Você está na página 1de 15
O PARADOXO DO HOMO SACER: ENTRE O ABANDONO E O BANDO Georgia Amitrano Resumo: Neste artigo, analiso 0 modo pelo qual o homo sazer contemporiineo nos eoloca diante de uma estrutura dupla: a de abandona © a de hands, Esse conecito hibrido, cujo cere se dé na inelusio de alguns individuos em um Estado, evidencia-se em face de uma necessatia analogia entre a sua pertenga © a sua exclusio. A partir do olhar que nos é dado por pensadores diferenciados, em especial o de Giorgio Agamben, minha andlise se propde discutir a estrcita ¢ forgosa relagio paradoxal a que o Homo sacer de hoje se encontea i. é, sua situagio indiscerivel, que o leva a uma ‘zona de indeterminacio’ ou “zona andmica’ em face de um Estado de Fxcogio. Palavras-Chave: Homo sac — abandono/bando — paradoxo — condi¢ao humana. A mera da maior parte dos bomens 6 como som eomitiia atbandonado, onde jazem, sem bonras, ax mortos que eles deiscaram de amar, Teds a dor prolongada insula o sen exquecimente, Marguerite Yourcenar Diante de virios debates que cireundam 0 cenirio politico do século XXI, algumas questdes ainda parecem abertas, como fetidas nfo cicatrizadas desde a Segunda Grande Guerra, dentre clas as discussdes que se voltam as relagdes entre homem, dircito, soberania ¢ validade da vida. Fim outras palavras, entre aspectos gue circundam o Dircito QS E inequivoco que uma andlise acerca dessa validade nfo & fato recente € nio se circunsereve unicamente a0 pensamento do século XX para cé; contudo é com o advento do Nazismo e do Stalinismo que o debate se acitra e as anilises filoséficas quanto 4 politica e seus aspectos engendrados nas esferas do poder € da vida ganham novos contornos € passim a clamar por novos conceitos. E, nesse ambito que o homem pas minimizar sua condigio, ¢ isso diante de um mundo que se enaltece enquanto civilizacio de a conhecer 0 que mais pode Coteros oie FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa 8: jigualdade ¢ identidade se encontra alicercado em conceitos filoséficos que se respaldam no juridico e no cientifico. Ora, 8 luz de um mundo respaidado pelo jutidico ¢ pelo cientifico, observamos certa vulnerabilidade no que diz respeito ao conceito de homem. Melhor dizendo, 0 discurso gendrado desde 0 século XIX — ‘Tal definigio, obviamente, € problemitica ¢ alguns autores propdem distinguir_o conceito de vulnerabilidade do conceito de suscetibilidade ou vulneracao*, Afin: De todo modo, embora potencialmente ou vi todos 0s individuos sio vulnerados concrctamente. A vista disso, é imperativo distinguir ‘a mera vulnerabilidade da efetiva vulneracio’. Ora, tal deslocamento — a situagio de assimetria encontrada— nos obriga a um olhar mais cauteloso acerca das nodes igualdade e justica no mundo contemporine B aqui, neste /icus de anomia, nesta zon Racio, que o discurso acerca do Homo Sacer, do Estado de Excepao e das relagdes de exclusio ¢ campo se solidifica. FE aqui que pensadores como Agamben e Foucault emergem como aqueles que abrem caminho para uma problematizagio efetiva sobre 0 féeur do homem e © conceito de homem na pills contemporinea, Afinal, uma vuln concretos nos coloca diante do fato 1 MACKLIN, Bieta, snerabilidadee preted, pp. 59-70. 2 Como Kortow ou Schramm, por exemplo, que atuam mais precisamente nos discursos acerca da bioética Coteros de ice a FhssfaPelea | Nimo 23 | Papa 9 homo sacer proposto por Agamben, assim, aparece como um conceito que tes ser cuja vida nada wale, uma vida mativel. O homo sacer, portanto, aparece, de forma enigmtica e obscura, como aquele ser que contém em si sentidos contraditérios: o de sagrado, 0 de impuro € 0 de no sacrificivel. A vida do homo sacer, dese modo, se situa na interseccio entre a “matabilidade” ¢ a “insacrificabilidade”; dito de outro modo, fora tanto do direito humano quanto do direito divino’, © ono sacer & aquele cuja condi¢io humana é minimizada a tal ponto que sua vida pode e é excluida de todos os dircitos civis. Do mesmo modo, sua vida € considerada “santa”, mas em um sentido negativo, Fm outras palavras, tendo como referéncia a discussio sobre o estado de excegio no Ambito do