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DANIELA PINHEIRO

REPÓRTERES NA RUA
EM BUSCA DA REALIDADE

ESPECIAIS PERFIS NAS RUAS TENDÊNCIA COLUNA

DANIELA PINHEIRO

REPORTAGEM

'A elite exige de Lula


posicionamentos irrelevantes',
diz ex-banqueiro

Paulo Dalla Nora Macedo, ex-banqueiro e empreendedor social


Imagem: Agência Garoa Lisboa/Divulgação

Daniela Pinheiro
Colunista do TAB
09/07/2022 04h01

Este texto é parte da versão online da


edição de sexta-feira (8) da newsletter
de Daniela Pinheiro. No conteúdo
completo, a colunista fala sobre o show
de Marisa Monte em Lisboa, a polêmica
da estátua 'A Foda dos Nus' na
imprensa portuguesa e mais. Você pode
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'Não queria que


meus !lhos
vivessem na
bolha no Brasil'

Em março passado, o
ex-banqueiro e Ela escreveu
empreendedor social diário para irmão
em coma por 15
Paulo Dalla Nora anos:
Macedo, 47, ‘Compartilhar a
vida’
despachou dois LER MATÉRIA

contêineres com toda


sua mobília, uma preciosa coleção de obras
de arte — que inclui 65 quadros de artistas
plásticos de renome nacional e internacional
—, toda biblioteca de clássicos e se mudou
com a mulher e os dois filhos para Lisboa.
Diferentemente da leva de brasileiros que
ruma para Portugal, ele não estava fugindo
da violência, nem da crise econômica,
também não era por conta da corrupção
endêmica no país ou porque estava
preparado para desfrutar a aposentadoria.
Sua questão foi o bolsonarismo. Ou melhor,
o que sobrará dele.

Para Dalla Nora, foi a impossibilidade de


continuar lidando com um jeito de ser, de
pensar, de agir, de um grupo de pessoas que
se identifica com o atual mandatário e que
deve manter o protagonismo mesmo com
Bolsonaro fora do governo. "Aquelas
pessoas que saíram do armário, na acepção
ruim da expressão, e se sentiram
autorizadas a expressar o racismo, a
misoginia, o preconceito, a desfaçatez e até
a falta de educação sem pudor, elas não vão
desaparecer do dia para a noite". Ele acha
que o Brasil piorou, e a elite — da qual
participa — tem sua responsabilidade.

Dalla Nora era herdeiro de uma empresa de


transportes e seguros no Nordeste,
comprada pela gigante Prosegur, e foi um
dos sócios do Banco Gerador, vendido em
2016. Desde então, passou a investir em
diferentes negócios, dedicar-se a causas
sociais e tentar elevar o debate político
nacional. É vice-presidente do Instituto
Política Viva, um grupo ativo nas discussões
e ações para mudar o rumo do país.
Também criou o Poder do Voto, que ajuda
cidadãos a acompanhar e entender votações
no Congresso. Em Lisboa, vai ser
restaurateur. Em breve, inaugura um bistrô
francês, cujas receitas levam ingredientes
brasileiros e que é decorado com obras de
artistas modernistas. Não será para todo
mundo: um prato de moqueca com dendê e
carabineiro (um tipo de camarão) vai custar
48 euros. Em uma hora de conversa, ele
contou por que os ricos ainda apoiam o
governo, como o bolsonarismo afetou sua
vida e mais. O depoimento foi condensado e
editado para melhor compreensão.

'Saí do Brasil por uma conjunção de


fatores motivados por um gatilho
específico. Primeiro, não queria mais
que meus filhos vivessem na bolha que
vivemos lá'

