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0 CRISTÃO

NÃO CRISTÃ
' A propriedade de alguns escritos em determinados mo­
mentos históricos e situações sócio-econôm icas confere a
estes textos uma capacidade de assimilação e resposta ex­
cepcional . “ Ser cristão em uma sociedade não-cristã” é um
deles. Escrito em contexto e época distintos aos nossos, fala
ao nosso coração hoje, expondo de maneira clara e completa
princípios que norteiam nossa posição e atuação com o cris­
tãos na sociedade, num tem po em que se com eça a perce­
ber um despertar de consciências, antes fechadas às ques-
toês sociais e políticas.
Em meio à turbulência nascida das polêmicas ou posi­
cionamento dos cristãos evangélicos frente às questões na­
cionais, a Editora VINDE oferece sua contribuição através deste
excelente texto do Rev. John Stott. ,
\ ’ / 1

Caixa Postal 100084


24.001 - N iterói - RJ
0 CRISTÃO
EM UMA
SOCIEDADJE
NÃO CRHÖ

Sileda S. S teuernagel
C o p yrig h t
© 1989, b y Jo h n S to tt

D ireitos de edição re servad os à

E D IT O R A V IN D E
C aixa Postal 100084
24.001 - N iterói - RJ

Tradução
S iled a S. S te u e rn a g e l

Revisão estilística
Al/inges Lenz C é s a r Mafra M ac K n ig h t

C apa
Madruga

Nao é perm itida a re prod u ção de nenhum a parte deste livro, sob
q u a lq u e r form a, sem a p erm issã o p o r e scrito do editor.

Im presso na Editora Betânia


DADOS SOBRE O AUTOR

Conferencista internacional e teólogo fecundo, tem mui­


tas de suas obras traduzidas ao português. Reitor Emérito da
Paróquia de Ali Souls, é Capelão Honorário de Sua Majestade
Britânica, a Rainha Elizabeth II. É fundador do Instituto de Lon­
dres para um Cristianismo Contemporâneo, presidente da Co­
munidade Evangélica na Comunhão Anglicana (EFAC), agra­
ciado. com o Doutorado Lambeth pelo Arcebispo da Cantuá-
ria, presidente da Comissão de Redação do Pacto de Lausan­
ne. Por todos estes títulos é considerado um dos mais notá­
veis estadistas cristãos deste século.
Nota explicativa

Este livro foi originalmente editado — em inglês


— em volume contendo 17 capítulos, dos quais esta­
mos editando os 4 primeiros, devendo ser os demais
posteriormente editados.
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BR ASILEIRA

Ouvi o Rev. John Stott pela primeira vez na Convenção


Missionária de Urbana, Illinois (patrocinada pela ABU dos Es­
tados Unidos e do Canadá, em dezembro de 1967), pouco de­
pois de ter lido a sua obra clássica Cristianismo Básico. Na­
quela Convenção ele apresentou exposições bíblicas em II Ti­
móteo, captando total atenção dos 8.000 estudantes de vá­
rios países ali presentes. Ao longo de mais de três décadas
tenho sido fortemente influenciado por seu pensamento e des­
frutado de sua fraternal amizade, no espaço da Comunidade
Internacional de Estudantes Evangélicos (IFES), da Aliança
Evangélica Mundial (WEF) e da Comissão de Lausanne para
a Evangelização Mundial (LCWE).
O Rev. John Stott, conferencista internacional e teólogo
prolífico, tem muitas de suas obras traduzidas para o portu­
guês. É Reitor Emérito da Paróquia de Ali Souls, Capelão Ho­
norário de Sua Majestade Britânica, a Rainha Elizabeth II, fun­
dador do Instituto de Londres para um Cristianismo Contem ­
porâneo, presidente da Comunidade Evangélica na Comunhão
Anglicana (EFAC), agraciado com o Doutorado Lambeth pelo
Arcebispo da Cantuária, presidente da Comissão de Redação
do Pacto de Lausanne, títulos esses que o caracterizam co­
mo um dos mais distinguidos estadistas cristãos deste século.
Conhecido entre nós por seus trabalhos de espiritualida­
de e apologética, era no entanto desconhecido em seu pen­
samento social, distorção constante, em geral, na política edi­
torial evangélica em nosso país, em se tratando de qualquer
autor.
Em julho de 1988 encontrava-me na Inglaterra a convite
da ala carismática da nossa denominação para assistir à Con­
ferência Canterbury 88, na Universidade de Kent. Hóspede do
Rev. Jeremy Hutton, na paróquia rural de Shipton Oliffe, em
Cheltmam, encontrei em sua biblioteca o livro issues Facing
Christians Today, cuja leitura me empolgou, tendo em segui­
da adquirido um exemplar. Compartilhei depois com o Rev. Caio
Fábio esse achado, sugerindo a publicação inicial da primeira
parte da obra “ Cristãos em Uma Sociedade Não-Cristã” (as
outras partes tratam de temas globais — como a ameaça nu­
clear, o meio ambiente, os direitos humanos; temas sociais
— como o trabalho, o desemprego e a pobreza, e temas se­
xuais — como o casamento, o divórcio, o aborto e o
homossexualismo.
0 Rev. Caio Fábio, que é igualmente um admirador do Rev.
John Stott, e já o havia convidado para o Congresso VINDE
89, para pastores e líderes, imediatamente apoiou a idéia. Em
boa hora, pois, aqui está, para os nossos leitores, Cristãos em
uma Sociedade Não-Crístã, que trata do nosso engajamento
sócio-político, a form ação da nossa mente cristã e nossa ati­
tude diante do pluralismo e do risco da alienação.
Creio ser extremamente necessário superar a influência
quase que exclusiva da teololgia conservadora norte-
americana, abrindo-nos para outras expressões mais progres­
sistas do evangelicalismo, inclusive, e principalmente do nos­
so próprio continente, onde temos avançado no uso da ferra­
menta das Ciências Sociais e na abertura para a teoria dialé­
tica, destacando-se os expoentes da Fraternidade Teológica
Latino-Americana — com sua teologia da Missão integral da
Igreja (teologia holística) — como Samuel Escobar, Pedro Arana,
Orlando Costas e tantos outros. Muito se pode aprender, tam­
bém, de. um diálogo maduro com outras correntes do pensa­
mento, como os teólogos da libertação. O pensamento con­
servador do Primeiro Mundo não é oracular.
O termo evangélico (ou evangelicalismo), usado no livro,
tem sua conotação na tradição anglo-saxã-corrente do pen­
samento protestante que confessa a autoridade das Escritu­
ras, os Credos Históricos e as Confissões de Fé Reformada
em seus pontos convergentes, crê na necessidade de uma ex­
periência de conversão, no cultivo missionário e em uma vi­
são missionária evangelística— em contraste com outras tra­
dições, como o fundamentalismo, o liberalismo e a neo-
ortodoxia.

Lembro, finalmente, que o Rev. John Stott é um anglica­


no, com o anglicanos são tantos autores nossos conhecidos,
mas nem sempre assim identificados: Michel Greene, James
Packer, C.S. Lewis, Michel Youssef e outros. Essa identidade
é “esquecida” pelos editores brasileiros, em virtude de alguns
preconceitos contra o anglicanismo: de natureza ritual-litúrgico-
estética, de natureza ética (não-legalismo de usos e costumes)
e de natureza eclesiológica (uma igreja católica e protestante
inclusiva, acomodando várias tendências). A leitura de Stott,
líder da ala evangélica, propiciará uma melhor compreensão
desse ramo da cristandade, o qual tenho abraçado por opção
e com entusiasmo, na fraternidade do Corpo de Cristo.
Com o livro, estamos todos buscando form ar uma mente
cristã, pois segundo nos ensina o apóstolo das gentes — “ Nós,
porém, temos a mente de Cristo" (1 Co, 2:16b).

Recife, junho de 1989.

Robinson Cavalcanti

Todos que são beneficiados pelo que faço, fiquem


certos que sou contra a venda ou troca de todo
material disponibilizado por mim. Infelizmente
depois de postar o material na Internet não tenho o
poder de evitar que “alguns aproveitadores' tirem
vantagem do meu trabalho que é feito sem fins
lucrativos e unicamente para edificação do povo
de Deus. Criticas e agradecimentos para:
mazinhorodrigues@yalioo.com.br

Att: Mazinho Rodrigues.


A p resen ta ça o .............................................................................. 7
Introdução............................................................................................... 13

CAPÍTULO I

Engajamento — O que temos a ver com isso ..................... 17


A herança evangélica da responsabilidade social ................17
As razões da "Grande Reviravolta” ...........................................22
A Igreja e a Política ....................................................................... 27
A base bíblica para a responsabilidade social ...................... 31
Uma doutrina mais abrangente de Deus ........................... 11
Uma doutrina mais abrangente do homem ......................... 37
Uma doutrina mais abrangente de Cristo ............................40
Uma doutrina mais abrangente da salvação ........................ 42
Uma doutrina mais abrangente da Igreja...........................45
Diaconia prática .............................................................................46

CAPÍTULO II

Complexidades: Desenvolvendo uma mente cristã ........... 51


Uma mente cristã ..........................................................................54
A realidade de Deus ..................................................................... 59
O paradoxo do homem ............................................................... 62
O futuro da sociedade .................................................................66

CAPÍTULO III

Pluralismo: Devemos impor nosso ponto devista? ........... 71


A imposição ................................................................................... 73
0 Laissez-Faire ................................................................................75
A persuasão ................................................................................... 77
Exemplos de persuasão pela argumentação ...................... 80
Os sistemas políticos ............................. .................................... 87

C AP ÍTLJD IV
Alienação: Temos alguma influência? ................................. 93
O sal e a luz ............................................................................... 96
Oração e evangelismo ..............................................................100
Testemunho e protesto ........................................................... 104
Exemplos e grupos .................................................................... 1°7
IN TR O D U Ç Ã O

Uma das mais notáveis características do movimento evan­


gélico mundial durante os últimos dez a quinze anos tem si­
do a recuperação da nossa consciência social, temporariamen­
te perdida. Os evangélicos passaram cerca de cinqüenta anos
(1920-1970) tentando defender a fé histórica bíblica contra os
ataques do liberalismo, reagindo em oposição a seu “evange­
lho social”. Hoje, porém, estamos convencidos de que, neste
mundo, Deus tanto nos deu responsabilidades sociais quan­
to evangelísticas. Entretanto, esse meio século de negligên­
cia nos deixou muito atrasados nesta área. E se quisermos
alcançar os outros na caminhada teremos um longo caminho
a percorrer.
Este livro é minha contribuição pessoal ao processo de
atualização. Ele começou a tom ar forma em 1978-79, quando
Michael Baughen — atual Bispo de Chester e que era então
Ministro Titular da Paróquia de Ali Souls — me pediu que apre­
sentasse uma série de sermões baseados em “ Temas que De­
safiam a Inglaterra Hoje”. Vários destes capítulos nasceram
no púlpito, sendo mais tarde apresentados em forma de pa­
lestras no Instituto de Londres Para o Cristianismo Contem­
porâneo, cujo objetivo é ajudar as pessoas a desenvolver uma
perspectiva cristã às complexidades do mundo moderno.
Confesso que, enquanto escrevia, fui várias vezes tenta­
do a desistir. Quando pensava na envergadura desta tarefa
sentia-me um grande tolo, ou um presunçoso, pois definitiva­
mente não sou especialista em teologia moral ou em ética so­
cial; tampouco tenho qualquer conhecimento especifico ou
experiência em nenhuma das áreas aqui tratadas. Além do
mais, os tópicos, bastante complexos — potencialmente divi-
sivos em alguns casos, em outros inclusive explosivos — têm
levado ao surgimento de extensa literatura (da qual apenas
uma parte tenho conseguido ler). Não obstante isso perseve­
rei, principalmente porque o que me arrisco a oferecer ao pú­
blico não é uma peça profissionalmente burilada, mas a obra
tosca e inacabada de um simples amador cristão que tenta
pensar de maneira cristã, ou seja, aplicando a revelação bíbli­
ca às prementes questões do dia-a-dia.
É isto que desejo fazer aqui. Parto de um compromisso
com a Bíblia como sendo “a Palavra escrita de Deus”, forma
como tem sido descrita nos artigos anglicanos e aceita por
quase todas as igrejas, até bem recentemente. Esta é a pres­
suposição básica deste livro; e uma discussão a esse respei­
to não é meu objetivo no momento. Os cristãos, além disso,
têm um segundo compromisso, e este é para com o mundo
no qual Deus nos colocou. Esses dois com promissos pare­
cem estar sempre em conflito. Por ser uma coletânea de do­
cumentos que têm a ver com acontecim entos particulares e
distantes, a Bíblia tem um toque arcaico. Ela parece ser in­
compatível com a nossa cultura ocidental, com suas sondas
espaciais e microprocessadores. Como qualquer cristão, tam­
bém me sinto emaranhado na dolorosa tensão entre esses dois
mundos, séculos distantes um do outro. Apesar disso, tenho
tentado resistir à tentação de me afastar de um deles e me
render ao outro.
Certos cristãos, preocupados acima de tudo com serem •
inequivocamente fiéis à revelação de Deus, ignoram os desa­
fios do mundo moderno e vivem no passado. Outros, ansio­
sos por responder ao mundo que os cerca, enfeitam e torcem
a revelação de Deus, em busca de relevância. Tenho tentado
evitar ambas as armadilhas, pois o cristão não é livre para
submeter-se,nem à antigüidade nem à modernidade. Ao invés
disso, tenho buscado com toda a integridade submeter-me à
revelação de ontem dentro da realidade de hoje. Não é nada
fácil combinar lealdade ao passado com sensibilidade ao pre­
sente. É este, no entanto, o nosso chamado cristão: viver no
mundo sob a Palavra.

Muitas pessoas me ajudaram a desenvolver minhas idéias.


Agradeço à “sucessão apostólica” dos meus assistentes de
estudos (Roy McCIoughry, Tom Cooper, Mark Labberton, Ste­
ve Ingraham e Bob Wismer), que compilaram bibliografias, con­
vocaram grupos para discutir os tópicos dos sermões, colhe­
ram informações e conferiram referências. Bob Wismer aju­
dou especialmente na fase final, tendo lido duas vezes o ma­
nuscrito e dado valiosas sugestões. Francês Whitehead, mi­
nha secretária há vinte e oito anos, além de datilografar o ma­
nuscrito com o auxílio de Vivienne Curry, apresentou suges­
tões preciosas. Steve Andrews, meu atual assistente de estu­
dos, fez uma meticulosa correção de provas. Agradeço igual­
m ente aos am igos que leram diferentes ca p ítulos,
beneficiando-me com seus comentários e observações: Oli­
ver Barclay, Raymond Johston, John Gladwin, Mark Stephens,
Roy McCIoughry, Myra Chave-Jones e meus colegas do Lon­
don Institute, Andrew Kirk (Diretor Associado) e MartynEden
(Deão). Quero agradecer de forma especial a Jim Houston, di-
retor fundador e atua! chanceler do Regent College em Van­
couver, cuja visão quanto à necessidade de que os cristãos
tenham uma visão integrada do mundo foi um estímulo à mi­
nha forma de pensar e à criação do London Institute.
John Stott
Junho de 1984
CAPÍTULO I

ENGAJAMENTO: O QUE TEMOS A VER COM ISSO?

É realmente estranho que em algum momento da vida os


seguidores de Jesus tenham chegado ao ponto de perguntar
se tinham algo a ver com engajamento social, e assim algu­
ma controvérsia sobre a relação entre evangelismo e respon­
sabilidade social tenha surgido. Afinal de contas, é evidente
que no seu ministério público Jesus “ percorria (...) ensinan­
do (...)” e “ pregando” (Mt, 4:23; 9:35), e que ele “ andou por
toda a parte, fazendo o bem e curando” (At, 10:38). Conse­
qüentemente, “ a evangelização e a responsabilidade social
sempre tiveram uma relação íntima durante toda a história da
Igreja. Os cristãos sempre estiveram naturalmente engajados
nas duas atividades, sem sentir qualquer necessidade de de­
finir porque agiam dessa maneira”.

A HERANÇA EVANGÉLICA DA RESPONSABILIDADE SOCIAL

Alguns exemplos notáveis desse envolvimento podem ser


vistos na Europa e na América do século XVIII. O Reavivamento
Evangélico, que revolucionou ambos os continentes, não po­
de ser visto apenas em termos de pregação do evangelho e
conversão de pecadores a Cristo; ele suscitou também uma
vasta filantropia e afetou profundamente a sociedade nos dois
lados do Atlântico. John Wesley continua sendo seu exemplo
mais marcante. Ele é popularmente lembrado como evange­
lista itinerante e pregador (em praça pública ao ar livre). E de
fato o foi. No entanto, o evangelho que ele pregava inspirava
as pessoas a se envolverem em causas sociais em nome de
Cristo. Os historiadores atribuem à influência de Wesley — mui­
to mais que a qualquer outra coisa — o fato de a Inglaterra
ter sido poupada dos horrores de uma revolução sangrenta
como a da França.
A mudança que se deu na Inglaterra durante esse perío­
do foi muito bem documentada por J. Wesley Bready no seu
conhecido livro England Before and After Wesley (A Inglaterra
Antes e Depois de Wesley), cujo subtítulo é " 0 Reavivamento
Evangélico e a Reforma Social”. Sua pesquisa forçou-o a con­
cluir que “ a verdadeira mãe que nutriu o espírito e os valores
de caráter que têm criado e sustentado as instituições livres
através do mundo de fala inglesa” ou, melhor dizendo, “a li­
nha divisória moral da história anglo-saxônica”, foi “o Reavi­
vamento Evangélico, tão negligenciado e tantas vezes
satirizado”.2
Bready descreve a “ profunda selvageria de grande parte
do século X V III”,3 que se caracterizou pela “cruel tortura de
animais no esporte, a bebedeira bestial do populacho, o tráfU
co desumano de negros africanos, o seqüestro de com patrio­
tas para a exportação e venda como escravos, a mortalidade
infantil, a obsessão universal pela jogatina, a selvageria do sis­
tema penitenciário e do código penal, a expansão devassa-
dora da imoralidade, a prostituição do teatro, a prevalência cada
vez maior da ilegalidade, da superstição e da libertinagem; a
corrupção e o suborno na vida pública, a arrogância e a tru­
culência das autoridades eclesiásticas, as reduzidas preten­
sões do deísmo, a insinceridade e a depravação desmedidas
na Igreja e no Estado. Todas estas manifestações fazem crer
que o povo britânico era, na época, talvez tão profundamente
depravado e corrupto quanto nenhum povo na cristandade”.4
Mas então as coisas começaram a mudar. E no século
X IX a escravidão e o tráfico de escravos foram abolidos, o sis­
tema penitenciário foi humanizado, melhoraram as condições
nas fábricas e nas minas, a educação tornou-se acessível ao
público, surgiram os sindicatos e assim por diante.
“ De onde veio, então, essa acentuada humanidade, a pai­
xão por justiça social e a sensibilidade para com os erros hu­
manos? Só existe uma resposta, e a imutável verdade históri­
ca a confirmará. Tal mudança surgiu de uma nova consciên­
cia social. E se essa conscicência social, convém admitir, te­
ve mais de um progenitor, foi no entanto dada à luz e nutrida
pelo Reavivamento Evangélico, através de um cristianismo vi­
tal e prático — um reavivamento que iluminou os postulados
centrais da ética do Novo Testamento, tornou real a paterni­
dade de Deus e a fraternidade dos homens, apontou para a
prioridade da personalidade sobre a propriedade e encam i­
nhou coração, alma e mente rumo ao estabelecimento do Rei­
no da Retidão na terra.” 5
O Reavivamento Evangélico “fez mais pela transfiguração
do caráter moral da população em geral do que qualquer ou-
iro movimento registrado pela história britânica”,6 pois Wes­
ley tanto foi um pregador do evangelho quanto profeta da re-
lidão social. Ele foi “o homem que restituiu a alma à nação”.
Os líderes evangélicos da geração seguinte com partilha­
vam do mesmo entusiasmo no seu compromisso com o evan-
gelismo e a ação social. Dentre estes os mais famosos foram
Granville Sharp, Thomas Clarkson, James Stephen, Zachary
Macaulay, Charles Grant, John Shore (Lorde Teignmouth), Tho­
mas Babington, Henry Thornton, e, naturalmente, William Wil-
berforce, o líder principal em razão de vários deles morarem
em Clapham (então uma cidadezinha a quase cinco quilôme­
tros ao sul de Londres), e pertencerem à Paróquia de Clapham
— da qual o Rev. John Venn era o ministro titular — , ficaram
conhecidos como “a Seita Clapham”, se bem que no Parla­
mento e na imprensa fossem ironicamente chamados de “os
santos”.
O que os levou a se reunir pela primeira vez foi a preocu­
pação com a situação dos escravos africanos. Três dias an­
tes de morrer, em 1791, John Wesley escreveu a Wilberforce
assegurando-lhe que Deus o havia escolhido para aquela “glo­
riosa tarefa”, e instando-o a não se cansar de fazer o bem. Deve­
se principalmente à Seita Clapham (sob a liderança de Wil­
berforce) o crédito do primeiro acordo para libertar os escra­
vos de Sierra Leone (1787), a abolição do tráfico escravagista
(1807), o registro dos escravos nas colônias (1820), pondo as­
sim um ponto final ao contrabando de escravos, e chegando
finalmente à sua emancipação (1833). É verdade que “os san­
tos” eram ricos aristocratas que usufruíam de alguns privilé­
gios da sua época; eles eram, no entanto, extremamente ge­
nerosos na sua filantropia, e o variado espectro de seus inte­
resses era extraordinário. Além da questão da escravidão eles
se envolveram nas reformas penal e parlamentar, na educa­
ção popular (escolas dominicais, livretos e o jornal O Obser­
vador Cristão), nas obrigações britânicas para com suas co­
lônias (especialmente a India), na divulgação do evangelho (fo­
ram instrumentos na fundação da Sociedade Bíblica e da So­
ciedade Missionária da Igreja) e a legislação das fábricas. Além
disso promoveram campanhas contra o duelo, os jogos de azar,
a bebedeira, a imoralidade e os esportes em que se maltrata­
vam animais. Em tudo isso eram direcionados e motivados pela
sua inabalável fé evangélica. Sobre eles escreveu Ernest Mars­
hall Howse: “ Entre este grupo de amigos de Clapham foi aos
poucos se entretecendo uma admirável intimidade e solida­
riedade. Eles planejavam e trabalhavam como um comitê que
nunca se dissolveu. Movidos por um impulso comum,
encontravam-se nas mansões de Clapham para o que conven,
cionaram chamar de "Conselhos de Gabinete”, onde discu­
tiam os erros e injustiças — verdadeiro opróbio para seu país
— e as batalhas que precisavam ser empreendidas a fim de
se estabelecer a eqüidade. A partir dali, dentro e fora do Par­
lamento eles se moviam como um único corpo, delegando á
cada homem a tarefa que melhor pudesse desempenhar, a fim
de que seu princípio comum fosse mantido e seus propósi'
tos, igualmente comuns, realizados.” 8
Reginald Coupland, em sua biografia de Wilberforce, co­
menta com justiça: "Era, na verdade, um fenômeno singular;
essa fraternidade de políticos cristãos. Desde então nunca hou^
ve algo parecido na vida pública britânica.” 9
AntRony Ashley Cooper foi eleito para o Parlamento Bri­
tânico em 1826, com a idade de 25 anos. Primeiro na CâmaJ
ra dos Comuns e depois na Câmara dos Lordes, como o séti­
mo Conde de Shaftesbury, sua preocupação era a causa dos
lunáticos, o trabalho de menores nas fábricas e moinhos, os
meninos limpadores de chaminés, mulheres e crianças nas
minas, e também as crianças das favelas — dentre as quais
mais de 30.000, só em Londres, não tinham onde morar, e mais
de um milhão no país inteiro não tinham possibilidade de aces­
so à escola. Georgina Battiscombe, que escreveu sua biogra­
fia e é em geral muito crítica de Cooper, não deixa no entanto
de concluir a avaliação de sua vida com este generoso tribu­
to: "D e fato, nunca homem algum fez tanto para diminuir a
extensão da miséria humana ou para aumentar a soma total
da felicidade”. 10 E ele próprio afirmou que "a maioria dos
grandes movimentos filantrópicos do século nascerp com os
evangélicos.
O mesmo se pode contar sobre os Estados Unidos no sé­
culo passado. O envolvimento social foi fruto da fé evangéli­
ca e irmão gêmeo do evangelismo. Isto se pode ver claramente
em Charles G. Finney, mais conhecido como advogado que
virou evangelista e como autor de "Palestras Sobre Os Reavi-
vamentos da Religião” (Lectures on Revivais o f Religion), pu­
blicado em 1835. Através das suas pregações do evangelho
grandes multidões foram conduzidas à fé em Crjsto. O que
nem todos sabem é que ele se preocupava tanto com "refor­
mas” quanto com "reavivamento”. Como diz Donald W. Day­
ton no seu livro Discovering An Evangelical Heritage (Desco­
brindo uma Herança Evangélica), Finney estava firmemente
convencido de que o evangelho “ libera um poderoso impulso
mmo à reforma social”, e também de que a negligência da
Ir.ieja pela reforma social entristece o Espírito Santo e consti-
i ui um empecilho para o reavivamento. É impressionante Ter
.1 declaração de Finney na sua “ 23.a Palestra sobre o Reavi-
vamento”, onde afirma que “o grande negócio da Igreja é re-
lormar o mundo (..) A Igreja de Cristo foi originalmente orga­
nizada para ser um corpo de reformadores. A própria profis-
'.>10 do cristianismo implica profissão ejucamento de tudo fa­
zer pela reforma universal do mundo’^ 2^
Portanto, não é de se estranhar que através do evangelis-
ino de Finney Deus tenha levantado “ um exército de jovens
convertidos que se tornaram os agentes do movimento refor­
mador da sua época”. Em particular, “as forças que se opu­
seram à escravidão(...) saíram principalmente de entre os con­
vertidos nos reavivamentos de Finney”. Um dos que mais se
destacaram foi Theodore Weld, que dedicou a vida inteira à
luta antiescravagista. Convertido por intermédio de Finney, tra­
balhou durante algum tempo como seu assistente.13 Não que
íheodore Weld tenha sido o equivalente americano de Wilber-
lorce, pois não era um parlamentar. Na verdade, “ a agitação”
(isto é, a agitação antiescravagista na América do Norte) foi
conseguida não tanto por heróis da reforma, mas por um bom
número de pessoas obscuras, levadas por um impulso religioso
no caráter e evangélico no espírito, que começou com o Gran­
de Despertamento de 1830”.14
0 século X IX também é conhecido pela enorme expan­
são das missões cristãs que este testemunhou. Não se deve
imaginar, contudo, que os missionários se concentrassem ex­
clusivamente na pregação do evangelho, ou que sua preocu­
pação social se restringisse a auxílio e socorro, negligencian­
do o desenvolvimento e mesmo a atividade sócio-política. É
muito improvável que na prática tais distinções tenham sido
cm algum momento nitidamente traçadas. 0 missiologista
.imericano Dr. R. Pierce Beaver escreve:“ Na missão, a ação
social segue a linha dos apóstolos no passado (...) Seu inte-
iesse nunca se limitou à simples prestação de auxílio. 0 mis­
sionário itinerante carregava consigo uma sacola de medica­
mentos, sementes ou plantas novas ou selecionadas e um re­
banho melhorado. Nevius introduziu a nova indústria dos po­
mares em Shantung. Os missionários Basiléia revolucionaram
a economia de Gana ao introduzirem o café e o cacau planta­
dos por famílias e indivíduos em suas próprias terras. James
Mckean transformou a vida da Tailândia do Norte ao eliminar
suas três maiores pragas: a varíola, a malária e a lepra. Os
poços e a água pura geralmente apareciam através da ajuda
dos missionários. As escolas industriais foram uma ênfase du­
rante todo o século XIX, e estabeleceram-se indústrias (...)”
Além disso “eram geralmente os missionários que protegiam
os povos nativos contra a exploração e a injustiça por parte
dos governos e das companhias comerciais (...) Eles desem­
penharam um papel muito importante na abolição do traba­
lho forçado no Congo. Resistiram ao comércio de escravos no
Sul do Pacífico. Lutaram ferrenhamente pelos direitos huma­
nos no combate ao ópio, à atadura dos pés e ã exposição de
meninas recém-nascidas na China. Abriram guerra à queima
das viúvas, ao infanticídio e à prostituição sagrada na índia;
e, acima de tudo, romperam a escravidão social e econômica
do sistema dè castas que afetava os inferiorizados e margina­
lizados (...)” 15

As Razões da “ Grande Reviravolta”

