Você está na página 1de 13

ANTICLERICALISMO E A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL N’O CRIME DO PADRE

AMARO

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO

GAETE, Victor S.Gamarra1


RESUMO

O presente artigo revela o posicionamento da obra ​O Crime do Padre Amaro ​(1875) ​de Eça de
Queirós no que tange à Igreja e sua relação com o Estado português do final do século XIX. Tomando
as personagens como típicas e representantes de uma classe, conforme as pesquisas de Gallo (2012 e
2017) a respeito da teoria de Georg Lukács, o conflito das personagens serve como argumento para as
críticas tecidas na obra de Queirós, sobretudo em sua visão anticlericalista e de transformação social.
Palavras-chave: ​O Crime do Padre Amaro; ​Eça de Queirós; anticlericalismo.

ABSTRACT

The present paper reveals the stance of the work ​O Crime do Padre Amaro (1875) ​by Eça de
Queirós on what concerns the Church and its connection to the portuguese State in the late
19th century. Taking the characters as typical and representing a social class, according to
Gallo’s (2012 and 2017) research about Georg Lukács theory, the conflict of the characters
suit the arguments for the critics made by Queirós in his work, overall his anticlericalistic and
societal transformation visions.
Keywords: ​O Crime do Padre Amaro; ​Eça de Queirós; anticlericalism.

1
Licenciando em Letras-Português pelo IFSP - Câmpus São Paulo; victorgaetecontato@gmail.com
INTRODUÇÃO

Moisés (1967, p.239-240) afirma que sempre houveram atitudes realistas na arte, mas
que os autores do Realismo focaram-se em imagens cruas das realidades baseado num
programa estético que pressupunha o vínculo entre Arte, Ciência e Filosofia: “Pregavam e
procuravam realizar a filosofia da objetividade: o que interessa é o objeto, isto é, aquilo que
está fora de nós, diante de nós, o ​não-eu​.” (MOISÉS, 1967, p.240). Assim, a realidade é o
real sensível - ​e ​a realidade psicofisiológica é encarada como objeto passível de análise. No
campo político, “A obra literária passou a ser considerada utensílio, arma de combate, de
reforma e ação social.” (MOISÉS, 1967, p.241), ou seja, a arte Realista é engajada e não
desinteressada e egocêntrica como no Romantismo. Além disso, se não for revolucionária e
panfletária, a obra literária é como a comprovação de uma tese científica, poderoso espelho
da vida humana. De sorte que tem por objetivo “(...) mostrar o mal sem lhe dar remédio,
salvo o que ia implícito na análise: alijar a classe burguesa da hegemonia social.” (MOISÉS,
1967, p.242).
O Crime do Padre Amaro ​de Eça de Queirós ([1880] 1997) apresenta a vida da
personagem que dá nome à obra, explorando sua realidade psicofisiológica em vias de expor
a realidade do clericato português do final do século XIX, este alinhado à monarquia e
burguesia dominantes de então. Segundo Moisés (1967, p.241), os autores realistas
portugueses deste período eram republicanos e com frequência socialistas, tomando teorias
deterministas e científicas para interpretação do mundo: “(...) antimonárquicos, antiburgueses
e anticlericais, diametralmente opostos às crenças ideológicas em voga no Romantismo.”, de
modo que a obra de Queirós (1997) serve como instrumento de transformação social. Estas
características corroboram a estética proposta e almejada por Georg Lukács em ​O Romance
como epopeia burguesa​ de 1935.
Segundo Renata Gallo (2012), Lukács postula que o pressuposto da forma romanesca
é a representação das contradições que nascem no interior da vida burguesa, e que os grandes
autores realistas, como Balzac, Tolstoi, Stendhal e Dickens foram capazes de representar
essas contradições através de narrativas predominantemente descritivas, “uma solução
encontrada para que pudessem os autores se posicionar como observadores e críticos diante
de uma sociedade burguesa que já havia se imposto.” (GALLO, 2017, p.102), e também
através de um destino individual típico, “um personagem típico” nas palavras da autora, que
revela concretamente as contradições da vida social dadas por razões materiais. Lukács vê no
realismo a melhor forma de se exibirem estas contradições no romance e defende esta estética
(cf. Frederico, 2015) uma vez que
Marx, ao estudar o fetichismo da mercadoria, mostrou que a
realidade no mundo capitalista aparece de forma invertida,
sugerindo que o sujeito da vida social é a mercadoria e não os
homens que a fizeram. Diante desse contexto desumanizado,
diz Lukács, a literatura que retrata o mundo dos homens precisa
romper com o fetichismo e conferir centralidade à ação dos
homens. (FREDERICO, 2015, p.113)

