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Educação
Leituras e
Interpretações
Avercamp
E I) I I O R A
2006
São Paulo
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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Capa:
ERJ Composição Editoral e Artes Gráficas Ltda.
Composição:
ERJ Composição Editoral e Artes Gráficas Ltda.
S662
Inclui bibliografia
ISBN 85-89311-36-8
Apresentação................................................................................................................11
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8 Sociologia e Eduçáo — Leituras e Interpretações
Este livro pretende convidar o leitor a um campo de reflexão que tem muito a
contribuir para a compreensão do homem contemporâneo, a partir do pensa
mento de autores que já se tomaram clássicos na área das ciências humanas.
Indiscutivelmente, a Educação pode ser um meio privilegiado de eman
cipação — o que indica a sua importância no processo de transformação da
sociedade e dos indivíduos — e um instrumento que capacita o homem a
determinar o seu presente e preparar o seu futuro.
Permitir a reflexão sobre essas possibilidades, mediante as perspectivas
criadas pelas aproximações entre Sociologia e Educação, é o objetivo desse
livro. Busca-se, assim, compreender como se estruturam as nossas condu
tas no complexo contexto social para que o leitor possa desenvolver uma
postura crítica que se traduza em ações autônomas na vida social e no
campo da educação.
Para a Sociologia, nada há que seja natural neste mundo de individuos,
nada que não seja uma construção coletiva, nenhuma idéia que se sustente
solta no ar, sem que se possa associá-la ao nosso tempo ou ao modo como
fabricamos nosso destino.
Portanto, a Educação pode e deve ser um tema da Sociologia, pois edu
car é um instrumento de conservação e de mudança da sociedade, e ainda
que as preocupações de Comte, Durkheim, Marx, Weber, Elias, Adorno,
Bourdieu e Foucault não estejam voltadas exclusivamente para a Educação,
elas permitem extrair novas perspectivas para a prática pedagógica.
As leituras e interpretações aqui apresentadas abordam questões perti
nentes ao cenário atual da Educação, não com a ambição de responder todas
as questões, e sim para caracterizar uma introdução que, revestida de uma
conotação didática, possibilite fazer o ir e vir entre o conceituai e o cotidiano,
entre os exemplos e a teoria, entre as polêmicas e o consenso.
Como é característica de textos introdutórios, os atores se preocupa
ram em apresentá-los de forma sintética, estruturados de forma, ao mesmo
tempo, geral e simples, evitando, no entanto, superficialidades.
Acreditamos que os diferentes autores aqui reunidos mostraram de que
modo as idéias de nossos clássicos podem contribuir para a compreensão
12 Sociologia e Eduçáo - Leituras e Interpretações
1.1 Introdução
Qual de todas as filosofias vai ficar? Não sei.
Mas a Filosofia, espero, há de permanecer sempre.
Schiller
O século XIX foi um terreno fértil para a formação de uma nova ciência, que
objetivava explicar as dinâmicas das sociedades humanas contemporâneas,
chamada Sociologia.
A herança social, política, econômica e cultural que a sociedade oci
dental recebeu a partir das transformações da Revolução Científica (com o
racionalismo cartesiano e o empirismo baconiano), do Iluminismo, do avan
ço das Ciências Naturais e as revoluções políticas e econômicas ocorridas
na França e na Inglaterra nos séculos XVII, XVIII e XIX, preparou o ambien
te de perplexidade, insatisfação e desejo de intervenção na realidade que
nutrirá o desenvolvimento de várias correntes do pensamento político e ci
entífico do período.
Para contextualizarmos o significado de tais transformações, podemos
explicá-las uma a uma, começando pela concepção sobre o que é o conheci
mento (Cf. ABBAGNANO, 1982, p. 308-311 e 788-789):
13
14 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
1 Embora seja bastante clara a influência das idéias de Saint-Simon sobre o pensamento de Comte,
a ruptura entre os dois se deu por dois motivos: o primeiro foi uma questão sobre direitos
autorais, pois, em 1824, ambos publicaram um conjunto de ensaios chamado Catechisme des
industrieis, que teve somente cem cópias impressas em nome de Comte e mil impressas em
nome de Saint-Simon; e o segundo se relaciona com o desprezo inicial de Comte ao paradigma
religioso no projeto de Saint-Simon, embora, posteriormente, o Positivismo comtiano tenha
radicalizado essa mesma perspectiva.
Cap. 1 Auguste Comte, o Positivismo e a Educação 17
2 Embora não fosse dele o conceito de Sociologia ou da sua área de estudo, Comte ampliou seu
campo e sistematizou seu conteúdo. Dividiu a Sociologia em dois campos principais: Estática
Social, ou o estudo das forças que mantêm unida a sociedade; e Dinâmica Social, ou o estudo d
causas das mudanças sociais.
18 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
Exercícios
1. Alguns críticos da obra de Auguste Comte afirmam que ele começou a
estruturação de uma filosofia e completou a criação de uma religião. A
partir dessa perspectiva:
a) Por que esses críticos fazem essa afirmativa?
b) Na sua opinião, que diferenças podemos apontar entre uma filosofia
e uma religião?
2. Sobre as idéias e os conceitos propostos por Auguste Comte, explique:
a) a Lei dos Três Estágios;
b) a classificação hierárquica das ciências;
c) o papel da educação para o Positivismo.
24 Sociologia e Educação — Leituras e Interpretações
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. La Doctrine de Véducation universelle dans la
philosophie d'Auguste Comte. Paris: Presses Universitaires de France, 1957.
AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo; Brasília: Melhora
mentos; INL, 1976.
BARROS, Roque Spencer Maciel de. Positivismo e Educação. In: Ensaios so
bre Educação. São Paulo: EDUSP; Grijalbo, 1971. p. 129-150.
BOUDON, Raymond; BOURRICAUD, François. Dicionário crítico de Sociolo
gia. São Paulo: Ática, 1993.
COMTE, Auguste. Col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Cap. 1 Auguste Comte, o Positivismo e a Educação 25
Leituras recomendadas
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
G1ANNOTTI, José Arthur. Comte: vida e obra. In: COMTE. Col. Os pensado
res. São Paulo: Abril, 1983. p. V-XVI.
Um texto curto e panorâmico sobre o pensador francês, abordando tanto a
sua trajetória pessoal quanto sua produção intelectual.
LINS, Ivan. História do positivismo no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacio
nal, 1967.
Um livro clássico, longo e denso sobre o tema, que aborda a penetração e o
impacto do positivismo no Brasil, tanto como doutrina filosófica quanto como
projeto religioso.
26 Sociologia e Educação — Leituras e Interpretações
2.1 Introdução
O presente capítulo tem o objetivo de apresentar sucintamente o método
científico de Émile Durkheim e suas implicações no estudo da educação.
Salientamos que o período (final do século XVIII) em que o autor se dedicou
a este estudo apresentava características diferenciadas do atual, sendo im
portante destacar que a teoria deve ser atualizada. Este também é um item a
ser abordado por esse texto, enfatizando as condições que a sociedade da
informação nos traz no ambiente educacional, sob o ponto de vista da moral.
Para tanto, passaremos pelos conceitos de fato social, solidariedade me
cânica e solidariedade orgânica, para, em seguida, contextualizarmos a forma
como Durkheim analisava a educação, sem desvinculá-la da necessidade de
regulação social emergente na sociedade da época.
[...] o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de
uma mesma sociedade [que] forma um sistema determinado que tem sua vida
própria; [...] Sem dúvida, ela não tem por substrato um órgão único; é, por defini
ção, difusa em toda extensão da sociedade (DURKHEIM, 1995).
[...] na visão durkheimiana, as sociedades têm necessidades sociais que sâo materia
lizadas na consciência coletiva. Contudo, se pode perceber, em diferentes circuns
tâncias históricas, que o aparecimento de novas necessidades sociais entra em desa
cordo com o que se materializou nas consciências coletivas e nas instituições sociais.
Ou seja, no dinamismo do processo social se pode verificar a existência de desajustes
entre normas e costumes instituídos e necessidades emergentes. Estas últimas estão
vinculadas ao progresso social (TURA, 2001, p. 46).
2.6 Conclusão
A partir do enfoque durkheimiano, podemos entender a escola como uma das
instituições primordiais para o desenvolvimento de uma consciência coletiva,
necessária para o estabelecimento do equilíbrio social. Diante de tantas per
turbações sociais oriundas dos setores econômicos e políticos, presenciadas
nacional e mundialmente, entendemos que a escola, no momento, não alcança
uma estabilidade, e sim reproduz a multiplicidade de conhecimentos, as dife
renciações sociais de classe, os avanços tecnológicos, a profissionalização ne
cessária para a industrialização e, conseqüentemente, toda a moral constituinte
dessa diversidade (BOURDIEU; PASSERON, 1992).
O período é de oscilações, inclusive, pelo fato de a sociedade de infor
mação propiciar mudanças rápidas, tanto de técnicas quanto de representa
ções. Um trabalho por nós desenvolvido sobre as representações sociais dos
alunos sobre a escola aponta para uma nova ordem que a escola está desven
dando, mas que ainda não está apta a responder, pois apenas se posiciona de
forma a atualizar seus equipamentos, pela posse do computador ou da
internet, mas ainda não desenvolve, em seus alunos, a interatividade que
estas novas tecnologias propiciam fora da escola (ATISANO, 2001).
Segundo Durkheim, a escola deveria preparar os jovens, por meio dos
preceitos básicos, para a convivência na sociedade. Hoje, ela apresenta-se
com esse intuito, porém, formando-os não para a interpretação e a análise
crítica sobre a nova realidade, e sim como instrumentos laboriosos para a
nova tecnologia. Principalmente quando nos referimos à escola pública, que
atende, em nossa realidade brasileira, a uma parcela considerável da popula
ção, mas que, ainda, não possui todo o equipamento quantitativo e qualita
tivamente necessário para a preparação desse novo agente social.
Uma nova ordem social sendo implantada no mundo, a globalização é
um processo extensivo a todas as nações, e a escola não tem como fugir
disso. Ela tem sua participação preparatória para a inserção dos indivíduos
nesse contexto, entretanto, é preciso salientar a constante necessidade dos
profissionais da educação (professores, pedagogos, psicólogos, sociólogos
3t> Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
Exercícios
1. Argumente sobre o interesse de Émile Durkheim pela educação, con
forme o contexto histórico que ele vivenciava.
2. Explique o que é fato social, utilizando a educação como exemplo.
3. Defina os conceitos de Solidariedade Mecânica e Solidariedade Orgânica.
4. Na sua opinião, qual é a aplicabilidade da teoria educacional de Durkheim
nos dias atuais?
Referências
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
ATISANO, Regiane Ap. Escola.com.br — A representação social das tecno
logias na realidade escolar. 2001. Dissertação (Mestrado) — Universidade
Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, julho 2001.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A reprodução. Elementos para
uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1.
DE MASI, Domenico. A sociedade pós-industrial. São Paulo: Senac, 2000.
DURKHEIM, Émile. A divisão do trabalho social. Lisboa: Presença, 1977.
_____ • Educação e Sociologia. 11. ed. São Paulo: Melhoramentos; MEC, 1978.
-------- As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LIBÃNEO, José Carlos. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências
educacionais e profissão docente. São Paulo: Cortez, 2000.
