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Sociologia

Educação
Leituras e
Interpretações

Alonso Bezerra de Carvalho


Wilton Carlos Lima da Silva
(organizadores)

Alonso Bezerra de Carvalho


Áureo Busetto
Bruno Pucci
Carlos da Fonseca Brandão
Hélio Rebello Cardoso Jr.
Regiane Aparecida Atisano
Wilton Carlos Lima da Silva

Avercamp
E I) I I O R A

2006
São Paulo
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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S662

Sociologia e educação : leituras e interpretações / Alonso Bezerra de


Carvalho, Wilton Carlos Lima da Silva (orgs.); Alonso Bezerra de Carvalho...
[et al.]. - São Paulo : Avercamp, 2006.
160p.

Inclui bibliografia
ISBN 85-89311-36-8

1.Educação - Aspectos sociais. 2. Sociologia educacional. I. Carvalho, Alonso


Bezerra de. II. Silva, Wilton Carlos Lima da, 1965-.

06-2289 CDD 370.19


CDU 37.015.4
Sobre os Autores

ALONSO BEZERRA DE CARVALHO — Professor-Assistente Doutor do Depar­


tamento de Educação da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Assis — SP., e
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências
da Unesp/Marília — SP, (e-mail: alonsobc@assis.unesp.br).

ÁUREO BUSETTO — Professor-Assistente Doutor do Departamento de História


e do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras
da Unesp/Assis — SP, (e-mail: aureohis@assis.unesp.br).

BRUNO PUCCI — Professor Titular do PPGE/Unimep, Piracicaba — SP, pes­


quisador do CNPq e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas “Teoria
Crítica e Educação”, com apoio do CNPq e da Fapesp (e-mail: bpucci@unimep.br).

CARLOS DA FONSECA BRANDÃO — Professor-Assistente Doutor do Depar­


tamento de Educação da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Assis — SP, e
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências
da Unesp/Marília — SP, (e-mail: cbrandao@assis.unesp.br).

HÉLIO REBELLO CARDOSO JÚNIOR — Professor-Assistente Doutor do Depar­


tamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade
de Filosofia e Ciências e Letras da Unesp/Assis — SP, (e-mail: herebell@uel.br).

REGIANE APARECIDA ATISANO — Professora de Sociologia dos cursos de Admi­


nistração e Direito da Faculdade Dom Bosco, Curitiba - PR. Mestre em Sociologia
pela Universidade Federal do Paraná (e-mail: regiane.sociologia@gmail.com).

WILTON CARLOS LIMA DA SILVA — Professor-Assistente Doutor do Departa­


mento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de
Ciências e Letras da Unesp/Assis — SP, (e-mail: wilton_silva@ig.com.br).
Sumário

Apresentação................................................................................................................11

1 Auguste Comte, o Positivismo e a Educação..................................................... 13


Wilton Carlos Lima da Silva
1.1 Introdução................................................................................................. 13
1.2 Auguste Comte e o Positivismo................................................................ 16
1.3 O Positivismo e a Educação..................................................................... 19
1.4 O Positivismo na Educação brasileira...................................................... 20
Exercícios...........................................................................................................23
Referências........................................................................................................ 24
Leituras recomendadas..................................................................................... 25
2 A Educação sob o enfoque de Émile Durkheim................................................. 27
Regiane Aparecida Atisano
2.1 Introdução................................................................................................. 27
2.2 Durkheim e a Sociologia...........................................................................27
2.3 O que é Fato Social?................................................................................ 29
2.4 Solidariedade mecânica e orgânica......................................................... 31
2.5 Sociologia da Educação........................................................................... 33
2.6 Conclusão..................................................................................................35
Exercícios...........................................................................................................36
Referências........................................................................................................ 36
3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação.............................. 39
Wilton Carlos Uma da Silva e Alonso Bezerra de Carvalho
3.1 Introdução................................................................................................. 39
3.2 Origens e influências.................................................................................40
3.3 Conceitos fundamentais do pensamento marxista.................................. 42
3.4 O Marxismo e os marxistas: Lênin, Lukács e Gramsci............................ 47
3.5 Materialismo e Educação......................................................................... 49
Exercícios...........................................................................................................53
Referências........................................................................................................ 54
Bibliografia complementar................................................................................. 55

7
8 Sociologia e Eduçáo — Leituras e Interpretações

4 A Sociologia weberiana e a Educação................................................................ 57


Alonso Bezerra de Carvalho
4.1 Introdução................................................................................................. 57
4.2 A modernidade e o desencantamento do mundo.................................... 60
4.3 Ciência e política: duas vocações............................................................ 62
4.4 O processo de racionalização e o paradoxo das conseqüências............63
4.5 Por uma Ética da responsabilidade..........................................................67
4.6 Sociologia da educação weberiana: equilíbrio entre burocracia
e carisma ................................................................................................. 70
Exercícios...........................................................................................................73
Referências........................................................................................................ 74
Bibliografia complementar................................................................................. 75
5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias........................................................ 77
Carlos da Fonseca Brandão
5.1 Os conceitos de figuração e interdependência........................................ 77
5.2 A formação intelectual de Norbert Elias e a influência
do pensamento de Karl Mannheim.......................................................... 78
5.3 A teoria dos processos de civilização.......................................................85
5.4 Nossa conclusão e nossos questionamentos ......................................... 89
Exercícios...........................................................................................................92
Referências........................................................................................................ 92
Leituras recomendadas..................................................................................... 94
6 O riso e o trágico na indústria cultural: a catarse administrada.......................97
Bruno Pucci
6.1 Introdução................................................................................................. 97
6.2 A dimensão catártica do trágico............................................................. 101
6.3 A tragédia do trágico no mundo da indústria cultural............................. 104
6.4 A despotencialização da função catártica do riso na
indústria cultural..................................................................................... 106
Exercícios......................................................................................................... 110
Referências..............................................................................•....................... 111
Bibliografia complementar............................................................................... 112
7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola...................... 113
Aureo Busetto
7.1 Introdução............................................................................................... 113
7.2 Campo: espaço social específico e com autonomia relativa................. 114
Sumário 9

7.3 Habitus: a mediação entre estrutura e agentes sociais......................... 118


7.4 Relação entre campo e habitus.............................................................. 121
7.5 Para aplicar a Sociologia da prática....................................................... 123
7.6 Escola: domínio da reprodução social e legitimação das
desigualdades sociais............................................................................ 127
Exercícios.........................................................................................................132
Referências...................................................................................................... 132
8 Foucault em vôo rasante.................................................................................135
Hélio Rebello Cardoso Jr
8.1 Introdução: em que um filósofo afeta nossa vida? — Temas da obra
de Foucault.............................................................................................135
8.2 Fases da obra de Foucault: características gerais................................ 138
8.2.1 Arqueologia................................................................................... 140
8.2.2 Genealogia.................................................................................... 146
8.2.3 Estética da existência................................................................... 154
8.3 Conclusão: um filósofo comprometido com o tempo e a história ......... 157
Exercícios:........................................................................................................158
Referências...................................................................................................... 159
Bibliografia complementar............................................................................... 160
1. Livros publicados pelo autor — estudos teóricos.............................. 160
2. Livros publicados pelo autor — estudos arqueológicos
e genealógicos....................................................................................... 160
Apresentação

Este livro pretende convidar o leitor a um campo de reflexão que tem muito a
contribuir para a compreensão do homem contemporâneo, a partir do pensa­
mento de autores que já se tomaram clássicos na área das ciências humanas.
Indiscutivelmente, a Educação pode ser um meio privilegiado de eman­
cipação — o que indica a sua importância no processo de transformação da
sociedade e dos indivíduos — e um instrumento que capacita o homem a
determinar o seu presente e preparar o seu futuro.
Permitir a reflexão sobre essas possibilidades, mediante as perspectivas
criadas pelas aproximações entre Sociologia e Educação, é o objetivo desse
livro. Busca-se, assim, compreender como se estruturam as nossas condu­
tas no complexo contexto social para que o leitor possa desenvolver uma
postura crítica que se traduza em ações autônomas na vida social e no
campo da educação.
Para a Sociologia, nada há que seja natural neste mundo de individuos,
nada que não seja uma construção coletiva, nenhuma idéia que se sustente
solta no ar, sem que se possa associá-la ao nosso tempo ou ao modo como
fabricamos nosso destino.
Portanto, a Educação pode e deve ser um tema da Sociologia, pois edu­
car é um instrumento de conservação e de mudança da sociedade, e ainda
que as preocupações de Comte, Durkheim, Marx, Weber, Elias, Adorno,
Bourdieu e Foucault não estejam voltadas exclusivamente para a Educação,
elas permitem extrair novas perspectivas para a prática pedagógica.
As leituras e interpretações aqui apresentadas abordam questões perti­
nentes ao cenário atual da Educação, não com a ambição de responder todas
as questões, e sim para caracterizar uma introdução que, revestida de uma
conotação didática, possibilite fazer o ir e vir entre o conceituai e o cotidiano,
entre os exemplos e a teoria, entre as polêmicas e o consenso.
Como é característica de textos introdutórios, os atores se preocupa­
ram em apresentá-los de forma sintética, estruturados de forma, ao mesmo
tempo, geral e simples, evitando, no entanto, superficialidades.
Acreditamos que os diferentes autores aqui reunidos mostraram de que
modo as idéias de nossos clássicos podem contribuir para a compreensão
12 Sociologia e Eduçáo - Leituras e Interpretações

dos modos de educar; a importância da Sociologia da Educação na formação


do educador; os enfoques teóricos em Sociologia da Educação; os elementos
para uma Nova Sociologia da Educação; a ideologia da educação escolar e
transformação social; a função social da escola e o papel do professor; a
educação como cultura; as relações entre a educação e as classes sociais; os
vínculos da educação com a tecnologia, entre outros temas prementes.
A intenção é responder se o que pensadores fundamentais da Sociologia
escreveram ainda faz sentido para nós, e em especial para a nossa Educação,
em um momento no qual a nossa sociedade inter-relaciona, de forma intensa,
tradição e inovação.
Que tal ambição permita aos leitores os aproveitamentos do diálogo,
com concordâncias e discordâncias!

Alonso Bezerra de Carvalho


Wilton Carlos Lima da Silva
(Organizadores)
1
Auguste Comte, o Positivismo
e a Educação
Wilton Carlos Lima da Silva

1.1 Introdução
Qual de todas as filosofias vai ficar? Não sei.
Mas a Filosofia, espero, há de permanecer sempre.
Schiller

O século XIX foi um terreno fértil para a formação de uma nova ciência, que
objetivava explicar as dinâmicas das sociedades humanas contemporâneas,
chamada Sociologia.
A herança social, política, econômica e cultural que a sociedade oci­
dental recebeu a partir das transformações da Revolução Científica (com o
racionalismo cartesiano e o empirismo baconiano), do Iluminismo, do avan­
ço das Ciências Naturais e as revoluções políticas e econômicas ocorridas
na França e na Inglaterra nos séculos XVII, XVIII e XIX, preparou o ambien­
te de perplexidade, insatisfação e desejo de intervenção na realidade que
nutrirá o desenvolvimento de várias correntes do pensamento político e ci­
entífico do período.
Para contextualizarmos o significado de tais transformações, podemos
explicá-las uma a uma, começando pela concepção sobre o que é o conheci­
mento (Cf. ABBAGNANO, 1982, p. 308-311 e 788-789):

13
14 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

■ o racionalismo cartesiano foi uma inovação filosófica, resultado do


esforço do filósofo francês René Descartes (1596-1650) para esta­
belecer um método de pensamento que permitisse perceber a ver­
dade a partir da razão; é um sistema de pensamento que se baseia
na dúvida metódica e na busca da evidência, ou seja, todo conheci­
mento é passível de questionamento, descarta certezas e verdades,
indagando sobre aquilo que se deseja conhecer, além de propor a
decomposição analítica do “problema” em partes isoladas, em idéias
claras e distintas, filtradas pela razão — o único referencial para a
obtenção do conhecimento;
■ o empirismo baconiano, criado pelo pensador inglês Francis Bacon
(1561-1626), vincula o conhecimento à experiência sensível, ou seja,
só são aceitas verdades que possam ser comprovadas pelos senti­
dos, rejeitando conceitos que extrapolam o mundo físico e impossi­
bilitam teste ou controle.

O racionalismo e o empirismo provocam uma grande revolução no co­


nhecimento científico, afirmando a razão como instrumento de deciframento
da realidade, a dúvida metodológica e a valorização da experiência como
referenciais fundamentais, permitindo um controle sobre o mundo físico e
natural e lançando as bases para o desenvolvimento científico dos séculos
posteriores.
Em relação à filosofia política, o destaque inevitável ficaria com o
Iluminismo, corrente racionalista que surge a partir do século XVII (influên­
cia direta sobre a Revolução Francesa, entre 1789 e 1799, na qual o lema
Liberdade, Igualdade e Fraternidade justificou a extinção dos privilégios da
nobreza e do clero e a afirmação de um Estado burguês, capitalista e liberal)
e que se fará presente nos séculos seguintes, mesclando-se, em diferentes
níveis e intensidades, com as ideologias do Liberalismo, do Nacionalismo e
do Socialismo (Cf. FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 1986):

■ o Iluminismo defende o uso da razão como único instrumento de


explicação do mundo e diretriz para a organização social, represen­
tando os valores burgueses contra as arbitrariedades do Absolutis­
mo, os entraves econômicos do Mercantilismo e as desigualdades
da Sociedade Estamental; seus principais pensadores são: John Locke
(1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778) e
Rousseau (1712-1778), ferrenhos críticos das injustiças sociais, da
Cap. 1 Auguste Comte, o Positivismo e a Educação 15

intolerância religiosa e dos privilégios do Antigo Regime, e defensores


da bondade natural dos homens, da liberdade de expressão e culto,
da igualdade perante a lei e da proteção contra o arbítrio;
■ o Liberalismo surgiu no século XVII como uma doutrina econômica
e, no século XIX, apresentava-se como uma doutrina política, base­
ada na idéia do contrato social, a partir da qual se afirma a necessi­
dade do governo representativo (e do direito de voto), da divisão
dos poderes e do constitucionalismo, e as garantias do individualis­
mo burguês;
■ o Nacionalismo, no século XIX, questiona a legitimidade dos Impé­
rios em contraste com a idéia de Nação, unidade construída a partir
da etnia, língua, homogeneidade de costumes, entre outros refe­
renciais, e é analisado por alguns autores como instrumento políti­
co burguês para a consolidação de mercados; desempenhou um pa­
pel fundamental na formação de nações como Alemanha e Itália,
entre outras;
■ o Socialismo, a partir da idéia de se construir uma sociedade iguali­
tária, afirma-se como valor moral que orientaria reformas sociais,
nos chamados “socialistas utópicos”, como Henri de Saint-Simon
(1760-1825), Charles Fourier (1772-1832) e Robert Owen (1771-
1858), e como projeto político de revolução proletária no socialismo
científico de Karl Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895).

A essas mudanças ideológicas e culturais se somavam enormes avanços


técnicos que culminaram com a expansão da Revolução Industrial, marcada
pela utilização de novas fontes de energia, a criação de máquinas, a divisão e
especialização do trabalho, com uma nova organização econômica local
e transnacional, além da consolidação do domínio econômico da burguesia,
o surgimento do operariado e a consolidação do capitalismo como sistema
dominante na sociedade.
É dentro desse clima de intensas mudanças que se inserem o surgimento
e o desenvolvimento da doutrina positivista, criada e divulgada por Auguste
Comte, que se caracteriza como uma filosofia burguesa liberal, simultanea­
mente conservadora e progressista, cujo objetivo é garantir a necessária
evolução da humanidade em direção ao progresso, ao mesmo tempo que
afirma uma ordem preestabelecida, nas quais as infrações são percebidas
como negativas.
Sociologia e Educação — Leituras e Interpretações

1.2 Auguste Comte e o Positivismo


A criação da ciência social é o momento decisivo
na filosofia de Comte. Dela tudo parte, a ela tudo se reduz.
Levy-Bruhl

O pensador francês Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte (1798-


1857) criou uma poderosa escola filosófica, que ambicionava se afirmar como
uma religião racionalista, o Positivismo, e o termo Sociologia (chamada inicial­
mente de Física Social) para definir a área do conhecimento que estudaria
a sociedade.
De origem humilde, Comte foi aluno da famosa Escola Politécnica, de Paris,
lugar onde se ensinavam a ciência e o pensamento mais avançados de sua
época, e tornou-se, posteriormente, professor e jornalista.
Tendo trabalhado como secretário de Henri de Saint-Simón, de quem
também foi colaborador, entrou em contato com a obra do pensador sobre
sociedade e economia, absorvendo e afirmando, de forma original, seus pró­
prios pensamentos por meio de duas importantes obras: o ambicioso Curso
de Filosofia Positiva, publicado em seis volumes, entre 1830 e 1842, e o Sis­
tema de Política Positiva ou Tratado de Sociologia, entre 1851 e 1854 (Cf.
GIANNOTTI, 1983, p. VII-XV).1
O período entre a publicação das duas obras, quando suas idéias con­
quistam admiradores, como o eminente intelectual francês Emile Littre, o
físico David Brewster e o filósofo John Stuart Mill, ambos ingleses, é marca­
do por adversidades pessoais e profissionais, como a ruptura de seu casa­
mento, a perda do emprego na Escola Politécnica e o desenvolvimento de
sua paixão platônica por Clotilde de Vaux, irmã de um de seus alunos, mu­
lher de 30 anos (17 a menos do que ele) que fora abandonada pelo marido.
Clotilde lhe devotou uma singela amizade e veio a falecer em 1846.
O Curso de Filosofia Positiva e o Sistema de Política Positiva têm uma na­
tureza bastante diversa, pois, enquanto a primeira obra busca afirmar uma
crítica científica da filosofia e da teologia, a segunda se converte, segundo

1 Embora seja bastante clara a influência das idéias de Saint-Simon sobre o pensamento de Comte,
a ruptura entre os dois se deu por dois motivos: o primeiro foi uma questão sobre direitos
autorais, pois, em 1824, ambos publicaram um conjunto de ensaios chamado Catechisme des
industrieis, que teve somente cem cópias impressas em nome de Comte e mil impressas em
nome de Saint-Simon; e o segundo se relaciona com o desprezo inicial de Comte ao paradigma
religioso no projeto de Saint-Simon, embora, posteriormente, o Positivismo comtiano tenha
radicalizado essa mesma perspectiva.
Cap. 1 Auguste Comte, o Positivismo e a Educação 17

alguns críticos, em uma espécie de delírio político-religioso, inspirado pelo


amor platônico de Auguste Comte por Clotilde de Vaux, em um percurso
intelectual que leva a filosofia positivista ao papel de elo entre aplicações
políticas e intelectuais e as bases de uma nova religião.
O Sistema de Política Positiva, em sua publicação, foi dedicado à Clotilde
de Vaux, e afirmou a valoração da emoção sobre o intelecto, dos sentimen­
tos sobre a racionalidade, assim como do afeto do calor feminino sobre a
frieza do intelecto masculino, além de propor a criação, a partir do Positivis­
mo, de uma “Religião da Humanidade”, o que lhe valeu o rompimento com
muitos de seus seguidores racionalistas.
No entanto, é no Curso de Filosofia Positiva que se encontram suas idéias
mais frutíferas, em que, de forma profunda e original, Comte propõe a ado­
ção do método científico como base para a organização política da socie­
dade industrial moderna, ampliando radicalmente as idéias esboçadas por
Saint-Simon.
São contribuições importantes de seu pensamento nessa obra (Cf.
COMTE, 1983, p. 3-39; BOUDON; BOURRICAUD, 1993, p. 179-184):

■ a Lei dos Três Estados ou Estágios, na qual defende a idéia evolucio­


nista de que o desenvolvimento intelectual humano havia atravessado,
ao longo da História, três estados ou estágios: o primeiro, o teológico,
em que as explicações sobre o mundo e a sociedade apelavam para a
intervenção de deuses e dos espíritos; o segundo, o metafísico, perío­
do de transição em que os deuses e espíritos eram substituídos por
causas finais, essências e outras abstrações, e, finalmente, o positivo,
que se diferenciava pela consciência das limitações do conhecimento
humano e a busca da descoberta das leis, baseadas nas relações sen­
síveis observáveis entre os fenômenos naturais;
■ a classificação das ciências, ordenando-as a partir daquelas que se
fundamentavam na afirmação de princípios simples e abstratos até
aquelas que ofereciam a compreensão de fenômenos complexos e
concretos, escalonando a matemática, a astronomia, a física, a quí­
mica, a biologia e a sociologia pelo nível de complexidade, em que
esta última era considerada o fim da série por sintetizar o conheci­
mento humano, ao reduzir os fatos sociais a leis científicas;2

2 Embora não fosse dele o conceito de Sociologia ou da sua área de estudo, Comte ampliou seu
campo e sistematizou seu conteúdo. Dividiu a Sociologia em dois campos principais: Estática
Social, ou o estudo das forças que mantêm unida a sociedade; e Dinâmica Social, ou o estudo d
causas das mudanças sociais.
18 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

■ emprestou elementos de diversos pensadores para estruturar seu pró­


prio sistema de pensamento, promovendo uma síntese original de
diferentes correntes intelectuais: de Saint-Simon, a ênfase na impor­
tância crescente da ciência moderna e sua potencial aplicação para o
estudo e a melhoria da sociedade; de Adam Smith (1723-1790), iden­
tifica como princípio o egoísmo, que seria incentivado pela divisão de
trabalho; de Thomas Hobbes (1588-1679), a necessidade de um Es­
tado forte para a manutenção da coesão social (enfatizando a hierar­
quia e a obediência, rejeitando a democracia e propondo um governo
formado por uma elite intelectual); e finalmente, de David Hume
(1711-1776) e Immanuel Kant (1724-1804), a identificação da Teo­
logia e da Metafísica como modalidades primárias e imperfeitas do
conhecimento, assim como a necessidade de um conhecimento basea­
do somente em fenômenos naturais e suas propriedades e relações
com o verificado pelas ciências empíricas, entre outros.

O Positivismo representa uma ruptura com o idealismo filosófico (dou­


trina que reduz o ser ao pensamento ou a alguma entidade de ordem subjeti­
va, como o espírito, a consciência, as idéias, a vontade, entre outros, que
tomam-se a base para a compreensão da realidade), exigindo maior respeito
com a experiência e os dados positivos, recuperando referenciais do empirismo
(doutrina que identifica, como única origem do conhecimento, a experiên­
cia), nos quais a experiência sensível, imediata, pura, garante sua maior capa­
cidade de descrição e análise por meio da utilização da história e da ciência, o
que se traduz em uma enorme aproximação com o campo prático e técnico.
Por outro lado, no mundo concreto, em um período de enorme avanço
das ciências naturais, busca-se superar as limitações do idealismo e consoli­
dar essa vinculação com o empirismo mediante a aplicação dos princípios e
métodos das ciências naturais à filosofia, à procura de resultados de igual
importância, oferecendo, em um momento de ampliação de problemas eco-
nômico-sociais, uma ferramenta intelectual de base filosófica positiva, natu­
ralista, materialista, para as ideologias econômico-sociais.
Enquanto no Curso de Filosofia Positiva e no Discurso sobre o Espírito
Positivo (1844) o Positivismo se apresenta como teoria da ciência, no Cate­
cismo Positivista (1852) ele é proposto como nova religião, e, no Sistema de
Política Positiva, se afirma como um projeto para reorganizar a sociedade
humana, em que o pensador não se apresenta mais como um metafísico, e
sim como guia de uma humanidade empenhada em estabelecer inovações
nos modelos de ação humana, na ordem mundial, nas relações dos homens
entre si e deles com o mundo.
Cap. 1 Auguste Comte, o Positivismo e a Educação 19

1.3 O Positivismo e a Educação


O amor como princípio, a ordem como base, o progresso como fim.
Auguste Comte

Se a humanidade alcançou a enorme evolução em que superou o fetichismo do


estado teológico (campo da imaginação) e as abstrações do estado metafísico
(campo da argumentação) em prol do raciocinio lógico que caracteriza o es­
tado positivo (campo da observação), é necessário propor uma nova educa­
ção, tanto moral quanto técnica, para o coroamento dessas transformações.
Comte planejava escrever um Tratado sobre a Educação Universal, mas
sua morte impediu a constituição de tal obra, embora possam ser resgata­
dos, em seus escritos, algumas idéias de seu pensamento pedagógico sobre a
importância, o papel e a proposta da educação positivista.
O problema fundamental da educação, segundo Comte, era fazer com
que, em poucos anos, um único entendimento, muitas vezes medíocre, alcan­
çasse o mesmo ponto de desenvolvimento atingido, durante uma longa série
de séculos, por um grande número de gênios superiores, que aplicaram,
sucessivamente, durante a vida inteira, todas as suas forças ao estudo de um
mesmo assunto.
A forma de travar contato com essa herança histórica, dando conta de
transmitir seu movimento e resultado, era a correta ordem sucessiva das
diferentes ciências, com a intermediação do educador como elemento de
ligação entre o indivíduo e sua herança histórico-cultural.
O Positivismo entende as ciências como pesquisa daquilo que é deter­
minado, certo e útil, portanto, sua teoria pedagógica destaca os seguintes
referenciais (Cf. ARBOUSSE-BASTIDE, 1957):

■ a educação reflete uma hierarquia do poder espiritual positivo, ou


seja, deve impor a autoridade a partir de uma concepção hierárqui­
ca entre educador-educando, ocupando o educador a função de fonte
do conhecimento para o educando;
■ a educação é, em seu todo, voltada para a idéia e o culto ao Grande
Ser, isto é, à Humanidade;
■ a educação deve ser universal, para todos, independente de sexo ou
nível socioeconómico;
■ a educação familiar é a educação espontânea, especialmente mater­
na e voltada principalmente à educação moral, capaz de dominar os
impulsos egoístas em prol dos instintos simpáticos;
20 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

■ a educação sistemática deve ocorrer após a formação moral inicial,


por meio de filósofos-educadores responsáveis pela sua sistemati­
zação, preparando o indivíduo para a maioridade;
■ cabe à educação pública complementar a educação espontânea, fa­
miliar e materna, por intermédio da instrução teórica e prática;
■ é necessária a valorização da estética e da arte tanto na educação
espontânea quanto na sistemática;
■ além da educação científica, deve ser valorizado o estudo de litera­
tura e de línguas (particularmente as dos países limítrofes, critério
esse chamado de “solidariedade atual”);
■ o método geral da educação positiva divide-se em duas fases: a
anterior à puberdade, que deve enfatizar a preocupação com o con­
creto, a prática da observação e de exercícios físicos relacionados
ao cotidiano; e a partir da puberdade, que deve buscar a sistemati­
zação por meio de lições formais e programação hierárquica e orgâ­
nica das ciências;
■ os professores devem ser polivalentes (capazes de promover a inicia­
ção em todas as ciências), com destaque para o ensino oral, sendo a
utilização de livros didáticos pouco recomendada.

Esta doutrina pedagógica que ambicionava criar uma nova sociedade


teria como objetivo o reforço de três instituições que garantiriam o predo­
mínio do altruísmo sobre o egoísmo, a saber: a propriedade (fonte da produ­
ção que excede às simples necessidades individuais e imediatas, permitindo
o acúmulo de provisões que se tornam úteis a todos); a família (fonte da
educação espontânea que cultiva o sentimento de solidariedade e o respeito
às tradições) e a linguagem (fonte da comunicação entre os indivíduos que
permite a formação de um capital intelectual necessário ao bem comum).

1.4 O Positivismo na Educação brasileira


O progresso é o desenvolvimento da ordem,
assim como a ordem é a consolidação do progresso.
Auguste Comte

A propagação do Positivismo estabeleceu diferenças de acordo com as condi­


ções locais, sendo que, no caso brasileiro — cuja sociedade vivia um conjun­
to de transformações radicais entre a segunda metade do século XIX e o
começo do XX, com o fim do tráfico negreiro, a expansão da imigração, a
Cap. 1 Auguste Comte, o Positivismo e a Educação 21

abolição da escravidão, a ascensão econômica de novas elites ligadas ao café,


a profissionalização do Exército, o fim da Monarquia e o início da República,
entre outras mudanças — foi criado um cenário extremamente receptivo ao
Positivismo (Cf. GIANNOTI, 1983, p. XIV-XV).
Essa receptividade se materializou em uma enorme influência do
positivismo de Comte e de seus seguidores tanto em correntes de pensa­
mento relacionadas com a reflexão sobre a ciência e seu desenvolvimento
no país, como também no movimento republicano e nas reformas educacio­
nais da Primeira República.
No âmbito geral, as elites brasileiras consideravam o positivismo como
uma chave de acesso para a modernidade, inclusive justificando os meios
autoritários para alcançá-la, propondo a verdadeira democracia por meio
da subordinação consciente dos cidadãos a uma hierarquia administrativa
consolidada por uma ditadura científica, capaz de vencer os estágios de atraso
e estagnação que, numa linearidade evolucionista, levar-nos-ia ao progresso
(Cf. LINS, 1967).
Os positivistas brasileiros foram contrários à criação da primeira uni­
versidade no Brasil, em 1882, por D. Pedro II, criticaram de forma veemente
as fragilidades do projeto, afirmando, inclusive, que a ciência não deveria
ser oficializada, pois perderia sua capacidade de crítica pelo vinculo com o
Estado, sendo necessário, ao contrário, garantir ao ensino um caráter priva­
do, capaz de expressar, de forma livre, os diferentes interesses presentes na
sociedade.
Embora a existência de universidades de prestígio e de renomados pro­
fessores seja condição para a criação e transmissão do conhecimento, im­
pulsionando o desenvolvimento das ciências, os positivistas entendiam que
o ensino, mantido pelo Estado, seria controlado e censurado pelo poder
político, com caráter conservador, o que impediria a pesquisa livre e a fun­
damentação do progresso.
Embora contrários à criação de uma universidade, os positivistas de­
senvolveram enorme influência no pensamento produzido nas escolas técni­
cas, militares e faculdades, destacando-se, em particular, a Escola Politécnica
e a Escola Militar do Rio de Janeiro, assim como a Faculdade de Direito do
Recife, não só pela sua defesa da importância das ciências exatas e naturais,
modelos do pensamento objetivo de Comte, como pelo projeto de transfor­
mação social capaz de superar o atraso a que o Brasil estava relegado.
Em relação às reformas educacionais, por sua vez, o positivismo com-
tiano se manifesta, entre outras inspirações, nas construções curriculares
da Primeira República, que, sob a influência direta de Benjamim Constant,
22 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

busca afirmar o prestígio do cientificismo nas propostas pedagógicas


implementadas.
Já no imediato início da República se aplicou um conjunto de mudan­
ças, identificadas como a Reforma de 1890, que, sob a influência positivista,
determinou que (Cf. LOBO NETO, 1999):

■ o ensino secundário, que no Distrito Federal, no Rio de Janeiro,


limitava-se ao Ginásio Nacional (Colégio Pedro II, utilizado como
modelo para o resto da nação), superava o objetivo introdutório,
adquirindo o sentido de formação educativa em si mesmo;
■ alterava o currículo, estruturando-o com uma parte de ciências fun­
damentais, a partir da ordem lógica proposta por Comte;
■ ocorria a manutenção de conteúdos e o acréscimo de novidades, as
ciências fundamentais, em uma opção enciclopedista de conteúdos;
■ afirmava-se o aspecto físico, estético e moral da aprendizagem (em
disciplinas como Ginástica, Música, Desenho e Moral), como tam­
bém a preocupação com o desenvolvimento de uma compreensão
das dinâmicas sociais (além de História Universal e do Brasil, havia
ainda Sociologia, Direito Pátrio e Economia Política);
■ a introdução precoce, inspirada em um intelectualismo irrealista,
de disciplinas que o próprio sistema comtiano não propunha como
modelo para adolescentes, e sim para adultos.

Esse modelo, intelectualista e grandioso, recebe críticas desde seu pri­


meiro ano de implementação, ao contrariar a concepção preparatória do
ensino secundário, além de revelar um completo desconhecimento de uma
teoria pedagógica e de uma psicologia educacional, sendo reflexo não da
realidade local, mas do modelo comtiano.
A partir das críticas levantadas em 1898, oito anos depois da implanta­
ção do modelo de Benjamim Constant, é estabelecida uma nova reestruturação,
na qual buscou-se harmonizar humanismo e modernidade, adotando-se, no
Colégio D. Pedro II, dois cursos distintos: o curso clássico e o curso realista.
No entanto, em 1901, o novo Código de Ensino restabelece o plano de
ensino unificado, proposto por Benjamim Constant, e reduz o tempo total
de curso para seis anos (retirando Biologia, Sociologia e Moral, e introdu­
zindo Lógica).
Em 1911, ocorre nova reforma, com a valoração de idéias positivistas
como a adoção de critério prático no estudo das disciplinas, a ampliação da
Cap. 1 Auguste Comte, o Positivismo e a Educação ¿3

liberdade de ensino e de freqüência, assim como a transferência, para as


faculdades, do exame de acesso ao ensino superior.
Como cada governo acredita ter soluções de curto prazo para questões es­
truturais, em 1915, ocorre uma nova reforma, restaurando a situação anterior.
Aos poucos o ideário positivista se afasta da ortodoxia comtiana, mas
mantém-se vivo, com novas características que refletem as complexidades e
diferenciações de um movimento de idéias e aspirações imersas em uma
dinâmica de desenvolvimento científico e tecnológico.
Se as referências diretas ao positivismo se tornam mais raras ao longo
do tempo, com outras influências se fazendo notar, algumas das percep­
ções cientificistas de Comte se insinuam toda vez que se discute o papel da
ciência e da tecnologia no desenrolar das concepções educacionais e na
adoção de medidas de ação educacional, mesmo quando se analisam algu­
mas situações atuais.
Finalmente, deve ser feita aqui uma ressalva importante: embora Comte
tenha desenvolvido um sistema de pensamento cientificista e racionalista
— o Positivismo, no qual ocorre uma exposição geral da doutrina e do
método científico —, não é verdade que todos aqueles que sejam cien­
tificistas e racionalistas sejam discípulos de Comte, e, sim, que se utilizam
de procedimentos gerais de investigação e de uma maneira de interpretar
os fenômenos que já haviam sido propostos 200 anos antes do nascimento
desse pensador, e que fazem parte de uma herança comum do pensamento
contemporâneo.

Exercícios
1. Alguns críticos da obra de Auguste Comte afirmam que ele começou a
estruturação de uma filosofia e completou a criação de uma religião. A
partir dessa perspectiva:
a) Por que esses críticos fazem essa afirmativa?
b) Na sua opinião, que diferenças podemos apontar entre uma filosofia
e uma religião?
2. Sobre as idéias e os conceitos propostos por Auguste Comte, explique:
a) a Lei dos Três Estágios;
b) a classificação hierárquica das ciências;
c) o papel da educação para o Positivismo.
24 Sociologia e Educação — Leituras e Interpretações

3. Discuta três das características da educação, propostas por Auguste


Comte, mostrando seus pontos positivos e negativos.
4. O Positivismo enfatiza a necessidade de um ensino nitidamente técnico e
prático. Atualmente, com as discussões sobre o aprender a aprender,
busca-se valorizar o ensino humanístico e reflexivo. Na sua opinião, quais
são as características do ensino atual que ainda conservam elementos
positivistas, e como podemos compará-los com os modelos atuais?
5. O conhecimento sociológico se mostra útil na atuação de diferentes
profissionais, por permitir contextualizar suas práticas com uma pers­
pectiva mais ampla sobre a sociedade em que se inserem. De que forma
a Sociologia, nos moldes propostos por Auguste Comte, pode ser útil
para a sua atividade de professor?
6. “Os positivistas brasileiros foram contrários à criação da primeira uni­
versidade no Brasil, em 1882, por D. Pedro II, criticaram de forma vee­
mente as fragilidades do projeto, afirmando, inclusive, que a ciência
não deveria ser oficializada, pois perderia sua capacidade de crítica pelo
vínculo com o Estado, sendo necessário, ao contrário, garantir ao ensi­
no um caráter privado, capaz de expressar, de forma livre, os diferentes
interesses presentes na sociedade.” A partir da realidade educacional
atual, faça uma crítica da perspectiva defendida pelos positivistas no
século XIX (veja o Item 1.4: O Positivismo na Educação Brasileira).

Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. La Doctrine de Véducation universelle dans la
philosophie d'Auguste Comte. Paris: Presses Universitaires de France, 1957.
AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo; Brasília: Melhora­
mentos; INL, 1976.
BARROS, Roque Spencer Maciel de. Positivismo e Educação. In: Ensaios so­
bre Educação. São Paulo: EDUSP; Grijalbo, 1971. p. 129-150.
BOUDON, Raymond; BOURRICAUD, François. Dicionário crítico de Sociolo­
gia. São Paulo: Ática, 1993.
COMTE, Auguste. Col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Cap. 1 Auguste Comte, o Positivismo e a Educação 25

COSTA, João Cruz. O positivismo na República: notas sobre a história do


positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956.
_____ .. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: Civiliza­
ção Brasileira, 1967.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2000.
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Ja­
neiro: FGV, 1986.
GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. São Paulo: Ática, 1993.
HOBSBAWN, Eric. A era das revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
_____ . A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
LINS, Ivan. História do positivismo no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacio­
nal, 1967.
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix, 1979.
v. IV (1877-1896).
RIBEIRO, Maria Luísa Santos. História da educação brasileira: a organização
escolar. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1991.
TORRES, João Camilo de Oliveira. O positivismo no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1957.

Leituras recomendadas
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
G1ANNOTTI, José Arthur. Comte: vida e obra. In: COMTE. Col. Os pensado­
res. São Paulo: Abril, 1983. p. V-XVI.
Um texto curto e panorâmico sobre o pensador francês, abordando tanto a
sua trajetória pessoal quanto sua produção intelectual.
LINS, Ivan. História do positivismo no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacio­
nal, 1967.
Um livro clássico, longo e denso sobre o tema, que aborda a penetração e o
impacto do positivismo no Brasil, tanto como doutrina filosófica quanto como
projeto religioso.
26 Sociologia e Educação — Leituras e Interpretações

LOBO NETO, Francisco José da Silveira. O positivismo e a educação no Brasil:


cientificismo, progresso e República, [s.l.: s.n.], 1999. Disponível em: <http:/
/sloboneto.com/hedbrpositrepub.html>. Acesso em 10 maio 2005.
Texto didático produzido pelo professor da UFF e disponibilizado na Internet,
sobre a influência do Positivismo na educação brasileira, particularmente na
Primeira República.
2
A Educação sob o enfoque de
Émile Durkheim
Regiane Aparecida Atisano

2.1 Introdução
O presente capítulo tem o objetivo de apresentar sucintamente o método
científico de Émile Durkheim e suas implicações no estudo da educação.
Salientamos que o período (final do século XVIII) em que o autor se dedicou
a este estudo apresentava características diferenciadas do atual, sendo im­
portante destacar que a teoria deve ser atualizada. Este também é um item a
ser abordado por esse texto, enfatizando as condições que a sociedade da
informação nos traz no ambiente educacional, sob o ponto de vista da moral.
Para tanto, passaremos pelos conceitos de fato social, solidariedade me­
cânica e solidariedade orgânica, para, em seguida, contextualizarmos a forma
como Durkheim analisava a educação, sem desvinculá-la da necessidade de
regulação social emergente na sociedade da época.

2.2 Durkheim e a Sociologia


Anteriormente a Émile Durkheim (1858-1917), o filósofo Auguste Comte
(1791-1857) já preparava o terreno para o desenvolvimento de uma nova
ciência, a Sociologia. Comte fundamentou grande parte de sua teoria sob o
28 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

enfoque das ciências naturais, ou seja, a Sociologia (Física Social) teve os


seus princípios modelados conforme uma ciência natural, da qual se utilizou
a observação empírica, com formulações de leis, reforçando o caráter
positivista dessa ciência (ARON, 1999, p. 65-121).
Durkheim, de certa forma, deu continuidade a esse caráter, porém, dife­
renciou-se de Comte quando intentou criar uma ciência independente e com
método próprio. A maior preocupação de Durkheim era imprimir uma mar­
ca específica para a Sociologia, apresentando-a como uma ciência distinta
das outras.
Para Durkheim, a ciência positiva Sociologia apresentava-se como um es­
tudo metódico que conduz ao estabelecimento de leis, por meio da observação
e da experimentação indireta, ou seja, desenvolvia aqui o seu método compa­
rativo. O objetivo era investigar a constituição das instituições e explicar o seu
funcionamento, visto que a Sociologia “pode chamar instituição toda a crença,
todo o comportamento instituído pela coletividade, sem desnaturar o sentido
da expressão; a Sociologia seria então definida como a ciência das instituições,
de sua gênese e de seu funcionamento” (DURKHEIM, 1978, p. 30).
Para entender as instituições, era necessário fazer a comparação entre
organizações sociais em seus diferentes tempos históricos, a fim de encon­
trarmos “as leis que comandam a evolução dos sistemas, as causas que deter­
minam seu desenvolvimento e suas conseqüências” (TURA, 2001, p. 37-38).
Dessa forma, Durkheim construía a ciência social, estudando a sociedade e
seus componentes de forma empírica e objetiva.
Entretanto, no momento do estabelecimento da Sociologia como ciência,
Durkheim confrontava-se com a desconfiança da sociedade científica quan­
to a este novo estatuto, pois era uma ciência jovem que não apresentava,
ainda, dados suficientemente comprováveis, nem mesmo uma teoria densa e
madura. Para tanto, Durkheim demonstrou-se, em muitos momentos, rígido
às críticas e às mudanças em sua ciência, afinal tratava-se do reconhecimento
dela como ciência específica dos fatos sociais.
Uma outra característica que foi alvo de críticas à ciência de Durkheim
refere-se a sua postura consideravelmente conservadora ou moralizante.
Entretanto, é importante notar que o período vivenciado por Durkheim teve
forte influência nesse aspecto, ou seja, a França, a partir de 1848, sofreu
grandes perturbações políticas e sociais3 com os novos agentes — burguesia
e proletariado. Esse contexto permitiu que, após as turbulências, os Estados

3 Sugere-se a leitura do artigo de TURA, 2001.


Cap. 2 A Educação sob o enfoque de Émile Durkheim 29

reivindicassem uma nova ordem social. O intuito era vencer a diferenciação


que o desenvolvimento do capitalismo e das inovações tecnológicas acarre­
tava, conduzindo a sociedade a uma dispersão dos costumes, crenças e hábi­
tos. A busca da coesão social era necessária para os Estados recuperarem a
estabilidade política, a moral, segundo Durkheim, possibilitaria essa coesão,
tornando comuns, novamente, hábitos, costumes e crenças.
Esse contexto contribuiu muito para o desenvolvimento da Sociologia
e, principalmente, para as análises por ela apresentadas. Para Durkheim, o
consenso e a homogeneidade eram itens recorrentes à constituição e funcio­
namento das organizações, mesmo consciente das diversidades trazidas pelos
avanços tecnológicos e pela divisão do trabalho, proporcionados pela socie­
dade industrial.
Portanto,
[... ] o crescente individualismo que a nova ordem social propiciava e a necessidade
de fortalecer a educação moral da juventude, como estratégia de contenção dos
individualismos e do favorecimento dos processos de humanização realizados nas
instâncias da interação social. Era necessário pôr muita coisa em ordem e este valor
estava fortemente arraigado em sua sociologia (TURA, 2001, p. 32).