direito € a consequente teorizagio sobre o limite da ago humana expressa no exercicio da soberania, que podemos teorizar acerca de uma determinada vida que se encontra presa ¢ abandonada 4 decisio soberana. A nogio de sagrado (sace/) aqui se torna crucial, haja vista se encontrar fora dos dominios do direito penal e do sacrificio; estando, portanto, na origem do poder soberano e, consequentemente, da nogio de politica que comungamos hoje: “soberana € a esfera na qual se pode matar sem cometer homicidio e sem celebrar um sacrificio, e sacra, isto é mativel € insacrificivel”™, A vida sacra ow vida nua seria, assim, aquela que constitui ‘o contetido primeiro do poder soberano’, exprimindo 0 cariter origingrio da sujeigio da vida a um poder de morte. Nem bias nem ve’, a vida sacra torna-se assim uma zona de indistingio. 0 term sar indica enigma de uma fra ds segrado agi on alin do eigioso, uma figura obseura do Diteito romano areaico, que foi julgada por um delito, ¢ que, a partir disso, aio é considerada pura e aio pode see coferecida em sacrificio; porém, se for assussnada, seu assassino no € considerado um homicida. Agamben retoma a expressio scr eo- inure id que indica excisio do sacrificio «0 terme Saram, qu indica 0 que & destinado aos deuses. Isso nos leva A dificuldade conceinal do significado da teemo home sar, poi, enquanto & vetado viola coisas saeras,€ licto. matar 0 omem sacto. Se 0 somo saer era vitima de sacifcio arsico, poderiamos entender que sua morte fosse defendida na forma preserita de um rituals porém nio se tata disso, ceenbora pudessem matilo sem que iso fosse suczlgio ou contaminate tore igpar) sev autor. Alga afioaen que esse conecito é reso de uma época em que o Dieito penal eo religioso eram indistintos, sendo essa a snais antiga forma de penaldade do Dizeto eriminal romano. © AGAMBEN. Home Sas, p. 9 5 Para os pregos, azo caracteriava uma forma de vid essencalmenteonginica, a vida natural a vids regia peas leis natura ¢, portanto, necessatiamente submissa & narureza. Trats-se de um coneeito que abrange todas as formas de vida. “O conceito de sy designa a vida natural de todos os sexes wivas, inclida a vide humana, Seu desenvolvimento tem uma dependéncia necessiria das leis da espécie. A que de cada espécie determina 0 desenvolvimento bioligico, © comportamento insintvo, © modo de alimentarse, de reprodusicse, de selacionarse, ete, de todos os indivduos que aca pertencem’” (RUIZ. Paradevas de bop, pp. 263-273). a bin, por eu tro, refeia-se a um mode de vida proprio dos sere umanos que dspunham de propredades reflexivas, contemplatvas. Nio obstante, bir est orienta para a pes, para a busea de uma vida melhor, mais feliz. Na idade clissica € a bias, enquanto vida qualificada, enquanto privis, que participa da poli. A gee, enquanto vida Coteros oie FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa © bomo sacer emerge, portanto, como a figura despojada de qualquer dircito ¢ submetido yue se apresenta como lei: ele é a | Tal despojamento do homo sar aparece como vide nua, uma vida aberta & morte &, simultaneamente, insacrificivel. E, por conseguinte, uma vida sagrada, mas destituida de valor. Sua morte nio acarreta crime, pois no ha punicio para quem o mata, haja vista a destituigio de valor de sua vida enquanto bios, Nao se comete qualquer delito, logo nao ha homicidio, pois © homo sacer encontra-se abandonado pela lei. Em outras palavras, 0 poder soberano relaciona- se com ele enquanto bando, enquanto membro de um baado ¢ sew abandono implica um (Ora, a abertura 4 morte todos paruhamos, entrementes, € a insactificabilidade © que torna contemporiinea a figura do homo sacer. A vista disso, algumas questdes nos circundam, a saber: ()) Nao se afirma constantemente a sacralidade da vida humana? (i) Nao é isso 0 que esté. em jogo no horror dos campos de concentragio (tanto os da Segunda Grande Guerra, como os Gulags ou os de tefugiados)? (ii) E. nas discussdes sobte as guetras, 0 abotto, a cutanasia, o suicidio, nfo é a sacralidade da vida um dos seus argumentos? Em face dessas trés questdes, passemos ao exame do Homo sac, ¢ isso a partir do