Você está na página 1de 282

Śrī Śrīmad Bhakti Vijñāna Bhāratī Gosvāmī Mahārāja

VIÇUDDHA
CAITANYA
VÄËÉ
Editorial

Misericordiosamente, Śrī Caitanya Vāṇī (os ensinamentos do Avatar Dourado,


Śrī Caitanyadeva) se manifesta nestas páginas. Em primeiro lugar, ofereço mi-
nhas sinceras reverências (praṇāmas) ao abençoado aparecimento dessas ins-
truções tão elevadas.
O Avatar Dourado, Śrī Caitanyadeva, apareceu neste mundo como a
mais auspiciosa encarnação da doçura e do néctar dos divinos passatempos
(audārya-lila) de Śrī Kṛṣṇa-candra, A Pessoa do Infinito. Angustiado com as
misérias dessa Era de Ferro (Kali Yuga), Ele concedeu a bênção incomparável e
sem precedentes do íntimo e transcendental amor por Deus (śrī bhagavat-prema-
-rasa) para as almas deste mundo. O mestre universal (jagad-guru), Śrī Rūpa
Gosvāmīpada, ofereceu ao Avatar Dourado, Śrī Caitanyadeva, suas reverências
da seguinte maneira:
namo mahā-vadānyāya
kṛṣṇa-prema- pradāya te
kṛṣṇāya kṛṣṇa-caitanya-
nāmne gaura-tviṣe namaḥ
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 19.53)
Reverencio a Personificação da misericórdia absoluta. O próprio Śrī Kṛṣṇa é
o Senhor Caitanya, O Avatar Dourado que distribui amor puro por Deus a
todos, sem distinção.
Nesse verso, Śrīla Rūpa Gosvāmī dá uma breve descrição do nome, da
forma, das qualidades e dos passatempos de Śrī Caitanyadeva. Não existe ne-
nhuma diferença entre objetos e personalidades espirituais e seus nomes em si,
pois em Vaikuṇṭha, a morada transcendental de Deus, tudo é absoluto, livre da
presença da ignorância e da ilusão de māyā. Portanto, Śrī Caitanyadeva e Sua
palavra transcendental (vāṇī) não podem ser vistos como coisas separadas, pois
são não-diferentes. Sobre isso, está dito que:
vācyam vācakam ity udeti
bhavato nāma! svarūpa-dvayam
pūrvasmāt param eva hanta
karunam tatrāpi jānīmahe
yas tasmin vihitāparādha-
nivaham prānī samantād bhaved
āsyenedam upāsya so ’pi hi
sadānandāmbudhau majjati
Śrīla Rūpa Gosvāmī Śrī Kṛṣṇa-nāmāṣṭakam (6)
Ó Nome transcendental de Deus, no mundo material Você se manifesta
de duas formas: como a Superalma, dentro do coração de cada ser vivo
(vācya) e como a vibração do som dos Santos Nomes de Deus: Kṛṣṇa e
Govinda (vācaka), pronunciados com emoção pura. Sabemos que a Sua
segunda forma é mais misericordiosa para nós do que a primeira porque,
aos pronunciarmos os Santos Nomes, a forma original de Deus é adorada.
Mesmo aqueles que tenham cometido pecados e ofensas à Superalma são
mergulhados em um oceano de bem-aventurança.
Esse verso confirma que o nome transcendental de Deus (vācaka) é muito
mais misericordioso se comparado à Sua forma manifesta (vācya) dentro do
coração dos seres vivos, ao lado de suas almas individuais. De um modo seme-
lhante, os ensinamentos de Śrī Caitanyadeva são incalculavelmente benéficos e
misericordiosos.
Portanto, essa instrução divina deve se manifestar na casa de cada um dos
habitantes deste mundo em todos os idiomas de forma fácil e compreensível,
levando ao mundo inteiro incomparável bem-estar espiritual.
A luxúria material gera raiva, violência e animosidade, tanto a nível indi-
vidual quanto coletivo. Independentemente de classe social ou credo, todas as
pessoas deste mundo manifestam luxúria ao tentar satisfazer seus meros sen-
tidos materiais sem se conectar com Deus. Por isso, identificamos essa luxúria
como sendo a causa que incendeia a raiva, a violência e outros impulsos des-
prezíveis dos indivíduos, dos grupos sociais e de toda a população mundial. Por
outro lado, essa elevada instrução, a puríssima filosofia do Avatar Dourado, a
manifestação mais bondosa e benevolente de Deus, que é a personificação do
puro amor transcendental, espalha boa fortuna espiritual entre os seres vivos
deste mundo, sem distinção alguma.
Ao entrar pelos meus ouvidos, essas instruções limpam meu coração e ali
permanecem, dissipando completamente toda a sujeira e os maus hábitos acu-
mulados. Tais palavras me dão a oportunidade de escapar do ardente incêndio
florestal que é a vida material.
Śrī Caitanya Vāṇī estabelece a verdadeira posição constitucional da alma
(sva-svarūpa-udbobhinī); desperta a forma transcendental de Śrī Kṛṣṇa ao lado
da alma individual, no coração de cada um (śṛī kṛṣṇa-prabhodinī); está total-
mente saturado de amor transcendental por Deus (śrī kṛṣṇa-premamayī); Śrī
Caitanya Vāṇī também pode conduzir o devoto a um estágio de êxtase e lou-
cura quando ele está espiritualmente distante de Deus (śrī kṛṣṇa-viraha-unmā-
danā-pradāyinī). Simultaneamente a essas conquistas, a instrução do Avatar
Dourado elimina do coração humano o desejo pelos meros prazeres materiais
(viṣaya-tṛṣṇānāśinī).
Śrī Caitanya Vāṇī é a forma original do amor por Kṛṣṇa (śrī kṛṣṇa-prema-
-svarūpinī). O contato sem restrições com esse ensinamento sagrado vai demo-
lir a teia de ilusões criada pelos três modos da natureza material (guṇas) e vai
elevar a alma condicionada à plataforma espiritual (Vaikuṇṭha). Atualmente,
políticas públicas, políticas sociais, econômicas e mesmo religiosas se conta-
minaram com a imoralidade, pela influência desta Era de Ferro (Kali Yuga). O
modo da ignorância (tamo-guṇa) está se alastrando e, por isso, o caráter hu-
mano está sendo corrompido - tanto na vida pública quanto na privada - atra-
vés da disseminação de mentiras que manipulam as massas e conspirações que
satisfazem interesses egoístas em nome de um falso patriotismo; a propagação
vergonhosa de mentalidades estreitas, disfarçadas sob o manto de manifesta-
ções liberais sócio-políticas; falsidade absoluta em nome da economia, a pon-
to de alimentos e medicamentos serem adulterados; há até mesmo falsidade,
traição e imoralidade no campo religioso. Em um momento assim lamentável,
oro profunda e sinceramente para a difusão ilimitada de Śrī Caitanya Vāṇī, a
mensagem da devoção pura (vārttā-vāhikā) por Śrī Kṛṣṇa, a Pessoa da verdade
suprema, e por Caitanyadeva, a personificação do ponto máximo do amor por
Deus (kṛṣṇa-prema).
Śrī Caitanya Vāṇī é a palavra que ensina como amar a Deus. Somente esse
amor pode estabelecer a verdadeira felicidade e a união entre indivíduos e
comunidades. Posso dizer com a maior confiança que, além desse amor, não
existe nenhuma política mundana, seja econômica, social, nacional ou mes-
mo religiosa, que possa ter sucesso para estabelecer a paz entre os membros de
qualquer família, comunidade ou país – o que dizer do mundo inteiro...
Portanto, neste dia muito abençoado, faço minha sincera oração aos pés de
lótus do Avatar Dourado e de Sua Śrī Caitanya Vāṇī, para que ela possa espalhar
sua misericórdia por todo o mundo: "Ó Śrī Caitanya Vāṇī! Misericordiosamen-
te envolva a mim e todas as pessoas deste mundo em Seu serviço amoroso e,
assim, revele Tua misericórdia sem precedentes para todos.”
Todas as glórias a Śrī Caitanya Vāṇī! Todas as glórias a Seus servos e a todos
os cavalheiros que conhecem e respeitam Sua existência! Que todos os povos do
mundo se ocupem em ouvir e falar sobre tais ensinamentos puríssimos e, assim
fazendo, que sigam adiante pelo auspicioso caminho da boa fortuna espiritual.
Introducão
,