Sendo assim, a escola seria uma das instituições adequadas à recupera­


ção da ordem social, visto que a transmissão de conhecimentos, hábitos,
crenças e costumes por parte dos professores permitiria a constituição da
moral até então ausente na sociedade.
Além desta necessidade de regulação social, Durkheim tinha, a seu favor,
no mesmo período, a ampliação do ensino público na França (desde o século
XVII) e suas formas de administração, reforçando o papel da escola como
substituta da família e da Igreja, principalmente em relação aos conhecimen­
tos fundamentais para a convivência social, como: posturas, regras, direitos e
deveres, obediência a autoridades, crenças, nacionalismo etc.
Assim, dentro desse contexto e das discussões suscitadas, Durkheim
desenvolveu a Sociologia e seu método, definindo mais exatamente o objeto
como fato social. É o que veremos agora.

2.3 O que é Fato Social?


É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o
indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na
extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência pró­
pria, independente de suas manifestações individuais (DURKHEIM, 1995, p. 13).
30 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

A partir dessa definição, Durkheim desenvolveu o objeto da Sociologia


e as suas condicionantes: coercitividade, exterioridade e generalidade. Sem
estas três características, não estaremos diante de um fato social, pois elas o
compõem e o explicam.
Sendo este capítulo específico para a área de educação, vamos tomá-
la como exemplo para entender o fato social. Para Durkheim, a educação
exerce coerção sobre os indivíduos, obrigando-os a se conformarem aos
seus conteúdos, costumes e hábitos, desenvolvidos na escola e presentes
na sociedade, isto é, para que sejamos aceitos na coletividade em que vive­
mos, é preciso que nos adaptemos às posturas por ela demandadas. A edu­
cação também se apresenta de forma exterior ao indivíduo, ou seja, não
cabe a ele decidir ou desejar ser educado conforme os padrões estipulados
pela sociedade, isso já foi definido antes mesmo do seu nascimento, tem
existência própria. E, por fim, a educação tem um aspecto geral, não se
trata de um caso isolado e, sim, de um mecanismo adotado na maior parte
dessa sociedade.
O sistema educativo de determinada sociedade tem características
imbricadas de costumes, hábitos e crenças, condizentes com a realidade
social, política, econômica e cultural. Quando Durkheim o caracteriza como
um fato social, não basta observar o comportamento individual para enten­
der sua extensão. Ele definiu as três características citadas acima para que
entendamos que um fato social só é explicado por meio de outro fato social,
a partir da investigação das instituições e a explicação do seu funcionamen­
to. A educação — fato social e instituição — apresenta-se independente dos
indivíduos, ela é uma força maior do que eles, que lhes dita comportamentos
exigidos pela sociedade. Note-se também que Durkheim era ciente da im­
portância dos indivíduos para a constituição da sociedade, do fato social ou
de uma instituição, todavia, não era a parte que lhe interessava, e sim a
influência que o todo tinha sobre as partes, por isso, tanta ênfase nas insti­
tuições e suas diretrizes.
Cada classe, com efeito, é uma pequena sociedade, e será preciso que ela seja
conduzida como tal — não como se fosse uma simples aglomeração de indivíduos
independentes uns dos outros. Em classe, as crianças pensam, sentem, agem de
modo diverso do que quando estejam isoladas (DURKHEIM, 1978, p. 74).

Outro aspecto de suma importância para Durkheim era o tratamento


do fato social. A objetividade foi mais um assunto bastante debatido para o
fortalecimento da Sociologia como ciência. Toda ciência apresenta seu mé­
todo e a devida imparcialidade nas análises subseqüentes. Com a Sociologia
não foi diferente, porém, ressalta-se que não estamos falando do estudo de
Cap. 2 A Educação sob o enfoque de Émile Durkheim 31

objetos ou matérias, e sim de seres humanos em vida social, da qual também


fazemos parte. Entretanto, isso, para Durkheim, não deveria ser considera­
do, era necessário tratar todo fato social como “coisa”. Esse termo trouxe,
para o debate, muitos questionamentos sobre a possibilidade ou não de ser
objetivo quando se tratava de estudar as relações sociais e suas instituições.
Durkheim argumentava de forma bastante clara e convincente, afirmando
que o objeto de estudo não poderia depender dos desejos ou das prenoções
do cientista, e sim ser analisado de forma distante das concepções e opiniões
próprias. O fato social deve ser estudado como um material que o cientista
posiciona sobre a mesa e o observa sob diferentes perspectivas, procurando
desvendar as mais recônditas nuances que o olho do leigo, modelado com as
prenoções existentes na sociedade, não pode ver.

2.4 Solidariedade mecânica e orgânica


Para que possamos entender os conceitos de Solidariedade Mecânica e Orgâ­
nica, precisamos nos ater, primeiro, ao conceito de Consciência Coletiva, a
qual é definida como:

[...] o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de
uma mesma sociedade [que] forma um sistema determinado que tem sua vida
própria; [...] Sem dúvida, ela não tem por substrato um órgão único; é, por defini­
ção, difusa em toda extensão da sociedade (DURKHEIM, 1995).

Essa consciência coletiva é determinada pela moral dominante na socie­


dade, que estipula quais são as crenças, os hábitos, os costumes e a religião
a serem cumpridos e disseminados em sua totalidade:
[...] está se intentando estudar como as coisas se dão no contexto de seu tempo e
espaço, marcado pelas crenças e valores de uma organização social que determina
formas de ver, sentir e pensar, que são forjadas de símbolos que se imbricam na
consciência coletiva e produzem representações coletivas (TURA, 2001, p. 37).

Segundo Durkheim, essa consciência pode ser encontrada em dois ti­


pos de organizações: mecânica e orgânica. As sociedades fundamentam-se
na divisão do trabalho, a qual se apresenta como articuladora das diferentes
funções, com o fim de harmonizar a sociedade. Ocorre uma solidariedade
com autonomia (mecânica) e com dependência (orgânica). A diferenciação
é feita pela evolução das sociedades, pois, para Durkheim, elas passavam das
mais simples para as mais complexas.
O termo solidariedade pode ser entendido como organização, ou seja, a
forma que as sociedades se estruturaram. A primeira, e mais presente em
32 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

sociedades simples, é a mecânica. A solidariedade mecânica se caracteriza


pela forte presença da consciência coletiva que mantém o consenso e a
homogeneidade por meio da manutenção da família, da religião, da tradição
e dos costumes, permanecendo, em geral, independente e autônoma em re­
lação à divisão do trabalho social. Essa autonomia na divisão do trabalho
reflete a semelhança encontrada nos diversos setores, não necessitando da
interligação de especialidades, ao contrário da solidariedade orgânica, carac­
terizada muito mais pela diferenciação e especialização, que necessita, conse­
qüentemente, da interdependência na divisão do trabalho. Essa interdepen­
dência gera a união social no lugar da tradição e costumes, porém, há um
afrouxamento da consciência coletiva, que, nesse caso, não mantém uma
coesão por similitude, e sim por inter-relação. A interdependência ocorre
por meio da especialização, e é possível desenvolver uma autonomia pessoal
devido à dissolução da consciência coletiva.
A solidariedade pressupõe direitos e deveres e constitui uma função
moral. Entretanto, conforme as sociedades vão se desenvolvendo, aumen­
tando a divisão do trabalho e modificando costumes e crenças, a moral sofre
alterações que propiciam um estado de desajuste, caracterizando o que
Durkheim chamaria de “anomia”:

[...] na visão durkheimiana, as sociedades têm necessidades sociais que sâo materia­
lizadas na consciência coletiva. Contudo, se pode perceber, em diferentes circuns­
tâncias históricas, que o aparecimento de novas necessidades sociais entra em desa­
cordo com o que se materializou nas consciências coletivas e nas instituições sociais.
Ou seja, no dinamismo do processo social se pode verificar a existência de desajustes
entre normas e costumes instituídos e necessidades emergentes. Estas últimas estão
vinculadas ao progresso social (TURA, 2001, p. 46).

As mudanças sociais podem partir de um subsistema específico e a cons­


ciência coletiva ainda não assimilou as novas crenças e valores referentes à
mudança. Por isso, Durkheim acredita em “uma nova moral para que a socie­
dade tenha mecanismo de incorporação das novidades” (TURA, 2001, p. 47),
a fim de sair do estado de anomia. Essa nova moral fica a cargo de algumas
instituições, como a escola ou, até mesmo, o Direito. Este último se consti­
tui para os dois tipos de solidariedade: na mecânica, encontramos o Direito
Repressivo (DURKHEIM, 1977), próprio de uma sociedade com consciên­
cia coletiva coesa, que necessita do Direito para manter a ordem social; já
na solidariedade orgânica, há o Direito Restitutivo, característico de uma
sociedade com especialidades e diferenciações que também precisam ser
reguladas socialmente, porém consciente da não-existência de uma homo­
geneidade, e sim de uma diversidade oriunda da divisão do trabalho.
Cap. 2 A Educação sob o enfoque de Emile Durkheim 33

Portanto, para Durkheim, a sociedade apresenta instituições capazes


de regular a ordem social, sendo que o Estado seria a primeira delas. Ele
concede, a outras instituições, no caso a escola pública, o papel de transferir
os valores éticos, costumes, direitos e deveres, respeitando as diferencia­
ções constituintes das sociedades complexas.

2.5 Sociologia da Educação


Vínhamos afirmando que o Estado é um regulador social com o intuito de
estabelecer a ordem na sociedade. A educação, sendo uma das funções do
Estado, conseqüentemente, torna-se também reguladora dessa moral.
A escola aqui é apenas uma das instituições que, no processo de divisão
do trabalho social, assume para si a tarefa específica de intermediar a coer­
ção que a sociedade exerce sobre o indivíduo, buscando completar mais
rapidamente o seu processo de socialização. Socializar é, para Durkheim, o
mesmo que educar, ou seja, internalizar os traços constitutivos dos meios
morais que cercam o indivíduo (SOUZA, 1994, p. 8).
Concebendo as sociedades complexas com uma divisão do trabalho
muito mais desenvolvida do que as sociedades simples, Durkheim entende
que as diferentes instituições da sociedade exercem suas funções de forma a
integrar os indivíduos. Enquanto havia, nas sociedades simples, estruturas
pertencentes a um tipo de consciência coletiva, permitindo que ocorresse
uma coesão maior entre os indivíduos, nas sociedades complexas, com a
divisão do trabalho, não há tanta coesão por meio da consciência coletiva, e
sim pela interligação necessária entre as partes. Dessa forma, a escola apre­
senta-se como uma instituição importantíssima para a socialização da moral
primordial para o equilíbrio da sociedade.
Essa socialização, segundo Durkheim, compõe o processo de aprendi­
zagem social que permite a absorção das formas de viver da sociedade, seja
pensamentos, atitudes, símbolos ou regras. No bojo dessa socialização, está
a moral da sociedade, a qual é constituída por alguns tipos de regras, direi­
tos e deveres, sistema de recompensa e castigo etc. Essa mesma moral tam­
bém faz parte da linha mestre de ensino nas escolas, ou seja, as práticas
pedagógicas adotadas na educação não são desvinculadas da estrutura social
à qual pertence. Os mesmos princípios desenvolvidos na sociedade, por meio
de outras instituições sociais, são adotados na escola, a fim de acompanhar
“a constituição e as necessidades do organismo social” (TURA, 2001, p. 49).
O fim último da escola como reguladora social é “difundir uma moral laica,
racional, que proporcionasse a coação social” (SOUZA, 1994, p. 8).
OH sociologia e tducaçao - Leituras e Interpretações

Portanto, a educação, para Durkheim, define-se como:


[...] a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontrem
ainda preparadas para a vida social; tem por objetivo suscitar e desenvolver, na
criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela
sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particu­
larmente, se destine (DURKHEIM, 1978, p. 41).

É nesta relação geracional de transmissão que o indivíduo adquirirá


todos os preceitos necessários à sobrevivência na sociedade. Existe um
“patrimônio de conhecimentos acumulados, da ciência produzida, dos siste­
mas de classificações, de idéias, de fórmulas, de valores, de técnicas e, espe­
cialmente, a linguagem própria do grupo” que oferece suporte para a identi­
ficação dele com o seu meio social. “Tudo isso resulta da cooperação, do
aproveitamento da experiência, do legado de cada geração que é conserva­
do e que produzem (sic) atributos humanos comuns” (TURA, 2001, p. 42).
Quando passamos a interpretar a sociedade moderna sob a luz da teoria
educacional de Durkheim, surgem questionamentos sobre a existência
desses preceitos comuns, sabendo que o desenvolvimento econômico e
tecnológico dessa sociedade cria multiplicidade de idéias e costumes, o que
aparentemente demonstra uma fragilidade do sistema de ensino como regu­
lador social. Há um desmembramento de princípios regulatórios, principal­
mente se partirmos das concepções anteriores de moral, em que esses pre­
ceitos se apresentam como um “ente social” de forte espectro que influencia
a todo o grupo. Hoje, parece não haver uma moral assim, de caráter rígido.
Entretanto, existe uma moral nas sociedades atuais, não como a concebía­
mos anteriormente (no século XVIII, segundo a moral religiosa), e sim como
uma moral fundamentada em novas concepções de mundo, oriunda do
enfoque religioso, tecnológico, racional, idiossincrático, enfim, a moral das
décadas atuais constitui-se de uma diversidade muito maior do que a de
séculos atrás.
Segundo Durkheim, o que ocorre, na verdade, é a ineficácia dos meca­
nismos tradicionais, apresentando um certo desequilíbrio social. Todavia,
conforme estudos atuais, não acreditamos que aconteça uma exclusão total
da moral, e sim, como já afirmamos, há uma reestruturação dessa moral
(CASTELLS, 1999; DE MASI, 2000; LIBÂNEO, 2000). Princípios diferentes
a compõem, principalmente no que se refere à nova ordem imposta pela
sociedade de informação. E claro que é possível identificar uma “anomia”,
como o próprio Durkheim afirma, porém, trata-se de uma fase de transição,
durante a qual estamos sofrendo alterações fundamentais em nossas atitu­
des, crenças, costumes, pensamentos e representações.
Cap. 2 A Educação sob o enfoque de Emile Durkheim 35

Essa anomia, na época em que Durkheim estudava as instituições sociais,


apresentava-se como uma fragilidade da coesão social das instituições reli­
giosas tradicionais, por via do processo de racionalização da sociedade mo­
derna. De fato, esse processo é perceptível em nossa realidade, entretanto,
reafirmamos que há uma nova constituição moral na sociedade a partir das
concepções informacionais.

2.6 Conclusão
A partir do enfoque durkheimiano, podemos entender a escola como uma das
instituições primordiais para o desenvolvimento de uma consciência coletiva,
necessária para o estabelecimento do equilíbrio social. Diante de tantas per­
turbações sociais oriundas dos setores econômicos e políticos, presenciadas
nacional e mundialmente, entendemos que a escola, no momento, não alcança
uma estabilidade, e sim reproduz a multiplicidade de conhecimentos, as dife­
renciações sociais de classe, os avanços tecnológicos, a profissionalização ne­
cessária para a industrialização e, conseqüentemente, toda a moral constituinte
dessa diversidade (BOURDIEU; PASSERON, 1992).
O período é de oscilações, inclusive, pelo fato de a sociedade de infor­
mação propiciar mudanças rápidas, tanto de técnicas quanto de representa­
ções. Um trabalho por nós desenvolvido sobre as representações sociais dos
alunos sobre a escola aponta para uma nova ordem que a escola está desven­
dando, mas que ainda não está apta a responder, pois apenas se posiciona de
forma a atualizar seus equipamentos, pela posse do computador ou da
internet, mas ainda não desenvolve, em seus alunos, a interatividade que
estas novas tecnologias propiciam fora da escola (ATISANO, 2001).
Segundo Durkheim, a escola deveria preparar os jovens, por meio dos
preceitos básicos, para a convivência na sociedade. Hoje, ela apresenta-se
com esse intuito, porém, formando-os não para a interpretação e a análise
crítica sobre a nova realidade, e sim como instrumentos laboriosos para a
nova tecnologia. Principalmente quando nos referimos à escola pública, que
atende, em nossa realidade brasileira, a uma parcela considerável da popula­
ção, mas que, ainda, não possui todo o equipamento quantitativo e qualita­
tivamente necessário para a preparação desse novo agente social.
Uma nova ordem social sendo implantada no mundo, a globalização é
um processo extensivo a todas as nações, e a escola não tem como fugir
disso. Ela tem sua participação preparatória para a inserção dos indivíduos
nesse contexto, entretanto, é preciso salientar a constante necessidade dos
profissionais da educação (professores, pedagogos, psicólogos, sociólogos
3t> Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

etc.) de dar continuidade à fiscalização dos trabalhos empenhados pelo


Estado, para que este, conforme Durkheim afirmava, cumpra seu papel de
regulador social, permitindo que não haja uso indevido da escola pública, a
fim de atender a interesses individuais.
A escola continua sendo uma instituição de importantíssimo papel na so­
ciedade, seja por ser reconhecida pela sua capacidade de instrução, seja pela
sua função socializadora. O desafio está lançado a todos nós; cumpre, devido a
nossa formação científica, apontar e efetivar as alternativas justas para o uso
desta instituição secular e imprescindível para o funcionamento social.

Exercícios
1. Argumente sobre o interesse de Émile Durkheim pela educação, con­
forme o contexto histórico que ele vivenciava.
2. Explique o que é fato social, utilizando a educação como exemplo.
3. Defina os conceitos de Solidariedade Mecânica e Solidariedade Orgânica.
4. Na sua opinião, qual é a aplicabilidade da teoria educacional de Durkheim
nos dias atuais?

Referências
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
ATISANO, Regiane Ap. Escola.com.br — A representação social das tecno­
logias na realidade escolar. 2001. Dissertação (Mestrado) — Universidade
Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, julho 2001.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A reprodução. Elementos para
uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1.
DE MASI, Domenico. A sociedade pós-industrial. São Paulo: Senac, 2000.
DURKHEIM, Émile. A divisão do trabalho social. Lisboa: Presença, 1977.
_____ • Educação e Sociologia. 11. ed. São Paulo: Melhoramentos; MEC, 1978.
-------- As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LIBÃNEO, José Carlos. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências
educacionais e profissão docente. São Paulo: Cortez, 2000.
Cap. 2 A Educaçáo sob o enfoque de Émile Durkheim 37

SOUZA, João Valdir Alves de. Uma leitura da educação à luz das teorias
sociológicas de Émile Durkheim, Max Weber e Talcott Parsons: um ensaio
de interpretação. Educação em revista, Belo Horizonte, Faculdade de Educa­
ção da UFMG, n. 20 a 25, 1994.
TURA, Maria de Lourdes Rangel. Durkheim e a Educação. In:_________ (Org.).
Sociologia para educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2001.
3
Contribuições do Materialismo
Histórico para a Educação
Wilton Carlos Lima da Silva e
Alonso Bezerra de Carvalho

3.1 Introdução
O século XX foi denominado, por Eric Hobsbawm (1997), como a era dos
extremos, em que mudanças radicais e rápidas ocorreram no mundo, levan­
do à construção de novas perspectivas no processo de organização social e
de formação humana. Nesse contexto, uma das correntes de pensamento
que influenciou a vida de pessoas, nações, instituições etc. foi o materialis­
mo histórico, ou o marxismo, formulado por Karl Marx e Friedrich Engels, no
século anterior.
Karl Marx (1818-1883), com Friedrich Engels (1820-1895), estruturou
os conceitos que fundamentaram o socialismo científico, doutrina política
chamada de comunismo ou marxismo. Entre suas obras, destacam-se: O
Manifesto do Partido Comunista (1848), Para a crítica da economia política
(1859), O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852) e O Capital (o primeiro
volume foi publicado em 1867, contendo os conceitos básicos do marxis­
mo, como a teoria do valor, a da mais-valia ou excedente do trabalho e a da
acumulação do capital; os outros dois volumes só foram publicados após
sua morte).
40 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

3.2 Origens e influências


A obra de Marx não é exclusivamente sociológica, dedica-se também a dife­
rentes áreas do conhecimento, como a Filosofia, a Economia e a História,
propondo a superação da sociedade capitalista, influenciando todas as áreas
e esferas da vida humana. Uma extensa obra que aborda uma grande varie­
dade de temas e idéias, formando uma heterogeneidade que lhe permitiu
diferentes interpretações, nas quais identificam-se as seguintes influências:

■ Socialismo utópico: doutrina política surgida no final do século XVIII


e início do XIX, em que reformadores sociais propunham igualdade
social por meio da união entre os setores produtivos — burguesia e
operariado — não sendo capazes de anteverem as resistências que
a sociedade capitalista oporia a eles. Entre os socialistas utópicos,
destacam-se:

a) Claude-Henri Saint-Simon (1760-1827), autor das obras Cartas


de um habitante de Genebra a seus contemporâneos (1802) e Intro­
dução aos trabalhos científicos do século XIX (1807), nas quais
ataca violentamente as classes parasitárias que, para ele, são
constituídas pelos proprietários. Propõe que o Estado seja orga­
nizado como uma fábrica, e o governo seja exercido por aqueles
que trabalham e, especialmente, pelos que dirigem a produção;
b) Charles Fourier (1772-1837), que publicou O novo mundo indus­
trial (1829), em que preconizava a organização de comunidades
socialistas (chamadas de falanstérios) como forma de resolver os
problemas da sociedade européia, provocando, no seu enten­
der, uma transformação gradual rumo ao socialismo;
c) Robert Owen (1771-1858), autor dos livros Nova visão da so­
ciedade (1813) e Relato do Condado de Lanark (1821), destaca-
se pela forma como buscou concretizar, na prática, suas teorias,
organizando a produção com preocupações sociais e incenti­
vando o surgimento de “Trade Unions” (união de trabalhadores
que defendiam seus direitos):
De Saint-Simon aceitaram (Marx e Engels) a descoberta de que a política
moderna era simplesmente a ciência da regulamentação da produção; de
Fourier, a condenação ao burguês, a consciência do contraste irônico entre
“o frenesi especulativo, o espírito de comercialismo que nada poupa” que
caracterizavam o reinado do burguês e as “promessas brilhantes do
Iluminismo” que o precedeu; de Owen, a consciência de que o sistema
fabril teria de ser a raiz da revolução social. Porém veriam que o erro dos
Cap. 3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação 41

socialistas utópicos fora imaginar que o socialismo seria imposto à socieda­


de de cima para baixo, por desinteressados membros das classes superiores
(WILSON, 1986, p. 274).

■ Idealismo de Friedrich Hegel (1770-1831): filosofia que se opõe ao


realismo (que afirma a existência dos objetos independentemente
do pensamento), considerando central o problema do conhecimen­
to dos objetos. Hegel emprega o termo “idealismo absoluto” para
caracterizar seu modelo filosófico, em que a realidade é identificada
como um processo em que o desenvolvimento da idéia pura (tese)
cria um objeto oposto a si, a natureza (antítese), e a superação des­
sa contradição no espírito (síntese), o que origina uma transforma­
ção constante chamada de dialética;
■ Economia Política inglesa do começo do século XIX, com a aceita­
ção ou a discordância das idéias de pensadores como:

a) Adam Smith (1723-1790), autor do livro A riqueza das nações


(1776), em que condena a intervenção do Estado na economia,
afirmando o equilíbrio da economia de mercado por meio da lei
da oferta e da procura e identificando o seu desenvolvimento
como causa de uma crescente divisão do trabalho;
b) Thomas Malthus (1766-1834), autor de Ensaio sobre a popula­
ção (1798), em que aborda o descompasso entre o crescimento
da população e o dos alimentos, apontando para a inevitável
falta de recursos diante do aumento populacional;
c) David Ricardo (1772-1823), que publicou o livro Princípios de
economia política e taxação (1817), no qual afirma que o valor do
salário deve ser o mínimo necessário para a sobrevivência do
operário e propõe a teoria do valor-trabalho, segundo a qual o
preço das mercadorias seria fixado pelo número de horas que
foram necessárias para produzi-las;
d) John Stuart Mill (1806-1873), autor de Princípios de economia
política (1848), obra em que defende a intervenção do Estado na
vida econômica como forma de resolver o problema da miséria,
gerado pela sociedade industrial.

A síntese dessas teorias, enriquecidas de maneira original por Marx,


originou um conjunto de idéias conhecido como Marxismo, em que afirma
que a característica central de qualquer sociedade está no modo de produção
(primitivo, escravista, feudal ou capitalista), que varia com a História e de­
termina as relações sociais. As formas que as sociedades adquiriram ao lon­
42 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

go do tempo seriam conseqüência dos diferentes processos produtivos, e as


transformações que levaram às mudanças sociais seriam o resultado do con­
flito entre os interesses das diferentes classes sociais.
A sociedade capitalista, para o marxismo, caracteriza-se pela concen­
tração do capital e dos meios de produção (instalação, máquina e matéria-
prima) sob o controle da burguesia, enquanto o proletariado é explorado
em seu trabalho e mantido na pobreza e na alienação. Por estar baseado
nessa característica contraditória, o capitalismo levaria a luta de classes a
um ponto crítico, em que o proletariado daria início a um processo revolu­
cionário que instalaria o comunismo.
O conflito entre as classes desapareceria com a instalação da sociedade
comunista (concebida como igualitária e justa), na qual o Estado é abolido,
não há divisão social nem exploração do trabalho humano, e cada indivíduo
contribui de acordo com sua capacidade e recebe segundo sua necessidade.

3.3 Conceitos fundamentais do pensamento


marxista
O marxismo se tornou uma referência obrigatória dentro das diversas áreas
das ciências humanas, em que seus diversos conceitos foram apropriados,
ampliados, reelaborados e questionados. Entre eles, destacamos:
Dialética: originalmente definia, na arte do diálogo, a contraposição de
idéias que levava a outras idéias, no entanto, apresenta-se com diferentes
significados em diversas vertentes filosóficas. No marxismo, assume o papel
de método de análise da realidade. O conceito, retirado da filosofia de Hegel,
busca explicar a forma como se processam as transformações às quais a
realidade está submetida, atribuindo e considerando esta realidade como
uma forma de movimento racional que permite transpor uma contradição.
Uma tese inicial se contradiz e é ultrapassada por sua antítese. Essa antítese,
que conserva elementos da tese, é superada pela síntese, que combina ele­
mentos das duas primeiras, num progressivo enriquecimento.
Marx e Engels reformam o conceito hegeliano de dialética: utilizam a
mesma forma, mas introduzem um novo conteúdo, o materialismo, porque o
movimento histórico é derivado das condições materiais da vida. Para o mar­
xismo, a história do homem é a da luta entre as diferentes classes sociais,
determinada pelas relações econômicas da época.
Cap. 3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação 43

Conforme a perspectiva materialista e dialética, todo fenômeno social


ou cultural é efêmero, e a análise da evolução dos processos econômicos e
de produção de conceitos deve partir do reconhecimento de que:
as formas econômicas sob as quais os homens produzem, consomem e trocam sâo
transitórias e históricas. Ao adquirir novas forças produtivas, os homens mudam
seu modo de produção, e, com o modo de produção, mudam as relações econômi­
cas, que não eram mais que as relações necessárias daquele modo concreto de
produção [...] as categorias econômicas não são mais que abstrações destas rela­
ções reais e que são verdades unicamente enquanto essas relações subsistem (MARX,
Karl. Carta a Annenkov. In: QUINTANEIRO, 1999, p. 67-68).

Práxis: atividade material humana, transformadora do mundo e do pró­


prio homem; é um conceito que se opõe ao de ação alienante por meio de
sua natureza livre, universal, criativa e autocriativa. Nas Teses contra Feuerbach
(1845), Marx discute a necessidade de uma reflexão teórica vinculada à
realidade, em que a interpretação do mundo passa pela sua transformação.
[...] é na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, a saber, a efetividade e o
poder, a citerioriedade de seu pensamento [...] A doutrina materialista sobre a
mudança das contingências e da educação se esquece de que tais contingências são
mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado [...] Toda vida
social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do
misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no compreender
dessa práxis [...] Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente,
cabe transformá-lo (MARX, 1987, p. 161-163).

Ideologia: é um conceito extremamente importante na teoria marxista,


referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições
sociais e que as oculta, manifestando-se nas próprias idéias, concepções,
gostos, crenças e categorias do conhecimento. A ideologia impede que o
proletário tenha consciência da própria submissão, porque camufla a luta de
classes ao representar, de forma ilusória, a sociedade, mostrando-a como
una e harmônica. Além disso, segundo Marx, a ideologia esconde que o Es­
tado, longe de representar o bem comum, é a expressão dos interesses da
classe dominante.
Alienação: para Marx, a alienação tem origem na vida econômica, quando
o operário vende, no mercado, a força de trabalho, e o produto desse traba­
lho, resultado de seu esforço, não mais lhe pertence, adquirindo existência
independente dele. O produto do trabalho do operário subtrai-se, portanto,
à sua vontade, à sua consciência e ao seu controle, e ele deixa de se reconhe­
cer no que produz. O produto surge como um poder separado do produtor,
44 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

como realidade soberana e tirânica que o domina e o ameaça. Ocorre aquilo


que Marx chamou de fetichismo da mercadoria.
Mais-valia: é o valor que o operário cria, além do valor de sua força de
trabalho, e do qual o capitalista se apropria. Por ficar disponível todo o
tempo, o trabalhador produz mais do que foi calculado, ou seja, a força de
trabalho pode criar um valor superior ao estipulado inicialmente.
Ao comprar a força de trabalho do operário e ao pagá-la pelo seu valor, o capitalista
adquire, como qualquer outro comprador, o direito de consumir ou usar a merca­
doria comprada. A força de trabalho é consumida, ou usada, fazendo-o trabalhar,
assim como se consome ou se usa uma máquina fazendo-a funcionar. Portanto, o
capitalista, ao comprar o valor diário, ou semanal, da força de trabalho do operário,
adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la funcionar durante todo o dia ou toda
semana (MARX, 1988, p. 110).

Forças produtivas ou meios de produção: conjunto de recursos dispo­


níveis em uma determinada forma de “produção num estádio determinado
do desenvolvimento social”, ou seja, é o conjunto dos meios da tecnologia,
da divisão técnica do trabalho, dos processos de produção, dos tipos de
cooperação, da qualidade dos instrumentos, das matérias-primas, de habili­
dades e saberes. Durante a história humana, verificamos que os instrumen­
tos de produção se desenvolveram desde os primitivos instrumentos feitos
com pedaços de madeira, ossos e pedra até as sofisticadas máquinas da in­
dústria contemporânea.
Relações de produção: dimensão social do trabalho, forma como os
homens se relacionam no processo produtivo. Ao produzir, os homens en­
tram em contato uns com os outros, estabelecendo uma dimensão social do
processo produtivo que caracteriza um modo de produção.

O simples fato de que cada geração posterior encontre forças produtivas adquiridas
pela geração precedente, que lhe servem de matéria-prima para a nova produção,
cria na história dos homens uma conexão, cria uma história da humanidade, que é
tanto mais a história da humanidade porque as forças produtivas dos homens e, por
conseguinte, suas relações sociais adquiriram maior desenvolvimento (MARX, Karl.
Carta a Annenkov. In: QU1NTANEIRO, 1999, p. 67-68).

As noções de forças produtivas e de relações sociais de produção mostram


que essas relações se interligam de tal forma que as mudanças ocorridas em
uma provocam alterações na outra. A dimensão social do trabalho funda-se
[...] no sentido de ação conjugada de vários indivíduos, não importa em que condi­
ções, de que maneira e com que objetivo. Segue-se que um determinado modo de
produção ou estágio de desenvolvimento industrial se encontra permanentemente
Cap. 3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação 45

ligado a um modo de cooperação ou a um estado social determinado, e que esse


modo de cooperação é, ele mesmo, uma "força produtiva” (MARX,1976, p. 36).

A divisão social do trabalho cria uma segmentação da sociedade, dando


origem a desigualdades sociais mais abrangentes, como a existência de seto-
res dedicados exclusivamente ao trabalho manual ou ao intelectual, assim
como as oposições entre: o trabalho industrial e comercial e o trabalho agrí­
cola, e a separação entre cidade e campo. Segundo Marx, a divisão social do
trabalho originou os diferentes grupos que assumiram funções religiosas,
políticas, administrativas, de controle e repressão, financeiras etc., e que se
apossaram, de forma diferenciada, do produto social, a partir da posição
que passaram a ocupar no controle dos meios de produção.
Infra-estrutura e superestrutura: Marx utiliza a metáfora do edificio
para explicar as relações entre a estrutura econômica e a superestrutura. A
estrutura econômica (infra-estrutura, entendida como o conjunto das forças
produtivas e das relações sociais de produção), como uma base, condiciona
as demais instituições sociais (superestrutura, entendida como as ideologias
políticas, concepções religiosas, códigos morais e estéticos, sistemas legais,
de ensino, de comunicação, conhecimento filosófico e científico, represen­
tações coletivas etc.).
Classe social e estrutura social: ao mesmo tempo que este é um dos
temas principais do pensamento de Marx, também surge como conceito que
carece de uma teoria sistematizada sobre si. O contraste criado pela relação
direta entre os proprietários dos meios de produção e os produtores diretos
revela a estrutura (o “fundamento oculto”, na expressão do autor d ’O Capi­
tal) de todo edifício social, ou seja, a classe social passa a ser entendida
como a posição ocupada na estrutura social a partir da apropriação privada
dos meios de produção.
Marx afasta definitivamente a idéia segundo a qual as classes se definiriam a partir do
nível de renda ou da origem de seus rendimentos: isso não só nos daria uma infinida­
de de situações como, também, tomaria a distribuição da riqueza produzida social­
mente causa da desigualdade. A renda não é um fator independente da produção: é,
antes, uma expressão da parcela do produto que um grupo de indivíduos pode perce­
ber, em decorrência de sua posição na estrutura de classes. A configuração básica de
classes, nos termos expostos acima, expressa-se, de maneira simplificada, num mo­
delo dicotômico: de um lado, os proprietários ou possuidores dos meios de produ­
ção, de outro, os que não os possuem. Historicamente, essa polaridade apresenta-se
de diferentes maneiras conforme as relações sociais, econômicas, jurídicas e políti­
cas de cada formação social. Daí os escravos e patrícios, servos e senhores feudais,
trabalhadores livres e capitalistas... (QUINTANEIRO, 1999, p. 79).
HO sociologia e tducaçao - Leituras e Interpretações

No Manifesto Comunista, escrito com Engels, Marx considera o concei­


to de luta de classes como a representação de um motor da história humana,
isto é, a expressão das contradições sociais existentes dentro da sociedade.
A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não
aboliu os antagonismos de classe [...] A sociedade divide-se cada vez mais em dois
vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burgue­
sia e o proletariado (MARX, 1984, p. 9).

Embora esse esquema dicotômico seja criticado como insuficiente para


explicar as complexidades adquiridas pela sociedade capitalista após o sé­
culo XIX, é uma idéia seminal que permite identificar a configuração básica
das classes de cada modo de produção, responsáveis pelas relações sociais
entre todas as classes.
Marx identifica a história da modernidade como a história do trabalho
revolucionário da burguesia que “destruiu as relações feudais, patriarcais e
idílicas”, despedaçando “sem piedade [...] os complexos e variados laços
que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores naturais’, para deixar sub­
sistir, entre os homens, o laço do frio interesse”. Além disso, a burguesia
“afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalhei­
resco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo
egoísta”. Fazendo da dignidade pessoal um simples valor de troca, temos,
nos tempos modernos, uma substituição das numerosas liberdades, que fo­
ram conquistadas com tanto esforço, “pela única e implacável liberdade de
comércio”. Isto significa que, no lugar da “exploração velada por ilusões religio­
sas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e
brutal” (Cf. MARX, 1984, p. 11).
Esse processo revolucionário despoja de sua auréola todas as ativida­
des até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. O
processo histórico em curso, ao levar a burguesia à condição de classe do­
minante, segundo a análise de Marx, “rasgou o véu de sentimentalismo que
envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias”.
Ela subverteu a produção, abalando o sistema social e dissolvendo todas as
relações sociais. Como diz Marx: “tudo que era sólido e estável se esfuma,
tudo o que era sagrado é profanado” (Cf. MARX, 1984, p. 12).
Todavia, ao criar o mundo à sua imagem e semelhança, a burguesia
promove e acirra ainda mais o antagonismo social, o que pode levar à sua
própria superação. As armas das quais ela lançou mão para destruir as rela­
ções feudais tendem a se voltar contra si. Segundo Marx, a burguesia não
forjou apenas as armas que lhe darão a morte, como também os homens que
Cap. 3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação 47

manejarão essas armas — o proletariado: “A burguesia produz seus próprios


coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”
(MARX, 1984, p. 24). Por um lado, Marx analisa a sociedade moderna, pro­
curando entendê-la conceitualmente, por outro, ele vislumbra a possibilida­
de de transformá-la, criando as condições para urna nova ordem social. Isso
quer dizer que, se ele pretende captar a realidade como ela é, ao mesmo
tempo coloca, em seu horizonte, como ela deveria ser. A sociedade verda­
deiramente humana deve ser, um dia, uma sociedade sem exploração e opres­
são, e esta possibilidade está dada agora, na sociedade presente. É por isso
que precisamos compreendê-la o mais satisfatoriamente possível. A luta de
classes, como lei da Historia, deve favorecer a construção do futuro deseja­
do, já contido no presente odioso e iníquo. “A transformação de urna forma
a outra, de um modo de produção a outro, se dá pelos conflitos abertos por
causa da luta entre a classe dominada e a classe dominante em cada época”
(RODRIGUES, 2000, p. 41).

3.4 O Marxismo e os marxistas: Lênin,


Lukács e Gramsci
Assim como a sociedade capitalista tem um aspecto dinâmico, uma teoria
que busca compreendê-la e superá-la também deve se transformar e se am­
pliar. A teoria marxista se desdobra em diversas vertentes, expandindo suas
questões e seus enfoques, de forma dialética, abrindo-se para o reconheci­
mento do novo e do inédito.
Entre essas vertentes, destacam-se as idéias de Lênin, que traz uma
reflexão de caráter político-ideológico sobre a luta da classe operária pelo
poder político e pela hegemonia social (discutindo-se o papel da vanguar­
da), de Lukács, em que toma corpo a questão da consciência de classe na
transformação social, e, finalmente, Gramsci (1891-1937, autor de Cartas
do cárcere, 1947), que, debruçando-se sobre a cultura, os valores sociais e as
instituições na sociedade capitalista, discute o tema da direção cultural.
A partir dos referenciais de Gramsci, que tem maior influência dentro
das reflexões sobre o papel da educação, podemos discutir dois assuntos
fundamentais: a cultura, e a preparação ideológica organizada, em que o so­
cialismo cria uma nova sociedade, e, portanto, uma nova cultura. Ampliando
as reflexões de Lênin sobre as estratégias políticas revolucionárias, Gramsci
incorpora reflexões sobre a cultura popular e a relação intelectual-massa,
privilegiando (como Lukács) uma análise política e cultural da sociedade.
bociologia e Educação - Leituras e Interpretações

Gramsci concorda com Marx que a classe que detém o poder material tam­
bém detém o poder ideológico ou das idéias, criando mecanismos para man­
ter uma hegemonia do Estado e da sociedade civil.
Hegemonia pode ser entendida como o exercício do domínio das cons­
ciências e da reprodução das ideologias, que, na sociedade capitalista, for­
mam o consentimento das classes subalternas à dominação burguesa. Para
superar essa hegemonia, seria necessário desenvolver uma contra-hegemonia,
em que a classe trabalhadora promoveria a criação e o desenvolvimento de
uma nova cultura, tanto no que se refere aos valores e normas quanto à visão
de homem e de mundo.
Esta contra-hegemonia ou a hegemonia proletária, na opinião de Gramsci,
deve se originar da constatação de que todos os homens são “filósofos” quando
refletem sobre sua situação e expressam sua concepção de mundo (por meio
da linguagem, do senso comum, da religião, do folclore etc.). A cultura popu­
lar (filosofia espontânea) e o materialismo dialético (filosofia crítica) devem
se aproximar mediante a ação de indivíduos comprometidos com a mudan­
ça social (os chamados “intelectuais orgânicos”), organizados politicamente
(em uma rede de instituições sociopolíticas).
Ampliando o enfoque de Lênin, que privilegia a ação transformadora do
Partido, Gramsci propõe uma ação em diferentes níveis: o Conselho de Fá­
brica (grupo nascido da autoconsciência dos próprios trabalhadores, no
interior de cada aparelho produtivo); o Sindicato (associação voluntária que
coordena as diversas forças produtivas); e o Partido (associação voluntária
que atua como intelectual coletivo). Assim como Lênin, Gramsci acredita
que o Partido tem a tarefa de dar à consciência de classe o nível da totalida­
de, e, da mesma forma que Lukács, defende a união da espontaneidade das
massas com a direção consciente. Porém, ao contrário de Lênin, que só iden­
tifica o Partido como gerador cultural e ideológico, e de Lukács, que vincula
a idéia de ideologia (“visão de mundo” e “consciência de classe”) aos crité­
rios de falsidade ou veracidade, Gramsci defende a existência de múltiplos
geradores culturais e ideológicos e define a ideologia pela sua eficiência po­
lítica (ideologias orgânicas ou não-orgânicas).
Pela necessidade de uma ação política que se aproxime das classes tra­
balhadoras, reconhecendo a importância dos “intelectuais orgânicos”, é que
se afirma a importância da escola como campo de disputa ideológica e ins­
trumento de manutenção ou transformação hegemônica. Dessa forma, o
processo educacional deixa de ser analisado como a-histórico, para ser rela­
cionado à sociedade capitalista, permitindo o surgimento de questões fun­
damentais para o trabalho do educador: que relação existe entre o sistema
Cap. 3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação 49

escolar e a estrutura das relações de classe? Como o sistema escolar efetua


a reprodução ideológica na sociedade capitalista? Como os fatores sociais
agem no interior do sistema educacional?
A contribuição do marxismo ñas diversas áreas das ciencias humanas,
entre elas a educação, parece confirmar as palavras do antropólogo Clifford
Geertz (citando Suzanne Langer) sobre a forma como certas idéias surgem
com tremendo ímpeto no panorama intelectual que parecem solucionar imedia­
tamente não só um grande número, como todos os problemas fundamentais,
embora, com o tempo, após a nova idéia se tomar parte do nosso suprimento
geral de conceitos teóricos, nossas expectativas sejam levadas a um maior
equilíbrio quanto às suas reais utilizações, fixando-s*e nos problemas que a
idéia gerou efetivamente, nas aplicações e ampliações possíveis, consolidan­
do-se como parte permanente e duradoura do nosso arsenal intelectual.

