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Showrnlisma - JOSE ARBEX JR. pa Casa Amarela Este 6 um livro de muitos cenarios: Berlim, Sarajevo, a redacdo de um grande jornal paulista, Moscou, Somalia, Rio de Janeiro, Bagdad, Managua, Haiti, a poltrona defronte ao aparelho de TV na casa de cada um de nés, E também um livro de muitos figurantes, personalidades de maior ou menor envergadura, gente muito diversa entre si, Alguns tiveram existéncia real (no sentido material do termo}, como o chefe do Comité Municipal do Partido Comunista de Berlim Oriental, a jovem atriz assassinada por seu colega de trabalho, o primeiro ministro soviético, a rede de TV a cabo, 0 general golpista haitiano, o Big boss de um grande jornal paulista, o general que comanda os disparos de misseis carregando bombas com feigdo de videogame, o leitor sentado defronte ao seu aparelho de TV sintonizando 0 noticidrio, ou o presidente brasileiro afastado do cargo por corrupgao. Aesse primeiro grupo junta-se outro formado por Kaspar Hauser, Mr. Gardener, 0 inimigo-alvo do videogame com feigao de missil carregando uma bomba, o aliado em cujo nome fazem-se guerras que nao produzem cadaveres, todos eles to reais quanto os anteriores, mesmo que suas realidades sejam de outra natureza: JOSE ARBEX JR. Showrnalisma a noticia como espetaculo © 2001 by José Arbex Jr editor Mauricio Torres cape e projotoyrfico Chico Max {fotos de copa e miolo Fernanda Aguiar revisdo Mauro Feliciano Dineitos de edo em Kngua portaguest reservados & Editora Cosa Amarela Ltda. Rua Fidalga, 162, Wa Madalona ‘So Paulo SP - CEP 05432-000, ona (11) 3619 0130 femnait ensamarlivoseuol.com br poo TE Catalogagéo na fonte do Departamento Nacional do Livro (Camara Brasileira do Livro, SP. Dias Tae Atbex finioy, Jost, 1957 + ‘Shewenalisma :a nia como espetéculo/ Jost Arbex Je,» Sto Paula Casa Amare, 2003, 294p. 10x23. em Ish 85-06021-16.0, Incl biblograba 1. Comunicacio de massa ~ Aspectas sola. 2 Jornalisma — Aspects socials 3. Reporageas ‘reporters. 1. Arbex fini, Jost. . Tuto. cop.a7043 JOSE ARBEX JR. Showrnalisma a Noticia como espetaculo Amarela Ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem ‘Terra (MST), a principal vitima, n Brasil contemporéineo, das campanhas de inj caltinia e difamacio orquestradas pelas grandes corporagies da midia. Em meméria do professor Milton Santos. Imagens, mithdes de imagens, els o que eu devoro... Jé procurou abandonar esse vicio com morfina? ‘Wautast Burzovsns Debrucado sobre fonte, Narciso sacia a sede: sua imagem jé ndoé“outra”, cla 6 sua propria superficie que o obsorve, que o seduz, de forma que ele pode apenas aproximarse sem nunca passar além dela, pois ele s6 existe além na medida da dis tancia reflewiva entre ele e ela, Oespelho d'dgua néo é uma superficie de reflexio mas uma superficie de absorgao. Jean BAVDRILARD César tinha suas legiGes e Napoledo tinha o seu Exército. Eu tenho minhas divisdes: TY, jornais, revistas. B, & meia-noite de hoje, estarei influenciando 0 maior miimero de pessoas que alguém jamais conseguiu, a nao ser Deus. Fo maximo que ele {fet fol o Sermdo da Montanha, Eutor Caever, megaemprestirio das telecomunicagdes, no filme "007 ~ 0 amanhi munca morre” 05 censores militores enlouqueceram quando uin comandante de compo per- zitiu a reporteres assistirem cenas de um video filmadas a partir de um helicéptero “Apache” durante um ataque « um batathdo iraquiono, As cenas mostravam adoles- centes aterrorizados que corriam caoticamente, em todas as diregdes, enquanto as rajadas disparadas pelas metralhadoras do helicéptero, que eles nido conseguiain ver, cortavom seus corpos ao meio, Esse video foi rapidamente retirado de circulagdo, Quando perguntei a razéo a um oficial graduade do Pentdgono, ele respondeu: “Se ‘nés permitirmos que as pessoas tomem conhecimento desse tipo de coisa, nunca mais haverd outra guerra,” Garss Enstexsxoox Embora os meios de comunicagdo de massa tenham mantido os nossos olhos voltados para os resultados pifios obtidos pelo controle centralizado de ditadores politi- cos, como Hitler e Stalin, eles permaneceram virtualmente silenciosos sobrea ameaga contempordnea - algo semelhante ao pesadelo prenunciado por Husley, de uma mas- sa confonmada, s6 que agora criado par um punkedo de corporagées privadas e qua- trocentos anos antes das previsdes feitas por Huxley. Ben Bacomkiaw E pela meméria que se puxam os fios da histéria, Ela envolve a lembranga ¢ 0 esquecimento, a obsessdo e a amnésia, 0 sofrimento ¢ o destumbramento, (..) Sim, @ meméria 6 0 segredo da histéria, do modo pelo qual se articulam o presente eo passa do, 0 individuo e a coletividade, O que parecia esquecido e perdido logo se revela presente, vivo, indispensdvel. Na memcria escondesn-se segredos e significados ind» s@ indispensdveis, prosaicos e memordveis, aterradores e desiumbrantes. Octavio Lana Sumario Em boa hora Introdugao | —Memorias e historias 1. Telenovela ou a domesticagao do Imagindrio 2.0 impéria das corporagdes 3. Auschwitz cultural 4. 0 indivicuo na era do cliché 5. Ricupero, amoroso Frankenstein 6. Linguagem e mundo 7. Um show de amnésia e memoria Il - Fatos e noticias 1. De como a televisdo “contamina” a cultura 2. “0 fato como ele aconteceu” 3. Guerra do Golfo: 0 "bem" contra o "mal" 4.0 estrangeiro, a “peste” da globalizacao 5. Limites da construcao dos fatos Ill - Folha de S. Paulo (1984-92) IV = Nuestra América 1. Nicaragua: teologias em crise 2, Haiti: barreiras do preconceito 3. Paraguai: ameacas e 0 show V - Uniae Sovietica 1, Cronica de um ilustre desconhecido 2. 1917, marco estrutural da nessa época 3. Gorbatchov e a midia: falsa “familiaridade” 4, Congresso do povo: ares de liberdade §. Caio império 6, Estado de direito versus razao de Estado 7, Uma conversa com Gorbatchov Concluséo Notas Bibliografia Nao recomendado a grande midia 173 175 195 206 213 215 218 223 232 240 248 252 259 278 281 289 Em boa hora por foae Pedro Stedile Fui surpreendido por esse convite do Arbex para fazer o pre- facio de seu livro, fruto de muitas pesquisas e de sua longa expe- riéncia vivida como correspondente, editor e reporter especial do _Jornal Folha de S. Paulo. Nao sou, é evidente, nenhum especialista do ramo. Nesse enredo, meu papel estdé mais para ator do que para comentarista. Um especialista poderia recomendar a obra com muito mais propri- edade do que eu. Por isso, encarei o convite muito mais como uma hornenagem, e também como um privilégio: 0 de poder ler o livro antes de vocés todos. Este livra chega em muito boa hora. Nos passamos a Ultima década sob a hegemonia do “pensa- menio unico”, que tomou conta das universidades, dos partidos, dos idedlogos, dos articuladores da vida politica e da imprensa. Isso foi fruto da hegemonia do império norte-americano. No Brasil, talvez mais do que em qualquer outro pais, as consequéncias dessa hegemonia foram extremamente perversas. Aqui, o verdadeiro monopélio dos meios de comunicacao - sete OU ito grupos econdmicos controlam as principais redes de televi- S40, 0s principais jornais, radios e revistas semanais ~ colocou-se integralmente a disposicdo de uma elite historicamente submeti- da ao colonialismo, Justamente em tempos de hegemonia e monopdlio, flores- cem as opiniées e posturas mais oportunistas: todos aqueles que querem manter ou obter alguima visibilidade acaba por se sub- meter as regras do_jogo. Pagam o preco necessdrio pelos seus “quinze minutos de fama”. O livro do Arbex desvenda esse proceso. Ao longo dos varios capitulos, podemos apreender os proces- Sos utilizados pela grande midia para construir suas fabulagdes do mundo, analizados com a competéncia e equilibrio. Arbex de- monstra a evolugao do poder da televisdo, sua capacidade de trans- formar ficcao em realidade, e de tratar os fatos da vida real como se fossem capitulos de um telenovela, atragdes de um show qua/quer. A confusao é proposital e tem como objetivo ampitar o poder da midia de manipular a informacao e condicionar a opiniao piiblica. Arbex também mostra como a imprensa se mesclou com o império das corporacées. Hoje, estabelece uma relacao inseparavel, de total promiscuidade com o grande capital, transformando-se numa verdadeira indtistria de manipulacao de consciénicias. Mostra, com exemplos e fatos indiscutiveis, como a velocidade com que as infor- magdes sao fabricadas e transmitidas tornou-se mais importante do que a veracidade da noticia, A busca permanente da "novidade” transforma, rapidamente, qualquer noticia em “pasado”, anulan- doo seu impacto e assim contribuindo para banalizar a informacao. Nada é aprofundado, discutido, pensado. Ao analisar o tratamento dado pela chamada grande im- prensa aos problemas do “terceiro mundo”, Arbex mostra que mesmo os processas mais complexos sao reduzidos e simplifica- dos, sao traduzidos sob a forma da luta entre o “Bem” e 0 “Mal”. Cita, por exemplo, a “satanizacéo” do