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Poesia

Poemas (sic).
Marçal Aquino

Hotel Postais do paraíso

As paredes são brancas, Na minha cidade aprende-se o esquecimento,


o lustre tem indícios de moscas entre outras coisas.
e o guarda-roupa manchas da pintura recente. Ninguém lá precisa de ajuda
A luz que entra pela janela tendo uma esquina.
faz com que a sombra da cama Maria Lúcia, se não tivesse morrido,
toque meus sapatos tristes. diria que, em algumas ruas,
é possível ouvir o inverno chegando
O regulamento na porta e que ser triste, portanto,
diz que é proibido fazer barulho não é nada original.
depois das dez,
o que significa que neste momento Os faróis da avenida zelam estrábicos
eu poderia urrar sem problemas. num plantão irremediável.
O grego deve estar no bar
A moça de cabelos curtos, enquanto em seu velho carro
sardas nos ombros e seios pequenos André procura companhia para suas olheiras.
tira o vestido, deita-se na cama Essa a mobília da noite.
e abre as pernas Meu pai, ao acordar de repente,
como quem faz poemas. sorriria com seu jeito calmo
Não, como quem os esquece. sabendo que não há mesmo nada a fazer.

O tempo passa mais devagar


nos aquários e nos hospícios
e nunca empregamos a mão que sobra livre, insone,
nem mesmo quando amamos.

Pavana Na minha cidade aprende-se o esquecimento,


embora ninguém perceba.
Ainda hoje os velhos na janela prosseguem espiando
as unhas e os escândalos
O homem que nunca à cata de algum sinal particular de Deus.
fazia as coisas pela metade
e sua gripe A nossa infância de sombras
(a segunda do ano, ainda em abril) não teve testemunhas:
e a mulher os adultos sempre estiveram ocupados
que tinha melancólicas as mãos e as fotos dos domingos são viagens inúteis.
e delicados os cabelos Os nossos fantasmas nunca aparecem nos cartões-postais.
juntam-se
agora que a cidade se pacifica de seu ruído Na impossibilidade de colecionar ruídos,
a este resto oblíquo de sol faço a mala com palavras invertebradas.
que cai Usar a escada de incêndio
no azul esquecimento da tarde. ainda é minha única especialidade.
Roteiro para bilhete
de suicida

Citar Maiakóvski, Nava, Torquato, Pavese,


Crane, o velho Ernie
e mesmo tia Elvira, pianista e solteirona,
denotaria um certo cuidado
Salmo
e até algum preparo,
o que não é o caso.

Dizer que a cidade está cinza, O certo é que prezamos a destruição.


as árvores tristes Qualquer coisa chegando ao fim, eis o que nos interessa.
e o cabelo caindo Fotografamos ruínas e colecionamos imagens de casas enfermas,
pareceria um descuido. desenganadas pelo tempo,
Alinhavar amarguras e apreciamos o turismo por vilarejos decadentes,
cheiraria a revanche. prestes a sumir do mapa.
Simular alegria A imagem do velho edifício implodido
soaria falso nos mantém cativos diante da TV.
(se bem que nunca tem ar de impostor O que move a ferrugem não é mistério para nós:
quem empunha a corda na manhã). conhecemos essa fome – e a respeitamos.
A árvore doente do passeio público nos interessa
Não se acertam contas num bilhete, mais do que as crianças desaparecidas.
ainda que fosse prático para a família Comovidos, chegamos a abraçar a velha figueira ameaçada,
informar as senhas do banco. pretextando solidariedade. 74
Mas não somos solidários, não se engane.
Descabidos, portanto, Apenas queremos estar por perto na hora final. 75
a menção a uma ex-namorada,
um afago para um amigo sumido, O certo é que apreciamos a destruição.
a última ofensa ao síndico. Casais nos falam de crises, da reta final, da beira do precipício.
Ouvimos interessados os pormenores da autópsia conjugal,
Talvez dizer queremos saber em que momento
que o difícil em não ser feliz as vísceras do encanto deixaram de cumprir seu papel,
é que a gente acaba se acostumando. queremos conhecer tudo que fez do desejo
azinhavre, mancha agônica, bolor.
Existe desamparo maior do que
num velho carro entregue ao pó junto ao meio-fio?
O disco riscado e o livro que perdeu folhas e palavras
são nossos entes queridos.
O amigo que faz aniversário recebe nossos cumprimentos,
pois deu um passo à frente, rumo ao fim.
Vamos a velórios de parentes e conhecidos
com um olho vermelho de consolo, outro verde de curiosidade:
quem visitaremos inerte da próxima vez?
Amamos o corroído (pontes, trens, viadutos),
o que está prestes a se perder.
Respeitamos o desgastado, o roto,
o que se esfarelou, majestoso.
E esperamos.
Porque algo foi posto em marcha,
está a caminho.

Estes poemas integram o livro Abismo: Modo de Usar, que o autor, por questão
de bom senso e em respeito aos poetas que admira, decidiu manter inédito até hoje.

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