3.5 Materialismo e Educação


Quando se fala em materialismo, a figura de Karl Marx aparece como uma
espécie de mito, pois provocou profunda simpatia ou violentos rancores
nos mais variados grupos sociais, em diversos lugares do planeta. Influencia­
do pelas idéias de Hegel, ele propõe que pensemos o mundo de maneira
invertida ao método que este filósofo concebeu. Se o idealismo hegeliano
considera o desenvolvimento histórico como de responsabilidade de uma
entidade mística, o espírito, criador do pensamento, da idéia como fator
primordial na determinação da realidade do mundo, Marx, por seu lado,
defende que o pensamento, a consciência e a idéia nada mais são do que
resultado das condições materiais. O mundo material é anterior ao espírito,
e este deriva daquele; e o movimento, elemento fundamental da matéria,
existe independente da consciência.
O materialismo marxista considera o mundo como uma realidade dinâ­
mica, um complexo de processos, que exige observarmos a realidade
diale ticamente, isto é, em que ponto a realidade influencia a idéia e a idéia
influencia a realidade. Assim, o espírito não é conseqüência passiva da ação
da matéria, podendo reagir sobre aquilo que o determina, libertando o ser
humano por meio de sua ação sobre o mundo, permitindo, assim, no futuro,
a ação revolucionária.
Segundo Marx, só se descobre o ser do homem nas suas relações exte­
riores, com os outros homens e com a natureza que lhe fornece os meios de
subsistência, o que acontece por meio do trabalho. O trabalho é, portanto, a
única manifestação da liberdade, da capacidade humana de criar a sua pró­
50 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

pria forma de existência. Desse modo, para Marx, não há uma essência ou
natureza humana geral, pois o ser do homem é historicamente determinado
pelas relações com os outros homens e com a natureza, e essas relações
condicionam o indivíduo, a sua pessoa, o que, por sua vez, condiciona o
exterior, as relações sociais. Enfim, o indivíduo humano é um ser social.
O que se destaca do pensamento marxista é a defesa de que a História é
feita por seres humanos que se acham sempre em determinadas condições
materiais de vida, e o único elemento determinante da História é a estrutura
econômica da sociedade.
Os próprios homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua
produtividade material, produzem também os princípios, as idéias, as categorias,
de acordo com as suas relações sociais. Assim estas idéias [inclusive as idéias edu­
cacionais] , estas categorias, são tão eternas como as relações que exprimem. São
produtos históricos e transitórios. Existe um movimento contínuo de acréscimo
nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação das idéias; de
imutável, não existe senão a abstração do movimento, mors immortalis (MARX. In:
ABBAGNANO, 1970, p. 55-56).

Portanto, não é partindo das idéias que explicaremos a História, e sim da


práxis material que conseguiremos compreender a formação das idéias. As
idéias predominantes numa época histórica são as idéias da classe dominante.
É com a formulação dessa concepção para se compreender a realidade
histórica que Marx vislumbra a possibilidade de uma ação revolucionária e a
construção de uma utopia, em nome da qual transformaríamos o mundo,
considerado injusto e desigual. Para ele, a sociedade verdadeiramente hu­
mana deve ser, um dia, uma sociedade sem exploração e opressão. Assim, ao
compreendermos como a história humana funciona, estamos também crian­
do as condições para mudá-la, pois as grandes transformações, ocorridas ao
longo da História, foram as passagens de um modo de produção a outro, que
aconteceram devido aos conflitos abertos, ocasionados pela luta entre a classe
dominada e a classe dominante em cada época.
Essa dominação ocorre por meio daquilo que Marx vai denominar de
ideologia, isto é, o conjunto ordenado de idéias, concepções, normas e regras
que obriga os homens a se comportarem como se estivessem agindo conforme
sua própria vontade. Segundo ele, na ideologia capitalista, o dominado pensa
com a cabeça do dominador.
Os trabalhadores dormem com o inimigo, confortavelmente instalado em sua pró­
pria mente, todos os dias, sem saber. É quase como se houvesse em seu cérebro um
chip perverso de computador, que o obrigasse a levantar no outro dia e levar sua
vida da mesma forma que no dia anterior (RODRIGUES, 2000, p. 47).
Cap. 3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação 51

O resultado desse processo é a alienação, em que o trabalhador perce­


be o trabalho como algo fora de si, como se pertencesse a outro. Os homens
adquirem uma consciência falsa do mundo em que vivem, considerando as
relações sociais como fatos naturais, impossíveis de serem alteradas.
A propriedade privada, sustentáculo do modo de produção capitalista,
aliena o homem de si porque o transforma de fim em meio, de pessoa, em
instrumento de um processo impessoal que o domina, sem notar as suas
exigências e as suas necessidades. O homem se torna uma mercadoria, é
desumanizado, quer espiritual quer fisicamente.
É a partir da análise da história humana, em particular da sociedade
capitalista, que Marx considera fundamental a sua transformação. Embora a
educação possa ser um instrumento ideológico de inculcação da ideologia
dominante, como analisa Althusser (2001), podemos pensar numa pedago­
gia que seja um dos meios de superação da ordem social, injusta e desigual.
Tomando as idéias de Marx para uma educação que vise à realização e à for­
mação de uma personalidade humana unificada e plena, é necessário consi­
derar a educação não um problema individual, privado, sujeito a um proces­
so de aperfeiçoamento espiritual, e, sim, um problema social, dependente da
transformação da estrutura econômica da sociedade. Como, para ele, o ho­
mem é a essência que se faz a si mesmo, a prática educativa pode se tornar
uma atividade favorável não apenas para formar pessoas, como também para
transformar a sociedade.
Como vimos, os estudos que Marx e os marxistas fizeram sobre a socieda­
de burguesa moderna mostram que ela enraíza-se não no assim chamado de­
senvolvimento geral do espírito humano, nem a partir de si mesma, e sim nas
relações materiais de vida. Desse modo, Marx pôde encontrar um fio condutor
que possibilitou a construção de uma utopia. No prefácio de Para a crítica da
economia política, ele afirma que esse fio condutor corresponde ao seguinte:
[... ] na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas,
necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que
correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produ­
tivas materiais [...] Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existen­
tes [...] Sobrevêm então uma época de revolução social (MARX, 1987, p. 29-30).

Com isso em mãos, passou a acreditar que o capitalismo, como modo


de produção burguês, pode ser destruído, e, assim, ser edificada, em seu
lugar, uma sociedade sem classes. Ele depositava uma grande fé na capacidade
da ciência de formular uma utopia que pudesse dar conta da sociedade do
futuro. Acreditando haver descoberto as leis da História — o seu fio condu-
52 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

tor — Marx vislumbrou a superação da sociedade capitalista e a construção


de uma nova sociedade, na qual o homem reencontraria a si mesmo, seria
um ser autônomo e autoconsciente, trabalhador manual e intelectual ao
mesmo tempo. Enfim, os homens e as mulheres seriam seres humanos inte­
grais, completos.
Portanto, para Marx, é a partir do caráter conflituoso da sociedade,
sobretudo a moderna, que podemos construir um novo mundo, um mundo
que será o resultado da abolição da propriedade privada e da extinção do
trabalho assalariado.

O que queremos é suprimir o caráter miserável desta apropriação que faz com que
o operário só viva para aumentar o capital e só viva na medida em que o exigem os
interesses da classe dominante (MARX, 1984, p. 28).

A transformação dessa sociedade é resultado de um longo processo


histórico, cabendo, ao cientista, identificá-lo, o que lhe dá as condições para
elaborar uma utopia. Por isso que Marx é categórico sobre essa questão. No
prefácio, afirma, cheio de esperança e de otimismo, que:
[...] as relações burguesas de produção constituem a última forma antagônica do
processo social de produção, antagônicas não em um sentido individual, mas de
um antagonismo nascente das condições sociais de vida dos indivíduos; contudo, as
forças produtivas que se encontram em desenvolvimento no seio da sociedade
burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para a solução deste anta­
gonismo. Daí que com esta formação social se encerra a pré-história da sociedade
humana (MARX, 1987, p. 30).

A esperança de Marx por uma nova sociedade não pode ser construída
sem a presença da ação educativa. No Manifesto, ele deixa claro que a educa­
ção deve ser levada em consideração no momento de se elaborar qualquer
projeto de superação das relações sociais burguesas. É preciso, segundo ele,
arrancá-la da influência da classe dominante, do modo burguês de ver o
mundo, se não quisermos que as crianças sejam transformadas “em simples
objetos de comércio, em simples instrumentos de trabalho” (MARX, 1984,
p. 32). Entre as medidas a serem implementadas para que um novo tipo de
educação seja desenvolvido, é preciso uma “educação pública e gratuita de
todas as crianças”. Pensando a educação como parte de sua utopia revolucio­
nária, Marx identificou nela uma arma valiosa a ser empregada em favor da
emancipação do ser humano, de sua libertação da exploração e do jugo do
capital — a construção da sociedade comunista.
Cap. 3 Contribuições do Materialismo Histórico para a Educação ba

Exercícios
1. Como podemos definir:
a) Modo de produção.
b) Alienação.
c) Dialética.
2. Assista aos filmes:
2.1. Tempos Modernos, obra-prima de Charles Chaplin, na qual ele faz
forte crítica ao processo de industrialização, mostrando a selva-
geria do capitalismo. Procure identificar quais conceitos do pen­
samento marxista se manifestam. Por quê?
2.2. Reds, com Warren Beatty, Jack Nicholson, Gene Hackman e Diane
Keaton, que trata da vida do jornalista John Reed durante a Revo­
lução Russa de 1917. Identifique quais as questões políticas do
marxismo que são abordadas.
3. De que modo a ideologia se manifesta na escola?
4. Tema para discussão: “A partir das reflexões de Lênin, Lukács e Gramsci
sobre a importância da direção política e cultural no processo de liber­
tação da classe operária da exploração capitalista, qual o papel da escola
na sociedade atual?”.
5. Leia os textos abaixo e explique por que Marx afirma que não são as
idéias humanas que movem a História, e sim as condições históricas
que produzem as idéias, inclusive as educacionais:
A doutrina materialista sobre a mudança das contingências e da educação se
esquece de que tais contingências são mudadas pelos homens e que o próprio
educador deve ser educado (MARX, 1987, p. 161).
Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determina­
das, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas
que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas
forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais deter­
minadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o
processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência (MARX, 1987, p. 29-30).

6. Para Marx, a educação pode ser considerada uma arma valiosa a favor
da emancipação do ser humano. O que você pensa a respeito dessa
posição marxista?
OH Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

Referências
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FERNANDES, F Fundamentos empíricos da explicação sociológica. 3. ed. São


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In: FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. S. (Org.). Sociologia e sociedade: leituras
de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos,
1978. p. 91-106.
4
A Sociologia weberiana
e a Educação
Alonso Bezerra de Carvalho

4.1 Introdução
É possível formular uma concepção pedagógica weberiana? Não se pode ter
uma resposta rápida e conclusiva. Penso que a sociologia de Weber traz ques­
tões importantíssimas do ponto de vista filosófico, antropológico e para a psico­
logia. Neste trabalho, o meu objetivo será relacioná-las à educação. É verda­
de que não pretendo tratá-las como objeto específico do campo pedagógico,
tornando Weber mais um pensador da educação. Os temas weberianos que
apresentarei, creio eu, fornecem elementos para rediscutirmos o significado
que a educação teve e ainda tem num mundo que foi desencantado.
De início, tentemos imaginar como, geralmente, é o cotidiano de uma
sala de aula: os alunos sentam-se enfileirados, vestidos uniformemente,
obrigados a se comportarem também uniformemente — com uma postura
ereta, silenciosos e atentos aos ensinamentos —, proporcionando condi­
ções para absorverem os conhecimentos de uma outra pessoa, que se julga
detentora do conhecimento — ao menos da área previamente proposta
pela instituição. Tais alunos, geralmente tratados como iguais, são coloca­
dos numa condição de aprendizagem dos mesmos conteúdos, na mesma
ao Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

velocidade e da mesma forma. Muitas vezes não se respeita seus conheci­


mentos prévios, suas diferenças em termos de capacidade, muito menos
suas opiniões sobre o que se está aprendendo. O aluno tem apenas o dever
de aprender em um tempo determinado, de uma forma preestabelecida e
configurada de acordo com o que se cobra na sociedade. Vê-se, nesse
âmbito, um processo de homogeneização, vítima de uma racionalização
produzida a partir de modelos, os quais se tornam almejados, porém, rara­
mente alcançados.
Todavia este se configura um olhar desatento sobre uma sala de aula
com, aproximadamente, 40 alunos. Observando de modo mais apurado,
percebe-se que cada aluno tem uma história de vida, experiências peculia­
res, pensamentos únicos e, principalmente, comportamentos e sentimentos
diferenciados. Assim, nota-se que a uniformidade não se torna tão clara quanto
parecia anteriormente.
Talvez o vínculo educacional mais forte existente na instituição seja aquele
formado entre o professor e o aluno. Tal vínculo é alimentado, por parte do
professor, pelas suas expectativas em transmitir o conhecimento adquirido
por meio de estudos ao longo da vida; e, para os alunos, ele é mantido, após
uma provável identificação com o professor, pela expectativa de obter uma
profissão. Quanto às pretensões do professor — de conseguir fazer com que
seus alunos adquiram o conhecimento necessário para poder almejar uma
profissão de sucesso — é preciso atentar para que caminho escolher.
Do meu ponto de vista, o objetivo principal da educação é proporcionar
aos alunos um conteúdo que incentive a reflexão. Porém, para que isso acon­
teça, não somente o conteúdo é o bastante, como também a maneira como ele
é passado. É preciso que o professor adote uma ética não partidária na sala de
aula, ou seja, o professor, ao apresentar um conteúdo, não deve expor a sua
opinião, porém, se o fizer, deverá ter a honestidade de dizer que o está fazendo.
É necessário que ele incentive o aluno a refletir sobre o que foi apresentado e,
então, adote uma opinião condizente com a sua compreensão. Assim, é de
extrema importância que o professor mantenha uma posição “neutra” para
que, não só na sala de aula, também fora dela, o aluno possa refletir e questio­
nar sobre o que observa, experimenta e decide.
A importância desta atitude do professor justifica-se na medida em que
o aluno se encontra em seu processo de formação identificadora, até mesmo
em relação ao próprio professor. Esse processo, antes ocorrido apenas em
âmbito familiar, estende-se para a vida social e, principalmente, para a insti­
tuição educacional. Partindo-se deste princípio, o professor adquire um pa­
pel fundamental para a formação do aluno, priorizando sua independência
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 59

de reflexão sobre o mundo que o cerca, dando-lhe a capacidade de questio­


nar e afirmar, oferecendo-lhe condições para construir crenças e proposições
condizentes com suas características.
No entanto, muitos professores não adotam esta maneira de ensinar, e,
sim, uma postura muitas vezes ditatorial, passando como um rolo compres­
sor pelas diferenças dos alunos, impondo seu ponto de vista sobre assuntos
que deveriam ser discutidos em sala de aula, porém, na verdade, são “despe­
jados” nos alunos, considerados “folhas em branco”, em detrimento de suas
peculiaridades e opiniões.
A educação, constituída por um caráter institucional, racional e buro­
crático, impede que os estudantes tenham uma liberdade maior de constru­
ção do conhecimento, presos como estão a uma espécie de treinamento.
Desse modo, o professor parece desempenhar um papel de “treinador” e
não de “vendedor de verduras”, como Weber mesmo denomina. Um espírito
carismático não se sobressai nessa relação, apenas o burocrático-disciplinador.
Há de se supor, a partir dessas constatações, inspiradas no pensamento
de Weber, que fica cada vez mais intenso o processo de massificação, com a
construção contínua de modelos, cujo início ocorre já na escola, que acom­
panhará o indivíduo em toda a sua vida. O mundo racionalizado, usando dos
mecanismos burocráticos, transforma a escola em um meio para almejar a
posição de algum modelo, elaborado por esta mesma sociedade, de acordo
com as suas necessidades, obrigando o ser humano, inserido em todo esse
processo, a limitar suas opções. Parece configurar-se, aqui, o sofrimento da
humanidade, o que torna, então, notório o grande envolvimento da sociolo­
gia weberiana com os “problemas da atualidade”, como destaca Foucault.
Contudo, a possibilidade de mudança desse quadro não pode ser ignorada e,
para equilibrá-lo, é preciso despertar o carisma.
A indagação que percorre as investigações weberianas refere-se ao ho­
mem especificamente moderno, que pode ser visto na perspectiva de sua
personalidade, da cultura ou da sociedade. Weber estuda o presente, a atua­
lidade, o agora, procurando o que lhe é específico, porém, com uma diferen­
ça — o mundo moderno perdeu o seu signum, ou seja, não há um progresso
em direção ao melhor. Ele não faz um prognóstico, e, sim, um diagnóstico da
modernidade, olhando o mundo empírico na dureza dos fatos desagradáveis
que o constitui. Não o higieniza, não o perfuma. Até afirma que a razão
trouxe coisas boas, mas indica também que, com ela, vieram a perda de
sentido e uma irracionalidade destrutiva — uma razão antinómica. O diag­
nóstico weberiano está centrado em elementos indicativos de que o homem
moderno perdeu o sentido. Não há mais forças misteriosas, transcendentes
bU Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

e determinantes que orientem a ação humana. O mundo reificado produziu


pessoas que se tomaram especialistas sem espírito e hedonistas sem coração,
como denunciado por Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo.

4.2 A modernidade e o desencantamento do


mundo
Se pararmos por aqui, a conclusão mais plausível é a de que Weber é um pessi­
mista. Estaríamos, assim, submetidos a uma “carapaça dura como aço”
(stahlhartes Gehâuse) que, como na cavema platônica, prende-nos a grilhões
difíceis de serem quebrados. Mas podemos afirmar, com certo grau de certeza,
que essa leitura encontra-se, sim, nos textos de Weber, mas se restringir so­
mente a ela é perder a riqueza de seu pensamento. É possível deduzir, de sua
diagnose, uma prognose, ou seja, o mesmo mundo que domina, gera as condi­
ções para o surgimento das figuras, chamadas por Jessé Souza, de “especialista
com espírito e do homem do prazer com coração” (SOUZA, 1997, p. 112).
A problematização trazida por Weber sugere que sua posição está além
de uma mera crítica resignada, seria uma espécie de “terapia” contra os efeitos
alienantes e patológicos típicos do cotidiano modemo. Haveria, portanto, em
Weber, dois caminhos: o do pessimismo cultural, que é o momento de denún­
cia das condições modernas, e aquele que adota as perspectivas terapêuticas,
o momento de esperança de uma sociedade diferente.4 Estou convencido
disso. Weber deposita sua confiança na liberação de forças capazes de possibi­
litar uma atitude de resistência contra as instituições burocráticas, do “casulo
da servidão”. A idéia de vocação moderna, inicialmente, na Reforma, ganha os
contornos de uma superação da religiosidade pela ascese monástica, pois afirma
que a satisfação dos deveres intramundanos é o único caminho para agradar a
Deus. Esse ethos estende-se às coisas do mundo, desdiviniza-se, desencanta-se.
A conexão entre a doutrina da predestinação e a “certeza da salvação” produz
o estímulo para uma condução da vida ascética, an ti tradicionalista, intramun-
dana e metódica. Esse comportamento representa, de certa forma, o surgimento
da liberdade moderna.
Neste sentido, Weber é simpático a esse homem puritano, pois o seu
ascetismo capacita-o para uma vida clara, desperta e consciente. Esse seria

* Schluchter afirma que Weber, além de historiador e diagnosticador das condições modernas, é
também um terapeuta — analisa como devemos reagir a essas condições (Cf. SCHLUCHTER,
1990, p. 230-233).
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 61

o aspecto positivo do puritanismo. Porém, se os ideais éticos do ascetismo


puritano favoreceram o surgimento do espirito capitalista, os resultados desse
processo fugiram do controle. As conseqüências advindas são paradoxais.

No setor de seu mais alto desenvolvimento, nos Estados Unidos, a procura da


riqueza, despida de sua roupagem ético-religiosa, tende cada vez mais a associar-se
com paixões puramente mundanas, que freqüentemente lhe dão o caráter de esporte
(WEBER, 1967, p. 131).

Uma das conseqüências, não previstas, da conduta do homem puritano


foi o “desencantamento do mundo”, que retirou as condições de validade
dessa conduta do mundo mágico-religioso. A concepção de mundo, que se
baseava numa ética material — substantiva e como valor universal — funcio­
nando como substrato das relações entre os homens e que regulava, com
ambições totalitárias, o espaço püblico, pertence definitivamente ao passa­
do. Weber estava perfeitamente consciente de que vivia na época do “indivi­
dualismo ético”. O mundo objetivo não tem significado algum em si, e a
tarefa de lhe conferir significado é individual e solitária. Cada pessoa está só,
com o seu Deus ou demônio que rege as suas escolhas significativas. Não há
mais qualquer Deus, qualquer sacramento e qualquer sacerdote que expli­
cariam e dariam sentido à existência humana em seu conjunto. Ademais,
temos um processo de especialização, como conseqüência da progressiva
divisão social do trabalho. Nesse ambiente, a personalidade do homem mo­
derno estaria como que subsumida aos grilhões de uma prisão. Essa é a
constatação imediata que podemos fazer.
Na modernidade, o que importa é a superação e a renüncia das paixões,
que obscurecem e desviam. Renúncia adquire aqui, portanto, o sentido de
uma subordinação do sujeito em relação às condições não escolhidas do
mundo impessoal. A presença de Goethe nesse diagnóstico é cristalina. Ação
e renúncia condicionam-se reciprocamente na medida em que o trabalho,
no mundo moderno, exige, necessariamente, uma limitação a uma pequena
esfera da atividade produtiva em cada área de atividade, o que pressupõe, ao
mesmo tempo, concentração de esforços e aumento do desempenho.

A limitação do trabalho especializado, com a renúncia à faustiana universalidade do


homem por ela subentendida, é uma condição para qualquer trabalho válido no mun­
do contemporâneo; daí a “ação” e “renúncia” hoje inevitavelmente se condicionarem
uma à outra. Esse traço fundamentalmente ascético do estilo de vida [...] foi o que
Goethe quis nos ensinar no auge de sua sabedoria [...] Para ele, essa consciência
implicava a despedida de uma era de plenitude e beleza humana que, no decorrer de
nosso desenvolvimento cultural, tem tão poucas chances de se repetir como a época
de florescimento da cultura ateniense da Antigüidade (WEBER, 1967, p. 130).
62 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

4.3 Ciência e política: duas vocações


Como se vê, da análise de Weber é possível retirar afirmações que expres­
sam ainda uma esperança. Se nossa época está desencantada, ao menos po­
demos intuir, olhando para o passado, “o renascimento de velhos pensamentos
e idéias”, como Nietzsche o fez observando os gregos. “Nem tudo está perdi­
do”, diria Weber. Os textos “A ciência como vocação”, “A política como
vocação” e “Rejeições religiosas do mundo e suas direções” tratam dessa
antinomia da vida social moderna. Neles, mesmo que assistematicamente,
encontramos alguns apontamentos sobre “o especialista com espírito e o
hedonista com coração”, condutas que, se consideradas na ação educativa,
podem ainda render alguns bons frutos. Talvez se nos inspirarmos em deter­
minado tipo de político, bem como de cientista, as coisas dêem certo: o
político e o cientista que têm vocação.
O político que tem vocação é responsável apenas em relação às suas idéias
— uma responsabilidade subjetiva —, resultado de uma eleição consciente
e, portanto, autêntica. O funcionário, como exemplo do especialista sem espí­
rito, tem uma relação objetiva com o seu cargo ou organização. Uma das
qualidades distintivas do político vocacionado é a paixão, no sentido de uma
dedicação apaixonada a uma causa suprapessoal. Essa paixão falta tanto ao
funcionário que é obrigado a administrar seu cargo sine ira et studio, sem amor
e sem cólera, quanto ao político que deseja o poder pelo poder, e assim a
amesquinha, ao subordiná-la a seus interesses egoístas e pessoais. O político
vocacionado, que age fundamentado também no senso de proporção e no de
responsabilidade, distingue-se do político que age baseado em valores absolu­
tos. O político da ética absoluta defende um valor incondicional que, ao não
indagar pelas conseqüências, preocupa-se unicamente com a manutenção das
puras intenções. Não que não seja apaixonado, mas lhe falta distanciamento
em relação às coisas e aos homens. O político da ética da responsabilidade
acrescenta, à sua paixão, o conhecimento da realidade. O senso de proporção
é necessário para se conseguir uma mistura bem temperada entre a distância
que o conhecimento envolve com a proximidade resultante da paixão.
O cientista vocacionado se aproximaria da conduta do político. Weber
afirma a importância central da especialização, para o cientista, como con­
dição de um trabalho digno de confiança, além da dedicação apaixonada ao
trabalho, que também é reconhecida como a primeira grande qualidade do
cientista. Além da responsabilidade, que é uma qualidade indispensável no
sentido de angariar o necessário distanciamento em relação a si mesmo,
para evitar as opiniões pessoais e julgamentos de valores últimos no exercí­
cio da profissão.
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 63

Pois bem, é nesse último aspecto que o político e o cientista diferenciam-


se. O político não pode, nem deve, esconder seu ponto de vista: “Tomar urna
posição prática e analisar estruturas partidárias são coisas distintas”, diz Weber,
em A ciência como vocação. Nesse sentido, creio que a ação educativa, no sen­
tido weberiano, pode ser o resultado da combinação dessas duas condutas. O
professor poderia se comportar procurando o “equilíbrio” entre o cientista e o
político vocacionados.
Nos textos do cientista e do político, vocação significa renúncia e
autocontrole, que permitem a unidade da personalidade e a conseqüência na
ação. É com essas idéias que Weber vislumbra a possibilidade de se pensar
num especialista com espírito, que se distingue pela criação autônoma de va­
lores, afastando-se da heteronomia típica da relação religiosa. Uma noção de
vocação reformulada seria a única forma capaz de, ainda, dotar a vida, no
mundo racionalizado, de sentido e força moral, proporcionando uma condu­
ção autêntica da vida. Essa reformulação torna-se possível a partir do seu
entrelaçamento com as noções de individualismo ético (personalidade) e de
responsabilidade (conseqüência da ação) em direção a um estágio de consciên­
cia qualitativamente “superior” (Cf. SOUZA, 1997, p. 120-121).
Essa nova postura que o homem vocacionado moderno poderia adquirir
seria uma ética aristocrática e heróica. Primeiro, porque é privilégio de pou­
cos, visto que a regra é a acomodação à ausência de sentido e de liberdade;
segundo, porque está na mais radical oposição em relação às leis das estru­
turas objetivas do mundo racionalizado, no sentido de que luta ainda para
manter um espaço de valores éticos, numa época em que esses valores cor­
rem o risco de serem definitivamente expulsos do espaço público — liberda­
de individual e racionalidade formal tendem a se tornarem inconciliáveis. O
que há é uma auto-suficiência dos fins em relação aos meios.

4.4 O processo de racionalização e o


paradoxo das conseqüências
Vemos, aqui, o que Weber veio a chamar de “paradoxo das conseqüências”.
Isso significa que se produziu uma tragédia que não foi originalmente inten­
cionada. Os puritanos teriam criado, sem querer, a “carapaça dura como
aço” das instituições capitalistas ao tentarem realizar os mandamentos de
Deus na Terra. A “nova escravidão” assume a forma de uma oposição entre
as lógicas individual e institucional. A lógica institucional materializa-se na
disciplinarização antilibertária dos indivíduos, de acordo com seus próprios
64 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

fins institucionais, que são, agora, independentes dos fins individuais. A li­
berdade, no sentido weberiano, é expulsa do espaço público. Há uma racio­
nalização técnica da conduta da vida humana, que obedece a regras passí­
veis de serem generalizadas segundo padrões de eficiência. Estas “patologias
da modernidade”, que exigem uma terapia, podem ser superadas com a ação
pedagógica? A conduta de professores e alunos numa instituição, do ponto
de vista das relações humanas e profissionais, pode preparar o terreno para
“[suportarmos] o destino de nossa época?”.
A terapia weberiana para as patologias da modernidade surge da possi­
bilidade de o homem, como especialista com espírito, no seu dia-a-dia den­
tro das instituições, utilizar, contra a lógica disciplinadora institucional, a
lógica de uma condução da vida racionalizadora, por meio dos mandamen­
tos da renúncia e das conseqüências dos próprios atos, de acordo com a
escolha valorativa que determina seu comportamento individual. Para Weber,
apenas a idéia de vocação, desprovida do seu conteúdo religioso, poderia
propiciar essa racionalização rigorosa da vida subjetiva, de modo a se con­
trapor à racionalidade objetiva.
No caso do especialista com espírito, a salvação das rotinas assume o
lugar da salvação eterna. O componente emocional, porque subjetivo, conti­
nua presente, como nas religiões éticas. E agora ele está acrescido do frio
conhecimento da realidade, que propicia clareza e responsabilidade, como
também do dado ético individualista, que confere autenticidade e autono­
mia às escolhas existenciais. Portanto, uma outra ação pedagógica poderia
ser pensada, sim. Nela, os professores e alunos não seriam concebidos e
nem agiriam como meios na realização de uma pedagogia que forma especia­
listas, sobretudo porque

com a racionalização da vida social e a crescente burocratização do aparato públi­


co de dominação política [incluído aí o Estado e a escola] e dos aparatos próprios
às grandes corporações capitalistas privadas, a educação deixa paulatinamente de
ter como meta a “qualidade da posição do homem na vida [...] e toma-se cada vez
mais um preparo especializado com o objetivo de tomar o indivíduo um perito
(RODRIGUES, 2000, p. 80).

Outro meio de terapia seria pensar na figura do homem cujo prazer


vem do coração. Para isso, Rejeições religiosas do mundo e suas direções
(WEBER, 1982, p. 371-410) é o texto-chave. Nele, são examinadas as rela­
ções entre a ética da fraternidade religiosa e as religiões negadoras do mun­
do, relativamente às esferas mundanas. Esse tema percorre todo o texto,
destacando que, no processo de racionalização, inicia-se a autonomização
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 65

das esferas de valores e ações do homem: a estética, a ética, a política, a


economia, a ciencia e o erotismo.
Para pensarmos na possibilidade do homem cujo prazer vem do cora­
ção podemos recorrer à análise da estética e do erotismo, consideradas esfe­
ras “irracionais”. A tensão entre a arte e a ética da fraternidade religiosa
pode ser atribuída à autonomização do belo como um valor específico, con­
traposto a qualquer exigência de cunho ético. A direção lógica imanente a
essa esfera e o desenvolvimento do valor especificamente artístico, percebi­
do de forma cada vez mais consciente, leva a uma maior importancia, nessa
esfera, do plano pessoal em contraposição ao socialmente obrigatório.
A autonomização da esfera estética em relação à ética religiosa pode
ser caracterizada como um processo de individuação por meio do cultivo,
da mesma forma que o trabalho vocacional, em bases seculares, seria uma
individuação por moralização. Teríamos a racionalização de valores éticos e
extra-éticos, entendidos, estes últimos, como o conjunto de valores culturais
e estéticos.
A tensão também acontece com a esfera erótica. O erotismo distingue-
se da simples sexualidade, da mesma forma que a cultura, da natureza. A
criação da esfera erótica pressupõe um processo de aprendizado, uma cres­
cente apropriação e enriquecimento de conteúdos valorativos, que passa a
expressar a lógica própria dessa esfera, no sentido de um progresso em dire­
ção ao prazer e ao gozo conscientes, tomando significativos elementos da vida
instintiva e afetiva. A passagem da sexualidade ao erotismo é percebida, por
Weber, como um processo de sublimação, isto é, uma orientação da conduta
a meio caminho entre a ação afetiva e a valorativa. Esse processo de subli­
mação é parte do contexto maior de racionalização e intelectualização da
cultura, no sentido de uma perda da naturalidade original da vida sexual,
descrito por ele em termos de graus de intensificação da conscientização.
Como resultante desse movimento, temos a constituição da especificidade e
da lógica, própria da esfera erótica (Cf. SOUZA, 1997, p. 124-125).
Estes graus de intensidade são percebidos, por Weber, a partir da análise
do desenvolvimento ocidental, no sentido mais específico de “ocidental cris­
tão”. Esse processo intensifica-se quando ocorre nos ambientes intelectuais,
com a união entre o espírito e a natureza, de modo que o acento valorativo do
erotismo não mais aconteça à custa do elemento animal ou corporal, e sim
referindo-se a alguma forma de fruição consciente da sensação erótica. O amor
maduro do intelectualismo reafirma a qualidade natural da esfera sexual, mas
o faz de modo consciente, como uma força criadora materializada.
66 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

Com isso, estamos em condições de afirmar que, para Weber, a fruição


e o gozo, tornados conscientes nos campos da estética e do erotismo, permi­
tem-nos elaborar novas possibilidades da experiência, que passam a formar
o núcleo do desenvolvimento interno dessas esferas. Seriam produto do pro­
cesso maior de conscientização por sublimação de valores culturais. Portan­
to, é possível pensar que o artista, o consumidor instruído da obra de arte,
assim como o amante, exemplos de um homem cujo prazer vem do coração,
tornem-se modelos de uma fruição refinada do mundo das emoções. Um
novo homem é possível, segundo se depreende da análise de Weber. Nesse
caso, a educação pode contribuir para que esse processo se concretize.
Portanto, vemos, em Weber, não apenas um autor que constata a tragédia
do mundo moderno, no qual convivem os paradoxos de uma existência fun­
dada na inevitabilidade da renúncia. Ele também lida com as possibilidades,
isto é, com a chance de realização de algumas perspectivas. Nem tudo está
perdido ainda: nem a liberdade, nem o sentido da vida. É possível uma edu­
cação que equilibre a tensão entre burocracia e carisma.
O caráter revolucionário do carisma é compreendido por Weber como
o rompimento com as rotinas cotidianas e com todas as normas racionais. A
manifestação extática da ação carismática, que experimenta a sensação pro­
duzida por aqueles que praticam a música, a dança, o sexo etc., representa
um estado além da razão.

[...] se aplica tanto à adoração de Romeu por Julieta quanto à raiva de Othelo no
assassinato de Desdêmona. Tanto Romeu quanto Othelo são retirados para fora de si
por emoções poderosas de arrebatamento e raiva que provocam expressões apaixo­
nadas e frenéticas [...]. Como o deus Dioniso, o carisma “representa a própria força
viva encarnada, o ímpeto da seiva na árvore e o do sangue nas veias [...] Revoluciona
os homens a partir de dentro”, liberando os elementos emocionais e instintivos pre­
viamente reprimidos pela existência cotidiana (DOWJR., 1978, p. 84).

Todavia, Weber não defende uma conduta que seja integralmente extá­
tica, como as Mênades estraçalhando Penteu, em As bacantes, de Eurípedes.
Ao invés de uma selvageria caótica, uma ação controlada e apaixonada, como
encontramos no texto A política como vocação. Permanecer para além do
alcance da dominação burocrática significa ampliar a conduta individual dife­
renciada, sem, no entanto, abrir mão da responsabilidade. É possível aven­
turar-se sem desconhecer as regras. Se, a algum tipo de homem, é dada a
chance de colocar a mão na roda da História, este homem deve ter as quali­
dades carismáticas e a disciplina — instrumento da racionalização. Do meu
ponto de vista, creio ser possível pensar numa ação educativa que contribua
para que esse tipo de conduta humana possa se concretizar.
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 67

Para Weber, então, nem a completa repressão nem a completa liberação representa
um comportamento “maduro” ou “genuinamente humano” [...] O homem “genui­
no” representa uma síntese do carisma e do ascetismo!...], sua alma está “livre”
para se expressar apaixonadamente em defesa de uma ética da responsabilidade
[...]. [Weber, portanto,] não quer sancionar totalmente o irracional como uma
solução (DOWJR., 1978, p. 87).

4.5 Por uma Ética da responsabilidade


Weber propõe atitudes responsáveis. Crê que é possível o “aumento do grau
de consciência ou da possibilidade de expressão e comunicabilidade”, po­
rém, com ponderação. Na ótica weberiana, a organização de movimentos
hedonistas com o intuito apenas de viver uma sexualidade sem barreiras,
utilizável a qualquer momento como forma de consolo ou de diversão, é
algo reprovável. Numa sociedade construída sob a base do consumo e da
satisfação rápida e sem substância, o hedonista, facilmente provocado por
meio de pequenos estímulos, é o tipo social conforme a ordem — o homem
do prazer sem coração. Perde-se aqui o potencial emancipatório; não a mera
fruição auto-referida ou incontrolada dos impulsos, antes a “sensação eróti­
ca que reinterpreta e glorifica toda animalidade pura da relação” e a ausên­
cia de limites na dedicação a outra pessoa, que aparentemente permite a
comunicação direta de alma a alma, é o que parece estar por trás da confian­
ça de Weber quanto à possibilidade de uma salvação das rotinas racionais.
Os “últimos homens” seriam aqueles cujo prazer é medíocre e a felicidade,
fácil (Cf. SOUZA, 1997, p. 126-127).
O especialista com espírito e o homem do prazer com coração seriam
representantes do já mencionado processo de moralização e cultivo, o qual
atualiza a constituição de um espírito, por um lado — ou seja, a possibili­
dade de lidar consigo mesmo e com o mundo de forma reflexiva e sóbria, como
evocado pelo conceito de ética da responsabilidade — e de um coração, por
outro, no sentido de um cultivo sublimado dos aspectos instintivos e afetivos
de nossa natureza, ou seja, da natureza interna. Apenas a união de ambos os
aspectos parece permitir o acesso à noção weberiana da personalidade, so­
bre a qual ele apóia a sua esperança de oposição aos efeitos patológicos da
prisão de ferro moderna, personalidade que vive a experiência da tragédia e
da chance, mas que exige a atitude responsável e sensata do espírito. Ao
cientista responsável, por exemplo, cumpre ajudar os indivíduos a entender
o significado último de suas condutas. Em A ciência como vocação, Weber
considera que, se à ciência cabe alguma ética, esta se funda na idéia de pro-
68 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

vocar o auto-esclarecimento dos indivíduos e neles despertar um senso de


responsabilidade, não para fazer escolhas; e, sim, para apontar os meios e as
conseqüências das ações. E, por essa razão, a ciência, bem como a política,
devem estar associadas a uma ética da responsabilidade, em vez de uma
ética de fins últimos ou da convicção.
A idéia de responsabilidade, equilíbrio e consciência que Weber sugere
como princípios de uma conduta íntegra, decente e apaixonada, pode ser
compreendida a partir desta sua afirmação sobre a relação matrimonial, que
talvez pudéssemos estender a todas as outras, inclusive à pedagógica.

De um ponto de vista exclusivamente interior (mundano), somente a ligação do


matrimônio com o pensamento da responsabilidade ética de um pelo outro — daí
uma categoria heterogênea à esfera exclusivamente erótica — pode encerrar o
sentimento de que alguma coisa única e suprema poderia estar encerrada no matri­
mônio; que ele poderia ser a transformação do sentimento de um amor consciente da
responsabilidade (WEBER, 1982a, p. 400; grifo nosso).