Iraque, da Sérvia, do isla- mismo, do Afeganistao. Mesmo as grandes chagas de nosso tem- po, como a pobreza, as tragédias humanas da Africa, a fome, as pestes e a doenca sdo banalizadas, eventualmente satirizadas, transformadas em fatos vulgares. O livro, enfim, é um sério convite a reflexdo. E também um choque de consciéncia. Reflexdo sobre a gravidade desse fendmeno relativamente recente na historla da humanidade, o monopdtio dos meios de co- municagao, cada vez mais fundidos com as grandes corporacdes e orientados pelos seus interesses politicos. Reflexao sobre a gravida- de do que representa uma imprensa cada vez mais servile camplice dos governantes, de quem recebe polpudas verbas publicitarias e favores de todo tipo. Depois de ler esse fivro, impde-se a consciéncia de que a luta pela demacratizacdo dos meios de comunicagao de massa é um componente indispensével da luta por uma sociedade mais Justa. A midia deveria cumprir uma funcao social da maior reie- vancia, como instrumento de informagéo cultural, debate e criti- ca em Consonancia com os mais fegftimos interesses da nacao. Nada poderia ser mais contraditorio a logica do lucro dos grandes grupos econdmicos. Joao Pedro Stediie, 47 anos (como manda o manual da Folha), é membre da coordenagao ‘nacional do Movirnente dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST Nove de novembro de 1989, 18h45min, sala de imprensa do Departamento de Relagées Exteriores da Alemanha Oriental. Gunter Schabowski, chefe do Comité Municipal do Partido Co- munista de Berlim Oriental, declara encerrada uma entrevista a cerca de trezentos correspondentes estrangeiros, quando um dos jornalistas ainda encontra brecha para fazer uma tltima pergun- ta: “O governo pretende tomar alguma atitude em relagdo aos milhares de berlinenses que querem passar para 0 lado ociden- tal?” Em tom casual, como quem faz uma declaragao totalmente corriqueira, Schabowski responde: “Como? Vocés nao sabiam? Est4 aberta a passagem para todos os que queiram se dirigir a Berlim Ocidental”. A primeira reagao é de perplexidade, seguida de uma en- xurrada de perguntas nervosas e incrédulas. Em seguida, todos os correspondentes se retiram da sala, excitados, comunicam a grande noticia aos seus jornais, emissoras de televisdo e radio, e se dirigem rapidamente ao mais famoso posto fronteirigo do Muro de Berlim, Charlie (0 nome corresponde letra C no jargiio de pilotos e radioamadores americanos). O inacreditdvel acontece diante dos olhos de todos. E tudo verdade. A passagem esté li- vre, apesar de ainda haver fiscalizagao de fronteira. O Muro de Berlim acaba de ruir. A noticia espalha-se por Berlim Oriental com espantosa rapidez. Em poucos minutos, as vias puiblicas que conduzem 20 muro ficam abarrotadas por pequenos e poluidores automé- veis Trabants (""Trabi”, na giria local) ou por pessoas a pé. Pai- ra, ainda, um estranho siléncio na noite fria (pouco acima de zero grau): todos temem que de um momento para outro a situ- agao volte 4 sua normalidade repressora. Um resto de incredu- lidade impede, ainda, que a euforia simplesmente acontega. Uma velhinha desce de seu apartamento, de chinelo e usando s6 um sobretudo de 14 sobre a camisola, apesar do frio. Teme perder a chance de pisar no “outro lado”. Berlim, nos dois la- dos, nao dormiré esta noite. Uma Berlim contempla a outra, ¢ 0 reconhecimento da al- teridade, numa operagio magica de oposigio de planos, destaca aquilo que ha de idéntico nas duas. A fosta na rua recupera, momentaneamente, o clima frenético da antiga capital da Ale- manha. Comega a ser superada a ruptura geopolitica da cidade. Durante horas a fio, milhares e milhares de alemies-orientais passam para o outro lado, onde cada um recebe do governo a quantia de 100 marcos (equivalentes a 55 délares) como simbo- Jo de boas-vindas. Essa quantia, cedida mediante a apresentagao de passaporte alemao-oriental, era tradicionalmente garantida a todos os alernaes-orientais que conseguissem ultrapassar 0 an- tes quase intranspontvel muro. O carnaval comega na Kurfurstendamm (avenida principal de Berlim Ocidental, mais conhecida como Ku'damm), feito de fogos de artificio, de beijos e abragos de casais e familias que se reencontram apés anos de separagéo, ou de pura euforia coleti- va. Nao ha como ficar indiferente. Carnaval sim, mas carnaval germanico, bem entendido. Basta dizer que ninguém, nem os ais bébados, ultrapassa a faixa reservada aos 6nibus, até que seja dada permissdo para isso, Hé uma incrfvel ordem no meio da euforia. Isso s6 faz aumentar a estranheza, a sensagao onfrica de que algo extraordinario acontece diante de nossos olhos. Os postos fronteiricos colocados ao longo do muro logo se tornam insuficientes para dar vaz4o ao fluxo de pessoas. Em comum acordo, as prefeituras das duas Berlim comegam a abrir passagens. O processo escapa ao controle das autoridades, ¢ 0 muro comega a ser furiosamente destruido. No inicio, ha até incidentes com a polfcia alem4-oriental, mas nada pode conter a mistura de firia e euforia da multiddo. O cendrio parece extraf- do de algum livro maluco de ficgdo. Jovens armados de pas e picaretas arremetem, furiosos, contra o muro de cimento, esti- mulados por gritos de milhares de pessoas. Toda vez que uma laje cai, 0 fato é celebrado como num ritual bdrbaro de luta e conquista. E o poder do herdi sobre a presa. S6 que, desta vez, 0 monstro nao esta dentro do labirinto ~ como o Minotauro de Creta —, mas é 0 préprio labirinto, Os jovens sentem-se investi- dos da aura coletiva de Teseus contemporaneos. Impessoais e implacdveis, as escavadeiras enviadas pelo governo alemao-ocidental para abrir oito novas passagens so também saudadas como instrumentos de redengao. Sao adora- das em sua miss&o herdica. As lajes que caem do lado oriental esto todas pichadas, cada centimetro quadrado. Milhées de tu- ristas ao longo dos anos deixam ali a impressiio de suas memori- as, os “Baby Ilove you", os “I was here” e também as palavras de ordem contra o muro € o regime. Em algum momento, uma laje com a caricatura do odiado ex-dirigente Erich Honecker cai sob o impacto de uma picareta. Os aplausos sao tremendos, como se se tratasse de uma espécie de vudu polftico, com a propriedade de causar dor ao proprio Honecker. Ao destruir 0 Muro de Berlim - metéfora da dilaceragdo da alma de uma nagao ~ os jovens buscam reconstruir sua propria integridade psicolégica. Nesse contexto, mesmo os fatos mais prosaicos, os didlogos e os gestos mais rotineiros parecem ema- nar de um sonho. As horas passam muito rapidamente, e ainda muito devagar. A precipitacao de fatos histéricos causa confu- sdo na percepgao normal da passagem do tempo. Eramos parti- cipes de um filme que narra, em algumas horas, minutos ou segundos, a epopéia de uma nagio, do planeta no século XX. Em sintese, 0 tempo vivido adquire uma dimens4o mitica. “Testemunta ocular des falas” Presenciei tudo isso como correspondente do jornal Folha de S. Paulo, Lembro-me perfeitamente bem: a época, tinha ple- na consciéncia de que estava vivendo eventos de dimensées sin- gulares, de importancia crucial para os rumos de toda a humani- dade. Como todas as outras pessoas que receberam em cheio 0 impacto daqueles dias alucinantes, fiquei “embriagado” sem ter bebido uma tinica gota de alcool. Tudo aquilo era, ao mesmo tempo, simplesmente inacreditavel e real. Tor- ‘COMO NUM SONHO..” , vel * ‘renlas aiblieos sao | RAVA-Se impossivel separar a percepoao dos eventos de ordem pessoal, estritamente vin- prvadas, mas aqui | culados a esfera subjetiva, do grande signifi- ssasvides, tantogi- cado histérico (isto 6, publico) que aqueles como pUblicas. Para este au- p . tor ola 20d ane de 1988 ao Sea eee tinham para odes Ou, para esinplesmenteadata,aparteisso Utilizar uma expressdo de Eric Hobsbawn, aroitraria, em que Ht acontecia ali um cruzamento entre o evento chanceler da Alemanha, ma . eer bam uma tarde de inve pttblico e a pequena histéria individual. lim, quando um jover de Mas aquela nao foi nem a primeira, nem ands ¢ sua irma mais ni vam para casa, on Halensee, de Seria a wiltima vez que algo assim. aconteceria ‘suas escolas viinhas em Wilmess- em minha vida. Uma série de circunsténcias dav, © em algumm panto do trajta hate, Anda posso ve profissionais e pessoais permitiu-me presen- ciar muitos fatos que teriam grande significa- cdo para nagGes inteiras, ou para todo o pla- neta, como no caso da queda do Muro de Ber- lim, Essa experiéncia pessoal e profissional provocariaem mim, nos anos subseqiientes, muitas indagagdes sobre as relagGes en- tre histdria, narrativas da histéria, a importancia social, politica e cultural dos meios de comunicagao de massa, poder politico, opiniao publica, memaria, lembrangas subjetivas e convicgdes ideol6gicas. Na dupla qualidade de jornalista e individuo exposto subjetiva e emocionalmente aos fatos que cobri, considera- va e ainda considero