune na doença de Graves e tratam insufi-
ciência adrenal (hipocortisolismo) relativa possivelmente associada à
CT. Hidrocortisona 100 mg IV a cada oito horas (ou dexametasona 2 mg
a cada 6 horas) deve ser iniciada. Recomendado por especialistas, em-
bora associado à hiperglicemia e necessidade de insulinoterapia, sem
mudança na mortalidade.

Sequestradores de ácidos biliares:


Atuam na circulação êntero-hepática e reduzem a reciclagem do
hormônio da tireoide. Colestiramina oral: 4 gramas, 4 vezes ao dia pode
ser iniciada, se disponível, para casos graves, especialmente se intole-
rância ou contraindicação às tionamidas.

Outras terapias:
Plasmaférese: utilizada quando a terapia tradicional não tem suces-
so no preparo de pacientes com tempestade tireoidiana para cirurgia.
Remove citocinas, anticorpos e hormônios tireoidianos do plasma.
Lítio: bloqueia agudamente a liberação do hormônio tireoidiano, po-
rém a toxicidade renal e neurológica limitam sua utilidade. Indicado
para pacientes com contraindicação aos antitireoidianos ou alérgicos a
iodo. Dose de 300 mg a cada 6 horas por via oral. Deve-se fazer controle
sérico para evitar intoxicação.
Tratamento dos fatores precipitantes: a conduta depende exclusiva-
mente do fator. Não existe indicação de antibioticoterapia empírica. De-
ve-se, portanto, administrar antibiótico de acordo com culturas e sus-
peição. Medicamentos desencadeadores devem ser cessados. Quando
o fator precipitante for cirurgia, traumas ou o próprio hipertireoidismo
não tratado, controla-se a clínica e depois é feito o reajuste do tratamen-
to do hipertireoidismo.

Seguimento:
Assim que as condições clínicas do paciente melhorarem, a terapia
com iodo deve ser interrompida, os glicocorticoides podem ser redu-
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
504

zidos gradualmente até serem interrompidos e o betabloqueador deve


ser ajustado ou retirado de acordo com os testes de função tireoidiana.
A terapia com tionamida deve ser titulada para manter eutireoidismo
e, se o PTU for usado inicialmente, deve ser preferencialmente trocado
por MMI. Os pacientes devem ser recomendados para tratamento defi-
nitivo - terapia com radioiodo (ablação), tireoidectomia ou, em último
caso, antitireoidianos a longo prazo.
Radioiodo: primeira escolha para terapia definitiva, pois seu custo
é menor e tem menos chances de complicações que a cirurgia. É
indicado para pacientes com hipertireoidismo secundário à doen-
ça de Graves (atentar para risco de piora da orbitopatia após iodo),
bócio multinodular tóxico ou adenoma tóxico. A terapia é feita com
radioiodo-131. A complicação mais comum é o hipotireoidismo, que
acontece em até 60% dos casos (ainda mais quando associado ao uso
de metimazol e idade avançada).
Tireoidectomia: geralmente feita após 5 a 7 dias do início do trata-
mento da CT. A cirurgia não deve ser atrasada por mais de 8 a 10
dias, porque o efeito Wolff-Chaikoff (capacidade do iodo exógeno em
dose alta inibir sua organificação na tireoide) é transitória. Estudos
mostram que a tireoidectomia precoce em quadros moderados de
CT é eficaz e modifica a morbimortalidade dos pacientes. A cirurgia
também é preferível se o paciente tiver massa intratorácica, apre-
sentando sintomas compressivos. As complicações mais comuns
são: hipotireoidismo, lesão do nervo laríngeo recorrente e hipopara-
tireoidismo.
Antitireoidianos à longo prazo: para pacientes que recusam a abla-
ção ou têm contraindicações à cirurgia.

A chance de CT cirurgicamente induzida reduz consideravelmente se, no


pré-operatório, utilizarmos as mesmas medicações do manejo da CT, mas
sem uso de tionamidas.

Em relação ao gerenciamento de efeitos colaterais e toxicidade, a


ressecção cirúrgica completa da tireoide e a ablação com radioiodo
costumam causar hipotireoidismo. Já as drogas antitireoidianas como
MMI e PTU podem causar agranulocitose, e por isso se deve monitorar
e descontinuá-las caso haja redução do número de leucócitos.
Outros paraefeitos incluem insuficiência hepática, colestase, erupção e
prurido cutâneos, toxicidade gastrintestinal e dores musculoesqueléticas.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
505

9. Prognóstico:

A taxa de mortalidade da CT varia de 16 a 30%, tendo como princi-


pais causas a IC descompensada, as arritmias cardíacas e a falência
múltipla de órgãos. No entanto, com o tratamento, a maioria dos pa-
cientes melhoram dentro das primeiras 24 horas. Alguns fatores foram
relacionados a pior prognóstico, são eles: idade avançada, disfunção do
sistema nervoso central na admissão, falha ou atraso no uso de beta-
bloqueadores/medicamentos antitireoidianos, necessidade de diálise
(insuficiência renal), uso de ventilação mecânica, maior número de ór-
gãos acometidos e comorbidades.

10. Tabela de resumo:

CRISE TIREOTÓXICA
O que é Uma emergência com clínica exacerbada de tireotoxicose pela
hipersecreção aguda de T4 e T3, resultando em um estado hipermetabólico
com resposta adrenérgica excessiva.
Epidemiologia Rara, atinge mais mulheres em torno da 4ª década de vida.
Fisiopatologia Binômio hipertireoidismo – fator desencadeante.
Fatores desencadeantes Descontinuação do medicamento antitireoidiano
Infecção
Anamnese Cirurgias prévias
Exposição a iodo
Medicamentos de uso contínuo
Uso de drogas
Comorbidades
Exame físico Taquicardia, hiperpirexia, disfunção do sistema nervoso central, bócio,
tremores, diaforese, palpitações, fadiga, perda de peso, sopro na tireóide,
dispneia, oftalmopatias, edema de membros inferiores, sintomas
gastrointestinais, esplenomegalia, ginecomastia, anorexia, eritemas
palmares, hiperreflexia, alargamento da pressão de pulso, convulsões e
arritmia cardíaca.
Exames laboratoriais Teste de função tireoidiana
Eletrólitos
Glicemia
Função renal e hepática
Hemograma
Culturas
TRAb ou determinação da captação de radioiodo
Diagnóstico Clínico. Podemos usar as escalas BWPS ou JTA
Tratamento Terapia de suporte (ventilação, fluidos, mantas térmicas)
Betabloqueador
Antitireoidiano
Soluções de iodo
Glicocorticoide
Sequestradores de ácidos biliares
Tratamento do fator precipitante (ATB?)
Terapia definitiva (ablação, tireoidectomia ou antitireoidiano a longo prazo)
Prognóstico Mortalidade entre 16-30%.
Fatores relacionados: idade, quadro na admissão, necessidade de terapia de
suporte mais agressiva, comorbidades e atraso no início da terapia.
UNIDADE 8. URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM ENDOCRINOLOGIA
506

11. Leitura recomendada:

REIS, B. O.; DE CARVALHO, A. A. H. A dúvida: tireotoxicose versus hipertireoidismo


descompensado. Revista da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, v. 17, n. 4,
p. 198-200, 2019.

MAIA, F. F. R.; ARAÚJO, L. R. Crise tireotóxica - Manejo diagnóstico e terapêutico.


Rev Med Minas Gerais, v. 14, n. 3, p. 202-4, 2004.

POKHREL, B.; AIMAN, W.; BHUSAL, K. Thyroid Storm. In: StatPearls. Treasure
Island (FL): StatPearls Publishing, 2021.

MARTINS, H. S.; NETO, R. A. B.; VELASCO I. T. Medicina de Emergência:


Abordagem Prática. São Paulo: Editora Manole, 2016.
UNIDADE 2. TIREOIDE
507

UNIDADE 9:

OUTROS TEMAS
RELEVANTES
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
508

Capítulo 34

Obesidade
Igor Reis Pereira
Eduardo Holshbach Cantarelli
Milene Moehlecke

1. Introdução:

Apesar de, por muitas vezes, ser vista como um problema decorrente
de escolhas pessoais do paciente, a obesidade é reconhecida mundial-
mente como uma doença e, portanto, capaz de gerar impactos negati-
vos sobre a saúde do indivíduo. Sabemos que o excesso de peso está as-
sociado a maior morbimortalidade e a obesidade é uma doença crônica
com aumento da prevalência em todas as faixas etárias e, por isso, pode
ser classificada como uma epidemia mundial. Além disso, a obesida-
de está associada ao desenvolvimento de uma série de outras doenças
crônicas, como diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, hipertensão
arterial, além de diversos tipos de cânceres. Portanto, devemos nos
atentar aos sinais e à investigação da obesidade na prática clínica, sen-
do o cálculo do índice de massa corporal (IMC) associado à medida da
circunferência abdominal, ferramentas importantes a serem utilizadas
em consulta médica.

2. Epidemiologia:

A prevalência de obesidade tem aumentado de forma expressiva nas


últimas quatro décadas em todo o mundo. Grande parte deste aumento
associa-se ao maior consumo de alimentos ultraprocessados somados a
um estilo de vida mais sedentário. No Brasil, em 2019, conforme dados
da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), aproximadamente 45% dos brasi-
leiros apresentam sobrepeso, definido como IMC maior ou igual a 25 kg/
m², enquanto 26,8% são classificados com obesidade, isto é, IMC maior ou
igual a 30 kg/m². Se analisarmos por sexo, cerca de 62,6% das mulheres
e 57,6% dos homens brasileiros estão com sobrepeso, enquanto 29,5% das
mulheres e 21,8% dos homens estão com obesidade. Tanto o sobrepeso
quanto a obesidade são mais prevalentes em mulheres, aumentando em
ambos os sexos com o aumento da idade e com certa tendência de queda
após os 60 anos. Além disso, quanto menor a renda e a escolaridade do
indivíduo, maior é a prevalência de sobrepeso e de obesidade.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
509

3. Fisiopatologia:

Para entender a fisiopatologia da obesidade, iremos relembrar um


pouco a fisiologia relacionada à regulação do peso corporal e os meca-
nismos associados.
Grande parte dos aspectos relacionados ao comportamento e ao me-
tabolismo e que influenciam no ganho de peso possuem um componente
genético. A ingestão calórica e o gasto energético são elementos intima-
mente ligados que se associam ao ganho de peso quando há um desequi-
líbrio, isto é, uma ingestão alimentar maior do que gasto calórico.
O modelo de emagrecimento mais aceito atualmente é aquele dito di-
nâmico em que ocorre em três fases: fase de perda rápida de peso, platô
e recuperação gradual do peso perdido. Isso ocorre porque o gasto ca-
lórico reduz enquanto o apetite aumenta progressivamente à perda de
peso. Estima-se que, para cada kg de peso perdido, ocorra um aumento
compensatório no apetite de 100 kcal/dia e uma redução de 20 a 30 kcal/
dia no metabolismo em relação aos parâmetros iniciais. A perda de peso
leva à redução de ambas, massa muscular e massa gorda, com efeitos di-
retos sobre o metabolismo e o apetite. A redução do tecido adiposo levará
à redução dos níveis de leptina circulantes, hormônio que participa da
regulação do apetite, conforme ilustrado sucintamente na Figura 1. Dessa
forma, o indivíduo que perde gordura rapidamente tende a compensar
esta perda ingerindo maior quantidade de alimentos.
MC4R
Saciedade
AGRP α-MSH
Ingestão Ingestão
NPY/ POMC/
Neurônios Secundários no SNC alimentar AGRP CART alimentar

A Es
Hipotálamo utontímu Grelina PYY Leptina/Insulina
ôm lo
ico
Tronco Cerebral
Estímulo
Autonômico
Aferente
Insulina
Grelina
Leptina PYY
CCK
Adiponectina GLP-1
Estômago
Pâncreas
Intestino
Tecido Adiposo

Figura 1: Regulação do peso corporal.


AGRP, proteína relacionada à agouti; CART, transcrito regulado pela cocaína e anfetamina; CCK,
colecistocinina; GLP-1, peptídeo semelhante ao glucagon 1; α-MSH, alfa-melanocortina; MC4R,
receptor 4 da melanocortina; NPY, neuropeptídeo Y; POMC, pró-opiomelanocortina; PYY, peptídeo YY.
Elaborado pelo autor. Adaptado de: Arch Endocrinol Metab. 2016 Apr;60(2):152-62.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
510

Toda perda de peso induzirá mudanças metabólicas na tentativa


de manutenção da antiga homeostase. Nesse sentido, uma série de
adaptações hormonais e metabólicas começam a ocorrer, tais como: a
musculatura esquelética se torna mais eficiente para fazer o mesmo
trabalho mecânico quando comparada a uma pessoa eutrófica, com o
objetivo de poupar energia; os centros de recompensa cerebrais ficam
hiperativados, aumentando a sensação de prazer ao se ingerir alimen-
tos mais palatáveis, como aqueles ricos em açúcares e gorduras; mu-
danças hormonais desfavoráveis que levam à redução de hormônios
com efeito anorexígeno, como a leptina, GLP-1, peptídeo YY e aumento
de hormônios que aumentam a fome, como a grelina.
O controle do balanço energético é feito por meio do equilíbrio en-
tre a ingestão de alimentos e o gasto calórico. Esse equilíbrio ocorre
em resposta aos sinais provenientes do tecido adiposo, do trato gas-
trointestinal, do fígado e de elementos do sistema nervoso central. Os
reguladores hipotalâmicos e do tronco cerebral possuem papel crucial
nesse processo, assim como a participação da amígdala, representando
parte do centro emocional do cérebro. Com isso, ocorre o processamen-
to de informações via hormônios e neurotransmissores liberados pelo
cérebro, que é capaz de iniciar respostas metabólicas e cognitivas que
irão induzir ou inibir a presença da fome, conforme ilustrado sucinta-
mente na Figura 2.