Weber foi professor, cientista e tentou ser político. Tinha alguma esperan­
ça na “superação” de uma existência que prendia o homem a uma couraça,
impossibilitando, assim, a manifestação de sua liberdade. Almejou construir
um pensamento que compreendesse as condições modernas naquilo que elas
têm de específico em comparação a outras épocas e concluiu que nós vive­
mos num mundo que perdeu os seus valores transcendentais. Não haveria,
na modernidade, um sistema de valores universais que justificasse as ações
humanas. Estaríamos diante apenas dos nossos próprios valores, que cada
um cria para orientar a sua conduta.
Weber desconfia das profecias científicas ou filosóficas que postulam
um progressivo melhoramento da humanidade, seja em direção a uma socie­
dade harmoniosa e solidária, como quer Durkheim, seja justa, fraterna e
socialista, como pensa Marx, ou perfeita, como acredita Kant. Se encontramos,
neles, a tranqüila crença em um progresso inevitável, em uma autonomização,
engrandecimento e sofisticação contínuos do espírito individual, em Weber,
o mundo ocidental moderno, em especial o mundo europeu-americano, com
o seu processo racional-burocrático, resultado do desencantamento do mun­
do, deixou aos homens, como conseqüência não desejada do protestantismo
ascético, uma irracionalidade ética. O politeísmo de valores é o sinal de
nossos tempos. Diante dessa situação, não há mais uma teoria ética,
metafisicamente constituída, que sustente qualquer escolha feita pelos ho­
mens. E não há ciência nem qualquer ação educativa que possa ajudar a
resolver esse problema.
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 69

O processo de racionalização do Ocidente solicita, aos homens, para


agirem com virilidade, resistindo e enfrentando o quanto puderem as exi­
gências do cotidiano. Os tempos modernos são tempos em que os grilhões
inumanos e frios estão difundidos por toda parte. A vida transformou-se
num contínuo uso individual de instrumentos, dos quais o Outro vem a ser o
mais útil. E, para governar homens assim, privados e “coisificados”, nada
melhor do que a burocracia, em todas as suas faces, o que fez Weber chamar
a atenção de seus contemporâneos para as graves conseqüências evolutivas
que a desaparição, da vida pública, dos grandes valores humanos traria para
o Ocidente.
O carisma é, em Weber, o contraponto para pensarmos numa “saída”
de uma era submetida à “gaiola dura como aço”. Com essa noção, ele ali­
menta a esperança de vivermos livres das garras de um sistema que nos
aprisiona. Se a educação quiser garantir uma existência saudável, devemos
nos esforçar para equilibrar o jogo em que a burocracia está vencendo. Ao
buscar uma integração entre o carisma e o ascetismo, ele acredita que a
paixão, a serviço de uma ética da responsabilidade, possa ainda salvar o
homem da imaturidade e da desumanidade, tanto das rotinas cotidianas quan­
to da manifestação extática irresponsável (Cf. DOW JR., 1978, p. 91). O
compromisso ético do homem e, por extensão, da educação é fazer com que
essa tensão se equilibre, e Weber teve essa esperança, tanto como homem
quanto como acadêmico. Para isso, distingue três tipos principais de educa­
ção que, embora tenham se desenvolvido numa seqüência verificável da His­
tória, não se excluem, antes se completam, permitindo-nos compreender,
com propriedade, a educação moderna, segundo avalia Karl Mannheim.
A educação carismática, que predominou no período mágico ou quan­
do a religião atingiu seu ponto culminante, procurou despertar poderes ocul­
tos, latentes no homem, ou a intuição religiosa e a disposição interior para a
experiência transcendental. Seja num caso, seja no outro, ela pretendeu “agi­
tar certos poderes inatos que, se não são sobre-humanos, são, pelo menos,
propriedade limitada dos eleitos” (MANNHEIM, 1969, p. 185). Neste tipo
de educação, o objetivo não é transmitir um conteúdo, como vemos na edu­
cação, para a cultura (a pedagogia do cultivo). Aqui, acredita-se que a aqui­
sição de certos conteúdos é capaz de produzir determinado tipo social. Há
uma valorização do estilo de vida que, inconscientemente, será transferido
por meio das idéias apresentadas, acentuando seu poder educacional formativo
a partir do conteúdo. Os exemplos desse tipo de educação, podemos obser­
var no gentleman ou no mandarim chinês. A educação especializada, por seu
lado, tem por finalidade:
70 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

[...] transferir um conhecimento ou habilidade especial e está estreitamente ligada


ao desenvolvimento da divisão do trabalho, que torna o especialista indispensável
à moderna sociedade industrial. Essa educação perde de vista não só os níveis mais
profundos da individualidade, que representavam os principais interesses da edu­
cação religiosa (carismática), mas também a mui tila teralidade humanística da per­
sonalidade, que ainda era o ideal da minoria culta. Embora produza os dentes e
rodas necessários à máquina social, a educação especializada desintegra tanto a
personalidade quanto os poderes mentais para compreender a situação humana
que precisa ser abarcada (MANNHEIM, 1969, p. 185-186).

Para os propósitos desse trabalho, creio que a educação carismática e a


educação especializada — burocrática ou do treinamento — ajudam-nos a
compreender a “saída” que Weber procura para a cultura moderna. Se, por
um lado, percebia a pedagogia racional-burocrática como predominante na
vida ocidental moderna, por outro, ele aponta que é possível equilibrar esse
domínio com o despertar do carisma. Porém, contrabalançar essas duas for­
ças não significa que estamos diante de um progresso da humanidade em
direção a uma sociedade solidária, harmoniosa e perfeita. Na verdade, esta­
mos apenas reconhecendo que a vida é uma permanente luta de perspectivas,
tanto hoje como antigamente: “Vivemos como os antigos, quando o seu mundo
ainda não havia sido desencantado de seus deuses e demônios” (WEBER,
1982a, p. 175). Para suportarmos, em nossos tempos, as exigências de cada
dia devemos reconhecer, em primeiro lugar, este destino.

4.6 Sociologia da educação weberiana:


equilíbrio entre burocracia e carisma
Falar do “destino de nosso tempo” e de educação exige de nós a disposição
de fustigar a sua aparente tranqüilidade. E, aqui, Nietzsche, com a noção de
apolíneo e dionisíaco, pode nos ajudar a entender esse diagnóstico weberiano.
Esse filósofo, com a sua natureza e sua filosofia, põe a dimensão dionisíaca
no palco da existência humana. Isso quer dizer que não precisamos apren­
der a separar o “fazer não” do “dizer-sim”, que podem ser entendidos como
a conduta que pretende destruir e construir. A relação entre Apoio e Dioniso
revela esse jogo. Apoio, o deus da bela forma e da individuação, permite a
Dioniso que se manifeste. Dioniso, o deus da embriaguez e do dilaceramento,
possibilita a Apolo que se exprima. Um assegura ponderação e domínio de
si; o outro envolve pelo excesso e vertigem. Esse jogo, parece-me, é o que
Weber procura reconhecer entre o carisma e a burocracia.
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 71

Neste sentido, o mundo não é só apolineo-burocrático, é também dio-


nisíaco-carismático. Se ainda não reconhecemos isso, talvez cumpra à edu­
cação nos ajudar. Compreender que o mundo, como pleno vir-a-ser, não se
constitui em um sistema, e sim em uma totalidade permanentemente gera­
dora e destruidora de si mesma — um processo e não uma estrutura estável,
um campo de forças instáveis em permanente tensão, não governado por
leis; ele não se acha submetido a um poder transcendente e sua coesão não
é garantida por substância alguma. Assim também é a vida. Na análise que
fez sobre o ascetismo protestante, Weber conclui que as conseqüências não
previstas, advindas do ethos protestante, é de que não existe a garantia de
outro mundo, sendo este o ünico com que se pode contar. Se quisermos a
certeza de uma possível salvação, devemos nos voltar para este mundo.
A filosofia de Nietzsche recusa que o supra-sensível possa justificar o
mundo, rejeita que um poder transcendente venha redimir a vida. O mundo
subsiste; não é algo que vem a ser, algo que pereça. Não podemos atribuir-
lhe qualquer intencionalidade; não se deve conferir a ele caráter teleológico
algum. O que nos resta é a vida. Ela é o único critério que se impõe por si
mesmo. Fazer qualquer apreciação, passar pelo crivo da vida, equivale a
perguntar se se contribui para favorecê-la ou obstruí-la. Portanto, é neces­
sário nos perguntarmos se a educação moderna está a favorecendo ou não.
Assim, a concepção dionisíaca/carismática nos traz a possibilidade de
enfrentar o mundo e a vida tal como são. Transforma-se em martelo para
demolir as idéias modernas. Dioniso e o carisma surgem para designarem
uma nova visão do mundo e se imporem como juizes para avaliar a
modernidade. Precisamos nos preparar para a existência do amor fati: nem
conformismo, nem resignação, nem submissão passiva — amor; nem lei,
nem causa, nem fim — fatum. Assentir, sem restrições, a todo acontecer;
admitir, sem reservas, tudo o que ocorre; anuir a cada instante exatamente
como é, e aceitar amorosamente o que advém; isso “é dizer-sim ao mundo”
(Cf. MARTON, 1994, p. 16).
Weber recomenda também, como resposta a essa modernidade
desumanizante, uma ética do amor fati. Se o destino do homem é enfrentar a
vida racionalizada, isto exige uma virilidade tamanha para podermos acei­
tar, sem ilusões políticas, religiosas, filosóficas, educacionais, o caráter ine­
lutável desse processo. Significa aceitarmos tudo o que há de mais terrível e
doloroso, como também de mais alegre e exuberante na existência. Aqueles
que concebem a metafísica, isto é, que constroem mundos para além desse,
que profetizam e esperam a superação do espetáculo da finitude, desprezan­
do o que ocorre aqui e agora, supondo existir outra vida, igualam-se ao
!¿ Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

“homem da ordem”: o homem burocrático. Carismática e dionisíaca, por­


tanto, é a educação que afirma, sem reserva, o Jatum, que aceita que ele se
afirme por meio do homem, que espelha o mundo, que traduz a vida, que
nos dá chance de formar a personalidade.
Segundo o ponto de vista de Max Weber, se é possível construir uma
ação educativa na modernidade, ela deve estar fundada num questionamento
permanente de suas próprias condições. No final do texto A ética protestante
e o espírito do capitalismo, Weber afirma a necessidade do surgimento de
novos pensamentos e de novos ideais para se contraporem a um mundo que
transformou o homem num ser insensível e calculista. Weber aponta para a
possibilidade de rompermos com o estado de coisas, originado no capitalismo
moderno. Portanto, é preciso pensar numa terapia das condições modernas.
Essa terapia deve ser de tal maneira que desconfie da razão que se coloca
como um princípio ordenador da relação homem-mundo, expressa no cará­
ter burocrático da existência. O burocrata ou o “espírito de peso”, como diz
Nietzsche, julga que existem leis universais, acredita que há regras de con­
duta válidas para todos. Estabelecendo coerção, norma, zela pelos valores
instituídos e estatuídos.
Retomar o espírito carismático e dionisíaco pode ser o “caminho” para
aqueles que querem a liberdade. A educação pode nos ajudar nesse processo.
Em vez de uma vida fundada na rigidez, na frieza e no cálculo, experimentar
a sensação fornecida pelo movimento que resulta da dança. Ver a vida como
dança, como um jogo, é pôr em cena variados pontos de vista, diferentes
perspectivas, fazendo surgir aspectos inesperados da existência. Com a dan­
ça, evoca-se o fluxo vital, alude-se à permanente mudança de tudo o que
existe, contra qualquer dogmatismo. Pondo sob suspeita toda e qualquer
certeza, antecipa idéias para fazer experimentos com o pensar. Cadência, a
dança põe em xeque a aparente imobilidade das coisas, a rigidez imposta ao
pensamento e à vida. Ela é, ainda, alegria — alegria dionisíaca. Assim, pode­
mos pensar numa educação que leve em conta a dança alegre dionisíaca e o
espírito extático do carisma.
Como na ação carismática, é preciso orientar a vida a partir da descon­
fiança, evitando as convicções; abandonar comodidades, renunciando à
segurança. É preciso ousadia para abrir mão de antigas concepções, liber­
tar-se de esperanças vãs.
Assim afirma Nietzsche:

[... ] onde um homem chega à convicção fundamental de que è preciso que mandem
nele, ele se toma “crente”; inversamente, seria pensável um prazer e força da auto-
Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 73

determinação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda


crença, de todo desejo e possibilidades, e, mesmo diante de abismos, dançar ainda.
Um tal espírito seria o espírito livre par excellence (NIETZSCHE, 1978, p. 215).

É necessário uma educação que introduza, no mecanismo determinista,


o espaço de libertação, que consiste em romper o determinismo inerente a
qualquer situação objetiva, abrindo espaço para o exercício da autonomia. Ser
mortal, o homem constrói sua liberdade no tempo, no tempo desta vida, que
deve ser transformado em tempo de felicidade. Para isso, Weber considera
imprescindível que enfrentemos o mundo burocrático, que estabelece um ce­
nário racional, para que o mundo e a vida não deixem de ser apenas uma
possibilidade abstrata. Essa deve ser a responsabilidade da ação educativa.

Exercícios
1. Segundo a sociologia weberiana, a modernidade é marcada por um proces­
so de racionalização do mundo. Como você justificaria essa afirmativa?
2. O desencantamento do mundo significa que os valores supremos e su­
blimes foram banidos da vida pública. Como você interpreta essa acepção
weberiana?
3. No texto A ciência como vocação, levando em conta a opinião dos jovens
americanos, Weber considera que o professor deve se comportar como
um verdureiro, isto é, ele vende as verduras e cada um faça delas o que
bem entender, e não como um treinador de futebol que, como um líder,
“vende” regras válidas para a conduta na vida dos seus alunos. Qual a
sua opinião sobre essa posição descrita por ele?
4. Você considera possível o equilíbrio entre a burocracia/apolíneo e o
carisma/dionisíaco, conforme desenvolvido no texto? Como podemos
trabalhar essa posição na sala de aula?
5. Comente a seguinte afirmação de Max Weber, contida no texto O senti­
do da neutralidade axiológica nas ciências sociais e econômicas:

[...] de seu professor na sala de aula, o estudante deveria receber a faculdade


de contentar-se com a execução ponderada de uma dada tarefa; de reconhe­
cer os fatos, mesmo os que possam ser pessoalmente desagradáveis, e de
distingui-los de suas próprias avaliações. Deveria aprender, também, a sujei­
tar-se a sua tarefa e a reprimir o impulso de exibir desnecessariamente suas
sensações pessoais ou outros estados emocionais (1995b, p. 365).
74 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

Referências
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Cap. 4 A Sociologia weberiana e a Educação 75

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5
A Sociologia Figuracional
de Norbert Elias
Carlos da Fonseca Brandão

A discussão que realizaremos nesse trabalho tem seu foco direcionado para a
sociologia figuracional, elaborada nas primeiras décadas do século XX, pelo
sociólogo alemão Norbert Elias. Nosso objetivo é discutir especificamente essa
teoria sociológica, suas influências teóricas e suas relações com outros impor­
tantes conceitos desenvolvidos por Elias no conjunto de seus trabalhos, desta­
cando seu papel na elaboração da teoria dos processos de civilização, conside­
rada, por muitos autores, a sua principal contribuição teórico-metodológica.

5.1 Os conceitos de figuração e


interdependência
Entendemos que, de início, faz-se necessário abordar, de maneira sintética, os
conceitos de figuração (ou configuração) e o de interdependência. No livro
Envolvimento e distanciamento, Elias utiliza o termo “configuração” mais rara­
mente, reservando-o para os contextos biológicos, e “figuração”, para os con­
78 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

textos humano e social. Os tradutores das obras de Elias admitem que o ter­
mo “configuração” é o menos utilizado (Cf. ELIAS, 1997, p. 30, nota de rodapé
n. 1), assim, e coerentes com o raciocínio de Elias, só o utilizaremos quando
for o caso de citação literal. O conceito de interdependência, por sua vez, é
considerado, pelo próprio Elias, fundamental para o correto entendimento de
sua teoria dos processos de civilização (Cf. ELIAS, 1994b, p. 141).
O conceito de figuração deve ser entendido como o resultado “do en­
trelaçamento de incontáveis interesses e intenções individuais”, tenham eles
direções convergentes ou divergentes, cujo resultado é “algo que não foi
planejado nem foi intenção de qualquer um desses indivíduos, mas emergiu
a despeito de suas intenções e ações” (ELIAS, 1993, p. 140). As figurações
podem até estar em constante modificação, porém, “a forma que a configu­
ração toma não será determinada por planos deliberados ou pelas intenções
de alguns de seus membros, nem por grupo deles, nem mesmo por todos
eles em conjunto” (ELIAS, 1980, p. 180).
O conceito de interdependência é inerente ao de figuração, na medida
em que se constitui um dos elementos presentes nas relações sociais que,
vistas em seu conjunto, são o que Elias chama de figuração. As relações de
interdependência entre os atores sociais são explicitadas pelo conjunto de
relações que os atores tecem entre si, formando diferentes grupos sociais,
cada qual com sua dinâmica específica (Cf. ELIAS, 1995a, p. 177).
Por outro lado, a concepção histórica, defendida por Elias na elaboração
de seus trabalhos, não tem uma direção definida a priori, o que a tornaria
prédeterminada e inexorável. Em momento algum, Elias dá às suas teorias
um caráter determinista, invalidando, assim, a possibilidade de elas conferirem
um sentido para a História. A utilização, como método de análise histórica,
de uma perspectiva de longa duração, é fundamental em seu trabalho, pois
ele defende que as transformações sociais significativas somente ocorrem
após longos períodos de tempo.
Mas de onde provêm tais conceitos?

5.2 A formação intelectual de Norbert Elias


e a influência do pensamento de Karl
Mannheim
Elias iniciou sua tese de doutoramento, sob a orientação de Alfred Weber,
na Universidade de Heidelberg, onde conheceu e se tornou amigo de Karl
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 79

Mannheim (Cf. GOUDSBLOM; MENNELL, 1998, p. 8).5 Em 1930, ao se


transferir para a recém-fundada Universidade de Frankfurt, Mannheim con­
vidou Elias para ser seu assistente. Em Frankfurt, ele conviveu com muitos
professores e cientistas que já haviam se destacado, ou estavam prestes a
se destacar, em seus respectivos campos de atuação, como o neurologista
Kurt Goldstein, o psicólogo Max Wertheimer, o economista Adolf Lòwe e
o psicanalista S. H. Fuchs (que trocou seu nome para Foulkes, quando
emigrou para a Inglaterra). Todos esses intelectuais influenciaram Elias
com suas idéias, cada qual à sua maneira (Cf. GOUDSBLOM; MENNELL,
1998, p. 5 e 12).
Como assistente de Mannheim, considerado muito liberal, Elias recu­
sava-se a se comprometer com qualquer credo político.6 Algumas décadas
mais tarde, ele reconheceu que, mesmo tomando um caminho totalmente
diferente do seguido por Mannheim, este o influenciou bastante, especial­
mente em relação às idéias sobre os processos de longa duração (Cf.
GOUDSBLOM; MENNELL, 1998, p. 9, 12-13 e 18).
Assim como Elias, Mannheim, com a chegada do nacional-socialismo
ao poder na Alemanha, foi obrigado a deixar Frankfurt, indo, também, exi­
lar-se na Inglaterra, onde trabalhou como professor de Sociologia e Filosofia
da Educação, de 1933 a 1947, na London School of Economics e no Institute
of Education da Universidade de Londres. Esses dados biográficos de
Mannheim, isoladamente, não nos permitem afirmar que ele tenha exercido
uma significativa influência no pensamento de Elias. Porém, quando vemos
que, desde 1924, em Heidelberg, até 1945, em Londres, passando por Frank­
furt, Elias e Mannheim trabalhavam juntos — ou próximos —, somado à
proximidade dos conceitos que expomos a seguir, fica difícil não se conside­
rar a possibilidade da existência de uma certa influência teórica e intelectual

5 Segundo Richard, o nível das universidades alemãs, durante a República de Weimar, “era bastan­
te alto”. Além de Alfred Weber, professor de economia política, a Universidade de Heidelberg
contava com docentes como Friedrich Gundolf (literatura alemã) e Karl Jaspers (filosofia). A
Universidade de Frankfurt tinha Karl Mannheim, um professor de sociologia “renotnado”.
Albert Einstein e Edmund Husserl pertenciam aos quadros da Universidade de Berlim (RICHARD,
1988, p. 186).
6 Richard afirma que as universidades de Heidelberg e Frankfurt “tinham a reputação de univer­
sidades liberais”, enquanto a Universidade de Berlim era dominada pela “direita mais conservadora”
(RICHARD, 1988, p. 181).
80 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

(Cf. GOUDSBLOM; MENNELL, 1998, p. 8-9 e 12-13; LEPENIES, 1996, p.


323 e FORACCHI, 1982, p. 7).7
As influências do pensamento sociológico de Mannheim sobre as idéias
de Elias também podem ser notadas quando abordamos o método de aná­
lise sociológico utilizado por Elias. Sua teoria social, denominada de “socio­
logia configuracional ou figuracional”, é um claro exemplo dessa influência
intelectual.
Podemos localizar, em algumas afirmações de Mannheim, especialmen­
te em sua principal obra, Ideologia e utopia: uma introdução à sociologia do
conhecimento, publicada originalmente em 1929 (Cf. LEPENIES, 1996, p. 309),
pontos muito semelhantes aos adotados posteriormente pela teoria socioló­
gica de Elias. O principal desses pontos é a opção, tanto de Mannheim quan­
to de Elias, pela realização de suas pesquisas sociológicas no âmbito por eles
denominado de sociologia empírica.
Quando Mannheim afirma, por exemplo, que as principais proposições
das chamadas Ciências Sociais não são formais nem mecânicas, e sim “diag­
nósticos situacionais, em que geralmente utilizamos os mesmos conceitos e
modelos de pensamento concretos que foram criados para fins de atividade
na vida real” (MANNHEIM, 1972, p. 72), notamos uma clara opção por
uma sociologia de caráter eminentemente empírico (Cf. MANNHEIM, 1972,
p. 115 e 119). Porém, segundo ele, o procedimento empírico na pesquisa
sociológica não pode ser fruto de um transporte puro e simples do método
empírico utilizado em pesquisas das chamadas Ciências Naturais (MANNHEIM,
1972, p. 77-78 e 127-128).
Essa mesma linha de argumentação é encontrada em alguns trabalhos
de Elias. NA sociedade de corte, por exemplo, Elias afirma que um “grande
número de conceitos e categorias mentais oriundos das ciências naturais e
vulgarizados pela linguagem popular parecem convir mal ao esclarecimento
dos problemas sociológicos” (ELIAS, 1995a, p. 178). Em outro trabalho,
intitulado Introdução à sociologia, ele reforça sua argumentação, declarando
que muitas “palavras e conceitos cujas formas atuais derivam essencialmente
da interpretação de fatos naturais, foram transferidos indevidamente para
a interpretação dos fenômenos humanos e sociais”. Segundo seu ponto de
vista, essa transferência indevida impediu o desenvolvimento de “um modo

7 Em sua autobiografia, Reflections on a li/e, Elias descreve, de maneira bastante abrangente,


todo o seu relacionamento, especialmente intelectual, com Mannheim (Cf. ELIAS, 1994b, p.
34-38, 96 e 105-119). Gabriel Cohn, por sua vez, em resenha dos últimos livros publicados
sobre Georg Simmel e Norbert Elias, afirma que Mannheim foi o “grande mestre” de Elias (Cf.
COHN, 1999, p. 7).
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 81

mais autônomo de falar e de pensar, mais adequado às particularidades es­


pecíficas das configurações humanas” (ELIAS, 1980, p. 18).
A defesa do procedimento empírico na pesquisa sociológica também
pode ser considerada um outro ponto que aproxima o pensamento de
Mannheim ao de Elias. Mannheim faz, ao final do trabalho citado acima, a
seguinte afirmação:

Novas formas de conhecimento surgem, em última análise, das condições da vida


coletiva e não dependem, para sua emergência, da demonstração anterior de sua
possibilidade por uma teoria do conhecimento; elas não necessitam, portanto, de
ser primeiro legitimadas por uma Epistemología. A relação é, na realidade, a inver­
sa: o desenvolvimento das teorias de conhecimento científico nasce da preocupa­
ção com os dados empíricos e a sorte das primeiras varia com a dos últimos. As
revoluções na Metodologia e na Epistemología são sempre conseqüências e reper­
cussões das revoluções nos procedimentos empíricos imediatos para se adquirir
conhecimento. Somente através de um recurso constante ao procedimento das
ciências empíricas específicas podem os fundamentos epistemológicos tornar-se
suficientemente flexíveis e extensos para não somente sancionar as pretensões das
formas mais antigas de conhecimento (sua finalidade original), mas, igualmente,
dar respaldo às formas mais recentes. Esta situação peculiar é característica de
todas as disciplinas teóricas e filosóficas (MANNHEIM, 1972, p. 309-310).

Nesse mesmo sentido, em outro momento, Mannheim, em defesa da


característica empírica de sua concepção de teoria sociológica, por ele de­
nominada de Sociologia do Conhecimento, aponta, como característica pre­
sente na corrente sociológica oposta, que ele classifica de Sociologia Formal,
o fato de esta se intimidar em lidar “histórica, concreta e individualmente
com os problemas da sociedade” (MANNHEIM, 1972, p. 299).
Continuando nossa discussão sobre as possíveis influências que o pensa­
mento sociológico de Karl Mannheim exerceu sobre o de Elias,8 notamos que
um dos principais conceitos, senão o principal, da teoria sociológica proposta
por Elias é o que ele denomina figuração (ou configuração). Esse conceito
“refere-se à teia de relações de indivíduos interdependentes que se encontram
ligados entre si a vários níveis e de diversas maneiras”, sendo que as ações de
um conjunto de “pessoas interdependentes interferem de maneira a formar
uma estrutura entrelaçada de numerosas propriedades emergentes, tais como
relações de força, eixos de tensão, sistemas de classes e de estratificação, des­
portos, guerras e crises econômicas” (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 25-26).

8 Sobre a influência teórica de Mannheim sobre Elias, ver também MALERBA, 1996, p. 75;
MENNELL, 1997, p. 357-361 e WAIZBORT, 1997, p. 14.
82 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

A partir de tais citações, é possível entender o conceito de figuração


também como uma análise das relações e funções sociais, vistas como um
conjunto de relações interdependentes, que ligam os indivíduos entre si numa
dada formação. Essas formações — ou, em escala mais ampla, o conjunto
dessas formações — seriam o que Elias denomina figuração, sendo que cada
época histórica, cada tipo de sociedade, dentro do seu contexto histórico
específico, produz um conjunto de figurações igualmente específicas.
No livro O processo civilizador, Elias relaciona o conceito de figuração
ao de interdependência, da seguinte maneira:

A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas formam o


nexo do que aqui é chamado de configuração, ou seja, uma estrutura de pessoas
mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou menos
dependentes entre si, inicialmente pela ação da natureza e mais tarde através da
aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades recíprocas social­
mente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como
pluralidades, apenas como configurações (ELIAS, 1994a, p. 249).

Ao propor o conceito de figuração para a análise das relações sociais,


Elias esclarece que seu objetivo é tentar fazer com que deixemos de “enca­
rar os seres humanos, incluindo nós próprios, como unidades totalmente
autônomas”, entendendo que somos “unidades semi-autônomas precisando
umas das outras, dependentes umas das outras e ligadas umas às outras de
modos muito diversos” (ELIAS, 1980, p. 193).
Segundo Elias, para que possamos compreender e utilizar corretamen­
te o conceito de figuração, dois pontos precisam ser ressaltados. O primeiro
diz respeito à natureza das transformações que uma dada figuração social
pode sofrer. Para ele, toda “configuração relativamente complexa, relativa­
mente diferenciada e altamente integrada deve ser precedida e deve surgir
de configurações relativamente menos complexas, menos diferenciadas e
menos integradas” (ELIAS, 1980, p. 177).
O segundo ponto diz respeito ao distanciamento necessário para a cor­
reta compreensão da autonomia e da dinâmica de uma figuração social. Con­
forme Elias, essa compreensão “é impossível para aqueles que a constituem,
enquanto estiverem totalmente envolvidos e intrincados nas altercações e
conflitos decorrentes das suas interdependências” (ELIAS, 1980, p. 181).
Elias entende que as figurações que os homens formam entre si “estão
em fluxo quase permanente, ou seja, são processos” (ELIAS, 1997, p. 71) e,
assim como outros processos presentes na sociedade — por exemplo, o
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 83

aumento no nível de controle da natureza pelo homem — eles não são pla­
nejados nem intencionais (ELIAS, 1980, p. 30-31).
O conceito de figuração — por ser central no desenvolvimento da teoria
dos processos de civilização — deve, segundo Elias, ser entendido sob três
aspectos complementares. Primeiro, que os seres humanos são interdepen­
dentes e somente podem ser compreendidos como tais, já que suas vidas se
desenvolvem dentro de determinadas figurações sociais, sendo significativa­
mente modelados (shaped) por elas, as quais são construídas por eles e entre
eles. Segundo, que essas figurações estão continuamente em fluxo, sofrendo
trocas de diferentes ordens, algumas rápidas e efêmeras, outras lentas, porém
mais profundas. Terceiro, que esses processos de trocas contínuas, ocorri­
dos nas figurações, têm dinâmicas próprias, das quais os motivos e as inten­
ções individuais fazem parte, porém as dinâmicas das figurações não podem
ser reduzidas a esses motivos e intenções isoladas (Cf. GOUDSBLOM;
MENNELL, 1998, p. 130-131).9
No limite, é possível afirmar que, para Elias, a maior expressão do con­
ceito de figuração pode ser encontrada olhando-se para a própria sociedade,
tendo-se claro que, dentro dessa figuração maior (o conjunto de todas as
relações sociais que formam uma sociedade), encontramos uma série de
outras figurações menores (relações sociais entre grupos, classes etc.).
Mannheim, por sua vez, na obra Ideologia e utopia: uma introdução à socio­
logia do conhecimento, não discute especificamente o conceito de figurações
interdependentes. No entanto, quando reflete sobre a questão do pensamento
no âmbito da Sociologia do Conhecimento, Mannheim não só o admite como
faz uso desse conceito, já que afirma que a “vida inteira de um grupo histórico-
social apresenta-se como uma configuração interdependente”, e que “o pensa­
mento é apenas sua expressão”, sendo que “a interação entre estes dois aspec­
tos da vida [pensamento e atitudes] é o elemento essencial na configuração,

9 No sentido de ajudar o entendimento dos conceitos de figuração e de interdependência, Elias


afirma, no livro Os estabelecidos e os outsiders, que sua “análise sociológica baseia-se no pressu­
posto de que todos os elementos de uma configuração, com suas respectivas propriedades, só
são o que são em virtude da posição e função que têm nela” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 58).
Em resenha sobre esse mesmo livro, Miceli aponta que Elias, nesse caso, trabalha a “idéia de
figuração ou configuração como equilíbrio instável de poder, permeado pelas interdependências,
tensões e constrangimentos que lhe são constitutivas” (MICELI, 2000, p. 2).
84 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

devendo-se investigar suas detalhadas interconexões, se se pretende com­


preendê-la” (MANNHEIM, 1972, p. 328, colchetes de nossa autoria).10
O conceito de interdependência é proposto por Elias exatamente para
investigar estas “interconexões” da vida social, às quais Mannheim se refere.
Para Elias, essa teoria baseia-se “na observação de que cada indivíduo é
tributário, desde a infância, de uma multidão de indivíduos interdependentes”.
Assim sendo, Elias entende que o problema mais importante da Sociologia é
“saber de que maneira e por que razões os homens se ligam entre si e for­
mam em conjunto grupos dinâmicos específicos”. Esse problema só será
resolvido a partir da “determinação das interdependências entre indivíduos”
(ELIAS, 1995a, p. 117), as quais fazem parte do conceito eliasiano de socie­
dade (Cf. ELIAS, 1980, p. 136).
As relações de interdependência têm duas características que necessitam
ser salientadas. A primeira é que, mesmo quando essas relações são intencio­
nais, elas podem produzir conseqüências não intencionais, ou seja, “do
entrecruzar das ações de muitas pessoas podem emergir conseqüências sociais
que ninguém planejou”. A segunda característica é que essas relações intencio­
nais de interdependência, muitas vezes, podem ter sido originadas de
“interdependências humanas não intencionais” (ELIAS, 1980, p. 103).
Para Elias, o campo de investigação da sociologia é composto pelos
“processos e estruturas de interpenetração” e pelas “configurações forma­
das pelas ações de pessoas interdependentes, em resumo, pelas sociedades”
(ELIAS, 1980, p. 112). Ele denomina seu método sociológico de “realista”,
definindo-o da seguinte maneira:

A análise sociológica baseada no postulado de que as estruturas sociais são forma­


ções de indivíduos interdependentes abre caminho a uma sociologia realista. O
fato de que os homens não se apresentam como seres totalmente fechados sobre
si próprios, mas como indivíduos que dependem uns dos outros e formam entre si
agrupamentos de grande diversidade pode ser observado e provado pelas investiga­
ções empíricas. Estas permitem, além disso, apreender com precisão, embora não
exaustivamente, o nascimento e a evolução de formações específicas. Permite tam­
bém determinar em que condições a interdependência se foi modificando por
efeito das alterações, endógenas e exógenas, da formação social no seu conjunto
(ELIAS, 1995a, p. 178).

10 Explicitando ainda mais a influência teórica de Mannheim sobre o pensamento de Elias, Lepenies
afirma que foi Elias quem acentuou “ainda mais uma determinada direção da sociologia do
conhecimento [proposta por Mannheim], ao designá-la como uma revolução intelectual que
não julgava o mistério do homem criativo maior do que o do homem em geral” (LEPENIES,
1996, p. 317, colchetes de nossa autoria).
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 85

Acreditamos que, depois de encontrarmos semelhanças entre as idéias


de Mannheim e Elias — especialmente nos conceitos de relações de inter­
dependencias, figurações, como também na defesa do procedimento meto­
dológico de análise baseado nos processos de longa duração e na defesa de
uma sociologia de caráter empírico —, podemos afirmar que a influência do
pensamento de Mannheim sobre o de Elias deve ser sempre considerada,
para que possamos melhor entender a sociologia figuracional de Elias, bem
como a sua teoria dos processos de civilização.

5.3 A teoría dos processos de civilização


Toda e qualquer discussão sobre a teoria dos processos de civilização de
Norbert Elias é precedida por uma questão sempre presente: a dúvida sobre
se ela, especialmente quando analisada como uma teoria da historia — e
também como teoria sociológica — tem ou não uma direção a priori, prede­
terminada e/ou inexorável. Porém, antes de discutirmos essa questão, ne­
cessitamos explicitar qual a teoria da história utilizada por Elias, comparan­
do-a com a sua teoria sociológica.
No prefácio do primeiro volume do livro O processo civilizador, Elias ini­
cia uma discussão sobre as teorias presentes nos estudos históricos, procu­
rando defender e justificar o método histórico por ele usado — a análise de
longa duração. A questão posta por Elias, no referido prefácio, é a seguinte:
“... uma vez que todos os fenômenos históricos, tanto atitudes humanas como
instituições sociais, realmente se ‘desenvolveram’ em alguma época”, qual o
método histórico mais adequado para estudá-las: o “relativismo histórico” ou
o “estatismo histórico”? (Cf. ELIAS, 1994a, p. 17, aspas no original).
Com o intuito de responder a essa questão, Elias primeiro define o que
chama de “estatismo histórico”. Para ele, essa expressão refere-se ao método
de análise histórica “que tende a descrever todos os movimentos históricos
como algo estacionário e sem evolução”. O “relativismo histórico”, por sua
vez, é o método de análise da história que a enxerga “apenas em transforma­
ção constante, sem chegar à ordem subjacente a esta transformação e às leis
que governam a estrutura histórica”. A opção metodológica de Elias é “reve­
lar a ordem subjacente às mudanças históricas, sua mecânica e mecanismos
concretos”, de forma que essa proposta signifique uma terceira opção, que
caminhe entre as duas outras, ou, em suas próprias palavras, encontrar “meios
e maneiras intelectuais de traçar um curso entre o Cila deste ‘estatismo’ e o
Caribde do ‘relativismo histórico”’, ou seja, a análise dos processos históri­
cos, dentro de uma perspectiva de lcnga duração, perspectiva essa que en-
86 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

globe longos períodos da história das sociedades (ELIAS, 1994a, p. 17, aspas
e itálicos no original).
A defesa desse método de pesquisa, que privilegia a análise histórica de
longa duração, é retomada por Elias no livro Introdução à sociologia, ao afirmar
que algumas transformações sociais só acontecem — quando acontecem —
após um “desenvolvimento que abarque várias gerações” (ELIAS, 1980, p. 21).
Na apresentação do primeiro volume d’0 processo civilizador, para a
edição brasileira, Renato Janine Ribeiro critica o fato de, segundo ele, Elias
apontar um sentido para a História, afirmando que ele se utiliza do método
que os historiadores franceses definem como “história das mentalidades”,
pois propõe, como medida mais adequada para o estudo da História, a aná­
lise dos fenómenos dentro da perspectiva da longa duração, que, no caso
dos processos de civilização, Elias denomina de “curva de civilização”.
Para Ribeiro, apesar de Elias afirmar que essa “curva de civilização”
não é a única possível, nem necessária para o homem, ele a vê como defini­
tiva, e que terminará por “mundializar-se”. O que Ribeiro questiona é a vali­
dade de apresentar um sentido para a História, já que, em sua opinião, por
mais precário que esse sentido seja, ele acaba por se apoderar da consciên­
cia do historiador, o qual não se liberta mais do sentido inicialmente apontado.
Dessa maneira, Ribeiro deixa implícito que o processo de civilização de Elias
seria dotado de um certo determinismo histórico e social, uma direção
inexorável (Cf. RIBEIRO. In: ELIAS, 1994a, p. 11-12).
Notamos, porém, que objeções dessa natureza também estão presentes
em recentes debates entre historiadores sobre a mesma questão. No mesmo
sentido das observações de Ribeiro, temos, por exemplo, Robert Darnton
que, ao escrever um artigo jornalístico sobre a busca da felicidade, com base
na análise da obra Cândido, de Voltaire, afirma que a visão histórica utilizada
por Voltaire “lhe empresta direção, propósito e poder — algo de semelhante
ao ‘processo civilizador’ de Norbert Elias” (DARNTON, 1996, p. 5, aspas no
original). Em oposição a essa idéia, há, por exemplo, Peter Burke, que, em
outro artigo de jornal, sobre o hábito de se tomar banho, faz a seguinte
afirmação: “Não é possível escrever uma história linear simples sobre o pro­
gresso da higiene, tal como não se pode fazê-lo com o progresso da civilização
(como pensam os críticos de Norbert Elias)” (BURKE, 1996, p. 3, parênteses
no original).
Ao discutir sua teoria sociológica, no livro Introdução à Sociologia, além
de salientar os conceitos de interdependências e de figurações, considera­
mos que Elias responde, de maneira explícita, à questão de um possível sen­
tido da história, posto a priori, ao afirmar que é
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 87

[...] assustador compreendermos que formamos interconexões funcionáis, no inte­


rior das quais muito do que fazemos é cego, sem finalidade e involuntário. É muito
mais reconfortante acreditarmos que a Historia — que é sempre a historia de socie­
dades humanas particulares — tem um significado, um destino, talvez mesmo uma
finalidade (ELIAS, 1980, p. 62).

Apesar de “reconfortante”, Elias não compactua com essa idéia, ao con­


trário, entendemos que, em alguns momentos, ele admite a existência de um
sentido para a História, porém o entendimento desse sentido só pode ser a
posteriori, quando da análise, por exemplo, de acontecimentos históricos
passados. Não é admissível, para Elias, a existência desse sentido como uma
espécie de direcionador da História, das ciências humanas ou mesmo de
qualquer tipo de conhecimento científico.11
Quando ele afirma que “muito do que fazemos é cego, sem finalidade e
involuntário”, Elias apenas está explicitando a idéia de que as figurações
formadas, pelos e entre os indivíduos na sociedade, são processos não pla­
nejados nem intencionais. As relações de interdependência, que emergem
dessas figurações, podem até ser intencionais, mesmo assim, poderão pro­
duzir conseqüências não intencionais, ou terem sido originadas de outras
interdependências humanas não intencionais (Cf. ELIAS, 1997, p. 30-31;
1980, p. 103 e KRIEKEN, 1996, p. 163 e 167-168).
Elias se refere a essas características, presentes nos conceitos de figura­
ção e de relações de interdependência — próprias do método de que faz uso
— quando menciona, na última citação, um possível sentimento “assusta­
dor”. Ele qualifica de “reconfortante” o método de análise histórica que,
sempre, apresenta um “significado, um destino, talvez mesmo uma finalida­
de”. Entendemos que Elias, na verdade, está fazendo uma crítica aos defen­
sores desse método.12

11 Nas páginas introdutórias de seu livro, A história cultural, Roger Chartier ratifica essas nossas
afirmações (Cf. CHARTIER, 1990, p. 25).
12 Ao enxergar a história das sociedades humanas como um processo de longo prazo, constante­
mente sujeito a retrocessos, Elias aproxima-se, nesse ponto, da concepção de História advinda do
marxismo (Cf. ELIAS, 1996, p. 173 e 1994b, p. 132). Friedrich Engels afirma que foi Karl Marx
quem descobriu que o processo histórico é resultado dos conflitos — e, portanto, um processo
sujeito a retrocessos — entre as classes sociais (Cf. ENGELS. In: MARX, 1988, p. 6-7). Para
Marx, é o “modo de produção da vida material” que “condiciona o processo em geral de vida
social, política e espiritual”, condicionando, conseqüentemente, o processo histórico (MARX,
1987, p. 29-30). Elias, em sua autobiografia, também explicita as diferenças do seu pensamento
em relação ao marxismo (Cf. ELIAS, 1996, p. 189-192 e 1994c, p. 144-147).
Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

No livro, Mozart, sociologia de um gênio, Elias faz a mesma crítica a esse


método de análise histórica, porém, agora, tendo como objeto a história da
arte, a qual não pode ser entendida como “uma mera seqüência caleidoscópia
de mudanças, uma sucessão não-estruturada de estilos, ou mesmo uma acu­
mulação fortuita de ‘grandes’ homens”. Para Elias, a história da arte deve ser
entendida como “uma seqüência definida e ordenada, um processo estru­
turado que vai numa certa direção e está intimamente ligado ao processo
social geral” (ELIAS, 1995b, p. 46, aspas no original).
Quando analisa os acontecimentos históricos ocorridos nas nações eu­
ropéias durante os séculos XIX e XX, por exemplo, Elias afirma que esses
acontecimentos tinham algumas características em comum, entre elas, “uma
cientifização crescente do controle sobre a natureza” e “uma diferenciação
ocupacional crescente”, o que fazia com que essas sociedades se movessem
em uma mesma direção. Porém, além dessa análise só poder ser feita a
posteriori, essa direção deve ser entendida como a ocorrência de um certo
“paralelismo estrutural no seu desenvolvimento de conjunto como socieda­
des” (ELIAS, 1980, p. 67-68).
No texto que apresenta o segundo volume d’0 processo civilizador,
intitulado “Uma ética do sentido”, Ribeiro observa que o ponto central da
teoria dos processos de civilização de Elias é “a tese de que a condição hu­
mana é uma lenta e prolongada construção do próprio homem”. Se, por um
lado, essa afirmação pode parecer, inicialmente, banal, por outro, ela “rom­
pe com a idéia de uma natureza já dada, bem como com a da ininteligibilidade
última de nosso ser”. Dessa maneira, “nem a condição humana é absurda
(ela descreve um sentido), nem este é conferido de uma vez por todas, de
fora de nós (não existe um Deus doador de sentido, nem uma natureza imu­
tável do homem)” (RIBEIRO. In: ELIAS, 1993, p. 9, parênteses no original).
Ainda, segundo Ribeiro, essa tese aponta para “uma valoração moral,
uma opção pelo homem”, em que o “seu eixo é o de uma crença no civilizar
do homem que, embora não tenha chegado, por enquanto, a seu termo,
prossegue”. Para Ribeiro, o pensamento de Elias assume uma “dimensão
ética” explicitada pela “convicção de que o homem se civiliza, e de que isso
constitui um valor positivo” (RIBEIRO. In: ELIAS, 1993, p. 11-12).
Diante da interpretação de Ribeiro, entendemos que está claro que a
teoria dos processos de civilização de Elias, e mesmo a sua teoria sociológi­
ca como um todo, tem, sim, um sentido, porém não determinado a priori, e
esse sentido não se constitui necessariamente em erro ou defeito metodoló­
gico, especialmente porque Ribeiro considera que, da
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 89

[...] perspectiva filosófica a razão a se apresentar é que o pensador Elias acreditava


no progresso, e que por sua vez este se funda, em seu pensamento, no pressuposto
do sentido. Se os atos e obras do homem se engrenam num processo, e este tem por
sentido a civilização, os acidentes que a atrasem não passam disso mesmo, de
meros incidentes de percurso (RIBEIRO. In: ELIAS, 1993, p. 11).