perturbadora a distingao de percepgao entre os tempos “histérico” (aquele que resulta da andlise do observador que mantém uma “distancia critica” em rela~ Gao ao fato analisado) e “subjetivo” (0 tempo vivido pelo indivfduo); entre meméria coletiva (mecanismo de registro e retengdo de informagées, conhecimentos e experiéncias formadores de uma certa identidade de grupo) e memoria individual ou lembranga (impressées subjetivas, impregna- das de afetos, preconceitos e tendéncias inconscientes). No momento mesmo em que releio o relato sobre a noite em que caiu o muro, misturam-se, de maneira completamen- te anacr6nica, a andlise histérico-polftica - acrescida do co- nhecimento dos desdobramentos geopoliticos, culturais, so- ciais, institucionais e polfticos posteriores -, e minhas pré- prias lembrangas, as emoges que associo ao conjunto dos eventos vividos. Nessa condicao, jamais poderei discutir a queda do muro com o mesmo tipo de distanciamento de, por exemplo, um estudioso que dele tenha tomado conhecimen- to por meio da imprensa ou de livros. Linites da comunicagao Essas questdes também remetiam As outras etapas do pro- cesso de produgao, circulagao e interpretagao do jornal como produto final. Até que ponto aquilo que eu sentia, avaliava, escrevia e enviava seria levado em consideragao pelos edito- res? No caso da queda do Muro de Berlim, a Folha de S. Paulo optou por dar a manchete para a cassagao da candidatura do apresentador Sflvio Santos a presidéncia do pais. Isso, apesar do que significava o Muro, e de eu ter sido 0 tinico correspon- dente brasileiro presente em Berlim naquela noite. Mais além na cadeia de relagdes entre 0 jornalista e 0 con- sumidor do produto final, esta o proprio consumidor das notici- as: como, e em que medida, os tempos vividos, as asserges ide- oldgicas, os relatos e as memérias transmitidas pelos jornalistas e editadas pelo jornal serao captados e experimentados pelo in- dividuo exposto ao fluxo ininterrupto de informagées veicula- do pela mfdia? Nés, correspondentes estran- SILVIO SANTOS VEM Al... . 4. a Amanchete de capa da Fotha de. | Seixos, costumdvamos fazer observagées ane- Paulo, n0 dia 10-ce novembro de d6ticas sobre a completa imponderabilidade 1989, ok “Tibuna cass canes | all + cueda co Myo d@ Nosso trabalho. Até que ponto nossas ma- que torava ves térias conseguiriam traduzir o clima de ansie- jira Nodiase- d ital onde estar rN Gay le nas ruas de uma capital onde estava para polieia do caso lubeca e assume acontecer uma batalha entre polfcia ¢ mani- pura 28 mticias de Ber festantes, ou um importante pronunciamento mm para o pé da capa: "Alem . travessam mur epi de algum chefe politico? Até que ponto, por exemplo, consegufamos traduzir as incertezas, angtistias e indagagdes das pessoas comuns em Moscou em relagao ao futuro da perestroi- ka —isto 6, em relagao ao seu préprio futuro? Finalmente, coloca-se o “leitor especi- alizado”: o historiador, o intelectual, o analista econ6mico, 0 as, abaino da dabra: “Berlin fecha eritico da cultura. Como ele poderd, a partir do exposto nas paginas de um jornal, ou mostrado na tela da televisao, anali- sar os fatos em profundidade, construindo uma teoria ou uma versio aproximada daquilo que “realmente aconteceu”? Como se coloca para ele o problema da “verdade”? Que tipo de ins- trumentos esse “leitor especializado” poderé mobilizar para apreender em profundidade o significado de determinado evento? Em que medida o trabalho do historiador, feito a frio, em seu gabinete, auxiliado pelas bibliatecas, arquivos e insta- laces, difere do trabalho do jornalista, que seleciona e “caga” a noticia, elaborando no mesmo instante sua propria versdo da historia? Até que ponto, por exemplo, um historiador poderé recons- truir, na linguagem, os eventos da noite em que desabou o Muro de Berlim, sem cair em alguma espécie de esquematismo redu- tor (mediante 0 uso de clichés, de férmulas prontas, do tipo “o socialismo real foi vitima de sua propria incompeténcia” etc.) ou, no outro extremo, sem ceder a tentagao do subjetivismo psi- cologizante (por exemplo, ao tentar “reconstruir” o impacto emocional provocado nos berlinenses pelo reencontro entre as partes da cidade dividida)? E até que ponto essa reconstrugao “nao reducionista”, se possivel, terd alguma relevancia? Quando a prética protssional indaga a teoria Essas indagag6es me “perseguiam” desde 1986, quando comecei a fazer coberturas jornalisticas no exterior. Entre 1986 e 1992, tive a grande chance de cobrir varias guerras, revalu- Ges e processos histéricos importantes. Fui correspondente da Folha de S. Paulo em Nova York (1987) e Moscou (maio de 1988/outubro de 1990), editor de exterior da Folha (1990-1991 quando “fechava” um caderno diario de doze paginas) e repér- ter especial daquele jornal (1991-1992). Nesse perfodo, tam- bém conheci e entrevistei muita gente que fazia parte de meu “universo mftico” (como Paulo Francis, Iasser Arafat, Mikhail Gorbatchov, John Cage e outros); isso me permitiu comparar aquilo que eu “sabia” sobre eles antes de conhecé-los ~ a proje- cao de sua imagem na mfdia - com minhas impressdes apés ter, com eles, mantido contato. £m 1992, deixei a “grande imprensa” e passei a dedicar- me, sobretudo, a escrever livros, tendo por tema histéria, geopo- litica e cultura (somando ito livros de minha prépria lavra e outros catorze em co-autoria). Também ajudei a criar, em 1993, um jornal de politica externa, Mundo - Geografia e Politica In- ternacional, cujo objetivo é explicar, em linguagem jornalistica, eventos do mundo contempordneo. A partir de 1994, iniciei uma nova “experiéncia”, agora com, a linguagem televisiva — como comentarista de noticias interna- cionais na TV Cultura e TV USP e também como autor do texto base e responsével pela selecdo de imagens de arquivo de uma longa série televisiva (sete horas de duragao) sobre a Guerra Fria (produzida pela TV Cultura de Sao Paulo). Finalmente, a partir de 1996 comecei a dar aulas sobre historia e jornalismo interna- cional (na Fundagao Casper Libero e, em 1997, no curso de pos- graduagio Jato sensu da PUC/SP). O confronto de idéias e percepgdes suscitado por essas di- versas experiéncias do ato de comunicar fatos histéricos — como correspondente, editor, autor de livros de histéria, professor e autor de roteiros para televisdo — tornou ainda mais aguda essas indagagdes. O método mais natural de enfrentar 0 desafio foi refletir sobre aminha prépria produgao jornalistica, nao por efeito de narcisismo ou por alguma tendéncia irresist{vel ao solipsis- mo, mas porque ela fornece o material que dé base a este traba- Tho, que, em sintese, é conseqiiéncia de uma conjugagio de dois grandes dados: em primeiro lugar, da envergadura, amplitude e profundidade dos eventos que cobri; segundo, do fato de eu ter participado de todas as pontas do proceso de produgio e veicu- lag&o de noticias e textos liistoriogrdficos. Ao ler, hoje, aquilo que escrevi, comparando as convic- cGes que tive a época e a sua transformagao (ou permanéncia) com o passar do tempo, fazendo um contraste entre aquilo que, como jornalista, tentei mostrar aos leitores e os fatos en- cadeados pela prépria vida, tenho a rara oportunidade de fa- zet uma anélise critica sobre o meu lugar como agente produ- tor de textos noticiosos e divulgador de fatos histéricos, mas também ~ sobretudo, aliés — como objeto de uma ampla rede empresarial, cultural e tecnolégica de percepgdes que condi- na, em dado momento, a minha capacidade de enxergar e analisar os fatos. Com base nessa experiéncia, posso fazer uma reflexdo teérica devidamente “condimentada” por um saber empirico sobre o fazer jornal{stico e os procedimentos adota- dos pela mfdia no mundo contemporaneo. {Wuestoes de métoda O objetivo nao é discutir “teoria da comunicagiio”, mas a imbricagao entre jornalismo e hist6ria. Para atingir essa meta, fui forgado a entrar em contato com as varias concepcées e mé- todos sobre o estudo da hist6ria. A primeira grande dificuldade colocou-se como uma grande indagagao: 6 possivel fazer uma reflexio histérica sobre o contempordneo? Steven Connor for- mula muito bem a resposta a essa questo, ao criticar a percep- cao segundo a qual s6 podemos conhecer processos “acabados @ encerrados”, herdeira da crenga de que a experiéncia é separada do conhecimento: Pode ser que a experiéncia sempre seja, sendo realmente determinada, ao menos interpretada de antemao pelas vari- as estruturas de compreensao e de interpretagdo vigentes em momentos particulares de sociedades particulares e em diferentes setores dessas sociedades. Na verdade, a propria relagao que se afirma haver entre experiéncia e conhecimento também pode ser reflexo dessas estruturas de conhecimen- to e de compreensao. Disso se concluiria que a nossa atual maneira de conceber a oposigao entre experiéncia e conhe- cimento como, por exemplo, uma distingao entre transién- cia e fixidez também tem sua origem e histéria em estrutu- ras particulares de conhecimento.’ A “natureza ‘constructa’ de nosso sentido do que sao expe- riéncia e conhecimento” estd passando por uma profunda trans- formacdo, gragas a vertiginosa aceleragao das transformagoes tecnoldgicas, particularmente apés a instalag’o de uma midia planetaria informatizada, espetacularmente anunciada pela co- bertura que a mfdia internacional, em particular a televisio, fez da Guerra do Golfo, a partir de janeiro de 1991. Desde que Gutemberg imprimiu a primeira Biblia com ti- pos méveis, no século XV, cada novo meio de comunicagio de massa — ou mesmo o simples aperfeigoamento de uma tecnolo- gia j4 existente, como a passagem da televiséo preto-e-branco para a televisio em cores —cria sua propria problematica e inter- fere naquilo que se tinha como certo em relag&o aos meios j4 existentes. O surgimento do cinema, por exemplo, provocouum deslocamento do lugar ocupado pelo teatro, pelo circo e pela imprensa escrita na construgdo do imaginério, assim como a te- levisdo colocou problemas integralmente novos para a industria cinematografica. CHIN na Guerra do Golf: divisor de équas A Guerra do Golfo serviu como um divisor de aguas nessa longa histéria. Pela primeira vez, uma guerra era transmitida “ao vivo", em tempo real, por uma rede de alcance planetério (a Cable News Network, CNN), gracas a um satélite retransmissor estrategicamente colocado em érbita polar estaciondria. Também foi a primeira vez que se utilizou, em larga escala, a técnica de transmissdo de imagens digitalizadas (isto é, criadas por um pro- cesso de simulagao). E - outro fato inédito — a grande persona- gem da guerra, ao contrério daquilo que, apenas em certa medi- da, havia caracterizado a cobertura da Guerra do Vietna, nos anos 60, nao foi o homem, os horrores, 6dios ¢ esperangas provoca- dos pela destruigio, mas a tecnologia, as armas “inteligentes”, as operagées “cirdrgicas” (assim como, mais recentemente, du- rante a Guerra do Kosovo, entre 24 de marco e 10 de junho de 1999, foi dado muito mais destaque aos supostos “erros” das armas altamente sofisticadas da OTAN do que & tragédia vivida por cerca de 900.000 kosovares de etnia albanesa). O salto tecnolégico, do qual a CNN é simbolo e instru- mento, permitiu apresentar a Guerra do Gol- . _ 100M NO PLANETA INTEIRO fo como uma espécie de telenovela sinistra | 45 j3z9mn, hora iocal do aia 26 que prometia renovadas emogées no proxi- | desutubode 1987, na e250 lerade Vandenterg, um fogueie tan. fancava um mo capitulo. A cobertura “ao vivo” do con flito consagrou, definitivamente, a “espeta- cularizagao” da noticia. E, exatamente por ser um espetdculo, a transmissio das imagens submeteu-se as mesmas regras que se apli- | ¢ ansmit imagens o das em impulses eiewanicos cama um show: (Paul Viewo, A inércia polar, p. 22.) Na televisao (,..) nem uma gota de sangue apareceu. Es- quemas estratégicos e imagens sintéticas reafirmavam a so- berania dos “deuses” da tecnologia. O olhar omnividente e omnipresente dessa mesma tecnologia que permitiu a reali- zagio da primeira “guerra electronica em tempo real”, se- gundo a designagao de Paul Virilio, nao podia deixar, ironi- camente, que os campos de batalha aparecessem na sua cru- eza e horror caracteristicos. (...) Lipovetsky, numa entrevis- ta & revista Globe, disse que a morte se tornara intoleravel tanto social como moralmente. (...) “Asseptizar” a guerra tor- nou-se uma necessidade para aqueles que a fizeram. (...) Antes de mais nada foi preciso recriar, através dos media, no imagindrio ocidental, a figura do tirano intolerante, do louco que atrastava milhares de soldados para uma guerra em que, a partida, seria derrotado. A Guerra do Golfo mudou a relagio da televisio com a no- ticia, de um lado, e com o publico, de outro. Ela —a televiséo — tornou-se “a” noticia. Apés a guerra, a onipresenga da televisio, a sua capacidade de transmitir instantaneamente imagens de e para todo o planeta, tornaram-se um fato do cotidiano, de todos conhecido e por muitos esperado —nos episddios de invasao da Somélia (1992) ¢ Haiti (1994) por tropas da ONU comandadas pelos Estados Unidos, as cdmaras de televisao ja estavam 14 an- tes mesmo da chegada das tropas. As imagens do desembarque das tropas, nos dois casos, lembravam muito mais um filme. Folitica sob medida para ateleviséo Jéé amplamente conhecido, lugar-comum, o fato de, em to- dos 03 patses, os lideres politicos e os chefes militares planejarem suas agées calculando o tempo certo para serem apresentadas em horério nobre. A televisto adquiriu o poder de definir o que sera ou nao um acontecimento polftico, assim como 0 4mbito geogra- fico ern que esse acontecimento serd conhecido. Claro, esse poder ni impor & vontade das grandes corporages da mfdia. Mas isso 6 a excegdo, nfo a regra. O acontecimento politico (e, mais ampla- mente, social e/ou cultural) adquire as caracteristicas de um gran- de show. Ora, uma das conseqiténcias da pratica de apresentar 0 jornalismo como o “show-malismo” é 0 enfraquecimento ou 0 total apagamento da fronteira entre 0 real e o ficticio. Esse novo cenério do império das imagens, da experiéncia do mundo vivida por meio da tela planetéria, obriga o historia- dor, 01 0 critico da cultura, a langar um novo olhar sobre a teia absoluto; excepcionalmente, as circunstancias podem se de relagdes estabelecidas entre meios de comunicagdo de massa e o conjunto das instituigdes econdmicas, politicas, culturais, cientificas e sociais. Mais especificamente, tata-se de saber de que forma, e em que medida, esso novo cenério afeta o olhar, a vida, a relagdo de um indivfduo com o mundo. A Hist6ria com agé maitisculo—construgao épica linear, evo- lutiva e finalista, emanagao da vontade de Deus, a realizagao da Idéia, do Espfrito Absoluto (no caso da concepgao hegeliana) owa do Trabalho nfo alienado de si (Karl Marx) - cedeu lugar as hist6- rias multiplas de sujeitos parciais, narradas por historiadores que nao podem mais reivindicar para si o estatuto final da “verdade cientifica”. Por outro lado, o ambiente tecnolégico do final do século XX criou percepgées de tempo, espago e pertinéncia cul- tural integralmente novos. A idéia ¢ justamente explorar esse “li- miar de indistingéio", a forma como ele é construido, vivido e oxperimentado. Para refletir sobre esse quadro, delineei um hori- zonte composto por algumas indagacées basicas: 1. Qual a diferenga, do ponto de vista do meu conhecimen- to sobre um acontecimento qualquer, entre té-lo presenciado “em carne e osso”, ter iomado conhecimento por meio da leitura do Jornal ou té-lo visto por meio da tela de televisdo? O préprio conceito de histéria era, originalmente, indis- sociavel do “testemunho ocular”, da visiio, como mostra Jac- ques Le Goff: A palavra “histéria” (em todas as Ifnguas romAnicas e em inglés) vem do grego antigo historie, em dialeto jOnico. Esta forma deriva da raiz indo-européia wid-, weidi, ver. Dafo s crito vettas, “testemunha’”, e o grego histor “testemunha” no sentido de “aquele que vé”. Esta concepgao da viséo como fonte essencial de conhecimento leva-nos a idéia de que hi tor, “aquele que vé”, é também aquele que sabe; historein em grego antigo 6 “procurar saber”, “informar-se”, Historie signi- fica, pois, “procurar”. E este o sentido da palavra em Herédo- to, no inicio das suas Histérias, que sio “investigagées”, “pro- 5 a curas”. Ver, logo saber, é um primeiro problema. Somos resultado e parte integrante de uma cultura que pri- vilegia a percep¢ao visual como fonte principal do conhecimen- to. Trata-se de uma tradigdo solidamente ancorada nas raizes de nossa Cultura (mesmo Deus teve de “ver” 0 ato mediante o qual Abrado se dispunha a sacrificar o seu filho Isaac para compro- var a sua f8; Sio Tomé foi admoestado por Cristo porque s6 po- deria acreditar na sua ressurreicdo se “visse” os sinais das feri- das deixados em seu corpo pelos pregos da cruz.e pela langa do soldado romano). Quando testemunhamos diretamente um evento, temos a sensagio de estarmos vendo “a” realidade empfrica, é “a” verda- de do fato que se manifesta diante de nossos olhos. Assim, apa- rentemente, a minha presenga em Berlim na noite de 9 de novem- bro de 1989 garantiu-me o acesso aos fatos “tais como eles real- mente aconteceram”, de uma forma muito mais completa e au- téntica do que se recebesse as imagens via televisdo. Mas a televi- sdo, com 0 seu aparato tecnolégico cada vez mais aperfeicoado, reivindica para si a capacidade de substituir com vantagem o olhar do observador individual. Diversas cémaras postadas em lugares distintos podem captar um ntimero maior de imagens—ou a mes- ma imagem segundo varios angulos—, com muito mais detalhes e com maior precisao do que ¢ facultado ao observador individual, como sabe qualquer torcedor que algum dia péde comparar um jogo de futcbol visto