Você está na página 1de 6

12/02/2020 A nova confusiologia orçamental para a Cultura | Opinião | PÚBLICO

OPINIÃO

A nova confusiologia orçamental


Rui Matoso para a Cultura
Para além da espuma dos dias, existe a necessidade concreta de se
repensarem os modelos de financiamento dos apoios à artes após a
entrada em vigor da designada descentralização cultural.
7 de Dezembro de 2019, 3:32

De cada vez que se ouve falar o primeiro-ministro ou a


ministra da Cultura acerca do Programa Orçamental da
Cultura (POC) para o horizonte dos próximos 4 anos da
legislatura, ouvem-se coisas diferentes e antagónicas.
Porém, na base de todas as intervenções no espaço
público está o compromisso, inscrito no programa
eleitoral do Partido Socialista, bem como no programa
de Governo, de aumentar até 2% o orçamento da cultura.

No fundo, o que importa ao sector cultural e criativo é


perceber se o governo pretende efectivamente afectar
uma fatia maior do Orçamento de Estado (OE), isto é,
saber se a propalada intenção de aumentar para 2% o
orçamento para a cultura representa um crescimento das
receitas gerais do OE afectas ao orçamento da Cultura?

Até ao OE para 2019 o POC dividia-se em dois grandes


grupos de receitas, a receita geral (directamente
financiada pelas receitas do OE, no total de 133,2
milhões em 2019) e a receita consolidada, que
representa o somatório global de receitas gerais com
fontes de receita dos organismos públicos de cultura
(bilheteiras), prestações de serviços, fundos
comunitários, receitas consignadas (taxas afectas ao
ICA), transferências entre Administração Pública e
outras (com o valor de 249,9 milhões em 2019). Em
2019, pode observar-se que a receita de outras fontes de
financiamento, que não receita geral, equivaleu a 46 %
da receita global (consolidada).

https://www.publico.pt/2019/12/07/culturaipsilon/opiniao/nova-confusiologia-orcamental-cultura-1896522 1/6
12/02/2020 A nova confusiologia orçamental para a Cultura | Opinião | PÚBLICO

PUB

Até aqui nada nos leva a crer que o próximo POC seja
diferente. No entanto há uma nova miragem no
horizonte, pois é inédito um governo cavalgar a onda das
reivindicações do “1% para a Cultura”, revelando nesse
movimento uma certa esperteza usada para exercitar a
sua já habitual numerologia orçamental.

Saber concretamente de onde vem a receita para atingir


a promessa de atingir os 2% é importante para podermos
entender de forma clara o compromisso do novo governo
PS com a cultura. Porém, esta não tem sido uma tarefa
facilitada dado que os discursos dos governantes variam
conforme os dias e geram mais confusão do que
esclarecimento, senão vejamos:

1. No programa eleitoral do PS pode ler-se: “Aumentar,


de forma progressiva, a despesa do Estado em Cultura,
com o objetivo de, no horizonte da legislatura, atingir 2%
da despesa discricionária prevista no Orçamento do
Estado» (sublinhado nosso). Neste contexto, pergunta-
https://www.publico.pt/2019/12/07/culturaipsilon/opiniao/nova-confusiologia-orcamental-cultura-1896522 2/6
12/02/2020 A nova confusiologia orçamental para a Cultura | Opinião | PÚBLICO

se, qual o significado de “despesa discricionária”? Uma


das hipóteses é, parece-nos, o mesmo que dizer que se
pretende aumentar a dotação directa do Estado
(despesas de investimento) para além do compromisso
com as despesas obrigatórias e consignadas pela lei
(RTP, ICA,...).

2. No âmbito da Conferência Geral da UNESCO, a


ministra da Cultura afirmou que "o compromisso do
programa do Governo é ao longo de quatro anos crescer
progressivamente até atingir 2% da despesa das receitas
gerais do Estado”, ou seja, isto significa que o aumento
do POC será directamente financiada pelas receitas do
OE. Este será de facto o tipo de incremento orçamental
que os agentes culturais reivindicam há muito, pois, é o
que reflecte um verdadeiro compromisso do Estado
(governo) com o sector cultural.

