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Sociologia

DOENÇA CRÓNICA
 Doenças crónicas são todas aquelas formas de perturbação da saúde
de longo prazo que interferem significativamente com a identidade da
pessoa, as suas interações e os seus papéis sociais.
 As doenças agudas são doenças episódicas que institucionalizam as
pessoas no “mundo da doença” (o do sick role) orientado para a
remissão (tratamento/cura) da doença.

 As doenças crónicas por definição:


- não têm cura;
- prolongam-se no tempo;
- a intervenção é fundamentalmente dirigida á gestão dos sintomas,
- o que coloca as pessoas a gerir o sofrimento fundamentalmente no “mundo
dos saudáveis”, procurando dar soluções dirigidas a “viver com a doença”

 A DC é um assalto (a) ao corpo da pessoa, (b) aos seus papéis sociais


(trabalho, família, lazeres); (c) às suas relações sociais;
 As doenças crónicas são de diferente tipo porque assumem diferentes
condições para as pessoas. Podem distinguir-se 3 grandes tipos:
- doenças crónicas com as quais as pessoas vivem sem constituírem
uma ameaça de morte iminente (diabetes, AVC’s, doenças renais,
perturbações cardiorrespiratórias, doenças reumáticas, lesões vertebro-
medulares);
- doenças crónicas que se revestem de uma ameaça à vida das pessoas
(neoplasias, doenças infeciosas como o HIV); Condições que colocam
as pessoas sob o risco de contraírem doenças crónicas, como, p. ex., a
hipertensão.
 Na experiência vivida da DC, as pessoas confrontam-se com uma
diversidade de dificuldades como sejam:
- uma mudança na aparência física;
problemas de autoestima e de identidade pessoal; uma perda de
importantes papéis sociais; projetos de vida profissional muito limitados
ou mesmo o desemprego; uma estranheza vinda da família e dos
amigos

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GESTÃO DE INCERTEZA

 A incerteza atravessa todas as fases da experiência vivida da DC –


primeiros sintomas, diagnóstico, evolução do curso da DC.
 Na experiência dos sintomas, as pessoas recorrem a diferentes fontes
para obterem uma explicação da condição e para se legitimarem perante
os outros, com vista a estes reconhecerem a “verdade” das suas
queixas. Mesmo se recorrerem a uma informação profissional, esta não
basta por si só. A condição patológica não basta por si.
 A pessoa recorre sempre a reconstruções narrativas para explicar o
problema que lhe surgiu: “Porquê eu?”, “Porquê agora?”. E dará
respostas internas e/ou externas. Internas se atribuir, por ex: o mal a
fragilidades internas, inadequações de personalidade ou condições
internas físicas (/p. Ex., a velhice). Externas se, p. Ex., atribuir a uma
vida stressante, excesso de trabalho, etc.
 A experiência da DC corresponde sempre a uma ameaça a projetos de
vida futuros, razão que conduz as pessoas c/ DC a afirmarem que vivem
o dia-a-dia, valorizando o instante presente.

 As pessoas c/ DC distribuem-se por 3 grandes tipos de atitudes no que


respeita à gestão da incerteza:
- os ansiosos, procuram constantemente e ansiosamente respostas
futuras;
- os “tecelões”, selecionam a informação a obter e quando a obter;
- os “evitadores” que preferem viver na ignorância.

DISRUPÇÃO BIBLIOGRÁFICA

 A DC nunca é apenas a condição patológica. A DC corresponde sempre


a rutura na biografia (história de vida) da pessoa em três dimensões: na
trajetória temporal do curso de vida, na conceção do seu Eu e nas suas
capacidades corporais.
 A identidade da pessoa resulta do modo como a pessoa se vê a sim
mesma, a qual vai sendo construída na relação entre o modo como os
outros a veem e o modo como perceciona que estes a veem. Assim, o
“Eu” da pessoa (identidade) é uma construção dinâmica na relação entre
si e os outros.
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 A DC compromete a identidade da pessoa porque o sofrimento gerado
pela doença é sempre mediado pela disrupção que a condição gera no
“Eu” da pessoa.
 A pessoa com DC é atingida por uma “disrupção biográfica” que é o
sentido de descontinuidade na vida que atinge a pessoa entre o seu
passado de pessoa saudável com uma biografia de vida com projetos
futuros e a nova condição de que é portador e que lhe traz
constrangimentos, incertezas, ameaças ou mesmo comprometimento do
sentido da vida da pessoa.