Os puríssimos ensinamentos do Avatar Dourado (Viśuddha Caitanya vāṇī em


sânscrito) compõem a mais perfeita flor do conhecimento espiritual (amnāya-
-vāṇī). Eles são difundidos por meio da impecável sucessão de mestres e discí-
pulos vaiṣṇavas, o guru-paramparā. Tal elevado conhecimento sobre a devoção
a Deus e o processo para alcançar o Absoluto é transmitido oralmente (kīrtana)
por esses mesmos mestres.
Ao ouvir tais ensinamentos (śravaṇa), essa sublime instrução eventual-
mente se estabelece no coração de um discípulo sincero (sat-siśya).
Os companheiros íntimos (antaraṅga-parikaras) do Avatar Dourado, Śrī
Chaitanya Mahāprabhu, são os guardiões dessas puríssimas instruções . Tais
devotos difundiram essa filosofia de maneira perfeita, sem a menor alteração:
Śrīla Svarūpa Dāmodara Gosvāmī, Śrī Rāya Rāmānanda, Śrīla Rūpa Gosvāmī,
Śrīla Sanātāna Gosvāmī, Śrīla Raghunātha dāsa Gosvāmī e Śrīla Kṛṣṇadāsa
Kavirāja – eles são considerados os guardiões desse ensinamento perfeito.
Posteriormente, o grande Śrīla Viśvanātha Cakravartī Ṭhākura manteve
intacta a tradição, transmitindo essa mesma puríssima instrução. Na era moder-
na, Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura e seu sucessor, Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī
Prabhupāda, codificaram e ensinaram esse puro processo devocional. Śrī
Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja e outros discípulos de
Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Prabhupāda também são representantes fide-
dignos dessa divina sucessão.
Assim como o Avatar Dourado, Śrīman Chaitanya Mahāprabhu está eter-
namente rodeado por tais companheiros íntimos, Suas instruções (vāṇī) estão
intrinsecamente coligadas ao ensinamento de cada um dos Seus seis discípulos.
Portanto, o termo Viśuddha Caitanya vāṇī é definido como a personificação
dos ensinamentos e da conduta de Śrīman Chaitanya Mahāprabhu e, simulta-
neamente, de todos os Seus companheiros e discípulos.
O único objetivo dos seguidores puros desta Viśuddha Caitanya vāṇī é ob-
ter amor por Deus (kṛṣṇa-prema), o mesmo amor presente nos corações das
camponesas e donzelas do lugar onde Deus Se manifesta. Tais camponesas (as

7
Viśuddha Caytania-Vāṇī

vraja-gopīs), são as almas eternamente livres da ilusão material que docemen-


te acompanham Krishna em Seus passatempos eternos, as quais, em um gesto
destemido, deram a poeira de seus pés ao Supremo Śrī Krishna para aliviar Sua
dor de cabeça.
Śrī Chaitanya Mahāprabhu apareceu na Terra com o intuito de espalhar
esse específico e perfeito amor por Deus (prema), amor tão puro que não era
distribuído ao mundo há eras e milênios.
Esse mesmo kṛṣṇa-prema se distingue por ser desprovido de qualquer de-
sejo de obter vantagens pessoais ou de satisfazer os meros sentidos materiais
(ātmendriya-prīti-vāñca). Tal ensinamento, essa Viśuddha Caitanya vāṇī, é o
verdadeiro tesouro do mundo absoluto – Goloka Vṛndāvana. Aqueles que al-
cançam a compreensão dessa filosofia são bem-aventurados, pois aspiram ape-
nas satisfazer os desejos mais íntimos do coração do Supremo Śrī Krishna, sem
se preocupar com qualquer consequência. De fato, para servir Krishna, eles não
temem a hipótese de residir permanentemente num mundo infernal.
Tais devotos dedicados rejeitam até mesmo as preocupações vividas pelo
servidor pessoal do Avatar Dourado, o humilde Śrī Govinda Prabhu que, devi-
do ao medo de ofender a Śrī Caitanya Mahāprabhu, colocou um pano sobre o
Senhor, que repousava, antes de passar por cima Dele, enquanto executava Seus
serviços.
Devido à influência da Era de Kali, hedonistas que vivem para a exclusiva
satisfação dos sentidos materiais e indivíduos sem qualidades éticas e morais –
os quais, no fundo, possuem desprezo pelas instruções das escrituras védicas
– têm, de tempos em tempos, tentado ocultar ou distorcer a verdadeira forma
dessa puríssima Viśuddha Caitanya vāṇī para seu benefício pessoal.
Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura declara no śruti-phala (as gloriosas conclu-
sões) do livro Jaiva Dharma:
pṛthivīte ĵata kathā dharma-nāme cale
bhāgavata kahe saba paripūrṇa chalé
Todas as filosofias que nascem neste mundo material e que são celebradas
como se fossem religião (dharma) foram intensamente condenadas pelo
Śrīmad Bhāgavatam como sendo temporárias e extremamente enganosas.
Devido à presença de tanta ideologia falsa e imprecisa no mundo atual, so-
mos forçados a apresentar essa instrução impecável (Viśuddha Caitanya vāṇī)
neste exato e oportuno momento, ao mesmo tempo em que muitos falsos segui-
dores do Avatar Dourado Caitanya Mahāprabhu pregam uma religião de enganos
e trapaças (chala-dharma) em nome do próprio vaiṣṇavismo da Gauḍīya Mātha .
Nosso objetivo é preservar a verdadeira forma dessa Viśuddha Caitanya

8
Introdução

vāṇī o máximo que conseguirmos, da melhor maneira possível.