3. No entanto, no programa Prós e Contras de 18 de


Novembro, a ministra da Cultura esclarece que o
compromisso do governo em atingir os 2% será
suportado em verbas oriundas de outros ministérios e
fontes externas. Isto porque, diz a ministra no referido
programa, o investimento em cultura é transversal aos
outros sectores: educação, ciência, ambiente, políticas de
igualdade...

A partir deste dia 18 novembro a confusão adensa-se e


teme-se o pior. E o pior é a ministra ter-se munido da
narrativa da transversalidade sectorial da cultura para
justificar o aumento do Orçamento do POC por via da
receita consolidada e não da receita geral.

Defender que o OE para a cultura deva ser financiado


intersectorialmente (educação, turismo, economia, etc.)
pelo motivo de a acção cultural ser transversal e porque,
por exemplo, o turismo financia a cultura quando investe
no restauro de bens patrimoniais, é de algum modo
defender a evidência de que que não existe sociedade
sem cultura ou que a cultura é um pilar consubstancial à
sociedade, ou seja: que não existe sociedade sem cultura.

Porém, este reconhecimento deveria ser sustentado na


perspectiva reversa: é a cultura que, nas sociedades
contemporâneas e no capitalismo tardio, contribui
directa e indirectamente para a economia nacional, para
a diplomacia cultural, para as industrias criativas e
culturais, para a atractividade das cidades ou para a
imagem externa de um país que se quer cultural e
artisticamente emancipado.

Sejamos claros, é a cultura que favorece o turismo, e não


o contrário. Os turistas visitam museus em demanda dos
conteúdos culturais lá expostos, e não por haver meios

https://www.publico.pt/2019/12/07/culturaipsilon/opiniao/nova-confusiologia-orcamental-cultura-1896522 3/6
12/02/2020 A nova confusiologia orçamental para a Cultura | Opinião | PÚBLICO

de transporte com aquele destino. Exija-se assim mais


cuidado e respeito pela sustentabilidade da precária e
delicada contextura dos sistemas criativos.

Há que definitivamente considerar a dualidade


intrínseca ao tecido cultural das actuais sociedades,
porque se por um lado os ecossistemas culturais são per
se um elemento frágil no contexto das sociedades
neoliberais, tendo sido fortemente abalados pela crise
económica e financeira pós-2008. Por outro, a Cultura
não é um sector de nicho nem de menor dimensão e
impacto nas economias contemporâneas, equiparando-
se mesmo a sectores como a agricultura, a industria
alimentar ou o ramo automóvel.

Do ponto de vista financeiro, segundo informação da


DGAE, em 2016 o valor acrescentado bruto (VAB) da
economia da cultura atinge já os 3 mil milhões de euros
anuais, representando cerca de 3,6% do total nacional.
Assim, poderia o governo pensar de forma inversa,
investindo mais no tecido cultural e criativo através da
receita geral do OE no POC, relativizando as fontes de
financiamento externas e as receitas variáveis do
contributo dos outros sectores para o OE da cultura, pois
isso enfraquece o papel central da cultura na sociedade e
na economia.

Se a produção artística, criativa e cultural já contribui


com 3,6% para o PIB nacional, mais razão há para que se
continue a expandir o investimento próprio do Estado na
criação de melhores condições para o desenvolvimento
cultural sustentável e para a vitalidade cultural dos
territórios. Fazer com que o financiamento orçamental
da cultura fique dependente do contributo discricionário
de outros serviços da administração pública e
financiamentos externos, talvez não seja a melhor
maneira de favorecer o contributo da artes e da cultura
para a economia da criatividade, nem de defender a
cultura como um direito fundamental dos direitos
humanos.

O apoio às artes
A reactividade crónica a cada saída dos resultados
provisórios dos concursos de apoios às artes (Dgartes)
evidencia cada vez mais uma retórica esgotada e sem
saída. Partidos na oposição e agentes culturais reprovam
o resultado dos apoios listando as entidades elegíveis
(com uma avaliação igual ou superior a 60%) que não
receberam apoio, apelando a uma resolução do problema
por via da intervenção directa do governo – ou seja,
anulando a legitimidade democrática e o dever cívico das
comissões de apreciação - como se houvesse alguma
racionalidade possível em defender-se isso. Não se
conhece nenhum concurso em que os candidatos pré-
seleccionados como elegíveis tenham garantias

https://www.publico.pt/2019/12/07/culturaipsilon/opiniao/nova-confusiologia-orcamental-cultura-1896522 4/6
12/02/2020 A nova confusiologia orçamental para a Cultura | Opinião | PÚBLICO

automáticas de financiamento. Em qualquer concurso


existem no mínimo três fases ou categorias, por esta
ordem: os candidatos, os seleccionados (elegíveis) e os
admitidos (apoiados).