Deste modo, o realismo lukacsiano se relaciona sobretudo com uma ​representação


realista, s​ imilar ao que mais tarde em 1957 Ian Watt chamará de realismo formal em ​A
ascensão do romance ​(cf. Araújo, 2015), ou seja, “a acepção de realismo lukacsiana não se
restringe a uma escola literária, a qual estaria datada no tempo, mas abarca toda a grande arte,
como Homero, Shakespeare (...)” (GALLO, 2012, p.213), de modo que a realidade é para
Lukács tal como aparece em nosso senso-percepção (cf. Frederico, 2015, p.112):
O realismo é um modo de representação do mundo na arte que
busca representar de modo fiel o processo de vida real, ou seja,
é uma arte à serviço da verdade, de modo que a sua leitura e
análise oferecem ao leitor um meio de conhecimento da
realidade objetiva tanto pela sua forma quanto por seu objeto
de representação. (GALLO, 2012, p.213)

Destarte, ​O Crime do Padre Amaro é aqui analisado enquanto arma de combate, de


reforma e ação social, como nas palavras de Moisés (1967), sobretudo no que tange ao
anticlericalismo, e conforme aos pressupostos de Lukács, uma vez que a narrativa é
predominantemente descritiva, e o protagonista da obra e outras personagens representam
“personagens típicas” em vias de criticar a relação entre a Igreja, o Estado e os cidadãos de
Portugal do final do século XIX.

A CRÍTICA DE EÇA DE QUEIRÓS

Eça de Queirós organizou junto de Antero de Quental, Teófilo Braga e outros as


Conferências do Casino, em que “(...) atribuiu a declarada e criticada decadência ao
colonialismo, à ação da Igreja Católica (através do Concílio de Trento) e ao absolutismo
régio” (MOTA, 2014, p.17). As conferências do Casino eram assumidamente liberais e
Republicanas e segundo Mota (2014, p.20), a revolução liberal não negou o papel da religião
na sociedade, mas questionou suas práticas. Assim, era natural que Eça de Queirós
representasse em uma de suas obras o mesmo posicionamento dos liberais portugueses que
“(...) questionavam a instituição e as práticas, não o catolicismo.” (MOTA, 2014, p.21). O
anticlericalismo de Eça não é necessariamente antirreligioso ou anticatólico, mas antes uma
atitude “crítica e reformista em relação a algumas práticas e devoções religiosas, a certas
instituições (...) e ao papel e valor do clero na sociedade portuguesa.” (MOTA, 2014, p.19
apud RIBEIRO, 1994, p.192).
Ressalta-se aqui que na segunda metade do século XIX o governo português passou
por diversas governanças com ideologias ora monarquistas ora liberais e republicanas, sendo
aquela atrelada à fé católica, e esta a um laicismo orientado por uma moral católica, o que
gerava uma relação contraditória entre o Estado português e a Igreja:
O Estado mantinha em seus textos constitucionais o
catolicismo como religião oficial; ao mesmo tempo em que
garantia os direitos e garantias do cidadão. Paradoxalmente, a
liberdade religiosa não era respeitada: aos princípios laicos
agregava-se a moral religiosa como fonte legitimadora do
poder público e reguladora das ações sociais. (MOTA, 2014,
p.21).