Se existe um crédito relativo à publicação e à revelação desses sublimes en-
sinamentos, ele não é meu, mas do meu mais adorado (paramārādhyatama)
Guru Mahārāja e da nossa sucessão discipular , tão profundamente ligada a
Śrīla Rūpā Goswami (rūpānuga guru-varga).
Os organizadores desta antologia apresentam a elevadíssima filosofia, que
chegou até nós através do trabalho prévio dos nossos mais proeminentes mes-
tres (ācāryas), e que é repetida aqui exatamente como foi ouvida.
Pessoalmente, repito tudo de maneira clara, assim como escutei no pas-
sado, sem o menor traço de invenção pessoal.
A glorificação presente no texto, relativa à personalidade dos meus con-
temporâneos durante os fatos narrados no livro, reproduz o modelo da conduta
que testemunhei diretamente no comportamento da nossa perfeita sucessão de
mestres e discípulos (guru-varga) quando eles próprios glorificavam seus con-
temporâneos e queridos irmãos espirituais.
Embora os artigos nesta publicação tenham sido adaptados com base nas
minhas aulas em diferentes locais, eles não foram pronunciados na forma em
que estão apresentados aqui.
Deve-se compreender que foram escritos no estilo de bhāva-anuvāda – isto
é, não são traduções palavra por palavra de meus discursos em hindi. Por isso,
foram realizados ajustes editoriais para que as emoções e os significados conti-
dos na intenção das minhas palavras fossem transmitidos de maneira legítima.
Normalmente, em meus discursos, estou menos preocupado em preservar
uma cronologia ou uma sequência temporal e mais interessado em evidenciar
humores e tópicos pertinentes aos temas tratados, que surgem espontaneamen-
te em meu coração durante as aulas.
Além disso, devido a minha idade avançada e à memória enfraquecida,
minha mente frequentemente passeia por diferentes assuntos. Assim, meus
discursos poderiam ser percebidos como um tanto desconexos. Desse modo,
os editores tentaram colher os pontos mais significativos dessas aulas para apre-
sentá-los de maneira organizada em artigos distintos.
Após compilar cada artigo, eles pontualmente liam o texto para mim e in-
cluíam qualquer correção ou ponto adicional que eu indicasse durante a leitura.
Assim, eles organizaram tanto o conteúdo quanto a linguagem.
Já que todos os artigos neste livro são como capítulos separados, não há uma
sequência específica na qual ele deva ser lido; o leitor fica livre para parar e reco-
meçar em qualquer ponto que deseje sem perder a sequência lógica dos textos.
Sou profundamente grato aos devotos envolvidos nesta publicação, por

9
Viśuddha Caytania-Vāṇī

seus ardentes esforços e ao seu genuíno desejo de preservar e compartilhar esta


Viśuddha Chaitanya Vāṇī. Portanto eu lhes concedendo minhas bênçãos mais
sinceras.
A seriedade desta publicação certamente será apreciada pelos vaiṣṇavas
que já não possuem inveja alguma em seus corações (nirmatsara), pois con-
seguem diferenciar com facilidade aquilo que definimos como viśuddha (pu-
ríssima) Chaitanya Vāṇī e viddha (impura) Chaitanya Vāṇī. Como resultado
de ouvir com total atenção esta Viśuddha Chaitanya Vāṇī, devotos sinceros se
tornarão aṛnī (purificados de todas as dívidas acumuladas neste mundo mate-
rial) e apravāsī (confortáveis dentro deste conhecimento, como se estivessem
em sua terra natal). Minha firme convicção é de que todos os que lerem esta
Viśuddha Chaitanya Vāṇī com fé resoluta encontrarão a boa fortuna espiritual
mais elevada.
Queridos leitores, pelo fato de vocês aspirarem à purificação e a se torna-
rem devotos obstinados do Senhor – que é a fonte de todo o êxtase (bhāva-grahī
Janardana) , tenho certeza que lerão esta publicação com sinceridade (sad-
-bhāva) e habilmente conseguirão extrair sua essência.

Vaiṣṇava dāsānudāsa, humilde servo dos que servem os vaiṣṇavas,

Bhakti Vijñāna Bhāratī

10
O processo para alcancar o objetivo mais querido da alma

O processo para alcancar


,
o objetivo mais querido da alma

Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī escreveu em seu Śrī Caitanya-caritāmṛta


(Ādi līlā 1.20, 21):
guru, vaiṣṇava, bhagavān—tinera smaraṇa
tinera smaraṇe haya vighna-vināśana
anāyāse haya nija vāñchita-pūraṇa
Ao nos lembrarmos de śrī guru, dos vaiṣṇavas e de Deus (Bhagavān), todas
as dificuldades são completamente destruídas e o desejo final é facilmente
alcançado.
Nesses versos, a palavra smaraṇa significa ‘lembrar-se’, mas a concepção de
Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura é de que a verdadeira lem-
brança surge apenas sob o efeito do canto dos Santos Nomes (kīrtana prabhāve
smaraṇa hôibe). Segundo ele, esse canto dos Santos Nomes (kīrtana) deve ser
sempre executado com um sentimento de entrega, de rendição profunda, seguin-
do os passos e o caminho (anugatya) de śrī guru, dos vaiṣṇavas e de Bhagavān. A
expressão vighna-vināśana significa que todos os obstáculos no caminho da de-
voção (bhakti) são totalmente destruídos, já a expressão nija-vāñchita refere-se
ao objetivo mais querido da alma: amor puro por Deus (kṛṣṇa-prema).
Até alcançarmos esse elevado objetivo, o amor puro por Deus (kṛṣṇa-prema),
não conseguimos obter satisfação ao perseguirmos nossos desejos mundanos,
nem mesmo se adquiríssemos todos os objetos ou opulências materiais dispo-
níveis nos catorze sistemas planetários deste universo. Se mesmo os desejos dos
semideuses – tais como Indra, Brahmā e Śiva – permanecem incompletos se
eles não obtêm o supremo objetivo, que é kṛṣṇa-prema, o que dizer então das
entidades vivas comuns deste mundo material?
Quando devotos como Vidura, Sudāmā Brāhmaṇa, Śrīdhara Paṇḍita (que
participou dos passatempos do Avatar Dourado – caitanya-līlā) e outros ob-
tiveram kṛṣṇa-prema, eles não manifestaram mais desejos materiais em seus
corações. Até mesmo quando o próprio Deus (Bhagavān) desejou oferecer-
-lhes algo, eles humildemente recusaram. Quando Mahārāja Citraketu aceitou
a maldição de Pārvatī e se tornou o demônio Vṛtrāsura, mesmo naquela forma

11
Viśuddha Caytania-Vāṇī

demoníaca ele não desejou nada além do objetivo mais elevado da alma, kṛṣṇa-
-prema, o amor puro por Deus.
Para obter esse amor puro por Deus, que é incrivelmente raro, é absoluta-
mente essencial receber a misericórdia de śrī guru, dos vaiṣṇavas e de Bhagavān.
A menos que uma pessoa sinceramente se abrigue em seus pés de lótus e siga seus
passos, todos os seus esforços em executar bhakti-yoga não produzirão frutos.