Cap. 2 A Educaçáo sob o enfoque de Émile Durkheim 37
SOUZA, João Valdir Alves de. Uma leitura da educação à luz das teorias
sociológicas de Émile Durkheim, Max Weber e Talcott Parsons: um ensaio
de interpretação. Educação em revista, Belo Horizonte, Faculdade de Educa
ção da UFMG, n. 20 a 25, 1994.
TURA, Maria de Lourdes Rangel. Durkheim e a Educação. In:_________ (Org.).
Sociologia para educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2001.
3
Contribuições do Materialismo
Histórico para a Educação
Wilton Carlos Lima da Silva e
Alonso Bezerra de Carvalho
3.1 Introdução
O século XX foi denominado, por Eric Hobsbawm (1997), como a era dos
extremos, em que mudanças radicais e rápidas ocorreram no mundo, levan
do à construção de novas perspectivas no processo de organização social e
de formação humana. Nesse contexto, uma das correntes de pensamento
que influenciou a vida de pessoas, nações, instituições etc. foi o materialis
mo histórico, ou o marxismo, formulado por Karl Marx e Friedrich Engels, no
século anterior.
Karl Marx (1818-1883), com Friedrich Engels (1820-1895), estruturou
os conceitos que fundamentaram o socialismo científico, doutrina política
chamada de comunismo ou marxismo. Entre suas obras, destacam-se: O
Manifesto do Partido Comunista (1848), Para a crítica da economia política
(1859), O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852) e O Capital (o primeiro
volume foi publicado em 1867, contendo os conceitos básicos do marxis
mo, como a teoria do valor, a da mais-valia ou excedente do trabalho e a da
acumulação do capital; os outros dois volumes só foram publicados após
sua morte).
40 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
O simples fato de que cada geração posterior encontre forças produtivas adquiridas
pela geração precedente, que lhe servem de matéria-prima para a nova produção,
cria na história dos homens uma conexão, cria uma história da humanidade, que é
tanto mais a história da humanidade porque as forças produtivas dos homens e, por
conseguinte, suas relações sociais adquiriram maior desenvolvimento (MARX, Karl.
Carta a Annenkov. In: QU1NTANEIRO, 1999, p. 67-68).
Gramsci concorda com Marx que a classe que detém o poder material tam
bém detém o poder ideológico ou das idéias, criando mecanismos para man
ter uma hegemonia do Estado e da sociedade civil.
Hegemonia pode ser entendida como o exercício do domínio das cons
ciências e da reprodução das ideologias, que, na sociedade capitalista, for
mam o consentimento das classes subalternas à dominação burguesa. Para
superar essa hegemonia, seria necessário desenvolver uma contra-hegemonia,
em que a classe trabalhadora promoveria a criação e o desenvolvimento de
uma nova cultura, tanto no que se refere aos valores e normas quanto à visão
de homem e de mundo.
Esta contra-hegemonia ou a hegemonia proletária, na opinião de Gramsci,
deve se originar da constatação de que todos os homens são “filósofos” quando
refletem sobre sua situação e expressam sua concepção de mundo (por meio
da linguagem, do senso comum, da religião, do folclore etc.). A cultura popu
lar (filosofia espontânea) e o materialismo dialético (filosofia crítica) devem
se aproximar mediante a ação de indivíduos comprometidos com a mudan
ça social (os chamados “intelectuais orgânicos”), organizados politicamente
(em uma rede de instituições sociopolíticas).
Ampliando o enfoque de Lênin, que privilegia a ação transformadora do
Partido, Gramsci propõe uma ação em diferentes níveis: o Conselho de Fá
brica (grupo nascido da autoconsciência dos próprios trabalhadores, no
interior de cada aparelho produtivo); o Sindicato (associação voluntária que
coordena as diversas forças produtivas); e o Partido (associação voluntária
que atua como intelectual coletivo). Assim como Lênin, Gramsci acredita
que o Partido tem a tarefa de dar à consciência de classe o nível da totalida
de, e, da mesma forma que Lukács, defende a união da espontaneidade das
massas com a direção consciente. Porém, ao contrário de Lênin, que só iden
tifica o Partido como gerador cultural e ideológico, e de Lukács, que vincula
a idéia de ideologia (“visão de mundo” e “consciência de classe”) aos crité
rios de falsidade ou veracidade, Gramsci defende a existência de múltiplos
geradores culturais e ideológicos e define a ideologia pela sua eficiência po
lítica (ideologias orgânicas ou não-orgânicas).
Pela necessidade de uma ação política que se aproxime das classes tra
balhadoras, reconhecendo a importância dos “intelectuais orgânicos”, é que
se afirma a importância da escola como campo de disputa ideológica e ins
trumento de manutenção ou transformação hegemônica. Dessa forma, o
processo educacional deixa de ser analisado como a-histórico, para ser rela
cionado à sociedade capitalista, permitindo o surgimento de questões fun
damentais para o trabalho do educador: que relação existe entre o sistema
Cap. 3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação 49
pria forma de existência. Desse modo, para Marx, não há uma essência ou
natureza humana geral, pois o ser do homem é historicamente determinado
pelas relações com os outros homens e com a natureza, e essas relações
condicionam o indivíduo, a sua pessoa, o que, por sua vez, condiciona o
exterior, as relações sociais. Enfim, o indivíduo humano é um ser social.
O que se destaca do pensamento marxista é a defesa de que a História é
feita por seres humanos que se acham sempre em determinadas condições
materiais de vida, e o único elemento determinante da História é a estrutura
econômica da sociedade.
Os próprios homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua
produtividade material, produzem também os princípios, as idéias, as categorias,
de acordo com as suas relações sociais. Assim estas idéias [inclusive as idéias edu
cacionais] , estas categorias, são tão eternas como as relações que exprimem. São
produtos históricos e transitórios. Existe um movimento contínuo de acréscimo
nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação das idéias; de
imutável, não existe senão a abstração do movimento, mors immortalis (MARX. In:
ABBAGNANO, 1970, p. 55-56).
O que queremos é suprimir o caráter miserável desta apropriação que faz com que
o operário só viva para aumentar o capital e só viva na medida em que o exigem os
interesses da classe dominante (MARX, 1984, p. 28).
A esperança de Marx por uma nova sociedade não pode ser construída
sem a presença da ação educativa. No Manifesto, ele deixa claro que a educa
ção deve ser levada em consideração no momento de se elaborar qualquer
projeto de superação das relações sociais burguesas. É preciso, segundo ele,
arrancá-la da influência da classe dominante, do modo burguês de ver o
mundo, se não quisermos que as crianças sejam transformadas “em simples
objetos de comércio, em simples instrumentos de trabalho” (MARX, 1984,
p. 32). Entre as medidas a serem implementadas para que um novo tipo de
educação seja desenvolvido, é preciso uma “educação pública e gratuita de
todas as crianças”. Pensando a educação como parte de sua utopia revolucio
nária, Marx identificou nela uma arma valiosa a ser empregada em favor da
emancipação do ser humano, de sua libertação da exploração e do jugo do
capital — a construção da sociedade comunista.
Cap. 3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação ba
Exercícios
1. Como podemos definir:
a) Modo de produção.
b) Alienação.
c) Dialética.
2. Assista aos filmes:
2.1. Tempos Modernos, obra-prima de Charles Chaplin, na qual ele faz
forte crítica ao processo de industrialização, mostrando a selva-
geria do capitalismo. Procure identificar quais conceitos do pen
samento marxista se manifestam. Por quê?
2.2. Reds, com Warren Beatty, Jack Nicholson, Gene Hackman e Diane
Keaton, que trata da vida do jornalista John Reed durante a Revo
lução Russa de 1917. Identifique quais as questões políticas do
marxismo que são abordadas.
3. De que modo a ideologia se manifesta na escola?
4. Tema para discussão: “A partir das reflexões de Lênin, Lukács e Gramsci
sobre a importância da direção política e cultural no processo de liber
tação da classe operária da exploração capitalista, qual o papel da escola
na sociedade atual?”.
5. Leia os textos abaixo e explique por que Marx afirma que não são as
idéias humanas que movem a História, e sim as condições históricas
que produzem as idéias, inclusive as educacionais:
A doutrina materialista sobre a mudança das contingências e da educação se
esquece de que tais contingências são mudadas pelos homens e que o próprio
educador deve ser educado (MARX, 1987, p. 161).
Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determina
das, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas
que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas
forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais deter
minadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o
processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência (MARX, 1987, p. 29-30).
6. Para Marx, a educação pode ser considerada uma arma valiosa a favor
da emancipação do ser humano. O que você pensa a respeito dessa
posição marxista?
OH Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
Referências
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ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. São Paulo: Graal Editora,
2001.
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
GRAMSC1, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civi
lização Brasileira, 1987.
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
LÊNIN, V. I. Que fazer? In:________. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega,
1979. v. 1, p. 79-214.
LUKACS, Georg. Sobre o conceito de consciência de classe. Porto: Publicações
Escorpião, 1973.
_____ . História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. In: FROMM, Erich. Con
ceito marxista do homem. 7. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 89-102. (Pri
meiro manuscrito: Trabalho alienado).
_____ . O marxismo: balanço provisório. In:__________ . Formações econômicas
pré-capitalistas. São Paulo: Paz e Terra, 1982. cap. I.
_____ , O método da economia política (Contribuição à crítica da economia
política). In: FERNANDES, Florestan (Org.). MarxEngels: história. São Paulo:
Ática, 1983. p. 409-417.
_____ . Manifesto comunista. São Paulo: Ched Editorial, 1984.
_____ . O Capital, livro 1, cap. 1 (“A mercadoria”). In: Ianni, Octavio (Ed.).
Karl Marx: Sociologia. São Paulo: Ática, 1987. p. 159-172.
_____ . Manuscritos econômicos-filosóficos e outros textos escolhidos. São Pau
lo: Nova Cultural, 1987/1988. v. I e II.
_____ . Manifesto do partido comunista. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
______ . ENGELS, F. A Ideologia alemã. 3. ed. Lisboa; São Paulo: Editorial
Presença; Martins Fontes, 1975. p. 7-98.
._____ • A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1976.
QUINTANEIRO, T. et al. Um toque de clássicos: Durkheim, Marx e Weber.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.
Cap. 3 Contribuições do Materialismo histórico para a tducaçao 03
Bibliografia complementar
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Ed. Pre
sença, 1980.
CHAUÍ, M. 0 que é ideologia? São Paulo: Brasiliense, 1980.
COHN, Gabriel (Org.). Sociologia: para ler os clássicos. Rio de Janeiro: LTC, 1977.
4.1 Introdução
É possível formular uma concepção pedagógica weberiana? Não se pode ter
uma resposta rápida e conclusiva. Penso que a sociologia de Weber traz ques
tões importantíssimas do ponto de vista filosófico, antropológico e para a psico
logia. Neste trabalho, o meu objetivo será relacioná-las à educação. É verda
de que não pretendo tratá-las como objeto específico do campo pedagógico,
tornando Weber mais um pensador da educação. Os temas weberianos que
apresentarei, creio eu, fornecem elementos para rediscutirmos o significado
que a educação teve e ainda tem num mundo que foi desencantado.
De início, tentemos imaginar como, geralmente, é o cotidiano de uma
sala de aula: os alunos sentam-se enfileirados, vestidos uniformemente,
obrigados a se comportarem também uniformemente — com uma postura
ereta, silenciosos e atentos aos ensinamentos —, proporcionando condi
ções para absorverem os conhecimentos de uma outra pessoa, que se julga
detentora do conhecimento — ao menos da área previamente proposta
pela instituição. Tais alunos, geralmente tratados como iguais, são coloca
dos numa condição de aprendizagem dos mesmos conteúdos, na mesma
ao Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
* Schluchter afirma que Weber, além de historiador e diagnosticador das condições modernas, é
também um terapeuta — analisa como devemos reagir a essas condições (Cf. SCHLUCHTER,
1990, p. 230-233).