Em São Paulo, capital financeira, opções de


lazer privadas, tudo é fechado: é clube,
praia, escolas, academia. Queria que eles
tivessem um pouco o que eu tive no Recife
até os meus 20 anos: mais liberdade, mais
diversidade. Outro dia, fomos aqui na piscina
pública de Oeiras. Foi ótimo, mas vários
amigos meus ficaram chocados. Por que eu
fui para uma piscina pública? A elite não
conhece e não se interessa em conhecer o
Brasil. Sabem mais da ruazinha em Nova
York ou em Miami do que um entroncamento
no Pina. O cara entra no carro e vai para o
trabalho. Quando vai para a praia, vai de
helicóptero, chega lá e vive na bolha. O que
é aquele Epcot Center que se chama
Trancoso? Aquilo não é Nordeste, aquilo não
é o Brasil. Isso sempre me incomodou muito.
Uma vez em Recife, eu estava em um jantar
em torno de Jarbas Vasconcelos onde
estava também o vice-presidente do
Bradesco. De repente, ele sugeriu que se
acabassem com as escolas públicas e se
distribuíssem vouchers escolares para a
população. Assim, cada um poderia escolher
onde estudar. Ele não sabe que na maioria
das cidades só tem uma escola pública?

A segunda razão foi que eu também queria


ter uma experiência de vida mais longa no
exterior. E a terceira foi a piora no ambiente
no Brasil. O bolsonarismo é latente e não
está só no governo. Está espalhado por todo
canto. Hoje é impossível empreender no país
sem se relacionar com o bolsonarismo. É do
cara que vai ser seu fornecedor ao prestador
de serviços jurídico, administrativo,
financeiro. E é muito difícil lidar com essa
mentalidade. O bolsonarismo é a maneira
como esse grupo pensa estrategicamente,
como eles são, como eles tocam a vida
pessoal e os negócios. A maneira como
tratam as mulheres ou subalternos no elo
mais fraco da cadeia, a moral elástica, a falta
de empatia total pelo outro. Basta ver as
piadas que continuam fazendo. Claro que o
machismo, a falta de educação e respeito
sempre existiram no Brasil. Mas piorou
muito. Esse comportamento deplorável
aflorou. Quem tinha um pouquinho de pudor
e se continha não tem mais. Isso me
incomodava demais. Até porque o lado
profissional sempre transborda para o
pessoal nos negócios. Você acaba saindo
para almoçar, convive com a pessoa, não
tinha como evitar.

Durante a pandemia, ficou mais visível.


Discutia muito com essas pessoas. Saí de
três e fui expulso de outros três grupos de
WhatsApp de empresários, prestadores de
serviços, investidores. As conversas, a lógica
como encaravam uma questão humanitária
de saúde pública, como é a pandemia, os
argumentos de por que iam manter os
negócios abertos quando o mundo inteiro
pregava o confinamento, era tudo absurdo.
Invisto em alguns negócios, como uma
empresa que fabrica película solares para
vidros e outra de softwares para o sistema
financeiro. Conversava com muita gente. A
maioria absoluta dizia que não ia obedecer
confinamento, que ia manter seus negócios
abertos porque só ia morrer pobre e velho e
"então foda-se". Ouvi isso inúmeras vezes.
Um deles até disse: "Se eu pegar, eu vou
para o Einstein [referindo-se ao Albert
Einstein, instituição de excelência no país] e
então foda-se". Você começa a pensar: eu
quero fazer negócio com gente assim? Se eu
faço, eu não estou colaborando com esse
pensamento? Eu não quis mais.

Tenho uma filha de 10 anos com paralisia


cerebral. E eu também percebi como o
ambiente piorou para ela nos últimos dois
anos. Na escola, mas principalmente no
clube. O incômodo das pessoas com a
presença dela, uma postura clara para
explicitar que ela não pertencia àquele
grupo, que a presença dela causava
desconforto nas outras crianças e,
obviamente, nos pais. Isso não era assim,
mudou muito rapidamente. E se piorou no
meu nível, imagina para as pessoas que têm
muito menos do que eu.

Persio Arida (ex-presidente do BNDES e do


Banco Central no governo FHC) disse que
os ricos ainda apoiam Bolsonaro por medo
de retaliações econômicas, como uma dura
da Receita Federal, algo assim. Eu não acho
que seja só isso. Existe um
compartilhamento de valores de grande
parte da elite com o bolsonarismo. Apoiam
Bolsonaro porque compartilham e
compactuam com valores que ele prega. Eu
estava naquele almoço no BTG Pactual, que
reuniu Bolsonaro, Paulo Guedes, com o
crème de la crème da elite financeira ainda
na campanha de 2018. Sabe quando ele foi
mais aplaudido? Não foi quando ele falou de
economia, de finanças. Foi quando ele fez
"arminha" com a mão. Saiu aplaudido de pé.
Isso não tem nada a ver com bolsa, com
câmbio, com medo da Receita Federal, não
é?

