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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS


Curso: Ciências Sociais
Disciplina: Cultura, comunicação e sociedade
Professor: Rodrigo Czajka
Aluna: Ana Julia Vaz dos Santos
GRR: 20187026

O sujeito como processo social: uma análise do pensamento de Norbert Elias


na obra “Mozart: sociologia de um gênio’’

O livro “Mozart: sociologia de um gênio’’ de Norbert Elias é uma obra de


suma importância para as ciências humanas para se refletir acerca do indivíduo
como resultado de um processo social. Contrapondo-se a noção de indivíduo
construída pela filosofia ocidental - que via este como um sujeito abstrato,
a-histórico e completamente isolado da realidade social - a obra de Elias conversa
duas áreas: as Ciências Sociais e a Psicanálise trazendo a discussão o
materialismo histórico e as subjetividades de cada ser humano. Desta forma esta
breve resenha tem como objetivo elucidar como o autor desenvolve sua análise na
primeira parte do livro.

Mozart: o resultado de seu tempo

Elias durante todo o livro procura desenvolver uma análise sociológica sobre
a vida do artista mesmo quando retratada de modo cronológico como é feito na
primeira metade do livro. Hoje Wolfgang Amadeus Mozart, visto como gênio, isto é,
aquele que possui aptidão natural para algo, um dom. Na realidade é um produto de
seu tempo.
Como característica da época, era comum os ofícios serem passados de pais
para filhos, de modo que a música foi ensinada por seu pai Leopold Mozart desde
muito cedo em sua infância:
‘’Leopold Mozart tinha educado o filho para a carreira de músico numa
sociedade de corte. Lembremos que, do ponto de vista sociológico, seu
comportamento se encontrava bastante próximo da antiga tradição dos
ofícios artesanais. No interior de tal estrutura era comum o pai assumir o
papel de mestre e ensinar ao filho as artes do ofício, talvez até mesmo
desejando que algum dia o filho excedesse sua própria perícia.’’ (ELIAS,
1995, p. 26).

Aos quatro anos, Mozart era capaz, em muito pouco tempo, de aprender a
tocar peças musicais bastante complexas. Começou a compor aos cinco anos e aos
doze anos escreveu sua primeira ópera. De fato, são resultados impressionantes,
mas Elias nos mostra em sua obra que as incontáveis horas de estudos musicais
foram fatores determinantes para seu desenvolvimento também enquanto artista.
Com uma rígida educação musical, Mozart adquiriu o conhecimento de
línguas e culturas, através dos esforços do pai. O pai primeiro buscou educar seu
entendimento musical segundo as tradições da época. Em suas viagens, Mozart
ganhou um conhecimento muito mais amplo da vida musical da época, por
intermédio destas, conheceu o trabalho dos grandes nomes da música das cidades
por onde esteve e conheceu pessoalmente muitos dos compositores.

“Com frequência nos deparamos com a ideia de que a maturação do talento


de um ‘’gênio’’ é um processo autônomo, ‘’interior’’, que acontece de modo
mais ou menos isolado do destino humano do indivíduo em questão.”
(ELIAS, 1995, p. 53).

‘’Ao falar de Mozart logo nos pegamos usando expressões como “gênio
inato‟, ou “capacidade congênita de compor‟; mas tais expressões são ditas
sem pensar. [...] É simplesmente impossível para uma pessoa ter uma
propensão natural, geneticamente enraizada, de fazer algo tão artificial como
a música de Mozart.’’ (ELIAS, 1995, p. 58).

Não é dessa forma que o gênio é compreendido pelo autor, e para que um
indivíduo seja chamado de gênio, a educação e o meio ocuparão um papel
essencial. De modo que, a ideia de genialidade torna-se neste contexto um
argumento simplificador para a técnica sob o instrumento e a composição
apreendidas e desenvolvidas ao longo de toda a sua trajetória. Mozart é um gênio
justamente por ser a síntese das mudanças culturais que se transmutam na forma
do compositor.

Uma sociedade em transição: estruturas e subjetividade

Mozart nasceu em um período de transição na dinâmica do conflito entre os


padrões de classes mais antigas, em decadência, a sociedade absolutista e as de
outras, mais novas, em ascensão, a burguesia. E este é o grande movimento que
organiza sua própria obra, a sua própria vida.
O conflito não acontecia apenas no campo social mais amplo, entre os
valores e ideais das classes aristocráticas da corte e os dos estratos burgueses;
Elias ressalta que esse conflito ocorria também no interior dos indivíduos, inclusive
do próprio Mozart. Se por um lado o status quo da época caracterizava e dava
espaço aos músicos em um trabalho desvalorizado na corte como qualquer outro
trabalhador comum (trabalhos sob demanda e criações musicais sob demanda), por
outro lado, estava em ascensão uma maior procura por músicos entre a burguesia
(que também estava buscando construir sua própria “cultura’’ com uma série de
elementos fundamentais para a criação de sua imagem) que também “abraça’’ a
música oferecendo em teoria maior liberdade e autonomia aos músicos.