12
O processo para alcancar o objetivo mais querido da alma

13
Çré Çrémad Bhakti Dayita
Mädhava Gosvämé Mahäräja

Antes de fazer parte da Gauḍīya Maṭha, meu paramārādhyatama Guru


Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja, trabalhava
para um grupo de ingleses que comprava linhaça dos agricultores, embalando
e enviando-a para a Inglaterra. A maioria dos empregados trabalhava sob a
gerência de meu Guru Mahārāja. Certo dia, Guru Mahārāja descobriu que
alguns dos empregados estavam adulterando o produto, substituindo as se-
mentes por areia durante o processo de embalagem. A linhaça roubada era
vendida e os lucros, compartilhados entre os envolvidos no furto. Quando
Guru Mahārāja soube disso, ele foi até o dono da empresa e disse: “Alguns de
nossos empregados estão fazendo uma coisa horrível. A nossa reputação está
sendo arruinada por causa da desonestidade de alguns funcionários. Cometi
um grande erro ao confiar neles cegamente. Portanto, você deve mandar me
prender. Não faço ideia de quando eles começaram a fazer isso. Mas não estar
sabendo de um ato assim vergonhoso não tira a minha responsabilidade e
não deve ser aceito como uma desculpa. Depois de mandar me prender, você
pode mandar prendê-los também.”
O dono da empresa ficou extremamente surpreso com a honestidade in-
comparável do meu Guru Mahārāja. Ele tentou pacificar Guru Mahārāja, di-
zendo: “Esse é um problema delicado. Por favor, saiba que lidaremos com isso
da maneira mais sensata possível.” Mais tarde, os trabalhadores receberam
um aviso firme para que parassem com o furto, caso contrário seriam denun-
ciados à polícia.

Desejando somente o bem-estar de todos


Quando Guru Mahārāja trabalhava em Calcutá antes de morar no templo
(maṭha), ele teve uma dor de dente. Como um remédio rápido para reduzir
a dor, um de seus colegas lhe deu um pouco de tabaco para que ele colocasse
na gengiva. Ao longo de sua vida, meu Guru Mahārāja nunca havia sentido
o cheiro de substâncias intoxicantes e, portanto, quando ele colocou o taba-
co na boca, desmaiou imediatamente, não conseguindo tolerar o seu ardor.

15
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Todo o seu corpo ficou roxo. Parecia que ele havia sido envenenado. Seu co-
lega ficou muito assustado e sem saber o que fazer. Guru Mahārāja foi então
levado ao Śambhunātha Paṇḍita Hospital. Depois do tratamento, sua saúde
se recuperou. O médico e o oficial de polícia perguntaram: “Quem você acha
que te envenenou?” Guru Mahārāja respondeu: “A pessoa que me deu tabaco
– e não veneno – é meu amigo, fez isso somente para o meu bem-estar. Meu
corpo simplesmente rejeitou o tabaco. Ele não tinha más intenções.”
Após ouvirem a resposta de Guru Mahārāja, o médico e o policial saíram
da sala. O colega que lhe deu tabaco então disse: “Se você tivesse mencionado
meu nome, eu não teria somente perdido meu emprego, mas também acabaria
preso.” Guru Mahārāja respondeu: “Não quero ser a causa do sofrimento de
ninguém. Não posso acusar nem suspeitar de ninguém falsamente. Eu desejo
somente o bem estar de todos e nada além disso.”

O respeito adequado às imagens de Deus (Bhagavān)


e aos Seus devotos
Quando Guru Mahārāja se abrigou sob os pés de lótus de Śrīla Pra-
bhupada Bhaktisiddhānta mas ainda não possuía desejo de residir no templo
(maṭha), ele morava em um casarão alugado em Calcutá. Na época, ele ga-
nhou de um parente artista um retrato a óleo de Śrī Caitanya Mahāprabhu,
que ele pendurou na sala da casa. Ele costumava se sentar diante da pintura
para cantar os Santos Nomes e fazer orações (kīrtana) com seu irmão espiri-
tual Śrīpāda Nārāyaṇa Mukherjee, e seu amigo Śrī Haridāsa.
Certa vez, num dia de arrecadação de donativos (bhikṣā), seu irmão espiritu-
al Śrī Śrīmad Bhakti Prakāśa Araṇya Gosvāmī Mahārāja foi até sua casa acompa-
nhado de Śrīpāda Kīrtana Prabhu. Ao ver o retrato de Śrī Caitanya Mahāprabhu
na sala, Śrīla Araṇya Gosvāmī Mahārāja perguntou a Guru Mahārāja: “Você
fica feliz ao ver esse retrato de Śrīman Mahāprabhu?”Guru Mahārāja respon-
deu: “Sim, Mahārāja-jī. Eu fico.”
Śrīla Araṇya Gosvāmī Mahārāja respondeu com seriedade: “É o dever
de Śrīman Mahāprabhu lhe dar prazer enfeitando sua sala ou é você quem
deveria se esforçar para dar prazer a Ele?”Śrīla Araṇya Gosvāmī Mahārāja
então perguntou a Guru Mahārāja: “Você aceitou Śrīla Prabhupāda como seu
mestre espiritual. De que maneira você organizou sua alimentação?”
Guru Mahārāja respondeu:“Eu contratei um brāhmaṇa da Orissa para fazer as
preparações. Ele é responsável por tudo relacionado aos serviços da cozinha.”
Ao ouvir isso, Śrīla Araṇya Gosvāmī Mahārāja confrontou Guru Mahārā-
ja: “Por acaso um crocodilo comeu sua mão? Por que você não pode cozi-