othar contemporineo que nos é dado por pensadores diferenciados, em especial, aqui, 0 de Giorgio Agamben. abandonado: um ser de indetermina Jo em um mundo que se quer determinado A anilise sobre o homo sacer nos coloca diante de uma estrutura dupla, a de abandono e, atrelada a ela, a de bards, Esse conceito hibrido, cujo cetne se di na inclusio de alguns individuos em um Fstado, evidencia-se em face de uma necessiria analogia entre a sua pertenca ¢ a sua cxclusio. I justamente cm fangio de sua situagio indiscernivel, desse paradoxo, dessa ambiguidade 2 que certos homens se encontram que nos voltamos 4 andlise politica a qual o termo implica, sua estreita ¢ forgosa 1 consoante Agamben, fio com 0 estado de exega, Afinal, natural que caraeteriaa 0 homem como animal vivente, por outro lado, é excluida do. ambito das discusses politica 5 Fscaela | Nise 28 | Pagnat O relacionamento juridico politico originatio é o bando, nfo é apenas uma tese sobre a estrutura formal da soberania, mas tem carter substancial, porque 0 ‘que 0 bando mantém unidos sto justamente a vida nua e poder soberano.s Para melhor compreender a complexidade da questo ¢ interessante analisarmos 0 sentido dado ao termo abandono, e como este se vincula a0 termo bandido, Ora, a0 analisarmos © termo a partir do que nos é apresentado por Agamben temos de lembrar que este € um esctitor de lingua latina, escreve em italiano e, similarmente a nés, entende abandonado como aquele que se encontra “a mercé de...” ou “a seu talante [arbftrio, vontade] livremente”. Do mesmo modo, percebe 0 bandide de modo duplo, como o “excluido, 0 banido” ou aquele que se encontra“aberto a todos, livre”, Diante dessa ambiguidade, 08 eonceitos no se aplicam de modo uniyoco ou com wntraditério, apontando para uma relasio de A vista disso, a anilise de Agamben se volta, de mancira determinante, ao diélogo com (os modernos, mais precisamente com 0 conccito de contrato social imposto, quer por Hobbes quer por Rousseau, Afinal, para Agamben, o ‘estado de natureza’ nada mais € que um ‘estado de excesio’, haja vista 0 fato de a cidade enquanto fundagio nio ser “um evento que se cumpre de uma vez por todas illo tempore, mas & continuamente operante no estado civil na Y"*. Ha aqui um cariter decisério apontada por Agamben; contudo tal decisio nio se refere 4 livre vontade, mas, isto sim, 4 vida, Mas a que vida estamos falando? A vida dos cidadios. Falamos, portanto, de um elemento politico originirio: um Urphanomenon da politica. Fsta vida aqui pontuada pode ser definida, para fora da goé ou do bies, como também uma zona de indeterminagio, um limiar entre o homem e Sede de discusses desde os gregos clissicos, a oposigio entre minor ¢ phir tomou proporgées cada vez mais significativas ao longo dos séculos, assinalando a importante ‘ultrapassagem’ do estado de natureza para o estado civil. No ato politico originario, contrato assinala a passagem da natureza ao Estado; isto é pontua, definitivamente, a forma de decisio soberana’ transigio da plysis pata o némas. Essa transigio, essa passagem também denota a zona andmica presente no Estado, haja vista a nio-estabilidade imanente daquele que se encontra no estado “AGAMBEN. Hom Saser,p. 115. AGAMBEN. Homo Saee,p. 117 SAGAMBEN, Homo Sate, p. 115, escola | Minow 2 | Papa de natureza. O contrato, assim, “apresentase desde sempre como nimar ¢ estado de excesio”, afirma Agamben. “Apesar da critica jé entsanhada.na obra de Agamben, o que de fato me interessa aqui, pelo menos neste momento, Voltemos, pois, 3 relagio de abandons. ‘A relago de abandono é, de fato, to ambigua, que nada é mais dificil do que desligne-se dela. O bando é essencialmente o poder de remeter algo para si mesmo, ou seja, 0 poder de manter-se em relagio com um. irrelato pressuposto. O que foi posto pelo bando é remetido a propria separacto ¢ juntamente, entregues a mercé de quem 0 abandona 20 mesmo tempo excluso incluso, dispensado e simultaneamente caprurado". isso resulta uma das ambiguidades daquele que fora abandonad: este jamais seré inteiramente livre, pois sua exclusio no © permite € jamais pertencerd a lugar cum. Sua