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Um foguete para raposas

Autoria: Lê Dias
A Casa de Cultura Aeroespacial do Centro de Lançamento de Foguetes da cidade histórica de

Alcântara, no estado do Maranhão, expõe em seu quintal uma réplica do foguete do programa

espacial brasileiro. O que poucos frequentadores desse pequeno museu sabem é que lá mais ao

fundo do mesmo quintal, escondida entre o mato e as árvores, uma raposa brasileira fez ... a sua

toca!

Alguns visitantes sortudos, se se demorarem um pouco mais quietos e pacientes olhando para

além da nave metálica ali estacionada, talvez tenham a sorte de ver o belo animal espreitando

vigilante os arredores de seu lar de terra e pedra construído ao lado do tão, tão, tão exótico

vizinho espacial – uma nave metálica feita para as alturas dos céus e das estrelas!

A estranha vizinhança parece preocupar a raposa, que volta e meia sai de sua toca e passeia

observando alerta cada movimento das pessoas que visitam o foguete do museu. Já o foguete,

sempre imóvel em suas cores muito desbotadas, parece envelhecer corroído pela sua

curiosidade insatisfeita sobre a vida movimentada do seu vizinho animal – pois, sem suas

próprias pernas para poder sair por aí espiando, muito pouco ele consegue ver de sua vizinha.

Foi com a esperança de satisfazer pelo menos um pouquinho a curiosidade que o corroía que o

foguete se animou todo quando viu que, depois de passar correndo por ele, uma garotinha muito

empolgada chamava a mãe para mostrar lá no fundo do quintal a sua descoberta:

- Olha lá ... lá no fundo! Olha o que eu achei! É um cachorro?

- Não, não é um cachorro: é uma raposa! – disse a mãe já toda empolgada com a selvagem

descoberta da filha.

- Ela se escondeu no buraco entre as pedras.

- Que lugar para uma toca!

- Quero ir lá ver.

- Ah, ela não vai gostar se você for lá ... ainda mais se na toca estiver o filhote dela ...
- Um filhote?! – a menina ficou ainda mais curiosa em descobrir mais sobre aqueles

surpreendentes habitantes do museu espacial.

- Pode ser né, olha como ela está vigiando tudo!

- Mas como elas moram aí!? No meio do museu ... da cidade!?

- Ah! Como será que elas fazem para morar em uma toca no meio da cidade? – a mãe repetiu

para si mesma a pergunta da menina.

- Vamos lá ver!

- Olha, ela já se assustou ouvindo a gente falar, já voltou para a sua toca. Agora ela está lá

dentro, não vamos incomodar!

- Mas eu queria tanto ver como é!

- Como é?

- Sim, como é a toca da raposa com seu filhote?

- Boa pergunta! Vamos tentar imaginar?

- Ah, mãe, já até fechei os olhos para ver melhor!

Como era a vida das raposinhas que moravam ali no quintal do museu no meu da cidade ao

lado de um foguete? O foguete, que também se perguntava o tempo todo sobre a vida das suas

vizinhas, se fez também todo ouvidos, olhos fechados, para escutar bem direitinho a história

que suas duas novas vizinhas começaram a contar sobre a toca das raposinhas.

Era tarde da noite, quase dia, e a pequena raposinha, dormindo toda enrodilhada em sua toca,

sentiu quando o ar, balançando, começou pouco a pouco a desenhar em seus pelos a chegada

da mãe raposa que, vagarosamente, voltava de sua aventura noturna. Prolongando seu tranquilo

repouso, a pequena se espreguiçou e, logo depois, já se reenrolou toda, encaixando-se nos

contornos côncavos e macios do grande corpo que agora a confortava deitado ao lado.
Mas, enquanto os olhos fechados da raposinha contemplavam ainda a doce e segura escuridão,

as narinas cegas começaram a fuçar fundo por toda parte, buscando cada cheiro que chegava

grudado aos pelos da mãe. Até que ... Sim! Sim! A raposinha exultava de felicidade percebendo

que o cheiro daquela manhã era um daqueles para lá de especiais! Louca para saborear o que

adivinhava no cheiro especial, a raposinha lançou sua língua em exploração, até encontrar os

grãos estranhos que, salpicados pela pelugem materna, naquela manhã temperariam a sua

sempre igual e doce-láctea mamada da alvorada. E depois de devorar um a um os grãos do novo

tempero, a pequena se perguntava: ora, ora ... afinal ... de onde vem esse gosto tão diferente? E

assim ela caia em um sono saciado da fome, mas ainda sedento de curiosidade!