Essas contradições são as mesmas reveladas na personagem do padre Amaro, uma


figura que representa a fé católica em meio à realidade moderna que se instaurava em
Portugal, mas não representa a moral almejada pelos liberais a nortear a vida em sociedade e
a política - assim o narrador apresenta um homem imoral, que
Numa concepção determinista e evolucionista, destacam-se os
fatores educacionais, a hereditariedade e a influência do meio,
que resultam, por exemplo, num desenho do protagonista
Amaro, com melancolia e surtos de sensualidade, que, aliados a
um ambiente propício, determinam as suas futuras ações.
(MOTA, 2014, p.22)

Se o Romantismo procurava criar personagens revestidas de um caráter excepcional, a


personagem realista é a imersão do indivíduo na coletividade (cf. Roani, 2003, p.44), de
forma que o padre Amaro representa uma classe, sendo assim a personagem típica de Lukács
(cf. GALLO, 2012 e 2017), uma vez que
Em seus romances, Eça pretendeu recriar a sociedade
portuguesa tal qual ela se apresentava constitutivamente,
surpreendida no movimento de suas classes superpostas, cada
uma com sua ideologia e sentimentos peculiares. (ROANI,
2003, p.45).

Para compreender sua classe e as características que o fazem imoral no contexto


laico-católico-orientado dos liberais como Eça de Queirós, é preciso portanto examinar a vida
de Amaro. Após perder os pais, Amaro cai nas graças da marquesa de Alegros que,
tomando-o como agregado, planeja criá-lo para o sacerdócio. A mulher que lhe cuidava
morre e ele passa a viver com um tio. Querendo sair da casa do tio porque lhe desagradava,
vai para o seminário, aceitando passivamente o desejo da marquesa. Assim ele passa a
adolescência no seminário até ordenar-se padre. O jovem padre passa a ser pároco na cidade
de Leiria, no interior de Portugal, e lá conhece Amélia, por quem se apaixona e passa a ter
encontros secretos. A moça termina por engravidar, e Amaro determina que o bebê seja
abandonado, entregue para a morte, uma vez que Amaro não pode constituir uma família na
condição de padre, o que leva Amélia a deprimir-se e morrer. Sendo o destino individual das
personagens tomado como um objeto passível de análise e estruturante de uma tese, as ações
são explicadas pela materialidade e contexto sócio-histórico das personagens, servindo às
críticas tecidas por Eça com ênfase nos três pontos a seguir.
Em primeiro lugar, a formação dos rapazes que vêm a tornar-se padres. O
desenvolvimento sexual de Amaro é natural e inevitável como a todos os seres humanos
dentro de suas múltiplas expressões. Com a puberdade, Amaro passa a ter interesses sexuais
por mulheres, realidade esta que vive já dentro do seminário em sua adolescência:
Na sua cela havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas,
pousada sobre a esfera (...) Amaro voltava-se para ela como
para um refúgio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a
contemplar a litografia, esquecia a santidade da Virgem, via
apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava,
despindo-se olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua
curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da
imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca… (...)
mas não se atrevia a revelar estes delírios, no confessionário, ao
domingo. (QUEIRÓS, 1997, p.35)

Aqui o narrador apresenta o conflito entre a sexualidade da personagem e o processo


educativo do seminário - há uma repressão dos desejos institucionalizada, já que Amaro não
tem liberdade para revelar o que sente mesmo no confessionário. Apresenta-se assim uma
crítica à educação repressora dos seminaristas. A figura feminina é também oferecida a
Amaro de forma confusa:
E citando S. João de Damasco e S. Crisólogo, S. Cipriano e S.
Jerônimo, explicava os anátemas dos santos contra a Mulher, a
quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente,
Dardo, Filha da Mentira, Porta do Inferno, Cabeça do Crime,
Escorpião… (...) Até nos compêndios encontrava a
preocupação da Mulher! Que ser era esse, pois, que através de
toda a teologia ora era colocada sobre o altar como a Rainha da
Graça, ora amaldiçoada como apóstrofes bárbaras? (QUEIRÓS,
1997, p.36).