Ingestão alimentar

Leptina Gasto energético

Perda de peso

HIPOTÁLAMO
ADIPÓCITOS

Ganho de peso
Leptina Ingestão alimentar

Gasto energético

Figura 2: Efeito central da leptina na regulação energética.


Elaborado pelo autor. Adaptado de: Dermatol Surg 2020 Oct;46 Suppl 1:S22-S28.

Em relação à microbiota intestinal, as evidências disponíveis até o


momento não permitem uma conclusão em relação à causalidade ou
apenas associação entre obesidade e disbiose intestinal.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
511

A seguir, serão descritos, resumidamente, os principais hormônios


relacionados à regulação da ingestão de alimentos e que, por consequ-
ência, se associam à manutenção do peso.

Tabela 1: Hormônios envolvidos na regulação da ingestão alimentar e na


manutenção do peso.
ESTIMULADORES DA INGESTÃO ALIMENTAR INIBIDORES DA INGESTÃO ALIMENTAR
Grelina GLP-1
Hormônio produzido no estômago e no duodeno Liberado pelas células do trato
que estimula a secreção de GH, eleva-se no jejum, gastrointestinal, possui papel na homeostase
aumentando a ingestão de alimentos. da glicose e na diminuição da fome ao
Sua liberação é suprimida após as refeições. retardar o esvaziamento gástrico e aumentar
Seus níveis aumentam após perda de peso induzida por a saciedade através de efeitos sobre
dieta ou consequente à atividade física. neurônios hipotalâmicos.
Neuropeptídeo Y Colecistoquinina (CCK)
Hormônio produzido no sistema nervoso central, que Induz saciedade e reduz o esvaziamento
se relaciona ao estímulo da secreção de carboidratos, gástrico.
principalmente.

O desenvolvimento da obesidade, na grande maioria das vezes, é


multifatorial, com forte componente genético, que favorece o acúmulo
de gordura corporal, em conjunto com os fatores ambientais, que po-
dem afetar e modificar associações genéticas e impactar no IMC do
indivíduo. Estudos em gêmeos, criados juntos ou separados e/ou por
pais adotivos ou biológicos, conseguiram determinar o envolvimento
hereditário nas respostas à alimentação exagerada, ao gasto energé-
tico, às escolhas alimentares e aos mecanismos de fome e saciedade.
De acordo com estudos observacionais, se o indivíduo possui um dos
pais com obesidade, a chance de também desenvolver a doença é 3 a 4
vezes maior do que a população em geral, enquanto se ambos os pais
apresentarem obesidade, essa chance aumenta para 10 vezes quando
comparados a pais eutróficos.
Por outro lado, formas monogênicas de obesidade são responsáveis
por aproximadamente 5% dos casos da doença e se associam à hiper-
fagia e à obesidade grave de início precoce. As duas síndromes genéti-
cas que possuem a obesidade como característica típica e que resultam
de defeitos de um gene único são a síndrome de Prader-Willi (SPW)
e a síndrome de Bardet-Biedl (SBB). A SPW caracteriza-se por retardo
constitucional, hipogonadismo, disfunção hipotalâmica e obesidade
grave hiperfágica. Já a SBB é uma doença genética caracterizada por
obesidade, retinopatia pigmentada, polidactilia, retardo mental, hipo-
gonadismo e manifestações renais.
Mutações envolvendo as vias de sinalização da melanocortina, tais
como mutações no gene da leptina, do receptor da leptina, da pró-opio-
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
512

melanocortina (POMC) e do receptor da melanocortina (MC4R) são as


mais conhecidas causas de obesidade monogênica, sendo as mutações
do MC4R as mais comuns.
A leptina, hormônio secretado pelos adipócitos, atua no hipotálamo
estimulando os neurônios POMC, que, por sua vez, é clivado gerando a
produção do alfa hormônio estimulador de melanócito (α-MSH), ago-
nista potente do MC4R. Quando o MC4R está ligado ao agonista, as vias
anorexígenas são estimuladas, diminuindo o apetite e a ingestão ali-
mentar. Já as vias orexígenas, neuropeptídeo Y (NPY) e proteína rela-
cionada com o agouti (AGRP) ficam inibidas pela leptina, ambas anta-
gonistas do MC4R (Figura 2).
Estudos iniciais realizados em camundongos com mutações nos
genes que codificam a leptina bem como do seu receptor permitiram
entender mais detalhadamente o papel fisiológico da leptina e do seu
receptor na regulação do peso corporal. Posteriormente foram identifi-
cados pacientes com deficiência (parcial ou total) de leptina e resistên-
cia à ação da leptina causada por defeitos no receptor. Estes pacientes
apresentam, além da hiperfagia e obesidade grave de início na infância,
hipogonadismo hipogonadotrófico. Nos pacientes com deficiência con-
gênita de leptina, o tratamento com leptina recombinante pode reverter
o quadro.
As mutações com perda de função no gene da POMC resultam em
um fenótipo característico de hiperfagia, obesidade grave de início pre-
coce, insuficiência adrenal central (deficiência de ACTH), hipopigmen-
tação cutânea e cabelo avermelhado.

IMC ≥ 40 kg/m².

O risco de mortalidade relacionado à obesidade é superior compa-


rado a indivíduos eutróficos e aumenta de acordo com o aumento do
IMC. Interessante destacar que indivíduos com obesidade mas meta-
bolicamente saudáveis, ou seja, aqueles que ainda não possuem reper-
cussões metabólicas da obesidade, possuem uma taxa de mortalidade
aumentada, diferentemente de indivíduos com sobrepeso metabolica-
mente saudáveis, que parecem não divergir das taxas de mortalidade
de indivíduos eutróficos. O impacto sobre a expectativa de vida é maior
naqueles com obesidade de início mais precoce e que, por consequên-
cia, passam mais anos de vida com a doença.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
513

A obesidade está associada ao desenvolvimento de diversas outras


doenças e, nos últimos anos, ultrapassou o tabagismo como a maior
causa de doenças evitáveis sendo que perdas discretas de peso, entre
5 e 15%, são capazes de melhorar ou resolver muitas das comorbidades
associadas ao excesso de adiposidade. Dentre as doenças que se asso-
ciam à obesidade, o diabetes mellitus tem como principal fator de risco
o excesso de peso: aproximadamente 90% dos indivíduos com diabetes
tipo 2 apresentam excesso de peso. A adiposidade central está ligada a
anormalidades lipídicas, como elevação do LDL, VLDL e triglicerídeos,
além de redução dos níveis de HDL, o que confere aumento no risco de
doença arterial coronariana. Hipertensão e doenças, como insuficiên-
cia cardíaca, acidente vascular encefálico e arritmias estão associadas
à obesidade e podem melhorar, em parte, com a redução do peso. Há
também uma associação entre obesidade e diversos cânceres, com in-
cidência maior em mulheres com excesso de peso do que nos homens
na mesma condição. Além disso, a obesidade se associa a doenças gas-
trointestinais, respiratórias, musculoesqueléticas, genitourinárias, re-
produtivas e psicossociais.

4. Etiologia e fatores de risco:

Diversos fatores associam-se ao desenvolvimento da obesidade.


Dentre eles, sabe-se que o excesso de peso é mais prevalente em indiví-
duos com menor renda e com menor escolaridade. Além disso, a preva-
lência difere entre as diversas etnias sendo mais comuns em negros e
brancos e menos frequente em asiáticos.
Na vida intrauterina, bebês grandes para a idade gestacional (GIG)
ou com restrição de crescimento intrauterino (CIUR) estão em maior
risco de desenvolver obesidade quando adultos.

O ganho excessivo de peso na gestação e a hiperinsulinemia associada


a quadros de diabetes gestacional ou diabetes mellitus tipo 2 podem predis-
por à obesidade na prole, assim como a restrição nutricional levando a um
quadro de CIUR.

Estudos sugerem que a obesidade materna é capaz de induzir altera-


ções na epigenética do bebê, alterando o funcionamento de regiões cere-
brais e de tecidos periféricos envolvidos na regulação do peso. O ganho
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
514

excessivo de peso na gestação, mais comum entre mulheres que engravi-


dam acima do peso, é outro fator de risco para desenvolvimento ou agravo
da obesidade entre mulheres em idade reprodutiva. Nesse sentido, o ganho
de peso na gestação deve ser individualizado de acordo com o IMC pré-
-gestacional e estritamente monitorado por uma equipe multidisciplinar
que inclua médico endocrinologista e nutricionista.
Durante o climatério, com a redução progressiva dos níveis de es-
trogênio, existe uma perda mais acentuada da massa magra com um
ganho progressivo de gordura corporal, sobretudo a visceral. Existe,
nessa fase de transição à menopausa, um maior risco de ganho de peso
em decorrência dessa mudança na composição corporal combinada à
redução progressiva do metabolismo de repouso que acompanha a per-
da de massa magra.
Ao longo das últimas décadas o padrão dietético mudou em esca-
la global. O consumo de alimentos densamente calóricos e com bai-
xo poder de saciedade, como os ultraprocessados, aumentou de forma
alarmante. Além disso, a energia dispendida em atividades físicas não
acompanhou o superávit calórico, levando a um balanço energético
cronicamente positivo, no qual as calorias gastas são inferiores às in-
geridas, o que leva, também, ao aumento do peso corporal e ao acúmulo
de gordura.

Por diversos mecanismos, existe um risco maior de ganho de peso em


pacientes que param de fumar. Ocorre uma diminuição da taxa metabólica
de repouso assim como uma mudança nas preferências alimentares asso-
ciadas à cessação do tabagismo. Além disso, a nicotina possui efeitos ativa-
dores em neurônios hipotalâmicos da POMC, que apresentam efeito anorexí-
geno, ou seja, reduzindo a ingestão alimentar.

Algumas classes de medicamentos podem se associar ao ganho de


peso em indivíduos predispostos. Os antipsicóticos, como a risperido-
na, a olanzapina e alguns antidepressivos, como os tricíclicos, são os
mais comumente envolvidos no ganho de peso. Além destes, alguns
anticonvulsivantes, hipoglicemiantes, como os secretagogos e a insu-
lina, e os contraceptivos hormonais podem em menor grau levar ao
ganho de peso. Por fim, algumas endocrinopatias podem predispor ao
ganho de peso, como o hipotireoidismo, que usualmente pode levar a
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
515

um ganho de 1 a 3 kg por retenção hídrica em casos descompensados,


a síndrome de Cushing, que leva a achados fenotípicos característicos,
a síndrome dos ovários policísticos, a deficiência do hormônio do cres-
cimento, dentre outras.

5. Anamnese e exame físico:

A doença é frequentemente subdiagnosticada e os tratamentos não


são instituídos em grande escala. Por isso, devemos ter em mente que
identificar e tratar pacientes com obesidade contribuirá para redução
de diversos desfechos associados à adiposidade.
A anamnese tem por objetivo identificar o tempo de evolução da do-
ença, os possíveis fatores desencadeadores, o padrão alimentar, con-
sumo de álcool, prática de atividade física, histórico de ganho de peso,
tentativas prévias de perda, presença de transtornos alimentares ou
psiquiátricos, uso de medicamentos que possam ter contribuído para o
surgimento da doença assim como a presença de comorbidades asso-
ciadas.
Na entrevista, é importante definir o motivo pelo qual o paciente
quer perder peso e seu grau de motivação para tal. Da mesma forma,
é fundamental que o paciente entenda o problema como uma doença
de evolução crônica e com grande chance de recidiva no longo prazo.
Além disso, é importante definir as expectativas em relação ao trata-
mento. Devemos nos atentar à linguagem utilizada, a fim de se criar um
vínculo com o paciente, além de explicar os benefícios oriundos de uma
perda modesta de peso, sem que haja a necessidade de normalização do
IMC para obtenção destes benefícios.
O exame físico deve incluir avaliação antropométrica da adiposi-
dade e avaliação clínica das complicações relacionadas ao excesso de
peso. O indicador utilizado em pesquisas e na prática clínica para diag-
nóstico e estratificação do excesso de peso é o IMC. Além dele, a medida
da circunferência abdominal fornece informações adicionais sobre o
risco cardiometabólico do paciente.
O IMC resulta da divisão do peso (em quilos) pela altura (em metros)
ao quadrado. Ele estima o grau de gordura corporal e por isso correla-
ciona-se com o risco de morbimortalidade associado ao peso. As duas
limitações do IMC estão relacionadas à incapacidade de diferenciar o
peso decorrente da massa muscular versus gordura e à impossibilidade
de estimar o padrão de distribuição da gordura corporal.