condigig d sunpre a da indeterminacao. Essa é a abstrusa relacio do abundon Diante desta rela¢do com o abandono ¢ com o abandonado, a pergunta pelo lugar do somo sacer retoma seu lieus € pontua-se a necessidade de relacion’-lo com esta ambiguidade do abandon, ¢ isso no seu cariter de excluido, de niio pertenga. Em outras palavras, de modo a perceber a ambivaléncia maior imputada ao sarer em sua determinacio juridico-cientifiea. ° AGAMBEN. Homo Save, p.116, 1 AGAMBEN, Homo Sac, p. 116 Coteros eta FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa © Homo Sacer: um ente que nao tem lugar Falar do homo saver, antes de tudo, implica também falar de um ente julgado como um nao-ser, melhor dizendo, um ente sem o dircito de um pertencimento como ser vilido. Em outros termos, poder-se-ia dizer que ha um corpo deslocado, um corpo que, desarticulado de sua origem, possui ele mesmo um outro deslocamento: 0 da ndo-significapin. Esse corpo, esse homem, que nem & bios ou goé, essa vida nua que emerge na figura do homo saver se abre como uum ser de ndo-comunicasao ¢ de nao-lgar. Afinal, em seu abandono, 0 mundo, como Iécus de sua liberdade, é também seu ndglugar. Sua existéncia, assim, emerge como -significante haia vist las por queo. ? Se este fazia parte de uma sociedade, de um ando, qual 0 motivos que levou a seu dés-pertenga? A minimizagio de seu valor, esta é a resposta a ser dada. Nio se exeluem entes valorosos; antes, a exclusio s6 se dé aos que no possuem valor algum, o homo sacer'', A vista disso, 0 que se percebe é um ente de nao-lugar 0 que cacontramos. E, como isso se dé hodiernamente? Vejamos, entio, nossa His recente. Ora, 08 tiltimos cem anos foram marcados por cenitios impensados, Como letra de miisica, podemos imaginar um século de: ria mais Um imenso vazio. Nesse espelho quebrado por alguém que parti [.J. Hé um, muro de concreto entre nossos labios Ha um muro de Berlim dentro de mim, “Tudo se divide, todos se separam. Duas Alemanhas, duas Coréias. ‘Tudo se divide, todos se separam" De fato, o que se verifica nestes cem anos que abrangem os séculos do conhecimento € da cincia, XX ¢ XXI, sio dois lados muito bem distintos, dois mundos com muros que se erguem entre pessoas € nagdes, tertitérios desiguais, individuos desiguais. Yo homem moderno faparece, assim,] como um animal em cuja politica esti em questio a sua vida de ser vivente”". E, neste panorama que nos cerca, uma nova e inusitada formagio discursiva expde a insisténcia de uma surda sacraligacdo de certos homens que sio po: © CE AGAMBEN, Fone Sar, p. 81 12 GESSINGER, Alii meaty, 1989. ® FOUCAULT, La vobnté de savoir, pad AGAMBEN, Home Saer,p. 125 Coteros oie FhssfaPelea | Nimo 23 | Papa (O campo € 0 espaco que se abre quando o estado de exce¢io comeca a tornar- se regra; [..] € um pedago de territério que € colocado fora do ordenamento juridico normal, mas no é, por causa disso, simplesmente um espago extemo; [..] @ estrutura em que o estado de excecio, em cuja possivel decisio se baseia © poder soberano, é realizado normalmente; [..] € 0 proprio paradigma do cespaco politico no ponto em que a politica torna-se bippultca © 0 homo sacer se confunde virtualmente com 0 cidadio; [..] € © novo regulador oculto da inscrigio da vida no ordenamento — ou, antes, o sinal da impossibilidade do. sistema de funcionar sem transforma-se em uma maquina letal ‘Um legitimo “fora da le?” ¢ uma anomalia que niio adentra na estrutura legislativa normal de pais algum. Seu status quo é 0 da sujcicio do arbitrio da policia ¢ do Estado: ele no possui ‘mais 0 merecimento de pertencer ao bande © merece ser abundonado. O homo saver, assim como o refugiado /apatrida, est em um conceito-limite, 0 que permite conduzi-lo a0 campo’. Em outros termos, 0 Ouiro na sua condicio de estranho /estrangeiro perpetua aquilo que o perfodo das guerras mundizis concretizou: sua sobrevivéncia é vista como principio de criminalizacio, “sendo a primordial manifestacio da indiferenea para com a humanidade”, afirma Agamben, © Outro na condigio de apitrida ainda esta sujeito & criminalizagio mesmo sem cometer crime algum, “Uma vez que ele constituia a anomalia nfo-prevista na lei geral, era melhor que se convertesse na anomalia que ela previa: 0 criminoso”™. 