16
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

nhar os alimentos (bhoga) e oferecer pessoalmente a Deus (Bhagavān) sem


precisar de terceiros?”
Antes que Guru Mahārāja pudesse responder, Śrīpāda Kīrtana Prabhu
sussurrou para Śrīla Araṇya Gosvāmī Mahārāja: “Não fale assim. Ele vem de
uma família aristocrática. Não faz sentido esperar que ele cozinhe por conta
própria; ele não tem experiência com essas coisas. Palavras duras podem fa-
zer ele perder a fé na Gauḍīya Maṭha e ficar insatisfeito conosco.”
Embora Śrīpāda Kīrtana Prabhu estivesse sussurrando, Guru Mahārāja
ouviu tudo. Śrīla Araṇya Gosvāmī Mahārāja ficou ainda mais insatisfeito após
ouvir o que Śrīpāda Kīrtana Prabhu tinha dito e respondeu: “Se eu não falar,
quem vai falar? Ele é meu irmão espiritual e exatamente por isso eu tenho o
direito de explicar a ele o que eu quiser e a qualquer hora.”
Guru Mahārāja ficou extremamente feliz ao ouvir isso. Aquele sentimen-
to de posse, cheio de afeto (mamatā) que Śrīla Araṇya Gosvāmī Mahārāja
demonstrou por ele era algo inédito. Guru Mahārāja se sentiu extremamente
agradecido a ele por toda a vida, servindo Śrīla Mahārāja com muito entu-
siasmo sempre que teve oportunidade.
Śrīla Araṇya Gosvāmī Mahārāja sempre dizia que o nome de Deus (Bha-
gavān) e Sua forma—o que inclui representações e retratos—são não-di-
ferentes do Próprio Deus (Bhagavān). Aceitando esse ensinamento com fé
sólida e firme, Guru Mahārāja, através de sua própria conduta, exemplificava
o padrão através do qual devemos mostrar respeito adequado às imagens de
Deus (Bhagavān) e de Seus devotos puros. Ele não pendurava tais imagens
aqui e ali de maneira frívola, nem permitia que seus discípulos tivessem uma
atitude assim irresponsável. Ele enviou a pintura a óleo de Śrīman Mahāpra-
bhu para a Bāgbāzār Gauḍīya Maṭha, onde ela era exibida numa carruagem
durante todas as procissões de canto de mantras ao ar livre (nagara-saṅkīrta-
na) que eram organizadas pelo templo.
Quando o templo da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha foi construído, Guru
Mahārāja instalou pinturas de toda a sucessão discipular (guru-param-
parā) na sala de cerimônias. Ele estabeleceu o padrão correto de se respeitar
as imagens sagradas do Senhor e Seus devotos puros oferecendo reverências
(daṇḍavat-praṇāma) a elas diariamente.
Um cargo novo em uma empresa respeitável
Na época em que Guru Mahārāja trabalhava para os ingleses, o superior a
quem ele fazia os relatórios era um administrador indiano. Mas quando o
dono da empresa observou pessoalmente as habilidades, as competências e

17
Viśuddha Caytania-Vāṇī

as capacidade inigualáveis de Guru Mahārāja – além do hábito de nunca ficar


parado e seu grande entusiasmo –, ele passou a chamá-lo diretamente: “Mister
Banerjee! Mister Banerjee!”
Depois que Guru Mahārāja deixou seu emprego e passou a residir de-
finitivamente sob o refúgio da Gauḍīya Maṭha, por instrução de Śrīla Pra-
bhupāda Bhaktisiddhānta, seu primeiro serviço foi acompanhar um grupo de
pregadores até Madras (atual Chennai). Naquela época, ele recebeu uma carta
de seus colegas de trabalho, dizendo: “Eu imagino que você agora esteja tra-
balhando em uma empresa maior que a nossa e que esteja ganhando milhões,
mais do que ganhava aqui; caso contrário, como você teria ido embora com
tanta pressa sem informar a ninguém, considerando que o dono da empresa
gostava muito de você, sempre lhe recorrendo, mesmo na presença de seus
superiores?”
Em sua resposta, Guru Mahārāja escreveu:“O que vocês escreveram está
certo. Eu assumi uma posição de grande responsabilidade em uma empresa
gigantesca. O salário que recebo aqui é inimaginável. Eu oro sinceramente
para que vocês me abençoem e para que meu cargo nessa empresa se torne
permanente.”

Deus (Bhagavān) mantém a todos


Guru Mahārāja tinha um amigo chamado Śrī Haridāsa, que o visitava com
frequência antes de Guru Mahārāja se mudar para o templo (maṭha). Eles fa-
ziam kīrtana juntos. Depois de ficar em Calcutá por um tempo, Guru Mahārā-
ja foi pregar em Madras depois de se tornar membro da Gauḍīya Maṭha, de
acordo com as instruções de Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta. Assim que os
programas em Madras terminaram, ele voltou para Calcutá.
Certa vez, quando Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta tinha programa-
do uma palestra (hari-kathā) no Darbhanga Hall na Kolkata University, meu
Guru Mahārāja pediu que Śrī Haridāsa o acompanhasse para ouvir o discurso
de Śrīla Prabhupāda, mas Śrī Haridāsa respondeu: “Não tem ninguém cho-
rando atrás de você; você não é casado e você não tem filhos. Mas eu tenho
esposa e um menino e preciso ampará-los. Se eu não pensar no sustento de-
les, quem pensará? Como eles terão uma vida boa? Acompanhar você ao pro-
grama e ouvir a palestra (hari-kathā) exige tempo. Se eu ocupar esse tempo
ganhando dinheiro para a minha família, eles terão uma vida melhor.” Guru
Mahārāja não disse mais nada e foi sozinho ouvir a palestra (kathā) de Śrīla
Prabhupāda Bhaktisiddhānta.
Alguns anos depois, Guru Mahārāja soube através de um outro amigo e

18
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

irmão espiritual, Śrī Nārāyaṇa Mukherjee, que Śrī Haridāsa havia morrido em
um acidente de carro.
Anos mais tarde, depois que meu Guru Mahārāja construiu o templo da
Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha em Calcutá, o filho de Śrī Haridāsa visitou o tem-
plo (maṭha) para ver (darśana) meu Guru Mahārāja. Quando ele viu o rapaz
prestando-lhe reverência (praṇāma) com grande fé e devoção, ele perguntou
quem era e de onde vinha. O rapaz respondeu: “Eu sou o filho de seu amigo
Haridāsa.” Guru Mahārāja então perguntou sobre o bem-estar de sua família,
sua casa e seu trabalho e deu ao rapaz alimentos oferecidos a Deus no altar
(prasāda) antes de ele ir embora.
Logo mais, Guru Mahārāja contou sobre o incidente de Śrī Haridāsa e
nos ensinou: “O pai dele costumava perguntar: ‘Quem vai manter minha fa-
mília se eu não trabalhar?’ Mas notem que sua família está sendo mantida até
mesmo depois de sua morte. Todas as coisas necessárias para a manutenção,
para os estudos e para as outras necessidades de qualquer pessoa são forneci-
das e orquestradas pelo Próprio Deus (Bhagavān) e mais ninguém.”
prakṛteḥ kriyamāṇāni
guṇaiḥ karmāṇi sarvaśaḥ
ahaṅkāra-vimūḍhātmā
kartāham iti manyate
Śrīmad Bhagavad-gītā (3.27)
Todos os aspectos da ação material são executados pelos modos da natu-
reza (guṇas), porém aquele cuja inteligência é dominada pelo falso ego (e se
de identifica com o próprio corpo), pensa que é o único responsável pela ação.

