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SOBRE A VIOLÊNCIA – HANNAH ARENDT

1. Vida

Hannah Arendt nasceu em 1906 no seio de uma família judia perto de Hannover. Depois da
morte de seu pai, em 1913, foi educada de forma bastante liberal pela sua mãe, que tinha
tendências social-democratas. Através de seus avós, conheceu o judaísmo reformista. Sempre se
considerou judia, inclusive participando do movimento sionista.
Estudou na Universidade de Marburg, sob a orientação de Martin Heidegger, Nicolai
Hartmann e Rudolf Bultmann. Mais tarde em Freiburg tem como mestre Edmund Husserl. Termina
o seu percurso na Universidade de Heidelberg, onde se forma em 1928, sob direcção de Karl
Jaspers, com a tese: O conceito de amor em Santo Agostinho.
É na década de trinta que Arendt começou a interessar-se cada vez mais por
questões políticas. Lê Marx e Trotsky e analisa a exclusão social dos judeus. Publica vários estudos
nos quais expõe as suas ideias sobre a independência do judaísmo.
Com a ascensão de Hitler e do nacional-socialismo afasta-se cada vez mais de uma identidade
definida em termos de ser alemã e escreve “para mim, Alemanha é a língua materna, a filosofia e a
poesia”. Nesta mesma época, Arendt defendia a postura de que se devia lutar activamente contra
o nacional-socialismo, posição contrária à de muitos intelectuais alemães, inclusive alguns de
origem judaica, que pretendiam aproximar-se do nacional-socialismo, subestimando a ditadura e
elogiando o novo poder. Pouco antes de sua morte sustentou que muitos pensadores fracassaram
frente ao nacional-socialismo quando se comprometeram com o regime.
Em 1933 Hannah Arendt, por ser judia, foi proibida de defender uma segunda tese que lhe
daria acesso à docência. Deixou a Alemanha, passando por Praga e Genebra antes de chegar
a Paris, onde trabalhou nos seis anos seguintes com crianças judias expatriadas e tornou-se amiga
do crítico literário e filósofo marxista Walter Benjamin. Quando a França foi ocupada pelos
alemães, Arendt foi presa. Consegue escapar do campo de concentração em 1941 e parte para os
Estados Unidos.
Nos Estados Unidos, trabalha em diversas editoras e organizações judaicas. Em 1963 Hannah
Arendt é contratada como professora da Universidade de Chicago, onde ensina até 1967, ano em
que se muda para Nova Iorque e passa a leccionar na New School for Social Research, instituição em
que permanece até à sua morte em 1975.
O trabalho filosófico de Hannah Arendt abarca temas como a política, a autoridade, o
totalitarismo, a educação, a condição laboral, a violência e a condição feminina.

2. Livros

As origens do totalitarismo (1951)


A condição humana [Labor, Work and Action] (1958)
Sobre a Revolução [comparação Revolução Americana e Francesa] (1963)
Eichmann em Jerusalém [banalidade do mal] (1963)
Sobre a violência (1969)

3. Sobre a violência

3.1. Contexto

Esta obra foi escrita no contexto das revoltas levadas a cabo quer por estudantes, quer por
trabalhadores no final da década de sessenta do século passado. De referir sobretudo as revoltas
estudantis em algumas universidades famosas dos Estados Unidos, com Berkeley; a luta racial dos
negros na América e o pano de fundo da morte do pastor protestante e activista político Martin
Luther King; o Maio de 1968 em França, onde às pretensões dos estudantes se juntam as dos
trabalhadores e a intervenção de De Gaulle.
Além disso, o texto evoca o contexto da guerra fria e a luta das superpotências pela corrida
aos armamentos e supremacia táctico-estratégica. A obra procura sobretudo conceptualizar o
fenómeno da violência, reconhecendo o seu carácter instrumental e mostrando as diferenças desta
em relação ao facto político, do qual não pode ser a justificação, mas com o qual por vezes se
mescla, confunde e alia.
3.2. Organização do texto

A obra está organizada em três partes, simplesmente enunciadas, sem qualquer título, às
quais se segue um apêndice com observações da autora e de outros autores ao texto apresentado.

I - A primeira parte procura equacionar os motivos que levaram a autora a escrever o texto e
a problematizar a questão principal, isto é, a relação entre a política e a violência. A autora procura
demarcar claramente o campo no qual a violência se move e precisar o seu conceito, através do
carácter instrumental da violência que define a sua natureza.
Para o fazer, dialoga com o pensamento de outros autores, como Marx e Hegel e as filosofias
da história. Outro exemplo citado ao longo do texto são Georges Sorel (1847-1922), teórico do
socialismo revolucionário, e o seu livro Reflexões sobre a violência (1908), onde distingue violência
de força bruta e faz a apologia do mito político como força motriz. A este junta-se Frantz Fanon
(1925-1961), médico psiquiatra francês, extremamente comprometido com a independência da
Argélia, cujos estudos versam sobretudo sobre as causas psicológicas da violência. Segundo Arendt,
estes autores, juntamente com Vilfredo Pareto (1848-1923) celebraram a violência pela violência
tendo como motivação um ódio muito mais profundo pela sociedade burguesa (p. 71).
A autora dedica algumas páginas a um exercício crítico da ideia de progresso, herdeira do
Século das Luzes, mostrando que a mesma não pode servir de critério de avaliação dos processos
de mudança.