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 61
fins institucionais, que são, agora, independentes dos fins individuais. A li
berdade, no sentido weberiano, é expulsa do espaço público. Há uma racio
nalização técnica da conduta da vida humana, que obedece a regras passí
veis de serem generalizadas segundo padrões de eficiência. Estas “patologias
da modernidade”, que exigem uma terapia, podem ser superadas com a ação
pedagógica? A conduta de professores e alunos numa instituição, do ponto
de vista das relações humanas e profissionais, pode preparar o terreno para
“[suportarmos] o destino de nossa época?”.
A terapia weberiana para as patologias da modernidade surge da possi
bilidade de o homem, como especialista com espírito, no seu dia-a-dia den
tro das instituições, utilizar, contra a lógica disciplinadora institucional, a
lógica de uma condução da vida racionalizadora, por meio dos mandamen
tos da renúncia e das conseqüências dos próprios atos, de acordo com a
escolha valorativa que determina seu comportamento individual. Para Weber,
apenas a idéia de vocação, desprovida do seu conteúdo religioso, poderia
propiciar essa racionalização rigorosa da vida subjetiva, de modo a se con
trapor à racionalidade objetiva.
No caso do especialista com espírito, a salvação das rotinas assume o
lugar da salvação eterna. O componente emocional, porque subjetivo, conti
nua presente, como nas religiões éticas. E agora ele está acrescido do frio
conhecimento da realidade, que propicia clareza e responsabilidade, como
também do dado ético individualista, que confere autenticidade e autono
mia às escolhas existenciais. Portanto, uma outra ação pedagógica poderia
ser pensada, sim. Nela, os professores e alunos não seriam concebidos e
nem agiriam como meios na realização de uma pedagogia que forma especia
listas, sobretudo porque
[...] se aplica tanto à adoração de Romeu por Julieta quanto à raiva de Othelo no
assassinato de Desdêmona. Tanto Romeu quanto Othelo são retirados para fora de si
por emoções poderosas de arrebatamento e raiva que provocam expressões apaixo
nadas e frenéticas [...]. Como o deus Dioniso, o carisma “representa a própria força
viva encarnada, o ímpeto da seiva na árvore e o do sangue nas veias [...] Revoluciona
os homens a partir de dentro”, liberando os elementos emocionais e instintivos pre
viamente reprimidos pela existência cotidiana (DOWJR., 1978, p. 84).
Todavia, Weber não defende uma conduta que seja integralmente extá
tica, como as Mênades estraçalhando Penteu, em As bacantes, de Eurípedes.
Ao invés de uma selvageria caótica, uma ação controlada e apaixonada, como
encontramos no texto A política como vocação. Permanecer para além do
alcance da dominação burocrática significa ampliar a conduta individual dife
renciada, sem, no entanto, abrir mão da responsabilidade. É possível aven
turar-se sem desconhecer as regras. Se, a algum tipo de homem, é dada a
chance de colocar a mão na roda da História, este homem deve ter as quali
dades carismáticas e a disciplina — instrumento da racionalização. Do meu
ponto de vista, creio ser possível pensar numa ação educativa que contribua
para que esse tipo de conduta humana possa se concretizar.
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 67
Para Weber, então, nem a completa repressão nem a completa liberação representa
um comportamento “maduro” ou “genuinamente humano” [...] O homem “genui
no” representa uma síntese do carisma e do ascetismo!...], sua alma está “livre”
para se expressar apaixonadamente em defesa de uma ética da responsabilidade
[...]. [Weber, portanto,] não quer sancionar totalmente o irracional como uma
solução (DOWJR., 1978, p. 87).
Weber foi professor, cientista e tentou ser político. Tinha alguma esperan
ça na “superação” de uma existência que prendia o homem a uma couraça,
impossibilitando, assim, a manifestação de sua liberdade. Almejou construir
um pensamento que compreendesse as condições modernas naquilo que elas
têm de específico em comparação a outras épocas e concluiu que nós vive
mos num mundo que perdeu os seus valores transcendentais. Não haveria,
na modernidade, um sistema de valores universais que justificasse as ações
humanas. Estaríamos diante apenas dos nossos próprios valores, que cada
um cria para orientar a sua conduta.
Weber desconfia das profecias científicas ou filosóficas que postulam
um progressivo melhoramento da humanidade, seja em direção a uma socie
dade harmoniosa e solidária, como quer Durkheim, seja justa, fraterna e
socialista, como pensa Marx, ou perfeita, como acredita Kant. Se encontramos,
neles, a tranqüila crença em um progresso inevitável, em uma autonomização,
engrandecimento e sofisticação contínuos do espírito individual, em Weber,
o mundo ocidental moderno, em especial o mundo europeu-americano, com
o seu processo racional-burocrático, resultado do desencantamento do mun
do, deixou aos homens, como conseqüência não desejada do protestantismo
ascético, uma irracionalidade ética. O politeísmo de valores é o sinal de
nossos tempos. Diante dessa situação, não há mais uma teoria ética,
metafisicamente constituída, que sustente qualquer escolha feita pelos ho
mens. E não há ciência nem qualquer ação educativa que possa ajudar a
resolver esse problema.
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 69
[... ] onde um homem chega à convicção fundamental de que è preciso que mandem
nele, ele se toma “crente”; inversamente, seria pensável um prazer e força da auto-
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 73
Exercícios
1. Segundo a sociologia weberiana, a modernidade é marcada por um proces
so de racionalização do mundo. Como você justificaria essa afirmativa?
2. O desencantamento do mundo significa que os valores supremos e su
blimes foram banidos da vida pública. Como você interpreta essa acepção
weberiana?
3. No texto A ciência como vocação, levando em conta a opinião dos jovens
americanos, Weber considera que o professor deve se comportar como
um verdureiro, isto é, ele vende as verduras e cada um faça delas o que
bem entender, e não como um treinador de futebol que, como um líder,
“vende” regras válidas para a conduta na vida dos seus alunos. Qual a
sua opinião sobre essa posição descrita por ele?
4. Você considera possível o equilíbrio entre a burocracia/apolíneo e o
carisma/dionisíaco, conforme desenvolvido no texto? Como podemos
trabalhar essa posição na sala de aula?
5. Comente a seguinte afirmação de Max Weber, contida no texto O senti
do da neutralidade axiológica nas ciências sociais e econômicas:
Referências
CARVALHO, A. B.; BRANDÃO, C. F Introdução à sociologia da cultura: Max
Weber e Norbert Elias. São Paulo: Avercamp, 2005.
WEBER, Marianne. Weber: uma biografia. Niterói: Casa Jorge Editorial, 2003.
Bibliografia complementar
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
BARRENECHEA, Miguel A.; FEITOSA, Charles (Org.). Assim falou Nietzsche II:
memória, tragédia e cultura. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
COHN, Gabriel (Org.). Sociologia: para ler os clássicos. Rio de Janeiro: LTC,
1977.
______. Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber. São
Paulo: T. A. Queiroz, 1979.
______ . (Org.). Weber. São Paulo: Ática, 1982.
______ . (Org.). Max Weber e o projeto da modernidade: um debate com
Dieter Henrich, Claus Offe e Wolfgang Schluchter. Lua Nova, São Paulo, n.
22, dez. 1990.
COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max Weber e a História. São Paulo: Brasiliense,
1995.
DIEHL, Astor Antônio. Max Weber e a história. Passo Fundo: UPF, 2004.
A discussão que realizaremos nesse trabalho tem seu foco direcionado para a
sociologia figuracional, elaborada nas primeiras décadas do século XX, pelo
sociólogo alemão Norbert Elias. Nosso objetivo é discutir especificamente essa
teoria sociológica, suas influências teóricas e suas relações com outros impor
tantes conceitos desenvolvidos por Elias no conjunto de seus trabalhos, desta
cando seu papel na elaboração da teoria dos processos de civilização, conside
rada, por muitos autores, a sua principal contribuição teórico-metodológica.
textos humano e social. Os tradutores das obras de Elias admitem que o ter
mo “configuração” é o menos utilizado (Cf. ELIAS, 1997, p. 30, nota de rodapé
n. 1), assim, e coerentes com o raciocínio de Elias, só o utilizaremos quando
for o caso de citação literal. O conceito de interdependência, por sua vez, é
considerado, pelo próprio Elias, fundamental para o correto entendimento de
sua teoria dos processos de civilização (Cf. ELIAS, 1994b, p. 141).
O conceito de figuração deve ser entendido como o resultado “do en
trelaçamento de incontáveis interesses e intenções individuais”, tenham eles
direções convergentes ou divergentes, cujo resultado é “algo que não foi
planejado nem foi intenção de qualquer um desses indivíduos, mas emergiu
a despeito de suas intenções e ações” (ELIAS, 1993, p. 140). As figurações
podem até estar em constante modificação, porém, “a forma que a configu
ração toma não será determinada por planos deliberados ou pelas intenções
de alguns de seus membros, nem por grupo deles, nem mesmo por todos
eles em conjunto” (ELIAS, 1980, p. 180).
O conceito de interdependência é inerente ao de figuração, na medida
em que se constitui um dos elementos presentes nas relações sociais que,
vistas em seu conjunto, são o que Elias chama de figuração. As relações de
interdependência entre os atores sociais são explicitadas pelo conjunto de
relações que os atores tecem entre si, formando diferentes grupos sociais,
cada qual com sua dinâmica específica (Cf. ELIAS, 1995a, p. 177).
Por outro lado, a concepção histórica, defendida por Elias na elaboração
de seus trabalhos, não tem uma direção definida a priori, o que a tornaria
prédeterminada e inexorável. Em momento algum, Elias dá às suas teorias
um caráter determinista, invalidando, assim, a possibilidade de elas conferirem
um sentido para a História. A utilização, como método de análise histórica,
de uma perspectiva de longa duração, é fundamental em seu trabalho, pois
ele defende que as transformações sociais significativas somente ocorrem
após longos períodos de tempo.
Mas de onde provêm tais conceitos?
5 Segundo Richard, o nível das universidades alemãs, durante a República de Weimar, “era bastan
te alto”. Além de Alfred Weber, professor de economia política, a Universidade de Heidelberg
contava com docentes como Friedrich Gundolf (literatura alemã) e Karl Jaspers (filosofia). A
Universidade de Frankfurt tinha Karl Mannheim, um professor de sociologia “renotnado”.
Albert Einstein e Edmund Husserl pertenciam aos quadros da Universidade de Berlim (RICHARD,
1988, p. 186).
6 Richard afirma que as universidades de Heidelberg e Frankfurt “tinham a reputação de univer
sidades liberais”, enquanto a Universidade de Berlim era dominada pela “direita mais conservadora”
(RICHARD, 1988, p. 181).
80 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
8 Sobre a influência teórica de Mannheim sobre Elias, ver também MALERBA, 1996, p. 75;
MENNELL, 1997, p. 357-361 e WAIZBORT, 1997, p. 14.
82 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
aumento no nível de controle da natureza pelo homem — eles não são pla
nejados nem intencionais (ELIAS, 1980, p. 30-31).