Pela leitura de Ribeiro, a teoria eliasiana dos processos de civilização é


dotada de um certo sentido positivo, uma positividade, ao contrário do que
afirma o próprio Elias, para o qual o conceito de civilização, ou a definição
do que significa “ser civilizado”, não carrega qualquer positividade ou
negatividade. Diz Elias:

Jamais se pode dizer com absoluta certeza que os membros de uma sociedade são
civilizados. Mas, com base em pesquisas sistemáticas, calcadas em evidência
demonstrável, cabe dizer com alto grau de certeza que alguns grupos de pessoas
tomaram-se mais civilizados, sem necessariamente implicar que é melhor ou pior,
ou tem valor positivo ou negativo, tomar-se mais civilizado (ELIAS, 1994a, p. 221,
itálicos no original).

Assim, ao não admitir um sentido para a Historia, dado a priori — que


significaria um método de análise histórica “reconfortante” —, a perspectiva da
longa duração toma-se fundamental no pensamento de Elias. Para ele, o cientis­
ta social — um cientista especializado — deve ser o “encarregado de investigar
os processos sociais de longo curso” (ELIAS, 1980, p. 53), visto que, como já
mostramos, Elias entende que algumas transformações sociais, e, especialmen­
te, os processos de civilização, só podem acontecer “quando houver um desen­
volvimento que abarque várias gerações” (ELIAS, 1980, p. 21).

5.4 Nossa conclusão e nossos questionamentos


Como conclusão deste capítulo, consideramos que a sociologia figuracional
proposta por Norbert Elias está intrinsecamente articulada com a sua teoria
dos processos de civilização das sociedades ocidentais modernas. Assim,
sua teoria dos processos de civilização parte do pressuposto de que as rela­
ções sociais geram relações de interdependência entre as pessoas que fazem
parte de toda e qualquer sociedade. Uma dada sociedade, ou mesmo uma
parte dela, pode ser entendida como uma figuração, a qual sofre alterações
decorrentes de outras relações de interdependência, também existentes em
seu interior. Esse movimento constante, e de dupla direção, permite-nos
entender que os processos de civilização das sociedades humanas não se
realizam de forma homogênea e/ou retilínea.
90 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

Quando visto de uma perspectiva de longa duração, esse mesmo proces­


so de civilização acaba indicando uma direção específica, porém ela não é
perceptível para os próprios indivíduos que participam desse processo. Essa
direção só é perceptível a posteriori, como resultado da utilização de seu método
de análise histórica e sociológica, cujo pressuposto inicial é a observação de
dados empíricos, factuais e comprováveis, “retirados” de uma determinada
figuração social, sempre a partir de uma perspectiva de longa duração.

No entanto, não são as relações de interdependência, ou qualquer dos


outros conceitos utilizados por Elias, por exemplo, a psicogênese ou a
sociogênese, o “ponto zero”, de onde se inicia a explicação, de sua teoria
dos processos de civilização — já que, assim, seria uma explicação de rela­
ções de causa e efeito — porque essa teoria não possui nem um “ponto
zero”, de onde a história das sociedades humanas se iniciaria, nem é uma
teoria baseada em relações causais. Por outro lado, o processo de civiliza­
ção não se realiza de uma forma homogênea, retilínea ou progressiva, visto
que a teoria eliasiana admite que ele pode sofrer retrocessos. Portanto, ba­
seado nesses pressupostos, Elias procura combater as teorias sociológicas
que enxergam, nos agrupamentos sociais, sistemas que tendem, naturalmente,
a um estado de equilíbrio.

Todo esse conjunto de conceitos descritos acima é, de certa forma, coe­


rente, o que não nos impede de questioná-lo. A primeira questão diz res­
peito ao conceito de figuração. Elias o elabora buscando contrapô-lo à idéia
da sociedade vista como um sistema harmônico que tende ao estado de equi­
líbrio, defendendo, com a utilização desse conceito, uma nova forma de se
analisar as sociedades humanas.

Acontece, porém, que o conceito de figuração desenvolvido por Elias apre­


senta, no nosso entendimento, um sério problema. Ao admitir que ele é aplicá­
vel tanto à sociedade considerada em seu conjunto quanto a pequenos — ou
grandes — grupos existentes em seu interior, a idéia de figuração passa a servir
a todo e qualquer objeto de análise sociológica, a todo e qualquer grupo social.
Isso significa que, nesse ponto, o conceito de figuração torna-se muito
próximo à idéia da sociedade vista como um sistema, que Elias quer combater.
A diferença entre essas duas maneiras de se analisar as sociedades estaria no
fato de as figurações serem formadas a partir de inúmeras relações de interde­
pendências, por exemplo, a constante correspondência entre as alterações so­
fridas pela estrutura psicológica individual e pelas estruturas sociais. A simples
existência dessa constante correspondência elimina a possibilidade de toda e
qualquer figuração tender a um possível, e imaginário, estado de equilíbrio.
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 91

Sendo assim, dada urna determinada alteração na estrutura psicológica


individual, por exemplo, o aumento no nível de autocontrole, com o corres­
pondente aumento do controle social, ou vice-versa, em decorrência de de­
terminadas relações de interdependências, a figuração, no interior da qual
tal modificação ocorreu, ganha, digamos, uma nova “cara”, que deverá con­
tinuar a ser analisada, do ponto de vista sociológico, apenas como uma figu­
ração. Uma figuração com novas características, mas que continua a ser
apenas uma figuração, o que, no nosso entendimento, aproxima, mais ainda,
a idéia de figuração da idéia de sistemas sociais.
A diferença fundamental estaria no fato de que, enquanto a idéia de
sistemas sociais procura analisar as sociedades como estando, constante­
mente, tendendo a um estado de equilíbrio, o conceito de figuração não
admite que possa existir qualquer sociedade, em qualquer momento, que se
encontre nessa situação de equilíbrio. Por outro lado, tanto a idéia de siste­
mas sociais quanto a de figurações sociais admite a ocorrência de constantes
alterações nas relações existentes no contexto das sociedades humanas.
Outro ponto que devemos ressaltar diz respeito à concepção histórica
adotada por Elias quando desenvolve a sua teoria dos processos de civilização.
Ao afirmar que os processos de civilização não se realizam nem de maneira
homogênea nem retilínea, mas que podem sofrer retrocessos, Elias aproxima-
se da concepção histórica advinda do marxismo. Isso não nos permite afirmar
que a adotada por Elias possa ser classificada como dialética, mesmo porque
ela não é, mas parece claro que ele foi influenciado, ao menos nesse aspecto,
pelo pensamento de Marx. Entendemos que, nesse caso, o ponto mais impor­
tante que diferencia a teoria de Elias é a idéia de que os processos de civilização
têm uma direção — embora somente perceptível a posteriori, ainda assim, uma
direção — ao passo que o materialismo histórico não, pois ele é dialético.
Disso tudo, concluímos que a utilização da sociologia figuracional de
Elias, como referencial teórico-metodológico, torna impossível pensarmos
nos conceitos de indivíduo e de sociedade como duas categorias separadas
e/ou antagônicas, no contexto tanto da teoria dos processos de civilização
quanto da própria sociologia figuracional, ou seja, as estruturas psicológicas
individuais e as estruturas sociais só podem ser analisadas como uma “inter-
relação indissolúvel”, formando figurações interdependentes.
92 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

Exercícios
1. Com qual corrente da Sociologia que Norbert Elias está, implicitamen­
te, discutindo, no Apêndice “Introdução à Edição de 1968”, do livro:
ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. 2.ed. Trad.
Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994b. v. 1.
2. Explique, com suas palavras, o que você entendeu do conceito de socio­
logia figuracional, tomando por base o presente texto e, como biblio­
grafia complementar, o seguinte artigo: PONTES, H. Elias, renovador
da ciência social. In: WAIZBORT, L. Dossiê Norbert Elias. São Paulo:
Edusp, 1999. p. 17-35.
3. Qual a idéia que Norbert Elias expressa sobre o conceito de racionali­
zação, fundamentando-se no presente texto e, como bibliografia com­
plementar, no seguinte artigo: COLLIOT-THÉLÈNE, C. O conceito de
racionalização: de Max Weber a Norbert Elias. In: GARRIGOU, A.;
LACROIX, B. (Org.). Norbert Elias: a política e a história. São Paulo:
Perspectiva, 2001. p. 23-42.
4. Na sua opinião, qual é a atualidade da sociologia figuracional proposta
por Norbert Elias?
5. Na sua opinião, quais são as possibilidades de aplicação da teoria eliasiana
de figurações sociais para o entendimento da Educação moderna?

Referências
BURKE, P Os sacrifícios da impureza. Folha de S.Paulo, 10 nov. 1996b. Ca­
derno Mais!, p. 3.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria


Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990.

COHN, G. Uma tradição absorvida. Folha de S.Paulo, 8 maio 1999. Jornal de


Resenhas, p. 7.

DARNTON, R. A procura da felicidade. Folha de S. Paulo, 3 nov. 1996. Ca­


derno Mais!, p. 7-10.

ELIAS, N. Introdução à sociologia. Trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa:


Edições 70, 1980.
---------- - O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Trad. Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. v. 2.
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 93

______ . O processo civilizador: uma história dos costumes. 2. ed. Trad. Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994a. v. 1.
_______. Reflections on a life. Trad. Edmund Jephcott. Cambridge; Oxford:
Polity Press; Blackwell Publishers, 1994b.
______ . A sociedade de corte. 2. ed. Trad. Ana Maria Alves. Lisboa: Editorial
Estampa, 1995a. (Col. Nova Historia, 19).
_______. Mozart, sociologia de um gênio. Trad. Sérgio Goes de Paula. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995b.
_______. Über sich selbest. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1996.
_______. Envolvimento e distanciamento: estudos sobre sociologia do conhe­
cimento. Trad. Maria Luisa Cabaços Meliço. Lisboa: Dom Quixote, 1997.

ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação. Trad. Maria Manuela Almeida


e Silva. Lisboa: Difel, 1992.

ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das rela­


ções de poder a partir de uma pequena comunidade. Trad. Vera Ribeiro. Rio
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FORACCHI, M. M. Mannheim: sociologia. Trad. Emílio Willems, Sylvio


Uliana e Cláudio Marcondes. São Paulo: Ática, 1982. (Col. Grandes Cien­
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GOUDSBLOM, J.; MENNELL, S. The Norbert Elias reader. Oxford: Blackwell


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KRIEKEN, R. V. A organização da alma: Elias e Foucault sobre a disciplina e
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Departamento de Sociologia, v. 3, p. 153-80, 1996.

LEPENIES, W. As três culturas. Trad. Maria Clara Cescato. São Paulo: Edusp,
1996. (Col. Ponta 13).
MALERBA, J. Sobre Norbert Elias. In: ___________ (Org.). A velha História: teo­
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MANNHEIM, K. Ideologia e utopia. 2. ed. Trad. Sérgio Magalhães Santeiro.


Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.
MARX, K. Introdução à crítica da economia política. In: Manuscritos econó­
mico-filosóficos e outros textos escolhidos. 4. ed. Trad. José Carlos Bruni, José
Arthur Giannotti e Edgar Malagodi. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Col.
Os pensadores).
_______. O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte. In: Manuscritos económi­
co-filosóficos e outros textos escolhidos. 4. ed. Trad. Leandro Konder, José
94 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

Arthur Giannotti e Walter Rehfeld. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Col.
Os pensadores).
MENNELL, S. Norbert Elias: an introduction. Oxford: Blackwell Publishers, 1997.
MICELI, S. Chave para ouvir Mozart. Folha de S.Paulo, 1 maio 1995. Jornal
de Resenhas, p. 4.
RICHARD, L. A República de Weimar: 1919-1933. Trad. Jônatas Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras; Círculo do Livro, 1988. (Col. A vida cotidiana).

WAIZBORT, L. O mestre das figurações. Folha de S.Paulo, 22 jun. 1997. Ca­


derno Mais!, p. 14.

Leituras recomendadas
BRANDÃO, C. E A teoria dos processos de civilização de Norbert Elias: o con­
trole das emoções no contexto da psicogênese e da sociogênese. 2000. Tese
(Doutorado) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília, 2000.
Trabalho que analisa o conjunto da obra de Elias, centrando foco na discussão
sobre a importância do conceito de controle das emoções no contexto das
idéias eliasianas de psicogênese e sociogênese dos processos de civilização.

BRANDÃO, C. F Norbert Elias: formação, educação e emoções no processo


de civilização. Petrópolis: Vozes, 2003.
Nessa obra, o autor discute a relação entre a teoria dos processos de civilização
de Norbert Elias e as teorias pedagógicas modernas, tendo, como foco central, a
questão do controle das emoções, presente nos processos pedagógicos.

CARVALHO, A. B.; BRANDÃO, C. E Introdução à Sociologia da Cultura: Max


Weber e Norbert Elias. São Paulo: Avercamp, 2005.
As idéias contidas nos textos que compõem esta coletânea focalizam especial­
mente o pensamento de Norbert Elias e Max Weber, cujas reflexões sobre a
cultura ocidental, em especial nas questões sobre religião e sobre o uso do
monopólio legítimo da força física, confluíram significativamente.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria


Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990.
O terceiro capítulo deste livro é dedicado à análise dos conceitos de habitus
e de formação social de Elias, tendo, como referência principal, o livro A
sociedade de corte, de Elias.
Cap. 5 A Sociologia Figuracional de Norbert Elias 95

ELLAS, N. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Trad. Ruy


Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. v. 2. ______________ . 2. ed. O
processo civilizador: uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. v. 1.
A teoria dos processos de civilização, proposta por Elias, é explicitada em todas
as suas nuances em sua principal obra, 0 processo civilizador, escrita no final da
década de 1930 e ainda hoje atual. Publicada em dois volumes no Brasil, essa
obra traz ainda textos introdutórios interessantes de Renato Janine Ribeiro, que
muito ajudam o leitor no entendimento dos principais conceitos de Elias.
______ . Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos
XIX e XX. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
Essa obra foi um dos últimos trabalhos produzidos por Elias, constituindo-
se em um de seus livros mais interessantes, no qual o autor, de certa maneira,
aplica, à história da “sua” Alemanha, a teoria dos processos de civilização
por ele proposta, podendo ser interpretado também como um “ajuste de
contas” entre o autor e sua pátria.

FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes. In: Edição Standard brasileira das


obras completas de Freud. Trad. Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques
Britto e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 127-
62, v. XIV.
Como o conceito de impulso é fundamental nos escritos de Elias, esse ensaio
de Freud, escrito em 1915, é interessante para que o leitor possa comparar
o conceito de impulso que aqui ele utiliza com o mesmo conceito descrito
por Freud no ensaio O mal-estar na civilização, de 1930.

MARCUSE, H. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento


de Freud. 7. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
Clássico do pensamento europeu dos anos 1960, Marcuse interpreta a obra
de Freud sob um novo prisma, a partir do princípio de que as pessoas só
serão felizes quando pararem de reprimir os seus impulsos.

REICH, W. Psicologia de massa do fascismo. Trad. J. Silva Dias. Porto: Publica­


ções Escorpião, 1974.
Entre outros pontos, Reich descreve, neste livro, todo o debate entre mar­
xismo e psicanálise, ocorrido na Alemanha nas décadas de 1920 e 30, no
período da República de Weimar.
WAIZBORT, L. Questões não só alemãs. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
São Paulo, n. 13, p. 185-190, jun. 1998.
Neste artigo, que, na realidade, é uma resenha do livro Os alemães, Waizbort
rebate todas as críticas dirigidas à teoria social proposta por Elias.
96 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

WEBER, M. Ensaios de sociologia e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural,


1974. (Col. Os pensadores, XXXVII).
Este trabalho de Weber é importante para o entendimento das idéias de
monopólio do uso da força física e monopólio da tributação. Esses elemen­
tos conceituais também estão no cerne da teoria dos processos de civiliza­
ção de Elias e explicitam a influência do pensamento de Weber sobre essa
teoria eliasiana.
6
O riso e o trágico na indústria
cultural: a catarse administrada
Bruno Pucci

6.1 Introdução
Theodor Adorno, no ensaio Teoria da Semiformação (2003),13 escrito em 1959,
constatava que a burguesia, quando conquistou o poder nos países euro­
peus, estava mais desenvolvida culturalmente do que os senhores feudais e
que sua formação foi um dos fatores fundamentais para sua afirmação como
classe hegemônica e para o desempenho de tarefas econômicas e adminis­
trativas. Por outro lado, o proletariado inicial, oriundo de camponeses sem
propriedade, de pequenos comerciantes e artesãos, mergulhado em prolon­
gadas jornadas de trabalho e em precárias condições de vida, não teve tem­
po e nem condições para se dedicar às coisas do espírito, para se formar
culturalmente. Diz o frankfurtiano: “a desumanização implantada pelo pro­
cesso capitalista de produção negou aos trabalhadores todos os pressupos­
tos para a formação e, acima de tudo, o ócio” (ADORNO, 2003, p. 6).

13 Theorie der Halbbildung foi traduzido inicialmente, por Newton Ramos de Oliveira, Bruno Pucci
e Claúdia Barcelos de Moura Abreu, por Teoria da Semicultura e publicado na revista Educação
e Sociedade (1986). Em 2003, Newton Ramos de Oliveira e membros do Grupo de Estudos e
Pesquisa “Teoria Crítica e Educação”, da UFSCar, elaboraram uma revisão completa da tradução
anterior, com o título Teoria da Semiformação, que está ainda inédita.
98 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

O ócio — il dolcefar niente — seria o tempo livre destinado à restaura­


ção das forças desgastadas pelo trabalho, e, sobretudo, o tempo que o traba­
lhador deveria dispor para reorganizar seus momentos de vida, a partir de
seus interesses e necessidades, em atividades que lhe dessem prazer, cresci­
mento espiritual, conhecimentos novos, gosto pela vida; momentos integrais
de sua existência. No entanto, a burguesia, por meio da impotência econômi­
ca e da exclusão do ócio, manteve, por muito tempo, o proletariado pobre e
ignorante. E quando os trabalhadores, após muitas lutas e revoltas, consegui­
ram diminuir progressivamente a jornada de trabalho, melhorar o salário e as
condições de vida, a burguesia continuou o processo de exclusão, dos traba­
lhadores, da formação (Bildung) pela semiformação (Halbbüdung). Permane­
ceu lhes negando as condições de formação e, em seu lugar, possibilitou-lhes
um arremedo de formação (Cf. PUCCI, 1998, p. 93-94).
O tempo livre, agora aparentemente liberado como uma reserva para
as coisas do espírito, transforma-se em prolongamento do trabalho e se tor­
na plenamente preenchido pelos encantos da indústria cultural. É conhecida
a afirmação de Horkheimer e Adorno de que a indústria cultural se encarre­
ga de “ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a
chegada ao relógio-de-ponto, na manhã seguinte (1986, p. 123)”. E, nessas
condições, como exigir dos trabalhadores que realizem alguma coisa produ­
tiva em seu tempo livre, já que lhes minaram a capacidade criativa e suas
expressões de espanto e resistência?
O “riso e o trágico” são duas manifestações humanas habilmente traba­
lhadas pela indústria dos bens culturais para manterem as pessoas ocupadas
e distraídas e, ao mesmo tempo, interconectadas às infindas informações
que invadem seus lares e suas vidas. Por meio do riso e do trágico, os traba­
lhadores, mas não só eles, aliviam suas tensões, apaziguam suas consciências,
extravasam seus sentimentos. E não se sentem nem um pouco acrescidos
espiritualmente. É o que vamos ver neste ensaio, a partir das análises de
Horkheimer e Adorno.
O termo káthasis tem origem na medicina antiga. Significa liberação do
que é estranho ao organismo e lhe causa perturbações. Purgação, desemba­
raço, alívio. Do bem-estar físico-somático se passa, em Orfeu, para o bem-
estar espiritual: catarse é uma forma de purificação e absolvição dos atos
injustos mediante sacrifícios e jogos aprazíveis. O homem se sente em paz
consigo mesmo e com os outros, sente-se livre da culpa que o perseguia, do
mal que o incriminava. Em Platão, o termo catarse confirma o sentido pri­
meiro de purificação, de conservação do que traz bem-estar espiritual, de
desembaraço de tudo que gera distúrbios, e, além disso, ganha conotações
Cap. 6 O riso e o trágico da indústria cultural 99

novas: designa libertação da alma em relação ao peso da materialidade corpo­


ral, aos prazeres, aos desejos, recolhimento da alma em si mesma, reencontro
com a sabedoria.
Aristóteles utiliza freqüentemente o termo “catarse” no sentido médico,
como purificação, purgação. É também o primeiro a lhe dar uma expressão
estética, uma espécie de libertação ou serenidade que a poesia e a música
provocam no homem. A tragédia, pela imitação sublime e próxima dos confli­
tos humanos, por meio das vozes da música e da poesia dramática, suscita,
nos participantes, o terror e a piedade e, com isso, leva-os à purificação de tais
afetos, gerando calma, serenidade. Na Política, ele observa que algumas pes­
soas, fortemente influenciadas por emoções como piedade, medo e entusias­
mo, ao ouvirem os cantos sacros que impressionam a alma, sentem-se como
que curadas, purificadas. A purificação, o agradável alívio, manifestações sen­
síveis da catarse, realizam-se, então, como um fenômeno estético.
Goethe retoma a interpretação aristotélica da catarse, enfatizando o
equilíbrio das emoções que a arte trágica traz ao espectador, depois de ter
suscitado nele essas mesmas emoções. O fenômeno conserva sua dimensão
médica, sana o espírito e o corpo; não anula as emoções humanas, mas reduz
as tensões nelas presentes a um nível em que a razão possa, serenamente,
administrá-las. À semelhança da tragédia grega, as obras de arte, particular­
mente a música e a literatura, podem desenvolver nos leitores e nos ouvintes
uma função catártica (Cf. ABBAGNANO, 1970, p. 113).
Para Nietzsche — que lamenta o desaparecimento, no mundo contem­
porâneo, do potencial libertador da tragédia grega —, na arte dionisíaca, o
homem era arrebatado até a exaltação máxima de todas as suas faculdades,
experimentava e queria exprimir sentimentos até então desconhecidos, e,
ao mesmo tempo que participava integralmente do sofrimento da existên­
cia, participava também da sabedoria e, no fundo da alma do mundo, anun­
ciava a verdade. Articulava-se nele as dimensões do prazer, do sofrimento,
do conhecimento e da liberação (Cf. NIETZSCHE, 1996, p. 49 e 84).
No processo de onipresença da semiformação cultural no mundo con­
temporâneo, o que se percebe é a progressiva despotencialização da catarse.
Aquilo que perturba, que é estranho ao organismo, ao espírito, não é mais
purgado, pela arte, e sim camuflado, escondido atrás de luzes e cores cinti­
lantes. Tem-se uma aparente e momentânea sensação de alívio. As paixões
terríveis que derrubavam os homens e lhes mostravam toda sua fragilidade,
apresentando-lhes os aspectos da crueldade da existência, são agora edulco­
radas, de forma corriqueira e vibrante, durante e principalmente nos finais
felizes dos filmes e das novelas. E, assim, repassa-se ao espectador, continua-
100 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

mente, a mensagem de que a vida humana, qualquer que seja ela, é conco-
mitantemente um affaire perigoso e agradável, passível sempre de um final
feliz, desde que se possa, nesse trajeto, dominar, com maior segurança, im­
pulsos irracionais e estar de acordo com a existência reproduzida.
A arte séria, bem como a filosofia antiga, são frutos da cisão entre inte­
lectuais e trabalhadores manuais. Para que uns poucos pudessem realizar
expressões imortais da alta cultura ou usufruir esteticamente da essência
purificadora das obras-primas, era preciso que a maioria dos mortais traba­
lhasse duro, gerando alimento, calor, segurança. Hoje, a arte degenerada
industrial — ao mesmo tempo em que o usufruto de suas produções se en­
contra cada vez mais à disposição de todos os clientes — leva ao extremo a
contradição entre produtores e consumidores de cultura: estes últimos não
têm necessidade de elaborar a mais simples cogitação, a equipe de produção
pensa o tempo todo por eles. Enquanto a arte séria, expressão estética de
um sofrimento sublimado, assume contradições reais, aponta dissonâncias
de seu tempo e, como promesse de bonheur, mesmo vivendo na era da troca,
antecipa um mundo não mais regido pelo mercado, a obra aligeirada indus­
trial extirpa, de sua forma estética, os elementos críticos presentes na cultu­
ra, explicita a todo momento seu caráter afirmativo e glorifica perenemente
o sempre dado (Cf. ROUANET, 1998, p. 118-119). A televisão, o rádio, o
cinema e as mais “diferentes” revistas das milhares de bancas espalhadas
pela pólis entoam, festivas, sempre ao mesmo tempo e sintonizadamente, o
repetido refrão: eis a realidade como é, como deve ser e como será. O que é
salutar é o que se repete, como os processos cíclicos da natureza e da indús­
tria. As modelos desnudadas nas revistas eternamente sorriem para os
passantes agitados do dia-a-dia; a toda hora ecoa, nos milhares e diversifica­
dos aparelhos de som, a música de sucesso do momento (Cf. HORKHEIMER;
ADORNO, 1986, p. 124 e seguintes). Se um dos resultados benfazejos da
catarse estética era gerar, em seus participantes, a purgação espiritual para
que pudessem aguçar os elementos de resistência e de confronto à realidade
adversa, na arte sem sonho destinada ao consumo, o que se processa é uma
catarse às avessas: sua pseudopoética leva os participantes à identificação
integral com o todo, à fusão impessoal com o real.
As obras de arte são ascéticas e sem pudor; a indústria cultural é por­
nográfica e puritana, afirmaram os pensadores frankfurtianos na Dialética do
Esclarecimento (HORKHEIMER; ADORNO, 1986, p. 131). São ascéticas, as
obras de arte, enquanto desafiam seus criadores e recriadores a se elevarem
(ascenderem) por meio de exercícios efetivos de recolhimento e interpreta­
ção, além dos aspectos imediatos e grosseiros do artefato, em busca da ple-
Cap. 6 O riso e o trágico da indústria cultural 101

nitude de seu sentido, nunca dado, nunca esgotado. E, nesse ensaio de eleva­
ção, enlevação, ascetismo, elas desenvolvem, em seus admiradores, a sensibi­
lidade crítica, a dimensão ética, a expressão estética. As obras de arte são
também sem pudor, porque, enquanto apresentam a realidade ultrajada, com
suas vestes rompidas, desnudam sua intimidade e revogam a humilhação de
sua paixão. O olhar nu, que lhe gera tristeza pelo conhecimento das mazelas
da vida, desperta-lhe prazer pela perspectiva de uma promessa de mudança,
mesmo que ainda não realizada.
A indústria cultural, por sua vez, é pornográfica e puritana. Ao mesmo
tempo que explora o lado luxurioso dos indivíduos e das circunstâncias,
expondo repetida e explicitamente o objeto do desejo, banalizando-o, nega-
o, astutamente, a seus consumidores; expõe de maneira ostensiva as cenas de
sexo, excitando, assim, o prazer preliminar nos espectadores, porém os deixa
frustrados pela não realização desse mesmo prazer (Cf. TÜRCKE, apud DUARTE;
FIGUEIREDO, 1999, p. 55-80). A indústria cultural não eleva asceticamente
seus freqüentadores, não sublima suas pulsões, e, no fundo, toma-se rigorosa
na aplicação da moral sexual, pois a desordem e a orgia são prejudiciais ao
próprio sistema, perturbam o trabalho e a produção. O indivíduo, no interior
de si mesmo e de seus recintos reservados, tem todo o direito de explorar sua
performance sexual, com imagens, aparências, objetos fabricados e consumi­
dos ad hoc. Mas ter acesso àquela bela mulher que se lhe oferece em todo
momento nas revistas, nas telas, no recinto privativo da Internet, isso é coisa
para a imaginação, não para as circunstâncias do dia-a-dia.
Se, na idéia de “formação”, ressoam momentos de finalidade que deve­
riam levar os indivíduos a se afirmarem como racionais numa sociedade
racional e como seres livres em uma sociedade livre, na realidade da “semi-
formação”, desenvolvida com a pronta e integral ajuda da indústria cultural,
incorpora-se a onipresença do espírito alienado, e tudo fica aprisionado nas
malhas da socialização. “Por inúmeros canais se oferecem, às massas, bens
de formação cultural. Neutralizados e petrificados, no entanto, ajudam a
manter no devido lugar aqueles para os quais nada existe de muito elevado
ou caro” (ADORNO, 2003, p. 5 e 8).

6.2 A dimensão catártica do trágico


A arte trágica, como processo purificador do indivíduo, encontra-se densa­
mente analisada nos escritos de Nietzsche (1996), particularmente no de
1871. Ao escrever sobre a origem da tragédia grega, ele observa que a cria­
ção e o desenvolvimento da arte resultam de seu duplo caráter: ela é, ao
102 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

mesmo tempo, apolínea e dionisíaca. Apoio é o deus do sonho; Dioniso, o


da embriaguez. Com Apolo, a aparência, cheia de beleza, do mundo do
sonho, é a condição primeira de todas as artes plásticas, como também uma
parte essencial da poesia. O artista examina minuciosamente os sonhos e
consegue descobrir, nessa aparência, a verdadeira interpretação da vida;
com a ajuda de tais imagens, ele se exercita a tomar contato com a realida­
de. E não são apenas imagens agradáveis e deliciosas as que o artista desco­
bre dentro de si; também o sombrio, o triste, o sinistro, as contrariedades,
as expectativas desenvolvem-se sob seu olhar. Apoio, o deus da faculdade
criadora de formas, portanto, da expressão, é também o deus da adivinha­
ção, diria, da interpretação a partir dos indícios da aparência. Mais ainda:
vamos encontrar, em Apoio, intimamente vinculada às faculdades anterio­
res, uma outra linha delicada que é a extrema ponderação, o livre domínio
de si nas emoções mais violentas e a serena sabedoria nas ações da vida. É o
deus da lógica, da coerência interna, do equilíbrio perfeito (Cf. NIETZSCHE,
1996, p. 37-43).
Dioniso, por sua vez, representa o mundo da embriaguez, do estado
narcótico, em que os homens se liberam de suas amarras culturais, cantam
seus hinos, expressam febrilmente seus desejos; representa o excesso de
vitalidade presente na renovação primaveril, aquela que alegremente explo­
de em toda a natureza, desperta a vontade de viver no indivíduo, convida-o
insistentemente a se aniquilar no total esquecimento de si mesmo, no mer­
gulho absoluto na unidade cósmica. Na arte dionisíaca, o homem eleva-se ao
grau universal da espécie, e até da própria natureza, desindividualiza-se para
emergir plenamente na unidade.
As características que configuram o espírito apolíneo e o espírito
dionisíaco se negam frontalmente, se consideradas em si mesmas. No en­
tanto, na tragédia grega primordial, a tensão entre esses dois espíritos lhe
dá força, beleza e expressão artística. “Mas vede” — afirma Nietzsche —
“Apoio não podia viver sem Dioniso. O titânico ou bárbaro era finalmente
uma necessidade tão imperiosa como o olímpico” (NIETZSCHE, 1996, p.
57). Ele vai mais longe em sua análise ao observar que, se, de um lado, o
mito trágico deve ser compreendido como uma representação simbólica
da sabedoria dionisíaca, que assume formas próprias graças ao auxílio de
processos artísticos apolíneos, de outro, ele conduz o mundo da aparência
— da forma artística apolínea — até os limites em que procura negar a si
próprio e buscar refúgio no seio da verdadeira e única realidade. E mesmo
a manifestação artística, assumindo uma configuração apolínea específica,
Cap. 6 O riso e o trágico da industria cultural 103

continuava sempre enxertada e fertilizada pelo húmus da exuberância da


vida. Era essa interdependência que dava ritmo, melodia e capacidade de
arrebatamento à tragedia grega. E, nesse campo intenso de forças, nem o
indivíduo era simplesmente tragado pelo todo, da espécie ou da natureza,
desintegrando-se, nem o todo perdia sua força poderosa sobre o individuo,
chamando-o sempre para a espécie, para a natureza (Cf. N1ETZSCHE, 1996,
p. 172-174).
Na com(tra)posição do dionisíaco e do apolíneo, pela arte trágica, rea-
lizava-se o processo de elevação, purgação, liberação do ser humano: o pro­
cesso catártico. Nietzsche reconhece

[...] nas orgias dionisíacas dos Gregos uma significação superior, a de ser festas da
redenção liberadora do homem e dias de transfiguração. [...] Nelas, pela primeira
vez, o alegre delírio da arte invadiu a natureza; pela primeira vez, nelas, o aniqui­
lamento do princípio de individuação tornou-se um fenômeno artístico [...] a
música dionisíaca excitava esses sonhadores com um arrepio de terror
(NIETZSCHE, 1996, p. 48-49).

É por isso que a experiência dionisíaca dá ao homem a possibilidade de


ser poderosamente negativo, crítico, pessimista. Ao mesmo tempo, porém,
o conhecimento/visão da verdade horrível anula, no indivíduo, todos os im­
pulsos e motivos de agir. Ele se sente inútil, impotente. O conhecimento
verdadeiro mata a ação; para agir, é indispensável que sobre o mundo paire
o véu da ilusão. A intervenção do momento apolíneo é fundamental, então,
para despertar o homem dionisíaco de seu torpor letárgico e trazê-lo de
volta, reforçado, liberado, para as dificuldades terríveis do cotidiano. E a
arte apolínea é uma forma de se garantir isso, pois ela é a prodigiosa potên­
cia que transfigura, a nossos olhos, as coisas mais horríveis, graças à alegria
que sentimos ao ver as aparências, graças à felicidade na libertação que,
para nós, nasce da forma exterior, da aparência. Apoio mostra que o mundo
dos sofrimentos é necessário, para que o indivíduo seja obrigado a criar a
visão libertadora, porque só assim, abismado na contemplação da beleza,
permanecerá calmo e cheio de serenidade, mesmo que levado na sua frágil
barca por entre as vagas do alto mar (NIETZSCHE, 1996, p. 59 e 109).
A arte trágica carrega em si, pois, uma dimensão formativa, educativa,
auto-reflexiva; ela faz o indivíduo sair da universalidade viscosa do estado
dionisíaco, ajudando-o a se constituir como um ser autônomo; desenvolve e
potencializa o instinto estético, ávido de formas belas e sublimes; incita o
pensamento a ir além da aparência e a apreender o significado mais profun­
do das coisas (Cf. PUCCI, 2000).
104 Sociologia e Educaçáo - Leituras e Interpretações

6.3 A tragédia do trágico no mundo da


indústria cultural
Nietzsche, analisando a Alemanha da segunda metade do século XIX, perce­
be que a cultura deixa de ser desinteressada e se transforma em um bem
venal, submetido às leis do mercado. Os organizadores das instituições artís­
ticas e dos estabelecimentos de ensino se tornam “filisteus da cultura”, co­
merciantes dos produtos do espírito. Transformada em mercadoria, a cultu­
ra se converte em máscara, em engodo, perde sua potencialidade crítica,
integra-se cada vez mais à sociedade de troca. Nietzsche deflagra contra ela
sua impiedosa crítica.

Em nenhuma época artística, a chamada cultura intelectual e a arte verdadeira


foram tão estranhas uma à outra, tão divergentes como hoje. Compreendemos por
que uma cultura tão miserável odeia a verdadeira arte: receia prever nesta a causa­
dora da sua ruína (NIETZSCHE, 1996, p. 161).

Horkheimer e Adorno (1986), mais de 70 anos depois, no contexto


norte-americano das revoluções tecnológicas, retomam e aprofundam as
críticas nietzscheanas à cultura “democratizada” e mostram como a socie­
dade da indústria cultural tem necessidade de administrar o trágico, para
que ela continue a se reproduzir febrilmente. O trágico, realidade constitutiva,
inscrita desde os primórdios na história desigual dos homens — homo homini
lupus est14 — é aparentemente camuflado, nas sociedades desenvolvidas eco­
nomicamente, pela atmosfera de camaradagem dos serviços de assistência
social e de filantropia. Já que, nessas sociedades, o espírito sanguinário do
poder e da repressão se toma mais incisivo e onipresente, é preciso, perma­
nentemente, levantar a bandeira da bondade, da cooperação, para disfarçar
o sentimento de frieza de ânimo que perpassa as relações existentes. Essa
insistência sobre a bondade é a maneira pela qual a sociedade confessa o
sofrimento que ela causa: todos sabem que não podem mais, neste sistema,
ajudar-se a si mesmos, e é isso que a ideologia deve levar em conta (p. 141).
Como a sociedade desenvolvida não consegue suprimir o sofrimento de seus
membros, então o registra à sua maneira e o planeja, para que o sistema seja
preservado, assim também a indústria cultural faz com o trágico: adminis­
tra-o, e vai buscar, na arte, empréstimos apropriados para torná-lo tolerá­
vel. A arte fornece a substância trágica que os mais diversos entretenimen­
tos não podem, por si próprios, desenvolverem, e, no entanto, precisam

14 “O homem é lobo do próprio homem”


Cap. 6 O riso e o trágico da indústria cultural 105

reproduzir para se aproximarem mais da triste realidade estabelecida. Esta,


quanto mais impregnada for pelo sofrimento necessário, tanto mais gerará
a impressão de ser grandiosa, poderosa (HORKHEIMER; ADORNO, 1986,
p. 142). Na tragédia grega, os horrores da existência eram atingidos em
profundidade e abrangência pela arte, e propiciavam um conhecimento mais
aproximado dos fatos. O indivíduo que participava do sofrimento era, tam­
bém, aquele que participava da sabedoria da vida. A arte surgia, então, como
um deus salvador, que trazia consigo o ungüento aprazível para suavizar as
feridas (N1ETZSCHE, 1996, p. 77 e 84). O trágico, ao mesmo tempo que era
manifestação de resistência desesperada à ameaça mítica, transformava-se
em um momento purgativo, emancipatório. Na cultura de massas das socie­
dades contemporâneas, o trágico perde sua virulência, assume a forma de
um destino fatal de todos aqueles que não colaboram com o sistema
(HORKHEIMER; ADORNO, 1986, p. 142-143).
Os autores frankfurtianos captaram bem a fragilidade do trágico nos
anos 1940 do século passado. Hoje, mais de 60 anos depois, sua debilidade
anunciada se torna ainda mais aguda. Nos filmes hollywoodianos, nas nove­
las das rádios e TVs, nas revistas semanais, que retratam o cotidiano da vida
das pessoas, nos programas de entretenimento, o trágico se apresenta, qua­
se sempre, como o resultado punitivo dos que infringem os valores vigentes,
não seguem as prescrições das instituições estabelecidas, querem nadar contra
a corrente. Ou então o trágico é fruto de um destino, que escapa à progra­
mação da sociedade de consumo, e se apresenta como inexplicável, inefável,
avassalador, e que suscita, nas suas vítimas, compaixão, assistência, ajuda
dos donos do poder. Não só. Os meios de comunicação, particularmente a
TV, ao inundarem as casas dos espectadores de cenas bárbaras e chocantes,
extraídas de ângulos que favorecem seus interesses comerciais ou publicitá­
rios, colaboram no sentido de banalizar o trágico, tomando-o natural, óbvio,
companheiro de nosso dia-a-dia, expressão da implacável sina humana.
Para Horkheimer e Adorno (1986), a cultura, através dos tempos, sem­
pre contribuiu para domar não apenas os instintos bárbaros dos indivíduos,
como também, sobretudo, os revolucionários. A cultura industrializada,
contudo, vai mais longe ainda. Ela exercita o indivíduo no preenchimento
das condições sob as quais ele está autorizado a levar essa vida inexorável.
Ao serem continuamente reproduzidas, as situações trágicas, que atingem
os espectadores em seu cotidiano, acabam mostrando a todos que, não
obstante os sofrimentos, é possível continuar a viver. Basta se dar conta de
sua própria nulidade, subscrever a derrota — e já estamos integrados. A
sociedade é uma sociedade de desesperados e, por isso mesmo, a presa de
bandidos (p. 144).
106 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

É assim que se demite o indivíduo, é assim que se elimina o trágico.


Outrora, a tensão entre indivíduo e sociedade era a substância constitutiva
da própria sociedade. Ela glorificava “a valentia e a liberdade do sentimento
em face de um inimigo poderoso, de uma adversidade sublime, de um pro­
blema terrificante” (HORKHE1MER; ADORNO, 1986, p. 144). Hoje o trágico
dissolveu-se na falsa identidade da sociedade e do indivíduo. O desampara­
do é acolhido pela autoridade que o força a engolir, impiedosamente, sua
obstinação. Essa situação faz lembrar os versos de Drummond (1984), em
Eu, Etiqueta, em que o poeta assim se expressa:

Estou, estou na moda/ É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha
identidade/ trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas/ todos os
logotipos do mercado./ Com que inocência demito-me de ser/ Eu que antes era e me
sabia/ tão diverso de outros, tão mim-mesmo/ ser pensante, sentinte e solidário/ com
outros seres diversos e conscientes/ de sua humana, invencível condição (p. 85).

Sucede-se, então, uma catarse às avessas: o indivíduo desaparece, diluí­


do, nas malhas do todo social, catalogado, numerado e etiquetado. Indiví­
duo liquidado, trágico eliminado, catarse dissolvida, sociedade reproduzida.
E são extraídos os fermentos da crítica e da oposição que levavam os indi­
víduos a manifestarem sua indignação e sua autonomia contra os valores e
os poderes estabelecidos.