 O impacto negativo no “Eu” da pessoa atingida por DC está associado a


4 factores psico-sociais:
- Uma vida restrita centrada na condição patológica;
- Isolamento social;
- Sentimento de ser um “fardo” para os outros;
- Experiências negativas na procura da reconstituição do “Eu”.
 O exacerbamento destas condições conduz ao que K. Charmaz
denominou por “Perda do Eu”.

RECONSTITUIÇÃO DO “EU”
 Para responder à disrupção a pessoa com DC usa narrativas que
procuram dar um sentido de continuidade entre o seu “Eu” saudável e o
seu “Eu” doente. Este processo denomina-se de reconstrução narrativa.
 Assim, as “narrativas de doença” são os modos representacionais que
as pessoas encontram para explicar o surgimento da doença, as
consequências que produziram nas suas vidas e os modos como
responderam às questões de ordem e controle que a doença lhes
colocou.

NEGOCIAÇÃO DE PAPÉIS SOCIAIS


 Os papéis sociais atravessam todas as esferas de vida das pessoas e
abrangem as relações na família, com os amigos e no trabalho.

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 A DC obriga a pessoa a negociar os seus papéis sociais com vista a
responder a exigências sociais e financeiras.
No fundo, a pessoa é confrontada com a necessidade de encontrar os
papéis mais adequados à sua nova condição.
 Assim na esfera da família a pessoa tem necessidade de negociar com
a sua família a divisão de tarefas no lar e a família é colocada perante a
necessidade de responder às exigências de cuidados perante o seu
familiar.
 No trabalho a pessoa é obrigado a fazer escolhas como sejam, p. ex.,
voltar (ou não) ao trabalho, negociar mudança de funções, encontrar
novo trabalho, fazer nova formação
 Tendo em conta o ponto de vista das pessoas c/ DC, a Sociologia
entende o conceito de “normalização” com outro significado: são todas
as estratégias da própria pessoa e/ou dos seus familiares e próximos
com vista a racionalizarem a “desvantagem” trazida pela DC e
desqualificá-la do ponto de vista da sua importância social.
 Neste sentido, a normalização familiar das pessoas c/ DC vai no sentido
de encontrar estratégias para a minimização do impacto social da DC
que poderá chegar à revisão do que é normal/anormal no sentido de
“normalizar” a condição do seu familiar.

GESTÃO DO ESTIMA
 Estigma refere-se a uma condição ou atributo da pessoa que é
valorizado negativamente do ponto de vista social e que, por esse facto,
torna o seu portador inferior ou mesmo inaceitável, fazendo com que a
pessoa fique “manchada” ou poluída socialmente.
 Estigma é uma qualidade simbólica que pode ser encontrada nas
pessoas que não mantêm uma identidade social credível por disporem
dessa condição particular. Esta condição pode ser:
- potencialmente desacreditável, se não for socialmente visível e for
apenas do conhecimento do próprio;
- efetivamente desacreditada, se for socialmente visível
 Há três tipos de estigma:
- estigmas do corpo;
- estigmas de carácter;
- estigmas associados a grupos sociais.
 Os estigmas do corpo e os estigmas de carácter são os que surgem
associados às doenças crónicas.
 Para responder ao estigma, Erving Goffman identificou três estratégias:
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- a pessoas esconde o atributo;
- a pessoa reduz o significado da condição estigmatizante;
- a pessoa retira-se da vida social

 Quanto mais estigmatizante a condição for e quanto mais ela for


possível de ser escondida, mais a pessoa recorrerá a esta estratégia
(ex: o que acontece com as pessoas que têm SIDA).
 As três estratégias de resposta ao estigma referidas por E. Goffman
pressupõem que a pessoa interioriza os mesmos valores sociais. Mas tal
pode não acontecer. Pode encontrar-se uma quarta estratégia que é
seguida pelas pessoas que enfrentam os estigmas sociais afrontando os
valores sociais que lhe estão subjacentes e valorizando positivamente
as condições e atributos que detêm.

TIPOS DE ADAPTAÇÃO DAS PESSOAS COM DOENÇA CRÓNICA


 A especificidade da DC radica no facto de haver uma continuidade
experiencial entre o estar doente e as obrigações sociais visto esta ter
de ser vivida continuadamente no mundo dos “saudáveis”.

 As DC colocam dois tipos de exigências e respostas a resolver e que


dizem respeito:
- às relações das pessoas com os outros e ao cumprimento de papéis
sociais (as exigências da sociedade);
- ao modo como os esforços de lidar com a doença se tornam parte do
próprio “Eu” da pessoa e do seu modo de vida (exigências do corpo).