A própria cultura das instituições católicas apresenta a Mulher, com M maiúsculo


como o narrador exprime, como figura dúbia e pecaminosa, ainda que também ocupe o lugar
de pura e virginal, o que distancia-a da realidade complexa e plural de um ser humano, dois
extremos que funcionam como desserviço na relação de Amaro com o seu objeto de desejo.
Esta formação não justifica as ações que terá em relação a Amélia quando adulto na cidade de
Leiria, mas ao menos esclarece algumas de suas motivações e conflitos.
A personagem também revela-se infeliz com o voto de castidade:
Quando Amaro reflete sobre o voto de castidade, o considera
injusto. Pois ele priva o padre da satisfação mais natural do
mundo, aquela que até aos animais é dada. Põe em dúvida o
poder da Igreja em dizer: “Serás casto”, e cessar desta maneira
os desejos de um jovem. (ROANI, 2003, p.46)

O Crime do Padre Amaro ​poderia ser primeiramente lido como um romance centrado
no tema de castidade e os desejos de um padre por uma mulher, mas o anticlericalismo de
Eça de Queirós vai além desta temática largamente explorada na literatura. O problema não é
a questão da castidade, ou os valores promovidos pela igreja católica, mas a forma como
esses valores são apresentados, impostos, inculcados de forma sistemática na formação de
todos os portugueses, e com a finalidade apenas de mantenimento do sistema e do controle
por parte dessa instituição, como será explorado no terceiro ponto.
Assim, em segundo lugar, o que constrói a crítica de Eça e conforma como se dão os
fatos do enredo, é a venalidade do clero e a corrupção da igreja. Como exemplo, o cônego
Dias é uma espécie de mentor de Amaro na cidade de Leiria. Dias tem relações sexuais com
D. Joaneira, mãe de Amélia. A maior parte das personagens femininas da obra são beatas, e
D. Joaneira não é uma exceção, mas trava suas relações com Dias de forma sigilosa e
culpabiliza quem faria o mesmo que ela, uma vez que Dias se esforça para que jamais ela
descubra que a filha engravidou de Amaro. Estas relações demonstram como a sexualidade
pulsante dos sacerdotes não se restringe a Amaro, e tampouco os segredos e o sigilo. E
revelam que, dentro da Igreja, há uma rede de proteção e acobertamento de desvios e
corrupções.
Importante notar que este modo de vivenciar secreta e corruptamente a sexualidade
faz parte da igreja católica como instituição em Portugal, e se perpetua entre o clericato e os
fiéis de tal maneira que parece manter presas as pessoas nestes modos de relação entre si e
relação com o próprio desejo: “A Igreja (...) começa, quando a pobre criatura ainda nem tem
sequer consciência da vida, por lhe impor uma religião…”. (QUEIRÓS, 1997, p.334). A
personagem Amélia, por exemplo, têm pesadelos terríveis uma vez que engravida de Amaro,
sente-se culpada e pecaminosa: Nota-se
(...) que na sua construção é particularmente bem feito e
elaborado o seu sentimento de culpa. É uma personagem
dominada pelo meio em que vive e por ele é moralmente
moldada. (ROANI, 2003, p.48)

Assim, mesmo dispondo Amélia de algum livre-arbítrio, uma vez que pretere seu
pretendente João Eduardo a Amaro, é também vítima da ideologia da Igreja e do seu
aparelhamento, porque lhe foram ensinados e reforçados os valores de uma moral católica
que não reflete a realidade e oprime tanto aos sacerdotes como aos seus fiéis. E isto lhe é
imposto desde que nasce, como aponta a personagem do Abade Ferrão ao conversar com o
doutor Gouveia que realiza o parto de Amélia:
- Ó doutor, ainda que não seja senão por caridade com a sua
alma, devo adverti-lo que o sagrado Concílio de Trento, cânon
décimo terceiro, comina a pena de excomunhão contra todo o
que disser que o batismo é nulo, por ser imposto sem a
aceitação da razão. (QUEIRÓS, 1997, p.334)