Desamarrando os profundos nós de meu coração


Quando me refugiei aos pés de lótus de meu Guru Mahārāja e me tornei um
jovem monge no templo (brahmacārī) em tempo integral na Śrī Caitanya
Gauḍīya Maṭha, eu ainda tinha muitos nós que atavam meu coração na forma
de fortes impressões mentais (samskaras), que eu conservava por ter nascido
em uma família de brāhmaṇas. Porém, Guru Mahārāja desfez sistematica-
mente todos esses nós citando trechos das escrituras e me fazendo compre-
ender totalmente o significado do seguinte verso:
tato duḥsaṅgam utsṛjya
satsu sajjeta buddhimān
santa evāsya chindanti
mano-vyāsaṅgam uktibhiḥ
Śrīmad-Bhāgavatam (11.26.26)

19
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Por todos esses motivos, uma pessoa inteligente rejeita companhias pre-
judiciais e passa a cultivar a companhia de pessoas santas. É porque somente
personalidades santas, com suas instruções poderosas e virtuosas, podem re-
mover os apegos materiais e mundanos do coração.
Ao desfazer esses nós, ele demonstrou sua compaixão sem limites, uma
tolerância imperturbável e compreensão extensa dos significados inerentes às
declarações das escrituras.
Na minha vida antes da renúncia (purva-aśrama), eu aceitava honrar a
prāsada somente se alguém nascido em uma família de brāhmaṇas tivesse
cozinhado, oferecido pessoalmente a Deus (Bhagavān) e então servido a to-
dos; se não fosse assim, eu não comia. Mantive essa prática até mesmo após
estar na companhia dos Gauḍīya Vaiṣṇavas, durante seis anos. Quando mais
tarde me mudei para o templo (maṭha), Guru Mahārāja, sendo completa-
mente consciente de meus hábitos, durante os primeiros cinco anos de minha
estadia ocupou somente os brahmacārīs nascidos em família de brāhmaṇas
nos serviços culinários, bem como na adoração às deidades, na distribuição
de prasāda e de caraṇāmṛta [NOTA].
Durante esse período, eu honrava prasāda sozinho, longe de todos os ou-
tros. Guru Mahārāja, então, pediu a um brahmacārī nascido em família de
brāhmaṇas que entregasse prasāda diariamente em meu quarto.
Eu honrava a prasāda de meu prato e não repetia outras porções. Eu con-
siderava que, após começar a comer, a prasāda restante em meu prato ime-
diatamente se transformava num resto de comida (ucchiṣṭa) e, portanto, não
era mais sagrada e adequada para ser consumida. Portanto, para manter o que
estava no prato ainda puro, eu segurava o prato com a minha mão esquerda
mantendo um pouco de grama kuśa - o sagrado e incontaminável vetiver -
entre o meu polegar e o prato. [NOTA] Além disso, eu ficava em total silêncio
enquanto me alimentava e honrava a prasāda, e se alguém me chamasse em
tal momento, eu imediatamente parava de comer, pois considerava que tal
pessoa havia me tocado através do som, deixando-me assim em uma condi-
ção impura e inadequada para honrar o alimento oferecido no altar (prasā-
da). Além disso, eu considerava humilhante até mesmo pisar na propriedade
de um vendendor de óleo (telī), de um homem de negócios (sāhā) ou de um
ourives. Eu jamais aceitaria comer a prasāda servida em tais lugares. [NOTA]
Quando Guru Mahārāja fundou a Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha em 1955,
numa propriedade alugada na Avenida Rāsa-bihārī 86A em Calcutá, eu me
mudei permanentemente para o templo. Lá, meu Guru Mahārāja me ins-
truiu de maneira indireta dizendo: “É verdade que os Vedas nos aconselham

20
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

a evitar conversas, manter silêncio completo e nos lembrar de Deus enquanto


honramos o alimento oferecido no altar (prasāda). Os seguidores de Śrīman
Mahāprabhu sabem, porém, que há algo ainda superior a manter a lembrança
do Supremo em mente enquanto nos alimentamos: “paraṁ vijayate śrī-kṛṣṇa-
-saṅkīrtanam – que o canto e a glorificação de Śrī Kṛṣṇa vença e prevaleça
eternamente”, “kīrtanīyaḥ sadā hariḥ –, ou seja, devemos sempre cantar as
glórias e os Santos Nomes do Senhor”; e “harer nama harer nāma harer nāma
harer nāmaiva kevalam kalau nāsty eva nāsty eva nāsty eva gatir anyathā” – a
única maneira de nos livrarmos desta Era de Kali é cantar os Santos Nomes,
os Santos Nomes de Deus; não há outro caminho, não há outro caminho,
não há outro caminho. Os vaiṣṇavas da Gauḍīya, portanto, preferem cantar
as glórias do Supremo e da mahā-prasāda (a porção de alimento abençoada
por Deus e por Seus devotos puros ao se alimentarem) e, assim, usam aquele
momento da maneira mais adequada possível.”
Depois de ouvir as palavras de Guru Mahārāja e de ter meditado muito
sobre elas, eu concluí que cantar as glórias do Supremo (kīrtana) é imen-
samente superior a ficar em silêncio enquanto honramos nossos alimentos
sagrados (prasāda). A partir de então, mesmo ainda comendo sozinho, eu
passei a repetir os Santos Nomes (kīrtana) ao aceitar a prasāda.
Algum tempo depois, pela infinita misericórdia do meu Guru Mahārāja,
manifestou-se em meu coração a compreensão de que todos os devotos do
Avatar Dourado, Śrīman Mahāprabhu, comiam juntos – a partir de então, re-
solvi nunca mais me privar da companhia dos vaiṣṇavas e, assim, passei a me
sentar com os outros devotos para aceitar a misericórdia do alimento (prasā-
da). Assim, a restrição que eu tinha imposto a mim mesmo de aceitar a prasā-
da somente se fosse distribuída pelas mãos de um devoto que tivesse nascido
numa família de brāhmaṇas também se foi – e as glórias da mahā-prasāda
finalmente se manifestaram no meu coração, cada vez mais. Então eu passei a
aceitar o que quer que os devotos já iniciados servissem aos vaiṣṇavas.
Um dia, o devoto que estava oferecendo uma segunda porção aos vaiṣṇa-
vas não entendeu o gesto que eu fiz com as mãos para indicar a exata quanti-
dade de prasāda que eu queria e, questionando o motivo pelo qual eu não me
comunicava em voz alta, colocou no meu prato uma quantidade de prasāda
bem maior do que o necessário.
Eu me senti incomodado, parei de comer e imediatamente saí. Mais tar-
de, acabei entendendo que se os vaiṣṇavas são o objeto do nosso serviço, não
é apropriado deixar de responder quando eles nos fazem alguma pergunta.
Portanto, o meu hábito de não falar mais com ninguém ao honrar os alimen-