Índice de Massa Corpórea (IMC)=(peso (kg))/(altura ×altura (m2))


UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
516

Indivíduos musculosos, como aqueles praticantes de musculação, por


exemplo, podem ter seu IMC falsamente elevado, não devido ao excesso de
gordura, mas sim à grande quantidade de massa muscular. Por outro lado,
em idosos, nos quais há perda de massa muscular relacionada ao envelheci-
mento e aumento simultâneo da gordura visceral, os valores tendem a ficar
falsamente baixos. Tais observações devem ser levadas em consideração e
o uso isolado do IMC nestes casos não nos traz informações confiáveis para
avaliação de risco do paciente.

A classificação da obesidade por meio do IMC varia de acordo com a et-


nia. Para indivíduos de origem asiática, os pontos de corte são mais baixos.
Por outro lado, os valores mais altos em pessoas negras não irão conferir o
mesmo risco no desenvolvimento de comorbidades, podendo ser tolerados
valores discretamente maiores de IMC.

A classificação geral, para os indivíduos brancos, hispânicos e ne-


gros, entre 18 e 60 anos, é a seguinte:
Baixo peso: IMC < 18,5 kg/m².
Peso normal: IMC entre 18,5 e 24,9 kg/m².
Sobrepeso: IMC entre 25 e 29,9 kg/m².
Obesidade: IMC ≥ 30 kg/m².
Obesidade grau I (leve): IMC entre 30 e 34,9 kg/m².
Obesidade grau II (moderada): IMC entre 35 e 39,9 kg/m².
Obesidade grau III (severa): IMC ≥ 40 kg/m².

A medida da circunferência abdominal é indicada para pacientes


com IMC entre 25 e 35 kg/m² com a finalidade de identificar aqueles
que possuem um maior risco de desenvolver doenças associadas.
Para os pacientes com IMC acima de 35 kg/m², a medição torna-se
desnecessária já que estes indivíduos apresentam risco elevado de
desenvolvimento de comorbidades. A circunferência da cintura é
útil para estimativa da gordura visceral, fornecendo informações de
risco que são independentes dos valores de IMC. Os pacientes com
obesidade abdominal, ou adiposidade central, são os que possuem
maior risco de desenvolver doenças e os que possuem maiores taxas
de mortalidade.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
517

Você sabe como é feita a medida da circunferência abdominal?


É só pegar uma fita maleável e flexível e posicioná-la em um plano hori-
zontal no ponto médio entre a crista ilíaca e a última costela, ao final da expi-
ração profunda, com o paciente de pé e os braços estendidos ao lado do corpo.

Os valores associados ao risco cardiometabólico aumentado variam de


acordo com o sexo e com a etnia do paciente. Em sul-americanos, temos:
Homens: circunferência abdominal > 90 cm.
Mulheres: circunferência abdominal > 80 cm.

No exame físico, achados que podem sugerir etiologias específicas


devem ser investigados, tais como: presença de bócio, relacionado ao hi-
potireoidismo, acne e hirsutismo, relacionados à síndrome dos ovários
policísticos, e fácies em lua cheia, relacionada à síndrome de Cushing.

6. Exames complementares:

A avaliação completa do paciente com obesidade envolve não ape-


nas a definição do quadro, mas a determinação de todo o perfil metabó-
lico e do risco à saúde associado ao excesso de peso. Para isso, devemos
solicitar exames que avaliem o perfil do indivíduo e que sejam capazes
de nos informar acerca dos impactos da obesidade no organismo. Caso
sejam necessárias, as intervenções e tratamentos do paciente irão se
basear no conjunto de informações da história, do exame físico e dos
exames laboratoriais.
Quais exames devem ser solicitados?
Glicemia em jejum: para avaliar a presença e/ou o risco de diabetes.
TSH: para excluir a possibilidade de disfunção tireoidiana associada.
Enzimas hepáticas: para avaliar o comprometimento hepático e a
possibilidade de doença hepática gordurosa.
Perfil lipídico: para estimativa do risco cardiovascular.

Testes adicionais específicos deverão ser solicitados apenas me-


diante suspeita clínica para uma etiologia específica. Por exemplo, do-
sagem de cortisol pós dexametasona apenas em casos de suspeita de
síndrome de Cushing, testes dinâmicos para avaliar a presença de defi-
ciência de hormônio do crescimento ou avaliação hormonal na suspei-
ta de síndrome dos ovários policísticos.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
518

A bioimpedância e o adipômetro são ferramentas práticas para uso


em consultório que podem ser utilizados para quantificar a composição
corporal em termos de proporção de massa magra e de massa gorda.
Exames de imagem como densitometria de corpo total, ressonância
magnética ou tomografia apresentam uso limitado tanto pela menor
disponibilidade quanto pelo maior custo, ficando reservados para pro-
tocolos de pesquisa.

7. Diagnóstico:

O diagnóstico de obesidade é feito com base no IMC, com o auxílio da


circunferência abdominal e dos exames complementares para estima-
tiva de risco de doenças cardiovasculares.
No momento do diagnóstico, devemos nos atentar a alguns pontos:
investigar a causa do excesso de peso, avaliar o risco de saúde relacio-
nado e identificar quais são aqueles pacientes candidatos à intervenção
farmacológica para controle do peso.
A maioria dos pacientes com obesidade apresenta etiologia multi-
fatorial, isto é, apresenta um componente genético de suscetibilidade
para ganho de peso associado a múltiplos fatores ambientais, tais como
dieta rica em alimentos calóricos e com baixo poder de saciedade, con-
sumo excessivo de álcool, pouca atividade física, pouca duração do
sono, medicamentos que podem causar ganho de peso, como a insuli-
na, sulfonilureias e tiazolidinedionas, que são usadas no tratamento do
diabetes mellitus.
Sabemos que a presença de múltiplas doenças associadas à obe-
sidade confere risco aumentado de desfechos adversos e morte para
o paciente. Portanto, devemos pesquisar fatores de risco para doença
cardiovascular e doença arterial coronariana já estabelecida, presença
de apneia do sono, esteatose hepática não alcoólica, diabetes e doenças
articulares sintomáticas, por exemplo. Vale lembrar que a identificação
e o tratamento das doenças associadas fazem parte do tratamento da
obesidade. Com isso, podemos identificar quais indivíduos se beneficia-
riam de intervenções para controle do peso.

8. Tratamento:

Inicialmente, devemos ter em mente que perdas discretas de peso


apresentam repercussões positivas em diversos aspectos da saúde do
paciente. Como visto anteriormente, a obesidade está associada ao de-
senvolvimento de uma série de complicações metabólicas, mecânicas
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
519

e psiquiátricas, logo, ao se obter uma perda de peso, essas comorbida-


des podem ser melhoradas ou mesmo revertidas conforme o tempo de
evolução da mesma.
O tratamento tem por objetivo prevenir, tratar ou reverter as compli-
cações da obesidade, além da melhora da qualidade de vida do indivíduo.
Muitos pacientes têm como objetivo perdas de 30% ou mais, um ob-
jetivo que é dificilmente alcançado na prática sem cirurgia bariátrica.
Mudanças no estilo de vida isoladamente levam a uma perda de 3 a 7%
do peso no curto prazo, com percentual menor de manutenção no longo
prazo. O acréscimo de fármacos às mudanças de estilo de vida aumenta
o percentual de perda para 10 a 15% do peso, o que é considerada uma
excelente resposta ao tratamento. Por isso, é importante que as expec-
tativas do paciente estejam alinhadas às do profissional da saúde.
Perdas de 5 a 10% do peso corporal total já são responsáveis por im-
pactar de forma positiva a saúde do indivíduo. Importante destacar que
o objetivo do tratamento é alcançar e manter no longo prazo uma perda
entre 5 e 15% do peso corporal, tendo em vista que este percentual de
perda se associa à redução das principais complicações relacionadas
à obesidade.
Inicialmente devemos avaliar o risco geral do paciente no desen-
volvimento de doenças cardiovasculares e também de outras doenças
associadas. Essa estimativa nos ajudará em relação a metas e terapias
instituídas.
Mínimo risco: IMC entre 20 e 25 kg/m², exceto se circunferência ab-
dominal aumentada (risco cardiometabólico) ou ganho de mais de
10 kg após os 18 anos (aumento no risco de diabetes mellitus).
Baixo risco: IMC entre 25 e 29,9 kg/m² sem fatores de risco ou co-
morbidades presentes.
_ Evitar ganho de peso.
_ Mudanças de hábitos de vida: dieta e atividade física para manu-
tenção do peso.
Risco moderado: IMC entre 25 e 29,9 kg/m² com 1 ou mais fatores de
risco, como diabetes, hipertensão ou dislipidemia OU IMC entre 30 a
34,9 kg/m² independente de fatores de risco.
_ Mudanças de hábitos de vida: dieta e atividade física para perda
de 5 a 10% de peso.
_ Considerar terapia farmacológica.
Alto risco: IMC entre 35 e 40 kg/m² OU IMC ≥ 40 kg/m².
_ Mudanças de hábitos de vida: dieta e atividade física.
_ Terapia farmacológica.
_ Considerar cirurgia bariátrica.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
520

Pacientes com IMC entre 25 e 35 kg/m² e circunferência abdominal


acima do esperado para o sexo e etnia podem merecer indicação de
terapia mais agressiva que a indicada para a categoria que se encontra
quando o IMC é analisado isoladamente.
Inicialmente, os pacientes de todas as categorias de risco devem ser
orientados quanto a mudanças no estilo de vida, incluindo reeducação
alimentar, prescrição de exercícios físicos e terapia cognitivo-compor-
tamental. Idealmente, o manejo destes indivíduos envolve uma equipe
multidisciplinar com orientações específicas e individualizadas sobre
esses pontos, bem como sobre os objetivos de perda e manutenção do
peso. Em relação à dieta, o déficit calórico deve levar em consideração a
realidade e as preferências do paciente e priorizar alimentos in natura
ou minimamente processados, grãos, frutas, saladas e vegetais, carnes
magras e gorduras insaturadas. Importante ressaltar que a adesão ao
plano alimentar é mais importante do que o tipo de dieta em si para
manutenção da perda no longo prazo. Uma forma de se definir a quan-
tidade de calorias a ser ingerida pelo paciente é através do cálculo do
valor energético total (VET), que leva em conta fatores como peso atual,
altura e idade do indivíduo. Nesse sentido, há várias fórmulas disponí-
veis para estimar o gasto energético que nos permitem estimar a taxa
metabólica de repouso e dessa forma calcular as necessidades energé-
ticas para manejo do peso. Para perda de peso, um déficit calórico de
500 kcal/dia a partir dessa estimativa do gasto energético diário levará
a uma perda semanal aproximada de 0,5 kg. Uma perda de peso entre
5 e 10% nos primeiros 6 meses é desejável e, caso não atinja esta meta,
devemos considerar o uso de outras alternativas.

O cálculo do valor energético total é calculado de acordo com o sexo do


indivíduo, por meio de fórmulas com constantes fixas, nas quais iremos adi-
cionar informações como altura, peso e idade. Para perda de peso, a meta de
ingestão energética corresponde à 500 kcal a menos do que o VET do paciente.
Por meio do método Harris-Benedict, temos:

VET (homens)=[66,47+(13,75 ×peso)+(5 ×altura)-(6,76 ×idade)]×FA


VET (mulheres)=655,1+(9,56 ×peso)+(1,85 ×altura)-(4,68 ×idade)

Na qual FA é o Fator de Atividade, que leva em conta o grau de atividade


física do paciente. Em pacientes que deambulam, utilizamos o valor 1,3.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
521

Aproximadamente 22 kcal por kg de peso corporal são necessárias para


manter 1 kg de peso em um adulto eutrófico e 25 kcal para adultos com ex-
cesso de peso. Então, uma forma simples e rápida de estimar (fórmula de
bolso) o valor energético total é através da multiplicação do peso do paciente
por 25 kcal.
Exemplo: uma mulher com 60 kg, precisa consumir, em média, 1500 kcal/
dia para manter o seu peso atual. Um déficit de 500 kcal a partir desta esti-
mativa levará a uma perda semanal de aproximadamente 500 gramas.