Os homens e mulheres portugueses, antes de terem consciência da própria existência,


são batizados, inscritos nesta ideologia e “condenados”, como nas palavras da personagem do
doutor, a vivê-la, ainda que muitas vezes terminem por corrompê-la. E, como na educação de
Amaro, ou no contexto interiorano de Amélia, faz parte de todas as crenças compartilhadas
em sociedade. O doutor arremata:
- Mas quando se manifestam no pequeno [a criança] os
primeiros sintomas de razão, continuava o doutor, quando se
torna necessário que ele tenha, para o distinguir dos animais,
uma noção de si mesmo e do Universo, então entra-lhe a Igreja
em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente, que um
gaiato de seis anos que não sabe ainda o ​bê-a-bá tem uma
ciência mais vasta, mais certa, que as reais academias
combinadas de Londres, Berlim e Paris! O velhaco não hesita
um momento para dizer como se fez o Universo e os seus
sistemas planetários; como apareceu na Terra a criação; como
se sucederam as raças; como passaram as revoluções
geológicas do globo; como se formaram as línguas; como se
reinventou a escrita… Sabe tudo: possui completa e imutável a
regra para dirigir todas as ações e formar todos os juízos; tem
mesmo a certeza de todos os mistérios; ainda que seja míope
como uma toupeira vê o que se passa na profundidade dos céus
e no interior do globo; conhece, como se não tivesse feito senão
assistir a esse espetáculo, o que lhe há-de suceder depois de
morrer… Não problema que não decida… E quando a igreja
tem feito deste marmanjo uma tal maravilha de saber, manda-o
então aprender a ler… O que eu pergunto é: para quê?
(QUEIRÓS, 1997, p.335).

Como na pergunta da personagem, “para quê?” se dá o exposto acima? Há, então, em


terceiro lugar, a ​quem serve esta formação opressora de desejos e de corrupções veladas, e
este ​quem é​ o Estado monárquico, ao qual se rebela a obra. A conversa de Gouveia e Ferrão
parece decisiva para compreender este posicionamento, por isso aqui explana-se mais
minuciosamente. O doutor Gouveia responde à citação aqui replicada do abade, afirmando
que está “(...) acostumado a essas amabilidades do Concílio de Trento para comigo e outros
colegas…” (QUEIRÓS, 1997, p.334). Este comentário sarcástico denota a relação tensa que
existia entre a Igreja e os homens da razão, da Ciência, como é Gouveia. O abade fica
escandalizado com a postura do doutor, e este ainda replica ao outro com acidez: “Uma
assembléia sublime [o Concílio de Trento]. O Concílio de Trento e a Convenção foram as
duas mais prodigiosas assembléias de homens que a terra tem presenciado…” (QUEIRÓS,
1997, p.334). Aqui Gouveia refere-se à ​Convenção (​ 1792-1795) que aboliu a realeza na
França e fez executar Luís XVI. “O abade fez uma visagem de repugnância àquele cotejo
irreverente entre os santos autores da doutrina e os assassinos do bom rei Luís XVI.”
(QUEIRÓS, 1997, p.334). O “bom rei Luís” é sarcasticamente incluído na voz do narrador,
parte do elo psíquico que se faz entre o narrador e a personagem através do discurso
indireto-livre caro aos Realistas. Assim sendo, o abade, personagem típica que representa a
classe dos sacerdotes católicos, defende a monarquia. As práticas da igreja servem ao
mantenimento da monarquia, seja na França ou em Portugal, visto que a relação entre
monarcas e eclesiásticos é antiga, e ainda revela, ao apoiar Luís XVI, principal figura
antagonista à Revolução Francesa e seus ideais progressistas, que não há qualquer apoio a
revoluções. Ainda assim, a Igreja é uma instituição decadente, cujo final se aproxima. O
doutor Gouveia afirma ainda:
(...) A Igreja fora a Nação; hoje era uma minoria tolerada e
protegida pelo Estado. Dominara nos tribunais, nos conselhos
da Coroa, na fazenda, na armada, fazia a guerra e a paz; hoje
um deputado da maioria tinha mais poder que todo o clero do
reino. (...) (QUEIRÓS, 1997, p.338).