diretamente, a partir das arquibancadas do estddio, com o mesmo jogo transmitido pela televiso. Desse pon- to de vista, o telespectador que acompanhou de sua casa as ima- gens da queda do Muro de Berlim teve ao seu alcance um panora- ma visual muito maior do que aquele ao qual tive acesso direto. A luz da tradigao cultural que identifica “ver” com “saber”, é coerente, e até esperado, que o desenvolvimento tecnolégico dos meios de registro e comunicagdo, em particular a partir do final do século XIX (fotografia, cinema, televisdo, Internet), te- nha reforcado a importancia da percep¢ao visual. Mas quem vé, vé o qué? Da psicanilise e das ciéncias sociais sabemos, hoje, que o olhar 6 condicionado pela cultura, mas também — talvez, sobretudo— por uma série quase infinita de mecanismos incons- cientes (preconceitos, afetos, traumas, automatismos), a imensa miaioria forjada na primeira infancia (j4 em 1901, quando escre- veu Sobre a psicopatologia da vida cotidiana - esquecimentos, lapsos de fala, equivocos na a¢do, superstigdes e erros, Sigmund Freud mostrou, pela primeira vez, que os pequenos lapsos do cotidiano so amanifestagdo ou erupgao de mecanismos incons- cientes e oferecem uma via para entender o psiquismo). Nao existe o “observador neutro”. Testemunhar um evento é também construf-lo segundo o “aparelho ps{quico” e a forma- Go social e cultural da testemunha. Seria equivocado, por isso, opor radicalmente, de forma maniquefsta, uma suposta “neutra- lidade objetiva” daquele que presencia diretamente um aconte- cimento a “intencionalidade manipuladora” da camara de tele- visdo. E nao sé o olhar daquele que vé é social ¢ culturalmente moldado, mas também o é a meméria individual que faz reviver o evento presenciado, como evidencia a experiéncia de coleta de depoimentos acumulada pela pratica da histéria oral: Reconhecemos que a histéria oral estd longe de ser uma historia esponténea, no 6a experiéncia vivida em estado puro, ¢ que os relatos produzidos pela historia oral devem estar su- jeitos a0 mesmo trabalho critico das outras fontes que os histo- tiadores costumam consultar. (...) Para complicar ainda mais a questao, infelizmente nao possufmos dados muito satisfatori- os sobre como funciona a memoria humana. Como é, porexem- plo, que lembramos de certos tipos de experiéncia com preci- silo e esquecemos de outros? Como é que o envolvimento emo- cional altera as lembrangas? Afinal, como é que a meméria se organiza e se modifica? (...) A meméria nao é um fenémeno exclusivamente individual, mas resulta de determinagdes so- ciais complexas. Pensamos, lembramos e exprimimo-nos em formas social e culturalmente determinadas — como, alias, os antropélogos reconheceram faz bastante tempo." Descartado o maniquefsmo que opée o “observador neutro”, “espontineo” e, nesse sentido, “inocente”, aquele “contamina- do” e “manipulado” pelas imagens televisivas, recoloca-se ainda com maior forga a questo inicial: qual a diferenga entre presenci- ar pessoalmente uma acontecimento e vé-lo pela televisaio? No caso da imprensa escrita, o problema é de outra ordem. Enquanto a televisdo propicia a “comunicacio total” —recebemos texto e imagem prontos -, 0 texto solicita do leitor um acervo de conhecimentos com o qual ele possa compor e interpretar aquilo que est4 sendo narrado. Ao contririo do que acontece na relagéo do telespectador com a televisdo, que trabalha com a velocidade, a profusao de imagens segundo um ritmo ditado pelos clips pu- blicitarios, o leitor tem um controle muito maior do tempo que podera dedicar ao texto impresso (poderd ler tudo de uma vez, interromper a leitura e retoméJa depois, reler alguns pardgrafos, anotar observagoes etc). A excegaio de poucos jornais e revistas, a imprensa escrita adotou uma série de procedimentos destinados a “competir com a televisao” (textos curtos, pardgrafos pequenos, letras em corpos garrafais, fotos coloridas) de tal forma que o leitor nao se sinta “cansado” e possa ler da maneira mais rapida e cOmo- da possivel. Assim, 0 leitor do jornal esté exposto ao impacto da televisdo, mesmo que nao seja um telespectador. 2. Como a televisdo e a imprensa escrita criam metdforas que “explicam” o mundo, transformando-as em convic¢ées in- dividuais? Até que ponto a midia tem o poder de sedimentar como “a” realidade (isto é, como “fatos que realmente acontece- ram”), na meméria coletiva, as “suas” imagens dos eventos (isto é, as imagens por ela selecionadas e editadas)? Essa questéo, precisamente, coloca com toda a forga o pro- blema da “meméria” no final do século XX. Na memoria que as pessoas evocam aparecem, sobrepostas, interligadas, fundidas e confundidas, camadas de acontecimentos vividos e experimen tados no convivio direto com outras pessoas, com outras camadas de acontecimentos que | foram vividos e testemunhados por meio da | televisao (e, secundariamente, da leitura de i jornais ¢ livros), e nao raro as memérias tele- visivas so mais fortes e vivas do que as ou- | tras. Torna-se, por isso, imposstvel discutirme- moéria sem discutir midia. Sea “crise da meméria” s6 pode ser com- preendida 4 luz do contexto pés-modemo de crise de identidades e de ideclogias, para reto- mar os famosos diagnésticos levantados por | Max Weber (desencanto do mundo) e, mais tar- de, por yotard (crise das grandes metéforas ex- plicativas), a convivéncia da amnésiacomame- | méria 6 o mecanismo fundamental do jogo pra- ticado pela mfdia —a qual, basicamente, cons- titui um imenso banco de dados que, aparente a MEMORIA E CULTURA “Nao requer muita soistcagéo te- fica ver que todas as representa- cies ~ Sejam na linguagem, nanar- ‘ativa, na imagem ou no som gra vado = estdo baseadas na memd- tia, Re-presentacao sempre vem depois, emibora alguns melos de comunicagde tentem nos fornecer a ilusdo da ‘pura presenca . Mas 20 inves de nos quar até algume or gem supestamente auténtica, ou mos dar um acesso verficdvel an real, armeméria, até mesmo ou 25 pecialmente, por vir sempre depois, em si baseada na representacée. O passado nao esta simplesmente alina meméria, mas tem de ser ar- ticulada para se transformar em meméria. & issura que Se opera ene enperienciar um acontecimen- toe lembrd-lo coma representagao ¢ inevitave (Andreas Hurssee, Memdrias do mo- desnisire, pp. 120-123.) paradoxo, aposta permanentemente no esquecimento como con- dicao basica para apresentar o “velho”, o "jd visto” como 0 "'sem- pre novo”. As metéforas construfdas pela midia ocorrem nesse contexto preciso, em que, a falta de novas (e velhas) utopias, ins- taura-se a “ética da sobrevivéncia”; 6 o império do “eu narcisico” que faz a gloria do discurso neoliberal. Existe uma contradigdo desconcertante em nossa cultura, De um lado, ha aquela lamentagio bem conhecida a respeito da amnésia induzida pela mfdia, um tema recorrente da crfti- ca cultural desde 0 inicio do século XX. Porém, esse inques- tiondvel “enfraquecimento da historia” e da consciéncia hii térica, a lamentagao quanto ao esquecimento politico, social e cultural, e os varios discursos, celebratérios ou apocalipti- cos, sobre a post histoire tam sido acompanhados na tiltima década e meia por um boom da meméria de proporgées som precedentes. Ha grandes debates sobre a meméria nas ciénci- as culturais, sociais e naturais. (...) A dificuldade da conjun- tura atual é pensar a meméria ¢ a amnésia juntas, em vez de simplesmente op6-las. Portanto, nossa febre nao 6 uma febre de consumir a histéria, no sentido nietzschiano, que pode ser curada por um esquecimento produtivo. 5 antes wma fe- bre mnem6nica que é causada pelo virus da amnésia e que por vezes ameaga consumir a propria memria.” 