 A adaptação ACOMODAÇÃO:
- A relação de complementaridade do “Eu” com a doença significa que a
pessoa aceita a doença e por isso passa a funcionar na vida nos limites
trazidos pela doença, incluindo os constrangimentos trazidos pela doença nos
seus quadros de vida.
- Neste tipo a pessoa mantém a sua vida social e procura constitui-la nos
termos dos limites trazidos pela doença. Assim, a pessoa procura incluir-se no
mundo das pessoas saudáveis.

 A adaptação RESIGNAÇÃO:

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- neste tipo a relação da pessoa com a doença é a do vencido para com
o vencedor.
- a perda de papéis sociais valorizados (família, trabalho, lazer) é
assinalada pela pessoa através da resignação da pessoa perante os
efeitos da doença.
- a resignação envolve sempre uma oposição à doença, pelo que
mesmo que a pessoa se sinta minada pela doença, o seu propósito é
derrotá-la tanto quanto possível

 A adaptação ACTIVO-NEGAÇÃO:
- a oposição à doença significa lutar contra para derrota a doença.
- neste tipo visa-se resistir à doença através da maximização da
participação na vida quotidiana (exemplo, passam a fazer desporto
quando até aí não era relevante ou não praticavam mesmo), enquanto
simultaneamente se minimiza as implicações da doença.
-este tipo é próprio das pessoas que não gostam de falar das suas
doenças, não gostam de serem acompanhadas e tratam a doença corpo
se fosse de pouca importância

 A adaptação GANHOS SECUNDÁRIOS:


- neste tipo a pessoa aceita a doença, procurando tirar o melhor partido
da doença através da atribuição de qualidades positivas da doença,
nomeadamente porque permite á pessoa aliviar-se dos “fardos da vida”.
- neste tipo a doença torna-se “libertadora” porque significa para a
pessoa retirá-la das condições penosas da vida, proporcionando-lhe
recompensas materiais e afetivas que não possuía antes da doença.

 Uma mesma pessoa pode adotar ao longo da sua experiência de vida


diferentes tipos de adaptação.
 A adoção de diferentes tipos de adaptação está muito dependente dos
contextos de vida da pessoa e mais concretamente,
- do conjunto de recursos que consegue mobilizar na procura da
adaptação;
- das reações dos outros e das expectativas que desenvolve a este
respeito.

 Em rigor a adaptação da pessoa c/ DC é mais uma “adaptação com a


doença” do que uma “adaptação à doença”, pois não envolve uma
estrita adaptação aos problemas do corpo levantados pela doença, pois

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a resolução destes problemas está dependente do modo como a pessoa
resolve a questão do seu “Eu” na relação com os outros.

DOENÇA CRÓNICA – COPING


 A variabilidade com que as doenças crónicas são vividas pelas pessoas
decorre das diferentes respostas que as pessoas podem dar e dos
modos de viver com a doença crónica que adotam.
 Há duas grandes dimensões que estão presentes na experiência da
doença crónica: o coping; os estilos de vida na adaptação com a doença
crónica.
 O coping é uma área de investigação privilegiada pela Psicologia na
abordagem das doenças crónicas.
 Entende-se por coping os mecanismos psicológicos a que a pessoa
recorre (e que lhe são intrínsecos) para dar respostas às situações
novas geradas pela doença crónica.
 O coping aplicado às doenças crónicas é um mecanismo psicológico
individual que pode ser definido como uma resposta interna que a
pessoa dá ao acontecimento externo (a doença crónica) entendida esta
como uma experiência stressante de espécie impessoal.
 Os mecanismos de coping estão presentes em dois tipos de estratégia a
que as pessoas recorrem para gerir a condição e o seu impacto:
- cognitiva (modos de pensar)
- comportamental
 As estratégias de coping operacionalizam-se em dois grandes tipos:
- as baseadas nas emoções que descreve as respostas que as pessoas
dão para minimizar o impacto emocional, adotando para o efeito
determinadas atitudes.
- as baseadas na resolução de problemas que descreve o que a pessoa
faz, as ações que a pessoa adota, para responder às dificuldades.

 A Sociologia critica esta abordagem do coping nas doenças crónicas.


 Diferentes estudos mostram que o peso do coping individual na
contribuição para o sucesso adaptativo da pessoa com doença crónica é
desigualmente distribuído nos diferentes planos de vida da pessoa: ele
terá mais impacto na esfera da resolução de problemas interpessoais,
mas é irrelevante em relação a problemas a resolver em contextos
impessoais como é o caso do mundo do trabalho.