Comparando ao contexto francês, que já vivenciou a Revolução, Portugal parece viver


um conflito similar, de uma monarquia exploradora amarrada à Igreja e seu aparelhamento,
mas que não viverá as mesmas mudanças profundas que ocorreram na França. Hoje se sabe
que de fato não houve uma revolução como a francesa em Portugal, sem contar que mesmo a
França retornou a um estado ditatorial como o de Napoleão III, como se em Portugal
quaisquer mudanças levassem novamente à mesma e antiga estrutura de ordem e poder, o que
já é prenunciado por Eça ao fim da obra: Amaro encontra-se com o cônego Dias em Lisboa,
sua figura mestra, que lhe apresenta o conde de Ribamar, que critica as mudanças sociais
fruto dos movimentos políticos socialistas decorrentes em Paris. O cônego pergunta ao conde,
já nas duas últimas páginas do romance, conforme versão aqui estudada, quais serão os
resultados da situação francesa, ao que ele responde:
- Sufocada a insurreição, (...) dentro de três meses temos de
novo o império. (...) Temos pois Napoleão III: ou talvez ele
abdique, e a imperatriz tome a regência na menoridade do
príncipe imperial… Eu aconselharia antes, e já o fiz saber, que
era esta talvez a solução mais prudente. Como consequência
imediata temos o papa em Roma, outra vez senhor do poder
temporal… Eu, a falar a verdade, e já o fiz saber, não aprovo
uma restauração papal. Mas eu não estou aqui a dizer o que
aprovo, ou o que reprovo. (...) Dizia eu…? Ah! a imperatriz no
trono de França, Pio Nono no trono de Roma, aí temos a
democracia esmagada entre estas duas forças sublimes, e
creiam vossas senhorias um homem que conhece a sua Europa
e os elementos de que se compõe a sociedade moderna, creiam
que depois deste exemplo da Comuna [de Paris] não se torna a
ouvir falar de república, nem de questão social, nem de povo,
nestes cem anos mais chegados!...
- Deus Nosso Senhor o ouça, senhor conde, fez com unção o
cônego. (QUEIRÓS, 1997, p.357).