Assim, parece ser um fato estabelecido que pelo menos


durante o último século — não somente na Inglaterra e nos
Estados Unidos mas também nas agências missionárias da
África e na Ásia — o evangelho de Jesus Cristo tenha produ­
zido o bom fruto das reformas sociais. Mas então algo acon­
teceu, especialmente entre os evangélicos. Até certo ponto,
durante os primeiros trinta anos deste século — e especial­
mente na década que se seguiu à l.a Guerra Mundial — ocor­
reu uma grande guinada, que o historiador americano Timothy
L. Smith chama de "A Grande Reviravolta” e David O. Moberg
analisa no seu livro The Great Reversal. Embora o Dr. Moberg
não pretenda fazer uma análise exaustiva das origeris da re­
núncia dos evangélicos à responsabilidade social, elas pare­
cem ter sido as seguintes.
A primeira causa foi a luta contra a teologia liberal que
na virada do século devastava as igrejas da Europa e da Am é­
rica. Os evangélicos se sentiram encostados contra a parede.
Em vista disso começaram a se preocupar com a defesa e a
proclamação do evangelho, pois ninguém mais parecia estar
advogando o cristianismo histórico bíblico. Foi nesse período
(especificamente de 1910 a 1915) que se publicou nos Esta­
dos Unidos uma série de doze livretos intitulados Os Funda­
mentos, de onde surgiu o termo "fundam entalism o”. Nessa
época os evangélicos estavam tão ocupados em vindicar os
fundamentos da fé que julgavam não haver tempo a perder
com preocupações sociais.
Em segundo lugar, os evangélicos reagiram contra o as­
sim chamado "evangelho social”, que na época estava sendo
desenvolvido pelos teólogos liberais. O seu mais popular porta-
voz era Walter Rauschenbusch, professor de história da Igre-
|,i no Seminário de Rochester, em Nova Iorque, de 1897 a 1917.
Durante seu pastorado de 12 anos numa igreja batista na ci­
dade de Nova Iorque (1886-1897) ele se deparou com opres­
siva pobreza, e essa experiência determinou sua mensagem.
I:m seu primeiro livro, intitulado Chrístianity and the Social Crí-
sis (0 Cristianismo e a Crise Social, 1907),16 após traçar uma
linha de continuidade entre a compaixão social dos profetas
hebreus, de Jesus e da Igreja Primitiva, ele critica o capitalis­
mo e advoga um tipo simples de “com unism o” ou socialismo
cristão.17 Também contrasta "o antigo evangelho da salvação
de almas” com “o novo evangelho do Reino de D e u s ” . ^ "Não
se trata de levar indivíduos para o céu”, escreve, “ mas trans­
formar a vida aqui na terra na harmonia do céu”.19 Além dis­
so, o “ propósito essencial do cristianismo” é “ transformar a
sociedade humana em Reino de Deus através da regenera­
ção de todos os relacionamentos humanos”.20 Bastam estas
duas citações para desvendar seus dois erros, que levaram
os evangélicos a condenar o "evangelho social”, bloqueando
assim o desenvolvimento de um programa social evangélico.
Em primeiro lugar, ele identificava o Reino de Deus com "um a
reconstrução de sociedade numa base cristã”.21 Em segun­
do lugar pressupunha que todos os seres humanos podem
estabelecer o Reino divino por si mesmos (ao passo que Je­
sus sempre falava nele como sendo um dom de Deus). Em­
bora afirmasse que não alimentava qualquer ilusão utópica”,22
ainda assim acreditava que “cabe a nós decidir se uma nova
era irá resultar na transformação do mundo em Reino de
Deus”.23 0 “ alvo com um ” da Igreja e do Estado, afirma ele,
“ é transformar a humanidade no Reino de Deus”.24
Dessa linguagem irrefletida pode-se deduzir claramente
que Chrístianity and the Social Crisis (O Cristianismo e a Cri­
se Social) não foi uma obra de teologia séria, assim como não
o foi o segundo livro de Rauschenbusch, com seu artificioso
título Christianizing the Social Order (Cristianizando a Ordem
Social, 1912). Entretanto seu terceiro livro, A Theology for the
Social Gospel (Uma Teologia do Evangelho Social, 1917);25
abriu o jogo. Ele começa com estas expressões singelas: “ Nós
temos um evangelho social. Necessitamos de uma teologia
sistemática que seja suficientemente abrangente para corres­
ponder a ela e suficientemente vital para sustentá-la. De fato,
é necessário “ um reajuste e uma expansão da teologia” a fim
de “ prover uma base intelectual adequada para o evangelho
social”.26 Dessa forma Rauschenbusch acabou se traindo. Pri­
meiro se formula o evangelho social; só depois se vai por aí
à procura de uma justificativa teológica para ele! E ele a en­
contra no Reino de Deus. “ Essa doutrina é ela própria o evan­
gelho social”,27 pois “o Reino de Deus é a humanidade orga­
nizada de acordo com a vontade de Deus”. 28 “ O Reino de
Deus é a transfiguração cristã da ordem social.” 29
Mas o Reino de Deus não é uma sociedade cristianizada,
e sim a regra divina na vida daqueles que reconhecem a Cris­
to. É preciso “ recebê-lo”, “entrar nele” ou “ herdá-lo”, disse ele,
através de humilde e penitente fé nele. Contudo, sem um no­
vo nascimento é impossível vê-lo, muito menos entrar nele.
Aqueles que o recebem como crianças no entanto tornam-se
membros da nova comunidade do Messias, a qual é chama­
da para expressar os ideais da sua regra no mundo e assim
presenteá-lo com uma realidade social alternativa. Este desa­
fio social do evangelho do Reino é completamente diferente
do “evangelho social”. Quando Rauschenbusch politizou o Rei­
no de Deus, é compreensível (embora lamentável) que, como
reação a ele, os evangélicos tenham se concentrado na evan­
gelização e filantropia pessoal , mantendo-se com pletam en­
te afastados da ação sócio-política.
A terceira razão de os evangélicos negligenciarerp a res­
ponsabilidade social foi a desilusão e pessimismo que se se­
guiram à l.a Guerra Mundial, devido à exposição da maldade
humana. Programas sociais anteriores haviam falhado. O ho­
mem e a sociedade pareciam irreformáveis. Qualquer tentati­
va de reforma era inútil. Para dizer a verdade, os evangélicos,
conhecendo as doutrinas bíblicas do pecado original e da de­
pravação humana, nem deveriam ter se surpreendido com is­
so. Contudo, não houve entre as duas guerras um líder evan­
gélico que articulasse a providência e a graça comum de Deus,
como base para que se perseverasse na esperança. O cristia­
nismo histórico reformado foi eclipsado.
Em quarto lugar, disseminava-se (especialmente através
dos ensinamentos de J. N. Darby e sua popularização da Bí­
blia de Scotfield) o esquema pré-milenista. Segundo o pré-
milenismo o mundo atual é tão mau que qualquer melhora
ou redenção se torna impossível; ele continuará se deterio­
rando mais e mais, até a vinda de Jesus, que estabelecerá en­
tão o seu reino milenial aqui ria terra. Se o mundo vai piorar
cada vez mais, e se somente a vinda de Jesus dará um jeito
nisso, diz o argumento, não faz sentido algum tentar reformá-
lo nesse meio tempo.
A quinta razão de os evangélicos se alienarem das ques­
tões sociais foi provavelmente a difusão do cristianismo en­
tre as pessoas da classe média, cuja tendência era diluí-lo no
processo de sua identificação com a própria cultura. Este foi,
sem dúvida alguma, um dos fatores subjacentes nas desco­
bertas sociológicas americanas apresentadas por Milton Ro-
keach em 1969 e sumarizadas por David O. Moberg. Tanto um
quanto outro criticam fortemente as influências sociais nega­
tivas da religião organizada. “ O quadro geral que emerge dos
resultados apresentados (...) é que aqueles que superestimam
a salvação são conservadores, ansiosos por manter o status
quo e simpatizantes ou indiferentes às causas do negro e do
pobre (...) Considerados em conjunto, os danos sugerem um
quadro do religioso como sendo uma pessoa com uma ego­
cêntrica preocupação com a salvação de sua própria alma,
uma orientação voltada para o outro mundo, e isto adiciona­
do a uma indiferença (ou até mesmo um tácito endosso) ao
sistema social que tende a perpetuar a desigualdade e a in­
justiça social. “ David Moberg conta como esse relatório le­
vantou uma onda de protestos sobre a reivindicação de que
a metodologia da pesquisa fora falha; ao mesmo tempo, po­
rém — acrescenta ele — ignorar tais achados e conclusões
“seria um erro muito sério”.30 Embora anteriormente tenha
mencionado alguns bons exemplos de ação social nos sécu­
los XVIII e XIX, com certeza houve outras situações em que
a Igreja aquiesceu no que concerne à opressão e à explora­
ção, não agiu contra esses males ou sequer protestou contra
eles.
A “ guinada” dos evangélicos se explica por estas cinco
razões. Não culpemos nossos antecessores: se estivéssemos
no lugar deles, provavelmente teríamos reagido da mesma for­
ma às pressões contemporâneas. Não que todos os evangéli­
cos tenham enterrado sua consciência social no começo deste
século ou entre as duas guerras. A.guns militaram, engajaram-
se profundamente tanto em ministérios sociais quanto evan-
gelísticos, preservando assim essa expressão externa do evan­
gelho, sem a qual a evangelização perde parte de sua autenti­
cidade. A maioria, porém, virou as costas. Entretanto, durante
os anos sessenta, a década do protesto, quando a população
jovem com eçou a se revoltar contra o materialismo,a superfi­
cialidade e a hipocrisia herdada do mundo adulto, os evangé­
licos tradicionais recobraram o moral, desencadeando o pro-
cesso de “ Reviravolta da Grande Reviravolta” (como David Mo-
berg intitula seu capítulo final).
Provavelmente a primeira voz a conclam ar o mundo evan­
gélico às suas responsabilidades sociais foi a do estudioso
cristão americano Cari F. H. Henry, editor fundador do perió­
dico Cristianity Today, através do seu livro The Uneasy Cons­
cience o f Modern Fundamentalisme (A Desconfortável Cons­
ciência do Fundamentalismo Moderno), em 1947. Nem todos,
parece, lhe deram ouvidos. Mas pouco a pouco a mensagem
foi pegando. Finalmente, em 1966, na conclusão de uma con­
ferência americana sobre Missões Mundiais, os participantes
adotaram unanimemente a “ Declaração de Wheaton”, que con­
jugou firmemente “ a prioridade da pregação do evangelho a
toda a criatura” e “ um testemunho verbal de Jesus Cristo”
com a “ação social evangélica”, instando a que “todos os evan­
gélicos se levantassem aberta e firmemente em favor da igual­
dade racial, a liberdade humana e todas as formas de justiça
social através do mundo”.
Na Inglaterra, no começo da década de sessenta, um gran­
de número de líderes evangélicos com eçou a lutar pela apli­
cação social do evangelho. A maioria deles eram leigos, pro­
fissionais e homens de negócios, entre os quais se destacou
o professor Norman Anderson. Então, em 1961, George Goy-
der publicou The Responsible Company (A Convivência Res­
ponsável), e em 1964 saiu The Christian in Industrial Society
(O Cristão na Sociedade Industrial). Esta incipiente “onda” de
interesse social encontrou expressão pública no primeiro Con­
gresso Anglicano Evangélico Nacional, realizado na Universi­
dade de Keele em 1967. Ali os evangélicos anglicanos decla­
raram publicamente seu arrependimento pela tendência de se
afastarem tanto do mundo secular quanto da Igreja mais am­
pla, e se comprometeram a se envolver conscientemente num
e noutra. Em relação ao escopo da missão, diz o Relatório que
“evangelismo e serviço compassivo têm seu lugar conjunto
na missão de Deus”.31
O ponto decisivo para o mundo evangélico mundial foi,
sem dúvida alguma, o Congresso Internacional sobre a Evan­
gelização Mundial realizado em julho de 1974 em Lausanne,
na Suíça. Cerca de 2.700 participantes, vindos de mais de 150
nações, reuniram-se sob o lema “ Que o Mundo Ouça a Sua
Voz”, endossando no encerramento do congresso o Pacto de
Lausanne. Após três seções introdutórias sobre o propósito
de Deus, a autoridade da Bíblia e a singularidade de Cristo,
seguiu-se a quarta palestra, intitulada “A Natureza da Evan-
^elização” e, em seguida, “A Responsabilidade Social C ristã'’.
Esta última declara que “ a evangelização e o envolvimento
sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão”. Os dois
parágrafos, porém, encontram-se lado a lado no Pacto, sem
nenhuma tentativa de se relacionarem um com o outro, a não
ser no parágrafo 6, em que se declara que “ na missão de ser­
viço sacrificial da Igreja a evangelização é primordial”.
Durante os anos subseqüentes ao Congresso de Lausan­
ne houve uma certa tensão dentro do movimento evangélico,
já que uns enfatizavam o evangelismo, outros a atividade so­
cial, e todos nos indagávamos como, de acordo com as Es­
crituras, deveríamos expressar a relação entre ambos. Assim,
em junho de 1982, sob o patrocínio conjunto do Comitê de
Lausanne e da Aliança Evangélica Mundial, realizou-se em
Grand Rapids (EUA) a “ Consulta sobre a Relação entre a Evan­
gelização e a Responsabilidade Social”, cujo relatório foi inti­
tulado Evangelismo e Responsabilidade Social: Um Com pro­
misso Evangélico. Embora, naturalmente, nem todos enxer­
gássemos cada detalhe sob o mesmo prisma, Deus nos con­
duziu a um admirável nível de consenso. A atividade social foi
vista como sendo tanto uma conseqüência quanto uma pon­
te para a evangelização, e de fato se declarou que os dois eram
parceiros. Além disso, ambos se unem pelo evangelho, pois
este “ é a raiz de onde brotam tanto o evangelismo quanto a
responsabilidade social”.32 O Relatório tem um capítulo so­
bre “ História e Escatologia” e, no final, um outro, mais práti­
co, intitulado “ Diretrizes para Ação”.

A Igreja e a Política

Já se deve ter percebido que o Pacto de Lausanne fala


não apenas de “ responsabilidade social” mas também de “en­
volvimento sócio-político”. É o uso da palavra “ político” que
faz piscarem luzinhas vermelhas de advertência na mente de
muitos evangélicos. Eles sempre estiveram engajados em obras
humanitárias, especialmente em programas médicos e edu­
cacionais; o que os deixa de orelhas em pé é a atividade polí­
tica. De fato, a oposição a ela abrange muito mais que o mun­
do evangélico. Sempre que a Igreja (ou qualquer ramo desta)
se envolve com política pode-se esperar uma onda de protes­
to, tanto de dentro, por parte de seus membros, quanto de fo­
ra. "A Igreja não deve se meter com política”, brada o povo.
“ Religião e política não se misturam.”
Questões variadas estão envolvidas nesta controvérsia e
as águas do debate acabam se turvando, por não se fazer uma
distinção entre elas. A primeira questão é a definição da pala­
vra “ política” ; a segunda tem a ver com a relação entre o so­
cial e o político, e a razão por que estes não podem separar-
se. Terceiro, precisamos considerar as razões por que algu­
mas pessoas se opõem ao envolvimento da Igreja com políti­
ca, e o que estão tentando salvaguardar. Por último, temos que
perguntar a quem cabe a responsabilidade política cristã.

Primeiro vamos definir os termos. As palavras “ política”


e “ político” tanto podem ter uma definiçãõ ampla quanto li­
mitada. O conceito mais amplo de “ política” denota a vida da
cidade (polis) e as responsabilidades do cidadão (polites)-, ou
seja, tem a ver com o todo da nossa vida na sociedade huma­
na. Política é a arte de viver juntos em comunidade. De acor­
do com sua definição mais limitada, no entanto, política é a
ciência de governar; é a preocupação com o desenvolvimen­
to e a adoção de políticas específicas que serão consagra­
das pela legislação.
Uma vez feita esta distinção, podemos perguntar se Je ­
sus se envolveu com política. Com base neste último sentido,
o mais especifico, ele definitivamente não o fez. Ele nunca for­
mou um partido político, jamais adotou um programa político
nem organizou protestos políticos. Não deu um único passo
visando influenciar a política de César, Pilatos ou Herodes. Pelo
contrário, renunciou a uma carreira política. No sentido mais
amplo, no entanto, o ministério inteiro de Jesus foi político,
pois ele próprio veio ao mundo a fim de participar da vida da
comunidade humana, tendo enviado a ele seus seguidores a
fim de realizarem a mesma coisa. Além do mais, o Reino de
Deus que proclamou e instaurou era uma organização social
radicalmente nova e diferente, cujos valores e padrões desa­
fiavam os da antiga comunidade caída. Neste sentido seus en­
sinamentos tinham implicações “ políticas”. Ele oferecia uma
alternativa ao status quo. Além disso, seu reinado era visto co­
mo um desafio ao reinado de César, razão por que foi acusa­
do de sedição.
Em segundo lugar, precisamos considerar a relação en­
tre o “social” e o “ político”, usando agora esta palavra no sen­
tido mais especifico. No seu capítulo final o Relatório de Grand
Rapids faz referência a esta questão e estabelece uma distin­
ção entre “serviço social” e “ação social”, como se vê a seguir:
Serviço Social Ação Social
Socorrer o ser humano em Eliminar as causas das
suas necessidades necessidades humanas
Atividades filantrópicas Atividades políticas e
econômicas
Procurar ministrar a Procurar transformar as
indivíduos e famílias estruturas da sociedade
Obras de caridade A busca da justiça33

Em seguida o Relatório passa a delinear ação sócio-


política nestes termos: A “justiça social (...) trata não somen­
te de pessoas mas de estruturas; não só da reabilitação dos
presos mas da reforma do sistema penitenciário; não apenas
da melhoria das condições de trabalho, mas da transforma­
ção do sistema econôm ico (qualquer que seja ele) e do siste­
ma político (seja qual for), facilitando a libertação da pobreza
e da opressão.” 44
Parece evidente, portanto, que uma preocupação social
genuína tanto deve abranger serviço social quanto ação so­
cial. Divorciá-los seria muito artificial. Alguns casos de neces­
sidade nunca poderiam ser resolvidos sem ação política (até
que se poderia amenizar o cruel tratamento dado aos escra­
vos, porém isto não eliminaria o problema da escravidão; ela
teria que ser abolida). Continuar a solucionar outros proble­
mas — se bem que necessário — pode até servir para justifi­
car a situação que os provoca. Se na estrada de Jerusalém
para Jericó os viajantes fossem geralmente espancados, e se
sempre houvesse ali bons samaritanos para socorrê-los, a ne­
cessidade de melhores leis para eliminar o assalto à mão ar­
mada acabaria sendo negligenciada. Se acidentes de trânsi­
to ocorrem freqüentemente em uma certa encruzilhada, o que
se necessita não são mais ambulâncias, e sim a instalação
de semáforos para prevenir os acidentes. É sempre bom ali­
mentar os famintos; muito melhor, porém, é erradicar as cau­
sas da fome. Assim, se realmente amamos o próximo, e se
queremos servi-lo, pode ser que nosso serviço nos obrigue
a empreender (ou a solicitar) uma ação política em favor dele.
Qual é, pois, a razão de tanta hostilidade quanto à idéia
de a Igreja se envolver com política? Esta é nossa terceira ques­
tão. Quem articulou a crítica mais recente a esse respeito foi
provavelmente o Dr. Edward Norman nas suas palestras (Reith
Lectures) sobre O Cristianismo e a Ordem Mundial (Christia­
nity and the World Order), em 1978.35 Na verdade ele não ne­
ga que "os ensinamentos bíblicos têm conseqüências sociais”.
(“ É óbvio que eles as têm ”, diz ele, pág. 74), nem que o amor
de Deus envolve os cristãos em “ações sociais e políticas cor­
porativas” (pág. 79). Sua maior preocupação é com a “ politi-
zação do cristianismo”, ou seja, “ a transformação interna da
própria fé, a ponto de esta acabar sendo definida em termos
de valores políticos” e sua essência “ reinterpretada como um
esquema de ação política e social” (pág. 2). O Dr. Norman es­
tava plenamente correto ao afirmar que o cristianismo não po­
de ser reduzido a um programa político ou identificado com
este. A mim me parece, no entanto, que sua reação a tíssa ten­
dência foi forte demais, dando assim a muita gente a impres­
são de que, na opinião dele, a Igreja deveria ser inteiramente
apolítica.
Não obstante isso, suas palestras continham pelo menos
quatro advertências que merecem atenção especial, se bem
que devam ser abordadas com espírito crítico. Vou enumerá-
las à minha própria maneira:
1. A ênfase política da Igreja contemporânea eclipsa aquilo
que deveria constituir sua preocupação central, a saber, o in­
dividual (a “ redenção pessoal”, pág. 78), o íntimo (“o Cristo
que habita em nós”, págs. 72-85) e o eterno (“ as qualidades
eternais da imortalidade”, pág. 2). O Dr. Norman tem razão:
algumas igrejas perderam o conjunto dessas dimensões. Mes­
mo assim, ao conservá-las, a Igreja não deve negligenciar suas
responsabilidades corporativas, externas e temporais. Como
cidadãos de dois reinos, os cristãos têm responsabilidades tan­
to num quanto no outro. Amar a Deus com todo o nosso ser
é, de fato, “o primeiro e o m aior” de todos os mandamentos;
mas amar ao próximo com o a nós mesmos é um mandamen­
to de valor similar. Um é incompleto sem o outro. -
2. As opiniões políticas da Igreja contemporânea nada
mais são do que “o idealismo político e moral da cultura que
nos cerca” (pág. 32), seja esta o liberalismo burguês ociden­
tal, seja o marxismo. Tudo o que ela faz é “sair por aí exibindo
idéias tomadas de empréstimo, sob o manto de uma religiosi­
dade aparente” (pág. 4). Ao invés de criticar ela se adapta.
3. A contribuição política da Igreja contemporânea é a de
um amador: falta-lhe o conhecimento necessário para
participar.
4. As expectativas políticas da Igreja contemporânea são
ingênuas, pois ela tende a esquecer o pecado e a falibilidade
humana.
Note-se que estas quatro críticas estão colocadas a nível
do comportamento particular de algumas igrejas (embora a
tendência do Dr. Norman seja generalizá-las), e não a nível do
próprio conceito de que a Igreja cristã tem de fato responsa­
bilidades sócio-políticas.
A quem cabem tais responsabilidades? Esta é a nossa
quarta e última questão. A falha em propô-la e responder a
d a é uma das principais razões da atual confusão em torno
do envolvimento político cristão. Não precisamos fazer qual­
quer distinção entre indivíduos, grupos ou igrejas cristãs. Ca­
da cristão em particular precisaria ser politicamente ativo no
sentido de, como cidadão consciente, votar nas eleições,
inanter-se informado sobre os assuntos contemporâneos, par­
ticipar de debates públicos, talvez escrever para algum jornal,
influenciar os políticos e participar de demonstrações. Além
disso, alguns indivíduos são chamados por Deus para dedi­
car sua vida ao serviço político, seja no governo local, seja
a nível nacional. Os cristãos que compartilham das mesmas
preocupações morais e sociais deveriam ser encorajados'a
formar grupos, ou a juntar-se àqueles que estudem tais as­
suntos a um nível mais profundo, visando à busca de soluções
apropriadas. Pode ser que em alguns casos eles sejam com ­
postos exclusivamente de cristãos; em outros, estes devem
contribuir com sua perspectiva bíblica dentro de grupos mis­
tos, seja em reuniões de caráter político, seja em sindicatos
ou associações profissionais.
Considerando-se ser apropriado que indivíduos ou gru­
pos cristãos pensem ou ajam politicamente, deveria a Igreja
como tal envolver-se com política? Certamente ela precisa en­
sinar tanto a lei quanto o evangelho de Deus. É este o dever
de todo pastor, professor ou líder de igreja. E “quando a igre­
ja conclui que a fé ou a justiça bíblicas exigem dela uma posi­
ção a respeito de qualquer assunto, deve então obedecer à
Palavra de Deus, deixando com ele as conseqüências” (Rela­
tório de Grand Rapids, pág. A6). Se achamos ou não que a
Igreja deve ir além do ensino, assumindo alguma forma de ação
política ou sindical, isto provavelmente depende da tradição
protestante a que pertencemos (luterana, reformada ou ana-
batista) e sua posição quanto à Igreja e ao Estado. Mas pelo
menos em uma coisa estamos de acordo: a Igreja não deve
entrar no campo político sem o conhecimento necessário.

4 Base Bíblica para a Responsabilidade Social

Qual é, então, a base bíblica para a responsabilidade so­


cial? Por que devem os cristãos se envolver? No final das con-
tas, existem apenas duas atitudes que eles podem adotar com
relação ao mundo. Uma é a fuga, outra o engajamento. “ Fu­
g ir” significa voltar as costas ao mundo em rejeição, lavar as
mãos das coisas do mundo (mesmo sabendo, como Pôncio
Pilatos, que nem assim desaparece a responsabilidade), e en­
durecer o coração aos agonizantes gritos de socorro. “ Engajar-
se”, por outro lado, significa voltar o rosto para o mundo em
compaixão, sujar as mãos, sofrer e gastar-se a serviço deste
e sentir no fundo do ser o comovente e incontido amor de
Deus.
Entre nós, os evangélicos, são muitos os que se com por­
tam como fujões irresponsáveis. Viver dentro da igreja em co­
munhão uns com os outros é mais conveniente do que servir
em um ambiente externo apático ou mesmo hostil. Natural­
mente, vez por outra fazemos investidas no território inimigo
através de campanhas evangelísticas (aliás, como evangélicos
somos especialistas nisso). Depois, contudo, nos recolhemos
de novo, e após cruzarm os o fosso do nosso castelo cristão
(a segurança da nossa própria comunhão evangélica), suspen­
demos a ponte levadiça e até fecham os os ouvidos aos gri­
tos daqueles que esmurram nosso portão. Quanto às obras
sociais, nossa tendência é dizer que isto é perda de tempo,
já que o Senhor vai voltar logo. Afinal de contas, se a casa es­
tá em chamas, para que pendurar cortinas novas e dar uma
ajeitada nos móveis? O que importa é salvar o que está pere­
cendo. Dessa forma tentamos salvar nossa consciência com
uma teologia espúria.
“ Você não acha”, perguntou a Tom Sine uma estudante
de Educação durante um dos seus seminários de futurologia
nos Estados Unidos, “que, se com eçarm os a alimentar os que
têm fome, as coisas não vão piorar; e se as coisas não piora­
rem Jesus nunca vai voltar?” “ Ela era profundamente since­
ra”, escreve Tom Sine. E continua: “A reação dessa estudante
(...) reflete o que eu chamo de uma visão do grande escapis­
mo do futuro...” A ironia dessa abordagem do futuro é que,
mesmo afirmando levar Deus a sério, ela acaba tirando Deus
da história ao insistir que nem mesmo ele pode fazer alguma
coisa nestes últimos dias (...) Esta visão despropositada apre­
senta Deus como um proprietário ausente, o qual, impotente,
perdeu todo o controle do seu mundo e da história humana
(...) A ‘grande escapada’ transforma-se num incrível desertar
de tudo que Cristo nos chamou a ser e a fazer”.36
Ao invés de tentarmos fugir à nossa responsabilidade so­
cial precisamos abrir os ouvidos e escutar a voz daquele que
conclama seu povo em todo o tempo a sair (assim como ele
o fez) para o mundo perdido e solitário a fim de viver e amar,
testificar e servir, como ele e por ele. Pois isto, sim, é “ mis­
são”. Missão é a nossa resposta humana à divina comissão.
É todo um estilo de vida cristão, que tanto inclui evangelismo
quanto responsabilidade social, sob a convicção de que Cris­
to nos envia ao mundo assim como o Pai a ele o enviou, e
que é para o mundo, portanto, que devemos ir, para viver e
trabalhar para ele.
Ainda assim, no entanto, resta-nos a questão: “ Por quê?”
Por que deveria o cristão envolver-se com o mundo e seus pro­
blemas? Em resposta, proponho que examinemos cinco gran­
des doutrinas da Bíblia, nas quais todos já cremos em teoria,
mas tendemos a podar e retocar a fim de adaptá-las à nossa
teologia escapista. Meu apelo é no sentido de que tenhamos
coragem suficiente para conservar a integridade bíblica des­
sas doutrinas. Qualquer uma delas já bastaria para nos con­
vencer da nossa responsabilidade social cristã; as cinco jun­
tas nos deixam sem qualquer desculpa.

1. Uma Doutrina Mais Abrangente de Deus

Para começar, nossa doutrina de Deus tem que ser mais


abrangente, pois tendemos a esquecer que ele se preocupa
com o todo da humanidade e com a totalidade da vida huma­
na, em todo o seu colorido e complexidade. Estes universos
têm importantes conseqüências para a nossa forma de pensar.
Primeiro, O Deus vivo é Deus tanto da natureza quando
da religião; tanto do “secular” quanto do “sagrado”. Na ver­
dade os cristãos sempre se sentem pouco à vontade com es­
sa distinção, pois todas as coisas são “sagradas” no sentido
de que pertencem a Deus; por outro lado, nada é “secular”,
no sentido de que nada exclui a Deus. O universo físico é obra
dele; ele o sustenta e continua declarando que ele é bom (Gn,
1:31). De fato, “ tudo que Deus criou é bom, e, recebido com
ações de graça, nada é recusável” (1 Tm, 4:4). Deveríamos
ser muito mais gratos pelas boas dádivas do bom Criador, pelo
sexo, o casamento e a família, a beleza e a ordem do mundo
natural, o trabalho e o lazer, as amizades e a experiência da
comunidade inter-racial e intercultural; pela música e outros
tipos de arte criativa que enriquecem a qualidade de vida hu­
mana. O nosso Deus, por ser religioso demais, acaba sendo
pequeno demais. Nós o imaginamos essencialmente preocu­
pado com religião: edifícios religiosos (templos e capelas), ati-
vidades religiosas (cultos e rituais) e livros religiosos (Bíblias
e Livros de Oração). É claro que ele se interessa por estas coi­
sas, mas somente se estiverem relacionadas com o todo da
nossa vida. De acordo com os profetas do Antigo Testamento
e os ensinamentos de Jesus, Deus é muito crítico quanto à
“ religião” que se limita a cerimônias religiosas divorciadas da
vida real, do serviço em amor e da obediência moral que bro­
ta do coração. “A religião pura e sem mácula, para com o nosso
Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tri­
bulações, e a si mesmo guardar-se incontaminado do mun­
do” (Tg, 1:27). O único valor dos cultos religiosos é que eles
concentram em cerca de uma hora de atividade pública, vo­
cal e congregacional, a devoção de toda a nossa vida. Se isto
não acontece, e ao invés disso dizemos e cantamos na igreja
coisas que nada têm a ver com a vida cotidiana lá fora, em
casa e no trabalho, então ir aos cultos é ainda pior do que
fazer nada; nossa hipocrisia positivamente provoca náuseas
em Deus.
Em segundo lugar, o Deus vivo é Deus tanto da criação
quanto da Aliança. Nós, cristãos, às vezes cometemos o mes­
mo erro que os israelitas do Antigo Testamento, que se con­
centraram exclusivamente no Deus da Aliança, que os esco­
lhera dentre todas as nações para serem a nação santa e se
comprometera com eles, dizendo: “ Eu serei o vosso Deus e
vós sereis o meu povo”. Esta é uma verdade gloriosa, não há
dúvida. A noção da “ aliança” é um dos grandes temas bíbli­
cos, sem o qual não se pode compreender a revelação bíbli­
ca. Contudo, ela é uma perigosa meia-verdade. Ao enfatizá-la
demais Israel menosprezou o Deus vivo, reduzindo-o ao sta­
tus de uma divindade tribal, um deusinho qualquer. Ele aca­
bou virando Javé, o deus dos israelitas, mais ou menos no mes­
mo nível que Quemos, deus dos moabitas, e Moloque, deus
dos amonitas. Além disso eles esqueceram as outras nações,
ou simplesmente as desprezaram e rejeitaram.
Mas a Bíblia começa com as nações e não com Israel;
com Adão e não com Abraão; com a criação e não com a alian­
ça. E Deus, ao escolher Israel, não perdeu o interesse pelas
outras nações. Am ós falou corajosamente em nome do Se­
nhor: “ Não sois vós para mim, ó filhos de Israel, como os fi­
lhos dos etíopes? (...) Não fiz eu subir a Israel da terra do Egi­
to, e de Caftor (Creta) os filisteus, e de Quir os siros?” (Am,
9:7). Semelhantemente o arrogante imperador Nabucodono-
zor teve que admitir que “o Altíssimo tem domínio sobre o reino
dos homens, e o dá a quem quer” (Dn, 4:32). Ele governa as
nações e controla o seu destino. Embora Satanás seja cha­
mado de “ príncipe deste mundo”, sendo de fato o seu usur­
pador, Deus continua sendo o Senhor absoluto de tudo que
fez. “ O Senhor olha dos céus; vê todos os filhos dos homens;
do lugar de sua morada observa todos os moradores da ter­
ra, ele que forma o coração de todos eles, que contempla to­
das as suas obras” (SI 33:13-15). Mais do que isso: ele pro­
meteu que ao abençoar Abraão e sua posteridade abençoa­
ria também todas as famílias da terra, e que um dia ir/a res­
taurar tudo que a Queda arruinou e aperfeiçoar tudo que ha­
via feito.
Em terceiro lugar, o Deus vivo é Deus tanto da justiça quan­
to da justificação. É claro que ele é o Deus da justificação,
o Salvador dos pecadores, o “ Deus compassivo, clemente e
longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade” (Ex, 34:6).
Contudo ele também deseja que a justiça caracterize a nossa
vida comunitária.
Ele “ faz justiça aos oprimidos,
e dá pão aos que têm fome
O Senhor liberta os encarcerados.
O Senhor abre os olhos aos cegos,
O Senhor levanta os abatidos,
O Senhor ama os justos.
O Senhor guarda o peregrino,
ampara o órfão e a viúva,
porém transtorna o caminho dos ímpios.”
(Salmo 146:7-9)