3), finalmente, quais as implicagées politicas, econdmi- cas e sociais do poder adquirido pela midia na sociedade con- temporénea? Ou: até que ponto os meios de comunicagdo de massa sdo uma forga determinante nos rumos dos fatos histéri- cos [isto é, da histéria publica, do evento politico}? ‘Todas as indagagées anteriores convergem para o problema do poder. Simultaneamente a aceleragdo do desenvolvimento tecnolégico, ocorreu um processo de concentragiio de poder nas maos de um pequeno ntimero de corporagées da mfdia. Cada vez mais, um mimero menor de corporagées detém o poder de determinar o que é ¢ o que nao é noticia. O processo de concen- tracao de poder “medidtico” jogou 4gua fria nas esperangas da- queles que acreditavam nas redes de televiséio a cabo como possi- bilidade de um processo de descentralizacio, mediante a even- tual multiplicagao de centros emissores de noticia. As grandes corporagées acabaram dominando também 0 filo da televisio a cabo (ou digitalizada). As grandes corporagdes mantém estreitos vinculos com o poder de Estado, ainda que nem sempre esses vinculos sejam simples e diretos (como foram, por exemplo, entre a Rede Glo- bo ea ditadura militar, desde 1966, quando a emissora foi fun- dada com a “missao” declarada de contribuir para a “integra- gao nacional”), Antes de concluir esta introdugao, resta fazer uma observa- cao sobre a bibliografia adotada. Recorro a um quadro de referén- cias tedricas delimitado por quatro grandes “eixos" que poderi- am, de forma muito panoramica, ser descritos como “marxista” (incluindo a Teoria Critica e os seus seguidores, entre os quais Jiirgen Habermas e Andreas Huyssen), “conservador” (centralmen- to, Martin Heidegger), “pés-modemnisia” (Jean Baudrillard, Paul Virilio, Michel Foucault e outros filiados ao método dagenealogia de Nietzsche) e aquele formado pelos que se debrugaram sobre a critica da cultura e da midia (Pierre Bourdieu, Umberto Eco, Ri- chard Rorty, Noam Chomsky, Hannah Arendt). Sei correr o risco de cairem “armadilhas” e impropriedades conceituais, ainda mais quando se sabe que varios dos autores citados mantiveram entre si fortes polémicas tedricas. Mas esse é um risco inevitavel, dado que é préprio ao objeto deste estudo o seu cardter fragmentério, eldstico e fluido. Nao vejo como abarcé-lo adotando um método de andlise filosoficamente “homogéneo" ou “puro”, Um bom exemplo das dificuldades metodolégicas enfrenta- das pelo historiador contemporaneo foi dado por Sérgio Paulo Rouanet, em seu belo trabalho As razées do Ihuminismo. Ao lon- go de 45 pdginas’, Rouanet procura sistematizar e explicar as dife- rengas que separam Habermas de Foucault, nos campos da erftica da sociedade, do saber e do sujeito. Mas, explicados os numero- sissimos antagonismos entre ambos, Rouanet conclui que as dife- yengas “nao bastam para caracterizar a existéncia de qualquer fron- teira, de direito ou de fato, entre Jiirgen Habermas e Michel Fou- cault”! Sustenta que Habermas poderia ser classificado como “pds- moderno”, assim como Foucault de “moderno”. Essa conclusao é sintomdtica de uma época, que tornou extremamente ténues as fronteiras entre os saberes e seu modo de organizagao.” A produ- Go de saber e conhecimento, no mundo contemporaneo, se dé-se por meio de um inevitdvel jogo que coloca em agao (em relagdes de cooperagiio e/ou de choque) varios sistemas de conceitos cien- tificos e filosdficos, de valores éticos e estéticos. Finalmente, nunca seré demais insistir: 0 principal estimu- lo Arealizagio deste trabalho foi a rara oportmidade de ter pre- senciado acontecimentos monumentais. Recorro, aqui, ao teste- munho de Hobsbawn: Meu conhecimento de pessoas ¢ lugares, embora forgosa- mente parcial ¢ enganador, me foi de enorme valia, mesmo tratando-se tao-somente de visitar a mesma cidade num in- tervalo de 30 anos — Valéncia ou Palermo -, fato que permite compreender a rapidez e o Ambito da transformagao social no terceiro quartel do presente século, ou mesmo tratando-se tao-somente da lembranga de algo dito hd muito tempo em alguma conversa ¢ guardado, as vezes sem motivo claro, para uso futuro, Se historiador tem condigées de entender algu- ma coisa deste século 6 em grande parte porque viu ¢ ouviu.” |. Memorias ¢ historias . 7) | Telenovela ou a domeslicacan do imagiiarin Na noite de 29 de dezembro de 1992, foi assassinada a atriz, da Rede Globo, Daniela Perez, que a época interpretava a personagem Iasmin na novela De corpo e alma (levada ao ar de agosto de 1992 a margo de 1993). A jovem foi assassinada pelo ator Guilherme de Padua, com quem contracenava na telenove- la. Nos dias seguintes ao assassinato, jornais, revistas e emisso- ras de televiséo dedicaram paginas e paginas ao assunto. As re- portagens, assim como leitores e telespectadores, participavam. da confusio entre Daniela e lasmin. Daniela elasmin se tornaram wm sé ser, nem humano nem ficticio, algo existente numa espécie de fronteira tnue e difusa entre as duas coisas. Daniela emprestou seu corpo e sua aparéncia a Jasmin, Tasmin tirou | AEXPOSIGHO “CBSCENA” DE DANIASMIN Daniela do anonimato e lhe deu uma identi- dade, um enredo, uma trama na qual as pes- soas se espelhavam e se reconheciam. A Rede Globo incluiu o desaparecimen- to de Daniela num capitulo solene da teleno- vela, cujo enredo fora escrito por Gléria Pe- rez, mae da jovem assassinada. Nesse capftu- lo, as personagens, uma por uma, faziam de- claragdes de saudade e apreco por Daniela — nao por Jasmin, a personagem, mas pela atriz assassinada. Foi um momento de cumplici- | dade catértica absoluta com os telespectado- Tes; a representagao da vida deixou de ser ape- nas representagdo para ser a propria vida. Todas as distancias entre ficgao e “vida real” — aqui entendida como mundo empiri- co, fora da tela - foram apagadas. A telenovela virou “reporta- gem”, assim como os telejornais, naqueles dias, viraram os cap{- tulos mais “quentes” da telenovela. E como se a vida houvesse permitido, subitamente, uma inversdo do antigo sonho de todo cinéfilo, penetrar na tela e passar a fazer parte do mundo do filme, tao maravilhosamente explorado por Woody Allen em A rosa purpura do Cairo. As personagens da telenovela saltaram da televisio para a vida. Em tom sensacionalista, os telejornais, a imprensa es- crita e mais ainda a especializada em programas de televisio divulgavam com detalhes cada mfinimo fato referente as in- vestigagdes da polfcia, além de reverberar com exagero as minimas declaragdes de qualquer personalidade, artista, jor- nalista, policial, médico ou quem quer que fosse com 0 mini- mo de projecio puiblica. O que torna o caso de Daniela Perez singularmente interessante é, precisamente, a confusio entre a vida real e a telenovela. Como ela foi pro- SENSACHONALISMO PARA RS “ELITES” _ tagonista de ambos, 0 apagamento de fron- Meso as evs sevanais #28 toiras entre os géneros foi total. Distingue- ‘5to£, supastamente enderecadas 2 se, nesse sentido, de outros episddios de transformagao dos fatos da vida em teleno- um dedicaram va ss pa pena docrme es de 06n.1993}. Ya deu uma . a sersacitnalsta 20 assunto Vela, como ojulgamento de ©. J. Simpson e 13,an.1993), comasse- 9 da vida e morte da princesa Diana. dguintes thuloe subtitulos: “O pacto . . ce sangue~ Gulerme:pecas gays, As noticias sobre 0 caso disputavam, nistriae pal as atengdes dadas aos eventos referentes & Paula: ciume doen e conato com ‘ncia do enta idente Fi do Ci | naie barayesade", chamandy P@Mncia do entao presidente Fernando Co- para uma reportagem de seis pagi- lor de Mello, anunciada em 28 de dezem- ta AFava agum Weasel 44 Nig momento em que o Jornal Nacional da Rede Globo mostrou a reportagem sobre a morte da atriz, o Ibope atingiu 66 pontos, quando a média, a época, era de 55 pontos. Esse episédio atesta, de maneira exem- plar, a capacidade da televisdo de criar mun- dos “reais”. Ou melhor, mundos aos quais 0 olhar empresta uma realidade, que se torna DANIELA BATE COLLOR “Oassassinate da atviz Daniela Pe- «ez trou 0 brite ontem do aconte mento pollica mais esperado em 1992, a rendncia ce Fernanda Color de Mello. “Que Call que nada. 0 pape do cia 6 a morte da mening’ {ise o orale da praca Vlaboim ve a | Pigiendpals, assim uma realidade vivida no intimo dos te- | pais) Feliciano Olive lespectadores, com o seu consentimento. A | tsp aint identidade do telespectador com as persona- | : gens da telenovela ocorre por um processo de | “enquadramento” da vida num certo enredo permitido e tolerado. O processo de identificagao permite viver certas emogdes sem correr riscos, no isolamento de sua casa e cercado de todas as garantias (nada mais conhecido do que o enredo de uma telenovela). ogonarcsio £ 6bvio, ha uma elevada dose de narcisismo nesses pro- cessos de identificacdéo. Mesmo inconscientemente, escolho os aspectos que merecem ser iluminados na composigao de tal ou qual personagem, os aspectos que melhor me descrevam para mim mesmo e para os outros de acordo com aquilo que penso a meu respeito, Ou, ao contrério, escolho a figura que deve ser odiada por se opor 4 minha imagem ideal. Projeto minha ima- gem ideal naquelas com quem me identifico, e os meus proble- mas, minha sombra, a drea “escura” de minha vida eu jogo na lata do lixo. No ato de participar intensamente da trama da tele- novela, perde-se a consciéncia de que tudo nao passa de fanta- sia. Os telespectadores depositam nas criagdes de telenovela expectalivas que transcendem o mundo do faz-de-conta, como se as imagens correspondessem a pessoas vivas, de came ¢ osso. a CORPO, EMOGAO E MEMORIA 0s fies) sao uma experiencia rvo tal sd0 lembradas, pre ‘ional faust mestraram-nos ndrtas sao na verdade mais proximas do ou do paladar que da combi nnagao das categorias de Kant; ou talverfosse melhor dizer que me- sfo, acima de tudo, recor pode acoat palavras forem suficientemente sensoriais(..."Freric scx, AS O drama da personagem é fantasioso, mas a légrima queo telespectador derrama ou a palpitagao de seu coragao é real. As pessoas projetam os problemas, as frustrages, as ex- pectativas e as emocdes sentidos em sua vida didria. Esse mecanismo de projeg4o torna-se parte