6.4 A despotencialização da função catártica


do riso na indústria cultural
Segundo Freud, o riso tem sua origem no desenvolvimento infantil. Com a
repetição de sons e a articulação de palavras, o jogo verbal, daí resultante,
desencadeia um prazer ingênuo pelo balbucio do semelhante, pela
redescoberta do conhecido. Com o advento da razão, esse prazer é reprimi­
do. O adolescente e o adulto não podem mais se permitir o manejo pura­
mente lúdico dos sons e das palavras, cujo uso está agora sujeito às leis da
maioridade racional. A fim de não renunciar totalmente a esse prazer infan­
til, o adulto recorre a um substituto do jogo, a brincadeira. Esta, por meio
de artimanhas, funciona como pretexto para iludir a vigilância da razão,
conquistar sua cumplicidade para um exercício regressivo que seria normal­
mente condenado como irracional (Cf. ROUANET, 1998, p. 134). O riso,
em sua origem, uma manifestação feliz de humanidade, seria obrigado a se
conter, sempre que a racionalidade entra em ação. Mas, mesmo nos momen­
tos em que predomina a razão, o riso, sob formas sutis de expressão, volta a
assumir, amiúde, sua função primitiva: pelos momentos irracionais e espon-
Cap. 6 O riso e o trágico da industria cultural 107

táñeos que os adultos criam para externar seus intensos instantes de huma­
nidade, numa feliz regressão infantil, escapulindo assim das malhas da civili­
zação; pelos momentos incisivos de negatividade, em que o riso, catártico,
ironiza as façanhas do poder e ajuda a provocar fissuras na estrutura do trono,
da cátedra, do altar, da ordem estabelecida. O “ridendo castigat mores”,15 de
Horacio, é o riso libertador que fustiga o poder, de Moliére a Brecht (ROUANET,
1998, p. 134).
Como o que predominou no desenvolvimento da civilização hominídea
foi a lógica coerente da racionalidade instrumental, as expressões de esponta­
neidade e de negatividade ainda nele possíveis foram cada vez menos toleradas,
desterradas, e o riso foi assumindo, predominantemente, formas mascaradas
de adaptação ao poder. De expressão feliz de humanidade e de resistencia,
transformou-se, na era dos regimes fascistas, em manifestação explícita de
agressividade, e, na era da cultura de massas, em sinal de concordância dócil
com o estabelecido. “O riso, outrora a imagem da humanidade, regride ao
desumano” (ADORNO, 2001, p. 5).

O riso anti-semita não é um riso humanizante, liberador de energias construtivas; é,


antes, um riso mórbido, prenhe de crueldade, que se realiza como gratificação
furtiva de impulsos proibidos. Não desafia o poder: está a seu serviço. [...] É a
própria repressão que se transforma em prazer (ROUANET, 1998, p. 134-135).

É o riso do preconceito contra a pessoa discriminada, contra o negro,


contra o falar desajeitado do imigrante. O riso coletivo das piadinhas contra
os nordestinos, contra as “bichas”. Descarregamos vingativamente sobre os
outros as “porretadas” que recebemos continuamente do Estado e da socie­
dade. Rimos deles — dos considerados mais fracos — para não rirmos de
nós mesmos, de nossas debilidades e miopias.

Rir-se de alguma coisa é sempre ridicularizar, [... ] Um grupo de pessoas a rir é uma
paródia da humanidade. São mónadas, cada uma das quais se entrega ao prazer de
estar decidida a tudo às custas dos demais e com o respaldo da maioria. Sua harmo­
nia é a caricatura da solidariedade (HORKHEIMER; ADORNO, 1986, p. 132).

O riso gerado pela indústria do entretenimento é um riso sintético, enfei­


tiçado, arbitrariamente imposto, um escape da realidade ruim e, sobretudo,
uma fuga dos últimos bastiões de resistência que essa realidade ainda pode
apresentar; uma manifestação inconsciente de aceitação ingênua da situação
dada. Entre os espetáculos de entretenimento da indústria cultural, distin­
guem-se facilmente os “enlatados” e os feitos por aqui mesmo. Nos “enlata­

15 “Rindo, açoita os costumes”


108 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

dos”, predomina o riso orquestrado, chocho, reproduzido de maneira unifor­


me e universal, para ser faturado, com sucesso e rendimento, em qualquer outra
praça semicultural do planeta. O espectador ri do riso fabricado e metálico do
gravador, e esse riso se torna uma farsa ridícula do prazer e do gozo, outrora
propiciadores de momentos de liberação. Nos espetáculos cômicos “nacio­
nais”, imperam os chistes maliciosos, que provocam um riso compulsivo e
resignado. A indústria da diversão visa assim, ao satisfazer seus espectadores
pelo riso contínuo e abundante, a aliviá-los das tensões do cotidiano, para que
eles possam, com maior segurança na vida real, dominar seus próprios impul­
sos humanos. Cria as condições para a gestação de uma pseudocatarse, a ser­
viço da perfeita integração dos indivíduos no meio social. As contínuas piadas
maliciosas, geradoras de risadas estrondosas, expressam, às avessas, a profun­
didade da insatisfação das pulsões instintivas reprimidas, não realizadas.
O riso da conciliação com o poder é um riso “liberalizante”, que ex­
pressa o alívio imediato de se ter escapado — aparentemente, é verdade —
das garras da lógica e da repressão. Ao mesmo tempo, é um riso amarelo,
fraco, tímido, pois estampa, no rosto do ridente, a renúncia de sua individua­
lidade, mesmo que por questão de sobrevivência; testemunha sua passagem
para o lado das instâncias que inspiram terror. Rimos do fato de que nada há
de que se rir (HORKHEIMER; ADORNO, 1986, p. 131).
São cada vez menores as fendas na estrutura da ordem estabelecida, por
onde o riso catártico possa ainda espalhar sua essência e auxiliar o indivíduo e
suas circunstâncias na administração das tensões e de tudo aquilo que o inco­
moda. Ri-se do trágico que um dia já foi trágico. Lamenta-se pelo riso que já
não sorri mais. Cada um de nós é peça de uma engrenagem maior. Grande leva
de peças está enferrujada, pelo desuso. Não servem mais. Talvez nunca servi­
ram. É só deixar o tempo consumir o seu destino. Outras peças ainda têm a
sorte de substituir e de serem substituídas. Terão uma função limitada, mesmo
que por um tempo insignificante. Para que, então, arrancar os cabelos e chorar
lágrimas de sangue? É preferível que se instale o choro seco, expressão da
tristeza de olhos ocos e vazios. Alguém já fez parte, algum dia, do show
da vida? Teve sua parca imagem reproduzida na tela dos sonhos? Então, esse
alguém terá um pouco mais de sobrevivência; existirá, mesmo que por poucos
segundos a mais, porque alguns outros perceberam sua existência. Caso con­
trário, quem se lembrará dele, nesta sociedade da sensação? O sistema de tro­
ca tem mais força que os deuses míticos. Eles controlavam os dias e o destino
dos homens. O sistema de troca dita os dias e os afazeres das peças. Com seu
poder mágico, inverte os sentimentos a seu bei prazer. Como num filme de
terror! O riso será trágico. A tragédia, uma pilhéria. Se ele tem o poder de dar
ao homem o status de coisa e de transformar as coisas em seres sociais que
Cap. 6 O riso e o trágico da indústria cultural 109

comandam vidas, por que não haveria de brincar com bonecos e com peças
espalhadas de um jogo em desuso? Rir o riso da vida e chorar o choro da morte
ainda podem ser expressões felizes, cruéis e possíveis de resistência.
Se a barbárie perdura na sociedade de hoje em outras formas, de outras
maneiras, potencializada ainda mais pelo alcance das novas tecnologias em
seu conluio com o capital global, a proposta de Adorno (1995, p. 155) de
que “desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em
dia” ainda tem sentido, atualidade e possibilidade? Parece-me que sim, ape­
sar da terrível e contínua banalização que os meios de comunicação e o
próprio processo educativo fizeram e fazem da violência que diuturnamente
se descarrega sobre os homens. É preciso, e urgente, que a escola tome ou
retome em suas mãos o processo de formação cultural (die Bildung), que
favoreça o esclarecimento, a reflexão crítica e as formas de resistência ao
império cada vez mais dominante das máquinas sobre as pessoas, pois o
progresso da ciência e da tecnologia caminha em sentido oposto ao progres­
so da humanidade das pessoas, e fortalece um modo de ser acrítico, pré-
reflexivo, não racional e não espiritual. A racionalidade que se apodera de
nossos educadores e educandos para modelá-los de acordo com os objetivos
da nova ordem, realiza uma espécie de darwinismo social e tecnológico, que
favorece o desenvolvimento das “virtudes” do capital: o cálculo, a funciona­
lidade, a eficiência, a precisão, em detrimento da formação humana.
Adorno, apesar de tachado por seus críticos de “pessimista”, de “cons­
trutor de becos sem saída”, sempre acreditou no poder de recuperação do
homem. É por isso e para isso que ele pensava com profundidade. Ao final
de seu ensaio, Teoria da Semiformação, ao analisar a crise da formação cultu­
ral de seu tempo, na Alemanha — vivia ele ainda a era das revoluções mecâ­
nicas —, ele nos faz ver que, já naquela época, lutar com firmeza pela forma­
ção, depois que a sociedade a privou de sua base, era algo fora de moda, no
entanto, a única possibilidade de sobrevivência que restava à formação era a
auto-reflexão crítica sobre a semiformação, na qual ela se convertera (ADOR­
NO, 2003, p. 27). Se, na era das revoluções mecânicas, lutar pela formação
na educação escolar era anacrônico, como persistir nesse ideal em plena era
das tecnologias digitais, genéticas e cibernéticas? Partimos do pressuposto,
à semelhança do pensador frankfurtiano, de que, na luta desigual entre for­
mação e informação, o elemento mais frágil é o ponto de apoio para uma
possível emancipação. E que o exercício do pensamento crítico — apesar de
tudo jogar contra ele — transforme-se no instrumento ímpar que o homem
ainda tem em mãos para reagir, para afirmar sua humanidade. E quem sabe
— nessa perspectiva — o riso da vida e o choro trágico da morte readquiram
sua dimensão catártica.
110 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

Exercícios
1. Responda, com suas palavras, à questão: que elementos constituem o
sentido da palavra catarse?
2. Disserte sobre o seguinte tema: “O trágico na era da indústria cultural”.
Analise como a indústria cultural apresenta, enquadra e trabalha as ima­
gens de um acontecimento trágico; que sentimentos essas imagens tele­
visivas nos proporcionam; o que elas nos levam a pensar, a reagir, a fazer.
3. Ouça e analise a letra e a música de duas canções da música popular bra­
sileira: A dança do bumbum, da banda É o Tchan e Mulheres de Atenas, de
Chico Buarque. As duas canções abordam temáticas relacionadas ao
papel da mulher na sociedade de hoje. Que elementos de formação cul­
tural, educacional e critico as canções lhe inspiram?
4. Assista, e grave, a um programa Zorra total, da Rede Globo de Televi­
são, sábado, à noite. Trata-se de um programa humorístico, em que o
riso corre solto em cima da tragédia dos mais fracos. Examine-o detida­
mente e responda, por escrito, às seguintes questões: “Trata-se de um
programa catártico ou pseudocatártico?”, “Por quê?”. Detecte situa­
ções, durante as cenas do programa, em que o riso e o trágico se mani­
festam e note como se apresentam, então responda: “Quais os elementos
acríticos, preconceituosos e conformistas do programa?”, “Como as
expressões relacionadas ao sexo, à mulher, à violência, ao cotidiano
nele se manifestam?”.
5. Assista, e analise, ao filme de Lars Von Trier, Dançando no escuro, uma
obra do cinema digital. Trata-se de um “cinema utópico, eminente­
mente político, de combate, justamente no terreno em que o capitalis­
mo de ponta deseja controlar: a tecnologia digital” (Laymert Garcia
dos Santos). Responda, por escrito, às seguintes questões: “É um filme
que atende, antes, aos interesses do mercado ou leva as pessoas a pensa­
rem, a refletirem?”. Destaque momentos que justifiquem sua resposta.
“Quais os valores morais que se sobressaem na película?”, “Como os
elementos dionisíaco e apolíneo se manifestam no filme?”, “Qual o al­
cance da dimensão trágica naquela obra?”, “É uma obra de arte séria,
que se manifesta como expressão estética de um sofrimento sublima­
do, como promessa de dias melhores ou se deixa mergulhar num beco
sem saída, num ‘nihilismo’ absoluto?”, “É uma obra catártica no senti­
do pleno do termo?”.
Cap. 6 O riso e o trágico da indústria cultural

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112 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

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______, Educação e Emancipação. Trad, e Introdução Wolfgang Leo Maar. São
Paulo: Paz e Terra, 1995.
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Trad, e Introdução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1995. p.
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Trad. Newton Ramos de Oliveira. Campinas: Autores Associados; Ed. da
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Campinas: Editores Associados; Ed. da Unimep; Fapesp, 2002.

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ZUIN, A. A. S. Indústria cultural e Educação: o novo canto da sereia. Campinas:


Editores Associados; Fapesp, 1999.
7
A Sociologia de Pierre Bourdieu
e sua análise sobre a escola
Áureo Busetto

7.1 Introdução
A sociologia da prática de Bourdieu define que a reprodução da ordem social
se explica pelas múltiplas estratégias de reprodução que os diferentes agen­
tes sociais colocam em ação para manter ou melhorar a sua posição social.
Nessa lógica, a escola é vista como um excelente domínio da reprodução
social e de legitimação das desigualdades sociais. Porém, a questão da re­
produção, nos escritos de Bourdieu sobre a Educação e a escola, é bem
mais apreendida e compreendida via entendimento dos seus conceitos de
campo e habitus. Dessa forma, serão apresentados, inicialmente, esses dois
conceitos, ao lado de outros, e depois será tratado da relação entre eles e
dos procedimentos teórico-metodológicos exigidos à aplicação da sociolo­
gia da prática de Bourdieu, cuidando, por fim, da análise bourdieuana sobre
a escola. É necessário salientar que os conceitos de campo e habitus são uma
unidade na sociologia de Bourdieu, o que equivale a dizer que não podem
ser separados quando aplicados na pesquisa. Portanto, neste texto, serão
tratados separadamente apenas para efeito de exposição didática.

113
114 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

7.2 Campo: espaço social específico e com


autonomia relativa
O conceito de campo surgiu nos estudos de Bourdieu como uma “estenogra­
fia conceituai” que conduziria todas as opções práticas de pesquisa do soció­
logo, sobremaneira a sua “recusa à alternativa da interpretação interna e à
da explicação externa”, perante as quais, entendia o sociólogo, estavam colo­
cados todos os estudos dos produtos culturais. No primeiro terço de seu
percurso intelectual, Bourdieu (1989, p. 64-69) não apenas definiria final­
mente o conceito de campo como avançaria na elaboração da “teoria geral
da economia dos campos”, recurso que lhe permitiu, segundo suas próprias
palavras, “descrever e definir a forma específica de que se revestem, em cada
campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais (capital, investimento,
ganho), evitando assim todas as espécies de reducionismo, a começar pelo
economicismo, que nada mais conhece além do interesse material e a busca
da maximização do lucro monetário”.
Para Bourdieu, a estrutura social de uma dada sociedade “está fundada
numa divisão social do trabalho, cujos agentes, instituições, práticas e pro­
dutos movimentam-se no âmbito de um mercado material e de um mercado
simbólico, que, por sua vez, encontram-se altamente imbricados”. Dessa
forma, ele admite que o “traço distintivo da economia ‘arcaica’ seria o estado
de indiferenciação entre o trabalho produtivo e o trabalho improdutivo, en­
tre o trabalho rentável e o não rentável, pois ela só conhece a oposição entre
quem comete uma falta por não cumprir seu dever social e o trabalhador
que leva a cabo sua função própria, definida socialmente, qualquer que possa
ser o produto do seu esforço”. Logo, conclui que, “não havendo lugar, neste
tipo de formação (arcaica), para quaisquer distinções entre atividades ‘téc­
nicas’ economicamente rentáveis e atividades puramente ‘simbólicas’, elas
só poderiam surgir a partir da aplicação de categorias alheias à experiência
do camponês e como conseqüência do influxo exercido pela dominação eco­
nômica e pela generalização das trocas monetárias”. Assim, procura enxer­
gar, antes de tudo, os fatos simbólicos no próprio processo por meio do qual
“se constitui a divisão do trabalho simbólico, cujos aparelhos, agentes, pro­
dutos e representações correspondem aos diversos domínios da realidade
em vias de autonomização”, isto é, os diversos campos (MICELI, 1992,
p. XXXVI-XXXVIII).
Bourdieu (1983, p. 89), então, define o campo como espaço estruturado
de posições (ou de postos) onde as propriedades dependem de sua posição
dentro destes espaços que podem ser analisados independentemente das ca­
racterísticas de seus ocupantes. Ou, ainda, o campo é um sistema de desvios
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 115

de níveis diferentes e nada, nem nas instituições ou nos agentes, nem nos atos
ou nos discursos que eles produzem, tem sentido senão relacionalmente, por
meio do jogo das oposições e das distinções (BOURDIEU, 1989, p. 179).
Assim, ele atribui a denominação de campo aos diferentes domínios
específicos da realidade social que, relativamente autônomos, compõem uma
determinada sociedade. Detalha que campo é um espaço hierárquico de jogo,
espaço de relações objetivas entre indivíduos ou instituições que competem
por um mesmo objeto ou mesma propriedade, produzidos naquele jogo.
Bordieu caracteriza um campo como sendo: constituído em torno de inte­
resses específicos, o que equivale a dizer que os interesses de um determina­
do campo não poderão ser supridos em nenhum outro campo; regido por
regras e leis de funcionamento, em que os agentes que o integram deverão
ser capazes de entendê-las e estarem predispostos a aceitá-las; estruturado
pelo estado de luta e pela quantidade e qualidade das propriedades produzi­
das e reproduzidas no seu jogo interno; concatenado ao menos por um inte­
resse em comum entre os seus diversos agentes, notadamente o de preser­
var a existência do próprio campo (BOURDIEU, 1983, p. 89-90).
Assim, todo e qualquer campo envolve luta e força. Pois, como acentua
Bourdieu, os agentes que compõem um campo lutam para adquirir e manter
o poder de (di)visão, isto é, o poder de impor uma visão, uma representação
social particular como geral e de dividir/classificar/distinguir/legitimar os
agentes e as coisas existentes em um campo específico. A luta interna do
campo é pela conquista e administração do poder simbólico, definido como
“o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de
confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre
o mundo, portanto, o mundo”. E ainda mais: é um “poder quase mágico que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econô­
mica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reco­
nhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIEU, 1989, p. 15).
Enfim, o poder simbólico é, ao mesmo tempo, resultado do trabalho históri­
co de grupos para naturalizar, fatalizar e “des-historicizar” as relações de
forças, entre os diferentes agentes de um campo, e um instrumento muito
eficaz de reprodução e de negação dos expedientes que o geraram e da re­
produção das desigualdades entre os agentes de um mesmo campo.
Meio e fim da luta interna de um campo, o capital é definido por
Bourdieu (1979, p. 127) como “uma relação social, isto é, uma energia social
que não existe e não produz seus efeitos a não ser dentro do campo onde ele
se produz e se reproduz”. Em outras palavras, é o conteúdo do poder numa
dada relação de forças; é o que permite ao agente, individual ou coletivo,
movimentar-se no campo e participar das disputas geradas neste espaço so-
116 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

ciai específico. Com base em suas pesquisas empíricas, Bourdieu discrimina


alguns tipos de capital: capital econômico, capital social e capital cultural.
Nas sociedades com um traço capitalista mais acentuado, os capitais mais
importantes tendem a ser o econômico — diferentes elementos da produção
(terras, fábricas, trabalho) e bens econômicos (renda, patrimônio) — e o
capital cultural — notadamente qualificações intelectuais produzidas pelo
sistema escolar ou transmitidas pela família —, uma vez que ambos funda­
mentam os critérios de diferenciação naquele tipo de sociedade.
No entanto, o capital econômico e o cultural tendem a aparecer na sua
forma simbólica, ou seja, como capitais simbólicos. Isto ocorre pelo fato de
serem apresentados como naturais, considerados legítimos e nunca percebi­
dos como resultado de dominação. O capital simbólico é, pois, “o poder
atribuído àqueles que obtiveram (nas lutas anteriores) reconhecimento
(como autoridade social) suficiente para ter condição de impor o reconheci­
mento” (BOURDIEU, 1990, p. 154-163). Para ilustrar o que foi dito, pode-
se recorrer a uma passagem da obra do sociólogo, na qual descreve “o capi­
talismo como uma economia que se define como recusando a reconhecer a
verdade objetiva das suas práticas econômicas, isto é, a lei do interesse e do
cálculo egoísta”. Assim, “o capital econômico não pode agir a não ser que se
previna de ser reconhecido”, portanto, “ao preço de uma reconversão pró­
pria, para tornar irreconhecível o verdadeiro princípio de sua eficácia”. Logo,
“o capital simbólico é o capital denegado, reconhecido como legítimo, isto
é, não reconhecido como capital” (BOURDIEU, 1980, p. 200).
Quanto maior o grau de autonomia de um campo em relação aos demais
domínios sociais específicos (campos), mais o capital produzido e reproduzi­
do nele será adquirido, pelo agente, com base somente no conhecimento e,
sobremaneira, no reconhecimento dos seus pares. Assim, a aquisição de cada
tipo de capital obedece a uma lógica própria de cada campo específico. Lógica
que é estabelecida pelos detentores do capital simbólico e que, por conseguin­
te, exercem o poder propriamente simbólico dentro do campo, porém, por
meio de uma série de expedientes geradores de violência simbólica, ou seja, a
“violência doce, invisível, desconhecida”, não percebida como arbitrária e,
portanto, legitimada (BOURDIEU, 1980, p. 209-235). Por exemplo, a con­
quista do capital político está assentada na lógica da mobilização do maior
número, independente da veracidade dos bens políticos oferecidos (progra­
mas, plataformas, problemas, análises, conceitos e acontecimentos) aos elei­
tores/consumidores — sempre, segundo Bourdieu, distantes dos pólos de
produção dos bens políticos — ou da validação dos profissionais da política
(homens de partido, jornalistas políticos, cientistas políticos). Já a lógica da
obtenção do capital científico é bem distinta, pois, no campo científico, a prova
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 117

de verdade e o aceite dos pares são fundamentais para que o agente conquiste
aquele capital (BOURDIEU, 1989, p. 174-176).
Bourdieu (1983, p. 90) não desconsidera a possibilidade de conversão de
capital, isto é, o agente que possui um considerável capital num campo poderá
convertê-lo num outro tipo de capital em um outro campo, porém tal opera­
ção é mais fácil entre campos mais próximos e, mesmo assim, não há garantias
prévias de sucesso na conversão. Ou, ainda, ele considera a possibilidade de o
agente obter um tipo de capital em decorrência de possuir um outro, princi­
palmente relacionado ao capital económico e capital cultural. No entanto,
não há qualquer determinância do capital econômico sobre o capital cultural,
pois a possibilidade de o agente adquirir um capital cultural por dispor de
capital econômico é apenas uma relação entre os dois tipos de capital e depen­
de da especificidade de cada campo em delegar reconhecimento.
Apesar das possibilidades de conversões de capitais, é crucial, ao pes­
quisador, não perder de vista que é devido ao fato de um tipo de capital ser
produzido e reproduzido somente num determinado campo que os seus agen­
tes tendem à luta pela preservação do campo, o que resulta numa cumplici­
dade objetiva transcendente às lutas internas existentes num campo especí­
fico. Assim, Bourdieu explicita a condição conservadora do campo. Esta carac­
terística serve para o sociólogo asseverar que, da luta interna do campo, só
podem surgir revoluções parciais, capazes de destruir a hierarquia, e não o
próprio jogo (BOURDIEU, 1983, p. 91). Por exemplo, um agente, individual
ou coletivo, do campo educacional, que pretende fazer uma revolução em
matéria de ensino e aprendizado afirmará: “a forma de ensino em vigência
não é a verdadeira forma de ensino”, então reivindicará o retorno à origem,
à fonte, ao espírito e à verdade do campo educacional; formulará idéias e
discursos em nome de uma definição supostamente mais pura, mais autênti­
ca, em detrimento da maneira de ensino em cujo nome os agentes dominan­
tes daquele campo têm atuado; tenderá a retomar propostas formuladas por
educadores num tempo recuado da história da constituição do campo edu­
cacional, os quais são considerados agentes desinteressados, empenhados
na elaboração de uma forma de ensino completamente autônoma, o que
equivale a dizer sem se dobrar a nenhuma pressão externa ou atender a
interesses alheios ao do campo, como a busca do ganho monetário.
Para Bourdieu, a oposição entre direita e esquerda, retaguarda e van­
guarda, consagrado e herético, ortodoxia e heterodoxia, dentro de um campo,
muda constantemente de conteúdo substancial, mas permanece estrutural­
mente idêntica. Os recém-ingressos somente poderão destituir os antigos
porque a lei implícita do campo é a distinção, em todos os sentidos do ter­
mo. Assim, cada campo tem suas próprias formas de revolução e, portanto,
118 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

sua própria periodização. E as rupturas dos diferentes campos não são ne­
cessariamente sincronizadas. O que ocorre, então, segundo Bourdieu (1983,
p. 156-157), é que as revoluções específicas têm uma certa relação com as
mudanças externas. Uma revolução específica, algo que inicia um novo perío­
do num determinado campo é, ele acredita, a sincronização de uma necessi­
dade interna com algo que se passa fora, no universo que o engloba.
Deve-se, ainda, enfatizar a diferença entre os conceitos de campo e apa­
relho na sociologia de Bourdieu. A noção de aparelho reintroduz, para o soció­
logo, o pior funcionalismo nas Ciências Sociais. Daí ele não tratar, por exemplo,
escola, estado, igreja e partido como aparelhos, e sim como campos, pois:

Num campo, os agentes e as instituições estão em luta, com forças diferentes e


segundo as regras constituídas deste espaço de jogo, para se apropriar dos lucros
específicos que estão em jogo neste jogo. Os que dominam o campo possuem os
meios de fazê-lo funcionar em seu benefício; mas devem contar com a resistência
dos dominados. Um campo se toma aparelho quando os dominantes possuem os
meios de anular a resistência e as reações dos dominados. Isto é, quando o baixo
clero, os militantes, as classes populares, etc., não podem fazer mais do que sofrer
a dominação; quando todos os movimentos são de cima para baixo e os efeitos de
dominação são tais que a luta e a dialética constitutivas do campo cessam
(BOURDIEU, 1983, p. 106-107).

Para Bourdieu há, portanto, a possibilidade de mudança, pois: “Existe


história enquanto existem pessoas que se revoltam, que fazem histórias. A
instituição total ou totalitária, asilo, prisão, campo de concentração, tal como
descreve Goffman, ou o Estado totalitário, tenta instituir o fim da história”.
A estrutura do campo é o produto da história anterior do campo e o princípio
de sua história ulterior. O princípio de mudança é a luta pelo monopólio da
distinção, isto é, o monopólio da imposição da última diferença legítima. E
essa luta se completa pelo deslocamento progressivo do vencido ao passado
(BOURDIEU, 1983, p. 106-107).

7.3 Habitus: a mediação entre estrutura e


agentes sociais
Como no caso de campo, o conceito de habitus surgiu no percurso de pes­
quisa de Bourdieu de “maneira estenográfica”, porém anterior à formulação
teórica de campo. Exprime a recusa do sociólogo francês a toda uma série
de alternativas nas quais as Ciências Sociais se encontravam fechadas, ou
seja, opções teóricas como “a da consciência (ou do sujeito) e do inconscien­
te” ou “a do finalismo e do mecanicismo” (BOURDIEU, 1989, p. 60-62).
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 119

Enfim, expressa a sua intenção em “dotar a prática de uma intenção ativa e


inventiva” (BOURDIEU, 1990, p. 25).
O termo habitus contava com longa tradição, bem antes de Bourdieu
utilizá-lo. A escolástica empregara a palavra habitus para traduzir a hexis de
Aristóteles, sendo entendida como dependente da consciência e, portanto,
variável, manejável na escala da vontade humana. A razão de Bourdieu utili­
zar a palavra/conceito habitus e não o termo “hábito” se justifica pelo fato de
habitus permitir enunciar algo que se aparenta àquilo que evoca a noção
de hábito, porém distinguindo-se desta num ponto essencial. Hábito é consi­
derado, espontaneamente, como repetitivo, mecânico, automático, antes
reprodutivo do que produtivo. Já o habitus, como diz a palavra, “é aquilo
que se adquiriu, mas que encarnou no corpo de forma durável sob forma de
disposições permanentes”. Habitus, salienta Bourdieu, “lembra, de maneira
constante, que se refere a algo de histórico, que é ligado à história individual,
e que se inscreve num modo de pensamento genético, por oposição a modos
de pensamento essencialista”. Aliás, a escolástica, comenta Bourdieu, “de­
signa também com o nome de habitus algo como uma propriedade, um capi­
tal”. E acrescenta: “E de fato, o habitus é um capital, que, sendo incorpora­
do, apresenta-se com as aparências de algo inato”. Logo, o uso do termo
habitus serve para ressaltar exatamente que ele “é algo possuidor de uma
enorme potência geradora” (BOURDIEU, 1983, p. 104-105). Ou como
explicita a definição do sociólogo:

[...] sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas pre­


dispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores
e organizadores de práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas
ao seu objetivo, sem supor que se tenham em vista conscientemente tais fins, e o
controle expresso das operações necessárias para atingi-los, sem ser em nada o pro­
duto da obediência a regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o
produto da ação organizadora de um maestro (BOURDIEU, 1980, p. 88-89).

As disposições tratadas por Bourdieu, na sua definição de habitus, devem


ser entendidas como competências, atitudes, tendências e formas de perceber,
pensar e sentir adquiridas e interiorizadas pelos indivíduos em virtude de suas
condições objetivas de existência. É profundamente interiorizado e não impli­
ca consciência dos agentes para ser eficaz, sendo capaz de inventar outros
meios de desempenhar as antigas funções diante de situações novas e, assim,
ele permite aos agentes se orientarem em seu espaço social e adotarem práti­
cas que estão de acordo com sua vinculação social. Possibilita, ao agente, a
elaboração de estratégias antecipadoras que são conduzidas por esquemas
inconscientes, ou seja, esquemas de percepção, de apreciação e de ação resul­
tantes do trabalho pedagógico e de sociabilização, ao qual o agente é subme-
^■¿V Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

tido, e de “experiências primitivas” (como a primeira educação familiar), que


estão ligadas ao agente e têm um “peso desmesurado” em relação às experiên­
cias posteriores (BOURDIEU, 1980, p. 90-91).
O habitus pode ser pensado, por analogia, como um programa de com­
putador, porém como um programa montado historicamente e autocorrigível,
que é “constituído por um conjunto sistemático de princípios simples e par­
cialmente substituíveis, a partir dos quais uma infinidade de soluções pode
ser inventada”. Entretanto, “soluções que não se deduzem diretamente de
suas condições de produção” (BOURDIEU, 1983, p. 105-106). De forma sinté­
tica, pode-se afirmar que o habitus é, ao mesmo tempo, um sistema de es­
quemas de produção de práticas e um sistema de esquemas de percepção e
apreciação das práticas, isto é, estruturas cognitivas e avaliatórias que os
agentes adquirem pela experiência durável numa posição do mundo social.
Porém, nem todas as disposições do mundo social farão parte do habitus de
uma pessoa, pois suas experiências passadas exercerão um papel de filtro.
Somente as mais compatíveis com as disposições adquiridas nas primeiras
experiências de sociabilização (família e escola) serão assimiladas pelo agen­
te, sem desconsiderar que cada habitus individual é estruturado de maneira
diferente, em razão das experiências vividas e interiorizadas pelo agente
terem sido pautadas por dinâmicas de ascensão, de estagnação ou de declínio
do seu grupo e/ou classe social. Por isso, é importante o pesquisador não
apenas se ocupar com a posição social do agente, como também com o per­
curso que o levou a tal posição (BOURDIEU, 1980, p. 100-102).
O habitus não é somente individual, é também coletivo. Ele pode funcio­
nar, segundo Bourdieu, “como a materialização da memória coletiva que
reproduz, para os sucessores, as aquisições dos precursores”, permitindo ao
grupo e/ou classe “perseverar em seu ser”. Assim, o habitus é o que define
um grupo e/ou classe em relação aos outros que não compartilham de con­
dições sociais semelhantes. A homogeneidade do habitus de um grupo e/ou
classe — que garante a homogeneidade de percepções, apreciações e ações
— é o que torna imediatamente inteligíveis e previsíveis as preferências e as
práticas, consideradas evidentes. Tal aspecto do habitus é que explica a razão
de membros de um grupo e/ou classe agirem freqüentemente de maneira
semelhante, sem necessidade de entrarem em acordo ou de precisarem,
para tanto, de um maestro em particular. Essa direção teórica não implica,
de modo algum, a refutação da diversidade dos estilos individuais. Mas é
certo que, para Bourdieu (1980, p. 100-101), as diversidades individuais
devam ser compreendidas como “variantes estruturais” pelas quais se revela
a singularidade da posição do agente no interior da classe e/ou grupo. Daí a
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 121

definição de sujeito, cunhada por Bourdieu (1990, p. 131): “O sujeito não é o


ego instantâneo de uma espécie de cogito singular, mas um traço individual de
toda urna historia coletiva”.
Deve-se, entretanto, ter bem claro que a sociologia da prática bour-
dieuana não toma o agente nem como um autômato, nem como um calcula­
dor racional, e sim como possuidor de um habitus, portanto, detentor de
disposições resultantes da experiência biográfica, a qual, por sua vez, não
permite que existam dois habitus idênticos, dado que não existem duas his­
torias individuais iguais. Embora Bourdieu (1983, p. 60) considere a exis­
tência de classes de experiências, classes de habitus e habitus de classe, ele
não desconsidera que há margem de flexibilidade para a ação dos agentes —
liberdade, por certo, regrada.

7.4 Relação entre campo e habitus


Entre habitus e campo existe uma relação de condicionamento: o campo
estrutura o habitus. Esse, por sua vez, é o produto da necessidade imanente
de um determinado campo ou de um conjunto de campos relativamente
concordantes. O campo exerce, sobre os agentes que o integram, uma ação
pedagógica, cujo efeito é fazer com que eles adquiram formas de perceber,
avaliar e de agir no mundo (habitus) que são necessárias à sua inserção
apropriada no campo. Logo, um campo supõe a existência de agentes dota­
dos de um habitus distinto dos demais, por exemplo, o habitus científico é
diferente do habitus religioso, assim como ambos se diferenciam do habitus
político e, este, dos outros dois.
A relação entre campo e habitus é também uma relação de conhecimento,
de construção cognitiva, uma vez que “o habitus contribui para constituir o
campo como mundo significante, dotado de sentido e de valor”, no qual vale
a pena os agentes, individuais ou coletivos, investirem suas energias. Nesse
sentido, considera Bourdieu:

A realidade social existe, por assim dizer, duas vezes, nas coisas e nos cérebros, nos
campos e nos habitus, no exterior e no interior dos agentes. E, quando o habitus
entra em relação com o mundo social do qual ele é o produto, sente-se como peixe
dentro d’água, e o mundo lhe parece natural.

Assim, o habitus é um princípio de invenção que, produzido pela Histó­


ria, é relativamente arrancado dela, ou seja, é naturalizado, fatalizado, desis-
toricizado. O mundo social é, então, percebido, pelo agente, como natural e
evidente, pois é produzido por ele tanto quanto o são as categorias de per­
122 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

cepção e avaliação aplicadas pelo agente (BOURDIEU; WACQUANT, 1992,


p. 102-103).
A prática, segundo Bourdieu, não decorre mais somente das intenções
subjetivas do agente, já que elas não resultam diretamente dos constrangi­
mentos objetivos da estrutura. A prática emerge do encontro mais ou menos
bem-sucedido entre posições (postos, funções, cargos) e disposições (capa­
cidades e competências adquiridas), ela nasce da relação obscura de “proxi­
midade ontológica” que se produz entre os dois modos de existência social,
que são o habitus e o campo (WACQUANT, 1997, p. 35-36).
Nesse sentido, a teoria da prática bourdieuana considera que toda a
ação social põe em presença dois estados da História: no seu estado obje­
tivado, a história reificada, a que está inscrita nas coisas, isto é, que se acu­
mulou ao longo do tempo em instituições, teorias, máquinas, instrumentos,
livros, edifícios, costumes, Direito etc; e a história no estado incorporado,
inscrita no corpo, a que se tornou habitus (BOURDIEU, 1989, p. 82-83).
Dessa forma, a análise sociológica de Bourdieu pode ser entendida como
uma foto instantânea, mas com o poder de explicitar o encontro entre os
dois estados da História (ou social), ou seja, da reificada e da incorporada,
da história feita coisa e da história feita corpo. Seu intento é descobri-la nos
lugares onde ela melhor se esconde, isto é, “nos cérebros e nas dobras do
corpo”. Pois, para Bourdieu (1983, p. 60), quando a história feita coisa e a
história feita corpo se combinam de uma forma perfeita — o que equivale a
dizer que as regras e o sentido do jogo são convergentes, como no caso do
jogo e do jogador de futebol — o agente fará exatamente o que ele tem que
fazer, “a única coisa a fazer”, como geralmente é dito, sem nem mesmo pre­
cisar de uma reflexão prévia sobre o que faz.
Isto ocorre em razão de que, da relação entre um corpo socializado
(habitus) e um campo — dois produtos entendidos por Bourdieu como par­
tes de uma mesma história — há o estabelecimento de uma cumplicidade,
porém infraconsciente, corporal. E, mais ainda, quando a história feita cor­
po está em perfeito acordo com a história feita coisa, tem-se uma cumplici­
dade tácita, dos dominados, com a dominação, uma vez que os dominados
(despossuídos de capital ou possuidores de ínfimo e insignificante quantum
de capital) aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes
(detentores de considerável capital, geralmente convertido em capital sim­
bólico) às relações de dominação, categorias que, de resto, são tidas como
naturais, logo legitimadas. Fenômeno que pode levar a uma espécie de
autodepreciação e autodesprezo sistemáticos por parte dos dominados, con­
dição que pode ser percebida nas suas representações de mundo. A cumpli­
cidade do dominado com a dominação é instituída
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 123

[...] por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao
dominante (e, portanto, à dominação), quando o dominado não dispõe, para pen­
sar a dominação e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com o domi­
nante, de mais do que instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e
que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta
relação ser vista como natural.

Ou, em outras palavras, tal cumplicidade ocorre

quando os esquemas que o dominado põe em ação para se ver e se avaliar, ou para
ver e avaliar os dominantes (como por exemplo: elevado/baixo, masculino/femini­
no, branco/negro, etc.), resultam da incorporação de classificações naturalizadas
de que seu ser social é produto (BOURDIEU, 1999, p. 46-47).

Essas são condições propícias para a geração de uma sorte enorme de


violências simbólicas.
Para se ter maior clareza do que aqui se quer enfatizar, basta considerar

[...] as condições sociais de produção dos agentes e os efeitos duráveis que eles
exercem registrando-se nas disposições, para compreender que as pessoas que são
produto de condições sociais revoltantes não são necessariamente tão revoltadas
quanto seriam aqueles que, sendo produtos de condições sociais menos revoltantes
(como a maior parte dos intelectuais), fossem colocados nessas posições.

Contudo, essa assertiva não desconsidera o fato de os agentes não se


tornarem “cúmplices do poder por uma espécie de trapaça, de mentira a si
mesmos”. E, salienta Bourdieu, que o pesquisador não deve esquecer tam­
bém de todas as “defasagens entre a história incorporada e a história reificada,
como, por exemplo, no caso das pessoas que não estão de alguma maneira
bem no emprego, na função que lhes é atribuída socialmente”, pois “as pes­
soas deslocadas, marginalizadas por baixo ou por cima, são pessoas que têm
histórias, e que freqüentemente fazem histórias” (BOURDIEU, 1983, p. 61).

7.5 Para aplicar a Sociologia da prática


Para realizar uma análise com base no esquema explicativo da sociologia da
prática, elaborada por Bourdieu, o pesquisador deverá proceder a uma “tri­
pla historicização”, como bem salientou Loic Wacquant (1997, p. 35-36).
Deve historicizar os agentes, os campos e o agente que conhece, e os seus
instrumentos de conhecimento. A historicização do agente deve ser operada
pela desmontagem do sistema socialmente constituído que comanda suas
condutas e orienta suas estratégias, ou seja, os esquemas incorporados de
percepção, de avaliação e de ação do agente, em síntese, o seu habitus. Depois,
124 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

deve proceder à historização dos diversos campos nos quais os agentes in­
vestem seus desejos e suas energias e renunciam, num curso sem fim, ao
reconhecimento do que é a essência social. Uma vez descobertas as relações
subterrâneas entre a história incorporada e a história reificada, deve-se ope­
rar a historicização do agente que conhece e dos seus instrumentos de co­
nhecimento, pelos quais o agente constrói o seu objeto, como também do
domínio social específico no qual é produzido e divulgado.
Conforme assevera Bourdieu, apenas a história social pode fornecer
os meios de redescobrir a verdade histórica dos vestígios reificados ou
incorporados que se apresentam à consciência sob a aparência da essência
universal. Ou, como é acentuado por ele: o que é instituído pela História,
só poderá ser restituído por ela mesma. Portanto, a historicização oferece,
ao pesquisador, agente histórico e produtor de saber, “os instrumentos de
uma verdadeira tomada de consciência, ou melhor, de um verdadeiro do­
mínio de si”. Condição necessária para o pesquisador se libertar do in­
consciente histórico, científico e, também, social das gerações passadas,
que sempre pesam fortemente sobre o seu cérebro. Assim, o pensamento
livre, sustenta Bourdieu, deve ser conquistado por uma anamnese históri­
ca capaz de revelar tudo o que, no pensamento, é o produto esquecido do
trabalho histórico, caminho completamente oposto ao do pensamento
essencialista, ou seja, daquele que toma os produtos culturais como bens
que têm essência em si mesmos. Para Bourdieu, cada vez que se fizer histó­
ria social da literatura, da pintura, da filosofia, da educação etc., será pos­
sível aperfeiçoar os instrumentos de historicização, as esferas e práticas
envolvidas nos processos de produção, divulgação e recepção dos produ­
tos culturais, uma vez que o trabalho de pesquisa, calcado nessa perspec­
tiva, levará o pesquisador a desnaturalizar, a desfatalizar e a restituir, à
História, os agentes, as instituições e as suas obras, os quais devem ser
tomados como resultantes das relações entre agentes portadores de repre­
sentações sociais de mundo e investidos de forças sociais díspares na luta
pelo poder de (di)visão.
Pelo exposto até aqui, é possível afirmar que a teoria sociológica de
Bourdieu não é inspirada por um interesse de antiquário, e sim pela busca
de entender por que se compreende e como se compreende ou, parafraseando
o sociólogo, para compreender o compreender. Consideração que permite
entendê-la não apenas como uma sociologia histórica, como também como
historicista, na definição de Wacquant. Pois, para Bourdieu, a realidade so­
cial é, de ponta a ponta, história: história feita, história que se está fazendo,
história por se fazer.
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 125

Dessa forma, a aplicação do conceituai elaborado por Bourdieu demanda,


do pesquisador, cruciais procedimentos teórico-metodológicos. Primeiro,
exige a elaboração da história social das problemáticas, dos objetos e ins­
trumentos de pesquisa a serem tratados e utilizados pelo pesquisador, expe­
diente necessário e eficaz para que ele não fique preso à situação de mero
instrumento daquilo que pretende pensar. Ou, como Bourdieu (1989, p. 36)
introduz a questão:

Um dos instrumentos mais poderosos da ruptura [com a persuasão que o mundo


social exerce sobre o pesquisador] é a história social dos problemas, dos objetos e
dos instrumentos de pensamento, quer dizer, do trabalho social de construção de
instrumentos de construção da realidade social (como as noções comuns, papel,
cultura, velhice, etc., ou os sistemas de classificação) que se realizou no próprio
seio do mundo social, no seu conjunto, neste ou naquele campo especializado e,
especialmente, no campo das ciências sociais (o que conduziria a atribuir um
programa e uma função muito diferentes dos atuais ao ensino da história social das
ciências sociais — história que, no essencial, está por fazer).

