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O Expresso recupera na íntegra um artigo de opinião escrito por Sophia de

Mello Breyner no semanário a 12 de julho de 1975. Foi publicado durante o IV


Governo Provisório e era dirigido ao então ministro da Comunicação Social,
Jorge Correia Jesuíno, que disse que as artes não eram favoráveis aos períodos
revolucionários. O artigo intitulava-se "A cultura é cara, a incultura é mais cara
ainda". Sophia foi trasladada para o Panteão esta quarta-feira.

1. A ARTE deve ser livre porque o ato de criação é em si um ato de liberdade. Mas
não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a
Arte não é livre o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e
estrutural unidade na liberdade. Onde o artista começa a não ser livre o povo
começa a ser colonizado e a justiça torna-se parcial, unidimensional e abstrata.
Se o ataque à liberdade cultural me preocupa tanto é porque a falta de liberdade
cultural é um sintoma e significa sempre opressão para um povo inteiro.

2. NÃO PENSO que exista uma arte para o povo. Existe sim uma arte para todos à
qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilitado através
dos meios de comunicação. Primeiro os "aedos" cantaram no palácio dos reis
gregos "o canto venerável e antigo". Era uma arte profundamente aristocrática.
Depois os rapsodos cantaram esse mesmo canto na praça pública. E Homero,
foi, como se disse, o educador da Grécia. Isto é: a cultura foi posta em comum. E
por isso os gregos inventaram a democracia. A política começa muito antes da
política.

Penso que nenhum socialismo real será possível se a cultura não foi posta em
comum. Quando o aedo, ou poeta medieval cantavam na praça o seu poema era
ouvido por todos, mesmo pelo analfabeto. E viajava por todo o país e de país em
país: por isso o mirandês canta Mirandolim-Marlbourg.

Depois a cultura fechou-se em livros e os analfabetos e os pobres foram


rejeitados. Tudo se tornou mais complexo e complexado. As comunidades foram
divididas e cada homem foi dividido dentro de si próprio. Será preciso um

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enorme paciente e múltiplo e obcecado esforço para construir o mundo de outra
maneira. E é preciso que nenhum dirigismo esmague esse esforço.

É evidente que no mundo atual encontramos a par da arte uma meta-arte. O


cubismo é uma meta pintura, uma pintura sobre a pintura. Arte e meta-arte
alimentam-se e inspiram-se mutuamente e penso que este é um dos caminhos,
uma das possibilidades. Foi a ler Proust e Rimbaud que aprendi a escrever para
crianças. O simplismo e o populismo nunca conduzirão a nada. Se João Cabral
de Melo é capaz de escrever uma obra como "Morte e Vida Severina" é porque é
capaz de escrever "Uma Faca só Lâmina". "Morte e Vida Severina" é um poema
que todos entendem, mas nele as imagens são tão precisas, e os versos tão
densos como em "Uma Faca só Lâmina".

Creio que o "poema para todos" é, dentro da cultura em que estamos, o poema
mais difícil de escrever. Creio que esse poema é necessário e por isso tenho
procurado encontrar um caminho para ele. Por isso em "Livro Sexto" invoquei

O canto para todos

Por todos entendido

Mas sei que esse poema não se programa. E por isso, já depois do 25 de abril
escrevi:

Um poema não se programa

Porém a disciplina

Sílaba por sílaba

O acompanha

Mas a disciplina do poema não é a da política.

O poema é disciplinado pela sua própria necessidade.

Nem o próprio artista se pode programar a si próprio. O Ministro da


Comunicação Social disse que os períodos revolucionários não eram propícios
às artes de vanguarda. Não podemos esquecer que também Hitler e Salazar não
se entendiam bem com a arte de vanguarda e que ambos a perseguiam. Um
verdadeiro período revolucionário está aberto a todas as formas de criação.

3. É EVIDENTE que há incoerência. As campanhas de dinamização são mais


políticas do que culturais. Fazem um doutrinamento político que deve ser feito
pelos partidos. Pois não há doutrinamento apartidário. Não há angelismo
político. Um doutrinamento político que se apresenta como apartidário é
necessariamente ambíguo.

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Vivemos no pluralismo. Mas não queremos viver na ambiguidade. Queremos
que o pluralismo seja nítido e declarado com clareza. Que todo aquele que
exerce uma atividade de doutrinamento político diga aos outros o partido a que
pertence ou que apoia.

Queremos uma revolução clara. Queremos a clareza e a coerência dessa clareza.


Este país tem neste momento uma intensa consciência da necessidade de
clareza.

A política é um capítulo da moral. O povo que somos votou conscientemente e


quer a política que escolheu. Queremos justiça social concreta mas sabemos que
essa justiça só se poderá construir na liberdade e na verdade.

Sabemos muito claramente o que não queremos. Não queremos a violência, não
queremos que a liberdade seja sofismada. Não queremos nem inquisições nem
perseguições. Não queremos política da terra queimada. Não queremos política
imposta. E no plano da cultura queremos acima de tudo que a política não seja
anti-cultura.

A demagogia é a traição cultural da revolução. Porque a demagogia é a arte de


ensinar um povo a não pensar. Um provérbio africano diz: Uma palavra que está
sempre na boca transforma-se em baba. Não queremos continuar a suportar a
baba dos slogans.

Querer fazer política cultural quando os meios de comunicação estão inundados


de demagogia é uma incoerência radical. O ministro da comunicação referiu-se
ao facto de o trabalho dos artistas ser agora pago pelo povo. Também muitos
jornais são agora pagos pelo povo e todos os dias custam ao povo uma despesa
escandalosa.

A cultura é cara. A incultura acaba sempre por sair mais cara. E a


demagogia custa sempre caríssimo."

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