Isto não significa que ele faça invariavelmente todas es­


tas coisas, mas evidencia que é este o tipo de Deus que ele é.
Além disso, o interesse de Deus peia justiça, embora ele
a espere particularmente por parte do seu próprio povo, vai
além deste e atinge todas as pessoas. A compaixão social e
a justiça eram tão importantes nas nações quanto em Israel.
Em nenhum lugar isto é tão evidente como nos dois primei­
ros capítulos da profecia de Amós. Antes de repreender Judá
por haver rejeitado a lei de Deus, vo/tando-se para a idolatria,
e também Israel por subjugar os pobres e negar justiça aos
oprimidos (Am 2:4-8), Am ós declarou o juízo de Deus contra
todas as nações circunvizinhas (l:3 -2 :3 ): contra a Síria, por
sua crueldade selvagem; a Fenícia, por capturar comunida­
des inteiras e vendê-las como escravas; Tiro, por haver que­
brado um pacto de irmandade; Edom, por sua impiedosa hos­
tilidade para com Israel; Amom, por suas atrocidades nas guer-
ras, e, finalmente, contra Moabe, por haver profanado os os­
sos de um rei vizinho.
De igual forma, vários dos livros proféticos contêm uma
seção de oráculos sobre as nações ou contra elas. Deus é o
Deus da justiça e deseja justiça em cada nação e com unida­
de. Isto se evidencia particularmente no livro de Naum, que
é uma profecia contra Nínive, capital e símbolo da Assíria. A
denúncia de Javé deve-se não somente ao fato de ser a Assí­
ria um velho inimigo de Israel (p. ex. l:9ss; 2:2ss), mas tam ­
bém à sua idolatria (1:14); e mais: por ser ela uma “cidade
sangüinária, toda cheia de mentiras e de roubo, e que não solta
a sua presa” (3:1) Duas vezes Javé pronuncia as terríveis pa­
lavras “eu estou contra ti” (2:13; 3:5), e o oráculo termina com
a questão retórica (3:19): “ sobre quem não passou continua­
mente a tua maldade?”
Estas passagens do Antigo Testamento deixam claro que
Deus odeia injustiça e opressão seja onde for, e ama e pro­
move a justiça em todo lugar. De fato, onde quer que se en­
contre integridade neste nosso mundo caído, isto se deve à
obra de sua graça. Qualquer ser humano também sabe disso,
pois existe em nós um senso de justiça inato, como bem se
pode ver pela reclamação infantil "Isso não é justo!” Uma só­
lida evidência do ensino de Paulo é que a lei moral de Deus
está escrita no coração humano (Rm, 2:14,15). Tanto a lei de
Deus quanto seu evangelho são para o nosso bem.
Eis aqui, então, o Deus vivo da Bíblia. Ele se preocupa com
tudo: não apenas com o "sagrado” mas também com o "s e ­
cular” ; não somente com religião mas também com a natu­
reza; não só com o povo da sua aliança, mas com todos os
povos; não apenas com a justificação mas inclusive com a jus­
tiça social em cada comunidade; não com seu evangelho, ex­
clusivamente, mas também com a sua lei. Portanto, não de­
vemos tentar limitar seus interesses. Além do mais, nossas
preocupações deveriam ser tão abrangentes quanto as dele.
John Gladwin apresenta este argumento em seu livro G od’s
People in God's World (O Povo de Deus no Mundo de Deus):
"É por ser este o mundo de Deus e porque Deus cuidou dele
a ponto de chegar à encarnação e à crucificação que temos
o com promisso inevitável de trabalhar pela justiça de Deus
frente à opressão, pela verdade de Deus face a mentiras e fal­
sidades; pelo serviço ante o abuso do poder, pelo amor face
ao egoísmo, pela cooperação diante do antagonismo destrui­
dor e pela reconciliação frente a divisões e hostilidade.” 37
2. Uma Doutrina Mais Abrangente do Homem

Toda a nossa obra filantrópica (ou seja, obra inspirada no


amor ao ser humano) depende de nossa avaliação do ser hu­
mano. Quanto mais digno ele for aos nossos olhos, tanto maior
será nossa disposição em servi-lo.
Os humanistas seculares, sinceros em se descrever a si
mesmos como sendo dedicados “ ao caso humano e à causa
humana”,38 muitas vezes aparentam ser mais humanos do
que os cristãos. Se perguntarmos, porém, porque se com pro­
metem tanto com a humanidade, eles provavelmente respon­
derão com Julian Huxley que é em razão do potencial huma­
no nas etapas futuras da evolução. “ Portanto, o desenvolvi­
mento do vasto potencial de possibilidades realizáveis do ser
humano", escreve Huxley, “ provê a motivação primordial pa­
ra a ação coletiva”.39 A insuficiência disto como base para o
serviço é óbvia. Se o nosso maior interesse é o progresso, in­
dependente da evolução, então por que nos preocupar com
os senis, os imbecis e os psicopatas, os criminosos empeder­
nidos ou os doentes crônicos e os que morrem à míngua? Não
seria mais prudente adormecê-los para sempre, como se faz
com um bichinho de estimação, a fim de não atrapalharem
o processo evolucionário? Eutanásia compulsória, e não ser­
viço compassivo, seria a dedução lógica a partir da premissa
dos humanistas. O fato de que eles recuam diante desse abis­
mo indica que o seu coração é melhor do que a cabeça, e
sua filantropia superior à sua filosofia.
Os cristãos têm uma base mais sólida para servir aos ou­
tros seres humanos. E isto não apenas em razão do que es­
tes podem vir a ser na especulativa evolução futura da raça,
mas do que já são, em virtude da criação divina. Os seres hu­
manos são seres divinos, criados à imagem de Deus; eles pos­
suem capacidades singulares que os distinguem da criação
animal. E verdade que são seres caídos, e sua imagem divina
se desfigurou; mas apesar de todas as aparências contrárias,
essa imagem não foi destruída (Gn, 9:6; Tg, 3:9). É nisto que
consite o seu valor singular, e foi isto que sempre inspirou a
filantropia cristã.
Essas criaturas humanas, porém, à semelhança de Deus
não são apenas alma (para que nos preocupássemos exclusi­
vamente com a sua salvação eterna), exclusivamente corpo
(para que cuidássemos apenas da sua alimentação roupa, abri­
go e saúde), ou nada mais que seres sociais (para que nos
ocupássemos inteiramente com seus problemas comunitários).
Elas são as três coisas. Partindo da perspectiva bíblica, o ser
humano poderia ser definido como sendo “ uma comunidade
integrada de corpo e alma”. Foi assim que Deus nos fez. Por­
tanto, se realmente amamos o próximo, e desejamos servi-lo
pelo que ele é, buscaremos o seu bem-estar integral: o bem-
estar de sua alma, corpo e comunidade. E nosso interesse re­
sultará em programas práticos de evangelização, assistência
médica e desenvolvimento. Não ficarem os apenas na conver­
sa, planejando e orando, como aquele religioso a quem uma
ifüjIlw^esaBrígaüa^irõcurou em busca de auxílio. Ele — muito
sincero, sem dúvida, mas também muito ocupado e não sa­
bendo como ajudá-la — prometeu orar por ela. Posteriormen­
te a mulher escreveu este poema e entregou-o a um dos dire­
tores regionais da missão Abrigo (Shelter):
Eu tive fome,
e tu formaste um grupo humanitário
para discutir minha fome.
Estive preso
e tu te retiraste discretamente para a tua capela
e oraste pela minha libertação.
Estava nua
e, na tua mente, questionaste
a moralidade da minha aparência.
Estive enferma
e tu te ajoelhaste e agradeceste a Deus por tua saúde.
Estava desabrigada
e tu me falaste do abrigo espiritual do am or de Deus
Estava solitária
e tu me deixaste sozinha a fim de orar por mim,
Parecias tão santo, tão próxim o de Deus!
Mas eu ainda estou com fome... e sozinha... e com
frio.
Os cristãos primitivos, motivados pelo amor aos seres hu­
manos necessitados, iam a todo lugar pregando a Palavra de
Deus, pois estavam conscientes de que nada exerce uma in­
fluência humanizadora tão forte quanto o evangelho. Mais tarde
fundaram hospitais, escolas e refúgios para os marginaliza­
dos. E ainda mais tarde aboliram o tráfico de escravos e os
libertaram, melhoraram as condições de trabalho nas fábri­
cas e nas minas e também dos prisioneiros nas galés. Prote­
geram as crianças da exploração comercial nas fábricas do
Ocidente e da prostituição ritual nos templos do Oriente. Ho­
je eles trazem às vítimas da lepra a compaixão de Jesus e os
métodos modernos de cirurgia e reabilitação reconstrutiva.
Cuidam dos cegos e dos surdos, dos órfãos e das viúvas, dos
enfermos e dos moribundos. Colocam-se ao lado dos droga­
dos e tentam auxiliá-los durante o traumático período da reti­
rada. Manifestam-se contra o racismo e a opressão política.
Envolvem-se no cenário urbano, nos subúrbios, nas favelas e
nos guetos, erguendo seu protesto contra as condições de­
sumanas em que tanta gente é obrigada a viver. Eles procu­
ram expressar da melhor forma possível sua solidariedade para
com os pobres e os famintos, os despojados e os despreza­
dos. Não estou afirmando que todos os cristãos em todos os
tempos têm dedicado sua vida a esse tipo de serviço. Porém
é considerável o número dos que têm feito algo digno de no­
ta. E por que fazem isso? Por causa da doutrina cristã, que
ensina que apesar da Queda todo ser humano — homem ou
mulher — foi criado à imagem de Deus. Porque as pessoas
são importantes. Porque todo homem, mulher e criança tem
um valor intrínseco e inalienável como ser humano. Se con­
seguirmos enxergar isso, o que acontecerá é que nos dispo­
remos a libertar as pessoas de tudo que seja desumanizante,
considerando um privilégio servir ao próximo e fazer o que
estiver ao nosso alcance para tornar mais humana a vida
humana.
O filme O Homem-Elefante tornou amplamente conheci­
da a extraordinária história que todo inglês conhecia no final
do século passado. Foi em 1884 que Frederick Treves, um jo ­
vem cirurgião e docente de anatomia do Hospital de Londres,
encontrou o “ homem-elefante” num pequeno estúdio aluga­
do defronte do hospital. Diz Treves que a primeira vez que viu
sua forma recurvada pensou nele como “a própria solidão ma­
terializada”. Mais tarde descreveu-o como sendo “o mais re­
pugnante espécime humano” que já havia visto. Ele tinha “ uma
enorme cabeça disforme”, com uma monstruosa massa ós­
sea que se projetava da testa e uma outra destacando-se da
mandíbula superior, o que lhe dava uma aparência elefantina.
Uma pelanca esponjosa e com um cheiro horrível, parecendo
um fungo ou uma couve-flor marrom, pendia-lhe das costas,
do peito, da nuca e do braço direito. As pernas eram disfor­
mes, os pés pareciam bulbos e a bacia apresentava um des­
locamento. Seu rosto não tinha expressão alguma, e a fala não
passava de um resmungar incoerente, quase ininteligível. O
braço e a mão direita, no entanto, eram tão perfeitos e delica­
dos quanto os de uma jovem.
Como se o seu sofrimento não bastasse, era tratado co­
mo um animal, exposto de feira em feira e exibido para os cu­
riosos a troco de dinheiro. Treves escreveu: “ Evitavam-no co­
mo a um leproso, enjaulavam-no como a um animal selvagem.
A única visão que ele tinha do mundo era através de um bura-
quinho num vagão de circo. Era tratado pior que um cão. Ater­
rorizado com os olhares curiosos, rastejava para se esconder
num canto escuro.”
Quando foi abandonado pelo apresentador do circo, Tre­
ves o acomodou e cuidou dele em um quarto nos fundos do
Hospital de Londres, onde, passados três anos e meio, ele mor­
reu dormindo, poucos dias após ter tomado a comunhão do
Domingo de Páscoa.
No início Treves pensara que ele fosse um imbecil, prova­
velmente de nascença. No hospital, porém, descobriu que era
um ser humano; chamava-se Joseph Merrick, tinha vinte e pou­
cos anos, era inteligentíssimo, um leitor voraz, gostava muito
de conversar e tinha uma aguda sensibilidade e uma imagi­
nação romântica. Era também “ uma criatura gentil, afetuosa
e amável”.
Quando, ao receber pela primeira vez a visita de uma mu­
lher, esta lhe dirigiu um sorriso e o cumprimentou com um
aperto de mão, Joseph Merrick irrompeu em soluços incon-
troláveis. A partir desse dia, porém, começou a se transfor­
mar. Tornou-se uma celebridade, e muitas pessoas importan­
tes vinham visitá-lo. Com eçou a mudar aos poucos,
transformando-se “de uma coisa caçada em um homem”, es­
creveu Treves. Na verdade, porém, ele sempre fora um homem.
Treves talvez nunca tenha articulado a doutrina cristã que afir­
ma terem sido os seres humanos criados à imagem de Deus.
Foi no entanto seu impressionante respeito por Joseph Mer­
rick que capacitou este a levantar a pobre cabeça disforme
e conquistar alguma medida de respeito próprio antes de
morrer.41

3. Uma Doutrina Mais Abrangente de Cristo

Muitas e variadas reinterpretações e reconstruções têm


sido feitas a respeito de Jesus. De fato, é de se esperar que
cada geração de cristãos procure compreendê-lo e apresentá-
lo en^ termos apropriados à sua época e cultura. Portanto, te­
mos aí Jesus, o asceta, o sofredor, o monarca, o cavalheiro,
o palhaço, o “ superstar”, o capitalista, o socialista, o revolu­
cionário, o guerrilheiro, a droga fantástica. Naturalmente, vá­
rios desses quadros se contradizem mutuamente, enquanto
outros não têm qualquer justificativa histórica.
Precisamos, então, resgatara verdadeira imagem daque­
le a quem o Pacto de Lausanne chama de ‘‘o Cristo bíblico
e histórico” (par. 4). Precisamos vê-lo em sua plenitude para­
doxal: seu sofrimento e sua glória, seu serviço e senhorio, sua
humilde encarnação e seu reinado cósmico. A encarnação tal­
vez seja o que os evangélicos mais tendem a negligenciar, tanto
no seu significado teológico quanto em suas implicações
p rá tic a s .__.___ ___ ..........
^ ^
................ ........................................ x
O Filho de Deus nao permaneceu na segura imunidade \
do seu céu. Ele se despojou da sua glória e se humilhou a S
fim de servir. Fez-se pequeno, fraco e vulnerável. Penetrou nos- /
sa dor, nossa alienação e tentações. Não somente proclamou 1
as boas-novas do Reino de Deus, mas sinalizou sua vinda cu- \
rando os enfermos, alimentando os famintos, perdoando pe- \
cados, sendo amigo dos marginalizados e ressuscitando mor­
tos. Ele não veio para ser servido, declarou, mas para servir
e dar a vida em resgate de outros. Portanto, permitiu que se
tornasse vítima da.tremenda injustiça dos tribunais e, ao ser
crucificado, orou pelos próprios inimigos. Então, na terrível es­
curidão do desamparo de Deus, carregou os nossos pecados
‘sobre sua inocente pessoa.
áerefque esta visão defCristo não deveria afetar a nossa
compreensão da sua comissão: ‘‘Assim como o Pai me enviou,
eu também vos envio” (Jo, 20:21)? Se a missão cristã é para
ser modelada pela missão de Cristo, ela certamente implica­
rá — assim como ele o fez — penetrarmos no mundo das pes­
soas. Em se tratando de evangelização isto significa entrar no
mundo dos seus pensamentos, no mundo da sua tragédia e
solidão, a fim de compartilhar Cristo com eles lá onde eles
estão. Socialmente falando significa disposição para renun­
ciar ao conforto e à segurança de nossa própria formação cul­
tural, a fim de nos doarmos em serviço a indivíduos de outra
cultura, de cujas necessidades quem sabe jamais tenhamos
tido conhecimento ou experiência. Uma missão encarnada,
seja ela evangelística ou social, ou mesmo ambas, exibe uma
custosa identificação com as pessoas em sua real situação.
Jesus de Nazaré movia-se de compaixão ao ver as necessi­
dades dos seres humanos, fossem eles enfermos, enlutados,
famintos, atormentados ou desamparados. Não deveria a com­
paixão do seu povo nascer das mesmas motivações?
Leónidas Proaiío é um bispo católico-romano de Riobam-
ba, a cerca de 170 quilômetros ao sul de Quito, Equador. Ba­
seando suas idéias na Bíblia, trabalha pela justiça social no
seu país, inclusive para os índios, cuja cultura deseja ver pre­
servada contra aqueles que ameaçam solapá-la ou mesmo
destruí-la. Embora se recuse a identificar-se com o marxismo
e mesmo sem ser de fato um marxista, critica (na verdade até
desafia) o sistema político eclesiástico do seu país, opondo-
se ao feudalismo e ao opressivo poder dos ricos proprietá­
rios. Não é de admirar que viva recebendo ameaças de m or­
te. De qualquer forma, em 1973, depois da derrota e morte
de Salvador Allende, ex-presidente do Chile, o Bispo Proaiio
pregou em uma missa para estudantes marxistas em Quito.
Descreveu Jesus como ele era: radical, crítico do sistema go­
vernamental, campeão dos oprimidos, amante dos pobres; en­
fim, alguém que, além de pregar o evangelho, serviu também
compassivamente aos necessitados. Após a missa, quando
houve um período de perguntas, os estudantes disseram: “ Se
tivéssemos conhecido esse Jesus antes, nunca nos teríamos
tornado marxistas”.
Em que Jesus cremos nós? E qual é o Jesus que prega­
mos? Será possível que em algumas partes da Igreja esse fal­
so Jesus (“outro Jesus” — 2 Co, 11:4) esteja sendo apresen­
tado aos jovens, e que, ao invés de aproximá-los, nós os esta­
mos afastando de Cristo e atirando-os nos braços de Karl Marx?

4. Uma Doutrina Mais Abrangente da Salvaçao

Existe na igreja uma constante tendência a baratear a na­


tureza da salvação, como se esta nada mais fosse que uma
autotransformação ou o perdão dos nossos pecados, um pas­
saporte pessoal para o paraíso ou uma experiência mística
particular, sem qualquer conseqüência moral ou social. Urge
resgatar a salvação destas caricaturas e redescobrir a doutri­
na na sua plenitude bíblica, pois salvação é uma transforma­
ção radical que ocorre em três fases: começa agora, conti­
nua por toda a nossa vida terrena e será aperfeiçoada quan­
do Cristo voltar. Importa principalmente vencer a tentação de
separar verdades que devem andar juntas.
Em primeiro lugar, não devemos separar salvação do Rei­
no de Deus. Na Bíblia estes dois são virtualmente sinônimos,
modelos alternativos que descrevem a mesma obra de Deus.
De acordo com Isaías, 52:7, aquele que prega as boas-novas
da paz é o mesmo “que faz ouvir a salvação, que diz a Sião:
O teu Deus reina!” Ou seja, onde Deus reina ele também sal­
va. A salvação é a bênção do seu domínio. Da mesma forma,
quando Jesus disse aos seus discípulos: “quão difícil é en­
trar no reino de Deus”, parece ter sido natural que eles res­
pondessem com a pergunta: “ Então, quem pode ser salvo?”
(Mc, 10:24-26). É evidente que, para eles, entrar no Reino de
Deus era o mesmo que ser salvo.
Uma vez feita esta identificação a salvação assume um
aspecto mais amplo, pois o Reino de Deus é a regra dinâmica
de Deus que irrompe na história humana através de Jesus, con­
frontando, combatendo e derrotando o mal, abrangendo inte­
gralmente o bem-estar pessoal e comunitário, apossando-se
do seu povo em bênção total e completa demanda. Ser Igreja
significa ser a comunidade do Reino, um modelo daquilo que
a comunidade humana deve parecer quando submetida ao do­
mínio divino, uma alternativa desafiadora para a sociedade se­
cular. Entrar no Reino de Deus é entrar em uma nova era, pro­
metida há muito tempo no Antigo Testamento, e também co­
meço da nova criação de Deus. Agora aguardamos a consu­
mação do Reino, quando nosso corpo, nossa sociedade e nos­
so universo serão renovados, e quando o pecado, a dor, a fu­
tilidade, a doença e a morte já não existirão. A salvação é um
conceito muito amplo: não temos a liberdade de reduzi-lo.
Em segundo lugar, não podemos separar Jesus, o Salva­
dor, de Jesus, o Senhor. Parece quase impossível que alguns
evangelistas ensinem que se pode aceitar Jesus como Salva­
dor, deixando para mais tarde o render-se a ele como Senhor.
No entanto, Deus exaltou Jesus à sua destra e fê-lo Senhor.
Dessa posição de supremo poder e autoridade executiva ele
pode conceder salvação e o dom do Espírito. E justamente
por ser Senhor é que tem possibilidade de salvar. As afirma­
ções “Jesus é Senhor” e “Jesus é Salvador” são quase cor­
respondentes entre si. E o senhorio de Jesus vai muito além
do cantinho religioso da nossa vida. Ele abrange o todo da
nossa experiência, tanto pública quanto privada, em casa e
no trabalho, na igreja e na vida cívica, nas responsabilidades
sociais e nas evangelísticas.
Em terceiro lugar, não devemos separar fé de amor. Os
cristãos evangélicos sempre enfatizaram a fé. Sola fide, “ So­
mente pela fé ” foi uma das grandes palavras de alerta da Re-
forma, e com muita razão. A “justificação”, ou aceitação por
parte de Deus não diz respeito a boas obras que tenhamos
feito ou que possamos fazer; nós a recebemos só e exclusi­
vamente através do favor imerecido (“ graça” ) de Deus, com
base apenas na morte expiatória de Jesus Cristo e somente
pela simples fé nele. Esta verdade central do evangelho não
deve ser comprometida por coisa alguma. Contudo, embora
a justificação seja apenas pela fé, essa fé não pode perma­
necer sozinha. Se for viva e autêntica inevitavelmente produ­
zirá boas obras; caso contrário é espúria. O próprio Jesus en­
sinou isto ao descrever o dia do juízo usando a alegoria dos
“ bodes” e das “ovelhas”. Nossa atitude para com ele — dis­
se — será revelada e julgada pelas nossas obras de amor pa­
ra com o menor dos seus irmãos e irmãs. Todos os apóstolos
colocam a mesma ênfase na necessidade de obras de amor.
Todos nós conhecem os o ensinamento de Tiago: “...a fé, se
não tiver obras, por si só está morta (...) eu, com as obras,
te mostrarei a minha fé ” (2:17, 18). João também disse: “ Ora,
aquele que possuir recursos deste mundo e vir seu irmão pa­
decer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode per­
manecer nele o amor de Deus?” (I Jo, 3:17). Paulo ensina a
mesma coisa. Cristo morreu para criar uma nova com unida­
de, um povo que seria “ zeloso de boas obras” (Tt, 2:14). Nós
fomos recriados em Cristo “ para boas obras, as quais Deus
de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef, 2:10).
E em Gálatas ele volta a dizer que a única coisa que tem valor
é “ a fé que atua pelo am or” (5:6) E recomenda: “ Sede (...)
servos uns dos outros, pelo am or” (5:13). Eis aí, portanto, a
surpreendente seqüência: fé, amor e serviço. A verdadeira fé
se expressa pelo amor, e o verdadeiro amor se revela através
de serviço.
Esta ênfase do Novo Testamento tem que ser aplicada ao
coração, principalmente daqueles que entre nós se declaram
cristãos “evangélicos”. Precisamos cuidar para não enfatizar­
mos a fé e o conhecimento em detrimento do amor. Paulo não
o fez. “Ainda que eu (...) conheça todos os mistérios e toda
a ciência”, escreve ele, e “ainda que eu tenha tamanha fé ao
ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei”
(1 Co, 13:2). A fé salvadora e o amor salvador caminham lado
a lado. Onde quer que falte um deles faltará também o outro.
Nenhum deles pode subsistir sozinho.
5. Uma Doutrina Mais Abrangente da Igreja

Muita gente pensa na igreja com o uma espécie de clube,


um time de futebol ou coisa parecida. Só que, em vez de fu­
tebol ou outros interesses, seus membros vão lá por causa
de Deus. São pessoas religiosas que se reúnem para fazer coi­
sas religiosas. Pagam suas subscrições, tendo, portanto, di­
reito aos privilégios de membros do clube. Com essa visão
das coisas esquecem a sutil afirmação de William Temple, de
que “ a Igreja é a única sociedade cooperativa que existe para
o benefício de não-membros”.41
Em vez do modelo de “ clube” precisamos resgatar aqui­
lo que se poderia descrever como a "dupla identidade” da Igre­
ja. Por um lado ela é um povo “santo”, separado do mundo
para pertencer a Deus. Por outro, porém, é composta de gen­
te “ mundana”, no sentido de que é enviada de volta ao mun­
do para testificar e servir. É isto que o Dr. Alec Vidler, seguin­
do a linha de Bonhoeffer, chama de “o santo mundanismo”
da Igreja.42 Raramente, no decorrer de sua longa e vigiada his­
tória, tem ela lembrado ou preservado sua dupla identidade.
Algumas vezes, levada por uma correta ênfase na sua “santi­
dade”, comete o erro de se afastar do mundo, isolando-se des­
te. Outras vezes, ao enfatizar corretamente a sua “ mundani-
dade” (isto é, sua imersão na vida do mundo), erradamente
assimila os padrões e valores do mundo, deixando-se conta­
minar por eles. Mesmo assim a Igreja nunca poderá se enga­
jar na missão, a não ser que preserve ambos os lados de sua
identidade. A missão parte da doutrina bíblica que considera
a Igreja na sociedade. Uma eclesiologia desequilibrada pro­
duz uma missão igualmente desequilibrada.
O próprio Jesus ensinou estas verdades, não somente em
sua famosa expressão “ no mundo, mas não do mundo”, co­
mo também na vívida metáfora do sal e da luz. “ Vós sois o
sal da terra”, disse ele, acrescentando: “ Vós sois a luz do mun­
do” (Mt, 5:13-16). Com isso ele implicava serem as duas co­
munidades (a nova e a velha, a Igreja e o mundo) tão radical­
mente diferentes uma da outra quanto a luz das trevas e o
sal da podridão. Ele também queria dizer que, a fim de desem­
penhar a sua função positiva, o sal tem que penetrar na car­
ne e a luz tem que brilhar na escuridão. Os cristãos, de igual
forma, devem impregnar a sociedade não-cristã. Assim, sua
dupla identidade e a dupla responsabilidade da Igreja serão
bem evidentes.
Semelhantemente o apóstolo Pedro descreve os membros
do novo povo de Deus como sendo, por um lado, “ peregrinos
e forasteiros” no mundo: por outro, como devendo ser cida­
dãos conscientes no mundo (1 Pe, 2:11-17). Não podemos ser
totalmente a favor do mundo (como se nada nele fosse mau),
nem totalmente contra ele (como se nada nele fosse bom),
mas um pouquinho de cada um, e particularmente desafia­
dores seus, reconhecendo sua potencialidade como mundo
de Deus e procurando conformar sua vida cada vez mais ao
senhorio de Deus.
Esta visão da influência da Igreja na sociedade é melhor
descrita em termos de “ reforma” do que em termos de “ re­
denção”. Como diz A. N. Triton, “A redenção não é uma infec­
ção das estruturas sociais (...) Ela resulta em indivíduos res­
taurados a um relacionamento correto com Deus. Contudo isto
levanta na sociedade ondas de efeito horizontal que nos be­
neficiam a todos. Tais benefícios dizem respeito a reformar a
sociedade de acordo com a lei de Deus, e não a redimi-la pe­
la morte de Cristo.” 44
A efetividade da Igreja depende dessa combinação entre
“santidade” e “ mundanidade”. Mais tarde retomaremos es­
tas imagens.

Diaconía Prática

Reúno aqui cinco doutrinas, rogando que conservemos


firme a sua integridade bíblica. São elas a doutrina de Deus
(Criador, Legislador, Senhor e Juiz), a doutrina do homem (que
tem um valor singular por ter sido criado à imagem de Deus),
a doutrina de Cristo (que se identificou conosco e nos con­
clama a nos identificarmos com os outros), a doutrina da sal­
vação (uma transformação radical) e a doutrina da Igreja (que,
embora distinta do mundo como sal e luz deste, ainda assim
o impregna em nome de Cristo). Estas cinco doutrinas cons­
tituem a base bíblica da missão, tanto para o evangelismo quan­
to para a responsabilidade social. Elas nos impõem a obriga­
ção de nos envolvermos na vida do mundo. Mas como?
Tomemos primeiramente o cristão como indivíduo. Em ter­
mos gerais, todo cristão é chamado a ser testemunha e ser­
vo, pois cada um de nós é um seguidor do Senhor Jesus, que
testemunhou uma boa confissão e também disse: “ Eu estou
entre vós para servir”. Portanto, diakonia (serviço) e marturia
(testemunho) são gêmeos inseparáveis. Não obstante isso, di­
ferentes cristãos são chamados para distintos ministérios es-
pecíficos, da mesma forma que os doze discípulos o foram
para o ministério da Palavra e da oração, enquanto os sete fo­
ram designados para a responsabilidade de servir diariamen­
te às viúvas (At, 6). A metáfora da Igreja, como sendo o Corpo
de Cristo, reforça a mesma lição. Assim como cada membro
do corpo humano tem uma função específica, de igual ma­
neira, cada membro do Corpo de Cristo tem um dom diferen­
te; conseqüentemente um ministério distinto. Ao mesmo tem­
po, seja qual for o nosso chamado específico, haverá em er­
gências em que teremos de agir. Dizer que seu papel era ser­
vir no templo não constituía desculpa para a negligência do
sacerdote e o levita da parábola do Bom Samaritano, que ver­
gonhosamente abandonaram a si própria a vítima de assalto
e roubo. Se somos chamados para um ministério predominan­
temente social, ainda assim temos a obrigação de testemu­
nhar; se para um ministério especialmente evangelístico, não
podemos mesmo aí negar nossa responsabilidade social.
Quanto à igreja local, a versatilidade do seu alcance po­
de ser grandemente ampliada caso se faça uso total dos seus
membros com seus diferentes dons e chamados. É muito sau­
dável que a liderança da igreja local encoraje pessoas com
preocupações idênticas a formarem “ grupos de interesse es­
pecial”, ou “grupos de estudo e ação”. Alguns poderiam ter
um objetivo evangelístico: visitação de casa em casa, grupos
de música, grupo de missões mundiais etc. Outros teriam uma
atuação a nível social: visita a enfermos, assistência aos ca­
rentes, associações de bairros, relacionamentos comunitários
ou raciais, movimentos pró-vida ou anti-aborto, minorias étni­
cas etc. Esses grupos específicos suplementam um ao outro.
E se eventualmente lhes for dada oportundiade de prestar re­
latório aos membros da igreja como um todo, a natureza re­
presentativa do seu trabalho será confirmada e eles acaba­
rão por receber apoio valioso de sua igreja de origem, em ter­
mos de aconselhamento, oração e sustento financeiro.
Nenhum cristão deve procurar ou tentar envolver-se em
toda espécie dè ministério. Mas cada igreja local (pelo menos
de qualquer tamanho, por meio de seus grupos) pode e deve
envolver-se em tantos quantos lhe for possível. Os grupos
criam condições para que a Igreja se diversifique amplamen­
te em termos de percepção de responsabilidade e ação.
Termino este capítulo com uma referência à missa da Igre­
ja Romana, o que poderá parecer surpreendente. Diz-se que
a palavra “ missa” se deriva da sentença final do velho rito la­
tino ite missa est. Em português polido poder-se-ia traduzir
assim: 'Agora , estais dispensados”. Em linguagem mais ru­
de, seria o mesmo que dizer: ‘Dêem o fora!’ Fora para o m un­
do que Deus fez, habitado por seres semelhantes a Deus; mun­
do para onde Cristo veio e ao qual nos manda agora. Porque
este é o lugar que nos compete. O mundo é o lugar em que
temos de viver e amar, testemunhar e servir, sofrer e morrer
por Cristo.