O conceito de figuração — por ser central no desenvolvimento da teoria
dos processos de civilização — deve, segundo Elias, ser entendido sob três
aspectos complementares. Primeiro, que os seres humanos são interdepen
dentes e somente podem ser compreendidos como tais, já que suas vidas se
desenvolvem dentro de determinadas figurações sociais, sendo significativa
mente modelados (shaped) por elas, as quais são construídas por eles e entre
eles. Segundo, que essas figurações estão continuamente em fluxo, sofrendo
trocas de diferentes ordens, algumas rápidas e efêmeras, outras lentas, porém
mais profundas. Terceiro, que esses processos de trocas contínuas, ocorri
dos nas figurações, têm dinâmicas próprias, das quais os motivos e as inten
ções individuais fazem parte, porém as dinâmicas das figurações não podem
ser reduzidas a esses motivos e intenções isoladas (Cf. GOUDSBLOM;
MENNELL, 1998, p. 130-131).9
No limite, é possível afirmar que, para Elias, a maior expressão do con
ceito de figuração pode ser encontrada olhando-se para a própria sociedade,
tendo-se claro que, dentro dessa figuração maior (o conjunto de todas as
relações sociais que formam uma sociedade), encontramos uma série de
outras figurações menores (relações sociais entre grupos, classes etc.).
Mannheim, por sua vez, na obra Ideologia e utopia: uma introdução à socio
logia do conhecimento, não discute especificamente o conceito de figurações
interdependentes. No entanto, quando reflete sobre a questão do pensamento
no âmbito da Sociologia do Conhecimento, Mannheim não só o admite como
faz uso desse conceito, já que afirma que a “vida inteira de um grupo histórico-
social apresenta-se como uma configuração interdependente”, e que “o pensa
mento é apenas sua expressão”, sendo que “a interação entre estes dois aspec
tos da vida [pensamento e atitudes] é o elemento essencial na configuração,
10 Explicitando ainda mais a influência teórica de Mannheim sobre o pensamento de Elias, Lepenies
afirma que foi Elias quem acentuou “ainda mais uma determinada direção da sociologia do
conhecimento [proposta por Mannheim], ao designá-la como uma revolução intelectual que
não julgava o mistério do homem criativo maior do que o do homem em geral” (LEPENIES,
1996, p. 317, colchetes de nossa autoria).
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 85
globe longos períodos da história das sociedades (ELIAS, 1994a, p. 17, aspas
e itálicos no original).
A defesa desse método de pesquisa, que privilegia a análise histórica de
longa duração, é retomada por Elias no livro Introdução à sociologia, ao afirmar
que algumas transformações sociais só acontecem — quando acontecem —
após um “desenvolvimento que abarque várias gerações” (ELIAS, 1980, p. 21).
Na apresentação do primeiro volume d’0 processo civilizador, para a
edição brasileira, Renato Janine Ribeiro critica o fato de, segundo ele, Elias
apontar um sentido para a História, afirmando que ele se utiliza do método
que os historiadores franceses definem como “história das mentalidades”,
pois propõe, como medida mais adequada para o estudo da História, a aná
lise dos fenómenos dentro da perspectiva da longa duração, que, no caso
dos processos de civilização, Elias denomina de “curva de civilização”.
Para Ribeiro, apesar de Elias afirmar que essa “curva de civilização”
não é a única possível, nem necessária para o homem, ele a vê como defini
tiva, e que terminará por “mundializar-se”. O que Ribeiro questiona é a vali
dade de apresentar um sentido para a História, já que, em sua opinião, por
mais precário que esse sentido seja, ele acaba por se apoderar da consciên
cia do historiador, o qual não se liberta mais do sentido inicialmente apontado.
Dessa maneira, Ribeiro deixa implícito que o processo de civilização de Elias
seria dotado de um certo determinismo histórico e social, uma direção
inexorável (Cf. RIBEIRO. In: ELIAS, 1994a, p. 11-12).
Notamos, porém, que objeções dessa natureza também estão presentes
em recentes debates entre historiadores sobre a mesma questão. No mesmo
sentido das observações de Ribeiro, temos, por exemplo, Robert Darnton
que, ao escrever um artigo jornalístico sobre a busca da felicidade, com base
na análise da obra Cândido, de Voltaire, afirma que a visão histórica utilizada
por Voltaire “lhe empresta direção, propósito e poder — algo de semelhante
ao ‘processo civilizador’ de Norbert Elias” (DARNTON, 1996, p. 5, aspas no
original). Em oposição a essa idéia, há, por exemplo, Peter Burke, que, em
outro artigo de jornal, sobre o hábito de se tomar banho, faz a seguinte
afirmação: “Não é possível escrever uma história linear simples sobre o pro
gresso da higiene, tal como não se pode fazê-lo com o progresso da civilização
(como pensam os críticos de Norbert Elias)” (BURKE, 1996, p. 3, parênteses
no original).
Ao discutir sua teoria sociológica, no livro Introdução à Sociologia, além
de salientar os conceitos de interdependências e de figurações, considera
mos que Elias responde, de maneira explícita, à questão de um possível sen
tido da história, posto a priori, ao afirmar que é
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 87
11 Nas páginas introdutórias de seu livro, A história cultural, Roger Chartier ratifica essas nossas
afirmações (Cf. CHARTIER, 1990, p. 25).
12 Ao enxergar a história das sociedades humanas como um processo de longo prazo, constante
mente sujeito a retrocessos, Elias aproxima-se, nesse ponto, da concepção de História advinda do
marxismo (Cf. ELIAS, 1996, p. 173 e 1994b, p. 132). Friedrich Engels afirma que foi Karl Marx
quem descobriu que o processo histórico é resultado dos conflitos — e, portanto, um processo
sujeito a retrocessos — entre as classes sociais (Cf. ENGELS. In: MARX, 1988, p. 6-7). Para
Marx, é o “modo de produção da vida material” que “condiciona o processo em geral de vida
social, política e espiritual”, condicionando, conseqüentemente, o processo histórico (MARX,
1987, p. 29-30). Elias, em sua autobiografia, também explicita as diferenças do seu pensamento
em relação ao marxismo (Cf. ELIAS, 1996, p. 189-192 e 1994c, p. 144-147).
Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
Jamais se pode dizer com absoluta certeza que os membros de uma sociedade são
civilizados. Mas, com base em pesquisas sistemáticas, calcadas em evidência
demonstrável, cabe dizer com alto grau de certeza que alguns grupos de pessoas
tomaram-se mais civilizados, sem necessariamente implicar que é melhor ou pior,
ou tem valor positivo ou negativo, tomar-se mais civilizado (ELIAS, 1994a, p. 221,
itálicos no original).
Exercícios
1. Com qual corrente da Sociologia que Norbert Elias está, implicitamen
te, discutindo, no Apêndice “Introdução à Edição de 1968”, do livro:
ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. 2.ed. Trad.
Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994b. v. 1.
2. Explique, com suas palavras, o que você entendeu do conceito de socio
logia figuracional, tomando por base o presente texto e, como biblio
grafia complementar, o seguinte artigo: PONTES, H. Elias, renovador
da ciência social. In: WAIZBORT, L. Dossiê Norbert Elias. São Paulo:
Edusp, 1999. p. 17-35.
3. Qual a idéia que Norbert Elias expressa sobre o conceito de racionali
zação, fundamentando-se no presente texto e, como bibliografia com
plementar, no seguinte artigo: COLLIOT-THÉLÈNE, C. O conceito de
racionalização: de Max Weber a Norbert Elias. In: GARRIGOU, A.;
LACROIX, B. (Org.). Norbert Elias: a política e a história. São Paulo:
Perspectiva, 2001. p. 23-42.
4. Na sua opinião, qual é a atualidade da sociologia figuracional proposta
por Norbert Elias?
5. Na sua opinião, quais são as possibilidades de aplicação da teoria eliasiana
de figurações sociais para o entendimento da Educação moderna?
Referências
BURKE, P Os sacrifícios da impureza. Folha de S.Paulo, 10 nov. 1996b. Ca
derno Mais!, p. 3.
______ . O processo civilizador: uma história dos costumes. 2. ed. Trad. Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994a. v. 1.
_______. Reflections on a life. Trad. Edmund Jephcott. Cambridge; Oxford:
Polity Press; Blackwell Publishers, 1994b.
______ . A sociedade de corte. 2. ed. Trad. Ana Maria Alves. Lisboa: Editorial
Estampa, 1995a. (Col. Nova Historia, 19).
_______. Mozart, sociologia de um gênio. Trad. Sérgio Goes de Paula. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995b.
_______. Über sich selbest. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1996.
_______. Envolvimento e distanciamento: estudos sobre sociologia do conhe
cimento. Trad. Maria Luisa Cabaços Meliço. Lisboa: Dom Quixote, 1997.
LEPENIES, W. As três culturas. Trad. Maria Clara Cescato. São Paulo: Edusp,
1996. (Col. Ponta 13).
MALERBA, J. Sobre Norbert Elias. In: ___________ (Org.). A velha História: teo
ria, método e historiografia. Campinas: Papirus, 1996. p. 73-91.
Arthur Giannotti e Walter Rehfeld. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Col.
Os pensadores).
MENNELL, S. Norbert Elias: an introduction. Oxford: Blackwell Publishers, 1997.
MICELI, S. Chave para ouvir Mozart. Folha de S.Paulo, 1 maio 1995. Jornal
de Resenhas, p. 4.
RICHARD, L. A República de Weimar: 1919-1933. Trad. Jônatas Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras; Círculo do Livro, 1988. (Col. A vida cotidiana).
Leituras recomendadas
BRANDÃO, C. E A teoria dos processos de civilização de Norbert Elias: o con
trole das emoções no contexto da psicogênese e da sociogênese. 2000. Tese
(Doutorado) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília, 2000.
Trabalho que analisa o conjunto da obra de Elias, centrando foco na discussão
sobre a importância do conceito de controle das emoções no contexto das
idéias eliasianas de psicogênese e sociogênese dos processos de civilização.
6.1 Introdução
Theodor Adorno, no ensaio Teoria da Semiformação (2003),13 escrito em 1959,
constatava que a burguesia, quando conquistou o poder nos países euro
peus, estava mais desenvolvida culturalmente do que os senhores feudais e
que sua formação foi um dos fatores fundamentais para sua afirmação como
classe hegemônica e para o desempenho de tarefas econômicas e adminis
trativas. Por outro lado, o proletariado inicial, oriundo de camponeses sem
propriedade, de pequenos comerciantes e artesãos, mergulhado em prolon
gadas jornadas de trabalho e em precárias condições de vida, não teve tem
po e nem condições para se dedicar às coisas do espírito, para se formar
culturalmente. Diz o frankfurtiano: “a desumanização implantada pelo pro
cesso capitalista de produção negou aos trabalhadores todos os pressupos
tos para a formação e, acima de tudo, o ócio” (ADORNO, 2003, p. 6).
13 Theorie der Halbbildung foi traduzido inicialmente, por Newton Ramos de Oliveira, Bruno Pucci
e Claúdia Barcelos de Moura Abreu, por Teoria da Semicultura e publicado na revista Educação
e Sociedade (1986). Em 2003, Newton Ramos de Oliveira e membros do Grupo de Estudos e
Pesquisa “Teoria Crítica e Educação”, da UFSCar, elaboraram uma revisão completa da tradução
anterior, com o título Teoria da Semiformação, que está ainda inédita.