1% AGAMBEN, Homo Sacm, pp. 175-182, 1 © que se apresenta com a situagio dos ciganos na Buropa evidencia a atualdade do problema. Nio apenas os ciganos se encontram na situagao de exept, Em um olbar mais abalizado, deparamo-nos com estruturas de exclusio que envolvem toda a extens ccisa, o modelo de exyptis detectado eondiz com a absorcio da ‘deia de ocideny » nas décadas de 20 a 40 do século [Cf ARENDY, Origen do toaltarions, p. 329). Neste ponto espectico a ‘questio do campo se evideneia de modo absoluto haja vista, como bem nos faz recordar Agamben em Al d i dei rit delTnomo, que os “que 08 primeitos campos foram constituldos na Europa como espago de controle paca os refugiados, e que a sucessio campo de internagio-campo de concentragio-campo de exterminio representa uma ‘ici i WARENDI, Orient do foalizarin, p. 319. Coteros eta FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa A nossa narrativa historica, portant, nada mais é que um continuo excluir © Outro. Mais recentemente, recriam-se na Europa figuras” — ligadas intimamente a um espago territorial e/ou a determinada etnia — que traduzem novas verses do velho homo sarer do Direito Romano. Os ahandmnados de todos 0s grupos aparecem nas figuras dos deslocados, dos refugiados, dos apitridas, dos ndmades errantes... Todos eles ganham, na sua ndo-significincia € no seu desalor, um significado e um lugar. Significam-se em relacio a um espago de assentamento no qual, sob uma forma totalitéria de racionalidade, sfio marcados como os seres de wida nua: insactificiveis, mas mativeis. Nos espacos de uma geografia do reconhecimento do mesmo, existe um territério proprio no qual se marcam os individuos em um processo 1uo de rejeigio € eliminagio do outro, (© racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que € obrigado a utilizar a raca, a climinagao das ragas ¢ a pusificacio das racas para exercer 0 seu poder soberano. .A justaposicio, ou melhor, o funcionamento, através do biopoder, do velho poder soberano do direito de morte implica 0 funcionamento, a introdugio e o ativagio do racismo'™ Foucault, em um texto curto, intitulado A vida dos homens infames”, concebe uma forma de infimia que aponta para este carater de a-significincia que atravessa cettos individuos. Diz Foucault: 1 A diversidade cultural, nica, politics religiosa emerge, principalmente na Fsropa, como algo complexe © conflruoso. Desa fits, 0 paradigma contemporineo atual em pouco s¢ distancia daquce encontrado 10s anos da I Grande Guerra, O exemplo dos ciganos, assim, mais uma ver se apresenty anal esses emergem com a rotuagio de diplaad penon: (pessoas deslocadas), se encontrando, deste modo, 4 maggem da lei ordinivia. Segundo Arendt, © sétulo supraciado “Toi invenado durante a guera com a fnalidade Gniea de lguidar © problems dos apitridas de uma vex por todss, por meio do simplério expedicnte de ignorar a sua exsténca (ARENDT Orion de ttaltaroms,p. 304). J} FOUCAULT. Fim dfs died p. 308. +» Foucault, nesse texto de 1977, aatraenconttos com um poder gue, 80 momento mesmo em que as marea com 6 signo da infimia, areanca da noite ¢ do siéncio existéacias humanas que, de outro modo, nio haveriam deisado nenhum vestgio. “Todas essa vidas que estavams destinadas a passat por baixo de todo diseurso e a desaparecer sera jamais serem dias aio puderam deixar tagos ~ breve, inisvos,frequentementeenigmtios ~ sea no onto de seu contato instantineo com o poder. (| ABial de contas, nio é um dos aspectos fundamentais de nossa sociedade que o destino ai toma a forma da relagio com o poder, da lua com ou contra cle? O ponto mais Intenso das vidas, aquele em que se concentra sun energia, esta precsamente ai onde clas se bate com o poder”, (Cf, FOUCAULT. La vie des hommes infimes, Diet its, vl Il 1976-1979), p. 241), Coteros ete a FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa A bem dizer, uma infimia de raridade que ¢ a de homens insignificantes, obscuros e simples, que apenas devem As queixas, aos relatérios de policia, o serem trazidos