O conde claramente apresenta um conformismo em relação ao mundo e suas esferas


de poder, ainda que a elas seja contrárias. E o cônego concorda, as mudanças não ocorrem e
tampouco ocorrerão. O conde depois ainda afirma a ambos: “- A verdade (...) é que os
estrangeiros invejam-nos (...) enquanto neste país houver sacerdotes respeitáveis como vossas
senhorias, Portugal há de manter com dignidade o seu lugar na Europa! Porque a fé, meus
senhores, é a base da ordem!” (QUEIRÓS,1997, p.358). Estas figuras, o conde, Amaro e o
cônego Dias, mais uma vez tomadas em sua tipicidade, representam estas classes que não
anseiam transformações sociais e confiam em sua permanência.
O encerramento da obra com a “vitória” destas figuras, considerando que Amaro não
sofreu qualquer tipo de punição por parte das instâncias eclesiásticas ou da comunidade em
que estava inserido em Leiria, e deste conde que detém capital e poder, mas não se opõe às
bases materiais em que está assentada a sociedade portuguesa, ainda que haja desigualdades e
contradição bem à sua frente (como na descrição de Lisboa: “(...) onde brilhavam três
tabuletas de casas de penhores, negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam,
com um tom sujo de esgoto aberto, as vielas de todo um bairro de prostituição e de crime.”
(QUEIRÓS, 1997, p.358)), revela a indiferença com que lidam essas classes com o
sofrimento de outrem, daqueles que são oprimidos por instituições como a Igreja, e que, no
caso de Amaro, considerando a sua juventude e formação opressora de seu desejo, são alheios
ao próprio sofrimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os três pontos analisados ao mesmo tempo comprovam uma tese e criticam uma
situação de conflito. ​O Crime do Padre Amaro apresenta como e de certa forma porque a
sociedade portuguesa está tão atrelada à Igreja católica e seu poderio. Como analisado no
primeiro ponto, a soberania da verdade católica se faz desde o nascimento do cidadãos, e se
perpetua ao longo da vida, comprimindo possibilidades de livre-arbítrio, o que não impede de
fazerem-se atos imorais dentro do contexto religioso. O que leva ao segundo ponto, a
corrupção é inevitável para mantenimento desses valores, porque ocultam-se os atos que
desviam a moral da Igreja. Aí estão as características anticlericais da obra, uma vez que o
narrador, como nos excertos aqui analisados, demonstra os sofrimentos de que padecem tanto
os sacerdotes como os fiéis decorrentes dessas contradições. Por fim, o terceiro ponto
analisado destrinchou o posicionamento da obra no que tange à relação da Igreja com o
​ antém-se essa relação contraditória dentro de Portugal. E
Estado, uma resposta do ​para quê m
a resposta é dada por várias personagens - porque não há objetivo de transformação social em
Portugal, não há esforços por parte das elites em mudar a situação em que se encontra o país.
As personagens típicas e o descritivismo serviram a expor estas contradições internas,
como proposto por Lukács (cf. Gallo, 2012). A obra não oferece uma solução a estes
problemas, mas revela que há um sofrimento ignorado por parte daqueles que detêm o poder
naquele momento histórico, e revela de forma crua a situação insolúvel e imutável em que
encontram-se as instituições que exercem dominação em Portugal na segunda metade do
século XIX.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Nabil. O postulado do “realismo formal” no Brasil: da tautologia nacional à


profissão de fé. ​O eixo e a roda​. Universidade Federal de Minas Gerais, v. 24, n.2, 2015.

FREDERICO, Celso. Lukács e a defesa do realismo. ​Cerrados. ​Universidade Nacional de


Brasília, n.39., 2015.

GALLO, Renata Altenfelder Garcia. ​“A teoria do romance” e “O romance como epopeia
burguesa”: ​um estudo comparado da concepção de Romance em Georg Lukács. 2012.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da
Linguagem, 2012.

____________________________. Um estudo acerca da concepção de realismo de Georg


Lukács na obra “O pai Goriot” de Balzac. ​Alere. ​Universidade do Estado do Matro Grosso,
v.15, n.1, 2017.

MOTA, Aline Leal. ​Anticlericalismo em mutação: ​as três versões de “O Crime do Padre
Amaro” (1875-1876-1880), de Eça de Queirós. 2014. Dissertação (mestrado) - Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, 2014.

QUEIRÓS, Eça de. ​O Crime do Padre Amaro. ​São Paulo: Ática, 10.ed., 1997.
ROANI, Gerson Luiz. Eça de Queirós e a criação de um homem imoral. ​Revista Língua e
Literatura. ​Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, v.5, n.8 e 9,
2003.
AUTOAVALIAÇÃO

Literatura Portuguesa IV Prof. Dr. Charles Borges Casemiro


Victor S. G. Gaete SP3005411
Nota atribuída: 2,5

Justificativa: Atribuo a nota 2,5 considerando, frente ao contexto de ensino remoto, o melhor
aproveitamento da disciplina, tanto nas aulas anteriores à suspensão das aulas, bem como nas
aulas expositivas síncronas em que o professor abordou obras e autores do Realismo e
Naturalismo portugueses. A partir do proposto em aula, com registros feitos em meu caderno,
parti para a produção do artigo acadêmico em que, articulado a teorias previamente estudadas
no fichamento e alinhadas à bibliografia básica do curso, consegui criar um material
consistente de consulta e análise da escola literária estudada que me ajudarão em minha
carreira como docente e pesquisador. As dificuldades do ensino remoto são inúmeras e sinto
que fui capaz de, dentro das limitações e desafios impostos pela situação, aproveitar a
disciplina. Agradeço ao professor e à instituição pelos esforços.

Você também pode gostar