1. Evangelisun and S o cia l R esp onsib ility: A n Evangelical Com n u tm en t, the


Grand R apids Report, 982, p. 19.
2. J. W esley Bready, E n gla n d Before a n d A fte r W esley (H o d d e r & S to u g -
ton) 1939, p.p. 11, 14.
3. Ibid, p. 126.
4. Ibid, p. 405.
5. Ibid, p. 405.
6. Ibid, p. 327.
7. Ibid, p. 316.
8. Ernest M arshal Howse, S ain ts in P o litics., th e “ C lapham S e c t and the
grow th of free d om (G eorge A llen & Unwin, 1953) p. 26.
9. Ibid, p. 27.
10. G eorgina B attiscom be, S n a ftesb u ry, a b iography of th e 7th Earl
1801-1885. (Constable, 1974), p. 334.
11. C ita d o p o r David M ob erg em The G reat Reversal, “ Evangelism versus
social c o n c e rn ” (1972, S crip tu re U nion, 1973), p. 184. Para uma avalia­
ção da obra dos evan gélicos na Inglaterra do sé cu lo X IX , ver tam bém
E vangelicals in A ction , de Kathleen H easm an (G eoffre y Bles, 1962).
12. Donald W. D ayton, D isco ve rin g an E va ngelica l H eritage (H a rper & Row,
1976), pp. 1 5 -2 4 . Ver tam bém R eviw alism a n d S o cia l Reform . "A m e ri­
can P rotestan tism on the Eve of th e C iovil W ar”, de T im o th y L. Sm ith
(1957, Joh n s Hopkins University Press, 1980). O Dr. Sm ith com eça o pre­
fácio dizendo que se Thom as Paine tivesse visitado Nova Iorque em 1865
teria ficado surpreso ao ver que a glória em ancipadora dos grandes des-
pertam en tos havia transform a do a liberdade cristã, a igualdade cristá
e a fra tern id ad e cristã na paixão da terra” (pág. 7).
13. op. cit. p. 25.
14. De um artigo de Donald W. Dayton em The Post-Am erican (Março, 1975).
15. Extra íd o da Introd uçã o de R. P ierce B eaver ao livre C h ristian M ission
and S o cia l Ju s tic e , de Sam uel E sco b a r e John D river (Herald, 1978), pp.
7 -9. '
16. W alter R a u schenb usch, C h ristia n ity and the S o c ia l C risis (M acm illan,
London, 1907). '
17. Ibid. pp. 39 1 -4 0 0 .
18. Ibid. p. 357.
19. Ibid. p. 65.
20. Ibid. p. xiii.
21. Ibid. p. 149.
22. Ibid. p. 420.
23. Ibid. p. 210.
24. Ibid. p. 380.
25. W alter R au sch en b u sch , A T h e o lo g y fo r the S o c ia l G isp el (1917, M acm il­
la n , L o n d o n , 1907).
26. Ibid. p. 1.
27. Ibid. p. 131.
28. Ibid. p. 142.
29. Ibid. p. 145.
30. op. cit. pp. 5 3 -5 7 .
31. Keele 67, T h e National Evangelical A n g lica n C ongress, ed. Philip Crowe
(Falcon, 1967), par. 20.
32. op. cit. p. 28.
33. op. cit. pp. 4 3 -4 4 .
34. op. cit. p. 45.
35. Dr. Edward N orm an, C h ristia n ity and the W orld O rd er (Dup, 1979).
36. Tom Sine, The M ustard S e e d C on sp ira cy (Word, 1981), pp. 69-71.
37. Jo h n G ladw in, G o d ’s p e o p le in G o d 's W orld, B iblical m otives fo r social
in volvem en t (IVP, 1979), p. 125.
38. H. J. Blackham , H um anism (Penguin, 1968). Ele escreve: “ O h um a nis­
m o é o caso hum ano, e a causa hum ana uma antiga co n vicçã o a res­
peito do caso hum ano (...) que induz hom ens e m ulheres (...) a d e sp o ­
sar a causa hum ana de m ente e coração e com as duas m ã o s" (pág. 9).
39. Sir Julian Juxley, ed. The H um anist Fram e (G eorge Allen & Unwin, 1961),
p. 47.
40. R esum ido de The E lep h a n t Man and O th e r R em iniscences, de Sir Fre­
d erick Treves (C assell, 1923). Para uma pesquisa com pleta sobre tod o
o caso ver T h e True H istory of the Elephant Man, de M ichael Howell e
Peter Ford (Penguin, 1980).
41. Citado por C h arles Sm ith em C y ril Forster G a rb e tt (H od d er & S to u g h ­
ton, 1959), p. 1906.
42. A. R. Vidler, Essays in Liberality (SCM , 1957), pp. 95-112. 0 Dr. Vid ler
contrasta esse “ m un da nism o santo” com o “ m undanism o profano", is­
to é, “ a adaptação a c rítica e co m p la ce n te aos padrões e m odas que
prevalecem (...)" (pág. 96).
43. A. N. Triton, W hose W orld? (IVP, 1970), pp. 3 5 -3 6 .
CAPÍTULO II

COMPLEXIDADE: DESENVOLVENDO UMA MENTE CRISTÃ

Suponhamos que já estamos de acordo com o fato de que


as nossas doutrinas sobre Deus, o ser humano, Cristo, a sal­
vação e a Igreja nos conduzem inevitavelmente a um com pro­
misso, compromisso esse não apenas com o serviço social
— cuidando, em nome de Cristo, das vítimas da opressão —
mas também com a ação social, preocupando-nos com a jus­
tiça e transformações sociais. Estar fortemente motivados, por­
tanto, é essencial; mas isso não basta. Qualquer contribuição
que esperemos prestar depende de como entendemos os pro­
blemas. Precisamos de muita sabedoria para não sairmos pe­
rambulando descuidadamente pelo campo minado da ética
social. Quando o falecido John Mackay era presidente do Se­
minário Teológico de Princeton, eu o ouvi dizer certa vez:
“ Compromisso sem reflexão é fanatismo em ação, mas refle­
xão sem compromisso é a paralisia de toda ação”.
Certamente não devemos subestimar a complexidade das
questões que confrontam a humanidade nos dias de hoje. Não
se pode negar que, geração após geração, as pessoas sem­
pre se viram perplexas, sem saber como lidar com os proble­
mas da sua época; portanto, não é de admirar que nos sinta­
mos do mesmo jeito. No entanto, o número, a extensão e a
gravidade das questões com que nos deparamos no final do
século XX parecem realmente sem precedentes, principalmen­
te em razão da revolução científica. A questão da guerra e paz,
por exemplo, sempre preocupou a consciência cristã; mas o
desenvolvimento do armamento nuclear o agravou enorm e­
mente. De maneira semelhante, a nova m icro-tecnologia tor­
nou mais sério o problema do desemprego, a longo prazo, en­
quanto o desenrolar do código genético e as possibilidades
da engenharia genética resultaram na criação de um novo cam­
po, a “ bioética”.
É ciaro que nenhum cristão pode arvorar-se em autori­
dade em todas essas áreas. Também é duvidoso que a Igreja
como tal deva recomendar políticas detalhadas e particula-
res. William Temple, que dentre todos os arcebispos de Can-
tuária deste século foi certamente o que mais se envolveu com
questões sociais, batalhou muito pela necessidade de se dis­
tinguir entre princípios e políticas. Ao escrever, em 1941, so­
bre a contínua pobreza e subnutrição na Inglaterra e “ a vida
industrial do país (...) desgraçado pelo desemprego crônico”,
fez esta afirmação: “A Igreja tem o direito e a obrigação de
condenar a sociedade caracterizada por estes males; em sua
capacidade corporativa, porém, ela não tem a prerrogativa de
advogar soluções específicas”.1 Ela deveria, ao invés disso,
inspirar seus membros (sejam eles políticos, funcionários pú­
blicos, homens e mulheres de negócios, sindicalistas ou de
qualquer outra área da vida pública) a buscar e aplicar solu­
ções apropriadas. ‘‘Em outras palavras: a Igreja estabelece os
princípios; o cidadão cristão os aplica; e, a fim de fazê-lo, ele
utiliza o aparato do Estado.” 2 Como afirma Temple: “A Igreja
não pode dizer como se deve fazê-lo; mas é chamada a dizer
que deve ser feito”.3 No ano seguinte, em seu livro Christia­
nity and The Social Order (O Cristianismo e A Ordem Social),
mais conhecido que o anterior, Temple enfatizou mais uma vez
a mesma distinção. “A Igreja está comprometida com o evan­
gelho eterno (...); ela nunca deve se comprometer com pro­
gramas efêmeros de ação detalhada”.4 Os leitores de Templo
logo perceberão que ele estava muito longe de afirmar que]
religião e política não se misturam. Sua opinião era outra, is­
to é, que ‘‘a Igreja se preocupa com princípios e não com po­
líticas públicas”.5 As razões por que ele acreditava que a Igreja
como um todo deveria abster-se de qualquer ‘‘ação política
direta” — desenvolvendo e advogando programas específicos
— poderiam ser assim resumidas: “ integridade” (Mesmo que
alguns de seus membros os tenham, falta à Igreja o conheci-1
mento e a prática necessários); “ prudência” (Se, no final ela
com eter algum engano, ficará desacreditada) e “justiça” (Já
que as opiniões diferem de um cristão para outro, a Igreja não
deveria tomar partido, ainda que a maioria de seus membros
esteja contra uma minoria igualmente leal).
Mesmo concordando com este esclarecimento de papéis
e embora admitindo que nem todos os cristãos são respon­
sáveis pela elaboração de políticas específicas, ainda assim
temos que nos manter fiéis aos nossos princípios — e estes
nem sempre são tão fáceis de formular.
Nesta situação alguns cristãos se desesperam e desis­
tem. “A guerra, a economia e o divórcio são velhos proble­
mas que sempre dividiram os cristãoé”, dizem eles. “ Pacifis-
tas e não-pacifistas, capitalistas e socialistas sempre existi­
ram, assim como atitudes rígidas e atitudes flexíveis, com re­
lação ao divórcio. Nossos problemas modernos, por sua maior
complexidade, provocam muito mais divisões. “Além disso”,
dizem ainda, "essa história de ‘visão cristã’ quanto a esse ti­
po de problemas não existe; o que existe é todo um espectro
de pontos de vista cristãos. Muitas vezes nem sequer a Bíblia
nos ajuda; ela foi escrita no contexto de culturas tão antigas
que já não fala mais aos nossos problemas modernos. Por­
tanto, é melhor perder a esperança; os especialistas que ten­
tem encontrar uma resposta cristã para esses problemas”. Esse
tipo de desespero denigre a Deus, pois nega a instrumentali-
dade da sua revelação como “ lâmpada para os nossos pés”
e “ luz para os nossos cam inhos” (SI 119:105). Perder a espe­
rança de encontrar qualquer resposta cristã para se form ular
pode até ser preguiça mental, oculta sob a máscara de uma
falsa humildade.
A verdadeira humildade nos leva a submeter-nos pacien­
temente à revelação de Deus e a afirmar pela fé que ele pode
conduzir-nos a um consenso substancialmente comum. Co­
mo é possível crer na Palavra e no Espírito de Deus e negar
isso? O que precisamos são grupos de estudo mais conscien­
tes, onde aprendamos a orar juntos, ouçamos atentamente as
opiniões uns dos outros, como também as profundas preo­
cupações que jazem por detrás delas. E mais: onde nos aju­
demos uns aos ouros a discernir os preconceitos culturais que
nos tornam tão relutantes e até incapazes de abrir a mente
a pontos de vista alternativos. Uma tal disciplina pode ser do­
lorosa, mas a integridade cristã a requer. Conseqüentemen­
te, recusemo-nos a aquiescer em polarizações superficiais,
pois a verdade é sempre mais sutil e sofisticada do que isso.
O que devemos fazer é trabalhar juntos na elaboração de pro­
jetos, delineando (e enfatizando) áreas de concordância e es­
clarecendo discordâncias residuais, com as quais devemos per­
severar lutando.
Se o desespero é uma reação à complexidade dos pro­
blemas éticos modernos, seu oposto é uma supersimplifica-
ção ingênua. Alguns cristãos (e temo que principalmente os
evangélicos) têm a tendência de entrar de cabeça, sem ava­
liar as situações. Seja por não querermos encarar os proble­
mas, ou por não conseguirm os compreendê-los, muitas ve­
zes negamos sua existência. Ou então nos apegamos à nos­
sa senha evangélica sobre a “ perspicácia” das Escrituras, co­
mo se ela significasse a inexistência de problemas. A ques-
tões com plexas respondemos com soluções fúteis; ou trata­
mos a Bíblia como se esta fosse uma maquininha automática
(mete-se a moedinha, sai a resposta) ou um desses extraordi­
nários almanaques que contêm informações sobre qualquer
coisa.
Não há dúvida de que o caminho da salvação é claro —
ou “ perspicaz", sentido este em que os reformadores usavam
o termo. Contudo, como podemos afirmar que a Escritura não
contém problema algum, quando o próprio apóstolo Pedro de­
clara que nas cartas do seu irmão Paulo havia “certas coisas
difíceis de entender” (2 Pe, 3:16)? Outra dificuldade está em
ca wolhca Ha n o i lo ar-, m i in rln m r.H o rn r. Mo.

gar isto é uma outra forma de denegrir a Deus, desta vez par­
que, ao fazê-lo, estamos interpretando mal a natureza dcM?C*^
auto-revelação.
Portanto, negar a existência de soluções, ou c f
luções baratas constitui uma desonra a Deus. IstQ. qüé, pQr
um lado ele nos revelou sua vontade; por ouff^x>í 1revelou
em um pacote de proposições prontinhV

Uma Mente Cristã

Uma terceira maneira -A ^ e íh o r e mais crista — de abor­


dar as complicadas qi/^s^Òes dos dias de hoje consiste no de­
senvolvimento dê^ú^iajTlente cristã, ou seja, uma mente que
captou as pre^sqptóções básicas da Escritura e está com-
p ieta m en tôfTO n ^a a da verdade bíblica. Somente uma mente
com o e s íjâ é capaz de pensar com integridade cristã sobre
os pro^H ra à do mundo contemporâneo.
ício do cap. 2 de Romanos Paulo usa a expressão
àõvação da vossa mente’’. Ele acabara de dirigir seu fa-
apelo aos leitores romanos, rogando-lhes que, em gra-
pelas misericórdias de Deus, apresentassem seu corpo
como sacrincio vivo e como cuno racionai . rrossegue en­
tão explicando como é que o povo de Deus pode servi-lo nes­
te mundo. Ele coloca diante de nós uma alternativa. Uma coi­
sa é “conform ar-se” ou “adaptar-se” a este mundo ou “ épo­
ca”, com seus padrões (ou a falta destes), seus valores (geral­
mente materialistas) e seus alvos (egocêntricos e pagãos). Es­
tas são as características da cultura ocidental. Além disso, não
é fácil resistir à cultura prevalescente, assim com o não é fácil
resistir à ventania. É muito mais côm odo c e d e re curvar-se
diante do mais forte, como “casa quebrada pelo vento”. O se-
cularismo contemporâneo é forte e sutil, e são grandes as pres­
sões para que nos conformemos a ele.
No entanto Paulo nos exorta a não nos conformarmos com
este mundo, mas a “transformar-nos” pela renovação da mente
a fim de discenirmos a boa e perfeita vontade de Deus. Aqui
o apóstolo pressupõe que os cristãos têm (ou pelo menos de­
vem ter) uma mente renovada, como também que essa men­
te, renovada, produz um efeito radical na nossa vida, já que
nos capacita a discernir e aprovar a vontade de Deus, trans­
formando assim a nossa conduta. A seqüência é constrange­
dora. Se quisermos viver corretamente temos que pensar cor­
retamente. Se quisermos pensar com integridade precisamos
ter uma mente renovada, pois uma vez ela renovada, nossos
interesses já não seguirão as propostas do mundo, mas a von­
tade de Deus, que nos transforma.
Assim, pois, conversão cristã significa renovação total. A
Queda levou à depravação absoluta (doutrina esta rejeitada,
suspeito eu, apenas por aqueles que não a compreendem bem;
ela nunca quis dizer que todo ser humano é o mais deprava­
do possível, mas que cada parte de nós, com o seres huma­
nos, acabou sendo distorcida pela Queda). Portanto, redenção
implica renovação total (o que não significa que agora somos
o melhor possível, mas que cada parte de nós, inclusive a men­
te, foi renovada). O contraste é bem claro. Nossa antiga pers­
pectiva nos levava a nos conformar à multidão; nossa nova
visão nos induz a uma não-conformidade moral, em virtude
da vontade de Deus. Nossa velha mente seguia os caminhos
do mundo; nossa mente renovada é totalmente absorvida pe­
la vontade de Deus, tal como revelada na sua Palavra. Entre
as duas jaz o arrependimento, metanoia, uma completa mu­
dança de mente ou de perspectiva. .
Paulo escreve não apenas sobre uma “ mente renovada”,
mas também sobre “a mente de Cristo”. Ele exorta os filipen-
ses: “ Tende em vós o mesmo sentimento (ou a mesma men­
te) que houve também em Cristo Jesus” (Fp, 2:5). Isto é: à pro­
porção que estudamos os ensinamentos e o exemplo de Je­
sus e submetemos a mente conscientemente ao domínio de
sua autoridade (Mt, 11:29), começamos a pensar como ele.
A mente de Cristo é gradativamente formada dentro de nós
pelo Espírito Santo, que é o Espírito de Cristo. Passamos a ver
as coisas através da sua perspectiva, e nossa visão se faz se­
melhante à dele. Quase ousamos dizer como o apóstolo: “ Nós
(...) temos a mente de Cristo” (1 Co, 2:16).
“A mente renovada”. “A mente de Cristo”. “A mente cris­
tã ”. Quem popularizou esta terceira expressão foi Harry Bla-
mires, em seu livro que leva o mesmo título, o qual, aliás, des­
de a sua publicação, em 1963, tem exercido grande influên­
cia. Ao falar em “ mente cristã” ele está se referindo não ape­
nas a uma mente ocupada especificamente com tópicos “ re­
ligiosos”, mas capaz de pensar “cristãmente”, ou seja, pen­
sar a partir de uma perspectiva cristã, mesmo quando se tra­
ta dos tóp icos mais “seculares”. Não é a mente de um cris­
tão esquizóide, que “ fica pulando para dentro ou para fora de
sua mentalidade cristã à medida que o tópico da conversa­
ção muda da Bíblia para o jornal do dia”.6 Escreve ele que a
mente cristã é “ uma mente treinada, informada, equipada para
lidar com dados de controvérsia secular dentro de um qua­
dro de referência construído com pressuposições cristãs”.7
Blamires lamenta a perda da mentalidade cristã nos dias de
hoje, até m esmo entre líderes de igrejas: "A mente cristã tem
sucum bido à inclinação secular com um grau de fraqueza e
debilidade sem precedentes na história cristã”.8 Após deplo­
rar essa perda, Blamires dispõe-se a estudar mais a fundo sua
recuperação. Ele quer testemunhar o surgimento do tipo de
pensador cristão que “desafia os preconceitos vigentes (...)
perturba o complacente (...) obstrói os atarefados pragmáti­
cos (...) questiona os próprios fundamentos de tudo que se
refira a ele mesmo e (...) que é um transtorno”.9
Então Blamires passa a enumerar seis “ marcas”, essen­
ciais — na sua opinião — a uma mente cristã: (1) “sua orien­
tação sobrenatural” (além do tempo ela enxerga a eternida­
de; além da terra, divisa o céu e o inferno e, entrementes, ha­
bita num mundo moldado por Deus, sustentado por ele e al­
vo da sua preocupação); (2) “sua consciência do m al” (isto
é, de que o pecado original perverte inclusive as coisas mais
nobres, transformando-as em instrumentos de “esfaimada vai­
dade”); (3) “sua concepção da verdade” (a dádiva da revela­
ção divina, que não pode ser comprometida); (4) "sua aceita­
ção da autoridade” (aquilo que Deus nos tem revelado exige
de nós não um apego igualitário mas uma rendida subm is­
são); (5) “sua preocupação pela pessoa” (um reconhecim en­
to do valor da personalidade humana em reação ao servilis­
mo à máquina): e (6) “seu molde sacramental” (ao reconhe­
cer, por exemplo, que o amor sexual é "um dos mais eficien­
tes instrum entos de Deus” para abrir o coração do homem
à realidade). '
Embora estas seis características da mente cristã este­
jam, sem dúvida alguma, entre as mais importantes verdades
da revelação bíblica, confesso que tenho dificuldade em
guardá-las na memória, pois de alguma forma elas parecem
incoerentes, sem qualquer harmonia com um esquema inte­
grado e logicamente desenvolvido.
Portanto, acho mais fácil adotar a própria estrutura da Bí­
blia. “ Porque a verdadeira mente cristã tem se arrependido
de buscar “ textos-provas” (essa noção de que toda questão
ética e doutrinária pode ser resolvida pela simples citação de
textos isolados, como se Deus não nos tivesse dado uma re­
velação compreensível); ela prefere saturar-se da Escritura co­
mo um todo. Já absorveu principalmente os quatro temas que
compõem o esquema da história bíblica. A Bíblia divide a his­
tória humana em eras que são marcadas não pela ascensão
e queda de impérios, dinastias ou civilizações, mas por qua­
tro eventos principais: a Criação, a Queda, a Redenção e a
Consumação.
A primeira delas é a Criação. O fato de que no começo
dos tempos Deus criou o universo a partir do nada é absolu­
tamente fundamental para a fé cristã (conseqüentemente para
a mente cristã). Então ele fez o nosso planeta, com suas ter­
ras e mares e todas as suas criaturas. Finalmente, como clí­
max da sua atividade criadora, ele criou o ser humano, ma­
cho e fêmea, à sua própria imagem. A semelhança divina do
ser humano emerge com o decorrer da história: homens e mu­
lheres são seres morais e racionais (capazes de com preen­
der e responder às ordens de Deus); seres responsáveis (que
exercem domínio sobre a natureza); seres sociais (com capa­
cidade de amar e ser amados) e seres espirituais (cuja supre­
ma realização consiste em conhecer e adorar seu Criador).
Com efeito, um quadro mostra o Criador e suas criaturas hu­
manas andando e conversando juntos no jardim. Tudo isso fazia
parte da divindade que conferiu a Adão e Eva valor e dignida­
de únicos.
A seguir veio a Queda. Em vez de atenderem à verdade
de Deus eles deram ouvidos às mentiras de Satanás. Como
conseqüência da sua desobediência, foram expulsos do jar­
dim, Esta é a maior tragédia que já se abateu sobre os seres
humanos: o fato de que, embora criados por Deus, semelhan­
tes a ele e a ele destinados, vivem agora sem Deus. Toda a
nossa alienação, desorientação e senso de falta de sentido
nascem, em última instância, deste fato. Além disso, o relacio­
namento de uns com os outros tornou-se distorcido. Acabou-
mado” ; o “ agora” e o “então” da redenção; o "já ” e o “ainda
não”.
Eis aqui, portanto, quatro eventos que correspondem a
quatro realidades: primeiro, a Criação (“o bem ”); segundo, a
Queda (“o m al” ); terceiro, a Redenção (“o novo” ); e quarto,
a Consumação (“o perfeito” ). Esta quádrupla realidade bíbli­
ca capacita os cristãos a terem um panorama da paisagem
histórica dentro dos horizontes apropriados. Ela provê a ver­
dadeira perspectiva desde a qual devemos enxergar o processo
que se desenvolve entre duas eternidades, a visão de Deus
realizando seu propósito. Ela nos dá o arcabouço em que se
encaixam todas as coisas, uma forma de integrar à nossa com­
preensão a possibilidade de pensarmos com clareza até mes­
mo sobre as questões mais complexas.
Os quatro eventos ou épocas sobre os quais temos pen­
sado — especialmente se forem relacionados entre si — nos
ensinam grandes verdades acerca de Deus, do homem e da
sociedade, verdades essas que direcionam nosso pensamento
cristão.

A Realidade de Deus

Vejamos primeiro a realidade de Deus. 0 esquema bíbli­


co que acabamos de ver é essencialmente centralizado nele;
ou pelo menos suas quatro realidades são desdobradas do
seu ponto de vista. Até a Queda — embora tenha sido um ato
de desobediência humana — é apresentada num contexto de
mandamentos, sanções e julgamentos divinos. Deus é quem
cria, julga, redime e aperfeiçoa.
A iniciativa é dele, do com eço ao fim. Por isso mesmo é
que o culto popular ao insignificante ofende tão profundamente
os cristãos. Existe, de fato, um conglomerado de atitudes po­
pulares fundamentalmente incompatíveis com a fé cristã, co­
mo por exemplo o conceito de um cego desenvolvimento evo­
lutivo, a asserção da autonomia humana no que se refere a
arte, ciência e educação e as declarações de que a História
não tem propósito e a vida é absurda. A mente cristã entra
em choque direto com essas noções seculares. Ela insiste em
que o ser humano só pode ser definido a partir de Deus, e
que sem ele deixamos de ser o que somos, pois somos cria­
turas que dependem do seu Criador, pecadores que devem
prestar-lhe contas e estão sob seu julgamento, seres perdi­
dos sem a sua redenção.
Essa centralidade em Deus é fundamental para a mente
cristã. A mente cristã é uma mente divinizada. Mais do que
isso: ela entende o “ser bom ” acima de tudo em term os de
“ser divino”. Ela não consegue descrever com o “ boa” uma
pessoa que não é divina. Este testemunho está bem claro na
literatura da Sabedoria da Bíblia. Os cinco livros da Sabedo­
ria (Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cantares) estão to­
dos focalizados, de diferentes maneiras ou com distintas ên­
fases, naquilo que significa ser humano, e no papel que de­
sempenhem na nossa natureza humana o sofrimento, o mal,
a opressão e o amor. O Livro de Eclesiastes é mais conhecido
pelo seu refrão pessimista “ vaidade de vaidades, tudo é vai­
dade!” que A Bíblia na Linguagem de Hoje acertadamente tra­
duz por “ tudo é ilusão!” Ele demonstra a insensatez e a futili­
dade da vida humana no tempó e no espaço. Se a vida se res­
tringe à breve duração média; se ela está sempre sob a som ­
bra da dor e da injustiça; se para todo o mundo ela culmina
com o mesmo destino, a morte; se também está restrita às
dimensões de espaço das experiências humanas “debaixo do
sol”, sem qualquer ponto definitivo de referência — então na
verdade a vida vale tanto a pena quanto “correr atrás do ven­
to”. Somente Deus, Criador e Juiz, Começo e Fim, pode dar
significado à vida humana ao lhe acrescentar as dimensões
da transcendência e da eternidade, transformando assim a to­
lice em sabedoria.
Em contraste com o pessimismo de Eclesiastes, apresen­
tamos a tão conhecida máxima dos livros da Sabedoria, a sa­
ber: “ o tem or do Senhor”, que “ é a sabedoria” (ou “o princí­
pio da sabedoria” ou seu “com eço” ), e o apartar-se do mal,
que é o entendimento” (Jó, 28:28; cf. SI 111:10; Pv, 1:7 e 9:10;
Ec, 12:13). Eis aqui as duas realidades máximas da experiên­
cia humana: Deus e o mal. Elas não são realidades idênticas,
pois os cristãos não são dualistas. Contudo dominam a vida
na terra. Uma delas (Deus) produz realização humana e até ,
êxtase; a outra (o mal), alienação e inclusive desespero. A s a -1
bedoria consiste em se adotar uma atitude correta com rela­
ção a cada uma delas: amar a Deus e odiar o mal; “ tem er”
a Deus através do culto que reconhece seu valor infinito e
“ apartar-se” do mal ,pela santidade que despreza este, por
sua insignificância. Porque Deus nos fez seres morais e espi­
rituais, a ética e a religião, a divindade e a bondade, são fun­
damentais à nossa autenticidade como seres humanos. Daí
a tragédia do “secularismo”, essa visão bitolada de mundo que
nega Deus e chega a se gloriar no vácuo espiritual por^éle
criado. T. S. Elliot estava certo ao chamá-lo de “ terra do lixo” ;
e Theodore Roszak, em seu livro Where The Wasteland Ends
(Onde Termina A Terra do Nada) caracteriza-o como sendo um
deserto do espírito. “ Pois o que a ciência é capaz de medir
é apenas uma pequena porção de que o homem pode conhe­
cer. Nosso conhecimento estende-se em busca do sagrado.”
Sem transcendência “ a pessoa encolhe”. 10 0 secularismo,
além de destronar Deus, destrói o ser humano.
Se em virtude da realidade de Deus a mente cristã é uma
mente divinizada, ela é também uma mente humilde. Este é
um outro tema coerente na Bíblia. Quando Nabucodonozor co­
meçou a vangloriar-se do alto do seu palácio real como um
pavão empertirgado, reivindicando para si e não para Deus o
reino, o poder e a glória, ele enlouqueceu. Somente quando
reconheceu o domínio de Deus e o adorou é que a razão e
o reino lhe foram restaurados. Daniel destaca a moral da his­
tória; “o Rei do céu (...) pode humilhar os que andam na so­
berba” (Dn, 4:28-37). Esta é uma história sensata. Se orgu­
lho e loucura andam juntos, humildade e sanidade também.
Os contemporâneos de Jesus devem ter ficado abisma­
dos quando ele disse aos adultos que tinham que se tornar
com o crianças, se quisessem entrar no Reino de Deus, e (o
que é ainda pior) que no Reino a grandeza seria medida pela
humildade infantil. Estamos tão acostumados com este ensi­
no, que ele já não provoca em nós impacto algum. No entan­
to Jesus não apenas ensinou este princípio, como também
o demonstrou. Ele se esvaziou e se humilhou. Portanto, diz
Paulo: agora "tende em vós o mesmo sentimento que houve
em Cristo Jesus”. Os moralistas medievais estavam certos ao
considerar o orgulho o pior dos "sete pecados mortais”, além
de raiz de todos os outros. Nada é mais obsceno do que o
orgulho, nem tão atraente quanto a humildade.
Provavelmente em nenhum ponto a mente cristã entra tan­
to em choque com a mente secular como quando insiste na
humildade e numa implacável hostilidade ao orgulho. A sabe­
doria do mundo despreza a humildade. A cultura ocidental está
muito mais impregnada do que pensa pelo poder da filosofia
de Nietzsche. 0 modelo do mundo, assim como o de Nietzs­
che, é o “super homem” ; o modelo de Jesus continua sendo
a criança.
Assim, a realidade de Deus (Criador, Senhor, Redentor, Pai
e Juiz) provê a mente cristã com a sua primeira e mais funda­
mental característica. Os cristãos se recusam a honrar qual­
quer coisa que desonre a Deus. Aprendemos a avaliar todas
as coisas em termos da glória que conferem a Deus ou dele
retiram. É por isso que para a mente cristã a sabedoria é o
temor de Deus, e a virtude preeminente é a humildade.