Há também uma reação frente à perda de


poder social da elite brasileira. Não posso
mais dar uns tapas na minha mulher, não
posso não pagar minha empregada, tenho
que conviver com um bando de gays, o que
está acontecendo aqui? Veja o caso do ex-
presidente da Caixa Econômica, o Pedro
Guimarães, o caso do Robinho, ambos com
denúncias graves de assédio sexual. Vai
falar com esse pessoal e ver o que eles
acham disso de verdade. Para eles, aquilo é
um monte de mulher interesseira atrás de
dinheiro. Não existe sequer a reflexão de
que estavam cometendo um crime, fazendo
algo absurdo. Essa gente quer viver como
seus avós. E o engraçado é que essa revolta
é de um bando de homem branco de 60
anos que está se sentindo oprimido,
coitadinhos, não é? Uma vez, ouvi de um
conhecido desses de quem perdi a amizade
que "o bolsonarismo é libertador". Isso
explica tudo. É como se fosse possível voltar
a falar e agir como trogloditas impunemente.

Tudo isso para dizer que o gatilho que me


fez sair do Brasil foi o ambiente para a minha
filha. É um incômodo muito forte. Eu sou
economista, não sou sociólogo, antropólogo,
mas sabe-se que vai levar anos para
sairmos desse retrocesso civilizatório pelo
qual estamos passando no Brasil. Põe aí dez
anos, no mínimo. Meus filhos são pequenos,
e não queria que eles vivessem esse clima
nos anos mais importantes de formação.
Minha grande frustração é ver pessoas bem-
intencionadas e inteligentes que não
perceberam o tamanho do buraco em que
nos metemos e como vai ser difícil sair dele.
Exigem de Lula posicionamentos
absolutamente secundários, terciários até,
para o momento em que vivemos. Ficam
repetindo: "Ah, o Lula tem que ter uma
agenda mais ampla", "Ah, o Lula tem que ser
menos à esquerda", "Ah, e a economia
digital, a ESG, as criptomoedas, a
responsabilidade fiscal" e, claro, "Ah, a
terceira via!". Que terceira via? Que
economia digital nessa hora? É como se
você estivesse com um paciente na UTI com
a aorta estourada, está saindo sangue pela
boca e pelo nariz, e o médico sugere que ele
se trate com alimentação saudável da horta!

Percebam: estamos no fundo do poço da


merda. Parem com essa baboseira, com
essas prioridades equivocadas. Não adianta
ficar cobrando o impossível. E mais: Lula
não é Emmanuel Macron (presidente da
França). Não vai ser ele quem vai guiar o
país para a economia digital. A elite cobra
dele uma coisa que ele não sabe e não está
capacitado para fazer. É preciso salvar o
paciente primeiro. Isso é que é fundamental.
É preciso sair desse buraco civilizatório e
normalizar um pouco as instituições. Depois,
vê-se o resto.

Eu nunca votei no Lula, será a primeira vez.


O mercado financeiro ganhou dinheiro
demais no governo dele, nem compara com
o que ganha hoje com Bolsonaro. Tenho
dificuldade de entender qual é o ponto de
parte da elite ao dizer que Lula e Bolsonaro
são iguais. Por isso, acho que essa briga se
dá toda no campo da simbologia. É o que
Lula é, é o que Bolsonaro é, o que eles
defendem e o que eles representam. Não
tem nada a ver com a economia. Eu não
deixei de acreditar no Brasil. Por isso, estou
abrindo um restaurante 100% brasileiro, com
arte brasileira, que vai valorizar a cultura
brasileira, que vai mostrar o Brasil bom, não
o que machuca. Outro dia me perguntaram
se vou receber bolsonaristas no restaurante.
Bom, não é o dono que escolhe os clientes,
mas assim como é difícil encontrar
bolsonaristas em livrarias, imagino que será
raro tê-los aqui.

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