constitutiva da economia psiquica dos telespectadores, inscreve-se no seu corpo como meméria de emogées efetivamente vi- vidas, A telenovela adquiriu a densidade de um fato do mundo. Noite apés noite, durante os anos 90, cerca de 30 milhées de brasileiros do visvel,p. 1.) ete ; q i assistiram a telenovelas c minisséries (mais de quinhentas j4 produzidas, desde que a primeira novela foi ao ar, em julho de 1963, as 19h, pelos canais 9 de Sdo Paulo e 2 do Rio de Janeiro, com 0 titulo 2-5499 Ocupado' ). Em alguns casos, as personagens adquiriram visibilidade muito maior do que, em geral, aquela conquistada por polfticos. Dificilmente alguém foi mais odiado no Brasil do que Felipe Barreto, o playboy interpre- tado por Anténio Fagundes na novela O dono do mundo (Rede Globo, maio de 1991 a janeiro de 1992), Fagundes experimen- tou em sua pele esse Gdio, ao ser agredido por pessoas na rua (em curiosa contrapartida, foi também elogiado por certas “soci- edades machistas”). Tampouco pode ser esquecido o clima de sensacionalismo que tomou conta do pais quando se colocou a questdo sobre a identidade do assassino de Odete Roitman, pa- pel interpretado pela atriz Beatriz Segall na novela Vale tudo (Rede Globo, maio de 1988 a fevereiro de 1989). No interior dessa trama que alimenta e é alimentada pelas projegées dos telespectadores, as diversas personagens so mo- ralmente definidas, equacionadas e metabolizadas pelo autor e esteticamente construidas por uma equipe de producao. O teles- pectador é entao solicitado a tomar partido ¢ sua voz passa a ser auscultada por pesquisas de opinido, que, por sua vez, alimen- tam um proceso reiterativo que sedimenta e reforca preconcei- tos, consensos, percepgées. A partir da ficgao - mesmo quando apresentada como ficgdo —, a televisao é capaz de mobilizar as pessoas, criar debates e forjar um simulacro de “participacao”. A ilusao da “participagdo interativa” foi levada a um ntvel radical com a série semanal Vocé decide, da Rede Globo. O pro- grama funciona como uma espécie de consulta plebiscitéria: ele propée algum problema, em geral de contetido moral — fulana deve ou nao ceder ao assédio sexual do patrao para manter 0 emprego?; sicrano deve ou nao entregar uma nae No LUGAR DO COKV/¥IO SOCIAL mala de dinheiro que encontrou no banco de stelenayelafazparte,domina,gre- um taxi? etc. —e oferece duas solugdes possi- erie a cotidiano das is (“sim” ou “nfo”), Otelespectador 6 cha. _ ™2"#iaiadsscass deforma veis ('sim” ou “ndo"), Otelespectador é cha [3s arsnecrcore ds mado a opinar, por telefone. Milhares partici- que a propria vida. Aimeciat pam. Os resultados das votagGes sio armaze- iat’ an cotidia nados pela emissora, que assim adquire uma —_ ume substituir um convivio nogio exata de tendéncias de comportamen- {0 tmastri de flares rao . “ se da mais, mas, principalmerte to. Estes resultados poderao, depois, ser cru- por entrar para esse convivie atra zados com outras pesquisas feitas junto a au- | #5“ um comporent ce familia oe on ridade.E essa familiaridade dodiae diéncia de telenovelas, minisséries e de tele- | g-distelenavelistica que garants ¢ jornais. Trata-se de um valioso capital, que | ‘lta 2 aceltareo das pessoas. - Mas a familigridade em poderd ser empregado na produgao de novos telejornais ¢ telenovelas ou vendido a empre- fativos também esta narrativa nae introduzir uma sub ‘verso muito flagrante na cotidia- nidade; de ela ser exatamente ado- rada por voltar sempre 2 madeios Disicos, costumeiro ej digeridos dos receptores.” (Ciro Menem, tuo, Felevisdo p. 45) sas interessadas em utilizar os dads para a produgio de mensagens comerciais e campa- nhas de politicos. Umberto Eco atribui grande parte do po- a cde deve-se ao fato de ela estar as- o fato de 3 der sedutor da televisao a “ilusdo de cordialidade” que 0 vefculo propicia. Basta ligar o aparelho (“fécil vefculo de faceis suges- tées") e a sala da casa, antes imersa na mais profunda solidao, serd invadida por imagens, vozes e sons do mundo, criando a sensagdo de participagdo de uma comunidade iluséria. O teles- pectador mantém uma relagdo “onanistica” com essas imagens, tanto no sentido de projetar suas fantasias em {dolos (artistas, cantores, galas de novela etc.) quanto no de experimentar 0 gozo da participagdo nos eventos, sem contudo se expor ao acaso ou correr qualquer risco real. Por outro lado, sobre a relagao “hipnética” com o video, psicdlogos ¢ estudiosos de ciéncias sociais jé de ha muito dis- correram, levantando exatamente o problema de uma comuni- cagao que se prope como “experiéneia cultural”, quando, na realidade, nao tem as conotac6es fundamentais desta. Uma comunicagao, para se tornar experiéncia cultural, requer uma atitude critica, a clara consciéncia da relagéo em que se esta inserido, ¢ o intuito de fruir de tal relagdo. Esse estado de ani- mo pode verificar-se seja numa situagao publica (num debate) seja numa situacdo privada, melhor ainda, de absoluta intimi- dade (a leitura de um livro). A maior parte das investigagBes psicoldgicas sobre a audiéncia televisional tendem, ao contré- rio, a defini-la como um particular tipo de recepgao na intimi- dade, que se diferencia da intimidade critica do leitor por as- sumir 0 aspecto de uma aceitagdo passiva, de uma forma de hipnose. (...) Nesse estado de Animo de relaxamento, estabele- ce-se um tipo muito particular de transago, pelo qual se tende a atribuir 8 mensagem o significado que inconscientemente se deseja. Mais do que em hipnose, pode-se aqui falar em auto- hipnose, ou projegao.” Eco lembra, ainda, que os mecanismos de projegao de de- sejos inconscientes do telespectador ficaram patentes em 1938, quando Orson Welles fez a famosa transmissao radiofOnica que noticiava a invasdo da Terra por marcianos, baseando-se em conto de H, G, Wells. O programa causou panico e episédios de fuga em massa em Nova York. As pessoas que escutaram 0 programa tinham meios de perceber que era uma dramatizagao — o titulo do programa anunciava tratar-se de um conto de Wells —, mas. dado 0 fato de que todos viviam num perfodo de particular ten- sao internacional (inicio da Segunda Guerra Mundial), escolhe- ram a solugao inconscientemente esperada. Ainguagem da televisdo A televisdo, lembra Eco, nao é um género artistico, um fato artisticamente unitério como o cinema ou 0 teatro, E um servigo”, um meio de comunicagao pelo qual se pode veicular uma série de géneros, incluindo o cinema, 0 teatro, shows, espe- taculos, telejornais e comerciais. Existe, no entanto, uma lingua- gem televisiva, que obedece a leis préprias e, no ato de transmis- sao, também modifica o modo de recepgfio dos géneros veicula- dos. £ completamente diferente, por exemplo, assistir a um fil- me em casa, pela televisdo, e numa sala tradicional de proje compartilhada por estranhos. Exatamente por ser um canal de servigos que oferece uma multiplicidade de programas de todos os géneros — art{sticos, jornalfsticos, esportivos etc. -, a televisao permite a facil transposigao dos limites entre ficciio e realidade. O fim da fronteira entre informagao e entretenimento obri- gou 0 telejornalismo a se adaptar ao ritmo das mensagens publi- citérias: ninguém que tenha acabado de passar pelo impacto vi- sual proporcionado pelas mensagens da Coca-Cola ou Marlboro suportaria uma seqtiéncia longa (mais do que trinta segundos) ou densa sobre algum evento. As notfcias sao apresentadas por belas mulheres, ou por “4ncoras” que funcionam como show- "VENDE-SE" UM CANDIDATO. (0 politics aparece como um pro- que se apraximam bastan te dos vigentes no mundo do can sum, Assim, essa mudang ramets deel de que a tecnopolitica cada vez mais ampla instrumentas que vém de mundo da produgdo, do comeér- cio, da publicidade” (Stefano Reoos, Teonopaitca (ta men, nao tendo importancia o fato de eles sa- berem ou nao de que trata a notfcia lida no teleprompter. Mesmo - ou, talvez, principalmente -o comportamento de um politico candidato a um cargo eletivo deve espelhar-se no de cele- bridades (incluindo a aparéncia, a gesticula- Go, 0 estilo do discurso), de tal forma que o candidato seja percebido como parte de um 2a ele Muove eenotgis | mundo espetacular, Na disputa ao governo do one) ce Estado de So Paulo, em 1998, por exemplo, o publicitario Duda Mendonga dirigiu a cam- panha de Paulo Salim Maluf. Por exigéncia de Mendonga, Ma- luf fez uma cirurgia para dispensar os éculos e uma operacaio plastica para eliminar “bolsas” na parte inferior dos olhos, Sintomaticamente, as trés tiltimas décadas foram ricas em filmes que tiveram a midia como tema—mais especificamente, a relagdo entre mfdia, noticia e espetdculo. E emblemitica a série televisiva Max Headroom, 20 Minutes in the Future (Francis Delia e Janet Greek, 1987). No mundo de Max, apresentador de telenoticidrio criado por computador, é proibido desligar a tele- visdo. Outros filmes dramatizam o tema, como Network (Sidney