98 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
mente, a mensagem de que a vida humana, qualquer que seja ela, é conco-
mitantemente um affaire perigoso e agradável, passível sempre de um final
feliz, desde que se possa, nesse trajeto, dominar, com maior segurança, im
pulsos irracionais e estar de acordo com a existência reproduzida.
A arte séria, bem como a filosofia antiga, são frutos da cisão entre inte
lectuais e trabalhadores manuais. Para que uns poucos pudessem realizar
expressões imortais da alta cultura ou usufruir esteticamente da essência
purificadora das obras-primas, era preciso que a maioria dos mortais traba
lhasse duro, gerando alimento, calor, segurança. Hoje, a arte degenerada
industrial — ao mesmo tempo em que o usufruto de suas produções se en
contra cada vez mais à disposição de todos os clientes — leva ao extremo a
contradição entre produtores e consumidores de cultura: estes últimos não
têm necessidade de elaborar a mais simples cogitação, a equipe de produção
pensa o tempo todo por eles. Enquanto a arte séria, expressão estética de
um sofrimento sublimado, assume contradições reais, aponta dissonâncias
de seu tempo e, como promesse de bonheur, mesmo vivendo na era da troca,
antecipa um mundo não mais regido pelo mercado, a obra aligeirada indus
trial extirpa, de sua forma estética, os elementos críticos presentes na cultu
ra, explicita a todo momento seu caráter afirmativo e glorifica perenemente
o sempre dado (Cf. ROUANET, 1998, p. 118-119). A televisão, o rádio, o
cinema e as mais “diferentes” revistas das milhares de bancas espalhadas
pela pólis entoam, festivas, sempre ao mesmo tempo e sintonizadamente, o
repetido refrão: eis a realidade como é, como deve ser e como será. O que é
salutar é o que se repete, como os processos cíclicos da natureza e da indús
tria. As modelos desnudadas nas revistas eternamente sorriem para os
passantes agitados do dia-a-dia; a toda hora ecoa, nos milhares e diversifica
dos aparelhos de som, a música de sucesso do momento (Cf. HORKHEIMER;
ADORNO, 1986, p. 124 e seguintes). Se um dos resultados benfazejos da
catarse estética era gerar, em seus participantes, a purgação espiritual para
que pudessem aguçar os elementos de resistência e de confronto à realidade
adversa, na arte sem sonho destinada ao consumo, o que se processa é uma
catarse às avessas: sua pseudopoética leva os participantes à identificação
integral com o todo, à fusão impessoal com o real.
As obras de arte são ascéticas e sem pudor; a indústria cultural é por
nográfica e puritana, afirmaram os pensadores frankfurtianos na Dialética do
Esclarecimento (HORKHEIMER; ADORNO, 1986, p. 131). São ascéticas, as
obras de arte, enquanto desafiam seus criadores e recriadores a se elevarem
(ascenderem) por meio de exercícios efetivos de recolhimento e interpreta
ção, além dos aspectos imediatos e grosseiros do artefato, em busca da ple-
Cap. 6 O riso e o trágico da indústria cultural 101
nitude de seu sentido, nunca dado, nunca esgotado. E, nesse ensaio de eleva
ção, enlevação, ascetismo, elas desenvolvem, em seus admiradores, a sensibi
lidade crítica, a dimensão ética, a expressão estética. As obras de arte são
também sem pudor, porque, enquanto apresentam a realidade ultrajada, com
suas vestes rompidas, desnudam sua intimidade e revogam a humilhação de
sua paixão. O olhar nu, que lhe gera tristeza pelo conhecimento das mazelas
da vida, desperta-lhe prazer pela perspectiva de uma promessa de mudança,
mesmo que ainda não realizada.
A indústria cultural, por sua vez, é pornográfica e puritana. Ao mesmo
tempo que explora o lado luxurioso dos indivíduos e das circunstâncias,
expondo repetida e explicitamente o objeto do desejo, banalizando-o, nega-
o, astutamente, a seus consumidores; expõe de maneira ostensiva as cenas de
sexo, excitando, assim, o prazer preliminar nos espectadores, porém os deixa
frustrados pela não realização desse mesmo prazer (Cf. TÜRCKE, apud DUARTE;
FIGUEIREDO, 1999, p. 55-80). A indústria cultural não eleva asceticamente
seus freqüentadores, não sublima suas pulsões, e, no fundo, toma-se rigorosa
na aplicação da moral sexual, pois a desordem e a orgia são prejudiciais ao
próprio sistema, perturbam o trabalho e a produção. O indivíduo, no interior
de si mesmo e de seus recintos reservados, tem todo o direito de explorar sua
performance sexual, com imagens, aparências, objetos fabricados e consumi
dos ad hoc. Mas ter acesso àquela bela mulher que se lhe oferece em todo
momento nas revistas, nas telas, no recinto privativo da Internet, isso é coisa
para a imaginação, não para as circunstâncias do dia-a-dia.
Se, na idéia de “formação”, ressoam momentos de finalidade que deve
riam levar os indivíduos a se afirmarem como racionais numa sociedade
racional e como seres livres em uma sociedade livre, na realidade da “semi-
formação”, desenvolvida com a pronta e integral ajuda da indústria cultural,
incorpora-se a onipresença do espírito alienado, e tudo fica aprisionado nas
malhas da socialização. “Por inúmeros canais se oferecem, às massas, bens
de formação cultural. Neutralizados e petrificados, no entanto, ajudam a
manter no devido lugar aqueles para os quais nada existe de muito elevado
ou caro” (ADORNO, 2003, p. 5 e 8).
[...] nas orgias dionisíacas dos Gregos uma significação superior, a de ser festas da
redenção liberadora do homem e dias de transfiguração. [...] Nelas, pela primeira
vez, o alegre delírio da arte invadiu a natureza; pela primeira vez, nelas, o aniqui
lamento do princípio de individuação tornou-se um fenômeno artístico [...] a
música dionisíaca excitava esses sonhadores com um arrepio de terror
(NIETZSCHE, 1996, p. 48-49).
Estou, estou na moda/ É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha
identidade/ trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas/ todos os
logotipos do mercado./ Com que inocência demito-me de ser/ Eu que antes era e me
sabia/ tão diverso de outros, tão mim-mesmo/ ser pensante, sentinte e solidário/ com
outros seres diversos e conscientes/ de sua humana, invencível condição (p. 85).
táñeos que os adultos criam para externar seus intensos instantes de huma
nidade, numa feliz regressão infantil, escapulindo assim das malhas da civili
zação; pelos momentos incisivos de negatividade, em que o riso, catártico,
ironiza as façanhas do poder e ajuda a provocar fissuras na estrutura do trono,
da cátedra, do altar, da ordem estabelecida. O “ridendo castigat mores”,15 de
Horacio, é o riso libertador que fustiga o poder, de Moliére a Brecht (ROUANET,
1998, p. 134).
Como o que predominou no desenvolvimento da civilização hominídea
foi a lógica coerente da racionalidade instrumental, as expressões de esponta
neidade e de negatividade ainda nele possíveis foram cada vez menos toleradas,
desterradas, e o riso foi assumindo, predominantemente, formas mascaradas
de adaptação ao poder. De expressão feliz de humanidade e de resistencia,
transformou-se, na era dos regimes fascistas, em manifestação explícita de
agressividade, e, na era da cultura de massas, em sinal de concordância dócil
com o estabelecido. “O riso, outrora a imagem da humanidade, regride ao
desumano” (ADORNO, 2001, p. 5).
Rir-se de alguma coisa é sempre ridicularizar, [... ] Um grupo de pessoas a rir é uma
paródia da humanidade. São mónadas, cada uma das quais se entrega ao prazer de
estar decidida a tudo às custas dos demais e com o respaldo da maioria. Sua harmo
nia é a caricatura da solidariedade (HORKHEIMER; ADORNO, 1986, p. 132).
comandam vidas, por que não haveria de brincar com bonecos e com peças
espalhadas de um jogo em desuso? Rir o riso da vida e chorar o choro da morte
ainda podem ser expressões felizes, cruéis e possíveis de resistência.
Se a barbárie perdura na sociedade de hoje em outras formas, de outras
maneiras, potencializada ainda mais pelo alcance das novas tecnologias em
seu conluio com o capital global, a proposta de Adorno (1995, p. 155) de
que “desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em
dia” ainda tem sentido, atualidade e possibilidade? Parece-me que sim, ape
sar da terrível e contínua banalização que os meios de comunicação e o
próprio processo educativo fizeram e fazem da violência que diuturnamente
se descarrega sobre os homens. É preciso, e urgente, que a escola tome ou
retome em suas mãos o processo de formação cultural (die Bildung), que
favoreça o esclarecimento, a reflexão crítica e as formas de resistência ao
império cada vez mais dominante das máquinas sobre as pessoas, pois o
progresso da ciência e da tecnologia caminha em sentido oposto ao progres
so da humanidade das pessoas, e fortalece um modo de ser acrítico, pré-
reflexivo, não racional e não espiritual. A racionalidade que se apodera de
nossos educadores e educandos para modelá-los de acordo com os objetivos
da nova ordem, realiza uma espécie de darwinismo social e tecnológico, que
favorece o desenvolvimento das “virtudes” do capital: o cálculo, a funciona
lidade, a eficiência, a precisão, em detrimento da formação humana.
Adorno, apesar de tachado por seus críticos de “pessimista”, de “cons
trutor de becos sem saída”, sempre acreditou no poder de recuperação do
homem. É por isso e para isso que ele pensava com profundidade. Ao final
de seu ensaio, Teoria da Semiformação, ao analisar a crise da formação cultu
ral de seu tempo, na Alemanha — vivia ele ainda a era das revoluções mecâ
nicas —, ele nos faz ver que, já naquela época, lutar com firmeza pela forma
ção, depois que a sociedade a privou de sua base, era algo fora de moda, no
entanto, a única possibilidade de sobrevivência que restava à formação era a
auto-reflexão crítica sobre a semiformação, na qual ela se convertera (ADOR
NO, 2003, p. 27). Se, na era das revoluções mecânicas, lutar pela formação
na educação escolar era anacrônico, como persistir nesse ideal em plena era
das tecnologias digitais, genéticas e cibernéticas? Partimos do pressuposto,
à semelhança do pensador frankfurtiano, de que, na luta desigual entre for
mação e informação, o elemento mais frágil é o ponto de apoio para uma
possível emancipação. E que o exercício do pensamento crítico — apesar de
tudo jogar contra ele — transforme-se no instrumento ímpar que o homem
ainda tem em mãos para reagir, para afirmar sua humanidade. E quem sabe
— nessa perspectiva — o riso da vida e o choro trágico da morte readquiram
sua dimensão catártica.
110 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
Exercícios
1. Responda, com suas palavras, à questão: que elementos constituem o
sentido da palavra catarse?
2. Disserte sobre o seguinte tema: “O trágico na era da indústria cultural”.
Analise como a indústria cultural apresenta, enquadra e trabalha as ima
gens de um acontecimento trágico; que sentimentos essas imagens tele
visivas nos proporcionam; o que elas nos levam a pensar, a reagir, a fazer.
3. Ouça e analise a letra e a música de duas canções da música popular bra
sileira: A dança do bumbum, da banda É o Tchan e Mulheres de Atenas, de
Chico Buarque. As duas canções abordam temáticas relacionadas ao
papel da mulher na sociedade de hoje. Que elementos de formação cul
tural, educacional e critico as canções lhe inspiram?