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 A Sociologia enfatiza o aspeto dos mecanismos psicológicos referidos
pelo conceito não serem tão fixos e estáveis nas pessoas (p. ex.,
haveria pessoas que se caracterizavam por apenas disporem de
estratégias emocionais de coping vs. outras que adotariam estratégias
cognitivas) e que as pessoas são capazes de adotarem diferentes tipos
de coping consoante o contexto, a natureza dos problemas que
enfrentam e os meios que têm disponíveis para o efeito.
 A Sociologia também critica a pressuposta que as doenças crónicas são
situações impessoais que colocam os mesmos problemas a todas as
pessoas que vivem essa condição. A doença crónica só existe nas
pessoas com base nos significados e formas através das quais as
pessoas as vivem.
 A Sociologia sustenta que a abordagem mais adequada à doença
crónica, que coloca em causa a esfera global de vida da pessoa, deve ir
para além das características psicológicas e centrar-se nos diferentes
estilos de vida adaptativos com a doença que a pessoa vem a adotar.

IVAN IILICH E OS LIMITES DA MEDICINA


 O filósofo Ivan Illich sustentou que o papel da medicina:
- foi menor na melhoria dos padrões de saúde no século XX, sendo esta
principalmente resultante das medidas sanitária e nutricionais;
- e que no presente exerce efeitos principalmente nocivos (“o complexo
medico-industrial tornou-se a maior ameaça à saúde”) que sistematizou
em termos de dois tipos de iatrogenia (doença induzida pelo próprio
médico):
1. Iatrogenia Clínica: em que a intervenção médica produz
diretamente resultados prejudiciais, como acontece com os
efeitos adversos dos fármacos, das cirurgias inúteis, das doenças
contraídas nos serviços de saúde (infeções nosocomiais) e na
extensa patologização que estigmatiza e limita as pessoas na sua
vida social.
2. Iatrogenia Social e Estrutural: em que a extensão e acessibilidade
aos cuidados de saúde gerou uma grande dependência da
população em relação aos profissionais de saúde, encorajando
um crescente consumo de serviços de saúde com a crescente
diminuição da capacidade das pessoas em lidarem naturalmente
com os seus problemas por terem diminuído os seus limiares de
tolerância ao desconforto e sofrimento.

 Manifestações desta iatrogenia social e estrutural Illich encontra:

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- No acréscimo exponencial das despesas em saúde;
- Na medicalização de categorias sociais como acontece com os jovens
e idosos;
- No consumo de cuidados preventivos que gera um sentimento de
maior vulnerabilidade nas pessoas;
- Na medicalização do nascimento e da morte.

 Assim, contrariamente às posições (nomeadamente na esquerda


marxista) que fazem equivaler biomedicina com progresso e benefício,
criticando, no entanto, os deficits e desigualdades no acesso aos
cuidados de saúde (nesta perspetiva, o problema da saúde é haver
medicina a menos), Illich sustenta que há medicina a mais por esta ser
mais nociva do que benéfica para a saúde.
MEDICALIZAÇÃO DA VIDA SOCIAL