Lumet, 1976), Broadcast News (James Brooks, 1987), Hero (Ste- phen Frears, 1992), The Paper (Ron Howard, 1994), Mad City, Costa-Gravas, 1997), Winchell (Paul Mazursky, 1998), The Tru- man Show (Peter Weir, 1998). Nao se trata mais de mostrar 0 jornal como um panfleto instrumentalizado pelo seu proprieté- rio, como no caso do Citizen Kane (Orson Welles, 1941), mas da espetacularizagao da noticia. © que importa, nos atuais programas de telejornalismo, é o impacto da imagem, assim como 0 ritmo de sua transmissiio. pe Como no videoclipe, uma sucesso de imagens é “costurada” de maneira aparentemente aleatéria, mas que em seu conjunto re- forcam uma certa mensagem. No caso do videoclipe musical, as imagens servem para criar uma atmosfera propicia a fruicao de determinada fantasia: roméntica no caso de baladas, erdtica no caso de muitas cangGes de rock pesado e assim por diante. No caso do telenoticidrio, as imagens reiteram uma certa percepgao do mundo (mulheres com véu no Isla, negros famintos na Afri- ca, “bandidos” negros etc.). O que se fixa, na memoria do teles- pectador, sdo flashes. “fume lembro da Guerra do Golfo." Sera? Fui convidado, ao longo dos anos 90, a dar palestras a jovens estudantes universitarios e do ensino médio sobre temas relacionados & politica internacional. Participei de centenas de eventos desse tipo, coma presenga de milhares de estudantes de idade variando entre os 16 e os 30 anos, de Porto Alegre a Maca- pa. Na maioria desses eventos— quando eu jé estava em fase de elaboragao deste trabalho -, aproveitei a oportunidade oferecida pelo contato com amplas audiéncias e adotei a pratica de, em dado momento, sempre perguntar: “Vocés se lembram da queda do Muro de Berlim (ou da Guerra do Golfo, ou da invasao da Somilia etc.)?" Alguns — ndo muitos - respondiam afirmativa- mente, Perguntava, entéo, do que, exatamente, eles se lembra- vam, ¢ eles, em resposta, narravam, mais ou menos fragmentari- amente, aquilo transmitido pela televisdo. Obviamente, as lembrangas se referiam as cenas mais “es- petaculares” (a multidao que derrubava com picaretas o Muro de Berlim; a sensagao de videogame na Guerra do Golfo; soldados desembarcando de helicépteros no Haiti; cenas de fome “na Afri- ca” — nunca sabiam 0 pats) etc. Eles se lembravam das imagens, mas nao conseguiam explicé-las. Sabiam que havia acontecido uma Guerra no Golfo ou que havia cafdo o Muro de Berlim, que os islamicos sao “fandticos” e que “o socialismo nao deu certo”. Mas foram, em geral, incapazes de criar uma narrativa sobre um acon- tecimento que, no entanto, fazia parte de sua meméria. Jean Baudrillard dira que o desaparecimento das fronteiras entre ficg&o e realidade atribuiu 4 mfdia nao apenas a capacidade de criar fatos, como também a de criar a “opinido publica” sobre os fatos que ela mesma gerou. Para ele, a capacidade de “coloniza- ao do imaginério” pela midia transformou a propria opinigo em mero simulacro. Baudrillard compara a “massa” - considerada uum todo orginico (idéia cara a todos os projetos totalitdrios) — aos animais submetidos a “exames de laboratério”. Essa imagem, mesmo se exagerada, ajuda a entender a importancia das “pesqui- sas de opiniao” instrumentalizadas pelas “elites”: Bombardeadas de estimulos, de mensagens e de testes, as massas nao sfio mais do que um jazigo opaco, cego, como os amon- toados de gases estelares que sé so conhecidos através da anilise de seu espectro himinoso — espectro de radiagdes equivalente as estatisticas e &s pesquiisas de opiniao (...) A massa se cala como os animais e seu siléncio é comparével ao siléncio dos animais. Embora examinada até a morte (e a solicitacao incessante a que submetida, a informagao, equivale ao suplicio experimental dos animais nos laborat6rios), ela nao diz nem onde esté a verdade: & direita, a esquerda? Nem o que prefere: a revoluco? A repressfio? Ela nao tem verdade nem razao. Embora Lhe emprestem todas as palavras artificiais, ela nao tem consciéncia nem inconsciente, Esse siléncio é insuportavel. E a incognita da equacdo politica, a incdgnita que anula todas as equagdes politicas. Os resultados da “cirurgia” (a auscultagao da “opiniéo publica”) sao “vendidos” pela mfdia como a expressao da “ver- dade”, tornando-se com isso parte constitutiva da prépria situ- acao que foi objeto da “pesquisa de opiniao”. Um exemplo muito claro aconteceu durante as j4 mencionadas eleigdes para 0 go- verno do Estado de Sao Paulo, em 1998. As vésperas do pri- meiro tumo, as pesquisas indicavam que os dois candidatos mais votados seriam Paulo Salim Maluf e Francisco Rossi, e Mario Covas, em terceiro lugar, estava praticamente empatado com Rossi; Marta Suplicy amargaria um longfnquo quarto lu- gar. Apurados 0s votos, constatou-se que a candidata do PT poderia ter ido ao segundo turno, para disputar com Maluf, nado fosse o fato de que muitos de seus eleitores preferiram mudar 0 voto, por acreditar nas pesquisas. Optaram por Covas, para evitar que a disputa no segundo turno ficasse entre Maluf e Rossi. O “diagndstico de opiniao” foi decisivo para criar uma situagdo que acabou confirmando sua propria previsio. Jlirgen Habermas compara 0 processo de “fabricacfio” da opiniao publica ao empregado pelos mecanismos de relagdes pui- blicas das empresas interessadas em vender determinado produto: Embora as public relations devam estimular algo como a venda de determinados artigos, 0 seu efeito acaba sempre sendo alguma coisa mais que isso; j4 que a publicidade para produtos especificos passa a ser desenvolvida pelas vias indiretas de um fingido interesse geral, ela nao acarreta nem assegura apenas o perfil da marca e uma clientela de consu- midores — muito mais, ela ao mesmo tempo mobiliza para a firma, para um ramo da economia e até para todo um siste- ma um crédito quase-palitico, uma espécie de consenso que 86 se teria com autoridades puiblicas. Naturalmente, o consenso fabricado nao tem a sério muito em comum com a opiniao publica, com a concordancia fi- nal apés um laborioso proceso de recfproca Aufkldrung (clarificagao), pois 0 “interesse geral”, & base do qual ¢ que somente seria possfvel chegar a uma concordancia racional de opinides em concorréncia aberta, desapareceu exatamente 4 medida que interesses privados a adotaram para si a fim de se auto-representarem através da publicidade.” Esse mecanismo de “fabricagao da opiniao” simula a de- mocracia: aparentemente, a “opiniao” divulgada pela midia in- terfere no curso dos acontecimentos, dando a ilusao de que o publico foi levado em consideragao. Na realidade, os individu- os permanecem isolados, espalhados pelas mais distintas cida- des, regides, estados e pafses, sendo virtualmente “unificados” pela midia, mas sem terem exercido qualquer interlocucio. Ea “4gora eletrénica” que simula a antiga polis, onde tudo se deba- tia. As megacorporagées simulam a 4gora que legitimara suas estratégias de dominagio e controle. 2. 0 império das corporacdes Em janeiro do ano 2000, a American On Line (AOL, empre- sa criada em 1989, proprietéria do provedor da Internet mais uti- lizado do planeta, com um total mundial de 22 milhGes de clien- tes, incluindo 54 por cento dos usuarios nos Estados Unidos) tor- nou puiblica uma oferta de 166 bilhées de délares para adquirir a ‘Time-Warner (proprietéria da gravadora dos discos de Madonna e Cher, dos canais de filmes, desenhos e notfcias mais assistidos — HBO, Cartoon Network e CNN -, uma rede de televisio a cabo com mais de 13 milhGes de residéncias filiadas e 32 titu- los de revistas, entre as quais a camped Time). Essa transagao, por si s6, permite dimensionar os interesses que esto em jogo no mundo das megacorporagées. Elas constituem, hoje, um componente essencial ao funcionamento do capitalis- mo internacional. E nao poderia ser dife- rente: as megacorporagées da midia fo- ram criadas no interior do mesmo pro- cesso econémico e politico da economia capitalista que desembocou no imperia- lismo. No comego de sua histéria, até o final do século XVII, a imprensa era organizada como empresa artesanal, mais preocupada com a divulgagao de | OLIGOPOLIOS “Em 1980, 0 companhias respond am pax 90% do feturamento com fexmagéo eenveteiments en 1990, menos da meta dels fcava com os mesinos 90%, Dencurtamento do mer- cad grew se pes a primaire onda ce fuses e anusigbes de empresas, As princpais tansages tramas an. (sd ee NBC pela General Elevice da rede ABC pelo grupo Capital Cities, amb em 1986; 2 Fuso da Tien corpeated coma Wamer Cormunica tions, em 1989; a consign da ca eis Fox pla Nows Corporation gra ‘asnoxrperacan de emissvas inde pendentes, em 1960, a rane scons acids da Colum- bia Pictures eda MCA Universal para 5 Japonesas Sony e Matsushita, res- pctvamente, em 1990. (A MCA | sal flee, 1995 por USS 5,7 bile, ao grupo canadense Soa gany (Denis ce Morse, Paneta midi, pp. 64s.)

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