21
Viśuddha Caytania-Vāṇī

tos oferecidos no altar chegou ao fim, assim como também se foi o meu hábi-
to de aceitar somente uma porção de prasāda. [NOTA]
Em Jagannatha Puri eu pude comprovar que a mahā-prasāda nunca deve
ser considerada um resto ou estar contaminada (ucchiṣṭa). Assim, meu hábi-
to de manter uma folha de vetiver (grama kuśa) entre o meu dedo e o prato
também desapareceu.
Durante uma das peregrinações em Navadvipa-dhama, todo o grupo de
peregrinos se reuniu para ouvir hari-katha e honrar a prasāda à sombra de
uma gigantesca árvore Pippala, que crescia na propriedade de um fabricante
de óleo. Lá, estavam servindo floco de arroz hidratado, misturado com rapa-
dura (guḍa), tamarindo e outros ingredientes. Depois que todos terminaram
de honrar a prasāda, os devotos que ficaram responsáveis pelo serviço tam-
bém se alimentaram. Normalmente, Śrī Acintya-govinda Prabhu, Śrī Viṣṇu
dāsa Prabhu e eu servíamos junto com alguns outros devotos a prasāda dos
sannyāsīs e daqueles que viviam no templo (maṭhavāsīs). Naquela época, eu
considerava inapropriado pisar na propriedade de um vendedor de óleo, mas
acabei entrando com um certo pesar, me lembrando de uma canção sagrada
(kīrtana) de Śrī Narotamma dāsa Ṭhākura que eu tinha ouvido dos lábios de
lótus de meu Guru Mahārāja:
śrī gauḓa-maṇḍala-bhūmi,ĵebā jāne cintāmaṇi,tā’ra haya
vraja-bhūme vāsa
Aquele que sabe que a sagrada terra de Śrī Gauḍa-maṇḍala equivale a
uma pedra filosofal que realiza desejos espirituais, alcança a sagrada morada
de Vraja, o mundo espiritual.
Eu também me lembrei de uma frase dita por Śrī Gaura-kiśora dāsa Bābā-
jī Mahārāja: “Nem o homem mais rico do mundo pode comprar uma partí-
cula de poeira da morada eterna e transcendental (dhāma).” Mesmo tendo
superado a minha restrição em pisar naquela terra, eu ainda estava relutante
em aceitar a prasāda ali. Observando a minha relutância e pensando em mim,
Guru Mahārāja citou em voz alta uma frase escrita por um antigo mestre da
nossa linhagem (purva-ācārya), Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura:

śvapaca-gṛhete, māgiyā khāibô,


pibô sarasvatī-jalapuline puline,
gaḓāgaḓi dibô,
kôri’ kṛṣṇa-kolāhala
Śaraṇāgatī (8.1.2)

22
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

Eu vou comer do que eu mendigar à porta dos intocáveis e beber a água


do Rio Sarasvatī. Eu vou rolar no chão, na beira do rio gritando e chamando
os nomes de Śrī Kṛṣṇa. Compreendendo as intenções e o desejo profundo no
coração de meu Guru Mahārāja, coloquei alguns grãos daqueles flocos de ar-
roz em minha boca enquanto eu estava de pé na frente dele.
Certa vez, eu acompanhei Guru Mahārāja e muitos outros devotos du-
rante uma turnê de pregação na cidade de Tejpura, no estado do Assam. Lá,
um devoto chamado Śrī Bhāgavata-prasāda, o proprietário da Darang Tea
Estate, que pertencia a uma família de mercadores de grãos, temperos e espe-
ciarias (vaiśyas da casta baniyā), havia convidado todos os devotos para hon-
rarem prasāda na casa dele. Quando perguntaram se eu também iria, respon-
di:“Eu não estou muito bem. Vou ficar aqui”. Ninguém entendeu os motivos
pelos quais eu rejeitei o convite. Eu não queria ir por conta dos meus hábitos
familiares e pelo meu modo de pensar, que criaram firmes nós e ataram o
meu coração, permitindo-me apenas aceitar prasāda na casa de um sacerdote
(brāhmaṇa), e não na casa de um mercador (vaiśya). Porém, Guru Mahārāja
compreendeu o que se passava em meu coração e, visando o meu bem-estar,
citou um verso do Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līlā 20.57):
kuṣṭhī-viprera ramaṇī,pativratā-śiromaṇi,pati lāgi’ kôilā veśyāra sevā
A esposa de um sacerdote (brāhmaṇa) leproso se tornou a mais casta de
todas as mulheres quando ela aceitou servir uma prostituta para comprazer
seu marido.
Aos olhos da sociedade, parecia que a esposa do brāhmaṇa doente havia
trabalhado para ajudar a prostituta. Mas na verdade, através de tais ativida-
des, ela servia apenas e exclusivamente ao seu próprio marido, que era o úni-
co e verdadeiro objeto de suas ações.
O significado das palavras de Guru Mahārāja era que eu devia enxergar e
enfatizar a satisfação de śrī guru e dos vaiṣṇavas ao invés de pensar no nosso
anfitrião comerciante. Ao entender isso, eu fui para a casa do devoto em ques-
tão e aceitei a prasāda que foi servida. Assim, eu me libertei da minha última
restrição. Desse modo, para o meu bem-estar espiritual, meu Guru Mahārāja,
com grande paciência e infinita misericórdia, desatou cada um dos nós que
prendiam meu coração.

Não se torne um obstáculo para o serviço dos demais


Quando eu era um brahmacārī (jovem monge)e morava no templo de Cal-
cutá, os outros jovens monges (brahmacārīs) às vezes vinham até mim e se

23
Viśuddha Caytania-Vāṇī

ofereciam para lavar as minhas roupas ou limpar o meu quarto. Embora eu


sempre negasse e os proibisse de fazer isso, às vezes eles davam um jeito de
fazer esses serviços contra a minha vontade.
Um dia, quando um dos brahmacārīs pegou à força o balde onde as mi-
nhas roupas estavam de molho, Guru Mahārāja nos viu e disse: “Deixe ele
lavar suas roupas. Nunca se torne um obstáculo para o serviço dos demais.
Ao servir os vaiṣṇavas mais avançados do que você, você vai ganhar muito
mais do que ganharia ao lavar as suas próprias roupas.”
Guru Mahārāja estava querendo dizer que apesar de ser verdade que per-
demos karma positivo (sukṛti) aceitando o serviço de um outro devoto, não
há perda real se usamos aquele mesmo tempo e esforço para servir algum ou-
tro vaiṣṇava ainda mais elevado; pois vamos ganhar exponencialmente mais
sukṛti desse outro vaiṣṇava do que podemos perder ao aceitar algum serviço.