4. Assista, e grave, a um programa Zorra total, da Rede Globo de Televi
são, sábado, à noite. Trata-se de um programa humorístico, em que o
riso corre solto em cima da tragédia dos mais fracos. Examine-o detida
mente e responda, por escrito, às seguintes questões: “Trata-se de um
programa catártico ou pseudocatártico?”, “Por quê?”. Detecte situa
ções, durante as cenas do programa, em que o riso e o trágico se mani
festam e note como se apresentam, então responda: “Quais os elementos
acríticos, preconceituosos e conformistas do programa?”, “Como as
expressões relacionadas ao sexo, à mulher, à violência, ao cotidiano
nele se manifestam?”.
5. Assista, e analise, ao filme de Lars Von Trier, Dançando no escuro, uma
obra do cinema digital. Trata-se de um “cinema utópico, eminente
mente político, de combate, justamente no terreno em que o capitalis
mo de ponta deseja controlar: a tecnologia digital” (Laymert Garcia
dos Santos). Responda, por escrito, às seguintes questões: “É um filme
que atende, antes, aos interesses do mercado ou leva as pessoas a pensa
rem, a refletirem?”. Destaque momentos que justifiquem sua resposta.
“Quais os valores morais que se sobressaem na película?”, “Como os
elementos dionisíaco e apolíneo se manifestam no filme?”, “Qual o al
cance da dimensão trágica naquela obra?”, “É uma obra de arte séria,
que se manifesta como expressão estética de um sofrimento sublima
do, como promessa de dias melhores ou se deixa mergulhar num beco
sem saída, num ‘nihilismo’ absoluto?”, “É uma obra catártica no senti
do pleno do termo?”.
Cap. 6 O riso e o trágico da indústria cultural
Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia: verbete “Catarse”. Trad. Alfredo
Bosi. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
Bibliografia complementar
ADORNO, T. W. Educação após Auschwitz. Trad. Aldo Onesti. In: COHN,
G. Theodor W Adorno. São Paulo: Ática, 1986. p. 33-45.
______, Educação e Emancipação. Trad, e Introdução Wolfgang Leo Maar. São
Paulo: Paz e Terra, 1995.
______. A Educação contra a barbárie. In:____________ . Educação e emancipação.
Trad, e Introdução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1995. p.
155-168.
______ . Tempo livre. Trad. Maria Helena Ruschel. In: ______________ . Palavras e
sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 70-82.
______. A arte é alegre? In: PUCCI, B et al. Teoria Crítica, Estética e Educação.
Trad. Newton Ramos de Oliveira. Campinas: Autores Associados; Ed. da
Unimep; Fapesp, 2001. p. 11-18.
7.1 Introdução
A sociologia da prática de Bourdieu define que a reprodução da ordem social
se explica pelas múltiplas estratégias de reprodução que os diferentes agen
tes sociais colocam em ação para manter ou melhorar a sua posição social.
Nessa lógica, a escola é vista como um excelente domínio da reprodução
social e de legitimação das desigualdades sociais. Porém, a questão da re
produção, nos escritos de Bourdieu sobre a Educação e a escola, é bem
mais apreendida e compreendida via entendimento dos seus conceitos de
campo e habitus. Dessa forma, serão apresentados, inicialmente, esses dois
conceitos, ao lado de outros, e depois será tratado da relação entre eles e
dos procedimentos teórico-metodológicos exigidos à aplicação da sociolo
gia da prática de Bourdieu, cuidando, por fim, da análise bourdieuana sobre
a escola. É necessário salientar que os conceitos de campo e habitus são uma
unidade na sociologia de Bourdieu, o que equivale a dizer que não podem
ser separados quando aplicados na pesquisa. Portanto, neste texto, serão
tratados separadamente apenas para efeito de exposição didática.
113
114 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
de níveis diferentes e nada, nem nas instituições ou nos agentes, nem nos atos
ou nos discursos que eles produzem, tem sentido senão relacionalmente, por
meio do jogo das oposições e das distinções (BOURDIEU, 1989, p. 179).
Assim, ele atribui a denominação de campo aos diferentes domínios
específicos da realidade social que, relativamente autônomos, compõem uma
determinada sociedade. Detalha que campo é um espaço hierárquico de jogo,
espaço de relações objetivas entre indivíduos ou instituições que competem
por um mesmo objeto ou mesma propriedade, produzidos naquele jogo.
Bordieu caracteriza um campo como sendo: constituído em torno de inte
resses específicos, o que equivale a dizer que os interesses de um determina
do campo não poderão ser supridos em nenhum outro campo; regido por
regras e leis de funcionamento, em que os agentes que o integram deverão
ser capazes de entendê-las e estarem predispostos a aceitá-las; estruturado
pelo estado de luta e pela quantidade e qualidade das propriedades produzi
das e reproduzidas no seu jogo interno; concatenado ao menos por um inte
resse em comum entre os seus diversos agentes, notadamente o de preser
var a existência do próprio campo (BOURDIEU, 1983, p. 89-90).
Assim, todo e qualquer campo envolve luta e força. Pois, como acentua
Bourdieu, os agentes que compõem um campo lutam para adquirir e manter
o poder de (di)visão, isto é, o poder de impor uma visão, uma representação
social particular como geral e de dividir/classificar/distinguir/legitimar os
agentes e as coisas existentes em um campo específico. A luta interna do
campo é pela conquista e administração do poder simbólico, definido como
“o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de
confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre
o mundo, portanto, o mundo”. E ainda mais: é um “poder quase mágico que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econô
mica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reco
nhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIEU, 1989, p. 15).
Enfim, o poder simbólico é, ao mesmo tempo, resultado do trabalho históri
co de grupos para naturalizar, fatalizar e “des-historicizar” as relações de
forças, entre os diferentes agentes de um campo, e um instrumento muito
eficaz de reprodução e de negação dos expedientes que o geraram e da re
produção das desigualdades entre os agentes de um mesmo campo.
Meio e fim da luta interna de um campo, o capital é definido por
Bourdieu (1979, p. 127) como “uma relação social, isto é, uma energia social
que não existe e não produz seus efeitos a não ser dentro do campo onde ele
se produz e se reproduz”. Em outras palavras, é o conteúdo do poder numa
dada relação de forças; é o que permite ao agente, individual ou coletivo,
movimentar-se no campo e participar das disputas geradas neste espaço so-
116 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
de verdade e o aceite dos pares são fundamentais para que o agente conquiste
aquele capital (BOURDIEU, 1989, p. 174-176).
Bourdieu (1983, p. 90) não desconsidera a possibilidade de conversão de
capital, isto é, o agente que possui um considerável capital num campo poderá
convertê-lo num outro tipo de capital em um outro campo, porém tal opera
ção é mais fácil entre campos mais próximos e, mesmo assim, não há garantias
prévias de sucesso na conversão. Ou, ainda, ele considera a possibilidade de o
agente obter um tipo de capital em decorrência de possuir um outro, princi
palmente relacionado ao capital económico e capital cultural. No entanto,
não há qualquer determinância do capital econômico sobre o capital cultural,
pois a possibilidade de o agente adquirir um capital cultural por dispor de
capital econômico é apenas uma relação entre os dois tipos de capital e depen
de da especificidade de cada campo em delegar reconhecimento.
Apesar das possibilidades de conversões de capitais, é crucial, ao pes
quisador, não perder de vista que é devido ao fato de um tipo de capital ser
produzido e reproduzido somente num determinado campo que os seus agen
tes tendem à luta pela preservação do campo, o que resulta numa cumplici
dade objetiva transcendente às lutas internas existentes num campo especí
fico. Assim, Bourdieu explicita a condição conservadora do campo. Esta carac
terística serve para o sociólogo asseverar que, da luta interna do campo, só
podem surgir revoluções parciais, capazes de destruir a hierarquia, e não o
próprio jogo (BOURDIEU, 1983, p. 91). Por exemplo, um agente, individual
ou coletivo, do campo educacional, que pretende fazer uma revolução em
matéria de ensino e aprendizado afirmará: “a forma de ensino em vigência
não é a verdadeira forma de ensino”, então reivindicará o retorno à origem,
à fonte, ao espírito e à verdade do campo educacional; formulará idéias e
discursos em nome de uma definição supostamente mais pura, mais autênti
ca, em detrimento da maneira de ensino em cujo nome os agentes dominan
tes daquele campo têm atuado; tenderá a retomar propostas formuladas por
educadores num tempo recuado da história da constituição do campo edu
cacional, os quais são considerados agentes desinteressados, empenhados
na elaboração de uma forma de ensino completamente autônoma, o que
equivale a dizer sem se dobrar a nenhuma pressão externa ou atender a
interesses alheios ao do campo, como a busca do ganho monetário.
Para Bourdieu, a oposição entre direita e esquerda, retaguarda e van
guarda, consagrado e herético, ortodoxia e heterodoxia, dentro de um campo,
muda constantemente de conteúdo substancial, mas permanece estrutural
mente idêntica. Os recém-ingressos somente poderão destituir os antigos
porque a lei implícita do campo é a distinção, em todos os sentidos do ter
mo. Assim, cada campo tem suas próprias formas de revolução e, portanto,
118 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
sua própria periodização. E as rupturas dos diferentes campos não são ne
cessariamente sincronizadas. O que ocorre, então, segundo Bourdieu (1983,
p. 156-157), é que as revoluções específicas têm uma certa relação com as
mudanças externas. Uma revolução específica, algo que inicia um novo perío
do num determinado campo é, ele acredita, a sincronização de uma necessi
dade interna com algo que se passa fora, no universo que o engloba.
Deve-se, ainda, enfatizar a diferença entre os conceitos de campo e apa
relho na sociologia de Bourdieu. A noção de aparelho reintroduz, para o soció
logo, o pior funcionalismo nas Ciências Sociais. Daí ele não tratar, por exemplo,
escola, estado, igreja e partido como aparelhos, e sim como campos, pois:
A realidade social existe, por assim dizer, duas vezes, nas coisas e nos cérebros, nos
campos e nos habitus, no exterior e no interior dos agentes. E, quando o habitus
entra em relação com o mundo social do qual ele é o produto, sente-se como peixe
dentro d’água, e o mundo lhe parece natural.
[...] por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao
dominante (e, portanto, à dominação), quando o dominado não dispõe, para pen
sar a dominação e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com o domi
nante, de mais do que instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e
que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta
relação ser vista como natural.
quando os esquemas que o dominado põe em ação para se ver e se avaliar, ou para
ver e avaliar os dominantes (como por exemplo: elevado/baixo, masculino/femini
no, branco/negro, etc.), resultam da incorporação de classificações naturalizadas
de que seu ser social é produto (BOURDIEU, 1999, p. 46-47).
[...] as condições sociais de produção dos agentes e os efeitos duráveis que eles
exercem registrando-se nas disposições, para compreender que as pessoas que são
produto de condições sociais revoltantes não são necessariamente tão revoltadas
quanto seriam aqueles que, sendo produtos de condições sociais menos revoltantes
(como a maior parte dos intelectuais), fossem colocados nessas posições.
deve proceder à historização dos diversos campos nos quais os agentes in
vestem seus desejos e suas energias e renunciam, num curso sem fim, ao
reconhecimento do que é a essência social. Uma vez descobertas as relações
subterrâneas entre a história incorporada e a história reificada, deve-se ope
rar a historicização do agente que conhece e dos seus instrumentos de co
nhecimento, pelos quais o agente constrói o seu objeto, como também do
domínio social específico no qual é produzido e divulgado.