 Prolongando as análises de Illich, o sociólogo Irviing Zola avançou com


a tese da “medicalização da vida social” para explicar o controle
crescente que a medicina exerce sobre vastos domínios da vida das
pessoas.
 Na definição de Zola a “medicalização” é o processo sociopolítico
através do qual diferente tipo de condições e comportamentos passaram
a ser definidos como problemas médicos, requerendo uma solução
médica.
 A tese da “medicalização” emergiu na Sociologia nos anos 70 do século
passado, como uma crítica à dominância da profissão médica que, a
partir da II Guerra Mundial, adquiriu um poder sociopolítico hegemónico,
impondo a sua normativa no controle social de corpos, pessoas e da
própria vida coletiva das sociedades.
 A medicalização é um processo sociopolítico que caracteriza o
desenvolvimento das sociedades contemporâneas e manifesta-se nas
suas instituições e nos valores dominantes partilhados na regulação da
vida social.
 A medicalização encontra-se em diferente tipo de condições que eram
experiências normais da vida (ex: comer, fazer sexo, dar à luz, apanhar
sol) ou reguladas socialmente (p. ex., como deficits de comportamento,
ou pecados ou crimes) e que passaram a ser definidos como problemas
sociais a serem tutelados e tratados pela medicina.
 A medicalização abrange, assim, vastos aspetos da vida social,
assistindo-se, desde meados do século XX, seja:
- a uma medicalização do desvio social, como, p. ex., no caso do
alcoolismo, das toxicodependências, dos comportamentos da criança e
dos jovens ou da homossexualidade (posteriormente desmedicalizada);
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- a uma medicalização do quotidiano e da vida corrente, como acontece
com a medicalização do nascimento, da velhice, da sexualidade, da
menopausa e de inúmeros estados emocionais (p. ex., ansiedade e
tristeza).
 No que respeita à “medicalização promovida por cima”, verifica-se que
as indústrias farmacêutica e de tecnologias biomédicas têm modelado o
conhecimento biomédico, exercendo uma influência determinante na
definição do que é a doença (disease) ou das condições de “risco” para
a saúde.
 De facto, a indústria farmacêutica desenvolve toda uma investigação
dirigida a sintomas e condições que gerem novas “necessidades” e
consequentemente o aumento da procura no mercado de bens e
serviços de saúde.
 Sofisticadas técnicas de marketing são também utilizadas para encorajar
as pessoas a refletirem sobre o seu estado físico e psicológico e aí
“descobrirem” problemas que têm uma solução nos produtos
promovidos pela indústria para os “tratar “, tornando deste modo os
cuidados de saúde como uma qualquer mercadoria.
 O poder económico à escala global das indústrias da saúde tem
promovido uma expansão da patologização e das condições de “risco”,
assistindo-se á rotulagem de um número crescente de sintomas como
sendo manifestações de “risco” ou doença (disease), o que conduz
crescentemente as populações a medicalizarem os seus problemas não
só físicos como psicossociais.
 Deste modo, diversas condições que fazem parte das dificuldades da
gestão da vida pessoal transformaram-se em doenças (diseases), como
sejam a timidez que se transformou em Perturbação de Ansiedade
Social, ou as dificuldades em dormir que se transformou em Perturbação
do Sono, que podem ser “tratadas” com fármacos criados pela indústria
para o efeito e que a profissão médica adota no quadro desta captura
dos consumidores pelo mercado.
 O que esta expansão da medicalização revela é que:
- não é apenas fruto do poder económico das organizações e grupos
que dela tiram vantagens económicas,
- mas que se sustenta numa dinâmica cultural própria das sociedades
contemporâneas que, no âmbito do projeto da modernidade de controlar
a natureza, constrói uma política da vida que procura uma “saúde
perfeita” que tende a hipervalorizar experiências e dificuldades da vida
como ameaças e perturbações a controlar por dispositivos tecnológicos

 A expansão da “medicalização promovida por baixo” por vezes


configura-se em manifestações que levam alguns autores a falar em
“desmedicalização”, mas que se trata antes de uma “medicalização
desprofissionalizada”.

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 A “medicalização desprofissionalizada” são todas aquelas manifestações
em que indivíduos e grupos depois de obterem a legitimação da doença
ou perturbação, ou condição de “risco” (sickness), contestam a
autoridade monopolista da profissão médica para a sua gestão e
procuram fazer intervir nessa condição outros grupos não aceites pela
medicina institucionalizada ou os próprios doentes com autonomia para
o autodiagnóstico e automedicação que assim se tornam “peritos leigos”
e consumidores ativos de bens de saúde.
 Uma avaliação sociológica do papel da medicina nas sociedades
contemporâneas e da medicalização da vida social mostra-nos efeitos
ambivalentes positivos e negativos deste processo político-social.

 Os efeitos positivos são de dois tipos:


- diretos relacionados com a melhoria da qualidade de vida que as
inovações biomédicas trouxeram e que estão expressas no controle das
doenças, no alívio do sofrimento e na maior longevidade que trouxeram.
- indiretos, na medida em que, em diversas situações, permitem uma
gestão mais humanizada dos problemas, ao desresponsabilizarem
moralmente as pessoas pelas condições que são portadoras e ao
legitimarem benefícios sociais compensadores das mesmas.

