Você está na página 1de 1

O Ano da Morte de Ricardo Reis

“Lê Ricardo Reis os jornais e acaba por impor a si mesmo o dever de preocupar-se um
pouco. A Europa ferve, acaso transbordará (…). Ricardo Reis deve ter sido o último
habitante de Lisboa a saber que se dera um golpe militar em Espanha. Ainda com os
olhos pesados de sono, foi à escada buscar o jornal (…). Levantamento do exército de
terra espanhol, quando este título lhe bateu nos olhos Ricardo Reis sentiu uma
vertigem, talvez mais exatamente uma impressão de descolamento interior (…). O
exército espanhol, guardião das virtudes da raça e da tradição, ia falar com a voz das
suas armas, expulsaria os vendilhões do templo, restauraria o altar da pátria, restituiria
à Espanha a imorredoura grandeza que alguns seus degenerados filhos haviam feito
decair. (…) Por hoje, o jornal deu quanto sabia de notícias. Amanhã talvez diga que o
movimento abortou, que os revoltosos foram dominados, que a paz reina em toda a
Espanha. Ricardo Reis não sabe se isto lhe causaria alívio ou pesar. Quando sai para
o almoço vai atento aos rostos e às palavras, há algum nervosismo no ar, mas é um
nervosismo que se vigia a si mesmo, nem de mais nem de menos, talvez ainda por
serem poucas as notícias (…) o silêncio é de oiro e o calado é o melhor. (…) A
regeneração da Europa caminha a passos de gigante, primeiro foi a Itália, depois
Portugal, a seguir a Alemanha, agora a Espanha, esta é a boa terra, esta a semente
melhor, amanhã ceifaremos as messes. (…) Badajoz rendeu-se. Estimulado pelo
entusiástico telegrama dos antigos legionários portugueses, o Tércio obrou
maravilhas, tanto no combate à distância como na luta corpo a corpo, tendo sido
particularmente assinalada, e levada à ordem, a valentia dos legionários portugueses
da nova geração, quiseram mostrar-se dignos dos seus maiores (…). Chegou a hora
do ajuste de contas, e a praça de touros abriu as portas para receber os milicianos
prisioneiros, depois fechou-se, é a fiesta, as metralhadoras entoam olé, olé, olé, nunca
tão alto se gritou na praça de Badajoz, os minotauros vestidos de ganga caem uns
sobre os outros, misturando os sangues, transfundindo as veias, quando já não restar
um só de pé irão os matadores liquidar, a tiros de pistola, os que apenas ficaram
feridos, e se algum veio a escapar desta misericórdia foi para ser enterrado vivo. De
tais acontecimentos não soube Ricardo Reis senão o que lhe disseram os seus jornais
portugueses, um deles, ainda assim, ilustrou notícia com uma fotografia da praça,
onde se viam, espalhados, alguns corpos, e uma carroça que ali parecia incongruente,
não se chegava a saber se era carroça de levar ou de trazer, se nela tinham sido
transportados os touros ou os minotauros. O resto soube-o Ricardo Reis por Lídia, que
o soubera pelo irmão, que o soubera não se sabe por quem, talvez um recado que
veio do futuro, quando enfim todas as coisas poderem saber-se. (…) Foram mortos
dois mil (…).”

Bernardo Lamas, 11º2

Você também pode gostar