Portanto, o pesquisador, para não se tomar objeto dos problemas que ele
aborda, deve fazer, segundo Bourdieu (1989, p. 37-38), a história social da
emergência das problemáticas de pesquisa, da sua constituição progressiva,
isto é, a história “do trabalho coleüvo — freqüentemente realizado na concor­
rência e na luta para o qual foi necessário para dar a conhecer e fazer reconhecer
estes problemas como problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, pübli-
cos, oficiais”, como bem pode ilustrar tal afirmativa os problemas da família,
do divórcio, da delinqüência, das drogas, do trabalho infantil e feminino. As­
sim, o pesquisador se distanciará de um positivismo vulgar, o qual sempre
aceita, de antemão, o problema como evidente, e descobrirá, então, que ele foi
socialmente produzido, num trabalho coletivo de construção da realidade so­
cial e por meio desse trabalho. E, mais ainda, perceberá que foi preciso que
houvesse reuniões, comissões, associações, ligas de defesa, movimentos, ma­
nifestações, petições, requerimentos, deliberações, votos, tomadas de posi­
ção, projetos, programas, resoluções etc. para que aquilo que era e poderia
ter continuado a ser um “problema privado, particular, singular se tomasse
um problema social”, o que equivale a dizer um “problema público, de que se
pode falar publicamente — pense no aborto e na homossexualidade”, e, o
mais complicado, “se tomasse um problema oficial, objeto de tomadas de po­
sições oficiais, e até mesmo de leis ou decretos”. Sem desconsiderar que a
adoção irrefletida do pesquisador por objetos tidos como problemas sociais e
politicamente relevantes resultam numa série de “peritos”, cuja prática pode­
rá receber mais facilmente ganhos materiais e simbólicos, dados o seu reco-
126 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

nhecimento e legitimação pelos “administradores científicos e pelas adminis­


trações”. Em posição contrária poderá se encontrar o pesquisador que se pau­
ta pela “dúvida radical” — prática de desconfiar radicalmente das formas ofi­
ciais, correntes e doutorais de nomear e classificar o mundo, portanto não as
tomando como nomeações da realidade, e sim como operações interessadas
de constituição da realidade.
Outro procedimento exigido é o pensar relacional, pois o pesquisador
deve ter claro que “o real é relacional”, já que o que existe no mundo social
são relações. Para tanto, é necessário abandonar as formas de pensamento
substancialista, isto é, a busca da essência dos fenômenos, dos processos ou
dos elementos do mundo social, procurando situá-los uns em relação aos
outros e na estrutura a que pertencem. Assim, passar a refletir em termos de
relações é recusar a forma mais fácil e menos fértil de pensar, “em termos
de realidades que podem, assim dizer, ser vistas claramente como grupos,
indivíduos”, ou, ainda, deixar de pensar “[n]a diferenciação social como for­
ma de grupos definidos como populações, através da noção de classe, ou
mesmo de antagonismos entre esses grupos”. O pesquisador deve passar a
pensar nelas como forma de um espaço de relações. Em outros termos, se é
verdade que o real é relacional, é possível que o pesquisador nada saiba de
uma instituição acerca da qual ele julga saber tudo, porque ela nada está fora
das suas relações com o todo (BOURDIEU, 1989, p. 27-28 e 31).
A sociologia da prática de Bourdieu demanda, do pesquisador, um difícil
procedimento a ser empreendido: “a objetivação participante”. Sua dificul­
dade reside no fato de exigir “a ruptura das aderências e das adesões mais
profundas e mais inconscientes, justamente aquelas que, muitas vezes, cons­
tituem o ‘interesse’ do próprio objeto estudado para aquele que o estuda,
tudo aquilo que ele mesmo pretende conhecer na sua relação com o objeto
que ele procura conhecer”. Procedimento custoso, mas, sem dúvida, neces­
sário ao pesquisador, pois assim ele poderá realizar um livre-pensar, dimen­
sionar e refletir sobre sua participação ativa e efetiva na construção de seu
objeto de pesquisa, uma vez que deverá romper com qualquer filosofia social
ou quaisquer relações práticas com o objeto — como prescritivismo, norma-
tivismo e profetismo — para conseguir apreender e compreender as condi­
ções sociais tanto do que é legítimo pensar quanto da sua objetivação social
(BOURDIEU, 1989, p. 51-54).
Por fim, cumpre reafirmar que os conceitos de campo e habitus de
Bourdieu devem ser considerados como estenografias conceituais, esbo­
ços conceituais, muito simples e que servem, apenas, para orientar a pes­
quisa empírica. E, o mais importante, ambos não existem a priori, pois
necessitam de pesquisas empíricas que os coloquem à prova, nos estudos
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 127

sobre distintas situações dadas em diferentes tempos e sociedades. Assim,


por exemplo, numa análise sobre a sociedade brasileira ou uma parte cons­
tituinte dela não se deve transportar os resultados sobre qualquer campo e
seu respectivo habitus, obtidos por Bourdieu, uma vez que esses são frutos
de pesquisas sobre o universo social francês em determinados momentos
históricos. Esquecer-se dessa orientação é, seguindo o próprio Bourdieu,
deixar em estado impensado justamente aquilo sobre o que se quer pen­
sar, e se deve pensar, livremente, ou seja, a sociedade brasileira. Será, por­
tanto, o oposto do que exige e demanda a sociologia da prática elaborada
por Pierre Bourdieu.

7.6 Escola: domínio da reprodução social e


legitimação das desigualdades sociais
Em 1970, Bourdieu publicou um livro que apresentava uma análise inovado­
ra e bastante crítica de ver e pensar a escola. Trata-se de A reprodução, o
qual, escrito com Jean-Claude Passeron, resultara de uma ampla pesquisa
empírica sobre o sistema escolar francês. No livro, Bourdieu contesta, de
forma contundente, a noção, até então generalizada e inabalável, de que a
escola fornecia igualmente a todos os individuos o ensino necessário tanto
para a promoção da liberdade individual quanto para a sua ascensão social.
Ele demonstra que a escola não promove a igualdade de oportunidades, nem
transmite da mesma maneira um conhecimento superior e muito menos avalia
calcada em critérios universalistas. Ele define a escola como um espaço da
reprodução social e um eficiente domínio de legitimação das desigualdades
sociais. Do ponto de vista da análise, deixa claro que a escola e a sua prática
somente podem ser entendidas e compreendidas quando relacionadas ao
conjunto de relações entre as classes sociais. E, mais ainda, a caracteriza
como um campo que, mais do que qualquer outro, está orientado para a sua
própria reprodução, dado que, entre outras razões, ela tem o domínio da
sua própria reprodução, embora submetida às pressões externas, geralmen­
te advindas das estratégias dos diferentes grupos e/ou classes sociais na ob­
tenção ou ampliação de capital cultural.
Para Bourdieu, a cultura escolar não é neutra, pois é a cultura da classe
dominante. Contudo, a escola não teria obtido sucesso na sua função de
reprodução social caso deixasse passar sua cultura como particular. Ou seja,
se não dispusesse de mecanismos para despistar e denegar a natureza social
e arbitrária da sua cultura. Para tanto, ela transforma e apresenta a sua cul­
tura como geral, neutra e legítima, o que equivale a dizer socialmente reco­
128 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

nhecida como a única válida universalmente, inquestionável, naturalizada,


portadora do que é estimado e distinto por toda a sociedade. Portanto, toda
prática escolar é resultado de um arbitrário cultural, pois ela é sempre social­
mente interessada.
É dentro dessa lógica que se deve compreender o empenho da escola na
escolha de temas legítimos de serem pensados e estudados — por exemplo,
as “geniais” escolas artísticas, em detrimento das manifestações artísticas de
rua ou das promovidas pela indústria cultural — e na valorização de uma
disciplina como elemento definidor da excelência do ensino e aprendizagem
— por exemplo, as disciplinas “de talento”, como a Filosofia e a de Línguas,
em oposição às disciplinas “de trabalho”, como a Geografia e o Desenho.
Dessa forma, os currículos e conteúdos escolares são selecionados em fun­
ção dos conhecimentos, valores e interesses das classes dominantes. Não
por acaso, as disciplinas acadêmicas mais prestigiosas são, justamente, aquelas
cujo fazer está sempre mais próximo das habilidades valorizadas pelos seto­
res sociais dominantes. Logo, toda a ação pedagógica é objetivamente uma
violência simbólica, pois é imposta por um poder arbitrário, resultante de
um arbitrário cultural (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p. 63).
Assim, há homologías entre as formas de funcionamento do campo es­
colar e os esquemas de perceber e avaliar e de agir no mundo (habitus) das
classes dominantes. Então, não é por acidente que os filhos das classes do­
minantes têm mais sucesso na obtenção da cultura escolar e, conseqüente­
mente, ingressam mais ampla e facilmente na universidade. Como membros
de famílias portadoras de considerável capital cultural, tanto intelectual quan­
to material, eles adquirirem um habitus social bastante concordante com o
habitus escolar. Daí a facilidade deles na aquisição dos procedimentos, es­
quemas operatorios de pensamento e linguagem mais enfaticamente exigi­
dos pela escola, uma vez que, para eles, ao contrário dos filhos pertencentes
a segmentos sociais culturalmente desfavorecidos, a experiência escolar é
um prolongamento da vida familiar e do seu grupo social. Enquanto, para os
filhos das classes dominantes, a cultura escolar é a sua própria cultura —
porém, reelaborada e sistematizada — para os filhos das classes dominadas,
a cultura da escola é experimentada como uma “cultura estrangeira”. Na
transmissão de conhecimentos, a escola se orienta, segundo Bourdieu, pela
“pedagogia do implícito”, isto é, o sucesso do aluno na aquisição da cultura
escolar supõe, de forma implícita, a posse de um capital cultural herdado
pelos alunos oriundos das famílias das classes dominantes (BOURDIEU, 1998,
p. 60-61). A escola, assim, contribui com a reprodução social, ou seja, a
garantia da dominação pelos setores sociais dominantes.
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 129

Para denegar a sua verdadeira função, a escola dispõe de um conjunto


eficaz de representações, calcado na “ideologia do dom” e num ideário de
meritocracia. A primeira, chave do sistema escolar e do social, define que o
sucesso, ou não, na escola é reflexo das desigualdades de aptidões, logo, de
desigualdades inatas. Já o segundo defende que toda pessoa pode ascender
às posições mais elevadas, desde que os seus talentos, esforços e gostos per­
mitam. Assim, a escola promove, de um lado, a naturalização do que é social
— as desigualdades sociais são transfiguradas em desigualdades de compe­
tências — e, de outro, a transformação dos critérios sociais de sucesso em
critérios de avaliação escolar. Contudo, a avaliação dos alunos pelos pro­
fessores transcende a simples aferição do aprendizado, do conteúdo transmi­
tido. Nas provas e nos exames, escritos ou orais, os professores tendem, ainda
que inconscientemente, a cobrar e valorizar um modo específico de relacio­
namento do aluno com o saber e a cultura, como desenvoltura intelectual,
elegância verbal, familiaridade com a língua e a cultura legítima. Porém,
objetivamente, pouco ou quase nada das competências reconhecidas pela
escola como não herdadas poderá ser adquirido pelo aluno na experiência
escolar, bem como apenas pode ser mais facilmente exibido por alunos per­
tencentes a classes dominantes, devido a sua sociabilização familiar e grupai
(BOURDIEU, 1998, p. 54-57).
Ademais, para cumprir a sua função de reprodutora social, a escola
conta com dois expedientes. O primeiro refere-se à escolaridade obrigató­
ria, a qual consiste no fato de que as classes dominantes conseguem obter,
das classes dominadas, ao mesmo tempo, “um reconhecimento do saber e
do saber-fazer legítimo”, por exemplo, em matéria de direito, de medicina,
de técnica, de divertimento ou de arte, cultuados pelos setores dominantes,
e “a desvalorização do saber e do saber-fazer” que os dominados detêm,
como o direito consuetudinário, a medicina doméstica, as técnicas artesanais,
o divertimento ou as artes populares (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p. 52).
Procedimento eficiente para se conseguir o reconhecimento da superiorida­
de e legitimidade da cultura dominante por parte dos dominados, ou seja,
eficaz em fazer ver e crer que a cultura escolar é a única possível socialmen­
te, em fazer com que os excluídos, cuja oportunidade escolar já foi dada,
acreditem ser suas “inaptidões naturais” as responsáveis pelo seu insucesso
escolar, bem como os tornam prontos para assumir sua “condição inferior”.
O segundo expediente diz respeito à negação das diferenças dos alunos, ou
às distinções entre habitus sociais, pois

[...] para que sejam favorecidos os mais favorecidos, e desfavorecidos os mais


desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteú-
13U Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

dos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios
de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes
sociais (BOURDIEU, 1998, p. 53).

Em outros termos, a escola, ao tratar de maneira igual, tanto em direi­


tos como em deveres, os educandos, que são diferentes socialmente, acaba
por privilegiar, de maneira dissimulada, aqueles que, por sua herança cultu­
ral, já são privilegiados.
É por tudo isso que Bourdieu (1998b, p. 38-39) aponta que os exames e
concursos são justificados em razão de divisões que não necessariamente têm
a racionalidade por princípio, e “os títulos que sancionam seus resultados
apresentam, como garantia de competência técnica, certificados de compe­
tência social”, sendo os diplomas e certificados, nesse aspecto, muito próxi­
mos dos títulos de nobreza. Daí, ele lembra, num exercício de historicização,
que a entrega de diplomas, freqüentemente feita em cerimônias solenes, é
comparável à sagração do cavaleiro. Acentua que o papel da escola, ao reali­
zar a “função técnica evidente, bem evidente, de formação e transmissão de
uma competência técnica e de seleção dos tecnicamente mais competentes,
mascara uma função social, a saber, a consagração dos detentores estatutários
de competência social, do direito de dirigir”. E define, novamente, sem perder
de vista a História, que a seleção feita pela escola resulta numa “nobreza esco­
lar hereditária de dirigentes de indústria, de grandes médicos, de altos funcio­
nários e até de dirigentes políticos, e essa nobreza de escola comporta uma
parte importante de herdeiros da antiga nobreza de sangue que reconverteram
seus títulos em títulos escolares”. Por fim, conclui:

[...] a instituição escolar que, em outros tempos, acreditamos que poderia introdu­
zir uma forma de meritocracia ao privilegiar aptidões individuais por oposição aos
privilégios hereditários, tende a instaurar, através da relação encoberta entre apti­
dão escolar e a herança cultural, uma verdadeira nobreza de Estado, cuja autorida­
de e legitimidade são garantidas pelo título escolar (BOURDIEU, 1998b, p. 39).

Embora a crença de que a escola possa contribuir para o indivíduo con­


trolar de maneira mais autônoma seu percurso social receba mais adesão dos
segmentos sociais com mais oportunidades em obter sucesso escolar, dado
que o habitus dos segmentos sociais dominantes os leva a investir naquilo que
lhes é mais provável, há décadas tem havido, graças à aparente democratiza­
ção da escola, o ingresso, no jogo do campo escolar, de categorias sociais que,
antes, dele se excluíam ou eram, dele, excluídos. São os casos dos pequenos
comerciantes, artesãos, agricultores e, até mesmo, em conseqüência da
obrigatoriedade escolar ampliada, dos operários da indústria, os quais bus­
cam um nível de instrução necessário para conservarem sua posição, que não
Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 131

é a mais baixa, e se livrarem de serem rebaixados ao subproletariado. Entre­


tanto, o considerável contingente de diplomados alcançado não significou ne­
cessariamente garantias prévias de postos e ascensão social, e sim resultou, de
um lado, numa intensificação do nível de concorrência e, de outro, na desvalo­
rização dos títulos. As categorias sociais tradicionalmente usuárias da escola
passam a investir, cada vez mais, em educação para os seus filhos, buscando,
assim, manter a raridade e a distinção de seus diplomas e certificados. E o
aumento no número de diplomados fez com que alguns diplomas, como o do
ensino secundário e uma parte do ensino superior, mantenham um valor no­
minal como no passado, porém simbólica e economicamente desvalorizados
em relação a períodos anteriores (BOURDIEU, 1998, p. 220-221).
Dada a incapacidade de o ensino escolar garantir um posto concordan­
te com as expectativas ligadas à posse do título, os segmentos mais cultural­
mente desfavorecidos passam a ver a escola como um engodo, fonte de uma
imensa decepção coletiva, visões explícitas que, vez ou outra, abalam o mundo
escolar, como o movimento de maio de 1968 e as contestações dos liceus
nos anos de 1980 e 1990 na França.
Devido à “democratização” do ensino e sua conseqüente elevação de
diplomados, a escola, para manter sua função de reprodução social substi­
tui, progressivamente, as desigualdades de acesso ao ensino pelas desigual­
dades de currículos, calcadas nas escolhas de cursos e unidades escolares
que se pautam por percursos fortemente hierarquizados e repletos de valores
atribuídos socialmente, e pela composição social distinta de seus alunos,
enfim, graças ao capital e poder simbólicos das instituições, agentes escola­
res e dos seus usuários. Assim, os alunos “bem nascidos”, aqueles que “rece­
beram da família um senso perspicaz do investimento, assim como os exem­
plos ou conselhos capazes de ampará-los em caso de incerteza, estão em
condições de aplicar seus investimentos no bom momento e no lugar certo,
ou seja, nos bons ramos de ensino, nos bons estabelecimentos, nas boas
seções”. Já os alunos pertencentes às

[...] famílias mais desprovidas e, em particular, os filhos de imigrantes, muitas


vezes entregues completamente a si mesmos, desde o fim dos estudos primários,
são obrigados a se submeter às injunções da instituição escolar ou ao acaso para
encontrar seu caminho num universo cada vez mais complexo e são, assim, volta­
dos a investir, a contratempo e no lugar errado, um capital cultural, no final de
contas, extremamente reduzido (BOURDIEU, 1998, p. 223).

E, além disso, a diversificação dos ramos de ensino, acompanhada por


procedimentos de orientação e seleção mais precoces, tende a instaurar prá­
ticas de exclusão brandas, isto é, práticas “insensíveis, no duplo sentido de
132 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

contínuas, graduais e imperceptíveis, despercebidas, tanto por aqueles que


as exercem como por aqueles que são suas vítimas”, e faz surgir uma nova
categoria no mundo escolar: os excluídos do interior. São os alunos que a
escola mantêm no seu interior para excluí-los mais tardiamente. Ou como
Bourdieu caracteriza o fenômeno:

Como sempre, a escola exclui, mas, agora, exclui de maneira contínua, em todos os
níveis do cursus (entre as classes de transição e os liceus de ensino técnico não há,
talvez, mais que uma diferença de grau), e mantém, em seu seio, aqueles que exclui,
contentando-se em relegá-los para os ramos mais ou menos desvalorizados.

E, mais grave ainda, os excluídos do interior

[...] são votados a oscilar — em função, sem dúvida, das flutuações e das oscilações
das sanções aplicadas — entre a adesão maravilhosa à ilusão que ela propõe e a
resignação a seus veredictos, entre a submissão ansiosa e a revolta importante
(BOURDIEU, 1998, p. 224-225).

Exercícios
1. Quais os objetivos de Bourdieu ao elaborar os conceitos de campo e
habitus? E como ele define esses dois conceitos?
2. O que é capital simbólico e poder simbólico, para Bourdieu? Pense em
exemplos nos grupos sociais de que você participa.
3. Quais procedimentos teórico-metodológicos são exigidos, por Bourdieu,
para a aplicação da sua sociologia da prática? Qual dos procedimentos
você acha mais complicado de aplicar? Justifique sua resposta.
4. Como é definida a escola por Bourdieu?
5. Qual a relação entre capital cultural e cultura escolar, segundo Bourdieu?
6. Cite fatos e relações da sua experiência escolar, aos quais as análises de
Bourdieu sobre a escola podem ser aplicadas. Em caso negativo, justifi­
que as razões de não ser possível aplicá-las.

Referências
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_______ Les sens pratiques. Paris: Minuit, 1980.
---------. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
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Cap. 7 A Sociologia de Pierre Bourdieu e sua análise sobre a escola 133

______ . Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.


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WACQUANT, L. Durkheim e Bourdieu: a base comum e suas fissuras. Novos


Estudos, n. 48, p. 29-38, 1997.
8
Foucault em vôo rasante
Hélio Rebello Cardoso Jr.

8.1 Introdução: em que um filósofo afeta


nossa vida? — Temas da obra de Foucault
Aristófanes, que viveu na Grécia entre os séculos V e IV a.C., escreveu uma
comédia para retratar Sócrates e, assim, fornecer uma descrição da estranha
vida dos filósofos. O texto chama-se As Nuvens. Sócrates quer provar que as
nuvens são fenômenos naturais não regidos pelos deuses, de modo que, na
visão de Aristófanes (1996), as nuvens acabam sendo consideradas deusas.
O filósofo quer analisar o céu, mas acaba se entretendo com as nuvens e se
perde em devaneios. Em vez de falar diretamente sobre o céu, sua imagina­
ção se desvia na viagem perceptiva que o movimento das nuvens provoca, e
ele se esquece do seu objeto.
Filosofar quer dizer devanear, perder-se em conjecturas, sem nunca
chegar ao ponto. É a imagem que temos do filósofo: o homem sério que
contempla com abnegação ou o devaneador que faz às vezes de imbecil ou
louco. Gostaríamos que ele se desviasse menos do caminho, que seguisse
mais reto e dissesse logo o que tem a dizer, sem rodeios. Quando lemos seus
textos, o filósofo exaspera-nos, pois, no fundo, ele quer dizer coisas simples,
mas acaba encontrando o simples por caminhos tortuosos e complicados.
Ler filosofia é bom, enriquece e alimenta o espírito, desde que os livros filo­
sóficos passem por uma máquina descomplicadora.
136 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

É obvio que as nuvens que envolvem o personagem do filósofo, de que


fala Aristófanes, podem servir como uma espécie de desabafo sobre a exas­
peração que os filósofos provocam em nós, mas podem servir igualmente
como um manifesto por aquilo que eles fazem de verdade. Isto é, os filósofos
vêem o mundo, a realidade, não como um céu fixo, mais ou menos preso a
leis astronômicas, e sim como nuvens que nos convocam a seguir sua eterna
mutação. Das nuvens, não podemos, nem mesmo, exigir que elas mante­
nham a semelhança que esboçam (e logo perdem) com o que quer que seja
(ORLANDI, 1994, p. 78-79).
Foucault foi um filósofo que nada teve a ver com as nuvens, embora seu
pensamento seja complexo e exija aprendizado, como se, com ele, adquirís­
semos a capacidade de falar uma nova língua. Em primeiro lugar, ele não se
parecia com um homem contemplativo, pois nós adoramos pensar que um
filósofo reparte, com os padres e sacerdotes de toda espécie, a abnegação
pelos valores superiores e eternos. Foucault foi um filósofo pouco devaneador,
não amava as coisas eternas e, sim, as terrenas. “Ora”, vocês diriam, “fica­
mos na mesma, se um filósofo é conhecido por seu caráter risível, às vezes,
digno de pena, porque parece um louco ou um padre, ou, mesmo, uma criança,
então o que se pode esperar de Foucault, que não encarna os sempiternos
personagens do mundo filosófico?”.
Para abandonarmos o mundo do senso-comum acerca da filosofia, sem
ter de encontrar o personagem ou a caricatura que Foucault encarnaria,
devemos, outrossim, perguntar em que as idéias de Foucault afetam nossa
vida, precisamos saber se elas têm algum efeito prático na condução de nos­
sa existência cotidiana.
Essa pergunta é fácil de responder, pois não existe âmbito algum dos
saberes e das instituições contemporâneas em que as idéias de Foucault não
se façam sentir. Estamos tão embebidos nos problemas filosóficos que Foucault
abordou, tal a sua abrangência, que já não sabemos, com clareza, que foi ele
quem formulou esses problemas. Existe uma presença anônima de Foucault.
Ele retoma, impessoal. De certa forma, para ele, é uma realização, pois diver­
sas vezes declarou como seria bom apagar seu eu, como seria bom que a
individualidade fosse como um rosto desenhado na areia, na beira de uma
praia, que uma onda mais forte viria apagar (Cf. FOUCAULT, 1999a, p. 536).
E justo que façamos a pergunta para Foucault, e de forma direta: em
que sua filosofia afeta minha vida? Em que suas idéias acarretam efeitos
práticos sobre minha existência? Ora, comecemos pelos indícios. Como di­
zíamos, não há um âmbito da vida contemporânea em que as idéias de
Foucault não se façam, de alguma forma, presentes. Vamos a exemplos.
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 137

Comecemos na medicina. Pois bem, Foucault mostrou como se consti­


tuía a clínica, isto é, a maneira pela qual se atribui causa de doenças a partir
de sintomas observados pelos médicos ou descritos pelo paciente, proporcio­
nando o diagnóstico e a terapia. Tal estudo era, inicialmente, muito técnico,
então seu trabalho deu um salto prático, quando Foucault procura mostrar
de que modo se constitui a clínica da psique humana, isto é, a psiquiatria.
Até hoje, principalmente quando se trata de políticas públicas voltadas para
a saúde mental, o nome de Foucault é referência. Dificilmente um médico,
psiquiatra, biólogo, se bem formado, não ouviu falar de Foucault.
Um outro assunto que Foucault tem influenciado diretamente nossas vi­
das, ainda no terreno da saúde mental, foi no entendimento da loucura. Foucault
mostrou que as terapias da loucura, em qualquer âmbito, eram certamente
expedientes que visavam ao abrandamento do sofrimento trazido pelo males
psíquicos, mas eram igualmente as formas modernas pelas quais se aprofundava
o controle secular sobre o corpo, e não só sobre o corpo do louco. Não há um
hospital psiquiátrico, um psicanalista ou psicólogo aos quais os escritos
foucaultianos acerca da loucura não tenham trazido matéria-prima para refle­
xão sobre sua prática e, principalmente, sobre o significado da loucura em
nossa sociedade. De modo geral, a luta por um tratamento mais digno, o mo­
vimento contrário ao aprisionamento do portador de distúrbios mentais em
manicômios, muito em voga hoje, tem referência nos estudos de Foucault.
Um outro campo em que os estudos foucaultianos apresentaram-se com
muita ênfase é formado por todos aqueles que, de alguma maneira, lidam com o
problema do poder, em suas formas mais variadas. A esse respeito, Foucault
mostrou que as formas de poder são exercidas, em todos os setores, por dis­
positivos que se constituem historicamente. Cada época tem uma “tecnologia
geral do indivíduo” particular de controle do corpo (Cf. FOUCAULT, 2002,
p. 351). Em nossa sociedade, o controle sobre o corpo é exercido de modo
automático e silencioso. Desde o final do século XVI11, ela tem sido dominada
por uma forma de controle que se denomina “disciplina” (FOUCAULT, 2003,
p. 119). Nos espaços institucionais, nós nos sentimos vigiados constantemen­
te e essa presença molda nossos corpos e nossa subjetividade. Nesse aspecto,
Foucault também nos acompanha, ele não deixa sossegados os médicos, psi­
cólogos, e também os diretores de presídio, carcereiros, policiais e todos aqueles
que cumprem funções em espaços institucionais: professores, bibliotecários,
administradores, juizes, advogados, assistentes sociais etc.
Por último, podemos dizer que os efeitos do pensamento de Foucault
se fazem sentir bem no interior de nossa consciência, de nossa identidade
mais indevassável. Foucault mostrou que nós não nos tornamos sujeitos,
I JO Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

hoje, como um grego o fazia. A subjetividade é uma espécie de hábito ou


exercício que adquirimos de acordo com certos expedientes que mudam
historicamente. Tais expedientes incidem particularmente sobre o corpo e o
prazer. Neste âmbito, também, Foucault está em diálogo conosco. Aqui,
como uma espécie de machado que fende a nossa consciência e nos livra ou
nos amofina, conforme o caso, a respeito das ilusões que temos a respeito da
estabilidade de nossa identidade ou das certezas do eu.
Foucault, em qualquer caso, não quer que deixemos de pensar. Mas os
efeitos de suas idéias não estão presentes em nossa vida como se fossem vozes
em nossa consciência ou um tribunal que nos perseguisse a fim de nos julgar.
Em todos esses lugares, Foucault aparece sempre com a intenção, não de
condenar, e sim de nos lembrar que o mundo é como as nuvens, ele não pára
de passar. Se a loucura, em nosso tempo, é uma doença e, por isso, deve ser
tratada num hospital, em outra época, o louco já andou solto e, ao contrário,
era visto como aquele, dentre todos os seres, que pertencia à estrada, ao ar
livre, e não ao confinamento do hospício. Ele nos lembra que, se a prisão é um
dispositivo correcional que visa recondicionar o indivíduo pela máxima expo­
sição àqueles que o vigiam, já houve em outros tempos um regime de punição,
a masmorra, cujo princípio de funcionamento era justamente contrário ao da
prisão ou, ao menos, como esta é concebida nos tratados de Direito Penal,
pois a masmorra faz o corpo mergulhar na escuridão e o toma indistinto dos
outros corpos submetidos ao mesmo regime. Enfim, Foucault está sempre nos
lembrando que podemos mudar como sujeitos, que não paramos de nos trans­
formar; ele nos obriga a pensar: o que estamos fazendo de nós mesmos?
Até agora temos procurado mostrar como Foucault se faz presente en­
tre nós. Fornecemos alguns indícios para sintetizar os modos pelos quais o
pensamento de Foucault afeta nossas vidas. Nunca deveríamos ficar vexa­
dos, envergonhados, a ponto de não perguntar de que modo uma filosofia
produz efeitos práticos. Feito isso, podemos seguir, procurando, agora, orga­
nizar as esparsas referências que fizemos às conseqüências dessa filosofia,
em busca de uma maior visibilidade da obra foucaultiana.

8.2 Fases da obra de Foucault:


características gerais
Os estudos costumam subdividir a obra de Foucault em três fases, com deno­
minações utilizadas pelo próprio Foucault. Ele foi muito sensível às mudan­
ças acontecidas em seu método, na passagem de uma fase a outra. Para faci­
litar, vejamos o Quadro 1, sobre a produção foucaultiana, logo a seguir:
I *tu Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

8.2.1 Arqueologia
Comecemos com a Arqueologia. Ora, o que faz um arqueólogo? Ele escava,
observa as idades das camadas do solo à medida que o sítio arqueológico vai
se aprofundando. O difícil é quando o sítio arqueológico se compõe de vários
períodos, então é mais complicado separar as camadas que identificam um pe­
ríodo das camadas que constituem o outro.
Foi assim que o arqueólogo Foucault procurou entender de que modo
se formam os saberes. Um saber, por exemplo, a ciência, é formado por
camadas que identificam uma certa época histórica. De fato, quando Foucault
se refere à ciência que se ocupa com a vida orgânica, ele se refere à Biologia
(FOUCAULT, 1999a, p. 175-181 e 343-347), que surge no século XVIII e é
característica de um período. Antes dela, a História Natural se ocupava da
vida, mas não é uma ciência. Como Foucault pode fazer a separação entre
um saber científico e um não-científico?
Em primeiro lugar, não se deve supor que a História Natural é uma espé­
cie de biologia na fase infantil, que evoluirá para uma fase mais desenvolvida.
Vimos que a idéia de História, em Foucault, não comporta a noção de pro­
gresso. Pensemos na Arqueologia: a História Natural é uma camada ou estrato
do saber que pertence a uma época, já a Biologia é um estrato que pertence à
outra época. São como vestígios de duas civilizações diversas que viveram em
momentos diferentes sobre o mesmo solo, deixando seus restos depositados
durante a sua passagem. O importante, do ponto de vista da Arqueologia
foucaultiana, é pensar que um saber não leva ao outro. Cada época do saber é
descontínua com relação à outra. O arqueólogo procura encontrar esses pon­
tos de descontinuidade entre os saberes.
Ao limite entre os estratos de um período e os de outros, Foucault de­
nomina “episteme”. Em sua fase arqueológica, Foucault estudou três epis-
temes: o Renascimento (séc. XIV ao XVI); a episteme clássica (séc. XVII ao
final do XVIII); e a episteme Moderna (final do séc. XVIII e séc. XIX até a
virada do séc. XX). Retomando nosso exemplo, a História Natural pertence
à episteme clássica, enquanto a Biologia, à episteme moderna. Elas são total­
mente distantes em termos arqueológicos, apesar de relativamente próximas
em termos cronológicos. Elas são diferentes porque cada episteme organiza,
de modo totalmente inovador, os objetos, os conceitos e os métodos de um
saber (“o que eu posso saber?”) (FOUCAULT, 1987a, passim).
Uma vez que os estratos ou camadas de uma episteme estão separados
dos outros, o trabalho de arqueólogo foucaultiano volta-se para o interior,
isto é, para dentro de cada episteme, a fim de entender como cada época se
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 141

organiza em termos de saberes. Pois bem, há muitos saberes. Na época mo­


derna, por exemplo, o saber científico sobre a loucura é um saber sobre a
psique humana ligado ao campo de descobertas próprio da psiquiatria. Ela
descobre, então, as histerias, doenças cujos sintomas são somáticos ou orgâ­
nicos, mas cuja causa não o é. A partir daí, a loucura pode ser entendida
como uma doença cuja manifestação, ao menos, é orgânica. Dentro dessa
episteme, no entanto, a loucura também pode ser qualificada como posses­
são do corpo e, assim, ser objeto de um saber religioso que desenvolveu suas
próprias técnicas, como o exorcismo. O exorcismo, do ponto de vista arqueo­
lógico, é, igualmente, um saber sobre a loucura, pois ele dispõe de concei­
tos, métodos e objeto próprios, da mesma forma que a psiquiatria.
Assim, dentro de uma determinada episteme, um saber pode entrar num
limiar científico, no entanto, um saber dessa episteme não é necessariamen­
te científico. No caso do relacionamento entre o exorcismo e a psiquiatria,
Foucault descreve que, inicialmente, há uma disputa entre ambos pelo objeto,
isto é, o corpo do louco, a qual se resolve no sentido de uma certa censura,
por parte da própria Igreja Católica, com relação a seus exorcistas (Cf.
FOUCAULT, 2002, p. 269 e seguintes). Não que a Igreja estivesse total­
mente convencida de que a possessão do corpo fosse um caso médico. A
religião nunca se convenceu disso, porque o saber que ela tem do corpo
não pertence ao mesmo limiar que o saber psiquiátrico, embora ambos
pertençam à mesma episteme.
Então, temos mais um passo da Arqueologia foucaultiana, a saber, sepa­
rar os limiares de saberes. Como fazer isso? Ora, a psiquiatria e o exorcismo
são camadas de uma mesma episteme, mas sua conformação é diferenciada,
são estratos cuja consistência os distingue. Para a episteme moderna, a se­
paração dos limiares de saberes não é muito complicada, ao menos inicial­
mente, pois é possível separar os saberes que entraram dos que não entra­
ram em um limiar científico. Esta é a primeira separação possível, porém
essa triagem é, ainda, por demais grosseira, do ponto de vista da Arqueolo­
gia de Foucault.
Ilustremos alguns desses elementos do método arqueológico por meio
de um livro do próprio Foucault.
Um dos livros mais importantes da fase arqueológica é História da lou­
cura na idade clássica. O próprio título já indica um tipo de problemática que
orientou o pensamento de Foucault em todas as suas fases. Em primeiro
lugar, Foucault é um filósofo que escreve livros de caráter histórico, porque
sua filosofia exige, da História, uma certa função. Por isso, ele foi, muitas
vezes, desprezado pelos filósofos, porque imitava os historiadores, em vez
142 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

de ler os filósofos clássicos. Pelo mesmo motivo, seria rejeitado por grande
parte dos historiadores de ofício, que não reconhecem na sua filosofia a
capacidade de leitura e análise documental.
Essa confusão acontece, em segundo lugar, porque um livro como Histó­
ria da Loucura é filosófico. Ele indica que a percepção e a experiência que
temos da loucura se alteram. Isso é inovador em termos filosóficos, já que evita
operar com conceitos atemporais, e também o é da perspectiva dos historia­
dores, pois, nessa obra, Foucault convida para o desenvolvimento do método
arqueológico. Com esse método, os historiadores ficam convocados a revelar
novos objetos, os quais não eram considerados dignos da História. A loucura,
portanto, deixa de ser um objeto natural descartado pelo historiador. Foucault
revela que a loucura é e deve ser um objeto desnaturalizado. Neste livro,
como em muitos outros, o historiador encontrará um campo de alta densida­
de para a análise historiográfica.
Para Foucault, há três epistemes desde o final da Idade Média, que já
foram aqui citadas. A primeira delas coincidirá com o Renascimento; a se­
gunda, com os séculos XVII e XVIII (episteme clássica); e a terceira, com o
final do século XVIII até o final do século XIX (episteme moderna). História
da loucura está organizado segundo esta periodização. A tese desse livro gira
em tomo da idéia de que os saberes sobre a loucura, em cada uma dessas
epistemes, organiza a percepção e a experiência da loucura a partir de certos
regimes discursivos que são passiveis de análise histórica.
Há dois corolários, ou subteses, a partir daí. O primeiro deles mostra
que existem dois momentos básicos quanto à experiência da loucura no
Ocidente, a saber, uma experiência trágica e uma experiência racionalista
da loucura. A experiência trágica, isto é, aquela que indica que a desordem
está muito mais presente ou próxima do que se pensa, vai, aos poucos, sen­
do soterrada por uma experiência da loucura ligada ao racionalismo. En­
quanto a trágica afirma que a loucura faz parte de nosso mundo; a racionalista
cria mecanismos para controlá-la (FOUCAULT, 1987b, p. 30-42).
Um segundo corolário é que a psiquiatria, como saber que afirma o
discurso racionalista sobre a loucura, não é uma ciência que teria evoluído
desde formas mais rudimentares e pré-científicas até descobrir e isolar a
loucura como doença. A psiquiatria é uma configuração de saber que surge
numa episteme mais recente, a qual conforma uma certa experiência da lou­
cura. Não podemos esperar que a psiquiatria represente o fim ou a coroação
de um processo milenar e que, a partir dela, a experiência trágica da loucura
esteja debelada. Ao contrário, Foucault analisa que, quanto mais a psiquia­
tria recrudesce seu regime discursivo e procura cercar a loucura de modo
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 143

mais incisivo, uma nova experiência trágica da loucura se esgueira e se afir­


ma ainda mais entre nós, por meio da arte, das manifestações dos loucos no
interior dos hospitais psiquiátricos, da resistência que eles oferecem às prá­
ticas de internação.
Em História da Loucura, Foucault, como dizíamos, desnaturaliza a lou­
cura e, portanto, nossos sentimentos com relação aos loucos. Todos espe­
ramos, senão que a loucura seja considerada uma doença ou um mal, ao
menos que o louco seja considerado perigoso e, por isso, isolado. Nossa
expectativa é de que a loucura, desde sempre, seja tomada como um pro­
blema de saúde. Por isso, seria mais ou menos óbvio que o louco fosse
excluído da convivência das pessoas normais. Nossa percepção moderna
sobre a loucura tende a estender esses sentimentos, a atitudes, de certa
forma, eternas em relação aos loucos. No entanto, quando lemos o livro de
Foucault, ficamos um tanto chocados. Ele recua cronologicamente até a
Idade Média, procurando encontrar quais os lugares de reclusão típicos
das sociedades medievais. O que ele encontra são os leprosários, cidades
onde os leprosos são deixados. Com relação à loucura, no entanto, nada
há que se assemelhe a isso, não há um lugar para a internação da loucura.
Com isso, nossas expectativas recebem o primeiro choque: no final da Idade
Média, ou os loucos não existem ou eles não são pacientes de uma reclu­
são. Foucault desenvolve essa análise a partir de inúmeras fontes, como
documentos das paróquias, das municipalidades etc. Nessa época, o louco
é encontrado em liberdade. Ele faz parte de um grupo mais amplo. Está
situado entre o imbecil, o tolo, o bêbado, o devasso, o criminoso e o apai­
xonado. O louco não pode estar preso, pois, no imaginário medieval, ele
aparece como aquele que não pertence a cidade alguma. Assim como sua
mente vaga sem destino, seu corpo deve ser deixado livre para uma viagem
constante. O louco é aquele que está num constante deslocamento, nada
pode contê-lo.
Segundo Foucault, até o final da Idade Média, a desordem da loucura
era o contrário da razão e não um problema de disfunção da saúde, por isso
o louco não é tratado, nem internado. Na história da loucura contada por
Foucault, observa-se que há uma descontinuidade. Vários objetos, diferen­
temente definidos, são chamados de loucura. Até o final da Idade Média, a
loucura é contrária à razão, ambas convivem numa espécie de contigúidade.
Do ponto de vista arqueológico, então, tem-se de perguntar: qual é o novo
objeto, chamado loucura, que tornou evidente a reclusão do louco?
Como já indicamos, a noção foucaultiana de história é descontínua. A
história da loucura é marcada pela descontinuidade dos objetos que cada
144 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

época denomina loucura. Ora, mas como essa história descontínua segue?
Na episteme clássica, como se caracteriza o objeto “loucura”?
Foucault escreve que, nesse momento, há dois regimes discursivos (aqui­
lo que os saberes dizem sobre um objeto) que se afrontam. Um deles é o que
provém da Idade Média. A loucura é vista como coexistente à razão, sua
presença no mundo não pode ser excluída. Tudo o que a razão pode fazer é,
de certa forma, retirar as forças da desordem para construir a própria or­
dem. Esta é a experiência trágica da loucura: há um corpo-a-corpo entre a
razão e a loucura, como num jogo de luz e trevas. Porém, um outro regime
discursivo emerge: trata-se de uma razão que, em vez de conviver com a
loucura e suas forças, quer subjugá-la. A razão passa a ser um estado de
vigília, ela não pode se descuidar, não pode adormecer, caso contrário, a
desrazão invade o mundo e a domina. A razão precisa dominar a loucura e
mantê-la à distância, não pode lhe dar voz.
O afrontamento entre esses dois regimes discursivos é flagrado por
Foucault na grande produção cultural dos séculos XV ao XVII. Por exem­
plo, Foucault observa a cisão entre esses regimes discursivos a partir da
análise de que, nas artes plásticas, a experiência trágica da loucura perdura
por muito mais tempo, enquanto, na literatura, o novo discurso aparece
mais cedo. Esta mesma ruptura pode ser observada na filosofia, visto que o
grande exemplo de uma razão concebida como guardiã do mundo das luzes
é o Cogito, de Descartes. Se o Cogito é o ponto de partida do pensamento, o
louco é aquele destituído de Cogito, o louco não pensa. Tal confronto
discursivo se decidirá em favor de uma razão que controla a loucura, que
vigia o louco e procura, de todas as formas, não se descuidar. Essa reviravol­
ta define a ascensão de uma nova episteme, em que novos regimes discursivos
podem emergir (Cf. FOUCAULT, 1987b, p. 42-47).
Na nova episteme, a loucura será objeto de exclusão e confinamento.
Foucault nota que os leprosários se esvaziam desde o final da Idade Média.
Esses espaços estão abandonados, esquecidos, os leprosos não são mais ex­
cluídos, e sim tratados como doentes em casas de saúde. Mas o mais impor­
tante é que os antigos leprosários, durante o séc. XVIII, serão reformados
arquitetônica e administrativamente. Então se formam os “hospitais gerais”,
que vão receber uma série de pessoas, estando os loucos entre elas. Apesar
do nome, no entanto, o hospital geral não é um lugar de tratamento de saú­
de, como entendemos hoje. Essa caracterização deve-se ao fato de que a
direção do estabelecimento não é norteada por uma demanda de saúde, pois
o médico não dirige o hospital, ele apenas desempenha uma função subalter­
na. Além disso, o que demonstra que este hospital não é como aqueles que
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 145

conhecemos, é o fato de que, lá dentro, reúne-se uma grande população.