O exercício físico aumenta o gasto energético diário, potencializan-


do a perda de peso induzida pela restrição calórica, além de contribuir
para maior preservação da massa muscular durante o processo ativo de
emagrecimento. A intensidade da atividade física deve ser aumentada
gradualmente, conforme tolerância e resistência, sendo incluídos ativi-
dades aeróbicas e de aumento de força muscular, cerca de 30 minutos
diários e no mínimo cinco dias semanais. Embora a realização regular
de exercícios tenha um papel menos importante quando falamos ape-
nas de perda de peso no curto prazo, sua realização torna-se fundamen-
tal para manutenção do peso perdido no longo prazo.
A realização de terapia cognitivo-comportamental está indicada
para auxiliar nas mudanças comportamentais, além de auxiliar no tra-
tamento de patologias psiquiátricas que podem estar presentes e con-
tribuem para o ganho de peso.
Para os pacientes que não conseguem atingir as metas estabele-
cidas para a perda de peso ou para aqueles de maior risco, devemos
pensar em associar medicamentos que auxiliem no controle do peso.
A escolha da terapia farmacológica deve ser individualizada, avalian-
do-se os riscos e os benefícios associados. As opções disponíveis atual-
mente no Brasil são: agonistas do GLP-1, como a liraglutida (Saxenda®),
a sibutramina, inibidor da receptação de noradrenalina, serotonina e
dopamina, o orlistate, medicamento que bloqueia a absorção de 30% dos
lipídios da dieta através da inibição das lipases gastrointestinais e re-
centemente a combinação de bupropiona com naltrexona de liberação
prolongada (Contrave®). Medicações off-label que podem ser utilizadas
pelo médico especialista com expertise no manejo da obesidade que
podem auxiliar no tratamento da obesidade são: topiramato, fluoxetina
e metformina.
A sequência do tratamento envolve procedimentos invasivos como
a inserção de dispositivos, como o balão intragástrico, que auxiliam na
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
522

diminuição da quantidade de alimentos ingeridos e, por consequência,


na quantidade de calorias. A indicação de cada dispositivo é diferente
e leva em consideração o IMC entre 25 e 55 kg/m². Além disso, pode-
mos optar pela indicação de cirurgia bariátrica em pacientes com IMC
≥ 40 kg /m² ou naqueles com IMC entre 35 e 39,9 kg/m² e, pelo menos
uma comorbidade grave, que não conseguiram obter controle e atingir
as metas pré-estabelecidas com as terapias anteriores por um período
mínimo de 2 anos. A perda média de peso obtida com a cirurgia bariá-
trica fica em torno de 30% do peso corporal total, com maiores chances
de manutenção desta perda no longo prazo.

9. Prognóstico:

Uma perda de 5 a 15% de peso corporal é capaz de reverter ou me-


lhorar diversas complicações associadas ao excesso de peso. Contudo,
a manutenção do peso perdido é difícil e a vigilância quanto às mu-
danças comportamentais deve ser feita por toda a vida, já que nesses
pacientes a recuperação do peso é um problema comum: 70% dos pa-
cientes que perderam peso inicialmente tendem a recuperá-lo dentro
dos próximos 5 anos.

10. Tabela de resumo:

Qual o papel da leptina na perda de peso? A redução de tecido adiposo leva à redução da leptina
circulante, hormônio com efeitos anorexígenos.
Quais são os agentes estimuladores da fome? Grelina e neuropeptídeo Y
Qual o risco de desenvolvimento Se apenas um dos pais tem obesidade, o risco é 3 a 4 vezes
de obesidade na prole de pais com maior comparado a pais sem a doença. Se ambos os pais
obesidade? tiverem obesidade, o risco é aproximadamente 10 vezes maior
O que é obesidade severa? Definida por um IMC ≥ 40 kg/m²
Como o tabagismo pode interferir A cessação do tabagismo pode levar a um ganho de peso
no peso corporal? variável devido à ausência dos efeitos ativadores da nicotina
em neurônios que agem diminuindo a ingestão de alimentos
Quais os parâmetros utilizados na IMC e circunferência abdominal
avaliação do paciente?
Quais exames devem ser pedidos no Devemos solicitar exames que avaliem o perfil metabólico
momento do diagnóstico de obesidade? e o risco de desenvolvimento de comorbidades: glicemia de
jejum, HbA1c, TSH, enzimas hepáticas e perfil lipídico
Qual a meta de perda de peso estimada 3 a 7%
com mudanças de hábitos de vida?
Quais terapias podem ser acrescentadas Terapia medicamentosa, inserção de dispositivos
quando as mudanças no estilo de vida intragástricos e cirurgia bariátrica.
não forem suficientes?
Qual a indicação de cirurgia bariátrica? Falha com o manejo conservador (dieta, exercícios e ou
medicamentos), por um período mínimo de 2 anos, ou IMC ≥
50 kg/m².
Qual o impacto da cirurgia bariátrica A cirurgia bariátrica é o tratamento mais efetivo no longo prazo
sobre a perda de peso? para controle do peso em pacientes com obesidade severa.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
523

11. Leitura recomendada:

FERREIRA, A. P. DE S.; SZWARCWALD, C. L.; DAMACENA, G. N. Prevalência


e fatores associados da obesidade na população brasileira: estudo com
dados aferidos da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Revista brasileira de
epidemiologia = Brazilian journal of epidemiology, v. 22, p. e190024, 2019.

Deurenberg P, Yap M, van Staveren WA. Body mass index and percent body fat:
a meta analysis among different ethnic groups. Int J Obes Relat Metab Disord
1998; 22:1164.

Razak F, Anand SS, Shannon H, et al. Defining obesity cut points in a multiethnic
population. Circulation 2007; 115:2111.

Tsai AG, Wadden TA. In the clinic: obesity. Ann Intern Med 2013; 159:ITC3.

Bray GA, Frühbeck G, Ryan DH, Wilding JP. Management of obesity. Lancet
2016; 387:1947.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
524

Capítulo 35

Dislipidemia
Rafael Fortes Locateli
Nathaly Michaela Melo da Conceição
Thizá Massaia Londero Gai

1. Introdução:

Sabemos que as doenças cardiovasculares são a principal causa de


morte no Brasil e no mundo, portanto, é importante conhecer e com-
bater seus fatores de risco. A dislipidemia (DLP) é um conjunto de di-
ferentes distúrbios relacionados ao metabolismo de lipídeos e de lipo-
proteínas. Está associada a doenças cardiovasculares ateroscleróticas,
como a doença arterial coronariana (DAC), o acidente vascular encefá-
lico (AVE) e a doença arterial obstrutiva periférica (DAOP). A prevenção,
o reconhecimento e o manejo adequado das dislipidemias reduzem a
mortalidade cardiovascular, o que torna o assunto que iremos discutir
neste capítulo tão importante. Lembramos que neste capítulo será estu-
dada a dislipidemia em adultos.

2. Epidemiologia:

Não se sabe ao certo a prevalência de dislipidemias no Brasil. Gru-


po de pesquisadores estudou a prevalência de hipercolesterolemia au-
torreferida na população adulta brasileira usando dados da Pesquisa
Nacional de Saúde de 2013 (inquérito epidemiológico) e encontrou uma
prevalência de 12,5% (9,7% em homens e 15,1% em mulheres). O Estudo
Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil) encontrou uma frequ-
ência de 45,5% de indivíduos com colesterol LDL elevados (50% em ho-
mens e 42% em mulheres), destes, pouco mais da metade (58,1%) esta-
vam cientes do diagnóstico.

3. Fisiopatologia:

Os lipídeos biologicamente importantes são quatro: fosfolipídeos


(componente da membrana celular), colesterol (precursor de hormô-
nios esteroides, vitamina D, ácidos biliares e componente da membrana
celular), triglicerídeos (fonte de energia) e ácidos graxos (produção de
energia e transporte de gorduras).
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
525

Sendo relativamente insolúveis em água, os lipídeos, para serem


transportados pelo plasma, precisam associar-se a apolipoproteínas
(moléculas hidrossolúveis), formando o que denominamos lipoproteí-
nas. As apolipoproteínas atuam em diversos pontos do metabolismo das
lipoproteínas. Algumas dessas funções são: cofatores enzimáticos (apo
CII, CIII e AI), constituintes intracelulares de partículas lipoproteicas (apo
B100 e B48) e ligação com receptores de membrana (apo B100 e E).
As lipoproteínas podem ser classificadas de acordo com sua densi-
dade, que varia de acordo com a quantidade de apolipoproteínas (au-
mentam a densidade) e de triglicerídeos (reduzem a densidade). O LDL
(lipoproteína de baixa densidade) e o HDL (lipoproteína de alta densi-
dade) são os exemplos mais difundidos na prática clínica. Outros tipos
são IDL (lipoproteína de densidade intermediária) e VLDL (lipoproteína
de densidade muito baixa). A função destes produtos é o de transporte
de lipídeos no plasma através da solubilização.
Os triglicerídeos (TG) representam a maior parte das gorduras da
dieta, sendo hidrolisados por produtos pancreáticos e absorvidos pe-
las células intestinais. Os ácidos graxos resultantes da hidrólise são
transformados em quilomícrons e direcionados ao ducto torácico, onde
seguem sofrendo lipólise até serem captados pelos tecidos adiposo e
muscular. O fígado é um produtor endógeno de lipídeos (secreta VLDL,
que se transforma em IDL e posteriormente em LDL, que tem função
de carrear o colesterol para os tecidos periféricos). O HDL é formado
no fígado, no intestino e na circulação e possui a função de transporte
reverso do colesterol, levando o colesterol dos tecidos periféricos para
o fígado.
O processo aterosclerótico está relacionado, principalmente, ao
maior nível de LDL (o chamado “mau colesterol”). Níveis baixos de HDL
(o “bom colesterol”) também estão relacionados a desfechos cardiovas-
culares. Ao contrário dos outros lipídeos, os triglicerídeos representam
risco de pancreatite aguda. As dislipidemias clinicamente importantes
são, portanto:
Hipercolesterolemia isolada (relacionada ao LDL).
Hipertrigliceridemia isolada (relacionada aos TG).
Hiperlipidemia mista (LDL e TG).
HDL baixo.

Elas podem ser divididas entre primárias e secundárias. As secun-


dárias são relacionadas com doenças de base, uso de medicamentos
(conferir tabelas 1 e 2) ou hábitos de vida (alimentação rica em gorduras,
carboidratos simples e ultraprocessados, sedentarismo), enquanto as
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
526

primárias ocorrem devido a fatores genéticos (sendo, também, agrava-


das pelo estilo de vida do indivíduo), como a hipercolesterolemia fami-
liar. É importante salientar que a dislipidemia é um problema comum
na população geral. Atualmente, apesar da classificação tradicional em
primária/secundária, sabe-se que a maioria dos indivíduos terá uma
ou mais anormalidades genéticas além de somente uma causa secun-
dária. Quanto maior a alteração (por exemplo, níveis de LDL acima de
190 mg/dL), provavelmente, maior o componente genético envolvido.
Ainda, lembramos que as alterações genotípicas podem ser monogê-
nicas, causadas por mutações em um só gene, e poligênicas, causadas
por associações de diferentes mutações que, isoladamente, não seriam
de grande repercussão.

4. Anamnese:

Na maior parte dos casos, a dislipidemia é assintomática, entretan-


to, a forma de apresentação, pode ser drástica, ao cursar com AVE, DAC
[infarto agudo do miocárdio (IAM) como um aspecto], DAOP ou doença
renovascular, por exemplo. Devido a essa grande variabilidade, é neces-
sário identificar o grupo populacional em risco de sofrer eventos relacio-
nados à aterosclerose para que haja prevenção de eventos relacionados.
Na anamnese devemos pesquisar sintomas cardiovasculares, como
a ocorrência de angina, claudicação intermitente, IAM ou AVE prévios,
realização de exames documentando aterosclerose [invasivos (cinean-
giocoronariografia) e não invasivos (cintilografia, ecocardiografia, ul-
trassom de membros inferiores, tomografia de crânio, angiotomografia
de coronárias, entre outros)]. Além disso, temos que nos atentar à his-
tória familiar do paciente e questionar sobre hipercolesterolemia fami-
liar, história familiar de morte súbita e doença cardiovascular precoce
caracterizada por eventos cardiovasculares em mulheres < 65 anos ou
homens < 55 anos. O perfil psicossocial (tabagismo, etilismo, comporta-
mento alimentar, sedentarismo, histórico de peso, época da menopau-
sa/climatério) deve ser descrito. Em relação a comorbidades, a presença
de hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes mellitus (DM) e outras
doenças (tabela abaixo mostra a influência de doenças sistêmicas no
perfil lipídico) deve ser indagada. Por fim, o conhecimento dos medi-
camentos em uso também é importante, uma vez que alguns fármacos
acarretam dislipidemia.
As tabelas 1 e 2 descrevem as condições e os medicamentos que po-
dem se associar com as dislipidemias. É importante nos atentarmos a
esses dados no momento da avaliação do paciente, para que haja uma
definição das possíveis causas e intervenções para o paciente avaliado.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
527

Tabela 1: Associação de dislipidemia e problemas de saúde.


Condição Colesterol total HDL TG
DM - Reduz Aumenta
Síndrome de Cushing Aumenta - Aumenta
Hipotireoidismo Aumenta Aumenta ou diminui Aumenta
Obesidade Aumenta Diminui Aumenta
Sedentarismo Aumenta Diminui Aumenta
Tabagismo - Reduz -
Etilismo - Aumenta Aumenta
Bulimia Aumenta - Aumenta
Anorexia Aumenta - -
Doença renal crônica Aumenta - Aumenta
Síndrome nefrótica Aumenta Aumenta Aumenta
Hepatopatia crônica Aumenta Aumenta ou diminui Normal ou aumenta
Adaptado de: Atualização da V Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose
da Sociedade Brasileira de Cardiologia, 2017.

Tabela 2: Influência de medicamentos no perfil lipídico.


Medicamento Colesterol total HDL TG
Corticosteroides Aumenta - Aumenta
Contraceptivos orais combinados Aumenta - Aumenta
Estrógenos orais - Normal ou aumenta Aumenta
Anabolizantes Aumenta Reduz -
Diuréticos - Reduz Aumenta
Betabloqueadores - Reduz -
Inibidores da protease Aumenta - Aumenta
Isotretinoína Aumenta Aumenta Aumenta
Ciclosporina Aumenta Aumenta Aumenta
Adaptado de: Atualização da V Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose
da Sociedade Brasileira de Cardiologia, 2017.