MODELO MÉDICO/ INDIVIDUAL DE INCAPACIDADE

 A Incapacidade (Disability) numa aceção de senso comum é entendida


de acordo com um Modelo Individual. Este mesmo modelo encontra
apoio no Modelo Médico de Incapacidade, o qual assenta nas seguintes
assunções:
- Incapacidade significa “restrições de atividade” ou “falta de capacidade
para fazer coisas” do modo considerado normal para os seres humanos.
- A Incapacidade reside no indivíduo, isto é, trata-se de um atributo do
indivíduo.
- É uma tragédia para o indivíduo por viver na anormalidade da falta de
funcionalidade.
- A causa da Incapacidade está na doença e/ou Deficiência (Impairment)
de que o indivíduo é portador.
- A Deficiência é a anormalidade de estrutura ou função do organismo
que causa a incapacidade.

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- A resposta à Incapacidade é dada pelo tratamento e reabilitação. Deste
modo a solução para a Incapacidade está nas mãos dos profissionais e
por isso é uma dádiva destes.
- A resposta à Incapacidade é tornar os indivíduos normais, isto é,
corrigir as deficiências e restabelecer a funcionalidade do indivíduo.
- Assim do ponto de vista profissional, a reabilitação da pessoa com
incapacidade tem como objetivo a “normalização” da independência
física e a adaptação da pessoa ao ambiente (pré) existente.
- A Reabilitação, de acordo com este modelo, define-se como a
restauração física da pessoa com incapacidade por intervenções
terapêuticas e a sua reeducação no sentido de participar em atividades
da vida normal no quadro das limitações de que é portador.

MODELO SOCIAL DE INCAPACIDADE

 Movimentos cívicos defensores das pessoas com incapacidade e


académicos a estes associados reconcetualizam a Incapacidade
desvinculando-a do seu carácter individual, biológico e trágico do
Modelo Médico/Individual.
 A Incapacidade reside na sociedade, é um atributo social.
 A Incapacidade é uma forma de opressão social envolvendo a imposição
social de desvantagens, restrição de atividades e fragilização do bem-
estar emocional das pessoas com deficiência.
 A Deficiência é definida em termos individuais e biológicos: é o defeito
existente nos mecanismos corporais ou nos órgãos.
 Enquanto a Deficiência é a condição biológica do corpo, a Incapacidade
é a condição sociopolítica intrinsecamente opressiva sobre o corpo: “o
que torna as pessoas com Incapacidades não é o seu corpo, mas a
opressão e as barreiras sociais a que estão sujeitas”.
 A resposta à Incapacidade deve dirigir-se não para as pessoas, mas
para a sociedade no sentido de combater a opressão e eliminar as
barreiras.
 O objetivo perante a Incapacidade deve ser capacitar positivamente as
identidades das pessoas com incapacidade como não-trágicas e
entendê-las e aceitá-las numa cultura de celebração de diferenças.

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MODELO MÉDICO-PSICO-SOCIAL DE INCAPACIDADE

 Segundo a C. I. F. (classificação internacional de funcionalidade), a


Incapacidade é uma variação anormal do funcionamento humano que se
manifesta num elemento ou numa combinação dos seguintes:
- perda ou anormalidade de uma parte do corpo (deficiência);
- dificuldades na execução das atividades diárias (limitações na
atividade);
- problemas que um indivíduo pode experimentar no envolvimento de
situações da vida (restrições na participação).
 Segundo a C. I.F., a Incapacidade é o resultado de uma complexa
relação entre a condição de saúde do indivíduo, fatores pessoais e os
fatores externos que representam as circunstâncias nas quais as
pessoas vivem.
 Da conceção relacional e bio-psico-social de Incapacidade contida na
C.I.F. decorre a possibilidade de se conceber a Reabilitação como um
processo de capacitação de uma pessoa no sentido de viver bem com
uma deficiência no contexto do seu próprio ambiente ou de um ambiente
a criar para o efeito, o que requer que a Reabilitação seja um processo
complexo e variável moldado à pessoa.

ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DA INCAPACIDADE

 A Incapacidade não é um atributo nem do indivíduo, nem da sociedade


opressiva.
 A Incapacidade é um fenómeno relacional quando limitações funcionais
de deficiências se tornam incapacitantes como consequência das
relações sociais.
 Assim, as pessoas ficam com incapacidades na relação entre os seus
corpos e a sociedade.
 A Deficiência é uma condição necessária, mas não suficiente da
Incapacidade.
 A Incapacidade é sempre o resultado de uma interação entre fatores
intrínsecos ao indivíduo e fatores extrínsecos associados aos contextos
estruturais e situacionais que rodeiam o indivíduo.