Conforme assevera Bourdieu, apenas a história social pode fornecer
os meios de redescobrir a verdade histórica dos vestígios reificados ou
incorporados que se apresentam à consciência sob a aparência da essência
universal. Ou, como é acentuado por ele: o que é instituído pela História,
só poderá ser restituído por ela mesma. Portanto, a historicização oferece,
ao pesquisador, agente histórico e produtor de saber, “os instrumentos de
uma verdadeira tomada de consciência, ou melhor, de um verdadeiro do
mínio de si”. Condição necessária para o pesquisador se libertar do in
consciente histórico, científico e, também, social das gerações passadas,
que sempre pesam fortemente sobre o seu cérebro. Assim, o pensamento
livre, sustenta Bourdieu, deve ser conquistado por uma anamnese históri
ca capaz de revelar tudo o que, no pensamento, é o produto esquecido do
trabalho histórico, caminho completamente oposto ao do pensamento
essencialista, ou seja, daquele que toma os produtos culturais como bens
que têm essência em si mesmos. Para Bourdieu, cada vez que se fizer histó
ria social da literatura, da pintura, da filosofia, da educação etc., será pos
sível aperfeiçoar os instrumentos de historicização, as esferas e práticas
envolvidas nos processos de produção, divulgação e recepção dos produ
tos culturais, uma vez que o trabalho de pesquisa, calcado nessa perspec
tiva, levará o pesquisador a desnaturalizar, a desfatalizar e a restituir, à
História, os agentes, as instituições e as suas obras, os quais devem ser
tomados como resultantes das relações entre agentes portadores de repre
sentações sociais de mundo e investidos de forças sociais díspares na luta
pelo poder de (di)visão.
Pelo exposto até aqui, é possível afirmar que a teoria sociológica de
Bourdieu não é inspirada por um interesse de antiquário, e sim pela busca
de entender por que se compreende e como se compreende ou, parafraseando
o sociólogo, para compreender o compreender. Consideração que permite
entendê-la não apenas como uma sociologia histórica, como também como
historicista, na definição de Wacquant. Pois, para Bourdieu, a realidade so
cial é, de ponta a ponta, história: história feita, história que se está fazendo,
história por se fazer.
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 125
Portanto, o pesquisador, para não se tomar objeto dos problemas que ele
aborda, deve fazer, segundo Bourdieu (1989, p. 37-38), a história social da
emergência das problemáticas de pesquisa, da sua constituição progressiva,
isto é, a história “do trabalho coleüvo — freqüentemente realizado na concor
rência e na luta para o qual foi necessário para dar a conhecer e fazer reconhecer
estes problemas como problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, pübli-
cos, oficiais”, como bem pode ilustrar tal afirmativa os problemas da família,
do divórcio, da delinqüência, das drogas, do trabalho infantil e feminino. As
sim, o pesquisador se distanciará de um positivismo vulgar, o qual sempre
aceita, de antemão, o problema como evidente, e descobrirá, então, que ele foi
socialmente produzido, num trabalho coletivo de construção da realidade so
cial e por meio desse trabalho. E, mais ainda, perceberá que foi preciso que
houvesse reuniões, comissões, associações, ligas de defesa, movimentos, ma
nifestações, petições, requerimentos, deliberações, votos, tomadas de posi
ção, projetos, programas, resoluções etc. para que aquilo que era e poderia
ter continuado a ser um “problema privado, particular, singular se tomasse
um problema social”, o que equivale a dizer um “problema público, de que se
pode falar publicamente — pense no aborto e na homossexualidade”, e, o
mais complicado, “se tomasse um problema oficial, objeto de tomadas de po
sições oficiais, e até mesmo de leis ou decretos”. Sem desconsiderar que a
adoção irrefletida do pesquisador por objetos tidos como problemas sociais e
politicamente relevantes resultam numa série de “peritos”, cuja prática pode
rá receber mais facilmente ganhos materiais e simbólicos, dados o seu reco-
126 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações
dos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios
de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes
sociais (BOURDIEU, 1998, p. 53).
[...] a instituição escolar que, em outros tempos, acreditamos que poderia introdu
zir uma forma de meritocracia ao privilegiar aptidões individuais por oposição aos
privilégios hereditários, tende a instaurar, através da relação encoberta entre apti
dão escolar e a herança cultural, uma verdadeira nobreza de Estado, cuja autorida
de e legitimidade são garantidas pelo título escolar (BOURDIEU, 1998b, p. 39).
Como sempre, a escola exclui, mas, agora, exclui de maneira contínua, em todos os
níveis do cursus (entre as classes de transição e os liceus de ensino técnico não há,
talvez, mais que uma diferença de grau), e mantém, em seu seio, aqueles que exclui,
contentando-se em relegá-los para os ramos mais ou menos desvalorizados.
[...] são votados a oscilar — em função, sem dúvida, das flutuações e das oscilações
das sanções aplicadas — entre a adesão maravilhosa à ilusão que ela propõe e a
resignação a seus veredictos, entre a submissão ansiosa e a revolta importante
(BOURDIEU, 1998, p. 224-225).
Exercícios
1. Quais os objetivos de Bourdieu ao elaborar os conceitos de campo e
habitus? E como ele define esses dois conceitos?
2. O que é capital simbólico e poder simbólico, para Bourdieu? Pense em
exemplos nos grupos sociais de que você participa.
3. Quais procedimentos teórico-metodológicos são exigidos, por Bourdieu,
para a aplicação da sua sociologia da prática? Qual dos procedimentos
você acha mais complicado de aplicar? Justifique sua resposta.
4. Como é definida a escola por Bourdieu?
5. Qual a relação entre capital cultural e cultura escolar, segundo Bourdieu?
6. Cite fatos e relações da sua experiência escolar, aos quais as análises de
Bourdieu sobre a escola podem ser aplicadas. Em caso negativo, justifi
que as razões de não ser possível aplicá-las.
Referências
BOURDIEU, P La distinction. Paris: Minuit, 1979.
_______ Les sens pratiques. Paris: Minuit, 1980.
---------. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
---------. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 133
8.2.1 Arqueologia
Comecemos com a Arqueologia. Ora, o que faz um arqueólogo? Ele escava,
observa as idades das camadas do solo à medida que o sítio arqueológico vai
se aprofundando. O difícil é quando o sítio arqueológico se compõe de vários
períodos, então é mais complicado separar as camadas que identificam um pe
ríodo das camadas que constituem o outro.
Foi assim que o arqueólogo Foucault procurou entender de que modo
se formam os saberes. Um saber, por exemplo, a ciência, é formado por
camadas que identificam uma certa época histórica. De fato, quando Foucault
se refere à ciência que se ocupa com a vida orgânica, ele se refere à Biologia
(FOUCAULT, 1999a, p. 175-181 e 343-347), que surge no século XVIII e é
característica de um período. Antes dela, a História Natural se ocupava da
vida, mas não é uma ciência. Como Foucault pode fazer a separação entre
um saber científico e um não-científico?
Em primeiro lugar, não se deve supor que a História Natural é uma espé
cie de biologia na fase infantil, que evoluirá para uma fase mais desenvolvida.
Vimos que a idéia de História, em Foucault, não comporta a noção de pro
gresso. Pensemos na Arqueologia: a História Natural é uma camada ou estrato
do saber que pertence a uma época, já a Biologia é um estrato que pertence à
outra época. São como vestígios de duas civilizações diversas que viveram em
momentos diferentes sobre o mesmo solo, deixando seus restos depositados
durante a sua passagem. O importante, do ponto de vista da Arqueologia
foucaultiana, é pensar que um saber não leva ao outro. Cada época do saber é
descontínua com relação à outra. O arqueólogo procura encontrar esses pon
tos de descontinuidade entre os saberes.
Ao limite entre os estratos de um período e os de outros, Foucault de
nomina “episteme”. Em sua fase arqueológica, Foucault estudou três epis-
temes: o Renascimento (séc. XIV ao XVI); a episteme clássica (séc. XVII ao
final do XVIII); e a episteme Moderna (final do séc. XVIII e séc. XIX até a
virada do séc. XX). Retomando nosso exemplo, a História Natural pertence
à episteme clássica, enquanto a Biologia, à episteme moderna. Elas são total
mente distantes em termos arqueológicos, apesar de relativamente próximas
em termos cronológicos. Elas são diferentes porque cada episteme organiza,
de modo totalmente inovador, os objetos, os conceitos e os métodos de um
saber (“o que eu posso saber?”) (FOUCAULT, 1987a, passim).
Uma vez que os estratos ou camadas de uma episteme estão separados
dos outros, o trabalho de arqueólogo foucaultiano volta-se para o interior,
isto é, para dentro de cada episteme, a fim de entender como cada época se
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 141
de ler os filósofos clássicos. Pelo mesmo motivo, seria rejeitado por grande
parte dos historiadores de ofício, que não reconhecem na sua filosofia a
capacidade de leitura e análise documental.
Essa confusão acontece, em segundo lugar, porque um livro como Histó
ria da Loucura é filosófico. Ele indica que a percepção e a experiência que
temos da loucura se alteram. Isso é inovador em termos filosóficos, já que evita
operar com conceitos atemporais, e também o é da perspectiva dos historia
dores, pois, nessa obra, Foucault convida para o desenvolvimento do método
arqueológico. Com esse método, os historiadores ficam convocados a revelar
novos objetos, os quais não eram considerados dignos da História. A loucura,
portanto, deixa de ser um objeto natural descartado pelo historiador. Foucault
revela que a loucura é e deve ser um objeto desnaturalizado. Neste livro,
como em muitos outros, o historiador encontrará um campo de alta densida
de para a análise historiográfica.
Para Foucault, há três epistemes desde o final da Idade Média, que já
foram aqui citadas. A primeira delas coincidirá com o Renascimento; a se
gunda, com os séculos XVII e XVIII (episteme clássica); e a terceira, com o
final do século XVIII até o final do século XIX (episteme moderna). História
da loucura está organizado segundo esta periodização. A tese desse livro gira
em tomo da idéia de que os saberes sobre a loucura, em cada uma dessas
epistemes, organiza a percepção e a experiência da loucura a partir de certos
regimes discursivos que são passiveis de análise histórica.
Há dois corolários, ou subteses, a partir daí. O primeiro deles mostra
que existem dois momentos básicos quanto à experiência da loucura no
Ocidente, a saber, uma experiência trágica e uma experiência racionalista
da loucura. A experiência trágica, isto é, aquela que indica que a desordem
está muito mais presente ou próxima do que se pensa, vai, aos poucos, sen
do soterrada por uma experiência da loucura ligada ao racionalismo. En
quanto a trágica afirma que a loucura faz parte de nosso mundo; a racionalista
cria mecanismos para controlá-la (FOUCAULT, 1987b, p. 30-42).
Um segundo corolário é que a psiquiatria, como saber que afirma o
discurso racionalista sobre a loucura, não é uma ciência que teria evoluído
desde formas mais rudimentares e pré-científicas até descobrir e isolar a
loucura como doença. A psiquiatria é uma configuração de saber que surge
numa episteme mais recente, a qual conforma uma certa experiência da lou
cura. Não podemos esperar que a psiquiatria represente o fim ou a coroação
de um processo milenar e que, a partir dela, a experiência trágica da loucura
esteja debelada. Ao contrário, Foucault analisa que, quanto mais a psiquia
tria recrudesce seu regime discursivo e procura cercar a loucura de modo
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 143
época denomina loucura. Ora, mas como essa história descontínua segue?