O Paradoxo do Homem

Voltemo-nos agora de Deus para o homem; do genuíno


esplendor que caracteriza tudo que seja “divino” para a pe­
nosa ambigüidade que identifica tudo que seja “ humano”. Já
vimos que a compreensão bíblica da humanidade leva em igual
consideração a Criação e a Queda. É isso que constitui “ o pa­
radoxo do homem”. Nós, seres humanos, temos uma dignida­
de singular como criaturas feitas à imagem de Deus, assim
como uma singular depravação como pecadores sujeitos ao
seu juízo. A primeira delas nos dá esperança; a última põe um
limite às nossas expectativas. Nossa crítica cristã à mente se­
cular é que ela tende a ser ou muito ingenuamente otimista
ou muito negativamente pessimista em sua avaliação da con­
dição humana, ao passo que a mente cristã, firmemente ar­
raigada no realismo bíblico, tanto celebra a glória quanto de­
plora a vergonha do ser humano. Podemos nos comportar co­
mo Deus, a cuja imagem fomos criados, apenas para discer­
nirmos até o nível dos animais. Somos capazes de pensar, op­
tar, criar, amar e adorar, mas também de nos recusar a pen­
sar, escolher o mal, destruir, odiar e nos adorar a nós mes­
mos. Construímos igrejas e atiramos bombas. Desenvolvemos
unidades de terapia intensiva para os doentes graves e usa­
mos a mesma tecnologia para torturar inimigos políticos que
supomos discordarem de nós. Assim é o “ ser humano” : um
estranho e desconcertante paradoxo, pó da terra e sopro de
Deus, vergonha e glória. Enquanto a mente cristã se aplica
à vida humana aqui na terra — com seus problemas pessoais,
sociais e políticos — , ela procura lembrar o quanto somos pa­
radoxais: nobres e ignóbeis, racionais e irracionais, amorosos
e egoístas.
Quem sabe a melhor forma de ilustrar essa dialética seja
através de dois exemplos: primeiro, a nossa sexualidade; de­
pois, o processo político.
Convém começar pela nossa sexualidade — em parte por­
que somos todos seres sexuais; em parte porque, da genera­
lidade de revoluções sociais que têm ocorrido neste século,
a revolução sexual talvez seja a mais profunda. Os papéis se­
xuais (masculinidade e feminilidade); o contexto das relações
sexuais (dentro ou fora do casamento); a questão de os con­
ceitos tradicionais de casamento e a família poderem (ou mes­
mo deverem sobreviver; a opção pela homossexualidade; o
controle da natalidade; a fertilização in vitro; a AIDS, o aborto
fácil e o divórcio facilitado — estes são alguns aspectos da
sexualidade humana sobre os quais se fazem hoje perguntas
radicais. Embora a Bíblia contenha instruções bem claras so­
bre alguns desses problemas, compreenderemos muito me­
lhor as questões individuais se primeiro considerarmos ligei­
ramente a sexualidade em geral à luz do esquema das
Escrituras.
Conforme Gênesis, 1 e 2, Deus criou o ser macho e fê­
mea à sua imagem desde o princípio, e lhes disse que se mul­
tiplicassem. Mesmo tendo declarado que a criação era “ boa”
ele teve que acrescentar que “ não é bom que o homem este­
ja s ó ”. Então ordenou que o companheirismo sexual entre ho­
mem e mulher fosse consumado através dos mistérios da ex­
periência de se tornarem “ uma só carne”. Assim é que a se­
xualidade humana, o matrimônio, as relações sexuais e a fa­
mília são todos parte de um propósito criador de Deus. O ca­
samento (como sendo uma união assumida publicamente, per­
manente, singular e heterossexual) não é uma instituição hu­
mana mas divina; não é, portanto, afetada em si mesma por
mudanças de cultura. A intimidade sexual dentro do casamen­
to é uma boa dádiva do bom Criador.
Após a Criação, porém, veio a Queda. O pecado detur­
pou nossa sexualidade, assim como qualquer outro instinto,
faculdade e apetite humanos. Certamente o sexo se transfor­
mou num impulso muito mais imperioso do que Deus origi­
nalmente tencionara. Surgiram os desvios sexuais. Embora ain­
da se possa desfrutar do amor sexual, e conquanto seja ele
ainda maravilhosamente celebrado — como em Cantares de
Salomão — é no entanto constantemente prejudicado por de­
mandas, temores, explorações e crueldade egoístas.
A obra redentora de Cristo através de seu Espírito possi­
bilitou toda uma nova atitude quanto ao sexo. Isto inclui (além
de um possível reconhecimento do propósito e do dom do Cria­
dor) o controle e a santificação do nosso impulso sexual; uma
visão de autodoação em amor no casamento como um refle­
xo da relação entre Cristo e sua Igreja. Inclui ainda uma par­
ceria entre os sexos, a qual, embora sem negar a autoridade
responsável e cuidadosa conferida por Deus ao homem (ba­
seada na criação e não na cultura), também se regozija no
fato de que, no relacionamento dos dois com ele, “ não pode
haver (...) nem homem nem m ulher”, pois agora eles foram
igualmente justificados em Cristo e igualmente adotados na
família de Deus (Gl, 3:26-29).
E, quanto ao Fim? Referindo-se ao mundo que haverá após
a ressurreição, disse Jesus: “ nem casarão, nem se darão em
casamento; porém são como os anjos nos céus” (Mc, 12:25).
Portanto, embora o amor seja eterno, o matrimônio não o é.
A procriação já não será mais necessária. Os relacionamen­
tos de amor transcenderão os relacionamentos físicos e se­
rão provavelmente menos exclusivos (embora não menos ri­
cos, certamente) do que no matrimônio. A importância de se
adicionar este quarto estágio deveria ficar bem clara. Ele con­
tém uma mensagem tanto para os casados (caso contrário,
a união acabaria se tornando egoísta até o extremo da idola­
tria) quanto para os solteiros (a de que o casamento não é
indispensável para que alguém se realize completamente co­
mo ser humano).
Ao tentarmos responder de uma forma cristã aos radicais
desafios sexuais dos dias de hoje, será mais fácil lidar com
questões particulares dentro deste quadro bíblico geral.
Mas segundo exemplo relacionado com o “ paradoxo do
homem” refere-se ao processo político. A natureza do homeni
é evidentemente a questão política básica do século XX. E corrj
certeza um dos principais pontos de conflito entre Marx e Jej
sus; conseqüentemente, entre o Leste e o Oeste. Isto é, se os
seres humanos têm qualquer valor absoluto pelo qual devarr
ser respeitados, ou se seu valor é apenas em relação à com u­
nidade por cuja causa eles podem ser explorados. Ou, falarv
do mais simplesmente: as pessoas são servas da instituição
ou a instituição é serva do povo? Como disse John S. Whale
“ as ideologias (...) são realmente antropologias,11 refletem di:
ferentes doutrinas do homem.
Os cristãos deveriam estar atentos, para não “ batizar” ne'
nhuma ideologia política (certa ou errada, da esquerda ou da
direita) com o contendo um m onopólio de verdade e virtude
Na melhor das hipóteses, uma ideologia política e seu progra
ma são apenas uma aproximação das idéias bíblicas ou cris
tãs. O fato é que, pelo menos em algumas partes do mundo
há cristãos em virtualmente cada partido político — gente ca
paz de defender sua filiação a com eçar de uma consciêncií
cristã. Assim — se é que podemos condescender numa rud<
supersimplificação — , diríamos que as duas principais ideo
logias políticas ocidentais atraem os cristãos por difer^ntei
razões. O Capitalismo atrái porque éncoraja a iniciativa e p em
preendimento individual humano, mas também repele porque
parece não se importar com o fato de que o fraco sucumbe
à feroz competição que ele engendra. O Socialismo, por sua
vez, exerce fascínio porque tem grande compaixão pelos po­
bres e fracos, mas também provoca repúdio porque parece
não lhe importar que a iniciativa e a empresa individual se­
jam abafadas pelo potente governo que produz. Cada um atrai
porque enfatiza uma verdade acerca do homem, seja a neces­
sidade de dar livre curso a suas capacidades criativas, seja
a necessidade de protegê-lo contra a injustiça. E cada um re­
pele porque deixa de tom ar com igual seriedade a verdade
complementar. Am bos podem ser libertadores; mas inclusive
opressores, como se pode ver nos regimes totalitários extre­
mistas, tanto de direita quanto de esquerda. Como diz certa
piada, “ a diferença entre o Capitalismo e o Socialismo está
em que no Capitalismo o homem explora o homem, enquan­
to no Socialismo dá-se exatamente o contrário!” É com preen­
sível que muitos cristãos sonhem com uma terceira alternati­
va que supere o atual confronto, e incorpore as melhores ca­
racterísticas de ambos os lados.
Qualquer que seja a nossa coloração política, a tendên­
cia de todo cristão é advogar a democracia (popularmente de­
finida como “ governo do povo pelo povo” ). Não que esta seja
“ perfeita ou a sabedoria absoluta”, como admitiu Wiston Chur­
chill certa vez. “ De fato”, lembrou ele, “já se disse que a de­
mocracia é a pior forma de governo — com exceção de todas
as outras modalidades já experimentadas em todos os tem ­
pos”. A verdade é que ela é a mais sábia e a mais segura for­
ma de governo já elaborada, pois reflete o paradoxo do ho­
mem. Por um lado leva a sério a Criação (isto é, a dignidade
humana), pois se recusa a governar os seres humanos sem
o consentimento destes, insistindo, pelo contrário, em dar-lhes
a responsabilidade de participar no processo decisório. Por
outro lado, leva a sério a Queda (ou seja, a depravação huma­
na), pois se nega a concentrar o poder nas mãos de uma ou
de poucas pessoas, insistindo, pelo contrário, em dispersá-lo,
protegendo assim os seres humanos do seu próprio orgulho
e insensatez. Reinhold Niebuhr diz isso de forma bem suscin-
ta: “A capacidade humana de agir com justiça torna a demo­
cracia possível, mas sua capacidade para a injustiça torna a
democracia necessária.” 12
O Futuro da Sociedade

A terceira esfera à qual convém aplicar o quádruplo es­


quema da Bíblia trata da possibilidade de transformação so­
cial. Qual deveria ser a nossa expectativa de melhoria da so­
ciedade? No que concerne a este assunto existe uma variada
gama de posições entre cristãos de diferentes tradições.
A tendência dos cristãos “ liberais” tem sido a de se tor­
narem ativistas sociais. Devido à sua confiança quase ilimita­
da no ser humano eles sonham construir uma utopia (às ve­
zes erroneamente identificada com “o Reino de Deus” ) na
terra.
Já os “evangélicos” tendem (ou pelo menos foi assim no
com eço deste século) a ser quietistas sociais. Sua visão da,
depravação humana é tão sombria que perderam toda a con-j
fiança no homem (pelo menos até que esta nasça de novo).j
Por isso consideram a ação social uma enorme perda de tem-|
po, e julgam inteiramente impossível uma transformação social.•
Expressei propositadamente ambas as posições na sua/
forma mais extrema. Assim colocadas, a polarização impede
que as duas partes do paradoxo humano permaneçam juntas.
Os seres humanos foram criados à imagem de Deus, e!
a imagem divina, embora desfigurada, ainda não se perdeuj
completamente. Por essa razão eles conservam alguma per-’
cepção da sociedade justa e compassiva que agradaria a Deus,;
e algum desejo de torná-la realidade. A humanidade como um
todo ainda prefere paz a guerra, justiça a opressão, harmonia
a discórdia, e ordem a caos. É possível, portanto, haver trans­
formação social, como de fato já tem ocorrido. Em muitas par­
tes do mundo já existem melhores padrões de higiene e de
saúde, maior respeito pelas mulheres e as crianças, uma cresí
cente disponibilidade de educação, um reconhecimento maisj
claro dos direitos humanos, uma preocupação cada vez maiofi
pela conservação da natureza e melhores condições de traj
balho nas fábricas e de tratamento nas prisões. Muito disse
se deve (direta ou indiretamente) à influência cristã, embora
— convém esclarecer — nem todos os reformadores sociaií
tenham sido cristãos comprometidos. Contudo, onde quer qug
o povo de Deus tenha agido efetivamente com o sal e luz den
tro da sua comunidade, ali se testemunha a existência de me
nos decadência e maior promoção social. Nos Estados Uni
dos, por exemplo, especialmente depois do despertamento as
sociado à obra de Charles G. Finney, na primeira parte cjo sé
culo XIX, “os cristãos convertidos estavam na vanguarcla d^
cada uma das grandes reformas sociais na América durante
a década de 1830. Eles encabeçaram o movimento abolicio­
nista, o movimento da temperança, o movimento pacifista e
os primeiros movimentos feministas.” 13
Entretanto, como os seres humanos são caídos, dotados
além disso de uma inclinação natural para o egocentrismo,
jamais conseguiremos construir uma sociedade perfeita. Me­
lhoramento, sim; mas perfeita justiça, nunca. Os sonhos são
utópicos, irreais: pertencem ao mundo da fantasia. Todos os
planos humanos, embora elaborados em meio a grandes es­
peranças, têm desapontado, até certo ponto, seus planejado­
res, pois seu alicerce é a rocha do egoísmo humano. Os cris­
tãos geralmente se lembram disso. Como disse William Tem­
ple, “A afirmação do Pecado Original deveria tornar a Igreja
intensamente realista e visivelmente livre da Utopia”.14 Cer­
tamente os evangélicos que se reuniram em Lausanne para
o grande Congresso Internacional de Evangelização Mundial
foram sinceros quando declararam no seu Pacto: “ Nós (...) re­
jeitamos como sendo um sonho da vaidade humana a idéia
de que o homem possa algum dia construir uma utopia na
terra”.15 Os socialistas é que têm a tendência de ser otim is­
tas demais acerca da realização humana. Um bom exemplo
disso é o professor C. E. M. Joad. Educado de acordo com o
Livro da Oração Comum de 1662 da Igreja da Inglaterra, com
suas orações e confissões, acreditava a princípio na pecami-
nosidade inata do ser humano. Mais tarde, porém, descartou
esta noção em favor da “ infinita perfectíbilidade” humana, até
que a II Guerra Mundial destruiu esta ilusão, convencendo-o
novamente de que “o mal é endêmico no ser humano”. Em
seu livro Recovery o f Belief (A Recuperação da Fé, 1952) ele
é bem sincero: “ É porque rejeitamos a doutrina do pecado
original que nós, da esquerda, sempre somos desapontados;
desapontados pela recusa das pessoas a serem razoáveis, pela
subserviência do intelecto à emoção, pelo fato de que o ver­
dadeiro Socialismo nunca chega... e, acima de tudo, pelo epi­
sódio repetitivo da guerra”.16
É difícil evitar extremos de pessimismo e otimismo quanto
à possibilidade de transformações sociais. Robert McNamara
quase chegou a isso, naquele que se diz ter sido talvez o “ mais
eloqüente discurso” que fez durante a sua gestão como Se­
cretário de Defesa dos Estados Unidos: “ Toda a evidência da
história sugere que o homem é de fato um animal racional,
porém com uma capacidade quase infinita para a loucura. Em
termos gerais, sua história parece um esforço vacilante po­
rém persistente para elevar sua racionalidade acima da sua
animalidade. Ele traça planos para a utopia porém nunca con­
segue realmente construí-la”. 17 No entanto, mesmo isto soa
um pouco cínico.
Portanto, com o ser possível sintetizar uma atitude quan­
to à possibilidade de transformação social que não reflita “ nem
o otimismo barato dos humanistas nem o cego pessimismo
dos cínicos, mas o realismo radical da Bíblia?” 18 Como pode­
remos fazer igual justiça às verdades da Criação, da Queda,
da Redenção e da Consumação? A meu ver, Paulo expressa
muito bem o equilíbrio bíblico em 1 Tessalonicenses, 1:9,10,
onde descreve os resultados da conversão dos ídolos para
Deus como sendo “ para servirdes o Deus vivo e verdadeiro,
e para aguardardes dos céus a seu Filho”. Essa combinação
entre “servir” e “aguardar” é impressionante, já que o primeiro
implica ocupar-se ativamente por Cristo na terra, enquanto o
último significa esperar passivamente que ele venha dos céus.
Devemos servir; entretanto existem limites para aquilo que po­
demos realizar. Devemos esperar, mas não temos a liberdade
de fazê-lo na inércia. Assim, “ trabalhar” e “ aguardar” cami­
nham juntos. A necessidade de esperar que Cristo venha do
céu nos liberta da presunção de que podemos fazer tudo; a
necessidade de trabalhar por Cristo na terra nos livra do pes­
simismo que pensa que nada podemos fazer. Somente uma
mente cristã que tenha desenvolvido uma perspectiva bíblica
pode capacitar-nos a manter este equilíbrio.

Comecei este capítulo admitindo a complexidade dos pro­


blemas da ética pessoal e social que nos confrontam nos dias
de hoje. Soluções prontinhas, servidas de bandeja, são geral­
mente impossíveis de se conseguir. Atalhos simplistas que ig­
norem as questões reais são inúteis. Ao mesmo tempo, ce­
der ao desespero não é uma atitude cristã.
Para o nosso encorajamento, devemos lembrar que Deus
nos concedeu quatro dádivas.
Primeiro, ele nos deu uma mente com que pensar. Fez­
nos criaturas inteligentes e racionais. Ele ainda nos proíbe de
nos com portarm os com o cavalos e mulas que não têm en­
tendimento, e nos admoesta a que, no juízo, não sejamos me­
ninos, mas adultos.19
Em segundo lugar, ele nos deu a Bíblia que testifica cie
Cristo, a fim de orientar e controlar nossa forma de pensar.
À medida que absorvemos seus ensinos nossos pensamen­
tos vão pouco a pouco se conformando aos dele. Não é uma
questão de se decorar uma porção de textos bíblicos a fim
de exibi-los nos momentos adequados — cada versículo ro­
tulado e prontinho para responder à pergunta certa. Trata-se,
isto sim, de nos apropriarmos dos grandes temas e princípios
da Escritura, bem como das quatro grandes verdades que aca­
bamos de considerar.
A terceira dádiva de Deus é o Espírito Santo, o Espírito
da verdade, que nos abre as Escrituras e nos ilumina a men­
te, a fim de compreendê-las e aplicá-las.
Em quarto lugar, Deus nos deu a comunidade cristã co­
mo contexto no qual podemos desenvolver nosso raciocínio.
Sua heterogeneidade é a melhor salvaguarda contra qualquer
coisa que tente nos ofuscar, pois na Igreja há gente de am­
bos os sexos e de todas as idades, temperamentos, experiên­
cias e culturas. Com tão ricas contribuições quanto à inter­
pretação da Escritura, vindas de fontes tão variadas, será di­
fícil conservar nossos preconceitos.
Com estas quatro dádivas, especialmente se as relacio­
narmos entre si — mente, livro-texto, mestre e escola — po­
deremos desenvolver uma mente cada vez mais cristã e apren­
der a ser mais racionais na nossa maneira de pensar.

1. W illiam Temple, Citizen and Churchm an (Eyre & Spottw oode, 1941), p. 82.
2. ibid, p. 83.
3. ibid, p. 84.
4. W illiam Temple, Ch ristian ity a nd the S o cia l O rd er (Penguin, 1942), p. 29.
5. ibid, p. 31.
6. H a rry Blam ires, The Christian M ind (SP C K , 1963), p. 70.
7. ibid, p. 43.
8. ibid, p. 3.
9. ibid, p. 50.
10. T h e o d o re Roszak, W here the W asteland E nds, “ P olitics and Transcen­
d en ce in P ost-in d ustrial S o c ie ty ” (1972; Archor, 1973), pp. x x x i e 67.
11. J. S. W hale, Ch ristian D o ctrin e (1941; Fontana, 1957), p. 33­
12. R einhold Niebuhr, The C h ild ren o f L ig h t and the Ch ild ren o f D arkness
(N isbet, 1945), p. vi.
13. Tom Sine, The M ustard S e e d C o n sp ira cy (W orld, 1981), p. 70.
14! W illiam Temple, C h ristia n ity a nd the S o cia l O rd er (Penguin, 1942), p, 54.
15. C ita d o do Pacto d e Lausanne p a r 15. Ver Jo h n S to tt com enta o Pacto
de Lausanne. Trad. Jo s é G a b rie l Said. S ão Paulo, A B U ; B elo H orizonte,
Visão M undial, 1983, p. 57 e 59.
16. C itad o p o r S tu a rt B arton B abbage em The M ark o f Cain (Eerdm ans,
1966), pp. 17, 18.
17. Extra íd o de The E ssen ce o f S e c u rity, cita çã o de Gavin Reid em The E la­
b orate Funera e (H od d er & S tou gh ton , 1972), p. 48.
18. J. S. W hale, op. cit., p. 41.
19. S alm o 3 2:9; 1 Co 14:20.
CAPÍTULO III

P L U R A L IS M O : D E V E M O S IM P O R OS NOSSOS
PONTOS-DE-VISTA?

Já estamos convencidos de que devemos nos envolver.


Tentamos pensar nas questões de uma forma cristã. Conse­
qüentemente, desenvolvemos algumas convicções bem for­
tes. Outros, porém, não as compartilham. De fato, os cristãos
percebem que estão cada vez mais fora de compasso com
a sociedade de hoje. Portanto, como é possível influenciar o
nosso país, fazendo-o tornar-se cristão nas suas leis, institui­
ções e cultura? Será que os cristãos deveriam tentar impor
seus pontos de vista a uma nação composta, na sua maioria,
de não-cristãos?
Na Europa, na Am érica e naqueles países que herdaram
a “civilização cristã” do Ocidente, certamente temos que che­
gar a um acordo quanto ao novo pluralismo. No ensaio From
Chrístendom to Pluralism (Da Cristandade para o Pluralismo)1
John Biggs nos apresenta um competente panorama históri­
co desse desenvolvimento. O pluralismo se deve, em grande
parte, a dois fatores. O primeiro é o processo de seculariza-
ção, em face da influência enfraquecida da igreja, tanto no que
se refere a pessoas quanto a instituições. Estatísticas acura­
das são notoriamente difíceis de se obterem e interpretarem.
Parece bem claro, entretanto, que a membresia das igrejas pro­
testantes da Inglaterra, País de Gales e Escócia caiu de 13%
da população para 8% em 1970, o que representa uma perda
de quase 40% dos seus membros, em cinqüenta anos. Além
disso, durante o período de 1971 a 1981, 828 paróquias an­
glicanas foram declaradas supérfluas, sendo destinadas à de­
molição ou a outros usos (culturais, residenciais etc.). É ver­
dade que o fluxo pode ter começado a reverter. De acordo com
uma pesquisa de opinião realizada pelo Departamento de Pes­
quisas da Sociedade Bíblica, e publicada em 1983, 15% da
população inglesa diz freqüentar a igreja uma ou duas vezes
por semana.2 No entanto, em comparação com meio século
atrás — para não se falar no século X IX — , não há dúvida de
que a Igreja perdeu muito terreno.
Concomitantemente ao declínio cristão houve um aumen­
to de alternativas não-cristãs. De fato, a segunda causa do plu­
ralismo é a política de imigração liberal dos anos que sucede­
ram a pós-guerra. Como resultado, a maioria dos países oci­
dentais inclui agora em sua população consideráveis grupos
étnicos provenientes da África, Ásia, Oriente Médio e Caribe.
Isto nos possibilitou uma rica experiência de diversidade cul­
tural. Por outro lado, leva também a uma com petição religio­
sa e a conseqüentes demandas por reconhecimento no sis­
tema, nas leis e nas instituições educacionais do país. Em
1980, a filiação adulta de grupos religiosos não-cristãos no
Reino Unido era a seguinte:3
Muçulmanos 600.000
Sikhs 150.000
Judeus 110.915
Hinduístas 120.000
Mórmons 91.032
Testemunhas de Jeová 85.321
Se a isso acrescentarmos o total de membros de todos
os grupos religiosos minoritários não-cristãos (inclusive es­
píritas, Ciência Cristã, cristadelfianos etc.), chegaremos a qua­
se um milhão e meio, o que equivale a quase o dobro do total
de membros adultos das igrejas metodistas e batistas do Reino
Unido. Quanto aos descrentes, já que a mais generosa esti­
mativa do tamanho de todas as comunidades religiosas da
Inglaterra (incluindo crianças e não-praticantes) correspon­
de a 73 % , deve haver cerca de 27% que não professam reli­
gião alguma.
Em outras partes do mundo, ainda que os cristãos repre­
sentem uma substancial minoria, a cultura predominante ou
é hinduísta ou budista, judaica ou islâmica, marxista ou se­
cular. Também aqui — geralm ente de uma forma mais acen­
tuada — os cristãos se defrontam com o mesmo dilema. Em
muitas questões eles acham que conhecem a vontade de
Deus. De igual forma crêem que, como cristãos, é seu dever
orar e trabalhar a fim de que a vontade de Deus se cumpra.
Será que eles deveriam impor suas convicções cristãs aos
não-cristãos? E, caso isto fosse possível, seria plausível? E,
mesmo que fosse, deveriam tentar?
As duas respostas mais comuns para estas perguntas re­
presentam extremos opostos. Uma delas seria a “ imposição” ,
uma vigorosa campanha para, através da legislação, tentar
coagir o povo a aceitar o caminho cristão. A outra resposta
é o “ laissez-faire” , a derrotista decisão de deixar as pessoas
em paz com suas opções não-cristãs, sem interferir ou ten­
tar influenciá-las de forma alguma. Precisamos examinar cui­
dadosamente ambas as alternativas, lembrando alguns exerrv
pios históricos, antes que estejamos prontos para uma ter­
ceira e melhor opção.

A Imposição

Eis aqui os cristãos com seu louvável zelo por Deus. Eles
acreditam na revelação e se preocupam profundamente com
a verdade revelada e com a vontade de Deus. Anseiam por
vê-la refletida na sociedade. Portanto, o desejo de atingir es­
te fim pela força é uma tentação compreensível.
Minha primeira ilustração histórica é a Inquisição na Eu­
ropa. A Inquisição era um tribunal especial, instituído pela Igre­
ja Católica Romana no século XIII para com bater a heresia.
Primeiro se caçavam os suspeitos hereges; depois eles eram
convidados a confessar, e então, caso se recusassem, eram
levados a julgamento. De acordo com a bula A d Extirpanda,
do Papa Inocêncio IV (1252), em adição ao julgamento
permitia-se a tortura. Os hereges impenitentes eram punidos
através da excomunhão, da prisão ou do confisco de seus
bens, ou entregues ao Estado ,para serem queimados vivos.
A Inquisição durou cerca de trezentos anos. Foi suprimida em
1542, se bem que a Inquisição Espanhola (que foi a mais
cruel), instituída no final do século XV por Fernando e Isabel
para fins de segurança nacional, especialmente contra os ju­
deus, os mouros e os protestantes, só foi abolida no ano de
1834. Hoje, imagino que os cristãos de todas as tradições
se sintam profundamente envergonhados ao pensar que tais
métodos foram utilizados em nome de Jesus Cristo. A Inqui­
sição é uma terrível mácula que nunca se apagará das pági­
nas da história da Igreja. Mesmo assim ainda existem ditadu­
ras, tanto da extrema esquerda quanto da direita, que ten­
tam através da força abolir a oposição e compelir a aprova­
ção. Todos os cristãos afirmam, no entanto, que tanto o to­
talitarismo como a tortura são inteiramente incompatíveis com
a mente e o espírito de Jesus.
O segundo exemplo histórico, mais recente, é a "P ro ib i­
ção” , isto é, o banimento legal da fabricação e venda de be­
bidas alcoólicas nos Estados Unidos. 0 Partido de Proibição
Nacional foi form ado em 1869 por um grupo de protestan­
tes brancos. Suas motivações eram admiráveis. Preocupados
com o aumento do consumo de bebidas fortes e da embria­
guez, especialmente entre os imigrantes pobres, e percebendo
que isso era uma ameaça à ordem pública, com prom eteram -
se a empenhar-se por sua proibição total. Em 1895 um gru­
po de líderes de igrejas fundou a “ Liga Americana Anti-
Taverna” , e após uma campanha de cerca de vinte e cinco
anos o Congresso aprovou, em 1919, a Emenda n.° 8 da Cons­
tituição, proibindo a fabricação, venda e transporte de bebi­
das alcoólicas. Esta entrou em vigor um ano mais tarde, e no
espaço de dois anos vinte e seis, dentre os quarenta e oito
estados, já a haviam sancionado.
O resultado, porém é que a lei era desrespeitada por to­
da parte.Contrabandistas fabricavam,vendiam e traficavam
bebidas alcoólicas ilegalmente, e “ speakesies” (lojas onde se
vendiam clandestinamente as bebidas) surgiam em todo lu­
gar. Assim, em 1933, treze anos após ter começado a cha­
mada “ nobre experiência” , a Emenda n.° 21, assinada pelo
Presidente Roosevelt, vetou a Emenda n.° 8, acabando assim
com a Proibição. Longe de abolir o abuso do álcool, ela havia
provocado e incentivado ainda mais o alcoolismo. E a lei caí­
ra no descrédito.
Pergunta-se: Foi a “ Proibição” imposta ao país, ou o po­
vo realmente a desejava? As opiniões divergem. Os “ secos”
afirmam que havia um consenso nacional; os “ molhados” ga­
rantem que isso só foi obtido por ação legislativa, não por
voto popular, e apenas e enquanto a mente da nação estava
entretida com o problema da participação dos Estados Uni­
dos na II Guerra Mundial. Eis o que escreve John Kobler: “ A
evidência acessível não confirma opinião alguma. Ela impe­
de a possibilidade de qualquer resposta pura e simples, e deixa
a questão indefinida para sempre” ; de qualquer forma, eis c o -'
mo conclui sua pesquisa histórica: “ Em suma, a impressão
que se tem é de que a América rural agrícola com sua gran­
de população de protestantes nativos, impôs a proibição so­
bre a Am érica urbana e industrial, com sua heterogeneidade
de raças, religiões e de origem estrangeira.4
Recordando estes dois exemplos — um europeu e o ou­
tro am ericano— vemos que a inquisição foi uma tentativa de
impor a crença e a Proibição; de impor comportamento. No
final das contas, ambos foram improdutivos, pois ninguém po­
de forçar as pessoas a crer naquilo em que não acreditam,
ou a praticar o que não querem. Da mesma forma, imaginar
hoje que podemos impor convicções e padrões cristãos ao
nosso país ou em qualquer lugar é totalmente irrealista. É uma
nostalgia insensata por uma cristandade que desapareceu há
muito tempo.

O Laissez-Faire

O contrário da “ imposição”, a meu ver, é o “ laissez-faire”.