***

- Que cheiro especial é esse? Grãos estranhos de tempero? – a menina abriu os olhos

interrogando a mãe, que, colocando apenas o dedo sobre os seus lábios, pediu silêncio e

continuou a contar a sua história.

II

Nossa raposinha aprendera logo que eram muitas e diversas as surpresas trazidas penduradas

no corpo da mãe a cada manhã - e digeria sempre curiosa o espanto diário dessas novidades.

**

Havia manhãs nas quais o leite vinha envolto em perfumes doces e untuosos e chegava

entorpecendo a língua de tão viscoso, levando a pequena raposa, sem demora, a um descanso

gordo.

**

Dias havia também nos quais uma secura pulverizada pinicava suas pequenas e finas patas e a

goela – e nesses dias ela bebia um leite irritante de tão rarefeito, que pouco a alimentava. Então,

a raposinha precisava antes despregar com o focinho o emaranhado de brechós vegetais e

embrulhos anárquicos que se formava nos pelos da mãe, para encontrar depois o seio e o leite
que se escondiam atrás de um monte de galhos secos de azedinhas. No fôlego pequeno e

cansado da mãe, nesses dias a filhote faminta sentia um coração também escondido, batendo

baixinho, por um fio - e depois da refeição ambas adormeciam exaustas e ainda esfomeadas.

**

Em outras manhãs a mãe chegava tão alerta e, com os picos aflitos das tetas eriçadas, a mamada

corria acelerado até terminar rápido, rápido. A raposinha sentia, então, um coração que

bumbava forte, forte ao lado do seio da mãe - e uma respiração ofegante que não sossegava.

Nesses dias a raposinha dormia sozinha sob o olhar alerta da raposa mãe ainda desperta e

vigilante.

**

A raposinha não esquecia também das auroras aguadas, quando tudo, do pelo ao estômago, se

encharcava, banhando e diluindo o leite nas gotas daquele outro líquido, tão transparente e tão

cintilante.

**

Com sua língua e seu nariz, seus dentes e suas patas, a raposinha descobria um mundo de

aventuras através das migalhas trazidas pela raposa mãe: que mãe porta-mundo, a raposinha

pensava antes de, guiada pelo farol vermelho do lustroso mamilo, aportar mais uma vez em seu

repouso docemente doméstico do leite materno.

**

Mas, de todos esses condimentos que temperavam suas manhãs, nenhum intrigava tanto nossa

raposinha quanto aquele que ela encontrava salpicado no corpo da mãe naquelas manhãs muito,

mas muito especiais mesmo! E ela continuamente se perguntava: de onde, afinal, vêm esses

cristais exóticos de gosto tão estranho que nesses dias muito especiais arranham minha língua

e depois se dissolvem eletrizando a saliva, deixando tudo mais tão, mas tão, tão diferente?

***
- Nossa, mãe, tô muito, mas muito curiosa mesmo para saber que gosto é esse! Tem da água e

da chuva, da terra de planta de flor que perfuma, do espinho que machuca ... tanta coisa que

essa mãe gruda no corpo dela enquanto passeia pelo mundo né! Mas essa história desse grão ...

também não sei...

Com o mesmo gesto do dedo sobre os lábios a mãe pediu silêncio à filha e continuou a contar

a sua história das raposinhas.

III

A raposinha percebia que, dia alto ou tarde da noite, às vezes um vento pesado ocupava toda a

cavidade da sua toca, batucando nas paredes um murmúrio ritmado de idas e vindas. Nesses

momentos ela girava seu focinho e suas orelhinhas em direção ao buraco, sempre o mesmo,

pelo qual o cheiro e o som juntos entravam – e percebia que eles a faziam lembrar daquele sabor

eletrizante tão avesso ao doce leite que os pelos da mãe traziam pendurados, como grãos

areados, naquelas manhãs muito especiais. Ah, aquelas manhãs especiais! Nelas a mãe chegava

em um estado tão particular, indecifrável: um coração batendo alto, mas como que acolchoado;

um forte hálito, mas que respirava em absoluto silêncio. Ela parecia chegar nesses dias gigante,

exuberante, como se carregasse no corpo quilômetros e quilômetros de corridas e saltos sem

amarras – como se a maior felicidade ainda corresse imensa e livre dentro dela. Sem conseguir

saciar sua fome de saber sobre o que era esse outro gosto, tão estranho, nessas manhãs especiais

a raposinha se demorava até mais tarde a catar nas brechas dos pelos da mãe todos os exóticos

grãos, até os mais minúsculos, mesmo quando a mãe imóvel já dormia. E se perguntava: de

onde vêm?