5. Exame físico:

Na maioria dos casos o exame físico é normal. Além de um exame


físico geral e do aparelho circulatório completos, é importante nos aten-
tarmos à pressão arterial, visto que HAS e dislipidemia andam de mãos
dadas como fatores de risco cardiovascular.
Na inspeção é possível encontrar arco corneano, xantomas e xan-
telasmas (Figura 1). Deve-se medir o peso do paciente rotineiramente,
calcular o índice de massa corporal, bem como aferir a circunferência
abdominal, como mostrado no capítulo que explica sobre obesidade.
Sopros e déficit de pulsos podem estar presentes, assim como medidas
diferentes da pressão arterial entre os membros e sinais de insuficiência
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
528

arterial periférica, como pele seca, rarefação de pelos, discrepância en-


tre a temperatura dos membros, pele fria e onicodistrofia. O aspecto do
sangue pode ser leitoso em uma DLP importante, especialmente na hi-
pertrigliceridemia.

Figura 1. Arco corneano, xantoma e xantelasma.


Imagens retiradas da Revista Cardiolípides, do Departamento de Aterosclerose da Sociedade
Brasileira de Cardiologia, Volume - nº3 - 2014. ISSN 2238-1341

6. Exames complementares:

A tabela 3 demonstra os valores de referência do perfil lipídico. Es-


ses pontos de corte derivam do conceito de dislipidemia baseado nos
níveis séricos de colesterol total, LDL e triglicerídeos acima do percen-
til 90 e/ou níveis séricos HDL abaixo do percentil 10 para a população
geral. É importante lembrar que os valores de referência são diferentes
para cada indivíduo e dependem do risco cardiovascular de cada um.
Existem outros exames que podem auxiliar na avaliação da estratifica-
ção de risco do paciente com dislipidemia, como a Lipoproteína A e a
proteína C reativa ultrassensível, mas não iremos abordar tais aspectos
neste capítulo.

Tabela 3: Valores de referência do perfil lipídico de acordo com o risco


cardiovascular (adultos).
Lipídeos Valor aceitável (meta) Recomendação
Colesterol total < 190 Desejável para população geral
HDL > 40 para homens e > 50 em mulheres Desejável para população geral
Triglicerídeos < 150 com jejum (< 175 sem jejum) Desejável para população geral
< 130 Se indivíduos de baixo risco cardiovascular
< 100 Se indivíduos de intermediário risco
cardiovascular
LDL
< 70 Se indivíduos de alto risco cardiovascular
< 50 Se indivíduos de muito alto risco
cardiovascular
Adaptado de: Atualização da V Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose
da Sociedade Brasileira de Cardiologia, 2017.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
529

A fórmula de Friedewald é usada para cálculo do LDL e é utilizada pela


maioria dos laboratórios para a sua mensuração. Por isso, é interessante pe-
dir somente colesterol total, TG e HDL, já que é um cálculo simples e ajuda a
reduzir os gastos do paciente.

LDL=(colesterol total-HDL)-(TG/5)

Em caso de hipertrigliceridemia (> 400) é melhor usar os valores co-


lesterol não-HDL como meta (ao contrário do usual, que é recomendado
olhar o valor do LDL). O cálculo do colesterol não-HDL é feito através
da subtração do colesterol total pelo HDL. Nesse caso, os valores ideais,
conforme o risco cardiovascular individual, são: < 160 para baixo, < 130
para moderado, < 100 para alto e < 80 para muito alto.

7. Diagnóstico:

A interpretação diagnóstica de um quadro de dislipidemia considera


os aspectos laboratoriais e clínicos, especialmente relacionados ao risco
cardiovascular. As metas do LDL variam de acordo com o risco cardio-
vascular de cada paciente, descritas na tabela 4. Para um melhor enten-
dimento sobre o diagnóstico (e, em seguida, sobre o tratamento de disli-
pidemias), precisamos ter em mente o conceito de estratificação de risco
e prevenção de eventos cardiovasculares. Na prevenção primária ainda
não existe doença evidente, estamos falando em controlar os fatores de
risco modificáveis (sedentarismo, pressão arterial elevada, níveis de co-
lesterol acima da referência). Já a prevenção secundária refere-se à pre-
venção de novos eventos ou evitar a piora de uma doença cardiovascular
já sabidamente instalada/reconhecida. Após detectada a dislipidemia,
devemos estratificar o risco cardiovascular do paciente, conforme as
calculadoras de risco disponíveis. Caso seja uma situação de prevenção
secundária, o paciente é automaticamente considerado de risco alto ou
muito alto. Esta etapa é fundamental para a definição da conduta a ser
tomada, como veremos a seguir no tópico sobre tratamento.

Calculadoras: as calculadoras de risco CV estimam a chance de de-


senvolvimento de evento cardiovascular aterosclerótico nos próximos
10 anos. As variáveis analisadas incluem sexo, idade, pressão arterial,
níveis de lipídeos plasmáticos, comorbidades associadas (DM, por
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
530

exemplo), uso de medicamentos (estatinas, aspirina, anti-hipertensi-


vos), entre outros. Dois exemplos de calculadoras muito difundidas são
do American College of Cardiology (somente para prevenção primária)
e da Sociedade Brasileira de Cardiologia, em parceria com as Socieda-
des Brasileiras de Diabetes e de Endocrinologia e Metabologia, atuali-
zada em 2020. Ambas possuem aplicativo para smartphone e site na
internet. A divisão é entre quatro categorias de risco:

Tabela 4: Classificação de risco cardiovascular.


Muito alto Aterosclerose significativa com obstrução ≥ 50% (coronariana, cerebrovascular, vascular
periférica)
Com ou sem eventos clínicos (exemplo IAM, AVE)
Alto Escore de risco global > 20% para homens ou > 10% para mulheres (risco de evento em
10 anos)
Avaliação de: idade, colesterol total, HDL, pressão arterial sistólica (tratada ou não),
tabagismo, diabetes
Aterosclerose subclínica: ultrassonografia de carótidas com presença de placa; índice
tornozelo-braquial (ITB) < 0,9; escore coronário de cálcio (CAC) > 100 ou presença de
placas ateroscleróticas na angiotomografia de coronárias
Condições agravantes: aneurisma de aorta abdominal, LDL ≥ 190, taxa de filtração
glomerular (TFG) < 60 mL/min em fase não-dialítica
Diabéticos com estratificadores de risco ou doença aterosclerótica subclínica
• Estratificadores: diabetes há mais de 10 anos, idade ≥ 48 anos em homens ou ≥ 54 em
mulheres, HAS, TFG < 60ml/min, albuminúria > 30 ou retinopatia diabética, histórico
familiar de primeiro grau com doença cardiovascular prematura (< 55 anos homem ou
< 65 mulher), tabagismo
• Doença aterosclerótica subclínica: critérios de aterosclerose subclínica (acima) ou LDL
entre 70-189 com escore de risco global > 20% em homens ou > 10% em mulheres
Intermediário Diabéticos sem estratificadores de risco ou doença aterosclerótica subclínica
Homens com escore de risco global entre 5 e 20% ou mulheres entre 5 e 10%
Baixo Escore de risco global < 5%

LDL x Eventos cardiovasculares: existe uma correlação linear entre a taxa


de LDL de cada indivíduo com o risco de desenvolver DAC. O tratamento de
pacientes com alto risco CV (prevenção primária, pois ainda não tem doen-
ça) ou já com doença estabelecida (prevenção secundária) reduz a chance de
eventos CV. Isso será discutido posteriormente no tópico sobre prognóstico.

Ao avaliarmos um paciente com dislipidemia por LDL muito aumen-


tado, é importante atentarmos se o paciente é suspeito para Hipercoles-
terolemia Familiar (HF). A HF é uma doença hereditária autossômica
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
531

dominante, que envolve um ou mais genes críticos para o metabolismo


do colesterol LDL (LDLR, PCSK9 ou APOB), impedindo a sua elimina-
ção, aumentando muito o risco de desfechos cardiovasculares: pessoas
com HF têm risco 10 a 20 vezes maior de desenvolver doença arterial
coronariana. A exposição das artérias aos altos níveis de LDL é preco-
ce, desde o nascimento. Pacientes homozigotos para HF podem morrer
de causas cardiovasculares antes dos 20 anos de idade. Em pacientes
heterozigotos, a partir dos 11 anos de idade já é possível observar cal-
cificação coronariana. Quando há suspeita de HF, o paciente deve fa-
zer o teste genético para confirmação e também direcionar testagem
aos familiares. Existe um programa brasileiro chamado HipercolBrasil
(https://www.hipercolbrasil.com.br/), que prevê teste genético gratuito
para indivíduos com risco de possuírem HF. A suspeição clínica se dá
através dos critérios de inclusão para o teste, que são:
LDL ≥ 230 quando adultos ou LDL ≥ 160 para menores que 16 anos; OU
LDL ≥ 210 quando adulto e familiar de primeiro grau de parentesco
com LDL ≥ 190 quando adulto, ou ≥ 160 para menores que 16 anos.
Não possuir nenhum dos critérios de exclusão: TG > 300; insuficiên-
cia hepática; insuficiência renal; hipotireoidismo; sorologia positiva
para HIV.

Ainda, a Sociedade Brasileira de Cardiologia disponibiliza uma cal-


culadora para estimar a probabilidade de Hipercolesterolemia Familiar.

Quando devemos fazer o rastreamento de dislipidemias em adultos?


Ainda existe bastante controvérsia sobre quais pacientes devem ser sub-
metidos à triagem de dislipidemia e a partir de quando. O momento de início
e a frequência do screening dependem basicamente dos fatores de risco car-
diovascular que o indivíduo apresenta.
Alto risco cardiovascular (HAS, DM, tabagismo, histórico familiar de DCV
precoce): screening em homens entre 25 e 30 anos; em mulheres entre 30
e 35 anos;
Baixo risco cardiovascular (sem nenhum dos fatores de risco acima):
screening em homens aos 35 anos; em mulheres aos 45 anos.
Quando repetir nova estratificação? A cada 5 anos ou a cada 3 anos se os
valores do colesterol estiverem próximos ao limite superior da normalidade
(de acordo com risco cardiovascular) ou se o paciente possui alto risco CV.
A US Preventive Services Task Force (2016) recomenda screening univer-
sal a partir dos 40 anos.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
532

8. Tratamento:

O objetivo principal é evitar eventos cardiovasculares e não apenas


tratar o valor numérico apontado pelo exame. Reduzir o colesterol é
somente uma parte do tratamento. É recomendado que o tratamento
farmacológico seja iniciado em pacientes de riscos baixo e intermedi-
ário que não obtiveram resposta satisfatória após 6 ou 3 meses de mu-
dança de estilo de vida (MEV). Para pacientes de risco alto e muito alto,
o tratamento farmacológico deve ser iniciado imediatamente, sempre
associado ao tratamento não medicamentoso. As metas de tratamento
obedecem aos valores da Tabela 3. Lembre-se que, se TG ≥ 400, a meta
é a do não-HDL.

Tratamento não medicamentoso (MEV):


Cessação do tabagismo: terapia comportamental e medicamentosa
(primeira linha inclui terapia de reposição de nicotina, bupropiona e
vareniclina).
Atividade física: aquecimento e alongamento, exercícios aeróbios,
exercícios de resistência muscular. 3 a 6 vezes por semana, com du-
ração de 30-60min (mínimo de 150 minutos por semana).
Controle de peso: redução do peso melhora LDL e TG em pacientes com
sobrepeso ou obesidade. As recomendações dietéticas são as seguintes:
_ Dieta isenta de ácidos graxos trans (sorvete, chocolate, margari-
na, produtos industrializados em geral).
Baixo teor de colesterol (alimentos de origem animal, leite e de-
rivados, embutidos, frutos do mar) e gorduras saturadas (carnes
gordurosas).
_ Substituir a gordura saturada pela insaturada (ômega 3, 6 e 9 –
óleos vegetais, peixes de água fria, vegetais, óleo de oliva, abacate,
castanhas, nozes).
_ Antioxidantes naturais (flavonoides – verduras, frutas, bebidas
derivadas da uva).

Tratamento medicamentoso:
Estatinas: inibidores da HMG-CoA redutase. São eficazes na redução
da mortalidade cardiovascular, redução do LDL em 15 a 55%, redução do
TG em 7 a 28% e aumento do HDL em 2 a 10%. Podem interromper ou
diminuir a progressão da aterosclerose, além de diminuir o volume das
placas mais instáveis e inflamadas. São utilizadas preferencialmente
à noite, 1 vez por dia. Efeitos adversos são raros (os musculares são os
mais comuns e podem surgir de semanas a anos após o tratamento,
variando de mialgia a rabdomiólise e hepatite).
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
533

Dosagem de CPK: deve ser solicitada em casos selecionados para o


início do tratamento (se o paciente tem histórico familiar de intole-
rância a estatina, alguma doença muscular ou queixas musculares).
Caso durante o uso do medicamento o paciente tenha clínica de mio-
patia, deve-se considerar dosar CPK.
Hepatotoxicidade: dosagem de TGO e TGP deve ser realizada antes
do início da terapia. Durante o tratamento, a avaliação é indicada
quando ocorrerem sintomas de hepatotoxicidade (fadiga, perda de
apetite, dor abdominal, colúria ou icterícia).
_ Elevação isolada de transaminases não justifica suspensão do
medicamento.
_ Contraindicadas em hepatopatias agudas. Liberadas em hepato-
patas crônicos.
Diabetes mellitus: pacientes com predisposição ao DM (IMC > 30 kg/
m², hemoglobina glicada > 6% e glicemia de jejum > 100 mg/dL) têm
maior predisposição a desenvolver diabetes durante o uso de estati-
na. O uso de estatinas causa o desenvolvimento de 1 caso de diabetes
a cada 1000 pacientes tratados ao ano, mas previne 5 eventos cardio-
vasculares a cada 1000 pacientes tratados no mesmo período. Logo,
esse risco não justifica a contraindicação da medicação, já que os
benefícios em relação à prevenção de eventos cardiovasculares são
maiores. A Rosuvastatina parece ser a mais associada a esse efeito e
a Pitavastatina a menos.