a luz por um instante. E uma concepgio proxima de Tchecov” © que fica desta anilise € 0 fato de que o sofrimento dos homens nunca deveria ser um mero residvo da politica, Afinal, (© que resta enti nessas vidas andnimas, que s6 se manifestam em choque ‘com © poder, debatendo-se com ele, trocando com ele - palavras breves estridentes - antes de voltae para a noite ~ “a vida dos homens infaames” [. deviamos respeiti-los em fancao de sua infelicidade, sua raiva ou sua incerta loucura, [.] Estranhamento, inverossimilhanga: é essa infémia, que cle proprio reivindica”™ Destatte, o que fica dessa andnima vida no € tio somente um anonimato, mas antes, a pertenga a algo que é est, se encontra deslocado. Uma diferenga imanente que, incapaz de ser accita, gera o medo ¢ a exclusio. Em outras palavras, o que se verifica diante de tal evento € uma dinamica obsessiva pela identidade ¢ que busca a inclusio de tudo gguilo que no se inclui nas categorias do mesm¢ (O rnao-lugar, assim, coloca certos cates pata fora da nogio anterior de lugar antmpoligico, Esses excéntricos deslocados ¢ apartados 20 nfo possuirem um lugar definido — seja territorialmente seja no bando a que ‘pertencem’ — também passam a no serem considerados em suas raizes telacionais ¢ hist6ricas, perdendo, portanto, sua identidade © seu reconhecimento. Por conseguinte, acabam por perder seu valor. Cumpre ressaltar que tal perda de valor nestes indivduos pode evocar-thes uma culpabilidade de existéncia, 0 que os coloca na condi¢io de inimigo”. A relacio de abandono com o cariter imputado 20 ® DELBUZE, Foncan, 128. 2 DELEUZE. Foncanl p 102 % Uma andlse acerea do conceito de inimigo observado em Agamben e Derrida, a parte dz leirara anilise do pensamento de Carl Schim, & pertinente nesta questi, Concudo, a mesma nfo ser’ desenvolvida aqui por mim, ‘mas pasteriormente em outeo atigo. Coteros ete FhssfaPelea | Nimo 23 | Papa abandonado como inimigo ctia a possibilidade de um deslocamento tal deste individuo que, sua mera existéncia, jé Ihe ttaz a culpabilidade de existit. Donde, poder-se inferir que sua morte, melhor sua extingio desta Terra, trazet uma benéfice para a humanidade. gar, portanto, Nos obriga 2 andlise de um mode «SP. biopolitica que emerge na Modemidade, bem como nos coloca diante da nogio de homem; afinal, hi pessoas postas fora da condigiio humana, no podendo ser caracterizadas, nem em sentido juridico nem em sentido biolégico, como Homo sapiens sopiens. Sio anormais, monstros, bestas que devem ser expostas para fora do bands. O anormal, aqui, € um monstro moral que deve set eliminado; afinal, os anormais sio os degenerados, aqueles herdeiros diretos dos grandes monstros, capazes de uni na sua esséncia © louco € 0 criminoso, A anilise do nao-ligar € intsinseca 4 anilise do homo saver contemporineo; afinal, esse outro que emerge da figura do insacrificavel e legitimamente ¢ legalmente mativel, na nossa atualidade, nao se desvincula da aplicabilidade do campo. Desse espaco cujo medo ¢ morte se entrelagam na figura daquele que perde seu dircito de humano, o que se vé é uma politica de aniquilamento planejada do outro sob uma geografia de morte onde o corpo se afigura. O campo, assim, emerge na duplicidade de sua existéncia, por um lado, como eftte-ojeto da localizagio ¢ do desenvolvimento do poder, c, por outro lado, como um dos elementos fandamentais dos jagns de padere de verdade © nao-lugar, portanto, & 0 espago onde as heterotopias™ se manifestam, um lugar real € Ainico que justapde varios espagos. Contudo, no desvio, esse espaco se torna um ius de onde minam-se secretamente a linguagem c impedem de nomear isto ou aquilo, porque despedacam 0s nomes comuns. Como nos textos de Borges ou nas anilises de Blanchot®, que abrem a inscrigio da heterotopia & linguagem © 20 espaco literitio, também o conceito pode ser estendido ao espaco concreto, geogrifico do Outro, Em Le Mots et Le Chores, Foucault afirma, © C£ FOUCAULT. Vigiar ¢ punir, Com Foucault a via geneslégica de artculacio entre 0 conhecimeato © a -verdade adora a perspectiva do corpo, pois a relagio intima que ocorre entre o saber € © poder