O termo foi originalmente usado no século XVIII pelos econo­
mistas do comércio livre, passando o conceito a dominar a
sociedade do século XIX . Nada tinha a ver com apatia. Pelo
contrário, era uma crença na necessidade de não-interferência
por parte do governo. O uso da palavra, contudo, foi mudan­
do através dos séculos; no linguajar popular de hoje refere-se
a uma atitude de apatia e indiferença. Aplica-se tanto a cida­
dãos quanto a governos. A idéia é de que, longe de impor nos­
sos pontos de vista, o que importa é sequer propagá-los ou
recomendá-los. O melhor é deixar as pessoas cuidarem da pró­
pria vida, do mesmo modo que esperamos sinceramente que
elas nos deixem em paz para tratarmos da nossa. Muitas ve­
zes o laissez-faire tem sido uma atitude adotada até pelos cris­
tãos em nome da tolerância. É verdade que os cristãos deve­
riam ter espirito tolerante, mostrando respeito para com aque­
les que pensam e se comportam de forma diferente. Na área
social deveríamos ser igualmente tolerantes, no sentido de es­
perar que as minorias políticas e religiosas fossem aceitas na
comunidade e protegidas pela lei, assim como a minoria cris­
tã em um país não-cristão espera ser deixada legalmente li­
vre para professar, praticar e propagar o evangelho. Como cris­
tãos, porém, como podemos ser intelectualmente complacen­
tes acerca de opiniões que reconhecemos com o falsas, ou
ações que sabemos procederem do mal? Que indulgência sem
princípio é esta? Para Deus as sociedades ou cheiram, ou fe­
dem. Ele não é indiferente às questões de justiça social. Por­
tanto, será que seu povo deveria sê-io? Ficar calado e passivo
diante do erro ou do mal tem consequências muito sérias;a
uma altura dessas a opção cristã já se foi. Não será — pelo
menos em parte — pelo fato de os cristãos terem deixado de
levantar a voz em nome de Jesus Cristo que a nossa nação
anda ao léu, completamente desgarrada do ancoradouro
cristão?
O mais grave exemplo moderno de laissez-faire cristão é
o fato de as igrejas alemãs não se terem manifestado contra
o tratamento dado aos judeus pelos nazistas. É uma história
longa e penosa, que foi completamente documentada por Ri­
chard Gutteridge em seu livro Open Thy Mouth fo rth e Dumb
(Abre a Tua Boca a Favor do Mudo).5 Ele busca as origens da
cumplicidade alemã anti-semita no século XIX, quando o cris­
tianismo passou a identificar-se com um patriotismo alemão
místico, que aumentou após a derrota na I Guerra Mundial.
Foi nesse tempo que se fizeram várias tentativas enganosas
de teologizar o valor intrínseco do“volk” (povo) ariano. Por exem­
plo, Paul Althaus escreveu em 1932: "A vontade de Deus é
que conservemos puros a nossa raça e o nosso volkstum; que
permaneçamos germânicos, não nos transformando num povo
bastardo de sangue judeu-ariano.6 “ Naquele tempo a igreja
já parecia estar em perfeita aliança com o Movimento Nacio­
nal Socialista. Somente algumas vozes corajosas (como as de
Karl Barth e Paul Tillich) se ergueram em sinal de protesto. En­
trementes, o “ Movimento da Fé dos Cristãos Alem ães”, sob
o patrocínio do Partido Nazista, afirmava a raça ariana.
Depois que Hitler subiu ao poder em 1933 foi aprovada
uma lei para expurgar o Serviço Civil de qualquer funcionário
que não fosse de descendência ariana. Por incrível que pare­
ça, os “cristãos alemães” racialmente com prom etidos que­
riam aplicar esta “cláusula ariana” à igreja. Vários sínodos a
adotaram, contra a oposição de homens com o Martin Niemül­
ler, Walter Küneth, Hans Lilje e Dietrich Bonhoffer. No entanto
"a igreja evangélica nunca se expressou oficialmente contra
a legislação ariana em geral”. Bonhoffer ficou profundamen­
te enfurecido com o silêncio da igreja, citando freqüentemente
Provérbios, 31:8: “Abre a tua boca a favor do mudo”.7
No terrível massacre de novembro de 1938, cento e de­
zenove sinagogas foram incendiadas (tendo sido setenta e seis
delas completamente destruídas), vinte mil judeus foram pre­
sos, suas lojas saqueadas, e proeminentes cidadãos judeus
publicamente humilhados. O povo em geral ficou consterna­
do, e alguns líderes de igrejas protestaram. Porém “ a Igreja
evangélica com o um todo não teve chance de manifestar seu
horror e sua indignação: a Igreja Católica permaneceu quase
completamente em silêncio, e sua hierarquia não soube o que
dizer”. A aterradora “ Solução Final” de Hitler — pela qual, aliás,
ele já se decidira antes que irrompesse a II Guerra Mundial
— com eçou a ser implementada em 1941. Mas somente dois
anos mais tarde uma conferência de líderes da Igreja Lutera­
na resolveu atacar o governo do Reich por suas atrocidades
anti-judias. Eis como Richard Gutteridge resume sua tese: “A
Igreja como tal não encontrou nas Escrituras uma palavra de­
cisiva como um todo que abrangesse o todo da questão (...)
Durante o conflito inteiro, ninguém que estivesse em posição
de autoridade fez qualquer denúncia clara e completa do anti-
semitismo como tal”. 9 Karl Barth chama isso de pecado con­
tra o Espírito Santo, e uma “ rejeição da graça de Deus”.10 Al­
guns outros oficiais de igreja foram igualmente ousados, pa­
gando caro pela sua coragem. Mas quando os líderes evan­
gélicos tiveram um encontro logo após terminada a guerra e
emitiram a “ Declaração de S tuttgart”, eles tiveram que reco­
nhecer: “ O fato de não termos feito uma confissão mais ou­
sada é a nossa auto-acusação”. Gutteridge conclui: “A falha
definitiva da igreja jaz, não na incapacidade dos bispos e sí­
nodos de planejar e proclamar pronunciamentos em público”
(se bem que também inclui isto), mas antes em “que o que
estava faltando era uma explosão espontânea em algum pon­
to por parte dos cristãos comuns e honestos... Uma expres­
são realmente visível, pública e generalizada de justa indig­
nação teria com certeza sido levada muito a sério pelos líde­
res nazistas, e certamente produzido um profundo efeito em
refrear os mais iníquos excessos e brutalidades, se não em
pelo menos levar à ruina uma tirania tão monstruosa e sem
princípios”.
A história que Richard Gutterioge conta fala por si mes­
ma. Não preciso adicionar-lhe comentário algum. A cum plici­
dade dos cristãos alemães, deixando de desenvolver uma crí­
tica bíblica ao ostensivo racismo dos nazistas, deveria ser su­
ficiente para banir para sempre o laissez-faire. Será que não
poderiam ter evitado o Holocausto?

A Persuasão

Melhor que os extremos da “ imposição” e do “ laissez-


faire” é a estratégia da “ persuasão” pelo argumento. Esta é
a forma advogada pela mente cristã, pois brota naturalmente
da doutrina bíblica de Deus e do ser humano.
O Deus vivo da revelação bíblica, que criou e sustém o
universo, pretendia que os seres humanos que ele fez vives­
sem em uma comunidade de amor. Além disso, o fato de ele
ser justp é uma expressão essencial do seu amor. Ele ama a
justiça/è odeia a opressão; defende a causa do pobre, do fo­
rasteiro, da viúva e do órfão; alimenta o faminto, veste o des­
pido, cura o enfermo e busca o perdido. Ele deseja que toda
a humanidade seja salva e chegue ao conhecimento da ver­
dade através de seu Filho Jesus Cristo. Agora esta visão bíbli­
ca de Deus afeta profundamente nossa atitude para com a
sociedade, já que os interesses de Deus se tornam igualmen­
te os de seu povo. Da m esm a form a, ela nos leva e respeitar
as m ulheres e os hom ens criados à sua im agem , buscar a ju s­
tiça e odiar a injustiça, cuidar dos necessitados, observar a
dignidade do trabalho, reconhecer a necessidade de descan­
so, conservar a santidade do m atrim ônio, zelar pela honra de
Jesus Cristo e também a almejar que todo joelho se dobre dian­
te dele e toda língua o confesse. E por que isso? Porque tudo
isso é interesse de Deus. Com o podem os aquiescer em fatos
que lhe desagradam profundam ente, ou m ostrar indiferença
diante de coisas com as quais ele está fortem ente com p ro ­
m etido? A política do Laissez-faire é inconcebível para qual­
quer cristão que defende uma doutrina bíblica de Deus.
A política da im posição, por sua vez, é inconcebível para
aqueles que sustentam uma doutrina bíblica do ser humano,
pois Deus fez o hom em e a m ulher para serem seres respon­
sáveis. Disse-lhes que fossem fecundos (isto é, que exercitas­
sem os poderes da procriação), sujeitassem a terra e dom i­
nassem sobre as suas criaturas; que trabalhassem , descan­
sassem e obedecessem a ele. Estas injunções não teriam sen­
tido algum se Deus não houvesse concedido ao hom em dois
dons singulares, a con sciência (para discernir entre diferen­
tes alternativas) e a liberdade (para optar entre elas). O res­
tante da Bíblia confirm a isso. Em toda ela presum e-se que os
seres hum anos sejam seres morais, responsáveis por suas
ações. Eles conhecem a lei moral, pois “ está escrita em seus
coraçõ es’’, e são exortados à obediência e advertidos das pe­
nalidades da desobediência. Nunca, porém , sofrem coerção.
A com pulsão jam ais é usada; apenas a persuasão, e esta sem ­
pre através de argum entos: “ Vinde, pois, e arrazoem os, diz o
S e n h o r’’ (Is,1:18).
Um fundam ento básico para isto é que a consciência hu­
mana deve ser tratada com o m aior respeito. Paulo expressa
sua determ inação pessoal de “ ter sem pre consciência pura
diante de Deus e dos hom en s’’ (A t,24:16). Ele tam bém tem
muito a dizer acerca da consciência dos outros. Ou ela é “ forte”
(bem educada e livre), ou é “ fraca’’ (superescrupulosa e hiper-
sensível). No entanto, qualquer que seja o estado de consciên­
cia de uma pessoa, e m esm o que esteja enganada, ela deve
ser respeitada. A consciência fraca precisa ser fortalecida, as­
sim com o a fraudulenta ser esclarecida; nunca, porém, se deve
intim idar ou oprim ir a consciência de ninguém . Som ente em
circunstâncias m uito extrem as deveria uma pessoa ser indu­
zida a agir contra sua consciência. De uma form a geral, as
consciências têm que ser respeitadas, nunca violentadas. Este
princípio, que nasce da doutrina cristã acerca do ser hum a­
no, deveria afetar nosso com portam ento e as instituições so-
ciais.Esta é a razão por que os cristãos se opõem à autocra­
cia, favorecendo a dem ocracia. A autocracia esm aga as con s­
ciências; a dem ocracia (pelo m enos em teoria) respeita-as, já
que “ o justo po d e r” dos governos d em ocráticos “ deriva(...)
do consentim ento dos governados” (Declaração Am ericana
da Independência). Uma vez prom ulgadas as leis, contudo, to ­
dos os cidadãos (tanto na dem ocracia quanto na autocracia)
têm a obrigação de obedecer a elas. Eles não podem fazer
o que bem entendem . Entretanto, quando se trata de m até­
rias controvertidas (recrutam ento em tem po de guerra, por
exem plo) um governo civilizado cede lugar a uma “ objeção
de consciência”. Esta cláusula também é produto de uma m en­
te cristã.
Assim , as duas doutrinas bíblicas — a de Deus e a do ho­
mem — orientam o nosso com portam ento em uma so cie d a­
de pluralista, a prim eira anulando o laissez-faire, e a segunda
a im posição. Por ser Deus quem ele é, nós não podem os fi­
car indiferentes quando sua verdade e sua lei são e scarneci­
das; mas em virtude da natureza hum ana não podem os ten­
tar im pô-las pela força.
O que deveríam os fazer, então? Com o cristãos, tem os que
tentar educar a con sciência pública a conh ecer e desejar a
vontade de Deus. A Igreja deveria procurar ser a consciência
da nação. Se não podem os im por a vontade de Deus pela le­
gislação, tam pouco convencerem os as pessoas pelo mero uso
de citações bíblicas, pois estas são exem plos da “ autoridade
que vem de cim a”, da qual elas se ressentem e à qual resis­
tem . Mais efetiva é a “ autoridade que vem de baixo” ; a verda­
de e o valor intrínsecos de algo que é auto-evidente e, portan­
to, auto-autenticador (não que os dois sejam incom patíveis;
a autoridade de Deus é essencialm ente tanto auto-evidente
quanto auto-autenticadora). Este princípio se aplica igualmente
ao evangeli^m o e à ação social.
No qué se refere à evangelização, não devem os forçar
as pessoas a crer no evangelho; perm anecer em silêncio, c o ­
mo se não nos im portássem os com a sua reação; fiar-nos ex­
clusivam ente na proclam ação dogm ática de textos bíblicos
(por mais vital que seja a exposição bíblica autoritativa). De­
vem os, isto sim, à sem elhança dos apóstolos, arrazoar com
elas a partir da natureza e das Escrituras, apresentando-lhes
o evangelho de Deus por meio de argum entos racionais.
De igual form a, na área social não nos é lícito tentar im-
por padrões cristãos pela força a um público que não os d e­
seja; tam pou co perm anecer calados e passivos enquanto o
m undo m oderno desaba ao nosso redor; ou confiar e xclu si­
vamente na asserção dogm ática de valores bíblicos. O que pre­
cisam os fazer é arrazoar com as pessoas sobre os benefícios
da m oralidade cristã, transm itindo-lh es a lei de Deus através
de argum entos racionais. Crem os que as suas leis são boas
em si mesmas, com o tam bém universais em sua aplicação,
pois longe de serem arbitrárias elas se ajustam perfeitam en­
te aos seres hum anos por ele criados. Foi isto que desde o
princípio Deus declarou quanto às suas leis. Elas foram da­
das para o nosso próprio bem, garantiu ele (D t,10:14), instan­
do com seu povo para que obedecesse a elas a fim de que
“ bem lhes fosse a eles e a seus filhos para sem pre” (Dt,5:29
etc.). Havia, conseqüentem ente, uma relação essencial entre
o que era “ bom e reto aos olhos do S e n h o r” e o “ bem ” que
sucederia ao seu povo (D t,12:28). O “ bem ” correspondia ao
“ bom ”. Nós crem os, portanto, que todo o m undo sabe disso,
inclusive por intuição. No entanto, ou porque som os incapa­
zes de reconhecê-lo, ou porque não querem os fazê-lo, tem os
que elaborar argum entos a fim de dem onstrar que as leis de
Deus foram dadas tanto para o bem -estar do indivíduo quan­
to da sociedade.
Precisamos, portanto, de uma apologética doutrinária con­
cernente à evangelização (ou seja, com o argum entar a verda­
de do evangelho), com o tam bém de uma apologética ética no
que se refere à ação social (para argum entar que a lei moral
é boa). Am bos os tipos de apologistas são urgentem ente ne­
cessários na Igreja e no m undo de hoje.

Exem plos de Persuasao Pela Argum entaçao

Tentarei dar alguns exem plos, com eçando pela questão


altam ente controvertida da educação moral e religiosa. Nos
Estados Unidos, por exemplo, devido à rigorosa separação entre
Igreja e Estado, o ensino religioso não é perm itido nas e sc o ­
las públicas. Já na Inglaterra, onde a Igreja foi pioneira em m a­
téria de educação, sucessivos Atos de Educação têm exigido
do Estado que proveja educação religiosa nas escolas. O fa­
m oso Ato de Educação de 1944, encam inhado através do Par­
lamento por R. A. Butler, tornou obrigatória uma reunião diá­
ria de culto e tam bém a educação religiosa nas salas de aula,
de acordo com um roteiro pré-estabelecido. Durante os qua­
renta anos que se seguiram a esta decisão, à medida que a
influência da Igreja foi declinando e a sociedade se tornando
m ais pluralista, as forças do hum anism o secular criaram re­
sistência. 0 clam or agora é por um estudo com parativo das
diferentes religiões, ideologias e sistemas morais, sem dar qual­
quer preferência a nenhum deles. Esta exigência é com preen­
sível. Certam ente não podem os com pelir crianças judias ou
m uçulm anas , por exemplo, a receber uma educação cristã
(o Ato de Butler inclui uma cláusula de consciência para este
efeito). Pelo contrário, deveríam os é providenciar para que es­
sas crianças — caso os pais o desejassem — fossem instruí­
das na sua própria religião (mais uma vez o Ato prevê classes
especiais para esse fim). O que dizer, porém , da atitude, da
atm osfera e da abordagem da escola com o um todo? A edu­
cação é o processo de capacitar pessoas a crescerem rumo
à m aturidade. Assim , não podem os definir m aturidade sem
definir personalidade; e certam ente não podem os definir per­
sonalidade sem nos referir aos valores da fé e da conduta,
ou seja, à religião e à imoralidade. Quais são, então, os valo­
res que a educação pública vai ensinar e recom endar? A abor­
dagem do “ b u fê ” (auto-serviço) é irresponsável, pois as crian­
ças ainda não possuem critérios que lhes perm itam escolher;
elas necessitam de ajuda para avaliar a diversidade que jaz
diante delas. E a neutralidade é impossível. Uma educação isen­
ta de valores é em si m esm a uma contradição. Se não se re­
com endarem valores cristãos, certam ente os valores secula­
res tom arão seu lugar. O que fazer, então, da educação cristã
numa sociedade pluralista? Não podem os basear nossa argu­
mentação/argumento na singularidade e na finalidade de Cristo,
por mais que creiam os nele. No caso da Inglaterra, por exem ­
plo, poderíam os advogar uma linha de educação cristã basea­
dos em pelo m enos três fatores:

(1) A gratjide maioria dos residentes ingleses ainda é com


posta de cristãos — pelo m enos cristãos nom inais. Embora,
de acordo com uma pesquisa feita em 1983 sob os auspícios
da Sociedade Bíblica, apenas 15% da população vá à Igreja
uma ou duas vezes por sem ana, 64% declararam -se filiados
à Igreja da Inglaterra. Se a isto som arm os a Igreja Católica Ro­
mana e as igrejas cristãs livres, terem os 84 % que se consi­
deram filiados a uma igreja cristã. Pode-se até estim ar essa
grande maioria com o calada, inativa ou descom prom etida. No
entanto, o fator que concentra a simpatia geral é uma indica­
ção significativa.
(2) Existe a questão da aceitação. O cristianism o pode exi­
gir um tratam ento especial visto já ter passado por um teste
(e conseqüente aceitação). Conjugado a outros fatores, ele se
revela mais longo (historicam ente) e mais am plo (geo grafica­
m ente) do que o que qualquer outra religião ou ideologia já
sofreu: O hinduísm o é mais antigo, mas é largam ente restrito
à India e aos indianos expatriados. O m arxism o pode reivindi­
car ser uma ideologia de aspecto m undial, com o o cristia n is­
mo, mas tem apenas cem anos de idade e não foi subm etido
a teste tão rigorosò quanto o cristianism o.
(3) O cristian ism o é fundam ental para a herança cultural
da Inglaterra. Ele é o cim ento que une a história, as leis, as
instituições e a vida nacional do país. Até os im igrantes e as
m inorias étnicas que, tendo nascido em terras britânicas, pro­
fessam outra religião, deveriam no entanto ser instruídas de
acordo com a form ação e a cultura do seu país de adoção.
C om o um segundo exemplo, volto-m e agora da educação
para a ética sexual. Os padrões cristãos de castidade antes
do casam ento e de fidelidade nele estão pouco a pouco m u­
dando e sendo repudiados. A prom iscuidade sexual está se
espalhando. A experiência de vida em com um anterior ao ca ­
samento é não apenas amplamente praticada com o largamen­
te recom endada. A coabitação antes da união legalizada —
não apenas no velho sentido de concubinato de fato, mas no
sentido de prescindir deliberadam ente do próprio casam ento
com o um costu m e obsoleto — incom oda m uito pouco a so ­
ciedade de hoje. Trocar de esposa é considerado uma boa di­
versão nas cidades grandes. Os "casam entos abertos”, em que
o m arido sabe que a esposa tem outros parceiros sexuais, e
esta sabe o m esm o acerca do marido, e em que am bos apro­
vam o fato e até m esm o o encorajam , não são incom uns. Em
algum as circunstâncias, passar por vários casam entos facil­
m ente se gu ido s de divórcio é considerado "u m a experiência
enriqu ecedora” (o sofrim ento dos filhos é ignorado ou racio­
nalizado), e a parceria hom ossexual é cada vez mais encara­
da com o uma alternativa legítim a para o casam ento
heterossexual.
Em face de tal revolução sexual, seria natural que os cris­
tãos buscassem não apenas obedecer, mas tam bém tornar
con h e cido s dos outros os im utáveis padrões da lei de Deus.
Para isso, no entanto, não basta subir o Monte Sinai e procla­
mar os Dez M andam entos com a autoridade que vem lá de
cima. Mesmo depois de convertidas e regeneradas (o que con-
tinua sendo o nosso interesse m aior e a rota mais segura pa­
ra a lealdade moral), as pessoas ainda precisam de razões para
obedecer. Portanto, que argumentos poderíam os desenvolver?
O prim eiro é antropológico. Foi Raymond Johnston, Diretor da
C ARE Trust, que em 1978, quando apresentava uma série de
palestras em Londres sobre “ Cristianism o C ontem porâneo”,
me apresentou o livro Sex and Culture (Sexo e Cultura, 1934),
de J. D. Unwin, que ele considera “ uma das mais m onum en­
tais obras de antropologia com parativa”. Unwin confessa que
com eçou suas investigações “com uma despretensiosa recep­
tividade”, e “ na m aior inocência”. Sem qualquer interesse par­
ticular, e sem a m enor idéia de até onde iria com suas pes­
quisas, desejava tão-som ente testar a conjectura da interre-
lação entre a civilização e o autocontrole sexual. Após estu­
dar oitenta sociedades prim itivas e dezesseis civilizadas, des­
cobriu que a energia cultural (arte, ciências, tecn o lo gia etc.)
de uma sociedade aumenta à medida que se controla sua ener­
gia sexual. Seu estudo a respeito de certas “sociedades fo r­
tes” revelou que “em cada caso eles reduziam ao m ínim o sua
oportunidade sexual através da adoção da m onogam ia abso­
luta; em cada caso a subseqüente continência obrigatória pro­
duzia grande energia social. O grupo que, dentro da socieda­
de, era submetido a mais continência apresentava a maior ener­
gia e dom inava a sociedade". Por outro lado, sem pre que a
m onogam ia era m odificada, a energia cultural da sociedade
dim inuía. A conclusão do seu livro foi que se uma sociedade
forte “ deseja m ostrar sua energia produtiva por m uito tem ­
po”- ela tem que regulam entar as relações entre os sexos atra­
vés da prática da m onogam ia. Aí, então, “ sua tradição herda­
da seria continuam ente enriquecida; alcançaria uma cultura
mais alta do que em qualquer outro m om ento; pela ação da
entropia hum ana (sc. a produção de energia cultural renova­
da), sua tradição seria aum entada e refinada de tal form a, que
o fato supera'nossa com preensão presente”. Já Freud havia
ensinado algo similar, a saber, que o florescim ento da cultura
e o controle dos instintos andam juntos.
A esta evidência so cio ló gica convém adicionar um argu­
m ento psicológico. Sabe-se m uito bem que a experiência se­
xual m asculina difere da fem inina. O apetite sexual m asculi­
no é sobretudo físico; é despertado rapidamente e rapidamente
satisfeito. Para as mulheres, no entanto, a relação sexual não
é em si m esm a uma experiência com pletam ente satisfatória,
pois ela desperta outros desejos que não são satisfeitos as­
sim tão facilm ente e que têm relação com a segurança do ma­
rido, da casa e dos filhos. D espertar um hom em tais desejos
quando não tem a m ínim a intenção de satisfazê-los só pode
ser descrito, no mínimo, com o crueldade. Li recentem ente uma
confirm ação disso onde m enos se poderia im aginar: a edição
de novem bro de 1977 da revista am ericana Seventeen. Nela
havia um artigo intitulado “ Por que eu sou contra viver ju n ­
to s’’, na form a de uma entrevista com a Dr.a Nancy M oore Clat-
worthy, uma socióloga da Universidade Estadual de Ohio, nos
Estados Unidos. Durante dez anos ela vinha estudando o fe ­
nôm eno de casais que viviam juntos sem serem casados.
Quando com eçou ela estava predisposta a isso. Os jovens lhe
haviam dito que era “ m aravilhoso’’, e ela realm ente acredita­
ra neles. Parecia-lhe “ um arranjo razoável’’, “ um passo útil no
nam oro”, durante o qual as dupias tinham a oportunid ad e de
se conhecer melhor. Sua pesquisa, porém (que envolveu o tes­
te de centenas de casais, casados e não-casados), acabou
fazendo-a m udar de idéia. “As coisas que as pessoas dizem
que acontecem quando vivem juntas não acontecem de fa­
to", diz ela. O problem a era principalm ente com as garotas,
que ela achou tensas, m edrosas e olhando “ além da retórica
para uma possível dor e agonia”. Ela destaca dois pontos em
particular. Primeiro, com relação aos problem as. “ Nas áreas
de ajustam ento, felicidade e respeito”, os casais que haviam
vivido juntos antes do casam ento tinham m ais problem as do
que aqueles que se casaram primeiro. Alem disso, eles d iscu ­
tiam m uito mais acerca de dinheiro, am igos e sexo, por exem ­
plo. “ Em todas as áreas os casais que haviam vivido juntos
antes do casam ento discordavam mais do que aqueles que
não haviam m orado ju n to s”. Era evidente, conclui, que viver
juntos prim eiro não soluciona os problem as. O segundo pon­
to destacado pela D ra Clatw orthy refere-se ao com prom isso.
“ C om prom isso é a expectativa que uma pessoa tem quanto
ao resultado final de um relacionam ento (...) É o com pro m is­
so que faz fu n cion ar o casam ento, o viver juntos ou qualquer
outro relacionam ento hum ano”. No entanto, “sabe-se que al­
gum a coisa que é apenas provisória e tem porária afeta o seu
nível de com prom isso”. Portanto, os casais que não são casa­
dos têm muito m enos disposição de espírito para lutar pela
preservação e pioteçáo do seu relacionam ento; conseq üen­
temente, 75% deles acabam se separando. E quem mais so­
fre são geralm ente as garotas. Nancy Clatw orthy conclui: “ Es­
tatisticamente, é muito m elhor deixar de se casar do que sim ­
plesm ente viver ju n to s”. “ Para quem está apaixonado, qual­
quer coisa que não seja com prom isso total é uma fu ga ”.
Quando tanto antropologia quanto sociologia e psicolo­
gia apontam na mesma direção o argumento é poderoso. Não
deveríamos ter medo de usá-lo. Nem deveríamos nos surpreen­
der com a sua convergência, pois Deus escreveu sua lei em
dois lugares: em tábuas de pedra e nas tábuas do coração
humano (Rm, 2:14s.). Portanto a lei moral não é estranha aos
seres humanos. Ela é uma "lei natural”. Existe uma corres­
pondência fundamental entre as Escrituras e a natureza.
Educação religiosa e moralidade sexual são apenas dois
exemplos da necessidade de elaborar argumentos em nossa
defesa e em favor da ética social cristã. Deveríamos tentar de­
senvolver a mesma estratégia em cada esfera. A teoria da
“guerra justa”, por exemplo, é uma linha de raciocínio que não
é expressamente cristã. Embora tenha sido desenvolvida por
grandes pensadores cristãos, como Agostinho e Tômás de
Aquino, suas origens remontam a Platão, Aristóteles e Cícero,
na Grécia e Roma antigas. O mesmo acontece com a tradi­
ção, embora tenha sido refinada e enriquecida pelas Escritu­
ras. Muitos não-cristãos concordam com a sua razoabilidade,
mesmo que talvez não aceitem a autoridade das Escrituras.
Da mesma forma, podemos compartilhar o mesmo chão
com os não-cristãos e andar de mãos dadas com eles em nos­
so desejo de proteger os direitos humanos e de preservar a
natureza. Respeitar os direitos humanos é uma grande preo­
cupação dos humanistas seculares que se dedicam à causa
humana, embora suas razões divirjam das dos cristãos. Quanto
à ecologia, é possível concordarmos quanto à unidade do pla­
neta Terra, o delicado equilíbrio da natureza, nossa dependên­
cia comum do ar, da água e da terra e quanto à relação entre
os recursos capitais (como o carvão de pedra) e renda, sem
nunca termos de citar um texto de Gênesis, 1 e 2 ou de qual­
quer outra parte das Escrituras.
Meu último exemplo refere-se ao uso do domingo. O de­
ver de reservar um dia da semana para o culto e descanso
é especificado no quarto mandamento, que ainda continua
em vigor. Mas não podemos argumentar pela observância do
domingo apenas citando a lei de Deus - pelo menos, não até
que ás pessoas se convertam. Enquanto isso, cremos ser a
vontade de Deus que mantenhamos esse ritmo, que a nação
seja bem servida pela proteção legislativa do domingo como
sendo um dia diferente, que a vida familiar se edifique por meio
dele, que os trabalhadores sejam assim protegidos contra a
possibilidade de coação ao trabalho e que pelo menos gran­
des eventos esportivos (isto é, os que demandam o transpor-
te de grande número de gente e a provisão de policiamento,
comida, serviço médico e de bombeiros) sejam proibidos nesse
dia. Pois com o se explica que algumas pessoas desfrutem de
repouso e recreação às expensas de outros que têm de tra­
balhar para prover tais serviços? E quando o argumento bíbli­
co for inaceitável o argumento histórico talvez convença. Vá­
rias tentativas têm sido feitas para mudar o ritmo de um dia
por semana, seja cancelando o dia de descanso, seja alon­
gando a semana de trabalho. Por exemplo, os revolucionários
franceses, após abolirem a monarquia e estabelecerem a Re­
pública em 1792, introduziram um novo calendário republica­
no com uma semana de dez dias. A experiência, porém, só
sobreviveu alguns anos. O povo não agüentou trabalhar nove
dias sem parar. Assim, em 1805 Napoleão restaurou o velho
calendário de sete dias. Algo semelhante aconteceu após a
Revolução Russa, um século mais tarde. Os líderes revolucio­
nários acabaram com as instituições religiosas e transforma­
ram o domingo em dia de trabalho. Uma vez mais, porém, a
coisa não durou, e Stalin restaurou o domingo como dia de
descanso.
Não deveria nos preocupar tanto o fato de que os argu­
mentos mencionados em quase todos os meus exemplos são
motivados por interesse próprio. Quando buscamos argumen­
tos que apelem para o grande público temos que ser realis­
tas. “A arte de governar, de fato”, escreveu William Temple, “ é
a arte de ordenar a vida de tal forma que o interesse próprio
nos faça lembrar o que demanda a j u s t i ç a . ” i 6 as pessoas pre­
cisam ser convencidas de que as leis que lhes governam a
vida são para o seu bem, e que andar de conformidade com
a lei traz vantagens para elas próprias. Isto é muito mais ver­
dadeiro quando se trata de grupos do que de indivíduos. Na
verdade, a principal tese de Reinhold Niebuhr no seu livro Morai
Man and Immoral Socíety (O Homem Moral e a Sociedade Imo­
ral) é que, embora “ o homem como indivíduo possa ser mo­
ral no sentido de que é capaz de considerar interesses ou­
tros que os seus próprios na determinação de problemas de
conduta”, temos que reconhecer “o caráter brutal do com por­
tamento de todas as coletividades humanas, bem como a força
do interesse próprio e do egoísmo coletivo em todas as rela­
ções intergrupais.” 17
Os Sistemas Políticos