Amiodarona, verapamil, azitromicina, fluoxetina, antagonista da protease,


fluconazol.

Em pacientes com LDL < 40, devemos manter o uso de estatinas caso
estas não causem efeitos colaterais ou reduzir a dose pela metade, na
presença de tais efeitos.
A intolerância às estatinas pode acontecer e cursar com mialgia, fa-
diga e câimbras. Ocorre em 10 a 25% dos pacientes. Nesses casos, algu-
mas medidas devem ser tomadas, dentre elas, devemos nos atentar a:
Dosar TSH, vitamina D e CPK
Tentar pelo menos 2 tipos diferentes e dar preferência para Pravas-
tatina, Lovastatina, Fluvastatina, Rosuvastatina e Pitavastatina,
pois essas têm menos toxicidade muscular.
Diminuir a dose da estatina atual e associá-la com Ezetimiba 10mg/dia.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
534

Trocar por outra que utilize via de metabolização diferente. Atorvas-


tatina e Sinvastatina compartilham a mesma, assim como Rosuvas-
tatina e Pitavastatina. Pravastatina não depende de CYP.
Rosuvastatina em dias alternados (meia-vida mais prolongada).
Trocar estatina por inibidores da PCSK9 (alto custo).

Tabela 5: Potência das estatinas.


Baixa Moderada Alta
Reduzem menos de 30% do LDL Reduzem de 30-50% do LDL Reduz 50% ou mais do LDL
Lovastatina 20 mg Lovastatina 40 mg Atorvastatina 40 – 80 mg
Sinvastatina 10 mg Sinvastatina 20 – 40 mg Rosuvastatina 20 – 40 mg
Pravastatina 10 – 20mg Pravastatina 40 – 80 mg Sinvastatina 40 mg ou mais
Fluvastatina 20 – 40mg Fluvastatina 80 mg Ezetimiba 10 mg
Pitavastatina 1 mg Pitavastatina 2 – 4 mg
Atorvastatina 10 – 20 mg
Rosuvastatina 5 – 10 mg
Adaptado de: Atualização da V Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose
da Sociedade Brasileira de Cardiologia, 2017.

Ezetimiba: inibe a absorção de colesterol no intestino delgado por


ação em receptores NPC1-L1. Reduz de 10 a 25% do LDL e tem seu efeito
potencializado quando utilizado em associação com estatina. É indica-
da para pacientes de risco alto ou muito alto que não atingiram alvo de
LDL com o uso isolado da estatina. Usada em dose única, 10mg/dia. Não
deve ser utilizada em hepatopatias agudas.
Inibidores da PCSK9: anticorpos monoclonais que levam à destrui-
ção de proteases que degradam os receptores de LDL na superfície das
células hepáticas. A via de administração é SC, aplicada a cada 2 a 4
semanas. Reduzem 60% do LDL. Exemplos: evolocumabe e alirocumabe
(muito caros). Efeitos colaterais: náuseas, nasofaringite, fadiga, reações
no local da injeção.
Fibratos: aumentam a produção e ação da lipase proteica. Usados
pelo risco de pancreatite aguda, uma vez que os estudos em geral não
demonstram benefício significativo na redução de eventos CV. Efeitos
colaterais: distúrbios gastrointestinais, mialgia, perda da libido e litíase
biliar. Quando utilizar? TG ≥ 500; dislipidemia mista com predomínio de
TG; DM quando TG > 200 e HDL < 35, junto com estatina.
Resinas de troca: reduzem a absorção de sais biliares e diminuem
20% do LDL. Colestiramina tem efeito potencializado em associação
com estatina. 4 a 24 g/dia. Efeitos colaterais: intolerância gastrointesti-
nal, diminuição da absorção de vitaminas lipossolúveis e ácido fólico.
É preferível evitar esses medicamentos na hipertrigliceridemia, pois
podem aumentar os TG.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
535

9. Prognóstico:

Existe associação entre os níveis plasmáticos de LDL com doença


coronariana e mortalidade cardiovascular. A redução dos níveis circu-
lantes de LDL diminui proporcionalmente o risco de DAC (quanto mais
reduzir, sugere-se um menor risco). Em uma metanálise, para cada 40
mg/dL de redução do LDL com o uso de estatinas houve diminuição da
mortalidade em 10%, especialmente pela redução de morte por DAC. O
tratamento com estatina reduz mortalidade por todas as causas, neces-
sidade de revascularização, eventos isquêmicos coronários e AVE.

10. Tabela de resumo:

Sugestão de como tratar um paciente com Dislipidemia:

Risco cardiovascular Sugestão de tratamento


Baixo MEV
Reavaliar em 6 meses: atingiu alvo de LDL? Se não, considerar estatina de baixa
potência.
Exemplo: Sinvastatina 10 mg, Pravastatina 10 a 20 mg.
Intermediário MEV
Reavaliar em 3 meses: atingiu alvo de LDL? Se não, considerar estatina de
moderada potência.
Exemplo: Sinvastatina 20 a 40 mg, Atorvastatina 10 a 20 mg, Rosuvastatina 5 a
10 mg.
Alto MEV + estatina de alta potência
Exemplo: Atorvastatina 40 a 80 mg, Rosuvastatina 20 a 40 mg, Sinvastatina 40 mg
+ Ezetimiba 10 mg.
Muito alto MEV + estatina de alta potência
Exemplo: Atorvastatina 40-80mg, Rosuvastatina 20 a 40 mg, Sinvastatina 40 mg +
Ezetimiba 10 mg.
Considerar: efeitos colaterais, especialmente mialgia (trocar por outra estatina,
reduzir dose e associar ezetimiba).
Lembrar: antes de iniciar o medicamento, dosar CPK, TGO e TGP! Repetir dosagem
de CPK se sintomas musculares; TGO e TGP se suspeita de hepatotoxicidade.
Considerar: efeitos colaterais, especialmente mialgia (trocar por outra estatina, reduzir dose,
associar ezetimiba). Lembrar: antes de iniciar o medicamento, dosar CPK, TGO e TGP! Repetir
dosagem de CPK se sintomas musculares; TGO e TGP se suspeita de hepatotoxicidade.

11. Leitura recomendada:

LOTUFO, P. A. et al. Self-reported high-cholesterol prevalence in the brazilian


population: Analysis of the 2013 national health survey. Arq. Bras. Cardiol., v.
108, n. 5, p. 411–416, 2017.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
536

FALUDI, A. P. et al. Atualização da Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção


da Aterosclerose – 2017. Arq. Bras. Cardiol., v. 109, n. 2 suppl 1, p. 1-76, jul. 2017.

PRÉCOMA, D. B. et al. Atualização da Diretriz de Prevenção Cardiovascular da


Sociedade Brasileira de Cardiologia – 2019. Arq. Bras. Cardiol., v. 113, n. 4, p. 787-
891, out. 2019.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas.


Dislipidemias: prevenção de eventos cardiovasculares e pancreatite. CONITEC.
2019. 40 p.

SANTOS, R. D., BENSENOR, I. M., PEREIRA, A. C., LOTUFO P.A. Dyslipidemia


according to gender and race: The Brazilian Longitudinal Study of Adult Health
(ELSA-Brasil). J Clin Lipidol, v. 10, n. 6, p. 1362-1368, nov. 2016.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
537

Capítulo 36

Terapia Hormonal de Afirmação de Gênero


Igor Reis Pereira
Pietra Fischer Pascoal
Rafael Vaz Machry

1. Introdução:

A incongruência de gênero é entendida como o sofrimento gerado


pela diferença entre o gênero expresso pelo indivíduo e aquele que lhe
foi designado no momento do nascimento. Os pacientes transsexuais,
aqueles que se identificam com um gênero diferente do que lhe foi de-
signado com base em sua anatomia genital, necessitam, além das me-
didas de afirmação de gênero, de cuidado em saúde geral que abranja
tanto o bem-estar físico quanto o mental. Apesar do acompanhamento
ser multiprofissional, a prescrição de terapias hormonais é atribuição
do médico.
A disforia de gênero compreende o desconforto gerado pela incon-
gruência de gênero. Esse diagnóstico é realizado e tratado por profissio-
nal da saúde mental e pode ser explorado dentro das consultas médi-
cas, caso o profissional tenha preparo prévio. No momento da consulta,
as expectativas do paciente com a terapia devem ser exploradas e de-
vemos orientar acerca das mudanças físicas e do tempo que demoram
a ocorrer, as medicações e doses adequadas e nos mostrar abertos a
sanar as dúvidas que possam surgir. Vale lembrar que os médicos e
as equipes de saúde que acompanham pacientes transgêneros devem
estar familiarizados com os termos utilizados para se referir a essa po-
pulação. Você conhece esses termos? Sugerimos revisá-los na tabela 1.
Neste capítulo, forneceremos os dados relevantes à Endocrinologia
em relação ao tratamento de afirmação de gênero. Precisamos ressaltar
que o acompanhamento multidisciplinar, com o enfoque no bem-estar,
prevenção de danos e terapias associadas são essenciais. Também, o tra-
tamento cirúrgico de redesignação de gênero deve ser lembrado ao aten-
dimento com o paciente, mas não abordaremos com profundidade aqui.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
538

Tabela 1: Você sabe o que significa os termos relacionados à população


transsexual?
É o gênero social que é designado à criança e tem como base a anatomia
Gênero designado ao nascer
genital vista no momento do nascimento.
Faz referência a como a pessoa se identifica no espectro de gênero,
podendo ser uma pessoa cis (que se identifica com o gênero que lhe foi
Identidade de gênero designado ao nascimento), trans (que se identifica com o gênero oposto
ao que lhe foi designado ao nascimento) ou não binário (pessoa que não
se enquadra na binariedade de gênero).
Pessoa que se identifica com o gênero masculino, mas que foi designada,
Homem trans
ao nascimento, como mulher.
Pessoa que se identifica com o gênero feminino, mas que foi designada,
Mulher trans
ao nascimento, como homem.
Faz referência ao padrão de excitação emocional ou física do indivíduo, ou
Orientação sexual
seja, com quem a pessoa se sente atraída, e independe do gênero.

2. Diagnóstico:

Atualmente os critérios diagnósticos de incongruência de gênero são:


Incongruência persistente entre a identidade de gênero e o gênero
designado ao nascer por meio da anatomia sexual externa.
Ausência de transtornos mentais que possam confundir o diagnóstico.
Esse diagnóstico deve ser feito antes do início da terapia de afirma-
ção de gênero, ou seja, antes do começo da terapia hormonal cruzada e
da cirurgia de redesignação sexual. Primeiramente, devem ser tratadas
afecções clínicas presentes, principalmente as psiquiátricas. O diag-
nóstico pode ser suspeito na vigência de um diagnóstico psiquiátrico,
entretanto, este deve estar controlado para que se faça a confirmação.

3. Homem transexual:

Os objetivos da terapia hormonal no homem trans é a interrupção da


menstruação e a indução de mudanças físicas masculinizantes que se
adequem à identidade de gênero do paciente, com a meta de manter os
níveis hormonais de testosterona semelhantes ao de homens cisgênero.
Alguns critérios devem ser levados em conta ao se iniciar a terapia
hormonal, dentre eles a presença de incongruência ou disforia de gêne-
ro persistente e documentada, a capacidade do paciente em tomar deci-
sões e a resolução de questões médicas ou mentais. Aguarda-se sempre
a definição psiquiátrica da indicação de terapia hormonal de afirmação
de gênero.
A terapia é feita com o uso de testosterona, apenas, que é capaz de
bloquear o eixo hipotálamo-hipófise-gônada e produzir os efeitos es-
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
539

perados. As vias de administração disponíveis no mercado podem ser


parenteral (com injeções intramusculares) ou transdérmica, utilizando
géis. A escolha varia de acordo com o tempo entre cada aplicação, no
caso de formulações injetáveis, o custo e a escolha do paciente. A via
injetável confere maior garantia em relação aos níveis séricos que a via
transdérmica. Na tabela 2 estão resumidas as principais vias de admi-
nistração da testosterona e as doses utilizadas:

Tabela 2: Fármacos utilizados na terapia hormonal do Homem Trans.