definida sob tama tecnologia politica do corpo, pela qual o corpo surge como vitima real do. processo de racionalizacio. instrumental % Heterotopia ¢ um conceito da geagrafia humana claborado por Michel Foucault que desereve lugares espacos que funciona em condigSes aio hegeménicas. Estes sio os expagos das alteridades, que no estio nem aqui rem Ii, que slo simultaneamentefisicos e ments, % Como exemplo cabe falar de Fin tran, poema de Borges sobre 0 sonho de Kafka no qual 0 autor aleanca uma poténcia desteritorizadora por meio de uma elaborasio intrincada de desdobramentos identitirios. Para Maurice Blanchor, é importante lembear, escrever & retitar a palavea do curso do mundo, Coteroseice a FhssfaPelea | Nimo 23 | Papa As utopias consolam: se elas no tém um lugar real, desabrocham, contudo, ‘num espago maravilhoso ¢ liso; elas abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regides ficeis, ainda que 0 acesso a clas seja quimérico. As hheterotopias inquictam, sem dlivida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto ¢ aquilo, porque fracionam os nomes comuns ‘0 os emaranham, porque atruinam de antemao a “sintaxe”, € nio s6 aquela ‘que constréi as frases, — aqucla menos manifesta que autoriza “manter juntas” (@o lado © em frente umas das outras) as palavras © as coisas. [.] as hetetotopias (como encontramos tio frequentemente em Borges) dessecam 0 propésito, estancam as palavras nelas proprias.”* © ndo-lugar € um lugar real como tantos outros lugares que sio desenhados na sociedade. Mas ¢ um lugar de exclusio, de expatrianento, de abandono. Como heterotopia, © nao-lugar & um paradoxo, pois enquanto lugar real também é aqucla espécie de lugar que esta fora de todos os demais lugares. Sua localizagio, 0 campo. Eos que no carypo se encontram sio classificados, justamente, por sua indeterminagio. A pergunta a partir do texto de Borges paraece a mesma que damos ao abandonade, ao homa sacer maderno. ‘Quando instauramos uma classificagio refletida, quando dizemos que 0 gato € © clo se parecem menos que dois galgos, [J qual é pois, o solo a pattit do qual podemos estabelecé-lo com inteira certeza? Em que “tibua”, segundo qual espago de identidades, de similitudes, de analogias, adquirimos o habito de distribuir tantas coisas diferentes e parecidas? Que coeréncia & essa — que se vé logo nao ser nem determinada por um encadeamento a prin ¢ necessirio, nem imposta por contetidos imediatamente sensiveis? Pois nio se trata de ligar cconsequéncias, mas sim de aproximar e isolar, de analisar, ajustar e encaixar contetidos concretos; nada mais tateante, nada mais empirico (20 menos na aparéncia) que a instauragio de uma ordem entre as coisas; nada que exija um olhar mais atento, uma linguagem mais fiel ¢ melhor modulada; [... E, contudo, um olhar desavisado bem poderia aproximar algumas. figuras semelhantes e distinguir outras em razaio de tal ou qual diferenca”. 2% FOUCAULT. As palaoras¢ a evra, p. XI. ® FOUCAULT. As palaras¢ ect, p. XV. CoteroseSiceeFhssfaPelea | Nimo 23 | Papa © bomo sacer, assim, no tem lugar, no tem valor, ¢ sua vida pode-Ihe ser retirada a qualquer momento justamente por ter sido classificado destoante de algo que, aprioristicamente, fora compreendido como sujeito. A heterotopia pontuada por Foucault nos sugere, de certo modo, apontar para essa dupla afecsio conferida ao nosso bomo sacer modetno. Afinal, 0 termo heterotopia parece resumir essa dupla problematica, haja vista, por um lado © prefixo Jeter apontar diretamente para 0 aller, para o ouim, ¢, por outro o radical Jupia, © topos, nos colocar diante do lugar. Eo Jygar do outro, portanto, o que esta em jogo. © Outro, sesse jogo diplice do abandono que no momento que exclui afirma sua incluso, emerge, na contemporancidade, de uma negociacio dificl entre 0 seu figar € 0 seu ndo-lngar, donde 0 juridico € o cientifico se tornam as amarra tual que leva oo Estado. de Agamben afirma: ‘A lacuna nfo é interna A lei, mas diz respeito A sua realidade, & possibilidade mesma de aplicagao. E. como se 0 direito contivesse uma fratura essencial entre 0 estabelecimento da norma ¢ sua aplicagio ¢ que, em