Ação Social não é apenas uma questão de ganhar o de­


bate público, mas de assegurar uma legislação que torne a
vida pública mais agradável a Deus. Não que todo pecado de­
va ser considerado um crime, ou todo dever precise ser apoia­
do por sanções legais, pois em certas áreas da vida privada
a lei não deveria se intrometer. Por exemplo: nos países mu­
çulmanos a imoralidade sexual privada é uma ofensa passí­
vel de punição, ao passo que nos países cristãos não o é, a
não ser que ofenda de alguma forma outras pessoas. A prin­
cipal função da lei é salvaguardar os valores aprovados pela
sociedade e proteger os direitos dos cidadãos. As leis tam­
bém devem ser exeqüíveis, o que significa que devem usu­
fruir do apoio público. Conceber e aprovar tais leis requer po­
der político e, nas democracias, a maioria do poder no
Congresso.
Não adianta dizer que Jesus e seus apóstolos não se im­
portavam com política, ou que eles não exigiam nem recomen­
davam qualquer ação política, muito menos se engajavam eles
próprios nessas coisas. Na verdade eles não o fizeram. Deve­
mos lembrar, porém, que eles representavam uma minoria pe­
quena e insignificante sob o regime totalitário de Roma. As
legiões romanas estavam em todo lugar e tinham ordens de
suprim ir dissidências, esmagar oposições e preservar o sta­
tus quo. Os cristãos do primeiro século não podiam realizar
ato político algum. Não seria esta a razão por que “ não se me­
teram com política”? Pelo menos o fato de eles nada terem
feito porque não podiam não é razão para não o fazermos, ha­
vendo possibilidade. A questão é: será que eles teriam sido
politicamente ativos caso houvessem tido oportunidade para
isso e probabilidade de sucesso? Acredito que sim, pois sem
ação política apropriada algumas necessidades sociais sim­
plesmente não podem ser solucionadas. Os apóstolos não exi­
giram a abolição da escravatura. No entanto, muito nos ale­
gra e orgulha o fato de os cristãos do século XIX o terem fei­
to. A campanha deles baseava-se no ensinamento bíblico con­
cernente à dignidade humana, e era uma legítima decorrên­
cia do mesmo. Semelhantemente, os apóstolos nem construí­
ram nem exigiram a construção de hospitais; porém os hos­
pitais cristãos são um resultado legítimo do interesse com ­
passivo de Jesus pelo enfermos. Assim também a ação políti­
ca (que é o amor em busca de justiça para o oprimido) é uma
legítima conseqüência do ensino e ministério de Jesus.
0 que precisamos fazer agora é tom ar as três atitudes
alternativas para a transformação social, que estivemos con­
siderando até agora, e dar-lhes um toque político, notando ao
mesmo tempo que visão do homem é pressuposta por cada
uma.
O absolutismo é a expressão política da “ imposição". Um
governo absolutista faz e impõe leis sem o aval de uma cons­
tituição, ou mesmo sem consultar o povo. O absolutism o bro­
ta de uma visão completamente pessimista dos seres huma­
nos. Ou estes são considerados imbecis demais para sabe­
rem o que é bom para eles e para a sociedade, ou então, caso
o saibam, pressupõe-se que não podem ou não querem che­
gar a um acordo. Conseqüentemente, continua o argumento:
“ Nós temos que decidir o que é bom para eles; temos que
fazer a cabeça deles e esperar que se conformem". A justifi­
cativa que se dá em público é sempre que é necessário um
forte controle em nome da ordem social. E até pode aconte­
cer que, uma vez ou outra, uma autocracia acabe sendo ge­
nuinamente benéfica. No entanto, ela avilta os cidadãos, por­
que não confia em que eles participem de qualquer ato
decisório.
A anarquia poderia ser considerada a expressão política
do “ laissez-faire". Não que tenha sido assim no século XIX,
pois seus adeptos alimentavam a visão de uma sociedade or­
ganizada, usando como meio para alcançar esse fim a eco­
nomia do laissez-faire. Contudo, a atitude moderna do laissez-
faire acabaria resultando na abolição de todo governo e de
toda lei, e nasceria de uma visão ingenuamente otimista dos
seres humanos. Ela pressupõe que estes são perfeitamente
capazes de se governar a si mesmos e que, para se criar uma
sociedade justa, não há necessidade de leis. “ Deixem o povo
em paz", diz-se, “e tudo acabará bem".
Assim, então, o absolutismo considera essencial um rígi­
do controle, pois é pessimista a respeito do homem, negando-
lhe a dignidade com o ser criado à imagem de Deus. A anar­
quia, por sua vez, considera segura a liberdade irrestrita, por­
que é otimista acerca do homem, negando sua depravação
decorrente da Quedá. Ambas as posições estão politicam en­
te equivocadas, visto que ambas são teologicamente erradas,
pois se baseiam em falsas doutrinas do ser humano. O abso­
lutismo conduz à tirania, não à justiça; e a anarquia leva ao
caos, não à utopia.
A terceira alternativa é a democracia, que é a expressão
política da “ persuasão pelo argumento". Se o absolutismo, por
ser pessimista, impõe arbitrariamente a lei; e se a anarquia,
sendo otimista, prescinde inteiramente dela, então a dem o­
cracia, por ser realista a respeito do ser humano com o ser
criado e caído, enquadra os cidadãos em suas próprias leis.
Pelo menos na teoria é assim. Na prática, especialmente em
países onde há um grande número de analfabetos, a mídia po­
de muito facilmente manipulá-los. E em toda democracia existe
o perigo constante de se atropelarem as minorias.
“A palavra democracia” e seus derivados aplica-se aos
procedimentos decisórios”, escreve John R. Lucas em sua obra
Dem ocracy and Participation (Democracia e Participação). O
livro descreve três aspectos do processo decisório. O primei­
ro tem a ver com quem toma as decisões. “ Uma decisão é
democraticamente tomada quando a resposta à questão ‘quem
decide?’ é: mais ou menos todo o mundo, ao contrário das
decisões tomadas apenas por aqueles que são os melhores
qualificados para fazê-lo, como numa meritocracia, ou das de­
cisões tomadas por uma única pessoa, como na autocracia
ou na monarquia”. Em segundo lugar, a democracia descreve
como se chega a uma decisão. “ Uma decisão é democrática
se for alcançada através de discussão, crítica e com prom is­
so.” Terceiro, a democracia descreve o espírito com que se
toma uma decisão, isto é, "preocupando-se com os interes­
ses de todos, e não apenas com os de uma facção ou
partido”.18
A democracia, portanto, reflete a visão bíblica equilibra­
da do ser humano — com o era de se esperar — , já que surgiu
na Europa cristã da pós-Reforma. Ela também dá aos cristãos
a oportunidgde de prestar uma contribuição construtiva em
uma sociedaide pluralista, participando do debate público (quer
seja sobre desarmamento, divórcio, aborto ou fertilização in
vitro) e tentando influenciar a opinião pública a ponto de des­
pertar uma demanda geral por uma legislação que agrade mais
a Deus. Posto que democracia é governo pelo consentim en­
to, e consentimento depende de consenso (ou pelo menos é
o que acontece quando os procedimentos eleitorais são ver­
dadeiramente democráticos); e o consenso brota de uma dis­
cussão em que as questões são esclarecidas.
Naturalmente o processo político democrático é também
“ a arte do possível”. Visto que os seres humanos são caídos,
tem que haver uma lacuna entre o ideal divino e a realidade
humana; entre o que Deus tem revelado e o que o homem
acha possível. O próprio Jesus reconheceu esta distinção den­
tro da lei de Moisés, ao declarar que a permissão de Moisés
quanto ao divórcio, em caso de “ indecência ou imoralidade”,
foi dada “ por causa da dureza do vosso coração” (Mc, 10:5;
Mt, 19:3-12). Em outras palavras, foi uma concessão à fraqueza
humana. Mas Jesus imediatamente acrescentou que “ não foi
assim desde o princípio”, para fazê-los lembrar qual era o ideal
divino.

Na sociedade contemporânea existe uma grande neces­


sidade de mais pensadores cristãos que se lancem ao deba­
te público, assim como de mais ativistas cristãos que organi­
zem grupos de pressão a fim de promover uma obra de per­
suasão. Sua motivação deveria ser inteiramente cristã — uma
visão do Deus que ama a justiça, a compaixão, a honestidade
e a liberdade em sociedade, e uma visão do ser humano que,
embora caído, foi criado à imagem de Deus e é, portanto, mo­
ral, responsável e tem uma consciência que deve ser respei­
tada. Motivados pelo zelo às coisas de Deus e pelo am or às
suas criaturas, esses cristãos deveriam buscar a renovação
da sociedade, sem qualquer tentativa de disfarçar as origens
de seus interesses. Mesmo assim, na hora do empurra-
empurra, do debate, seus argumentos sempre devem ser ad
hom inem ; e na elaboração de idéias políticas eles têm que
se contentar com a realidade. E seu alvo constante deve ser
moldar a opinião pública.
Referindo-se à necessidade de os cristãos viverem em vee­
mente protesto contra as pressuposições da sociedade de con­
sumo, o Bispo John V. Taylor, de Winchester, escreve: "É na
área da opinião pública que esta batalha tem de ser travada.
A única coisa que pode conseguir a transformação das políti­
cas, que demanda a nossa própria salvação, é uma profunda
reorientação da opinião pública”. Em seguida ele cita Reg Pren­
tice, que disse em 1972, quando Ministro das Relações Exte­
riores, que a única maneira de aumentar o interesse da Ingla­
terra pelas nações do Terceiro Mundo seria “ trabalhando in­
tensa e vagarosamente a educação pública e a pressão polí­
tica dentro dos países ricos”. 0 Bispo conclui que "a s renova­
ções e as revoluções” de Cristo “começam silenciosamente,
assim com o a própria fé. Elas brotam de uma sementinha, de
uma vaga intuição de que as coisas não têm que ser assim.
Quando essa idéia começa a infiltrar-se nas estruturas e na
mente das pessoas comuns da nossa sociedade afluente, o
clamor pode finalmente crescer: Vocês não passam de um pu­
nhado de cartas de baralho!” ^
1 C apítulo 3 de Essays in Evangelical Social Ethics, ed. David F. W righ t (Pa­
ternoster, 1978), pp. 5 9 -8 1 .
2 Attitudes to Bible God Church, a R esearch R e p o rt by Ja n H arrison (Bible
Society, 1983). O Manual Cristão do Reino Unido (1983) calcula em 17.4%
o núm ero de m em b ros adultos nas igrejas.
3 UK Christian Handbook 1983 Edition, ed. Peter Brierley, Table 12a., 13a.
(pub licad o em con ju n to pela Alia n ça Evangélica, S o cie d a d e Bíblica e
M AR C Europa), pp. 27--28.
4 Jo h n Kobler, Ardent Spirits, the rse and fall o f p roh ib ition (M ichael J o ­
seph, 1974), pp. 216-217.
5 Richard G utteridge, Open Thy Mouth for the Dumb, th e G erm an Evange­
lical C hurch and th e Jew s 1870-1950 (Basil B lackw ell, 1976).
6 ibid. p. 48.
7 ibid. p. 128.
8 ibid. p. 181.
9 ibid. p. 268.
10 ibid. p. 298.
11 ibid. p. 299.
12 ibid. p. 304.
13 D. R. Johnston, Who Needs the Family?, a survey and a Christian asse ss­
m ent (H o d d e r & S tou gh ton , 1979), pp. 4 3 -4 6 .
14 J. D. Unwin, S e x and Culture (DUR 1934), pp. 411-412 e 4 3 1 -4 3 2 .
15 Ver, p o r exem plo, Sex and Society, de Hugh A rth u r (P resb yterian C hurch
o f England, 1969): “ Não há dúvida algum a, fis io ló g ic a ou p s ic o lo g ic a ­
m ente falando, de que enquanto para os hom ens a relação sexua l é um
prazer e um fim em si m esm a, para a m u lh er ela é em si m esm a um
prazer e um início... Na realidade, a necessid ad e sexual fem inin a básica
é a segu ra n ça ."
16 W illiam Temple, Christoanity and the Social Order (Penguin, 1942), p. 59.
17 Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society (S crib n e r's 1932; edi­
ção revista , 1960), pp. xi e x x .
18 Jo h n R. Lucas, Democracy and Participation (1975; Pelican, 1976), p.
10. R ecom en d a-se tam bém The Children of Light and The Children of
Darkness, de R einhold N ieb uhr (N isbet, 1945). Este livro foi e s c rito de­
z o ito m esès antes de te rm in a r a II G uerra M undial, na qual ele d iz te r
v is to " a civiliza çã o b u rg u e s a ” d esm oron an d o ante o vio le n to barb aris­
m o nazista, e deu ao livro o s u b títu lo “ Uma vin d ica ç ã o da dem ocra cia
e uma c rític a aos seus tra d ic io n a is d e fe n s o re s ” . Sua fé na dem ocra cia
não era o o tim ism o c e g o dos liberais que, não te n d o qu alq u er c o n c e p ­
ção do pecad o origin a l, tinham “ uma visão ilusória e su p e rficia l do ho­
m e m ” (p. 15). A ch a va , isto, sim , que a d em ocra cia é a m e lh o r form a
de se re so lve r a te n sã o e n tre o in d ivíd uo e a com unid ad e, e n tre o inte­
resse próp rio e o bem com u m , en tre a liberdade e a o rd e m ” .
19 Jo h n V. T a ylo r, Enough is Enough (SCM , 1975), pp. 64 e 114.
C APÍTULO IV

ALIENAÇAO: TEMOS ALGUMA INFLUÊNCIA?

Nenhuma palavra encerra com tanta precisão ou expres­


sa com tanta eloqüência o senso moderno de impotência co­
mo a palavra “ alienação”. Dizer “sou um alienado" significa:
“ Não consigo mais me relacionar com a sociedade e, o que
é ainda pior, não há nada que eu possa fazer!”
Quem popularizou o termo foi Marx. Mas ele se referia
a uma ordem econômica na qual os trabalhadores, por serem
os seus produtos vendidos pelo dono da fábrica, eram assim
alienados dos frutos do seu labor. Os marxistas contemporâ­
neos aplicam a palavra num sentido mais amplo. Jim m y Rei-
der, por exemplo, membro do conselho comunista de Glasgow,
Escócia, disse em 1972: “Alienação é o grito dos homens que
se sentem vítimas de forças econômicas cegas que estão além
do seu controle (...) a frustração das pessoas comuns que são
excluídas dos processos decisórios”. 1
Alienação, portanto, é o sentimento de impotência políti­
ca e econômica. Os cegos ideais do poder institucionalizado
seguem implacavelmente seu caminho, e o homem ou a mu­
lher comuns nada podem fazer para mudar-lhe a direção ou
diminuir-lhe a velocidade, muito menos fazê-los parar. Nós não
passamos de espectadores de uma situação em desenvolvi­
mento, sobre a quàl nos sentimos completamente incapazes
de influenciar. Isto é “ alienação”.
E não obstante minha defesa teológica da teoria da de­
mocracia e meu apelo aos cristãos para que tirem vantagem
do processo democrático, juntando-se ao debate público, te­
nho que admitir que a democracia nem sempre cura a aliena­
ção, pois muitos já se desiludiram de suas realidades. É essa
lacuna entre a teoria e a prática que constitui a essência do
livro de John R. Lucas, intitulado Democracia e Participação,
do qual fiz algumas citações no capítulo anterior. As pessoas
exercitam seu direito dem ocrático de votar e, naturalmente,
“o voto constitui uma forma de participação mínima" (pág.
66). Depois disso, no entanto, “ a democracia se transforma
em autocracia: todas as decisões, com exceção de uma, são
tomadas por um autocrata, e a única que acaba sobrando pa-
ra o povo é a escolha desse autocrata”. Assim, John R. Lucas
rebatiza a democracia de “autocracia elegível”, pois ela “ca­
pacita as pessoas a participarem do governo somente até uma
extensão ridícula”. Da memsa forma ela “ torna o governo sin­
gularmente insensível aos anseios dos governados e às de­
mandas da justiça” (pág. 184). E ele continua: “ Embora a au­
tocracia elegível tenha seu aspecto democrático, ela é pro­
fundamente antidemocrática no que concerne à forma e ao
espírito com que se tomam as decisões (...) Ela não é partici­
pativa” (pág. 198). Sem dúvida este desencantamento com
a verdadeira atuação da democracia é geral. Os cristãos de­
veriam partilhar com outros a preocupação de se ampliar o
contexto do debate público, até que as discussões parlamen­
tares “ repercutissem em cada barzinho, e em cada oficina da
nação”. O Dr. Lucas acaba seu livro com a deliciosa declara­
ção de que “ a democracia só pode florescer no solo dos bo­
tequins” (pág. 264). — :--------------------------—---- —
" Para mim é uma tristeza que muitos cristãos se deixem
contaminar pela alienação. “ Naturalmente”, dizem eles, “a luta
pela justiça é interesse nosso; não podemos fugir deste fato.
Os obstáculos, porém, são imensos. Além de as questões se­
rem complexas (não somos especialistas),e a sociedade plu­
ralista (não dispomos de qualquer m onopólio do poder ou de
privilégios), as forças da reação predominam (não temos in­
fluência alguma). A maré vazante da fé cristã na comunidade
tem nos deixado no seco. Além disso, os seres humanos são
egoístas e a sociedade está podre. Contar com uma transfor­
mação social é irrealismo total”. ____ -— --------- — ------------- -—
O primeiro antídoto para essa mistura de alienação secu­
lar com pessimismo cristão é a história. A história está reple­
ta de exemplos de mudanças sociais resultantes da influên­
cia cristã. Tomemos a Inglaterra com o exemplo. O progresso
social, especialmente como conseqüência do cristianismo bí­
blico, não pode ser negado. Pensemos em algumas das ca­
racterísticas que desfiguravam este país há apenas duzentos
anos. A lei criminal era tão severa que cerca de duzentas ofen­
sas eram punidas com a morte: não era à toa que se chama­
va “o Código de Sangue”. A escravidão e o tráfico de escra­
vos ainda eram defendidos como sendo legítimos e até res­
peitáveis. Os homens eram engajados à força no exército e
na marinha. Não havia educação ou serviço de saúde dispo­
níveis para as massas. O sarampo matava mais de dez por cen­
to de cada geração. Viajar a cavalo ou de carruagem tornara­
se um grande perigo, por causa dos assaltos. O feudalismo
social aprisionava as pessoas em um rígido sistema de clas­
se e condenava milhões a uma vil pobreza. As condições de
vida e de trabalhos nas prisões, fábricas e minas eram incri­
velmente desumanas. Somente os anglicanos podiam entrar
na universidade ou no Congresso, se bem que alguns não-
conformistas conseguiam fazê-lo através da prática da “con­
formidade ocasional”. É uma vergonha que há apenas dois sé­
culos tanta injustiça manchasse a vida do país.
Mas a influência social do cristianismo tem sido mundial.
K. S. Latourette aborda-a na conclusão de sua História da E x­
pansão do Cristianismo (History of the Expansion of Christia­
nity), em sete volumes. Com uma linguagem brilhante ele faz
referência aos efeitos da vida de Cristo sobre seus seguido­
res. “ Nunca uma vida vivida neste planeta exerceu tanta in­
fluência nos assuntos humanos (...) Dessa breve vida e da sua
aparente frustração tem fluído uma força mais poderosa pa­
ra o triunfal burburinho da longa batalha do homem do que
qualquer outra força jamais conhecida pela raça humana (...)
Através dela centenas de milhões têm sido arrancados do anal­
fabetismo e da ignorância e colocados na estrada da progres­
siva liberdade intelectual e do controle sobre o seu ambiente
físico. Ela tem feito mais para amenizar os males físicos da
doença e da fome do que qualquer outro impulso jamais co­
nhecido pelo homem. Tem emancipado milhões dos grilhões
da escravidão e milhões de outros da escravidão do vício. Tem
protegido dezenas de milhões da exploração por parte de seus
companheiros. Tem sido a mais fecunda fonte de movimen­
tos para reduzir os horrores da guerra e para alicerçar na jus­
tiça e na paz as relações dos homens e das nações.” 2
Assim, o pessimismo cristão é historicamente infundado.
E é também teologicamente absurdo. Já vim os que a mente
cristã unifica os quatro eventos bíblicos: Criação, Queda, Re­
denção e Consumação. Os cristãos pessimistas concentram-
se na Queda (“os seres humanos são incorrigíveis”) e na Con­
sumação (“ Cristo virá para consertar todas as coisas” ), jul­
gando que estas verdades justificam o desespero social. Mas
eles negligenciam a Criação e a Redenção. A imagem divina
da humanidade ainda não foi obliterada. Os seres humanos,
conquanto maus, ainda são capazes de fazer o bem, como
Jesus ensinou claramente (Mt, 7:11). E nós podemos confir­
mar isso com os próprios olhos. Existem pessoas não-cristãs
cujo casamento é saudável, pais não-cristãos que educam mui­
to bem os filhos, industriais não-cristãos que administram suas
fábricas com integridade e médicos não-cristãos que ainda
levam a sério os padrões de Hipócrates, que têm com o guia,
e cuidam de seus pacientes com muita consciência. Isto acon­
tece, em parte, porque a verdade da lei de Deus está escrita
no coração humano; em parte porque os valores do Reino de
Deus, quando incorporados à comunidade cristã, são geral­
mente reconhecidos e até certo ponto imitados pelas pessoas
de fora. Dessa forma o evangelho vem produzindo frutos na
sociedade ocidental durante muitas gerações. Além disso, Je­
sus Cristo redime e renova as pessoas. Será que podemos afir­
mar que pessoas renovadas e regeneradas nada podem fa­
zer para refrear ou reformar a sociedade? Tal opinião é sim ­
plesmente monstruosa. O testemunho conjunto da história e
das Escrituras revela que o povo cristão tem exercido uma in­
fluência enorme na sociedade. Não somos impotentes. As coi­
sas podem ser diferentes. Nikolai Berdyaev sumarizou admi­
ravelmente esta situação nas seguintes palavras: “A pecami-
nosidade da natureza humana não significa que reformas e
melhorias sociais sejam impossíveis. Significa apenas que não
pode haver qualquer ordem social perfeita e absoluta (...) an­
tes que venha a transfiguração do mundo”.3

O Sal e A Luz

Da história e das Escrituras vamos agora à expectativa


que Jesus tinha em relação a seus seguidores. Foi no Sermão
do Monte que ele a expressou mais vividamente, através das
metáforas do sal e da luz:
"V ó s sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido,
como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão pa­
ra, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do
mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um
monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo
do alqueire, mas no velador, e alumia a todos que se encon­
tram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos ho­
mens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a
vosso Pai que está nos céus” (Mt, 5:13-16).
Todo o mundo conhece o sal e a luz. Eles se encontram
praticamente em todas as casas do mundo. O próprio Jesus,
quando menino no seu lar de Nazaré, deve ter visto a sua mãe
usando sal na cozinha e acendendo as luzes depois do pôr-
do-sol. Ele conhecia a sua utilidade prática.
Estas foram, portanto, as imagens que Jesus usou mais
tarde para ilustrar a influência que ele esperava que seus dis­
cípulos exercessem na sociedade humana. Naquela época eles
eram bem poucos — o núcleo inicial da sua nova sociedade;
mesmo assim tinham que ser sal e luz para toda a terra. O
que Jesus queria dizer com isso? Pelo menos quatro verda­
des não podem ser esquecidas.
Em primeiro lugar, os cristãos são fundamentalmente di­
ferentes dos não-cristãos — ou pelo menos deveriam ser. As
duas imagens separam as duas comunidades uma da outra.
O mundo é escuro — Jesus explica — , vocês devem ser a sua
luz. O mundo está se decompondo; vocês, porém, de­
vem ser o seu sal e impedir que ele apodreça. Usando uma
linguagem coloquial, diríamos que eles são tão diferentes quan­
to água e vinho ou óleo e água. Jesus disse que eles são tão
diferentes quanto a luz das trevas e o sal, da decomposição.
Este é um dos principais temas da Bíblia inteira. Deus chama
do mundo um povo para si mesmo, e a vocação do seu povo
é ser “santo” ou “diferente”. “ Sede santos”, ele lhes diz sem ­
pre, "porque eu sou santo”.
Segundo: os cristãos devem impregnar a sociedade não-
cristã. Embora os cristãos sejam (ou devessem ser) moral e
espiritualmente distintos dos não-cristãos, eles não devem se
segregar socialmente. Pelo contrário, sua luz deve brilhar nas
trevas, e seu sal penetrar a carne em estado de putrefação.
A lâmpada não produz efeito algum se for colocada debaixo
da cama ou sob uma tigela; também o sal de nada adianta
se continuar dentro do saleiro. Os cristãos, semelhantemen­
te, ao invés de afastar-se da sociedade, retirando-se para um
lugar onde não corrbeguem afetá-la, devem mergulhar nela.
A sua luz tem que brilhar, a fim de que se vejam as suas boas
obras.
Terceiro: Os cristãos podem influenciar a sociedade não-
cristã. Antes que se inventasse o sistema de refrigeração o
sal era conhecido com o o melhor preservativo. Era esfregado
no peixe ou na carne, ou estes eram deixados de molho na
salmoura. Desta forma se retardava o processo de decom po­
sição, embora, é óbvio, não se pudesse evitá-la completamente.
O efeito da luz é ainda maior: quando se acende a luz a escu­
ridão realmente se dispersa. De igual forma (parece ter sido
esta a implicação de Jesus) os cristãos podem impedir a de­
terioração social e dissipar a escuridão do mal. William Tem­
ple escreveu sobre o “ penetrante adoçamento da vida e de
todos os relacionamentos humanos por parte daqueles que
carregam consigo um pouco da mente de Cristo”.4
Isto levanta a questão: por que os cristãos não têm exer­
cido uma influência mais positiva sobre o mundo não-cristão?
Os amigos americanos que me perdoem por tom ar como
exemplo os Estados Unidos, se bem que, em princípio, a si--
tuação seja a mesma na Europa. As estatísticas publicadas
sobre o cristianismo americano são assustadoras. No final de
1979 a revista Christianity Today resumiu a situação da seguinte
maneira: “ Sessenta e nove milhões de americanos professam!
a sua fé pessoal em Jesus Cristo. Sessenta e sete por cento:
dos americanos hoje são membros de igrejas. Uma recente
pesquisa do Instituto Gallup mostrou que quarenta e quatro
por cento do público freqüenta a igreja regularmente, e qua­
renta e cinco milhões de americanos acima de catorze anos
se consideram muito religiosos”.5 Então, por que esse gran-;
de exército de soldados cristãos não tem sido mais sucesso
no combate às forças do mal? Esta é a explicação do futuro-j
logista americano Tom Sine: “ Nós somos notavelmente efetM
vos em suavizar o ensinamento extremista de Cristo e em trurH
car seu evangelho radical. Isto explica o fato de poderm os ter;
uma nação de 200 milhões de habitantes, dos quais 60 mi­
lhões professam ser cristãos, e ainda assim fazermos uma dH
ferença tão vergonhosamente pequena na vida moral da nos­
sa sociedade”.6 Mais importante do que a mera quantidade
de discípulos professos é a qualidade do seu discipulado (a
capacidade de se manterem sem comprometimentos, fiéis aos
padrões cristãos) e seu desenvolvimento estratégico (a habi­
lidade de conquistar posições de influência para Cristo).
Nós, cristãos, temos o hábito de lamentar a deterioração
dos padrões do mundo com um farisaico ar de grande desa­
lento. Criticam os sua violência, desonestidade, imoralidade,
desrespeito para com a vida humana e sua ganância materia­
lista. “ O mundo está se afundando cada vez mais”, dizemos,
com um encolher de ombros. Mas de quem é a culpa? Quem
é o responsável por isso? Vamos colocar a coisa da seguinte
maneira. Se a casa fica escura ao cair da noite, não faz senti­
do algum culpar a casa, pois é isso que normalmente aconte­
ce quando o sol se vai. A pergunta a fazer é: “ Onde está a
luz?” Se a carne se estraga e não dá mais para comer, culpar
a carne não faz sentido algum, pois é isto que acontece quando
se permite que as bactérias se desenvolvam. O que se preci­
sa perguntar é: “ Onde está o sal?” Da mesma forma, se a so-;
ciedade se decom põe e seus padrões declinam a tal ponto,
que ela acaba se tornando como uma noite escura ou um peixe
malcheiroso, é um contra-senso culpá-la. Pois é isto que acon­
tece quando homens e mulheres caídos são deixados entre­
gues à própria sorte, e o egoísmo humano não é questiona­
do. A pergunta é: "O nde está a igreja? Por que o sal e a luz
de Jesus Cristo não estão impregnando e transformando a so­
ciedade?” É pura hipocrisia da nossa parte erguer as sobran­
celhas, sacudir os ombros ou cerrar o punho. O Senhor Jesus
disse que nós tínhamos que ser o sal e a luz do mundo. Por­
tanto, se a escuridão e a decomposição existem, a falha é nos­
sa, e temos que assumir a culpa.
Em quarto lugar, os cristãos devem manter a sua carac­
terística distintiva. Se o sal deixa de ser sal, não presta para
nada. Se a luz deixa de brilhar, perde o efeito. Portanto, se nós,
que nos dizemos seguidores de Cristo, queremos fazer algo
de positivo por ele, temos que cumprir dois requisitos. Por um
lado temos que saturar a sociedade não-cristã e nos imergir
na vida do mundo; por outro lado, ao fazermos isso precisa­
mos evitar misturar-nos com o mundo. Temos que conservar
as nossas convicções cristãs, nossos valores, nossos padrões
e estilo de vida. Voltamos aqui à "dupla identidade” das igre­
jas (“santidade” e “ mundanidade” ) que mencionei no primei­
ro capítulo. Então, se indagarem o que significam o "ser sal”
e o "ser luz” em vista da santidade cristã, o resto do Sermão
do Monte o responderá, pois nele Jesus nos recomenda não
sermos como os outros que nos cercam: "N ão vos asseme­
lheis (...) a eles” (Mt, 6:8). Ao invés disso ele nos conclama
a uma lealdade ainda maior (a do coração); a um amor ainda
mais amplo (mesmo pelos inimigos); a uma devoção mais pro­
funda (a de filhos que se aproximam do Pai); e a uma ambi­
ção muito mais nobre (buscar primeiro o reino de Deus e a
sua justiça).7 Somente depois que escolhemos e seguimos
o seu caminho é que o nosso sal passa a conservar o seu sa­
bor, nossa luz começa a brilhar, nós nos tornamos de fato suas
testemunhas e seus servos e passamos a exercer uma influên­
cia integral na sociedade.
Este propósito e esta expectativa de Cristo deveriam ser
suficientes para superar nosso senso de alienação. É até pos­
s íve l que sejamos rejeitados ou desprezados por alguns no
trabalho ou em nossa comunidade local. A sociedade secu­
lar pode fazer o melhor que puder para nos forçar a aderir ao
seu círculo de interesses. Ao nos recusarmos a ser marginali­
zados, no entanto, estaremos tentando ocupar uma esfera de
influência para Cristo. Am bição é o desejo de ser bem sucedi­
do. Não há nada de errado se ela for genuinamente subordi­
nada à vontade e à glória de Deus. O poder é capaz de cor­
romper, é verdade. Mas também é verdade que o poder de Cris­
to se manifesta muito melhor através da nossa fraqueza. E,
de fato, continuaremos a sentir nossa insuficiência pessoal.
No entanto, deveríamos nos determinar, pela sua graça, a nos
infiltrar em algum segmento secular da sociedade e ali erguer
a bandeira de Cristo, mantendo, sem comprometimentos, seus
estandartes de amor, verdade e bondade.
Mas com o exercer alguma influência em nome de Cris­
to? O que significa na prática ser o sal e a luz do mundo? O
que podemos fazer para produzir transformação social? Vou
tentar apresentar seis maneiras, elaboradas de duas em duas.