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 Entre os fatores intrínsecos contam-se: a natureza e severidade da
deficiência, a personalidade da pessoa, as atitudes da pessoa perante a
sua deficiência, aptidões da pessoa para se relacionar com a sua
deficiência.
 Entre os fatores extrínsecos contam-se: as atitudes dos “outros” para c/
a pessoa c/ deficiência, as características do ambiente físico e social
como facilitador ou como barreira, isto é, como capacitado ou
incapacitado e os contextos políticos, sociais e culturais que enquadram
e são relevantes para a experiência da incapacidade.

SAÚDE E CIÊNCIAS SOCIAIS

 Nas Ciências da Saúde entende-se a “saúde” como dizendo respeito a


estados somáticos, fixos, observáveis e objetivos porquanto são ditados
por processos biológicos.
 Nas Ciências Sociais entende-se a “saúde” como uma categoria
socialmente construída, dinâmica e variável do ponto de vista socio-
histórico que os seres humanos utilizam para classificar experiências
corporais
 Para os cientistas sociais a saúde não é um estado corporal objetivo,
mas é uma significação socialmente produzida que procura traduzir as
experiências humanas resultantes de variações no funcionamento da
Pessoa/corpo.

 A “saúde” é um discurso e uma experiência: refere-se, assim, a uma


significação e experiência sobre realidades biológicas, psicológicas e
sociais que marcam a sua existência da pessoa
 A significação/classificação da pessoa como tendo “saúde” (ou não) não
é meramente decorrente de mudanças biológicas que ocorrem no seu
corpo.
 A significação de algo como sendo “saúde” ou “saudável” resulta de
ideias que a pessoa vai adquirindo na relação com as estruturas de
poder da sociedade (família, peritos, Estado) que lhe vão transmitindo o
conhecimento do que é a saúde (e do que não é) e que a pessoa aplica
na interpretação de si nessa condição.

SAÚDE – CONCEÇÕES INSTITUCIONAIS

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 Nas sociedades modernas encontramos dois grandes tipos de
definições institucionais sobre a “saúde”:
- a definição “negativa” (biomédica) de saúde;
- as definições “positivas” de saúde.
 O modelo (bio)médico comporta uma implicação binária: a pessoa ou é
doente (tem uma disese) ou é saudável.
 Deste modo, em termos (bio)médicos, a saúde é definida de forma
negativa pelo seu contrário: como sendo a ausência de doença
 A definição negativa de saúde é amplamente utilizada no campo
institucional. Por exemplo, as estatísticas da O.M.S. sobre saúde das
populações têm subjacente esta definição, visto que os indicadores
utilizados são os respeitantes á mortalidade e morbilidades.
 A definição negativa de saúde tem sido criticada por ser empobrecedora
na referenciação da condição de saúde

 Assim, a definição negativa:


- concebe a saúde por referência à doença (disease);
- limita a saúde à condição física do corpo.
 Talcott Parsons evidenciou a importância da saúde para o
funcionamento da sociedade e neste sentido definiu-a como sendo “o
estado de capacidade ótima de uma pessoa para o desempenho efetivo
dos papéis e funções para os quais foi socializado”.
 A definição de Parsons, também conhecida como a definição funcional
de saúde, tem sido criticada pelos seguintes aspetos:
- Concebe a saúde num estado absoluto de “capacidade ótima”,
ignorando vários níveis de saúde possíveis;
- É uma definição normativa de saúde porque concebe esta na
capacidade da pessoa de cumprir expectativas sociais, o que pressupõe
uma normativa social homogénea e estática que não ocorre na dinâmica
das sociedades.
 Na área da Gerontologia sustenta-se uma definição positiva de saúde
capaz de dar sentido ao modo como as pessoas idosas concebem esta
condição. Assim, avança-se como uma definição humanista de saúde,
entendida esta como “a capacidade da pessoa em adaptar-se e
responder positivamente aos problemas da vida”.
 Esta a definição institucional que não referencia a condição física do
corpo como condição necessária para a definição de saúde
 A qualificação de adaptação “positiva” remete ainda assim a saúde para
um estado normativo que se relaciona com a adoção dos designados
“estilos de vida saudáveis”.