caso extremo, sé pudesse ser preenchido pelo estado de excegio, ou seja, criando-se uma rea onde essa aplicago é suspendida, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor™ O exemplo de judeus, Testemunhas de Jeovd ¢ ciganos durante a Segunda Guerra é 0 mais facil para explicitar essa situagio, que nio se circunscreve a esses grupos. Postos fora da condigio humana em fan¢io da indiferenca com sua vida, todos eram homo saver. Ademais, para eles foi escolhido 0 nés-lgar. 0 campo. A auséncia de direitos humanos representa a auséncia de humanidade imputada a esses individuos que, na qualidade de inimigo, perderam 0 dircito a ser pessoa. Cada corpo individual fora despedacado na sua nudez de vida. Assim, tanto 0s prisioneiros quanto 0 campo de concentragio denotam, na nossa contemporaneidade, vivéneia realizada do estado de exc. © triste dessa situacio se dé na sua nfo circunscrigio historic, O que mais encontramos sio homo sacers na Europa, na Aftica ¢ no Oriente ocidentalizados, nas Américas. O direito de pessoa ¢ cagado em diferentes contextos e pata diferentes grupos étnicos. Ao fim, 2 AGAMBEN, Hom Sazr, pp. 48-49. Coteros oie FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa ha uma fratura entre os homens ¢ um paradoxo que permeia a historia da humanidade: individuos que possuem seus direitos ¢ sua conditio validados ¢ outros que se encontram As margens... Ha bandos de banidos feitos de bandidos. De fato, © povo carrega, assim desde sempre, em si, a fratura biopolitica fundamental Hle é aquilo que no pode ser inclufdo no todo do qual fiz parte, € nfo pode pertencer 20 conjunto no qual jé esti descle sempre incluido. Daf as contradigdes € as aporias is quais cle dé lugar toda vez que evocado € posto ‘em jogo na cena politica. Ele € aquilo que ja é desde sempre, ¢ que deve todavia, ealizarse, € a fonte para toda identidade, e deve, porém, continvamente redefinir-se € putifcar-se através da exclusio, da lingua, do sangue, do tersittio..» ‘THE HOMO SACER PARADOX: BETWEEN THE ABANDONMENT AND THE BAND Abstract: In this paper, I analysis the way in which the contemporary Hone saer presents us itself in face a dual structure: the abandonment and band, This hybrid concept has your heat in the inclusion of some individuals in some State, and presents in face of a necessary analogy between the belonging and the exclusion. From the perspective that is offered by different thinkers, particulasly Giorgio Agamben, my analysis aims to discuss the close and forced paradoxical relationship is now the Flam saz its indiscernible status which cerminaey zone’ of oF ‘anomie zone’ in face of a State of Exception Key Words: Flomo sacer ~ abandonment — paradox — oman condition. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AGAMBEN, Giorgio. Al di li dei dititti dell'uomo. In: Meg! senga fine. notte sulla politica ‘Torino: Bolatti Boringhieri, 1998, Homo Sacer: 0 poder soberano e a vida nua, Belo Horizonte: UFMG, 2002. Estado de Excegio. Trad, Iraci Poleti, Sio Paulo: Boitempo, 2004. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, impetialismo ¢ totalitatismo, Sao Paulo: Companhia das letras, 1990, ® AGAMBEN, G. Homo Sie, pp. 183-184 escola | Nine 28 | Pagna gt DEL 1, Gilles. Foucault. Sio Paulo, Editora Brasiliense, 1998. FOUCAULT, Michel, As Palavras ¢ as Coivas: uma arqueologia das ciéncias humanas. Trad. Salma Tannus. Sio Paulo: Martins Fontes, 1999. ____. Em Defesa da Sociedade, Trad. Maria Galvao. Sio Paulo: Martins Fontes, 1999. . La vie des hommes infimes. Dits et écrits, vol III (1976-1979). Paris, Gallimard, 1994. Microfisica do poder. ‘Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989. Naissance de la Biopolitique. Paris: Gallimard, 2004. . Vigiar¢ punir. nascimento das prisdes. Petropolis, Vozes, 1987. MACKLIN R. Bioética, vulnerabilidade e protesio, In: Garrafa V, Pessini L, org. Bioéica poder ¢ injustica. Sao Paulo: Loyola, 2003, RUIZ, Castor. Paradoxos do biopoder: a redugio da vida humana a mera vida natural Filosofia Unisinos, Sao Leopoldo, v. 8, n. 3, set./dez. 2007. Coteros oie FhssfaPelea | Mime 2 | Papa 2

Você também pode gostar