Na episteme clássica, como se caracteriza o objeto “loucura”?
Foucault escreve que, nesse momento, há dois regimes discursivos (aqui
lo que os saberes dizem sobre um objeto) que se afrontam. Um deles é o que
provém da Idade Média. A loucura é vista como coexistente à razão, sua
presença no mundo não pode ser excluída. Tudo o que a razão pode fazer é,
de certa forma, retirar as forças da desordem para construir a própria or
dem. Esta é a experiência trágica da loucura: há um corpo-a-corpo entre a
razão e a loucura, como num jogo de luz e trevas. Porém, um outro regime
discursivo emerge: trata-se de uma razão que, em vez de conviver com a
loucura e suas forças, quer subjugá-la. A razão passa a ser um estado de
vigília, ela não pode se descuidar, não pode adormecer, caso contrário, a
desrazão invade o mundo e a domina. A razão precisa dominar a loucura e
mantê-la à distância, não pode lhe dar voz.
O afrontamento entre esses dois regimes discursivos é flagrado por
Foucault na grande produção cultural dos séculos XV ao XVII. Por exem
plo, Foucault observa a cisão entre esses regimes discursivos a partir da
análise de que, nas artes plásticas, a experiência trágica da loucura perdura
por muito mais tempo, enquanto, na literatura, o novo discurso aparece
mais cedo. Esta mesma ruptura pode ser observada na filosofia, visto que o
grande exemplo de uma razão concebida como guardiã do mundo das luzes
é o Cogito, de Descartes. Se o Cogito é o ponto de partida do pensamento, o
louco é aquele destituído de Cogito, o louco não pensa. Tal confronto
discursivo se decidirá em favor de uma razão que controla a loucura, que
vigia o louco e procura, de todas as formas, não se descuidar. Essa reviravol
ta define a ascensão de uma nova episteme, em que novos regimes discursivos
podem emergir (Cf. FOUCAULT, 1987b, p. 42-47).
Na nova episteme, a loucura será objeto de exclusão e confinamento.
Foucault nota que os leprosários se esvaziam desde o final da Idade Média.
Esses espaços estão abandonados, esquecidos, os leprosos não são mais ex
cluídos, e sim tratados como doentes em casas de saúde. Mas o mais impor
tante é que os antigos leprosários, durante o séc. XVIII, serão reformados
arquitetônica e administrativamente. Então se formam os “hospitais gerais”,
que vão receber uma série de pessoas, estando os loucos entre elas. Apesar
do nome, no entanto, o hospital geral não é um lugar de tratamento de saú
de, como entendemos hoje. Essa caracterização deve-se ao fato de que a
direção do estabelecimento não é norteada por uma demanda de saúde, pois
o médico não dirige o hospital, ele apenas desempenha uma função subalter
na. Além disso, o que demonstra que este hospital não é como aqueles que
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 145
indivíduos internados no antigo Hospital Geral. Mas, para tanto, era preci
so que o internamento do louco fosse associado à idéia de que a loucura é
uma doença do corpo. Com isso, o louco seria isolado, não mais pertence
ria a uma população de indivíduos acometidos por um mal de ordem mo
ral. Ele vai merecer o desenvolvimento de uma instituição de internamento
cujos fins sejam médicos.
O século XIX, esclarece Foucault, espanta-se e se indigna com o fato de
que o louco fora internado ao lado do criminoso, do devasso, do indigente.
Esse espanto, do ponto de vista do arqueólogo do saber, indica que uma
nova experiência da loucura estava em construção. A diferenciação do lou
co em relação ao criminoso, ao indigente e ao devasso se dá pela assimilação
da medicina. Esse fenômeno não surge como um avanço das ciências, ele é a
criação do próprio internamento. O internamento geral do século XVIII,
cuja terapia era moral, torna-se, no século XIX, um erro econômico, sendo,
por isso, substituído por um internamento mais científico, que isolava o lou
co. A loucura, então, entra em um novo regime discursivo, com o significado
que conhecemos hoje. Isso ocorre quando aparece o “personagem médico”.
Entretanto, o médico, de acordo com Foucault, torna-se a figura central do
asilo, em parte por causa de seu status científico. Ele ainda desempenha, no
hospício, a autoridade moral que os administradores do Hospital Geral, não
sendo médicos, haviam estabelecido.
Sem dúvida, o que mostra A História da loucura é que, de uma episteme
a outra, os saberes se alteram totalmente, devido a suas configurações dis
cursivas divergentes. No entanto, por dentro da história da loucura, passa
uma história mais longa, relacionada a mecanismos de controle sobre o cor
po. É essa história do controle do corpo que indicará, para Foucault, um
outro caminho, a partir dos anos 1970. Quando esta nova problemática — a
do controle sobre o corpo — emerge em primeiro plano, uma fase diferente
se inicia. Foucault complementa a Arqueologia com o método genealógico,
a Genealogia.
8.2.2 Genealogia
Nessa nova fase, a Genealogia, Foucault começa a se perguntar, em comple
mento à Arqueologia, não só o que forma saberes, as epistemes, como tam
bém qual é sua gênese, como eles se formam. O que faz com que, em cada
prática de saber considerada, encontre-se uma peculiaridade histórica? E,
afinal, o que faz estas práticas se alterarem?
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 147
e o disparate. No fundo da história, não há uma identidade que foi mal versa
da ou que se degenerou com o tempo.
Cada acontecimento, segundo Foucault, tem uma “proveniência”
(FOUCAULT, 1982). Isso significa que é marcado pela dispersão dos ele
mentos que compõem uma verdade, um saber. Mais importante ainda é que,
neste jogo de saber-poder, a proveniência de um acontecimento histórico
sempre diz respeito ao corpo. Por exemplo, quando os homens inventam
um sistema filosófico ou moral segundo o qual o ideal da existência será a
vida contemplativa, então o corpo é afetado. Por isso, Foucault desenvolve a
idéia de que o poder é composto por relações que se efetivam como “tecnolo
gias”, cujo objeto é o corpo.
Foucault, em História da Sexualidade, v. 1 (2001), faz um resumo sobre
seu conceito de poder. Da mesma forma, Deleuze, no livro intitulado Foucault
(1986), procura sistematizar este conceito. Destacaremos três, dentre as
várias características do conceito de poder.
Em primeiro lugar, o poder não se concentra, não se centraliza, nem se
totaliza. Ele faz e se desfaz em focos. Então Foucault desafia a idéia esquer
dista de que o poder seria propriedade de uma classe que o conquista. O
poder não é uma propriedade, não está concentrado em uma sede, pois ele é
uma estratégia. O poder é uma questão de exercício, não de posse.
Em segundo lugar, Foucault desvaloriza a idéia de que o poder seria
relativo ao Estado, sendo ele seu detentor, então nele o poder estaria locali
zado. Ele afirma que é o contrário disso: o Estado é o efeito de uma
multiplicidade de focos de poder. Os focos de poder são difusos, de modo
que, somente em condições especiais, esses focos se reúnem, tomando di
mensões abrangentes como a de um Estado. O poder é constituído por uma
vibração, por isso não dispõe de um lugar privilegiado como sua fonte. Quando
Foucault se refere a “lutas locais”, ele não quer dizer que o poder tenha
localização, embora pontual. O poder “é local porque nunca é global, mas
ele não é localizável porque é difuso” (DELEUZE, 1986, p. 34).
Em terceiro lugar, o poder é uma relação, é uma “rede produtiva”. Ele
produz o saber, cria a realidade em vez de vetá-la. É justamente o caráter
produtivo do poder que Foucault analisa em Vigiar e punir (1999c). O méto
do genealógico, então, visa aos acontecimentos, isto é, à produção contínua
de novas realidades mediante as relações de poder. Com efeito, nesse livro,
a tese de Foucault é a de que, nos séculos XVII e XVIII, houve um desbloqueio
da produtividade do poder. Trata-se da montagem de mecanismos que per
mitem a circulação de efeitos de poder, uma circulação ininterrupta e indivi
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 149
[...] pelo jogo dessa quantificação, dessa circulação dos adiantamentos e das dívi
das, graças ao cálculo permanente das notas a mais ou a menos, os aparelhos disci
plinares hierarquizam, numa relação mútua, os “bons” e os “maus” indivíduos.
Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua, opera-se uma diferen
ciação que não é a dos atos, mas dos próprios indivíduos, de sua natureza, de suas
virtualidades, de seu nível ou valor (FOUCAULT, 1999c, p. 151).
[...] na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada
em largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção peri
férica é dividida em celas; cada uma atravessando toda espessura da construção;
elas têm duas janelas; uma correspondendo à janela da torre; e outra, que dá
para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado (FOUCAULT,
1999c, p. 177).
si consigo mesmo, e que essa relação é conquistada por meio de certos hábi
tos ou exercícios culturalmente vigentes.
Os modos pelos quais nos tomamos sujeitos, os modos de “subjetivação”,
aparecem e se desenvolvem historicamente como “práticas de si” que — em
bora vigorem dentro de práticas discursivas (saberes) e práticas de poder que
testemunham pela descontinuidade de suas formas históricas (FOUCAULT,
1984, p. 23) —, correspondem a quatro grandes focos de “problematização”,
a saber: “natureza do ato sexual, fidelidade monogâmica, relações homosse
xuais, castidade” (FOUCAULT, 1984, p. 17), as quais atravessam as pretensas
oposições entre a “filosofia pagã”, a “ética cristã” e a “moral das sociedades
européias modernas” (FOUCAULT, 1984, p. 18).
Os quatro focos de problematização podem ser aglutinados em dois
grandes tipos de moral, cada um com suas práticas de si e modos de subje
tivação correspondentes.
Nesta linhagem de “morais”, o corpo é entendido como lugar do desejo,
cuja força natural precisa ser regrada. Nesse caso, as práticas visam menos
ao autogoverno e mais à proteção contra a violência do prazer, de acordo
com a maneira que os modos de subjetivação são codificados. Essas morais,
indica Foucault, têm uma feição jurídica, pois nelas vige
[...] movimento que, na verdade, só se completará muito mais tarde, quando for
edificada uma concepção absolutamente unitária de amor: a que separa as con
junções de um sexo ao outro e as relações internas a um mesmo sexo. É esse
regime que, grosso modo, é ainda o nosso hoje em dia, na medida em que está
solidificado por uma concepção unitária da sexualidade, que permite marcar, de
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 157
Exercícios
1. Procure observar o funcionamento de uma escola, uma sala de aula.
Quais discursos, segundo a acepção da Arqueologia de Foucault, você
poderia nomear e descrever?
2. De acordo com a Genealogia de Foucault, pode-se dizer que numa esco
la, numa sala de aula, desenvolvem-se certas práticas que podemos cha
mar de “disciplina”, segundo o conceito foucaultiano definido no texto?
3. E quanto às práticas de subjetivação, pode-se afirmar que uma escola
interfere nas práticas pelas quais nos tomamos sujeitos? Procure iden
tificar alguns elementos ao seu redor.
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 159
Referências
ARISTÓFANES. As Nuvens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
______, Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. 19. ed. Petrópolis:
Vozes, 1999c.
______. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 14. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2001.
______ . Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
______, Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2003.
Bibliografia complementar
1. Livros Publicados pelo autor — Estudos Teóricos