Enantato de Testosterona 500 a 100 mg IM ou SC semanalmente
Parenteral Cipionato de Testosterona 100 a 200 mg IM a cada duas semanas
Undecanoato de Testosterona 1000 mg IM a cada 10 a 12 semanas
Gel de Testosterona 1% e 1,6% 5 a 10 g/dia
Transdérmica
Adesivo de Testosterona 2,5 a 7,5 mg/dia

O acompanhamento do paciente deve ser feito através das dosagens


séricas do hormônio. Alguns autores sugerem a dosagem de testostero-
na no período médio entre as doses da administração parenteral, outros
indicam alguns dias antes da nova aplicação para os pacientes com uso
injetável. Nós acreditamos que a dosagem no meio do período auxilia
em evitar doses excessivas (picos) e a dosagem antes da próxima apli-
cação avalia se o tempo de reaplicação está adequado. Logo, sugerimos
dosar no mesmo momento. No uso de apresentações transdérmicas,
sugerimos dosagem em qualquer período. As reavaliações devem ser
feitas a cada 3 meses no primeiro ano, com o ajuste de doses feito con-
forme necessário, e após isso, o acompanhamento passa a ser de uma
a duas vezes por ano. O estradiol sérico deverá ser monitorado nos seis
meses iniciais, sendo mantido menor que 50 pg/mL, se nesse período o
sangramento uterino persistir, devemos monitorar até que este cesse.
Ao longo da terapia, que se estende para toda a vida do paciente, peso
e pressão arterial devem ser monitorados. O peso e a composição corpo-
ral devem ser monitorados devido ao caráter lipofílico da testosterona,
que se deposita facilmente no tecido adiposo, fazendo com que os níveis
séricos sejam menores que os esperados em pacientes com grande quan-
tidade de gordura corporal. A pressão arterial deve ser acompanhada a
fim de monitorar possíveis elevações relacionadas aos níveis séricos
hormonais. Além disso, devemos solicitar dosagem de hematócrito em
todas as consultas, já que a eritrocitose (aumento na produção de glóbu-
los vermelhos) é uma consequência da administração da testosterona. O
hematócrito desses pacientes deve estar abaixo de 50%. Por fim, a dosa-
gem de lipídios séricos, marcadores de lesão hepática (transaminases) e
função renal também devem ser feitas regularmente.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
540

Os homens trans que não foram submetidos à mastectomia devem


ser submetidos ao exame de mamografia e aqueles que possuem colo
de útero e tecido cervical devem realizar Papanicolau, ambos nas indi-
cações e intervalos feitos para mulheres cisgênero.

Devemos manter os níveis fisiológicos de homens cisgênero, ou seja, tes-


tosterona entre 400 e 800 ng/dL (13,9 a 27,7 nmol/L).

Quais efeitos são esperados com a terapia hormonal no


homem trans?

Desenvolvimento de pelos em sequência parecida com a da puber-


dade de homens cis: lábio superior, queixo, bochechas. Além do de-
senvolvimento de pelos corporais. Em doses supra fisiológicas do
hormônio, há possibilidade de alopecia androgênica.
_ Pelos corporais e faciais: início em 6 a 12 meses e efeito máximo
em 4 a 5 anos.
_ Alopecia androgênica: pode iniciar em 6 a 12 meses com tempo
de efeito máximo desconhecido.
Engrossamento da voz por crescimento orofaríngeo.
_ Início em 6 a 12 meses e efeito máximo em 1 a 2 anos.
Redistribuição da gordura corporal, com diminuição da subcutâ-
nea e aumento da abdominal. Pode haver aumento de massa ma-
gra de cerca de 4 kg com aumento de força muscular.
_ Redistribuição de gordura: início em 1 a 6 meses e efeito máxi-
mo em 2 a 5 anos.
_ Aumento de força muscular: início em 6 a 12 meses e efeito má-
ximo em 2 a 5 anos.
Cerca de 40% podem desenvolver aumento da oleosidade da pele e
acne.
_ Início em 1 a 6 meses e efeito máximo em 1 a 2 anos.
Aumento do clitóris em diferentes graus e atrofia vaginal.
_ Início em 1 a 6 meses e efeito máximo em 1 a 2 anos.
Cessação da menstruação.
_ Início em 1 a 6 meses. O diagnóstico de amenorreia é feito pelo
ginecologista.
Aumento da libido.
Diminuição do tecido glandular das mamas.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
541

Efeitos Adversos
Alguns efeitos adversos podem ser observados, apesar da seguran-
ça da terapia para a maioria dos pacientes. Dentre eles, há registros de
sangramento menstrual persistente, caso em que poderemos aumentar
a dose de testosterona, associar uma progestina oral ou associar um
agonista do GnRH.
Em relação à fertilidade, o uso de doses fisiológicas de hormônio li-
mita o potencial fértil do paciente e esse potencial pode ser revertido
com diminuição da dose ou interrupção da terapia. A conversa com o
paciente sobre coleta e congelamento de óvulos é importante. Apesar
do alto custo, essa é uma possibilidade de manter o potencial fértil mes-
mo com a terapia hormonal. Após cirurgias de retirada de gônadas a
infertilidade se torna permanente.

Cirurgia de Redesignação Sexual


A cirurgia de redesignação sexual é considerada a última etapa do
processo de transição de gênero. Os critérios para a cirurgia são os mes-
mos do início da terapia, acrescidos de um ano de terapia hormonal
associado à vivência social no gênero em que o paciente se identifi-
ca. Vale lembrar que para cirurgias de “reconstrução torácica”, como a
mastectomia, esse último critério não é necessário. A faloplastia é rea-
lizada apenas em alguns centros e, além de ainda não ser tão difundida,
possui morbidade relativamente alta.

4. Mulher transexual:

Para iniciar a terapia de afirmação de gênero, os mesmos critérios


utilizados para homens trans são válidos no caso de mulheres tran-
sexuais. Outra conformidade é meta de manter os níveis séricos hor-
monais, agora de estrogênios, semelhantes aos níveis observados em
mulheres cisgênero. Os objetivos da terapia giram em torno, por exem-
plo, de interromper o crescimento de pelos, induzir a formação de teci-
do mamário, além de redistribuição da gordura corporal para padrões
femininos. Ao contrário da terapia hormonal em homens trans, que
utiliza apenas um hormônio, nas mulheres trans fazemos uma terapia
combinada que tem como finalidade a administração de hormônio fe-
minilizante e neutralizadores dos efeitos da testosterona (bloqueadores
do eixo hipotálamo-hipófise-gônadas ou antiandrogênicos).
O estrogênio é utilizado como principal agente feminilizante e tam-
bém é capaz de suprimir a secreção endógena de androgênios. Embora
as formulações transdérmicas sejam associadas a um menor risco de
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
542

tromboembolismo venoso quando comparadas a comprimidos orais,


esses ainda são mais utilizados já que o risco não é suficiente para que
haja contraindicação ao uso. O 17-beta-estradiol é o estrógeno mais uti-
lizado e o uso do etinilestradiol é desencorajado pelo maior risco de
tromboembolismo. Antes do início da terapia, devemos avaliar os ris-
cos relativos e investigar história de câncer de mama na família, além
da história de tromboembolismo venoso, de doenças cardiovasculares
estabelecidas e de disfunção hepática. A avaliação é necessária por-
que nos pacientes com história familiar positiva o risco para essas
condições é aumentado, com aumento maior com a terapia hormonal.
Nesses casos, devemos individualizar o tratamento e as metas, além
do acompanhamento mais rigoroso destas pacientes. Apesar de dispo-
nível, desaconselhamos o uso de apresentações injetáveis, pelo risco
aumentado de trombose. A tabela 3 mostra as opções terapêuticas que
podem ser utilizadas. Há a possibilidade de associar progestágeno para
potencializar o efeito inibidor no eixo hipofisário-gonadal. Entretanto,
há aumento de risco desta associação com o estrogênio, sendo desa-
conselhada para a maioria das pacientes.
Agonistas do GnRH podem ser usados para inibir a secreção de go-
nadotrofinas e de testosterona ao inibir o eixo hipotalâmico, mas o im-
peditivo do seu uso se relaciona ao custo elevado. Por outro lado, com
esta classe há a possibilidade de necessitar menos doses de estrogê-
nios para o efeito antiandrogênico. Também utilizamos agentes antian-
drogênicos, como a espironolactona ou o acetato de ciproterona. Após
orquiectomia bilateral (retirada dos testículos), o uso de antiandrogêni-
cos passa a ser desnecessário. O uso de inibidores da 5-alfa-redutase (fi-
nasterida) não está indicado por falta de dados na população estudada.

Tabela 3: Fármacos utilizados na terapia hormonal da Mulher Trans.


Valerato de 17-beta-estradiol
Oral
2 a 4 mg/dia
Adesivo de estradiol
Transdérmico
0,025 a 0,2 mg por 24 horas, com trocas uma a duas vezes na semana
Estrogênios
Valerato de estradiol
5 a 30 mg IM a cada duas semanas
Parenteral
Cipionato de estradiol
2 a 10 mg semanalmente
Espironolactona
100 a 300 mg/dia via oral
Antiandrogênicos
Acetato de ciproterona
25 a 50 mg/dia via oral
Leuprolida
3,75 a 7,5 mg IM mensalmente OU 11,25 md IM a cada três meses
Agonistas do GnRH
Goserelina
Implante subcutâneo de 3,6 mg mensalmente
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
543

O acompanhamento da paciente deve ocorrer a cada três meses


no primeiro ano, com os ajustes de dose feitos conforme necessário,
e após isso, é necessário reavaliar uma a duas vezes no ano. Devemos
nos atentar às concentrações séricas de testosterona, que devem ser se-
melhantes à de mulheres cis, à dosagem de potássio nas pacientes que
usam espironolactona e à dosagem de estrógeno sérico que deve ser
menor que 200 pg/mL. Como há desenvolvimento de mamas, a pacien-
te deverá ser monitorada quanto ao surgimento de câncer, por meio de
mamografia, e as indicações são iguais às utilizadas para mulheres cis.
Da mesma forma, na presença de tecido prostático, o monitoramento
deverá ser realizado de forma semelhante ao que é feito para homens
cis. Enquanto o estrogênio continuar sendo administrado, não haverá
alteração na densidade óssea, logo, o rastreamento com exame de den-
sidade mineral óssea (DMO) só é feito a partir dos 65 anos ou em caso
de descontinuação do uso do estrogênio.

Não se sabe ao certo a dosagem de estrogênio que deve ser administrada


em mulheres trans em idade compatível com a menopausa na mulher cis e até
quando fazer esta reposição. Sugerimos as mesmas apresentações e dosagens
utilizadas na terapia de reposição hormonal no climatério. O que podemos fa-
zer é adequar a quantidade de hormônio sérico à essa etapa da vida, já que a
descontinuação da administração pode acarretar perda óssea e osteoporose.

Quais efeitos são esperados com a terapia hormonal na


mulher trans?

Nas mulheres trans, alguns efeitos da testosterona não conseguem


ser desfeitos, como por exemplo a ação sobre os ossos (tamanho e for-
mato) e a voz. Entretanto, diversas mudanças são alcançadas:
Diminuição do crescimento terminal de pelos (em alguns casos me-
didas estéticas, como a depilação, são necessárias para impulsionar
uma maior diminuição da quantidade de pelos no corpo.
_ Início em 6 a 12 meses e efeito máximo após 3 anos de terapia.
Aumento do tecido mamário, podendo ocorrer sensibilidade e des-
conforto durante o período de crescimento.
_ Início em 3 a 6 meses e efeito máximo em 2 a 3 anos.
Diminuição da oleosidade da pele, por redução na atividade das
glândulas sebáceas.
_ Início em 3 a 6 meses e tempo de efeito máximo desconhecido.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
544

Redistribuição de gordura, com aumento da subcutânea, e diminui-


ção global da massa muscular. Pode haver aumento de peso.
_ Redistribuição de gordura: início em 3 a 6 meses e feito máximo
em 2 a 3 anos.
_ Redução da força e massa muscular: início em 3 a 6 meses e efeito
máximo em 1 a 2 anos.
Atrofia testicular e prostática.
_ Início em 3 a 6 meses e efeito máximo em 2 a 3 anos.
Redução da libido, da função erétil e da produção de espermatozoides.
_ Redução da libido e diminuição de ereções espontâneas: início
em 1 a 3 meses e efeito máximo em 3 a 6 meses.
_ Disfunção sexual masculina: é variável de acordo com cada indi-
víduo e com a dose de estrógeno utilizada.
_ Diminuição da produção de espermatozoides: não se sabe bem
quando inicia, mas o efeito máximo ocorre após 3 anos de terapia.