Nos hospitais gerais, os loucos são internados com o pobre, o indigente e os
devassos (Cf. FOUCAULT, 1987b, p. 53-71).
Ora, o que esses indivíduos podiam ter em comum para estarem inter­
nados no mesmo lugar?
Certamente, não era um problema de saúde que os levava à internação
num mesmo local. Com efeito, a história da loucura mostra que, nessa época
do “grande internamento”, como a denomina Foucault, o louco tinha em co­
mum com as demais categorias de indivíduos internados uma certa dege­
nerescência moral. O mal que assola os pobres, os loucos e os devassos é uma
desordem de caráter moral. Por isso, eles estão no mesmo lugar. O tratamento
não é para a sua saúde, muito embora os loucos sejam doentes do corpo tam­
bém. Em primeiro lugar, eles são tratados moralmente. Ora, qual é a terapia
aplicada para o mal moral nos hospitais gerais? É o trabalho. O trabalho pode
corrigir as almas e as índoles, o médico só cuida dos corpos.
Foucault apresenta os procedimentos terapêuticos do hospital geral,
alertando para o fato de que trabalho, nesse caso, não significa, necessaria­
mente, trabalho produtivo. Quer dizer, a cura moral de um louco não viria
do trabalho numa fábrica ou plantação, ainda que, muitas vezes, essa força
de trabalho inativa fosse cooptada pelas forças capitalistas em ascensão. O
sentido terapêutico do trabalho, nos hospitais gerais, não é, em primeiro
lugar, econômico. O trabalho servia para impor, à mente desordenada do
louco, alguma ordem ou rotina, pela qual uma conversão moral poderia ser
obtida. Foucault descreve que, muitas vezes, nos hospitais gerais, as ativida­
des do louco eram a de andar em torno de um pátio circular, sem nada
produzir. O que importava era o exercício repetitivo, o esforço e o desgaste
provenientes de tal atividade. Foucault mostra que essa época — a do “gran­
de internamento” — não foi a origem pré-científica de nossas clínicas médi­
cas e hospícios, mas, sim, o internamento social, o isolamento e a obser­
vação de todas as categorias de pessoas que denunciam a “origem de nossas
ciências médicas (moderna e psiquiátrica) e humanas” (DREYFUS, RABINOW,
1995, p. 5).
Isso significa, simplesmente, que a psiquiatria surge em outra episteme,
a episteme moderna, mas ela reativa, em seu regime discursivo, enunciado
e visibilidades de outra episteme. Quer dizer, embora os métodos, os con­
ceitos e as técnicas dessas ciências se desenvolvam dentro da episteme
moderna, basicamente, elas continuarão a operar nas instituições de in­
ternamento, rearticulando, para fins científicos, o discurso moralizante
nelas desenvolvido, incluindo os protocolos de observação e descrição dos
146 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

indivíduos internados no antigo Hospital Geral. Mas, para tanto, era preci­
so que o internamento do louco fosse associado à idéia de que a loucura é
uma doença do corpo. Com isso, o louco seria isolado, não mais pertence­
ria a uma população de indivíduos acometidos por um mal de ordem mo­
ral. Ele vai merecer o desenvolvimento de uma instituição de internamento
cujos fins sejam médicos.
O século XIX, esclarece Foucault, espanta-se e se indigna com o fato de
que o louco fora internado ao lado do criminoso, do devasso, do indigente.
Esse espanto, do ponto de vista do arqueólogo do saber, indica que uma
nova experiência da loucura estava em construção. A diferenciação do lou­
co em relação ao criminoso, ao indigente e ao devasso se dá pela assimilação
da medicina. Esse fenômeno não surge como um avanço das ciências, ele é a
criação do próprio internamento. O internamento geral do século XVIII,
cuja terapia era moral, torna-se, no século XIX, um erro econômico, sendo,
por isso, substituído por um internamento mais científico, que isolava o lou­
co. A loucura, então, entra em um novo regime discursivo, com o significado
que conhecemos hoje. Isso ocorre quando aparece o “personagem médico”.
Entretanto, o médico, de acordo com Foucault, torna-se a figura central do
asilo, em parte por causa de seu status científico. Ele ainda desempenha, no
hospício, a autoridade moral que os administradores do Hospital Geral, não
sendo médicos, haviam estabelecido.
Sem dúvida, o que mostra A História da loucura é que, de uma episteme
a outra, os saberes se alteram totalmente, devido a suas configurações dis­
cursivas divergentes. No entanto, por dentro da história da loucura, passa
uma história mais longa, relacionada a mecanismos de controle sobre o cor­
po. É essa história do controle do corpo que indicará, para Foucault, um
outro caminho, a partir dos anos 1970. Quando esta nova problemática — a
do controle sobre o corpo — emerge em primeiro plano, uma fase diferente
se inicia. Foucault complementa a Arqueologia com o método genealógico,
a Genealogia.

8.2.2 Genealogia
Nessa nova fase, a Genealogia, Foucault começa a se perguntar, em comple­
mento à Arqueologia, não só o que forma saberes, as epistemes, como tam­
bém qual é sua gênese, como eles se formam. O que faz com que, em cada
prática de saber considerada, encontre-se uma peculiaridade histórica? E,
afinal, o que faz estas práticas se alterarem?
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 147

Tais questões, inaugurais para a fase genealógica, que se configuram,


mais ou menos, na virada dos anos 1960 para os 70, fazem vir a primeiro
plano o problema que era abordado indiretamente pela Arqueologia. Trata-
se das práticas de poder. Do ponto de vista da Genealogia, as práticas de
poder são constitutivas com relação às práticas discursivas, ou seja, elas são
geradoras dos saberes. Por isso, a Genealogia ocupa-se genericamente das
estratégias ou relações das práticas de poder, na constituição de um deter­
minado saber. Em suma, ela se ocupa das “práticas de poder”. Ou melhor, a
Genealogia dá atenção especial ao binômio saber-poder. Todos os regimes
de saber contêm relações de poder, não há aquele sem este. Essa é, talvez, a
proposição mais conhecida a respeito da Genealogia.
A partir daí, podemos pensar que a aplicação do método genealógico seja
mais ou menos simples. É possível imaginar que o poder, de que fala Foucault,
é, por exemplo, o poder do médico em isolar o louco, o poder do Estado sobre
o cidadão, do patrão sobre o empregado, do professor sobre o aluno etc. Mas
não é tão simples assim. Embora o poder, no sentido foucaultiano, possa anun­
ciar estas formas maciças: o Estado, a força, a repressão, a Escola etc. não é
dessa forma de poder que trata a Genealogia. Devemos nos lembrar que as
práticas de poder se desenvolvem e se estabelecem como relações microfísi-
cas, numa dimensão estratégica ou genética com relação aos saberes. Tendo
em vista esta característica do método genealógico, temos de averiguar um
pouco mais atentamente o que Foucault quer dizer quando se refere a “poder”,
conceito-chave para sua Genealogia.
O conceito de poder, em Foucault, está muito distante da idéia que dele
faz o senso comum, como também dos principais conceitos de poder em
voga na filosofia. Foucault chama a atenção para o fato de que devemos nos
livrar de uma concepção jurídica do poder, isto é, de que o poder se exerce
como força sobre um objeto, para conformá-lo à vontade de quem o detém
ou à finalidade de uma instituição. Para Foucault, o poder constitui a reali­
dade, é uma relação microfísica (FOUCAULT, 2001, passim).
Uma relação de poder, como confere a um evento sua singularidade
histórica, permite, em primeiro lugar, desfazer todos os jogos identitários
pelos quais se procura atribuir uma estabilidade ou universalidade enganosa
a este ou aquele acontecimento. Além disso, é possível, com o suporte desse
conceito de poder, desnaturalizar aqueles objetos que supostamente esta­
riam fora da alçada do historiador por não terem história, como os senti­
mentos, o amor, a consciência etc. Temos o costume de considerar as coisas
em sua origem ou aquelas que supostamente não têm história como em estado
de perfeição, mas a Genealogia mostra que a origem das coisas é a discórdia
148 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

e o disparate. No fundo da história, não há uma identidade que foi mal versa­
da ou que se degenerou com o tempo.
Cada acontecimento, segundo Foucault, tem uma “proveniência”
(FOUCAULT, 1982). Isso significa que é marcado pela dispersão dos ele­
mentos que compõem uma verdade, um saber. Mais importante ainda é que,
neste jogo de saber-poder, a proveniência de um acontecimento histórico
sempre diz respeito ao corpo. Por exemplo, quando os homens inventam
um sistema filosófico ou moral segundo o qual o ideal da existência será a
vida contemplativa, então o corpo é afetado. Por isso, Foucault desenvolve a
idéia de que o poder é composto por relações que se efetivam como “tecnolo­
gias”, cujo objeto é o corpo.
Foucault, em História da Sexualidade, v. 1 (2001), faz um resumo sobre
seu conceito de poder. Da mesma forma, Deleuze, no livro intitulado Foucault
(1986), procura sistematizar este conceito. Destacaremos três, dentre as
várias características do conceito de poder.
Em primeiro lugar, o poder não se concentra, não se centraliza, nem se
totaliza. Ele faz e se desfaz em focos. Então Foucault desafia a idéia esquer­
dista de que o poder seria propriedade de uma classe que o conquista. O
poder não é uma propriedade, não está concentrado em uma sede, pois ele é
uma estratégia. O poder é uma questão de exercício, não de posse.
Em segundo lugar, Foucault desvaloriza a idéia de que o poder seria
relativo ao Estado, sendo ele seu detentor, então nele o poder estaria locali­
zado. Ele afirma que é o contrário disso: o Estado é o efeito de uma
multiplicidade de focos de poder. Os focos de poder são difusos, de modo
que, somente em condições especiais, esses focos se reúnem, tomando di­
mensões abrangentes como a de um Estado. O poder é constituído por uma
vibração, por isso não dispõe de um lugar privilegiado como sua fonte. Quando
Foucault se refere a “lutas locais”, ele não quer dizer que o poder tenha
localização, embora pontual. O poder “é local porque nunca é global, mas
ele não é localizável porque é difuso” (DELEUZE, 1986, p. 34).
Em terceiro lugar, o poder é uma relação, é uma “rede produtiva”. Ele
produz o saber, cria a realidade em vez de vetá-la. É justamente o caráter
produtivo do poder que Foucault analisa em Vigiar e punir (1999c). O méto­
do genealógico, então, visa aos acontecimentos, isto é, à produção contínua
de novas realidades mediante as relações de poder. Com efeito, nesse livro,
a tese de Foucault é a de que, nos séculos XVII e XVIII, houve um desbloqueio
da produtividade do poder. Trata-se da montagem de mecanismos que per­
mitem a circulação de efeitos de poder, uma circulação ininterrupta e indivi­
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 149

dualizada por todo o corpo social. O principal argumento desse livro é o de


que o individuo tornou-se um objeto a ser moldado em várias funções.
Para Foucault, a prisão — foco central de Vigiar e punir — é urna nova
“figura de punição”, que se organiza no final do século XVIII. No livro,
Foucault recua até o século XVI, a fim de observar outras representações da
punição em que a produtividade do poder teria características próprias. Quer
dizer, o punir, como enunciado, e os prisioneiros, como visibilidades, com­
põem uma relação historicamente recente. Não que os homens não fossem
punidos antes do século XVIII, porém a função pela qual se punia não era a
mesma que se pode observar na prisão.
Em primeiro lugar, Foucault analisa a “tortura”, que é um instrumento
de poder real. Em segundo lugar, a reforma humanista da idade clássica. Por
último, analisa a punição e a vigilância normalizadoras que encarnam a
tecnologia do “poder disciplinar”. A prisão é uma das modalidades desta
última. Então, o método genealógico, em Vigiar e punir, procurará distinguir
as diversas tecnologias de poder ou sua produtividade variada, de acordo
com as épocas históricas. O objeto de cada uma dessas tecnologias de poder
é o corpo. No entanto, como cada uma produz verdades de saber, as fun­
ções, às quais o corpo estará submetido, mudam, necessariamente.
Vamos a uma breve apresentação das duas primeiras figuras da punição
para, em seguida, discorrer mais detalhadamente sobre a prisão, que é onde
se encontra uma tecnologia de poder denominada “disciplina”. Veremos que
a tecnologia disciplinar se constitui em uma rede de funções amplas e
conectadas, formando uma “sociedade disciplinar” sob cuja alçada vivemos
ainda hoje — em parte ou totalmente.
A tortura é a figura da punição que se desenvolve durante o período da
Renascença. A transgressão da lei era entendida como um ataque ao corpo
do rei. O condenado era submetido à masmorra. Seu corpo se perdia na
penumbra dos calabouços e se misturava aos outros corpos. Ao poder real,
não interessa a visibilidade desse corpo. A confissão do acusado era extraída
em grandes espetáculos públicos. O espetáculo visa estabelecer a ordem por
meio de uma demonstração maciça em que o poder se torna totalmente
visível. Já o corpo do acusado, a não ser por sua exibição pública, é um
instrumento de reparo ao corpo lesado do rei. Ele cumpre essa função e, se
não é morto, retoma para a penumbra dos calabouços, onde é esquecido.
Outra figura de punição é a “reforma humanista”, como afirma Foucault,
que aparece durante o século XVIII. Essa “reforma” produz uma mudança
notável no que diz respeito à tecnologia de poder aplicada ao corpo dos
150 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

punidos. A reforma humanista se caracterizou pela formulação de um códi­


go penal cuja finalidade era estabelecer a justa representação entre o crime
e a punição. Tal busca incentivou a pesquisa das individualidades para que
se pudesse compreender de que modo o crime se manifesta em uma pessoa.
Buscava-se uma classificação do criminoso. Muito embora a idéia de repre­
sentação como equilíbrio entre o crime e a punição se aproxime do direito
penal posterior, Foucault avalia que a punição dos criminosos não atendia à
mesma função exercida pela prisão. A prisão estaria calcada no princípio de
que, cassada a liberdade do indivíduo, a penitenciária serviria como meio de
reeducação e ressocialização ao convívio comunitário. Ao contrário, nos
lugares de encarceramento do século XVIII, o que se esperava era uma espé­
cie de correção moral da alma do criminoso, da qual o crime era efeito.
Já a prisão, como dissemos, pertence a uma tecnologia disciplinar. A
disciplina é uma tecnologia usada para fins maciços e serve para funções
precisas em instituições (casas de detenção, exército, escola, hospital, po­
lícia). Essas instituições são espaços disciplinares, pois uma das caracte­
rísticas básicas da tecnologia disciplinar é que ela tem, como condição,
para moldar uma certa multiplicidade de corpos de acordo com uma de­
terminada função, que essa multiplicidade seja restrita e que o espaço seja
limitado, não muito extenso. Sendo assim, a disciplina não está contida em
qualquer um desses espaços institucionais. Ela é uma relação de poder que
se atualiza em cada um desses espaços. Justamente aí reside uma das suas
especificidades: ela articula vários espaços, aumentando seu poder de pro­
pagação e alcance.
Toda sociedade impõe um controle social sobre o corpo. E é exatamen­
te esse controle que varia historicamente. Na sociedade disciplinar, o corpo
é um objeto de análise e é fragmentado, a fim de que a disciplina possa
transformá-lo num “corpo útil”, expressão de Foucault (FOUCAULT, 1999b,
p. 287). Por meio de certas técnicas que se aplicam ao corpo, o ser humano
é visto como um objeto que pode ser modelado. Foucault dá o exemplo dos
exercícios militares: a coordenação dos movimentos dos soldados visa a des­
tituí-los de toda dimensão subjetiva, de modo que cada um deles possa estar
ligado por operações formalizadas. Trata-se de uma organização do espaço
— o espaço disciplinar — e também do tempo, pois a idéia é que uma função
disciplinar (operações formalizadas) molde os corpos em tempo contínuo,
dentro de cada espaço disciplinar. E, quando o indivíduo passa de um espa­
ço para o outro, ou seja, quando ele vai ser moldado segundo outra função,
a operação exercida sobre o corpo, no espaço anterior, deve servir como
preparo para a nova função.
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 151

Então, a sociedade disciplinar se organiza de acordo com a contigüidade


de vários espaços disciplinares, onde funções, embora diferentes entre si
quanto a seu objetivo, interconectam-se no sentido de que obedecem ao
mesmo diagrama ou organização. Desta forma, o ideal da sociedade disci­
plinar é maximizar o exercício da função em cada espaço para que as várias
funções disciplinares se encadeiem sem lacunas. A sociedade disciplinar
também precisa aumentar os espaços disciplinares, a fim de que o desloca­
mento dos individuos entre os vários espaços não interrompa a continuidade
da modelação.
Em certo sentido que devemos especificar, pode-se dizer que a disci­
plina controla os corpos para produzir indivíduos. Eis a produtividade do
poder disciplinar: produção de individualidade mediante a modelagem dos
corpos nos espaços disciplinares. Quando a função é educar, a matéria são
os escolares; quando é castigar, a matéria são os prisioneiros; e assim por
diante. O procedimento específico do poder na sociedade disciplinar é o
exame. O exame parte da idéia de que se deve vigiar e normalizar o indivíduo
por meio de uma constante visibilidade a que os corpos estão submetidos
no interior dos espaços disciplinares. Desse modo, a tecnologia disciplinar
se fundamenta na concepção de que os indivíduos têm, entre si, uma igual­
dade formal. O exame, como procedimento da tecnologia disciplinar, trans­
forma o indivíduo em objeto de conhecimento. Eis o elo poder-saber, ou
seja, de que forma as relações de poder constituem os regimes discursivos
de um determinado tipo de saber. Os detalhes da vida cotidiana tornam-se
temas de pesquisa, por meio de documentação minuciosa. Para Foucault,
quanto a este aspecto, há uma ligação importante entre as ciências huma­
nas e os procedimentos disciplinares. De fato, um aspecto disciplinar é, ao
mesmo tempo, um lugar de aplicação de tecnologia disciplinar e um labo­
ratório onde um saber é produzido de modo bruto, isto é, como dados a
serem organizados e formalizados em procedimentos, teorias, sistemas etc.
Sendo assim:

[...] pelo jogo dessa quantificação, dessa circulação dos adiantamentos e das dívi­
das, graças ao cálculo permanente das notas a mais ou a menos, os aparelhos disci­
plinares hierarquizam, numa relação mútua, os “bons” e os “maus” indivíduos.
Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua, opera-se uma diferen­
ciação que não é a dos atos, mas dos próprios indivíduos, de sua natureza, de suas
virtualidades, de seu nível ou valor (FOUCAULT, 1999c, p. 151).

Sabemos que a sociedade disciplinar é formada por vários espaços disci­


plinares, cada um deles tomando o corpo como objeto, do qual extrai uma
determinada função disciplinar. Devido à articulação em rede dos espaços
I Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

disciplinares, Foucault afirma que existe um “diagrama” da sociedade disci­


plinar. Trata-se de um esquema de seu funcionamento, que explica, em cada
caso, como o corpo é submetido a uma tecnologia de poder. Esse diagrama é
o Panóptico. A descrição é encontrada no livro de mesmo nome de Jeremy
Bentham, um filósofo inglés. O principio do panóptico está baseado numa
espécie de economia do poder, quer dizer, fazer com que as relações de po­
der se tomem automáticas, a fim de que os corpos sejam moldados por uma
função disciplinar sem que tenha de haver um dispendio de forças humanas
para tanto. Foucault afirma que o princípio do panóptico tem, como correlato,
uma “figura arquitetônica”. De fato, ele demonstra que o projeto arquitetônico
de Bentham será incluído na concepção dos mais variados espaços disciplina­
res no decorrer do século XX. Segundo a descrição de Foucault, o panóptico
é uma construção que tem as seguintes características:

[...] na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada
em largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção peri­
férica é dividida em celas; cada uma atravessando toda espessura da construção;
elas têm duas janelas; uma correspondendo à janela da torre; e outra, que dá
para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado (FOUCAULT,
1999c, p. 177).

Foucault alerta, em primeiro lugar, que o panóptico é o inverso do “prin­


cípio da masmorra”, aquele prevalecente na época do Renascimento e da
Sociedade de Soberania. Enquanto a masmorra esconde o corpo do prisio­
neiro na penumbra, o panóptico o põe no regime da máxima visibilidade.
Essa inversão é o demonstrativo da produtividade do poder e dos modos
que ele é aplicado aos corpos, como observamos. Tal dispositivo tem dois
efeitos, segundo Foucault: um “negativo” e outro “positivo”. O panóptico
evita as grandes massas amorfas que se encontravam nos lugares de encar­
ceramentos. A multidão formada por individualidades em fusão é substituída
por uma “coleção de individualidades separadas”. É agora “uma multiplicidade
enumerável e controlável”. O efeito negativo do panóptico indica, assim,
que a nova tecnologia do poder se exerce individualizando os corpos, em
vez de tomá-los distintos. Quanto mais a disciplina individualizar, melhor
extrairá uma função. No entanto, a individualização também significa que a
função homogeneíza essa multiplicidade de indivíduos, procura articulá-los
e, deles, obter um funcionamento concertado.
O efeito “positivo” do panóptico, de acordo com as palavras de Foucault,
é: “induzir, no detento, um estado permanente e consciente de visibilidade
que assegura o funcionamento automático do poder” (FOCAULT, 1999c, p.
177). O detento, o corpo sujeito à disciplina, não vê quem o vigia, mas sen-
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 153

te-se constantemente vigiado. O panóptico, então, visa incutir um estado de


permanente vigilância, de modo que o próprio indivíduo se transforme, de
certa maneira, no vigia de si mesmo. O poder, assim, torna-se automático;
no limite, ninguém precisa exercê-lo, é invisível. O panóptico é urna máqui­
na de criar e manter o poder independente de quem o exerce, formando
“fiscais perpetuamente fiscalizados” (FOUCAULT, 1999c, p. 148).
Além dos seus “efeitos”, Foucault enumera e descreve os aspectos do
panóptico (FOUCAULT, 1999c, p. 180):

1. o panóptico faz um trabalho de naturalista, estabelece as diferenças:


“entre doentes, a fim de aproximar os pacientes com quadros clínicos
semelhantes; nas crianças, anota o desempenho distinguindo o que é
‘preguiça e teimosia’ e o que é ‘imbecilidade incurável’; nos operários,
calcula o salário em vista de sua eficiência no trabalho;
2. ele também pode ser uma “máquina de fazer experiências que visa modi­
ficar comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos”; no hospital,
“experimentar os remédios e verificar os seus efeitos”; na prisão, testar
diversas punições sobre os prisioneiros, segundo seus crimes e tempera­
mentos; na escola, tentar experiências pedagógicas, em que se observaria
que “qualquer um aprende qualquer coisa” (educação reclusa);
3. o panóptico permite aperfeiçoar seus próprios mecanismos; o diretor
pode espionar o desempenho dos empregados que tem a seu serviço:
enfermeiros, médicos, carcereiros, professores.

Devido a essas características, o panóptico é o “diagrama de um mecanis­


mo de poder” porque resume seu “modelo generalizável de funcionamento”,
sendo uma “maneira de definir as relações de poder com a vida cotidiana
dos homens” que se destaca de “qualquer uso político” para se tornar uma
“figura da tecnologia política” (FOUCAULT, 1999c, p. 181). As aplicações
desse diagrama são múltiplas: corrigir prisioneiros, cuidar dos doentes, ins­
truir escolares, guardar loucos, fiscalizar operários. Mas o panóptico so­
mente se torna eficaz como diagrama de estratégias de poder, como vimos,
quando uma tarefa ou comportamento é imposta a uma multiplicidade de
indivíduos. O panóptico é um esquema que apresenta a aplicação de funções
precisas (educação, terapêutica, produção, castigo) para intensificá-las, com
elas constituindo um mecanismo misto em que as relações de poder e saber
se ajustam. Pode-se dizer, ainda, que a intensificação dessas relações faz
com que o poder tenha um exercício imanente. Quer dizer, ele não se exerce
pela força, e sim pelo “assujeitamento”. O poder cria a realidade sobre a
qual as forças sociais se exercem.
I 0*1 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

8.2.3 Estética da existência


Nos dois volumes finais de História da sexualidade (FOUCAULT, 1984 e
1985), nota-se uma mudança em sua trajetória. A notória questão acerca
do saber e do poder, que até então havia sido a marca do pensamento foucaul-
tiano, mais precisamente até o primeiro volume de História da Sexualidade
(FOUCAULT, 2001), é acrescida de uma indagação a respeito das práticas
pelas quais nos tornamos sujeitos. Foucault é explícito a respeito da mudan­
ça de trajetória quanto a uma genealogia da sexualidade, porque se trata,
então, de estudar “de que maneira o indivíduo moderno podia fazer a expe­
riência dele mesmo enquanto sujeito de uma sexualidade” (FOUCAULT,
1984, p. 11). Dessa forma, somos informados de que “sexualidade” é um
dentre os modos históricos pelos quais fazemos a experiência de nos consti­
tuirmos como sujeitos, e não apenas como um dispositivo pelo qual as disci­
plinas controlam o corpo por meio de certas tecnologias políticas.
Foucault afirma que tal empreendimento é uma continuação de seu
trabalho anterior, pois “essa genealogia me afastava muito de meu projeto
primitivo” (FOUCAULT, 1984, p. 11). Esse novo domínio de análise, então,
colocava-se como “ponto de interseção” (FOUCAULT, 1984, p. 16) entre os
dois campos de seus objetos anteriores: a arqueologia do saber e a genealogia
do poder. Esta interseção, em que Foucault delimita o novo campo de pes­
quisa, pode ser definida, de maneira apropriada, como estando organizada
em torno da relação da subjetividade com a História, pois é a respeito dessa
relação que podemos observá-lo propor “o que poderia chamar uma histó­
ria da ética e da ascética, entendida como história das formas de subjetivação
moral e das práticas de si destinadas a assegurá-la” (FOUCAULT, 1984, p.
29). Este estudo que relaciona subjetividade e História ficou conhecido como
“estética da existência”.
A estética foucaultiana da existência apresenta dois conceitos básicos
— “subjetivação” e “práticas de si”.
O que é “subjetivação”? Para Foucault, em toda subjetividade, o sujeito
se envolve num processo de subjetivação, visto que, segundo suas próprias
palavras, não existe “constituição do sujeito moral sem modos de subjeti­
vação” (FOUCAULT, 1984, p. 28), ou seja, toda experiência que concretiza
uma subjetividade envolve modos historicamente peculiares de se fazer a
experiência do si (subjetivação).
O que são “práticas de si”? A subjetivação é garantida por determina­
das práticas que envolvem o corpo e se efetivam a partir do “prazer”. Quer
dizer, Foucault explica que nossa subjetividade é maleável, é uma relação de
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 155

si consigo mesmo, e que essa relação é conquistada por meio de certos hábi­
tos ou exercícios culturalmente vigentes.
Os modos pelos quais nos tomamos sujeitos, os modos de “subjetivação”,
aparecem e se desenvolvem historicamente como “práticas de si” que — em­
bora vigorem dentro de práticas discursivas (saberes) e práticas de poder que
testemunham pela descontinuidade de suas formas históricas (FOUCAULT,
1984, p. 23) —, correspondem a quatro grandes focos de “problematização”,
a saber: “natureza do ato sexual, fidelidade monogâmica, relações homosse­
xuais, castidade” (FOUCAULT, 1984, p. 17), as quais atravessam as pretensas
oposições entre a “filosofia pagã”, a “ética cristã” e a “moral das sociedades
européias modernas” (FOUCAULT, 1984, p. 18).
Os quatro focos de problematização podem ser aglutinados em dois
grandes tipos de moral, cada um com suas práticas de si e modos de subje­
tivação correspondentes.
Nesta linhagem de “morais”, o corpo é entendido como lugar do desejo,
cuja força natural precisa ser regrada. Nesse caso, as práticas visam menos
ao autogoverno e mais à proteção contra a violência do prazer, de acordo
com a maneira que os modos de subjetivação são codificados. Essas morais,
indica Foucault, têm uma feição jurídica, pois nelas vige

[...] o código e [...] sua capacidade de cobrir todos os comportamentos [...], de


modo que sua importância deve ser procurada do lado das instâncias de autoridade
que fazem valer esse código, que o impõem à aprendizagem e à observação, que
sancionam as infrações; nessas condições, a subjetivação se efetua, no essencial, de
uma forma quase jurídica (FOUCAULT, 1984, p. 29).

Em determinado tipo de moral, o corpo é entendido como lugar onde o


prazer é uma potência que pode ser organizada por meio de práticas de si,
de maneira a que seu modo de subjetivação seja o “autogoverno”. Nesse
caso, o prazer não é mais tomado como uma energia natural a ser regrada, e
sim como uma potência que pode ser gerida e conservada. Nesse tipo de
moral, afirma Foucault, “o elemento forte e dinâmico dever ser procurado
das formas de subjetivação e das práticas de si” (FOUCAULT, 1984, p. 30),
pois são eles campos de experimentação para a conquista do autogoverno.
Da oposição entre estes dois tipos de moral, advém a separação, segun­
do Foucault, entre o “corpo-prazer” e o “corpo-carne” (FOUCAULT, 2001,
p. 190). Em termos gerais, o corpo-came, característico dos tipos de moral
cuja ênfase se dá sobre as “práticas que permitam transformar o próprio
modo de ser” (FOUCAULT, 1984, p. 30), coincide historicamente com a
Antigüidade greco-romana (pagã), ao passo que os tipos de moral do corpo-
156 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

carne, definidos pelo código, correspondem ao cristianismo. No entanto, aler­


ta Foucault, “entre elas houve justaposições, por vezes rivalidades e confli­
tos, e, por vezes, composição” (FOUCAULT, 1984, p. 30). Para sermos mais
precisos, dentro de cada período histórico, o que permite separar o amálgama
das duas linhagens da moral é a relação com a verdade, pois a “questão das
relações entre o uso dos prazeres e o acesso à verdade” (FOUCAULT, 1984,
p. 201 e 214) surge dentro da moral grega, mas permite o acesso a tipos de
moral baseados no código, como a cristã, em que o que passa a ser pro-
blematizado, afirma Foucault, não é mais o “prazer, com a estética de seu
uso, mas o desejo, com sua hermenêutica purificadora” (FOUCAULT, 1984,
p. 221). O uso dos prazeres se tornaria ainda mais austero, nos dois primei­
ros séculos de nossa era, em função do aprofundamento da relação do prazer
com a verdade, a qual, enfim, torna as práticas de si associadas ao “conheci­
mento de si”, embora essas restrições ainda estejam muito distantes de uma
moral prescritiva como a cristã (FOUCAULT, 1985, p. 45-47, 71-73;
FOUCAULT, 1997, p. 119-130).
A relação com a verdade, demonstra Foucault, vem acompanhada de uma
certa acentuação dos efeitos nocivos do prazer, de modo que o corpo, em vez de
ser entendido como o lugar onde o homem domina o prazer e, por isso, toma-
se senhor de si, passa a ser visto como um espaço de fragilidade, arrebatado por
forças naturais cujo controle se deve mais a expedientes de proteção do que ao
exercício de uma soberania sobre si mesmo (FOUCAULT, 1985, p. 125-126).
Mas o que isso tem a ver conosco, hoje?
Numa moralidade característica da Antigüidade Clássica, os prazeres
do corpo são o domínio em que se constitui o autogoverno, perfazendo um
campo contínuo onde não se demarca a questão do desejo. Por exemplo, no
campo dos prazeres não cabe a pergunta: em que tipo de relação há uma
verdadeira reciprocidade do ponto de vista do amor: a relação heterosse­
xual ou a relação homossexual? Já, numa Antigüidade tardia, que corresponde
à ascensão do Império Romano, a problematização do desejo, a qual vem
acompanhada da indagação sobre o amor verdadeiro, de acordo com
Foucault, desencadeará um processo que se estenderá à sexualidade, enten­
dida como modo de subjetivação do sujeito modemo. O surgimento do de­
sejo como novo modo de subjetivação atesta um

[...] movimento que, na verdade, só se completará muito mais tarde, quando for
edificada uma concepção absolutamente unitária de amor: a que separa as con­
junções de um sexo ao outro e as relações internas a um mesmo sexo. É esse
regime que, grosso modo, é ainda o nosso hoje em dia, na medida em que está
solidificado por uma concepção unitária da sexualidade, que permite marcar, de
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 157

modo estrito, o dimorfismo das relações, e a estrutura diferencial dos desejos


(FOUCAULT, 1985, p. 198).

Foucault observa que, ñas sociedades modernas, a relação do prazer


com a verdade (scientia sexualis) orienta a subjetivação em torno de uma
“forma de poder-saber” que instaura procedimentos voltados para que o
individuo diga a “verdade sobre o sexo” (FOUCAULT, 1985, p. 57). O modo
de subjetivação moderno, portanto, pode ser surpreendido em práticas de si
reguladas por um dispositivo disciplinar, em que emerge a noção de sexuali­
dade como constitutiva da subjetividade moderna. Sendo assim, a sexualida­
de, como modo de subjetivação, articula-se com a questão da relação entre
o corpo e a verdade sobre o sexo. Por um lado, o modo de subjetivação do
sujeito moderno — que é, de certa forma, aquele que ainda experimentamos
em nossos dias — não é uma moral relacionada com o autogoverno; por
outro, não pode ser caracterizado como uma moral de código, no sentido
prescritivo ou jurídico, que predomina em uma moral cristã.
Como vimos, o modo de subjetivação moderno é marcado por um dispo­
sitivo denominado “sexualidade”, que procura estabelecer uma “incitação téc­
nica” para falar da sexualidade, partindo do princípio de que aquele que pensa
sobre a sexualidade conhece melhor a si mesmo. O dispositivo de sexualidade
procura determinar um certo eixo, em tomo do qual giram as “relações entre
comportamento sexual, a normalidade e a saúde” (FOUCAULT, 1984, p. 220).
Não estamos, com relação à sexualidade, em busca do autogoverno que geri­
ria o prazer, nem da verdade que regraria o desejo, e sim de uma verdade da
sexualidade, relativa ao autoconhecimento e à identidade que, ao mesmo tem­
po, liga-nos à instancia coletiva de vários espaços disciplinares.

8.3 Conclusão: um filósofo comprometido


com o tempo e a historia
É claro que, diante das três fases caracterizadas anteriormente, podemos extrair
algumas linhas gerais da obra de Foucault. Observa-se que, em todos os exem­
plos que utilizamos para ilustrar o alcance temático de sua obra, a saber, a forma­
ção da clínica médica, as experiências da loucura, os regimes de punição e os
modos pelos quais nos tomamos sujeitos, Foucault enfoca um dos problemas
filosóficos básicos e, talvez, o mais importante de todos: o do tempo.
Se as indagações de Foucault estão presentes em todos esses ámbitos, de
todas essas maneiras, é porque, em seu pensamento, pode se encontrar o
curso de uma reflexão sobre o tempo. Como dizíamos, Foucault não nos ques-
158 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

tiona ou nos perturba como se fosse um delegado, juiz ou um diretor de cons­


ciência. Ele não nos julga. Em sua pergunta — o que você está fazendo de si
mesmo? — ressoa a seguinte afirmação: que estamos nos tomando outra coi­
sa. Foucault acredita que tudo está sujeito ao tempo. Ele não condena, ele diz
que há sinais de vida, se tudo já se alterou tanto, então, isso não vai parar.
Devido a essa problemática central que é o tempo, presente em todos os
planos de sua pesquisa, é que Foucault escreveu muitos livros de história.
Ele precisa da História para expor suas idéias sobre o tempo. O senso comum
sobre a História declara que a passagem do tempo é organizada por um
vetor de sentido. Isto é, por mais que os acontecimentos aparentemente
sejam caóticos e disparatados, existe como que uma razão que os ordena em
direção a algo melhor ou pior, seja para um bem maior, como a liberdade
universal do ser humano, seja para o progresso material de nossa civilização,
seja para uma catástrofe que embotaria a própria humanidade.
Ao contrário, Foucault não crê, e escreve textos sobre isso, que a história
de todas as coisas que acontecem com os homens seja uma história contí­
nua que se orienta em direção a um fim (FOUCAULT, 1982). Para ele, a
história é descontínua, nela pulsam composições de forças que se fazem e se
desfazem, sem que seja possível traçar uma linha de progresso. Os eventos
não se organizam de maneira unitária, descrevendo um movimento em que
todos os elementos são homogêneos e cujo sentido se revela de uma vez por
todas como algo contínuo no tempo. Ao contrário, a verdade ou o sentido
que encontramos na História é sempre uma composição de elementos hete­
rogêneos. A verdade histórica tem muitas arestas, não é uma figura bem
torneada. Ou, ainda, a História é um quebra-cabeças em que as peças não
apresentam contornos muito concordantes, de modo que a figura resultante
parece mal formada ou suas peças parecem reunidas a contragosto, à força.

Exercícios
1. Procure observar o funcionamento de uma escola, uma sala de aula.
Quais discursos, segundo a acepção da Arqueologia de Foucault, você
poderia nomear e descrever?
2. De acordo com a Genealogia de Foucault, pode-se dizer que numa esco­
la, numa sala de aula, desenvolvem-se certas práticas que podemos cha­
mar de “disciplina”, segundo o conceito foucaultiano definido no texto?
3. E quanto às práticas de subjetivação, pode-se afirmar que uma escola
interfere nas práticas pelas quais nos tomamos sujeitos? Procure iden­
tificar alguns elementos ao seu redor.
Cap. 8 Foucault em vôo rasante 159

4. Este é um dos trechos mais conhecidos e polêmicos da obra de Foucault.


Procure comentá-lo, revelando o seu sentido à luz do que você apren­
deu sobre o pensamento desse filósofo, especialmente a respeito das
epistemes e do homem como objeto de saber:

O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamen­


to mostra facilmente. Se estas disposições [fundamentais do saber] viessem a
desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que pode­
mos, quando muito, pressentir a possibilidade, mas de que, no momento, não
conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como
aconteceu, na curva do século XVIII, com o solo do pensamento clássico —
então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um
rosto de areia (FOUCAULT, 1987a, p. 536).

Referências
ARISTÓFANES. As Nuvens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: Minuit, 1986.

DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para


além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Univer­
sitária, 1995.

FOUCAULT, M. Naissance de la clinique. Paris: PUF, 1963.


______. Nietzsche, a genealogia e a história. In:____________. Microfísica do poder.
Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 15-37.
______. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal,
1984.
______ . História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal,
1985.
______, A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987a.
______. História da loucura, 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987b.
______. O poder psiquiátrico. In: __________ . Resumos dos cursos do Collège de
France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar, 1997a.
______, A hermenêutica do sujeito. In: Resumo dos cursos do Collège de France
(1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar, 1997b.
______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1999a.
______, Em defesa da sociedade — Curso no Collège de France (1975-1976).
São Paulo: Martins Fontes, 1999b.
160 Sociologia e Educação - Leituras e Interpretações

______, Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. 19. ed. Petrópolis:
Vozes, 1999c.
______. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 14. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2001.
______ . Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
______, Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2003.

ORLANDI, L. B. L. Nuvens. Idéias, Campinas, 1(1), p. 78-79, jan./jun. 1994.

Bibliografia complementar
1. Livros Publicados pelo autor — Estudos Teóricos

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências huma­


nas. São Paulo: Martins Fontes, 1999 (1966).
______. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000
(1969).

2. Livros Publicados pelo autor — Estudos Arqueológicos e Genealógicos

FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,


1994 (1954).
______ . História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2000
(1961).
______. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998
(1963).
______. Raymond Roussel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999 (1963).
______. Eu, Pierre Rivère, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio
de Janeiro: Graal, 1984 (1973).
______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2000 (1975).
______. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1999 (1976).
______. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal,
1998 (1984).
______. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985
(1984).

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