IV
Assim a raposinha cresceu cheia de curiosidade por esse mundo de coisas fora de sua toca, o

qual ela experimentava em pequenos bocados contrabandeados pelo corpo da mãe. Até que

chegaram os seus dias de sair! Esperta, ela já vivia metendo o nariz para fora. E quando o escuro

da noite vinha, arriscava-se em passos ao redor. Ela descobriu seus vizinhos: três árvores, uma

coruja. Depois, ela descobriu também a fonte e bebeu sua água gelada pela primeira vez!

Reencontrou um pouco mais longe a viscosidade de suas primeiras e pequenas presas, a

untuosidade do sangue – também o visco de seu próprio sangue, quando rasgou o focinho

metido em um espinho. Descobriu pelos caminhos pequenos embrulhos vegetais que também

guardavam perfumes doces e azedos. E em um começo de dia memorável, viu o sol chegar

refletido em gotas brilhantes que caiam rápidas do céu luzindo tudo, enquanto seu pelo dourado

se encharcava. Paralisada, ela abriu a boca grande em direção ao alto e ficou sob a água, a

inundar seu olhar, até alagar sua alma: tanta água! Nem viu quando suas patas afundaram na

lama; mas, logo, as despregou, refez ligeira seus rastros entre as poças até a toca e lá dentro

limpou o barro grudado em seus dedos, enquanto, chacoalhando, secava a pelagem já tão lavada

e limpa. E lambendo o manto aquoso que a travestia, a raposinha guardou dentro de si um

pedaço do seu primeiro banho de chuva. Depois dormiu toda irrigada pela tempestade que lá

fora continuava a pingar gota a gota, gota a gota.

Mas, puxa vida, pensava a raposinha: depois de todos as suas primeiras explorações, nada de

eu encontrar lá fora no mundo o segredo das minhas manhãs muito especiais! Esperta, ela

percebera que a mãe demorava muito a chegar quando amanhecia trazendo os sabores especiais

da festança - e, então, ela pensou: deve ser muito longe o lugar que guarda esse segredo! Mas,

afinal, onde será que moram os grãos desse cheiro e desse gosto tão estranhos a todo o meu

mais doce leite? Em suas precoces andanças pelo mundo, ela investigava e ... o mistério
continuava! Cada vez mais intrigada, todo dia ela alimentava sua pequena pulguinha atrás da

orelha, a coçar sua curiosidade: de onde?

***

- De onde vêm? Onde será que essa mamãe raposa anda passeando? – a menina se perguntou

em voz alta.

- Acho que logo, logo ela já vai descobrir!

- Afinal, né, o mundo não pode ser assim tão e tão grande né! Continua!

VI

Certa noite, no horário de sempre da saída de ambas raposas para a habitual ronda noturna, a

raposinha viu a mãe ficar por um instante pensativa e nervosa – mas, logo depois, já toda segura

e decidida, ela chamou a filha para sair. Lá fora a lua, que a raposinha vira pequena até então,

apareceu toda grande e cheia no céu, esbanjando sua luz sobre todos os cantos e transformando

o corpo da mãe em um meteoro a riscar à frente uma estrada, guiando a filha. Elas seguiam

pelos seus já conhecidos quintais, a cidade, suas ruas direitas, na noite vazias e desimpedidas.

Depois, continuaram pela muralha vegetal da cidade, com seu também conhecido emaranhado

de galhos, folhas e troncos. Mas, naquela noite, seguiram um pouco mais além. E, pouco a

pouco, a pequena curiosa sentiu seu coração se agitando dentro de um corpo que ia sendo

agarrado por um mundo novo. Enquanto a mata ficava cada vez mais rarefeita e o chão mais

úmido já escorregava movediço em suas patas, a raposinha sentiu se impregnando em seu pelo

e em suas narinas a mesma textura aérea trazida no corpo da mãe naquelas manhãs de festim!

Sim, o grande mistério se aproximava! Para poder tocar por fora e por dentro seu mistério, a

raposinha aspirou fundo, muito fundo, o ar ao seu redor.

Com dificuldade elas continuaram descolando as patas presas no lodo do novo terreno e

saltavam as raízes extensas dos pequenos arbustos, as orelhas sempre atentas aos sons e estalos
dos animais e da noite. Para onde iam? Um barulho contínuo ficava cada vez maior e mais

presente. Sim, sim, seu coração gritou: elas estavam cada vez mais próximas daquele murmúrio

ritmado de idas e vindas que ela às vezes ouvira ecoando em sua toca, trazido por um vento

denso! O barulho cresceu mais e mais forte em seus ouvidos – até ocultar todos os outros

barulhos da noite.