Efeitos A dversos
Tromboembolismo venoso: estudos demonstraram um risco au-
mentado de desenvolvimento de tromboembolismo venoso (TEV) em
pacientes que faziam uso de etinilestradiol. Quando se comparou com
o uso de outras formulações de estrogênio, o risco existiu, mas houve
uma relação com outros fatores, como imobilização, tabagismo e dis-
túrbios da coagulação. Esse risco tende a aumentar com o tempo de
terapia. Além disso, há indicação de suspender a administração de es-
tradiol cerca de duas a quatro semanas antes de cirurgias de grande
porte, que requerem imobilização pós-operatória, com retorno da tera-
pia quatro semanas após o início da mobilização da paciente. O rastreio
para trombofilias não é recomendado, já que a incidência é parecida
com a da população geral, mas quando se diagnostica, devemos admi-
nistrar anticoagulantes caso a opção seja continuar o uso do hormônio.
O estrogênio pode causar elevações significativas de triglicerídeos
e deve ser evitado nos indivíduos com hipertrigliceridemia familiar. O
rastreio para essa condição deve ser feito antes do início da terapia e o
acompanhamento do perfil lipídico realizado em toda consulta.
Alguns relatos mostraram desenvolvimento de hiperprolactinemia,
principalmente em indivíduos que faziam uso de etinilestradiol e ace-
tato de ciproterona. Há uma sugestão de dosagem prolactina sérica.
Caso os valores encontrados estejam elevados e não diminuam com
a redução da dose de estrógeno, indica-se a realização de ressonância
magnética para excluir a possibilidade de prolactinoma.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
545

Cirurgia de Redesignação Sexual


A cirurgia de redesignação sexual é considerada uma opção no es-
tágio final do processo de transição de gênero. No caso de mulheres
transexuais, existem três tipos principais de cirurgias possíveis: femi-
nização facial, implantes mamários e reconstrução genital, com a or-
quiectomia e a vaginoplastia. O implante mamário é indicado quando
os seios atingem o estágio 3 de Tanner, o que já pode ocorrer com cerca
de 12 meses de terapia.

5. Cuidados preventivos da população trans:

Assim como a população geral, as pessoas transexuais necessitam


de cuidados preventivos e, por vezes, alguns cuidados especiais. Ao
longo das consultas, na medida que a relação médico-paciente é cons-
truída, devemos abordar e discutir assuntos como as intervenções hor-
monais e cirúrgicas que foram realizadas previamente sem assistência
médica, a história reprodutiva e sexual do indivíduo, a história psiquiá-
trica e possíveis distúrbios existentes (lembrando que em alguns casos,
devemos primeiro tratar tais distúrbios antes de iniciar a terapia hor-
monal), o histórico familiar de doenças e a história social do paciente,
buscando informações sobre rede de apoio e vulnerabilidades.
As indicações de rastreio nos pacientes que não passaram por tran-
sição hormonal ou cirúrgica serão as mesmas da população geral. En-
tretanto, algumas considerações são feitas para os pacientes que usam
hormônios. Estudos de longo prazo sobre o acompanhamento dessa
parcela da população são escassos, muito devido à baixa expectativa de
vida das pessoas trans que ainda é uma realidade. As recomendações
são feitas com base em estudos observacionais e opiniões de especia-
listas. Mesmo assim, devemos olhar para a saúde do paciente transexu-
al como um todo e não devemos nos limitar apenas à terapia hormonal
ou à indicação cirúrgica. Alguns estudos conseguiram determinar que
as causas mais comuns de morte entre indivíduos transexuais são o
suicídio, o uso abusivo de drogas, a síndrome da imunodeficiência ad-
quirida (SIDA), doenças cardiovasculares e neoplasias.

Doença cardiovascular: devemos avaliar e tratar os fatores de risco.


Vale lembrar que o uso de hormônio feminilizante pode aumentar o
risco cardiovascular em mulheres trans.
Tabagismo: a prevalência é maior que na população geral e medidas
de encorajamento para a cessação do hábito devem ser realizadas em
todas as consultas.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
546

Diabetes mellitus: mulheres trans podem ter um risco aumentado


devido à indução de resistência insulínica pelos efeitos do uso de es-
trogênio. Em relação a homens trans, os que tiveram o diagnóstico de
síndrome dos ovários policísticos devem ser triados. No mais, o rastre-
amento é semelhante à população geral.
Lipídios: a terapia hormonal com estrogênio pode levar à hipertrigli-
ceridemia, enquanto o uso de testosterona pode levar à níveis reduzidos
de HDL. Doses suprafisiológicas de hormônios podem aumentar esse
risco e o rastreio deve ser feito nas consultas de avaliação.
As calculadoras de risco para avaliar o início do tratamento para
dislipidemias não levam em consideração pacientes transexuais
em terapia hormonal. O podemos fazer é utilizar o sexo designado
ao nascer para os pacientes que iniciaram a transição mais tardia-
mente e o gênero com o qual a pessoa se identifica naqueles que
iniciaram uso hormonal na adolescência ou no início da vida adulta.

Osteoporose: a perda de densidade mineral óssea pode ocorrer após


gonadectomia sobretudo em pacientes tabagistas e com história fami-
liar de fraturas, por exemplo. A triagem é feita no paciente submetido à
gonadectomia e com histórico de, pelo menos, cinco anos sem reposi-
ção hormonal; naqueles com idade entre 50 e 64 anos e com fatores de
risco para osteoporose; e em todos os pacientes acima de 65 anos.
Os padrões dos exames devem ser comparados com aqueles espera-
dos para o gênero com o qual a pessoa se identifica.
Após a gonadectomia a reposição de hormônio do sexo de nasci-
mento deve ser realizada com os níveis séricos mantidos semelhan-
tes aos do gênero identificado.

Triagem de infecções sexualmente transmissíveis: as indicações


são as mesmas para pacientes cisgêneros, ou seja, devemos solicitar
sorologias anualmente.

Rastreamento de câncer:
Em mulheres transexuais o rastreamento para câncer de mama e de
câncer de próstata devem ser realizados periodicamente, em perío-
do semelhante a pessoas cisgênero, assim como a avaliação de risco
para tromboembolismo venoso.
Em homens trans as avaliações específicas se relacionam ao câncer
de mama e para câncer cervical, na presença dos mesmos.
UNIDADE 9. OUTROS TEMAS RELEVANTES
547

6. Tabela de resumo:

Quais os critérios diagnósticos para definir Incongruência persistente entre a identidade de gênero e
incongruência de gênero? o gênero designado ao nascer, na ausência de transtornos
mentais confundidores.
Quais os critérios utilizados para iniciar a Presença de incongruência de gênero persistente e
terapia hormonal? documentada, capacidade do paciente em tomar decisões
e resolução de questões médicas ou mentais.
Como é feita a terapia hormonal no homem Utilizando testosterona e repondo a níveis séricos
trans? fisiológicos.
Como é feita a terapia hormonal na mulher Utilizando estrógeno, repondo a níveis séricos fisiológico,
trans? associado ao uso de antiandrogênicos.
Quanto tempo demora para se obter os O tempo de início e de efeito máximo para os efeitos
efeitos físicos da terapia hormonal? esperados da terapia hormonal variam e dependem de
cada efeito.
Como é feito o acompanhamento do O intervalo entre as consultas é semelhante para homens
paciente transexual? e mulheres trans. No primeiro ano, as consultas são feitas
a cada 3 meses e a partir disso, a reavaliação do paciente
ocorre de uma a duas vezes por ano.

7. Leitura recomendada:

Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, et al. Endocrine Treatment of


Gender-Dysphoric/Gender-Incongruent Persons: An Endocrine Society Clinical
Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab 2017; 102:3869.

World Professional Association for Transgender Health. Standards of care for


gender identity disorders. http://wpath.org/publications_standards.cfm

Asscheman H, Giltay EJ, Megens JA, et al. A long-term follow-up study of


mortality in transsexuals receiving treatment with cross-sex hormones. Eur J
Endocrinol 2011; 164:635.

Wierckx K, Elaut E, Declercq E, et al. Prevalence of cardiovascular disease and


cancer during cross-sex hormone therapy in a large cohort of trans persons: a
case-control study. Eur J Endocrinol 2013; 169:471.

Olson J, Schrager SM, Clark LF, et al. Subcutaneous Testosterone: An Effective


Delivery Mechanism for Masculinizing Young Transgender Men. LGBT Health
2014; 1:165.
Autores

André Luiz Loeser Corazza


Acadêmico do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Ariel Parcianello Melo Vieira


Acadêmico do Curso de Medicina da Universidade Franciscana (UFN).

Bibiana Bauer Barcellos


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Católica de Pelotas (UCPel).

Bruna Luisa Franke


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Bruno Schmidt Dellaméa


Médico graduado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Residência
Médica em Clínica Médica e em Endocrinologia e Metabologia pelo Hospital Nossa
Senhora da Conceição (GHC). Doutor em Ciências Médicas: Endocrinologia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Curso de Medicina da
Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Cícero Toniolo
Acadêmico do Curso de Medicina da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Eduarda Ruch
Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Eduardo Bardou Yunes Filho


Médico graduado pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel), com Residência Médica
em Medicina Interna pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
(UFSCPA) e em Endocrinologia e Metabologia pela Hospital de Clínicas de Porto Alegre
(HCPA). Mestre em Endocrinologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Professor do Curso de Medicina da Universidade Católica de Pelotas (UCPel).

Eduardo Holshbach Cantarelli


Acadêmico do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Gabrielle Simon Tronco


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Graziela Risseti
Médica graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Residência Médica
em Medicina Interna e em Endocrinologia e Metabologia pela Universidade Federal de
Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFSCPA). Mestre em Patologia: Processo Saúde e Doença
pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFSCPA). Professora do
Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Guilherme Luis Figueiró


Médico graduado pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
Igor Reis Pereira
Acadêmico do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Isabela Batista dos Santos


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Iuri Martin Goemann


Médico graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com
Residência Médica em Medicina Interna e em Endocrinologia e Metabologia pelo
Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Doutor em Ciências Médicas: Endocrinologia
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Curso de Medicina
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Jéssica Nascimento Monte


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Kênia Cordeiro Silva


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Católica de Pelotas (UCPel)

Larissa Maria Faccin Blás


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Laura Nilsson Vincensi


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Leila Cristina Pedroso de Paula


Médica graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Residência
Médica em Medicina Interna e em Endocrinologia pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre
(HCPA). Mestre e Doutora em Ciências Médicas: Endocrinologia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Médica Endocrinologista e Preceptora dos Programas de
Residência Médica de Endocrinologia e Metabologia e Endocrinologia Pediátrica do
Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).

Leonardo Rodrigues
Acadêmico do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Luana Mendes de Oliveira


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Luísa Thomas Nascimento


Médica graduada pela Universidade Franciscana (UFN).

Luisa Trentini Zanferari


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Franciscana (UFN).

Marcelo da Silva Biavaschi


Médico graduado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Residência
Médica em Medicina Interna e em Endocrinologia e Metabologia pelo Hospital Nossa
Senhora da Conceição (GHC). Mestre em Ciências Biológicas: Bioquímica Toxicológica
pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professor do Departamento de Clínica
Médica da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Mariana Penteado Borges
Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

Maristela de Oliveira Beck


Médica graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Residência
Médica em Medicina Interna e em Endocrinologia e Metabologia pela Hospital de Clínicas
de Porto Alegre (HCPA). Mestre em Ciências Médicas e Doutora em Ciências Médicas:
Endocrinologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do
Departamento de Clínica Médica e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Milene Moehlecke
Médica graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com
Residência Médica em Medicina Interna e em Endocrinologia e Metabologia pelo
Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Doutora em Endocrinologia e Metabologia
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Curso de Medicina
da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).

Mizaéli da Silva Rodrigues


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Murilo Daminelli Favero


Acadêmico do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Nathaly Michaela Melo da Conceição


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Nina Guterres Ragagnin


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Franciscana (UFN).

Pietra Fischer Pascoal


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Rafael Fortes Locateli


Acadêmico do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Rafael Vaz Machry


Médico graduado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Residência
Médica em Medicina Interna e em Endocrinologia e Metabologia pelo Hospital de Clínicas
de Porto Alegre (HCPA). Doutor em Endocrinologia e Metabologia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Curso de Medicina da Universidade
Franciscana (UFN). Professor do Departamento de Clínica Médica e do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Rafaela Fenalti Salla


Médica graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Residência
Médica em Medicina Interna e em Endocrinologia e Metabologia pelo Hospital de Clínicas
de Porto Alegre (HCPA). Mestre em Ciências Médicas: Endocrinologia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Curso de Medicina da Universidade
Franciscana (UFN).
Rodolfo Martins Hernandes
Médico graduado pela Universidade Franciscana (UFN).

Samira Mohamad Bjaige Collins


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Tanize Louize Milbradt


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Tatiane de Campos
Médica graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Residência
Médica em Pediatria pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e em Endocrinologia
Pediátrica pelo Hospital Infantil Joana de Gusmão (HIJG). Mestre em Ciências Médicas:
Endocrinologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do
Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Thaís Gilioli
Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Thiane Barbieri Silva Coser


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).

Thizá Massaia Londero Gai


Médica graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Residência
Médica em Medicina Interna e em Endocrinologia e Metabologia pelo Hospital de Clínicas
de Porto Alegre (HCPA). Mestre em Ciências Médicas: Endocrinologia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Departamento de Clínica Médica da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Ticiana da Costa Rodrigues


Médica graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Residência
Médica em Medicina Interna e em Endocrinologia e Metabologia pelo Hospital de Clínicas
de Porto Alegre (HCPA). Mestre e Doutora em Ciências Médicas: Endocrinologia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-doutora em Diabetes Mellitus
tipo 1 pela Universidade do Colorado (UC/EUA). Professora do Departamento de Medicina
Interna da Faculdade de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Endocrinologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Verônica Hamann Aita


Médica graduada pela Universidade Franciscana (UFN).

Virgínia Nascimento Reinert


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Virgínia Vezzosi Fournier


Médica graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Yasmin Lima Santos


Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Este projeto recebeu apoio financeiro da Sociedade Brasileira de
Endocrinologia e Metabologia - RS e da Universidade Federal de Santa Maria
(Fundo de Incentivo ao Ensino - FIEn 2021).

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