Na Cultura acha-se que todas as entidades consideradas


elegíveis pelos júris dos concursos têm de ser
automaticamente apoiadas. Seria óptimo na perspectiva
de um financiamento público sem fundo à vista, mas
quanto é que custaria apoiar todas as actuais entidades
elegíveis (em 2019?), e em 2020, 21,22 quando forem
cada vez mais as entidades elegíveis? O PCP queixa-se da
verba que é “pouca”, mas foi o mesmo PCP –
acompanhado pelos agentes culturais - quem propôs a
verba de 25 milhões como a necessária para o apoio as
artes em 2018. Este mesmo montante foi efectivamente
inscrito no orçamento da DGartes em 2019. Mas quanto
deve ser afinal o orçamento do financiamento anual dos
apoios às estruturas culturais? Vai crescendo
progressivamente sem limite orçamental? Pretendem
um novo modelo depois de dois anos de debates,
consultas públicas e grupos de trabalho especializados.
Apesar da participação sistemática e aberta, diz-se que
este modelo também não serve. Que novo modelo então?

Dito isto, importa reconhecer que de facto os programas


de apoios da Dgartes deveriam ter já afectados, tal como
inscrito no seu Plano de Actividades/2019, mais de 27
milhões de euros aos apoios. Contudo, tal como acontece
noutros sectores importantes para o bem estar social
(saúde, educação, entre outros), a austeridade
económica das cativações do super-ministro Mário
Centeno sobrepõe-se às necessidades concretas dos
portugueses num contexto de precariedade laboral
alargada.

Para além da espuma dos dias, existe a necessidade


concreta de se repensarem os modelos de financiamento
dos apoios à artes após a entrada em vigor da designada
descentralização cultural - ou municipalização da
cultura, pois, julgamos nós, não haver razões para se
continuar a reclamar exclusivamente do proteccionismo
do Estado Central, até porque o contributo financeiro
dos municípios para a cultura equivale a cerca do dobro
do OE para a Cultura.

Consequentemente, é cada vez mais oportuno que os


agentes culturais – e a sociedade civil, em geral –
questionem se existem os mesmos desígnios
estratégicos, focados no desenvolvimento estrutural dos
sectores culturais e criativos, em cada um dos
municípios. E, nesse contexto haveria que exigir com
dupla veemência aos poderes públicos de proximidade

https://www.publico.pt/2019/12/07/culturaipsilon/opiniao/nova-confusiologia-orcamental-cultura-1896522 5/6
12/02/2020 A nova confusiologia orçamental para a Cultura | Opinião | PÚBLICO

(autarquias) a sua quota parte de responsabilidade no


apoio legitimo às artes, através de concursos
transparentes, idóneos, isentos e democráticos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Docente na Escola Superior de Teatro e Cinema

Assinar o Público é participar numa


comunidade que decide melhor
O PÚBLICO tem consolidado a sua posição como o jornal mais
importante do país. Todos os meses passam pelo nosso online
mais de 6,5 milhões de visitantes. Mas não é só a quantidade, é
a qualidade de quem nos lê e de quem aqui escreve que
tornam o PÚBLICO a referência que é. Somos o eixo de uma
comunidade que quer saber para onde vai e quer poder
escolher, em liberdade, o caminho a seguir. Para isso, quem nos
lê conta com o nosso jornalismo independente, com a opinião
conceituada dos nossos cronistas, a análise profunda dos
especialistas e os pontos de vista singulares de cada leitor. Tudo
junto, permite a cada um a visão alargada do mundo, em que se
alicerçam as melhores decisões.

Ajude esta comunidade a crescer. Pense bem, pense Público

ASSINE JÁ

TÓPICOS
CULTURA-ÍPSILON OPINIÃO CULTURA POLÍTICA CULTURAL

GOVERNO ORÇAMENTO DO ESTADO PS

PUB

https://www.publico.pt/2019/12/07/culturaipsilon/opiniao/nova-confusiologia-orcamental-cultura-1896522 6/6

Você também pode gostar