“Mozart viveu a ambivalência fundamental do artista burguês na sociedade


de corte, que pode ser resumida na seguinte dicotomia: identificação com a
nobreza da corte e seu gosto; ressentimento pela humilhação que ela lhe
impunha.’’ (ELIAS, 1995, p. 24).’’

Neste sentido, podemos perceber o viés psicanalítico na obra de Elias


quando este defende que não apenas somos o resultado do meio em que vivemos,
mas também, nossas subjetividades impactam a cultura e a forma como a vemos.
Em uma época de transição, em Mozart surgiram concepções diferentes da função
social do músico, uma delas firmemente estabelecida, outra que até então ainda
não tivera seu devido lugar. Era, portanto, também um conflito entre dois tipos de
música, um dos quais, a música artesanal da corte, correspondia à ordem social
predominante, enquanto o outro, a do artista autônomo, entrava em contradição
com ela. Além da transição entre relações de músicos e contratantes e mudanças
nas músicas em si, como o início da projeção do indivíduo na orquestra através das
sonatas, formas fechadas e afins.
Mozart gostaria de ser valorizado e rompeu com a situação tentando viver
como músico autônomo em Viena. Este é um ponto que gostaria de chamar a
atenção na obra de Elias acerca de seu pensamento: se por um lado, estamos
imersos em estruturas sociais e nossas visões de mundo reproduzem a própria
estrutura, por outro lado, elas não são fixas pois dentro da estrutura estão os
indivíduos que através de suas subjetividades impactam a cultura e a forma como a
vemos e a superando quando necessário, como foi o caso de Mozart, mesmo
acostumado com a tradição achou em si motivos para superar esta estrutura.
Elias destaca o posicionamento de um artista em um movimento de
transição: tenta se estabelecer como um artista autônomo e capacidade criativa que
nenhum ser humano pode cercear abrindo-se para um público burguês e deixando
de pertencer à corte.
“Depois de Paris, parece ter tido cada vez mais a impressão de que não era
apenas esta ou aquela corte aristocrática que o irritava e humilhava, mas
que todo o mundo social em que vivia estava, de alguma maneira, errado.’’
(ELIAS, 1995, p. 25).

“A decisão de Mozart de largar o emprego em Salzburgo significou, na


verdade, o seguinte: ao invés de ser o empregado permanente de um
patrono, ele desejava ganhar a vida, daí por diante, como "artista autônomo",
vendendo seu talento como músico e suas obras no mercado livre.’’ (ELIAS,
1995, p. 32).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta breve resenha, procurei mostrar um pouco do pensamento de Norbert


Elias na obra “Mozart: sociologia de um gênio’’. Como visto, Elias propõe, no texto,
discutir o tipo de sociedade e época que configuraram a vida e as músicas
produzidas por Mozart no século XVIII.
Outro aspecto de sua obra é que o autor busca abordar a relação entre
indivíduo e sociedade: segundo ele há uma dinâmica de interação entre eles
mostrado através do conflito entre questões sociais e subjetivas além deste traçar
uma relação entre as Ciências Sociais e a Psicanálise.
Na perspectiva do autor, o individual e o social, antes de serem dimensões da
vida em polos opostos, se complementam através de tensões oriundas, como
exemplo, de uma sociedade capaz de produzir artistas, porém sem condições de
acolhê-los. Cabe ressaltar como os indivíduos se encontram ligados por redes de
interdependência (ELIAS, 2001), as quais limitam sua liberdade de ação e de
escolha, como fora na época de Mozart. Porém, o ponto fundamental é que, no
pensamento de Elias é marcante a perspectiva de processos sociais que
engendram nos sujeitos e em sua subjetividade uma capacidade de adaptar-se às
estruturas sociais e superá-las quando necessário. Moldando a forma como vemos
a cultura e sendo esta um processo social.
Embora tenha morrido pensando que toda a sua existência foi em vão,
Mozart tem seu nome marcado na história. O artista é um exemplo clássico das
transformações sociais que estavam acontecendo no século XVIII e isto guiou sua
obra e sua vida. Por fim, sua genialidade foi o resultado de seu meio e de sua
educação, como mostrou o autor e não de uma característica inata.

BIBLIOGRAFIA

ELIAS, N. Mozart: sociologia de um gênio. Organizado por Michael Schröter.


Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora Ltda, 1995.

_____. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da


aristocracia de Corte. Tradução de Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor Ltda, 2001.

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