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 Os fatores de estilo de vida que são tidos em consideração na promoção
e educação para a saúde são: o exercício, a alimentação, os cuidados
de higiene e com o corpo, o consumo de drogas legais e ilegais,
comportamentos sexuais, a condução de veículos e todos aqueles
comportamentos que a Epidemiologia vem a identificar como estando
associados a patologias (p. ex., a exposição solar).
 Independentemente das suas diferenças, as conceções institucionais
positivas partilham um mesmo modo de conceber a saúde - esta é uma
entidade:
- universal ,
- abstrata,
- opõe-se à doença,
- é um estado corporal normativo do ser humano que se opõe ao
“desvio” e neste sentido referencia-se pela normalidade biológica e pela
normalidade comportamental que assegura a pessoa “saudável”, a qual
se define por um “estilo de vida saudável” assente no exercício físico/
alimentação saudável/ erradicação de consumo de drogas legais e
ilegais/ cuidados com o corpo
 Em suma, a conceção de saúde atualmente dominante entre os
profissionais de saúde identifica a saúde em duas grandes dimensões:
- na anatomofisiologia do corpo saudável que torna a pessoa apta física
e psicologicamente a satisfazer necessidades;
- no “estilo de vida saudável” expresso em comportamentos individuais
que promovem a saúde e previnem a doença e que nesta medida
asseguram o bem-estar e autonomia para a pessoa fazer escolhas
racionais, desenvolver atividades, em suma adaptar-se positivamente à
vida.
 As conceções de saúde positivas, apesar de multidimensionais,
continuam a reservar à condição física uma determinante primordial na
norma de saúde, porquanto é o que, numa conceção abstrata de ser
humano, permite à pessoa atingir objetivos vitais e necessidades
básicas.

SAÚDE – CRENÇAS LEIGAS

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 Claudine Herzlich concluiu que há três grandes significações leigas da
saúde que formalizou nos seguintes termos:
- A saúde no vácuo, é o entendimento da saúde como sendo o contrário
de doença e neste sentido reporta a saúde como um facto impessoal.
- A saúde como reserva, algo que se “tem”, é uma capacidade biológica
pessoal que nos permite viver/trabalhar e que nos defende da doença ou
nos permite recuperar da doença.
- A saúde como equilíbrio, refere-se a um substrato de harmonia na
pessoa entre dimensões físicas, psicológicas e sociais, e entre a pessoa
e o seu ambiente físico e social. Daqui deriva um sentimento de
confiança, energia e resistência.

 O estudo de Mildred Blaxter conclui pela existência das seguintes


conceções leigas de saúde:
- Saúde como não doente, por não ter sintomas e não ir ao médico;
- Saúde como reserva, expressa na robustez, força física, resistência;
- Saúde como comportamento, quando as pessoas “olham por elas”,
tendo estilos de vida saudáveis, isto é, bons regimes alimentares,
exercício físico e uma vida regrada;
- Saúde como forma física, os desportistas;
- Saúde como bem-estar psicossocial, a pessoa sentir-se bem, em
harmonia, ter um sentimento de bem-estar;
- Saúde como relacionamento social, sentir-se satisfeita com os seus
relacionamentos sociais;
- Saúde como funcionalidade, capacidade para a realização de tarefas.
 Os estudos sociológicos também mostram que a valorização destas
diferentes dimensões da saúde é socialmente diferenciada. Assim:
- os jovens valorizam mais a saúde como capacidade física e vitalidade;
- as pessoas idosas entendem mais a saúde do ponto de vista funcional,
embora nos últimos anos se assista também a uma maior valorização
das relações sociais e do bem-estar subjetivo;
- as mulheres opõem-se aos homens porque enquanto aquelas
valorizam mais as relações sociais os homens centram mais a ideia de
saúde no corpo físico.

SAÚDE – PERSPETIVAÇÃO COMPARATIVA

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 As conceções institucionais são formalizadas num pensamento abstrato
a-histórico e a social, enquanto as leigas são experienciais e estão
relacionadas com os enraizamentos sociais e situacionais em que as
pessoas vivem.
 Por este motivo, há uma maior fixidez padronizada do que é a saúde nas
conceções institucionais com base em dois grandes vetores: a
normalidade/funcionalidade física e a aptidão psicossocial para a
autonomia.
 As conceções leigas variam segundo o curso de vida, a condição social,
o género e a idade porque a saúde é mais valorizada pelo que torna
possível em diferentes aspetos da vida: relações sociais, trabalho, lazer.
 Os dois aspetos que mais fazem divergir conceções institucionais de
crenças leigas são:
- saúde e doença são entidades mutuamente exclusivas nas conceções
institucionais, mas são entendidas como passíveis de coexistirem na
pessoa leiga e nesse sentido os leigos pensam-se como podendo “viver
a doença com saúde”.
 o bem-estar subjetivo a relevância que tem nas conceções institucionais
é a que pode resultar da saúde física, mas adquire uma dimensão muito
relevante e autónoma nas crenças leigas.

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