Oração e Evangelismo

Em primeiro lugar vem o poder da oração. Peço-lhe que


não descarte isto como sendo um chavão piedoso, um palia­
tivo para agradar ao convencionalismo cristão, pois na reali­
dade não o é. Não podemos ler a Bíblia sem sentir o impacto
da sua constante ênfase na eficácia da oração. “ Muito pode,
por sua eficácia, a oração do justo”, escreve Tiago (5:16). “ Em
verdade também vos digo”, disse Jesus, “ que, se dois dentre
vós, sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer cousa
que porventura pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai que
está nos céus” (Mt, 18:19). Não temos a pretensão de enten­
der a oração racionalmente. Mas de alguma forma ela nos ca­
pacita a penetrar no campo do conflito espiritual e a entrar
em consonância com os bons propósitos de Deus, de tal for­
ma que seu poder é liberado e as potestades do mal são
amarradas.
A oração é uma parte indispensável da vida individual do
cristão. Ela é igualmente indispensável à vida da igreja local.
Paulo lhe dava prioridade. “Antes de tudo, pois, exorto que se
use a prática de suplicas, orações, intercessões, ações de gra­
ça, em favor de todos os homens, em favor de reis e de todos
os que se acham investidos de autoridade, para que vivamos
vida tranqüila e mansa, com toda piedade e respeito. Isto é
bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador, o qual dese­
ja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade” (I Tm, 2:1-4). Trata-se aqui de orar
pelos líderes nacionais, para que possam cum prir sua respon­
sabilidade de zelar pelas condições de paz, segundo as quais
a Igreja é livre para obedecer a Deus e pregar o evangelho. >
Teoricamente estamos convencidos desse dever de orar. Al­
guns cristãos, no entanto, por serem ativistas sociais, muito
raramente param para orar. E algumas igrejas dificilmente pa­
recem levar a sério esse dever. Se na comunidade (ou melhor,
no mundo) existe mais violência do que paz, mais opressão
do que justiça, mais secularismo do que piedade, não será
porque os cristãos e as igrejas não estão orando como
deveriam?
Vejamos como se expressa essa obrigação da Igreja no
relatório da Consulta Internacional sobre a Relação entre a
Evangelização e a Responsabilidade Social (1982):
“ Resolvemos, e conclamamos nossas igrejas, a levar mais
a sério o período de intercessão nos nossos cultos; pensa­
mos em termos de dez a quinze minutos, em vez de cinco;
decidimos convidar leigos a nos ajudarem a dirigir essa par­
te, já que eles têm uma compreensão mais profunda das ne­
cessidades do mundo; também focalizar nossas orações na
evangelização do mundo (nações fechadas, povos que resis­
tem, missionários, igrejas nacionais etc.) e na busca da paz
e da justiça (regiões onde há tensões e conflitos, libertação
do terror nuclear, líderes e governantes, os pobres e necessi­
tados etc.). Desejamos ver cada congregação cristã se ajoe­
lhando em atitude humilde e confiante diante do nosso sobe­
rano Senhor”.8 Também nos regozijamos com o crescimento
de movimentos para-eclesiásticos, cujo alvo é estimular as ora­
ções do povo de Deus.
Do poder da oração voltemo-nos agora para o poder do
evangelho, pois o nosso segundo dever como cristãos é evan­
gelizar. O assunto deste livro é a responsabilidade social cris­
tã, e não o evangelismo. No entanto, ps dois andam juntos.
Embora diferentes cristãos tenham recebido de Deus diferen­
tes dons e chamados, e embora em algumas situações seja
perfeitamente apropriado concentrar-se, quer no evangelismo,
quer na ação social, sem com binar um com o outro, em geral
e na teoria eles não podem separar-se. A encarnação do nos­
so amor ao próxim o é uma preocupação holística por todas
as suas necessidades, seja do corpo, da alma ou da com uni­
dade. É por isso que, no ministério de Jesus, palavras e ações
estavam sempre juntas. Como diz o Relatório de Grand Rapids,
“ a ação social e a evangelização são como as duas lâminas
de uma tesoura, ou com o as duas asas de um pássaro”.9
Existem, no entanto, duas maneiras em especial em que
o evangelismo deveria ser visto como um prelúdio necessá­
rio à ação social e um fundamento para ela. A primeira é que
o evangelho transforma as pessoas. Todo cristão deveria ser
capaz de fazer eco, com toda a convicção, às palavras de Paulo:
“ Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de
Deus para a salvação de todo aquele que crê ” (Rm, 1:16). Sa­
bemos disso pela nossa própria vida, e o temos visto na vida
de outras pessoas. Se o pecado é, na sua raiz, egocentrismo,
então a transformação de “ego” (“eu” ) em “ alter” (“outro” )
é um ingrediente essencial à salvação. A fé conduz ao amor,
e este ao serviço. Assim a ação social, que na verdade signifi­
ca servir aos necessitados em amor, deveria ser uma conse­
qüência da fé salvadora, se bem que tenhamos que confes­
sar que nem sempre é assim.
Existem outras situações em que transformações sociais
positivas acontecem à parte de iniciativas explicitamente cris­
tãs. Portanto, não devemos amarrar a evangelização tão indis­
soluvelmente à transformação social, a ponto de dizer que a
primeira sempre leva à segunda, e que esta última nunca acon­
tece sem a primeira. Estas, no entanto, são exceções que pro­
vam a regra. Continuamos insistindo que o evangelismo é o
maior instrumento de transformação social. Já vimos que a
sociedade necessita de sal e luz; no entanto, só o evangelho
pode produzi-los. Esta é uma das formas na qual podemos de­
clarar sem constrangimento que o evangelismo assume a pri­
mazia sobre a ação social. Logicamente falando, “o próprio
fato da responsabilidade social cristã pressupõe a idéia de cris­
tãos socialmente responsáveis”, e o evangelho é que produz
esse tipo de cristãos.10
Quando John V. Taylor, Bispo de Winchester, era Secretá­
rio Geral da Sociedade Missionária da Igreja, ele descreveu
em uma carta circular (maio de 1972) suas reações contra o
livro “ Calcutá” (Calcutta), de Geoffrey Moorhouse — ou me­
lhor, contra a aparente desesperança dos problemas dessa ci­
dade. “ Mas invariavelmente o que faz o ponteiro da balança
se mover do desespero para a fé ”, escreve, “ é a pessoa que
se levanta acima da situação”. Tais pessoas nem “caíram” na
armadilha da cidade nem “escaparam” dela. “ Elas transcen­
deram a situação (...) Salvação não é a mesma coisa que so­
lução: ela precede a solução, tornando-a uma possibilidade
(...) A salvação pessoal (salvação em primeiro plano) continua
sendo o caminho para dentro. Ela é a chave que destranca
a porta do determinismo e possibilita a “salvação” de organi­
zações e instituições corporativas (salvação em segundo pla­
no), provendo aqueles que podem transcender a situação”.
Existe uma outra forma em que a ascendência social é
facilitada pela evangelização. Quando ampla e fielmente pre­
gado, o evangelho produz não somente uma renovação radi­
cal no indivíduo, mas provoca também aquilo que Raymond
Johnston chama de “ uma atmosfera antisséptica” — na qual
blasfêmia, egoísmo, ganância, desonestidade, imoralidade,
crueldade e injustiça não encontram terreno para florescer.
Um país que foi impregnado pelo evangelho não é uma terra
em que essas ervas daninhas consigam enraizar-se; muito me­
nos tornam-se exuberantes.
E, mais do que isso: o evangelho que transforma pessoas
também transforma culturas. Um dos maiores empecilhos para
a transformação social é o conservadorismo da cultura. As leis,
instituições e costumes de um país levam séculos para se de­
senvolver; elas opõem uma resistência natural às reformas.
Em alguns casos o.que impede é a ambigüidade moral da cul­
tura. Cada programa político, sistema econôm ico e plano de
desenvolvimento depende de valores que o motivem e sus­
tentem. Eles não podem operar sem honestidade e algum ní­
vel de altruísmo. Assim, se a cultura nacional (bem com o a
religião ou a ideologia que a forma) for conivente com a cor­
rupção e o egoísmo, o progresso é efetivamente bloqueado,
já não oferece qualquer incentivo ao autocontrole ou ao sa­
crifício próprio. Neste caso a cultura bloqueia o desenvolvi­
mento.
Em uma série de palestras que apresentou em Londres
(1980) sobre Cristianismo Contemporâneo, intituladas Mora­
lity and the Market Place (Moralidade e a Praça Pública), o pro­
fessor Brian Griffits aplicou brilhantemente este princípio tanto
ao capitalismo quanto ao marxismo. Para ele o capitalismo per­
deu sua legitimidade, e o marxismo está fatalmente invalida­
do. “ O capitalismo sofre por causa de limites inadequados ao
exercício da liberdade”, ao passo que o comunismo “ sofre de­
vido à incapacidade de colocar freios adequados ao desejo
de controlar”. Mas essa “ incapacidade de resolver a tensão
básica entre liberdade e controle” é a crise do humanismo se­
cular. Tanto capitalismo quanto marxismo são, na verdade, pro­
dutos do lluminismo do século XVIII: o que lhes falta são va­
lores cristãos, l i
O último capítulo do livro de Brian Griffits intitula-se “A
Pobreza do Terceiro Mundo e a Responsabilidade do Primeiro
Mundo”. Ele discorda de uma expressão-chave usada pelo ex-
Chanceler alemão Willy Brandt na sua introdução ao Relató­
rio da Comissão Brandt: “ Nós tomamos por certo que todas
as culturas merecem igual respeito, proteção e promoção”.!2
“ Mas isto não é verdade”, replica Brian Griffits. “As culturas
expressam valores que modelam instituições e motivam pes­
soas — dentre os quais alguns promovem riqueza, justiça e
liberdade, e outros, não”. i 3
Portanto, é perfeitamente lógico que um livro sobre eco­
nomia, e particularmente sobre “ moralidade em praça públi­
ca”, conclua com um apaixonado apelo à evangelização mun­
dial. “ O Cristianismo começa pela fé em Cristo e termina com
o serviço do mundo (...) Por isso eu creio que a evangelização
tem um indispensável papel a desempenhar no estabelecimen­
to de uma ordem econôm ica mais justa. A obediência a Cris­
to requer mudança: o mundo se transforma em mundo de Cris­
to; os pobres, os fracos e os sofredores são homens, mulhe­
res e crianças criados à sua imagem; a injustiça se torna uma
afronta à sua criação; o desespero, a indiferença e a falta de
objetivo transformam-se em esperança, responsabilidade e pro­
pósito; e, acima de tudo, o egoísmo é transformado pelo
am or” 14.
O evangelho, pois, transforma pessoas e culturas. Com
isso não estamos dizendo que não há desenvolvimento sem
evangelização, mas que o desenvolvimento é bloqueado sem
as transformações culturais trazidas pelo evangelho e gran­
demente facilitado por elas. E quanto mais o evangelho se es­
palha, tanto mais esperançosa se torna a situação. Até mes­
mo uns poucos cristãos na vida pública podem iniciar uma
transformação social. Sua influência, porém, será provavelmen­
te muito maior se eles tiverem o apoio das bases, como acon­
teceu com os reformadores evangélicos do século XIX. Por­
tanto, os cristãos de cada país deveriam orar por uma ampla
aceitação do evangelho. Como diziam claramente os evangé­
licos americanos do século XIX, reavivamento e reforma an­
dam juntos.

Testemunho e Protesto

Já vimos que o evangelho é o poder de Deus para a sal­


vação. Na verdade, porém, toda verdade é poderosa. A verda­
de de Deus é muito mais poderosa que as mentiras perver­
sas do diabo. Nunca deveríamos ter medo da verdade. E nem
deveríamos, em tempo algum, temer pela verdade, como se
sua sobrevivência estivesse pendurada por um fio. Deus zela
por ela, nunca permitirá que seja completamente suprimida.
Como disse Paulo, "nada podemos contra a verdade, senão
em favor da própria verdade” (2 Co, 13:8). E João diz que “A
luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevalecem contra
ela” (Jo, 1:15). Um pensador cristão contemporâneo que está
convencido disto é Solzhenitsyn. Seu Discurso Nobel de Lite-
ratura (1970) intitulou-se Uma Palavra de Verdade. Ele confes­
sou que faltam aos escritores todas as armas materiais, co­
mo foguetes e tanques. Portanto, perguntou: “ O que é que a
literatura pode fazer diante do impiedoso ataque da violência
aberta?” Em primeiro lugar, ela pode recusar-se “ a com pac­
tuar com a mentira”. Segundo, os escritores e artistas podem
“derrotar a mentira”, pois “ uma palavra de verdade vale mais
que o mundo inteiro”. E nessa fantástica violação da lei da con­
servação de massa e energia estão baseadas minhas próprias
atividades e meu apelo aos escritores do mundo”.15.
Todos os cristãos são chamados, à semelhança de seu
Mestre, a “dar testemunho da verdade”. Para isso é que ele
nasceu, e para isso veio ao mundo (Jo, 18:37). A suprema ver­
dade da qual temos que testificar é o próprio Jesus Cristo,
pois ele é a verdade (Jo, 14:6). Mas toda verdade — científi­
ca, bíblica, teológica, moral — é dele, e temos que ser ousa­
dos em defendê-la, conservá-la e argumentá-la. Eis aí um bom
lugar para se desenvolver uma apologética ética — como in­
sisti no último capítulo — , e para se participar do debate pú­
blico sobre as questões contemporâneas. Do púlpito (que ainda
é uma “ plataforma” muito mais influenciadora do que comu-
mente imaginamos, especialmente quando se trata de mol­
dar a opinião pública), através de cartas e artigos nos jornais
locais e nacionais, em discussões em casa ou no trabalho, atra­
vés de oportunidades na rádio e na televisão, em poesias ou
em músicas populares, somos chamados, como cristãos, a tes­
temunhar da lei de Deus e do evangelho de Deus, sem temor
e sem desculpas. Além disso, “ tal Mestre, tal discípulo” : a ver­
dadeira testemunha (martus) deve estar preparada para so­
frer e até, se necessário, morrer pelo seu testemunho. Esse
precioso testemunho é a principal arma daqueles a quem é
negado o processo dem ocrático por viverem sob um regime
opressor.
Em um discurso muito divulgado há vários anos, Sir Keith
Joseph falou sobre o declínio moral na Inglaterra, a possibili­
dade de se “ remoralizar” a nação, e o poder das idéias. “ Se­
rá que precisamos ser destruídos a partir de dentro?” pergun­
tou, lembrando que, não obstante isso, esse país já havia re­
pelido sucessivas tentativas de invasão externa por parte de
Filipe da Espanha, Napoleão, o Kaiser e Hitler. “ Temos que ser
destruídos por idéias nocivas, obstinadas, enfraquecedoras e
até sedutoras, só porque elas estão na moda e prometem tanto
por uma ninharia?” Mais adiante no seu discurso ele respon­
de às suas próprias indagações, admoestando seus ouvintes
a partirem para a ofensiva. “A luta das idéias tem que ser en­
frentada em cada escola, universidade, publicação, comitê ou
estúdio de TV, ainda que nos custe a própria pele”, desafiou.
“ Nós temos a verdade. Se deixarmos de fazê-la brilhar clara­
mente seremos tão culpados quanto os exploradores, os ca-
suístas e os mercantilistas.” 16
Ao lado de um testemunho positivo da verdade deve es­
tar sua contrapartida negativa, ou seja, o protesto contra a in­
sensatez, a fraudulência e a perversidade. Muitos parecem es­
tar decepcionados com a arma do protesto racional, mas eu
acredito que não deveriam sentir-se assim. A agitação públi­
ca é uma arma efetiva. Tanto é que, enquanto em 1983 es­
crevia este capítulo, tomava conhecimento de vários exemplos.
Um deles ocorreu na Inglaterra. Quando antes da eleição
geral daquele ano William Whitelaw, então Secretário do Inte­
rior; publicou detalhes de .um projeto de lei que tencionava apre­
sentar ao Parlamento, houve imediatamente uma onda de pro­
testos contra uma cláusula que daria à polícia poderes para
pesquisar e extrair relatórios confidenciais das mãos de clé­
rigos, médicos e assistentes sociais. Advogados e médicos pro­
testaram vigorosamente, e cinqüenta e cinco bispos da Igreja
da Inglaterra assinaram o abaixo-assinado. Quase imediata­
mente o Secretário anunciou que iria retificar a cláusula.
O segundo exemplo vem da Alemanha Ocidental. Quan­
do se publicaram detalhes do censo populacional de 1983,
anunciando que os correspondentes teriam que divulgar uma
porção de informações pessoais, houve uma onda de protes­
tos. Um estudante de Direito e dois advogados valeram-se da
prerrogativa de cidadãos alemães, pela qual, em se verifican­
do que a liberdade civil está sendo ameaçada, pode-se ape­
lar para a mais alta Corte do país, o Tribunal Constitucional
— através do que foi obtida uma injunção provisória. A Corte
suspendeu o Censo, concedendo-lhe algum tempo para es­
tudar a sua legalidade com o um todo.
Em julho de 1983 o Conselho Médico Geral da Inglater­
ra, refletindo políticas do Departamento de Saúde e Seguran­
ça Social, emitiu um regulamento através do qual os médi­
cos deveriam “observar as leis do sigilo profissional”, caso uma
menor de dezesseis anos insistisse em não contar aos pais
que lhe fora receitada pílula ou aconselhado aborto, e que a
recusa dos médicos em respeitar o desejo dela resultaria pro­
vavelmente em disciplina ou, inclusive, demissão. Naturalmen­
te, existem circunstâncias especiais (por exemplo, uma histó­
ria de violência dos pais), em que uma mocinha deveria po­
der confiar no seu médico. Em termos gerais, porém, o regu­
lamento em q u e s tã o - pelo qual se descartavam totalmente
os direitos dos pais ao consentimento — levantou uma enor­
me pressão por parte de médicos “ ultrajados”, pais e mem­
bros das igrejas. Resultado: o Conselho Médico acabou
desistindo.
Os exemplos são muitos, e estão em qualquer lugar. Nin­
guém diga que protestar é uma perda de tempo e de esforço.

Exemplos e Grupos

A verdade é poderosa quando é argumentada; e fica ain­


da mais poderosa quando é exposta. Além de compreender
os argumentos, as pessoas precisam ver os seus benefícios.
A enfermeira cristã no hospital; a professora cristã na escola;
a secretária cristã no escritório; o vendedor cristão na loja ou
o empregado cristão na fábrica — cada um tem possibilida­
de de exercer influência acima de quaisquer números ou per­
centagens. E quem pode calcular a influência positiva que é
capaz de ter sobre toda a vizinhança um único lar cristão on­
de marido e mulher são fiéis um ao outro e se realizam mu­
tuamente? onde os filhos crescem abrigados pela disciplina­
da segurança do amor, e onde a famíia, ao invés de viver fe­
chada em si mesma, volta-se para o bem da comunidade? Os
cristãos são pessoas visadas, tanto no trabalho quanto no lar;
o mundo está sempre a observá-los.
Ainda maior do que o exemplo de indivíduos cristãos ou
de famílias cristãs é a influência da igreja local. O que Deus
espera da igreja é que ela seja sua nova comunidade redimi­
da, que encarne os ideais do seu Reino. Como diz o Dr. John
Howard Yoder, não devemos subestimar “o poderoso (...) im­
pacto que produz na sociedade a criação de um grupo social
alternativo”, pois “ a estrutura social primária através da qual
o evangelho atua para transformar outras estruturas é a da
comunidade cristã”.17
Mas como é que a nova comunidade transforma a anti­
ga? A resposta está muito bem expressa no Relatório de Grand
Rapids:
“ Em primeiro lugar, a nova comunidade deve constituir-
se num desafio à antiga. Seus valores e ideais, seus padrões
morais, seus relacionamentos, seu estilo de vida sacrificial,
seu amor, sua alegria e paz — estes são os sinais do reino
que, como vimos, oferecem a este mundo a chance de ter em
seu meio uma sociedade radicalmente diferente (...)”
“ Em segundo lugar, com o o mundo vive lado a lado com
a comunidade do reino, alguns dos valores do reino acabam
por infiltrar-se na sociedade, de modo que as indústrias, o co­
mércio, a legislação e as instituições do mundo com eçam a
se imbuir de alguns de seus valores. Esta sociedade “cristia­
nizada” não é de modo algum o reino de Deus, embora tenha
para com o reino uma dívida que geralmente não é
reconhecida.
“ Este modelo da ‘infiltração’, entretanto, tem suas limita­
ções, pois retrata as duas comunidades como independen­
tes uma da outra — como dois vasos que estivessem lado a
lado, e cujos conteúdos se misturassem pouco a pouco.^As
metáforas do sal, da luz e do fermento, usadas por Jesus,
mais dinâmicas, pois em cada uma se requer a pene 'É
da nova comunidade na antiga”.18 x;
Pequenos grupos de cristãos podem ser uma,,eàôprna-
ção visível do evangelho. Eles também podem <fezpt uso de
todas as formas aqui mencionadas parajnfíwen^tar a socie­
dade. Existe poder na oração e no evai e m h o ^ ^ v e r á muito
mais ainda se orarmos e evangelizarao^ j i hioêrlÈxiste poder
no testemunho e no protesto: e foif^jnpdalid ade escolhida
pelo próprio Senhor Jesus. Elp começou com os doze. E a longa
história da Igreja é repleta der* *smplos da estratégica influên­
cia dos pequenos grupos. N Vêam bridge do século XVI os pri­
meiros reformadores séêncom ravam no Hotel Cavalo Branco
para estudar o INteyo-^eM^mento Grego de Erasmo; na Oxford
do século XVM U ojfòl^b e Santo” — ao qual pertenciam Whi-
tefield e os3i - r 30 ' Wesley, embora engajados em meras boas
obras — ■{© ÍRm wço em que nasceu o primeiro reavivamento
evaneétíé6-lè«o século XIX, em Londres, a “ Seita Clapham”
iprestjoy-« Wilberforce apoio para a sua campanha anties-
■ tcí e para muitas outras causas sociais e religiosas,
ilas características mais promissoras, hoje, da vida da
freja moderna, é a ânsia de trabalhar em grupos pequenos.
Sem ter nada a ver com o movimento inde. sndente das ‘ g 3-
jas nos lares”, milhares de congregações têm dividido seus
membros em pequenos grupos de comunhão ou em grupi-
nhos nos lares. Além disso, muitas igrejas encorajam a for­
mação de grupos específicos: equipes de visitação evange-
lística, grupos de oração missionária, grupos de leitura, gru­
pos de estudo e ação social etc. O número é quase incontável.
Existem também comunidades experimentando novos es­
tilos de vida, compartilhando ou trabalhando juntas, como por
exemplo a Comunidade Kairós de Buenos Aires (para reflexão
teológica sobre discipulado no mundo secular); a Comunida­
de Soujourners em Washington DC (envolvida na produção da
revista Soujourners, além de promover o interesse pela paz
e a justiça e de prestar assistência às famílias negras locais);
em Nova Délhi, o TRACI (Instituto de Pesquisa e Com unica­
ção para jovens pensadores e escritores indianos); na Ingla­
terra, o Projeto Shaftesbury (que encoraja pesquisa e ação re­
lacionadas com o envolvimento cristão na sociedade), a CA­
RE Trust (Pesquisa e Educação de Ação Cristã, que promove
padrões morais na sociedade). Devo ainda mencionar o Insti­
tuto de Londres para o Cristianismo Contemporâneo, que pro­
move a integração do discipulado sob o senhorio de Cristo
e a penetração no mundo secular em nome do Senhor.
Um líder católico-romano mundialmente respeitado, e que
acredita fortemente no potencial de grupos pequenos, é Dom
Hélder Câmara, ex-Arcebispo de Recife, no Nordeste do Bra­
sil. Acusado de subversivo, proibido de ter acesso aos meios
de comunicação, constantemente ameaçado de assassinato,
este “ pacifista violento” (como muitos o chamam) está com ­
prometido com a paz e a justiça. Após percorrer meio mundo
durante vários anos, apelando para instituições, acabou por
acreditar mais na eficácia de grupos pequenos. Ele encoraja
a formação de “ minorias abrâmicas” (assim chamadas “ por­
que, tal como Abraão, esperamos contra a esperança” 19) nos
bairros, universidades e sindicatos, dentro dos meios de co­
municação, entre homens de negócios, entre políticos e nas
forças armadas. Compartilhando uma sede comum por justi­
ça e liberdade, coletam informações, tentam diagnosticar pro­
blemas relacionados com habitação, desemprego, subemprego
e estruturas; repartem experiências e promovem seja qual for
a ação necessária de “ violência pacífica” que julgarem apro­
priada. Dom Hélder acredita que tais grupos minoritários pos­
suem "tal força para o amor e a justiça que se poderia juntar
à energia nuclear, trancada por milhões de anos dentro dos
menores átomos, aguardando a liberação” 20. “ Unidas, todas
estas minorias poderiam se transformar numa força irresistí­
vel”, acrescenta ele.21 Alguns o ridicularizam, mas ele perse­
vera. “ Sei muito bem que o meu plano lembra o combate con­
tra Golias. Mas a mão de Deus estava com o pastorzinho e
Davi derrotou o filisteu com sua fé, uma funda e cinco pedri-
nhas.” 22 "Não esqueçam”, exorta ele em todo lugar, "que atra­
vés dos séculos a humanidade tem sido liderada por bravas
minorias.” 23
Este contraste entre o gigante e o menino, a espada e as
pedrinhas de estilingue, a vanglória arrogante e a fé humilde,
é característica da atuação de Deus no mundo. Tom Sine a
expressa muito bem no seu livro A Conspiração do Grão de
Mostarda (The Mustard Seed Conspiracy), cujo título é uma
alusão à minúscula sementinha de onde brota uma grande ár­
vore. O subtítulo do livro é: “ Você pode fazer uma diferença
no conturbado mundo de amanhã”. Sine escreve: “Jesus nos
descortina um maravilhoso segredo. Deus decidiu transformar
o mundo através do simples, humilde e imperceptível (...) A
estratégia de Deus sempre foi esta: transformar o mundo
valendo-se da conspiração dos insignificantes. Ele escolheu
um andrajoso bando de escravos semitas para se tornarem
os insurgentes da sua nova ordem (...) E quem diria que Deus
iria agir através de um bebê em uma estrebaria para virar o
mundo de cabeça para baixo?! Deus escolheu as coisas lou­
cas (...) as coisas fracas (...) as coisas humildes (...) as coisas
que não são (...) ... Ainda hoje a política de Deus é agir atra­
vés do embaraçosamente insignificante para transformar es­
te mundo e criar o seu futuro (,..)” 24
“ O embaraçosamente insignificante.” Penso que convém
enfatizar esta peculiaríssima política adotada por Deus. Meu
anseio é, ao mesmo tempo, que todos possam compreender
que isso é realista. O que falta às minorias em número elas
podem compensar em convicção e compromisso. Como apoio
a esta disputa apelo ao testemunho de um conhecido soció­
logo americano. Robert Bellah é especialista em “ religião ci­
vil” e em influência da religião e da ética na política. Ele le­
ciona no Departamento de Sociologia da Universidade da Ca­
lifórnia, Berkeley, e também no Centro de Estudos dos Corea­
nos e Japoneses. Em uma entrevista dada a Sam Keen para
a Revista Psychology Today (Psicologia Hoje), janeiro de 1976,
ele disse: “ Penso que não deveríamos subestimar o signifi­
cado dos pequenos grupos de pessoas que têm uma nova vi­
são de um mundo justo e honrado. No Japão uma minoria mui­
to pequena de cristãos protestantes introduziu a ética na po­
lítica, produzindo um impacto muito além de toda a sua pro­
porção numérica. Eles foram fundamentais para o começo do
movimento das mulheres, associações sindicais, partidos so­
cialistas, e praticamente todos os movimentos de reforma. A
qualidade de uma cultura pode ser transformada quando dois
por cento de sua população têm uma visão nova”.
No Japão, os cristãos são menos de um por cento; em
outros países, porém, eles abrangem muito mais do que isso.
Poderíamos exercer uma influência enorme na sociedade, tanto
em termos de evangelização quanto de ação social, para a gló­
ria de Deus. Simplesmente não há por que vivermos alienados.

1 Do seu d iscurso inaugural para os estudantes da Universidade de Glas­


gow, quando da sua instalação co m o reitor.
2 K. S. Latourette, History of the Expansion of Christianity, em sete v olu ­
m es (Eyre & S p ottisw ood e, 1945, Vol. 7), pp. 5 0 3 -4 .
3 Nikolai Berdyaev, The Destiny of Man (G eoffrey Bles, 1937), p. 281.
4 W illiam Temple, Christianity and the Social Order (Penguin, 1942), p. 27.
5 Christianity Today, 21 de dezem bro, 1979.
6 Tom Sine, The Mustard Seed Conspiracy (Word, 1981), p. 113.
7 M ateus 5-7. Ver m inha e xp o siç ã o sobre o Serm ão do M onte, intitulada
ContraculturaI Cristã (ABU, 1983).
8 Evangelização e Responsabilidade Social, R elatório da C onsulta Inter­
nacional realizada em Grand Rapids sob a presidência de John Stott. Tra­
d ução de Jo s é Gabriel Said. São Paulo, A B U ; Belo H orizonte, V isã o M un­
dial, 1983, p. 43.
9 ibid. p. 21.
10 ibid. p. 23.
11 Brian G riffiths, Morality and the Market Place, “ C hristian A lte rn a tive s to
C apitalism and S o c ia lism ” (H o d d e r & S tou gh ton , 1982), p. 69.
12 North-South, “A P rogram m e fo r S u rviva l”, th e R e p o rt o f th e Ind epend ent
C o m is sio n on International D evelopm en t Issues u n d e r th e th airm a ns-
hip o f W illy B ran dt (Pan Books, 1980), p. 25.
13 Morality and the Market Place, pp. 148--9.
14 ibid. pp. 1 5 4 -5 .
15 Alexander Solzhenitsyn, One World of Truth (Bodley Head, 1972), pp. 22--7.
16 D iscurso apresentad o p o r S ir H eith Jo s e p h em B irm in g h am , em o u tu ­
bro de 1974.
17 John Howard Yoder, The Politics of Jesus (Eerdm ans, 1972), pp. I l l e 157.
18 Evangelização e Responsabilidade Social, p. 3 0 -1 .
19 Dom Helder Câm ara, Spiral of Violence (1970; Sheed & Ward, 1971), p. 69.
20 D om H éld er Câm ara, The Desert is Fertile (Sheed & W ard, 1974), p. 3.
21 Spiral of Violence, p. 43.
22 Dom Hélder Câm ara, Race Against Time (Sheed & Ward, 1971), pp. v ii-v iii.
23 ibid. p. 17.
24 Tom Sine, The Mustard Seed Conspiracy (W ord, 1981), pp. 11-12.

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