II – O segundo ponto procura refutar entre outras a tese que a violência é a mais flagrante
manifestação de poder. Assim, procura formular claramente em termos de filosofia política qual é a
natureza do poder, mostrando as suas distância em relação aquilo que seria a dominação do
homem pelo homem, pois a autora refuta veemente a convicção segundo a qual a mais decisiva
questão política seja a de saber quem manda em quem (p. 49). Por conseguinte, fiel à sua forma de
pensar e discernir as estruturas da acção, a autora passa a distinguir claramente alguns conceitos-
chave que passamos a enumerar:
Poder: capacidade humana, não só de agir, como de agir concertadamente. “O poder
nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e só continua enquanto o
grupo mantém a sua união” (p. 49).
Potência: designa qualquer coisa numa entidade singular, individual; trata-se de uma
propriedade inerente a um objecto, ou a uma pessoa (p. 49).
Força: termo aplicado para referir as “forças da natureza” ou então “a força das
circunstâncias”, isto é, para indicar a energia despendida pelos movimentos físicos e
sociais. Este termo não é neste campo nem sinónimo de violência, nem de coacção.
Autoridade: termos atribuído a pessoas (relação pai-filho) ou a funções (funções
hierárquicas na Igreja). “A permanência da autoridade requer que as pessoas ou a sua
função seja respeitada. O maior inimigo da autoridade, portanto, é o desprezo, e o meio
mais seguro de a minar é o riso” (p. 50).
Violência: distingue-se de todas as anteriores pelo seu carácter instrumental, como
abordado logo no início do texto. “A violência é, por natureza, instrumental; como
todos os meios, requer sempre orientação e justificação através do fim que visa” (p. 55-
56).
Todos estes conceitos, nada tem de arbitrário, mas, segundo a autora, dificilmente
correspondem a comportamentos estanques no mundo real, apesar de ser nele que têm origem”
(p. 51). Além disso, “nada é mais comum do que a combinação entre a violência e o poder” (p. 51).
Se pensarmos o poder em termos de comando e de obediência e portanto identificar a violência e o
poder, “a violência seria uma pré-condição do poder, e o poder, não mais do que uma fachada” (p.
52).
A violência é sempre instrumental, ou seja, tem necessidade de justificação por outra coisa. O
poder é um fim em si próprio, por isso, não necessita de justificação, mas sim de legitimidade. “A
legitimidade (…) toma por base uma invocação do passado, ao passo que a justificação se refere a
um fim que reside no futuro” (p. 56).
Assim, a autora conclui que “o poder e a violência, embora sejam fenómenos diferentes,
surgem habitualmente juntos. Sempre que se combinam, é o poder, como já sabemos, o factor
primeiro e predominante (…) [,] a violência não depende do número ou das opiniões, mas dos
instrumentos, e os instrumentos da violência (…) aumentam e multiplicam, como todos os outros
utensílios, a potência humana” (p. 57).

III – Nesta terceira parte, Hannah Arendt critica as várias teorias de explicação da violência de
índole biologista ou zoológica, assentes na comparação/analogia entre o homem e o animal. Critica
também as investigações das ciências sociais. Quer umas, quer outras, tendem a tornar o
comportamento violento como uma reacção ainda mais “natural” (p. 66). As inovadoras
justificações biológicas da violência encontram-se associadas aos elementos mais funestos das
velhas tradições do pensamento político (p. 79).
Por detrás destas “descobertas”, está uma definição muito anterior da natureza do homem
que a autora contesta, que já vem do pensamento grego, ou seja, a definição do homem como
“animal racional” (p. 67). E, no contexto actual, a diferença específica entre o homem e o animal já
não seria rigorosamente falando a razão, mas a ciência, o conhecimento dos modelos de
comportamento (p. 68). Daí a crítica às ciências sociais.
A autora afirma que “os fortes sentimentos fraternais engendrados pela violência colectiva
seduziram muita gente bem-intencionada com a esperança de ver essa violência dar origem a uma
nova comunidade e a um ‘homem novo’”(p. 74). Essa é a atitude daqueles que defendem o espírito
da revolução. No estado de espírito da geração revoltada da época, a autora intuía já uma
combinação de violência, vida e criação.
Hannah Arendt faz notar que as comunidades intelectuais e científicas podem estar
potencialmente ao serviço do carácter instrumental da violência. “A classe realmente nova e
potencialmente revolucionária da sociedade é composta por intelectuais, e o seu poder potencial,
ainda não compreendido, é muito grande, talvez demasiado para o bem da humanidade” (p. 78).
A autora defende ainda outras duas teses. A primeira é que a violência é racional na medida
em que é eficaz como meio de alcançar o fim que deve justificá-la e quando visa objectivos a curto
prazo. Depois, a violência, ao contrário do que poderíamos pensar, é mais frequentemente a arma
da reforma do que da revolução (p. 84). O perigo da violência está sempre nos meios se
sobreporem aos fins e deste modo, a possível transformação do mundo será sempre no sentido de
o tornar mais violento.
Concluímos com a autora que toda a diminuição de poder é um convite à violência e que da
parte dos que detêm o poder, quando sentem que este lhes foge das mãos, é sempre difícil resistir
à sua tentação (p. 91).

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