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Em publicação da escamandro de 31/08/2019, que diz: Gostaríamos de agradecer a Leonardo Gandolfi, que escavou
esta fala de 1975 de Sophia de Mello Breyner Andresen, e a Tarso de Melo que nos apresentou, além de dar as
devidas graças a Claudia Abeling, que fez a gentileza imensa de transcrever todo o texto a partir da seguinte
referência: In: Sophia de Mello Breyser Andresen. O nome das coisas. Lisboa: Moraes, 1977. 1ª ed.
Poesia e revolução
O amor positivo da vida busca a inteireza. Porque busca a inteireza do homem a poesia
numa sociedade como aquela em que vivemos é necessariamente revolucionária — é o
não-aceitar fundamental. A poesia nunca disse a ninguém que tivesse paciência.
O poema não explica implica. O poema não explica o rio ou a praia: diz-me que a minha
vida está implicada no rio ou na praia. Como diz Pascoaes:
É a poesia que me implica, que me faz ser no estar e me faz estar no ser. É a poesia que
torna inteiro o meu estar na terra. E porque é a mais funda implicação do homem no
real, a poesia é necessariamente política e fundamento da política.
Pois a poesia busca o verdadeiro estar do homem na terra e não pode por isso alheiar-se
dessa forma do estar na terra que a política é. Assim como busca a relação verdadeira do
homem com a árvore ou com o rio, o poeta busca a relação verdadeira com os outros
homens. Isto o obriga a buscar o que é justo, isto o implica naquela busca de justiça que
a política é.
“Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir”, disse Fernando Pessoa
que aqui, no extremo ocidente, percorreu até seus últimos confins os mapas da divisão e
letra por letra os disse.
E caminhar para a frente é emergir da divisão. É rejeitar a cultura que divide, que nos
separa de nós próprios, dos outros e da vida.
Sabemos que a vida não é uma coisa e a poesia outra. Sabemos que a política não é uma
coisa e a poesia outra.
Por isso rejeitamos o uso burguês da cultura que separa o cérebro da mão. Que separa o
trabalhador intelectual do trabalhador manual. Que separa o homem de si próprio, dos
outros e da vida.
É a poesia que desaliena, que funda a desalienação, que estabelece a relação inteira do
homem consigo próprio, com os outros, e com a vida, com o mundo e com as coisas. E
onde não existir essa relação primordial limpa e justa, essa busca de uma relação limpa
e justa, essa verdade das coisas, nunca a revolução será real.
Pois é a poesia que funda. Por isso Hölderlin disse: “Aquilo que permanece os poetas o
fundam”.
Compete à poesia, que é por sua natureza liberdade e libertação inspirar e profetizar
todos os caminhos da desalienação.
E quando a palavra da poesia não convier à política, é a política que deve ser corrigida.
Por isso é da verdade e da essência da revolução que sempre a poesia possa criar
livremente seu caminho.
E é muito importante que se compreenda claramente que a arte não é luxo nem adorno.
A história mostra-nos que o homem paleolítico pintou as paredes das cavernas antes de
sabe cozer o barro, antes de saber lavrar a terra. Pintou para viver. Porque não somos
apenas animais acossados na luta pela sobrevivência.
E se a política deve desalienar a nossa vida política e a nossa vida econômica, é a poesia
que desaliena nossa consciência.
Porque propõe ao homem a verdade e a inteireza do seu estar na terra toda a poesia é
revolucionária.
Por isso a forma mais eficaz que o poeta tem de ajudar uma revolução é ser fiel à sua
poesia. Escrever má poesia dizendo que se está a escrever para o povo, é apenas uma
nova forma de explorar o povo.
Quem está realmente empenhado num país melhor e numa sociedade melhor, luta pela
verdade da cultura. Aquele que é conivente da mediocridade é inimigo de uma
sociedade melhor, mesmo que apregoe grandes princípios revolucionários. A revolução
da qualidade é radicalmente necessária a uma revolução real.
Não é por acaso nem por uma particularidade do seu temperamento que Mao Tsé-Tung
é poeta. Não é por acaso que Marx e Trotsky amaram a poesia. A poesia é primordial e
anterior à política. Por isso nenhum político por mais puro que seja o seu projeto pode
programar uma poética.
Mas nenhuma revolução será real se a poesia não lhe for fundamento e não permanecer
sua irmã.
Mas da participação na revolução do escritor, cada escritor deve decidir por si. Cada um
pode propor o seu caminho ou sua hipótese aos outros sem que ninguém seja obrigado a
segui-lo. No entanto, há alguns princípios que me parecem objetivamente intrínsecos à
condição do escritor. Esses princípios são:
— Lutar contra a demagogia que é a degradação da palavra. Como disse Malarmé “dar
um sentido mais puro às palavras da tribu” é uma missão do poeta.
— Lutar contra os slogans. Um provérbio Burundi diz: “Uma palavra que está sempre
na boca transforma-se em baba”.
— O escritor como todo homem consciente deve exercer uma ação crítica. E deve lutar
por um ambiente em que a crítica seja possível. Assim, neste momento o escritor deve
lutar por um ambiente são — isto é por um ambiente onde aquele que critica não seja
acusado de reação ou de fascismo.
— Lutar contra a promoção do medíocre. Lutar desde já, imediatamente, por uma
revolução de qualidade. E, porque queremos que a cultura seja posta em comum, lutar
pela revolução da qualidade em todos os meios de comunicação social.
Na raiz da sociedade capitalista está o uso burguês da cultura que separa o homem de si
próprio, dos outros e da vida, que divide os homens em trabalhadores intelectuais e
trabalhadores manuais. Na raiz da sociedade capitalista está a cultura que divide.
Por isso, nenhum socialismo real poderá ser construído sem revolução cultural. Para que
o socialismo seja real é preciso que a cultura seja posta em comum.
A revolução não é a fase final de um processo de revolução socialista, mas sim um dos
seus fundamentos.
10 de maio de 1975