Com seu olhar, então, a mãe ordenou que a pequena parasse ali e avançou sozinha para fora do

emaranhado verde e lodoso que as protegia. Uma nuvem cobriu a lua e o escuro dominou tudo.

Pela primeira vez a raposinha estava sozinha fora de sua toca. Ela sentia apenas a companhia

do barulho forte e do cheiro denso que tateavam seu corpo no escuro. Por um instante, quis se

livrar de todos os mistérios que grudavam desconhecidos a sua pele, ouvidos e nariz. Por um

instante, tremeu, antes de reencontrar os olhos brilhantes da mãe que, novamente à sua frente,

chamava-a a também saltar à frente.

***

- Mas ela vai ficar sozinha no escuro nesse lugar que ela nem sabe onde é? – a menina

interrompeu a mãe e puxou com as duas mãos o rosto da mãe na direção do seu, para que os

seus olhos se cruzassem.

- Calma, é só por um instante! Você já vai ver!

VII

Pluf! Para fora! As patas ainda cansadas de caminhar no charco caíram desajeitadas no solo

inesperadamente fofo, mas, se aprumando ligeiras, logo correram ao encontro da segurança

compacta da planície imensa que a luz da lua prateava a perder de vista. A imensidão branca

corria para todos os lados, como se empurrada pelo vento – e ela, como o vento, correu a alvura

sob suas patas, em todas as direções do tapete luminoso que se desenrolava para ela. A

raposinha correu livre, enorme, como a amplidão que a circundava. E assim foi indo, sem
procurar, até tocar lá no fim da areia o seu mistério. Quando ela percebeu, o barulhão já estava

lá, ao seu lado, estrondoso em suas vagas, avançando e recuando suas águas sobre as suas patas,

em ciclos. Tanta água! Ela viu a franja de renda branca se avolumar, depois rolar até se dissolver

entre seus pés e o chão – e sentiu explodindo ali o cheiro das suas mais festivas mamadas! A

grande água, sonora e agitada, revelava seu mistério. A raposinha reclinou seu longo pescoço e

lançou para fora sua longa língua e tentou beber um muito grande e gordo gole da sua misteriosa

conhecida. Mas a onda rápida brincou sobre o focinho curioso da menina, que então saiu

correndo, batendo forte as patas e espirrando água para todos os lados. Já toda salpicada de

grandes e pequenas gotas de salmoura grudadas a sua pelagem, a raposinha viu seu corpo brilhar

ainda mais forte sob o luar enquanto, no pega-pega, já ia e vinha brincando sem parar com a

sua nova amiga.

***

- Era o mar, a praia!

- Sim!

- A areia, o sal!

- Sim!

- Eu também quero ir na praia à noite, deve ser tão lindo, elas devem estar lá também!

- Mas ainda nossas raposinhas precisam voltar para casa!

VIII

Com seus corpos carregados, as duas raposas voltaram à toca. Mas naquela noite, grão a grão,

a pequena retirou da sua própria pelugem, das reentrâncias das suas próprias patas e tetas, o

velho sabor guardado em sua memória, e o dissolveu na língua lentamente. Depois, no escuro

silencioso de seu próprio corpo já em repouso, reencontrou o coração batendo acolchoado, o

hálito silencioso e forte da vida que lá fora sem amarras ainda corria na praia. De dentro,
pertinho, ouviu a cadência, vai e vem, da água - e feliz embalou-se pela primeira vez em seu

próprio e delicioso mar, imenso.

***

Feliz com o final feliz da história, saciada em sua curiosidade sobre os grãos misteriosos da

mamãe raposa, a garotinha se acomodou cansada no colo da sua mãe e, já sonolenta, resmungou

enquanto olhava a lata do foguete que permanecera quieto ao seu lado:

- Foguete, se um dia você me levar até as estrelas, vou trazer de lá o pó do céu para enfeitar a

minha mãe e a minha casa.

- E agora já é hora mesmo de voltar para casa! Vamos lá que hoje eu te carrego no colo!

- E amanhã vamos na praia?

- Sim, amanhã você vai ficar toda salgadinha de mar! – e no rosto já adormecido da menina a

mãe viu surgir um doce sorriso.

**

Depois de ouvir a história, o foguete, deixado sozinho no quintal escuro do museu, viu surgir a

primeira estrela e pensou: não apenas o céu é infinito, mas também a riqueza guardada em cada

uma das tocas espalhadas pela Terra toda. E embalado nos passos ligeiros das vizinhas raposas

que recomeçavam a vigiar cuidadosas ao redor de sua casa, ele dormiu seu pesado sono de

sucata.

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