A importância de estabelecermos o conhecimento acerca da


nossa relação eterna com Deus
Na cidade de Jalandhar, no bairro de Mai Hiran Gate, uma velha senhora
perguntou ao meu Guru Mahārāja: “Eu vou ao templo diariamente desde os
tempos de solteira e continuo fazendo todas as práticas, mesmo agora, que
fiquei velha e fui abençoada com netos e netas. Eu nunca negligenciei, em
momento algum, a minha prática espiritual. Mas mesmo assim, agora que
alcancei uma idade avançada, nem por um momento a minha mente se lem-
bra do Supremo (Bhagavān), nem que eu tente me forçar a fazer isso. Pelo
contrário, a minhe mente permanece naturalmente e constantemente absorta
em pensar no bem-estar e na felicidade dos meus netos e da minha família.
Por favor, me abençoe explicando para mim as razões dessa espécie de imper-
feição mental e, por favor, me diga qual é o remédio para corrigir esse defeito
e alcançar plenitude espiritual.”
Depois de ouvir com atenção a dúvida daquela senhora (mātā-jī), Guru
Mahārāja respondeu: “A sua pergunta é muito apropriada. Todo mundo de-
veria ouvir essa pergunta e a respectiva resposta. Portanto, vou responder na
assembleia de amanhã, durante a aula relativa aos assuntos espirituais (hari-
-kathā).
No dia seguinte, durante a aula, Guru Mahārāja repetiu a pergunta da
senhora e, para o benefício espiritual de todos que estavam ali, ele explicou:
“Mātā-jī, você visita o templo diariamente há muitos anos. Mas alguma vez
chegou a considerar a natureza da sua relação com a deidade que preside o
altar deste templo?

24
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

Com coração simples e sincero, a senhora respondeu: “Não, Mahārāja-jī.


Eu nunca pensei nisso.”
Śrīla Guru Mahārāja então disse: “Não é possível sentir amor e afeto por
alguém sem antes estabelecermos uma relação com tal pessoa. Somente de-
pois de se estabelecer uma relação mútua é que o amor e o afeto se manifes-
tam automaticamente no coração, de acordo com a natureza das nossas rela-
ções. Sem um relacionamento firme, a mente não consegue criar um vínculo
com o Supremo simplesmente por visitarmos o templo num mero ritual.
matir na kṛṣṇe parataḥ svato vāmitho ’bhipadyeta gṛha-vratānāmadānta-
-gobhir viśatāṁ tamisraṁpunaḥ punaś carvita-carvaṇānām
Śrīmad-Bhāgavatam (7.5.30)
Devido à falta de controle dos sentidos, pessoas excessivamente apegadas
à vida familiar e ao materialismo caminham em direção à condições infernais
e repetidamente mastigam aquilo que já foi mastigado. Mesmo que sejam ins-
truídas pelos demais, que se valham de esforços pessoais ou que combinem
esses dois tipos de processos, elas jamais sentem inclinação para o serviço de
Śrī Kṛṣṇa.
“No mundo material, nós enxergamos isso. O amor só se desenvolve por
meio de nossas ações e pelo serviço que fazemos, com carinho e atenção, às
pessoas amadas. Sem o afeto que nasce desse serviço, uma mãe não sentiria
amor por um filho biológico e nem por um filho adotado.
Sem o serviço, o dono não desenvolveria carinho por seu cachorro.
Toda alma (jīva) possui uma relação de servidão eterna e amorosa com
o Supremo. Quando a alma condicionada à matéria se esquece disso e se
comporta de maneira contrária a essa relação, a potência material externa de
Bhagavān manifesta essa criação, expondo a alma condicionada às misérias
da existência material. [NOTA] A alma atravessa 8,400,000 espécies de vida,
vivendo em diferentes corpos de acordo com as suas atividades passadas. No
momento oportuno, ela recebe a rara bênção da forma humana e, através de
um precedente acúmulo de bom karma espiritual (sukṛti) e pela infinita mi-
sericórdia de Deus, a alma espiritual (jīva) desenvolve uma relação íntima e
direta com um devoto puro, um servo íntimo do Senhor. É somente através
dessa relação que o indivíduo aprende sobre a realidade eterna, sobre quem
ele é de verdade, sobre quem é Deus e sobre a natureza dessa mútua relação
espiritual. A consequência disso é que o desejo de servir ao Supremo desperta
no seu coração. Quando ele recebe a semente da videira da devoção (bhakti
lata bija) — que, na verdade, é o desejo de servir a Śrī Kṛṣṇa — de seu mestre

25
Viśuddha Caytania-Vāṇī

espiritual (śrī gurudeva) e planta essa semente em seu coração, o indivíduo


assume o papel de um jardineiro que provê água e cuidados para a semente
através da prática de ouvir sobre Deus e Seus Santos Nomes (śravaṇa) e da
prática de cantar e falar sobre Deus (kīrtana). Enquanto gradualmente cresce
a planta da devoção (bhakti lata), seu amor e seu afeto por Deus aumentam
proporcionalmente. Esse serviço amoroso ao Supremo leva ao fruto do amor
transcendental (bhagavat-prema) apenas quando se estabelece firmemente
uma relação com o Senhor. Se uma pessoa simplesmente vai ao templo e vol-
ta pra casa depois de ter visto (darśana) as deidades no altar para satisfazer
as suas próprias vontades, o amor mais puro e o afeto pelo Supremo nunca se
manifestará em seu coração, nem mesmo depois de milhares de vidas.

Oferecer antes de aceitar


Quando meu Guru Mahārāja saía para pregar, ele sempre levava uma garrafa
d’água com ele.
Depois de chegar no local onde ele daria o seu hari-kathā, ele imediata-
mente cantava os Santos Nomes (kīrtana) e depois dava sua aula. Somente
depois de executar tais serviços é que ele aceitava um copo d’água, alimentos
oferecidos no altar (prasāda) ou qualquer outra oferenda ou presente dos or-
ganizadores e anfitriões. Se ele sentisse sede durante o evento, ele somente
bebia a água que ele mesmo havia levado. Seu ponto de vista era: “Nós somos
devotos. Deus (Śrī Hari), o guru e os vaiṣṇavas são a nossa única riqueza. Se
aceitarmos as oferendas das pessoas que nos convidam, sem antes compar-
tilhar com eles essa nossa riqueza através do hari-kathā e do kīrtana, então
ficaríamos endividados para com eles. Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta nos
ensinou essa lição importante através do seu próprio comportamento. Certa
vez, ele foi convidado pelo rei de Kasim Bāzār para dar uma aula sobre Deus
(hari-kathā), mas não conseguiu fazer isso nos três primeiros dias – ele ficou
em jejum durante esse tempo todo, aceitando apenas uma folha de tulasī du-
rante esses três dias. Da mesma maneira, em seu livro Śrī Upadeśāmṛta, verso
4; Śrīla Rūpa Gosvāmī explica o princípio de dadāti pratigṛhṇāti: “Devemos
oferecer algo primeiro antes de aceitarmos qualquer coisa.”

Estimular a tendência de servir os santos


Eu fui com meu Guru Mahārāja à Haridwar para o festival do Kumbha-melā
(um grande festival da cultura hindu). Uma manhã, depois de ter tomado ba-
nho no Ganges e voltado, encontrei meu Guru Mahārāja saindo de seu quarto,
quando ele me disse: “Vou tomar banho no Ganges. Você pode vir comigo?”

26
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

Sem dizer que eu havia acabado de voltar de lá, eu o acompanhei para satisfazer
seu desejo. Como as minhas roupas estavam todas de molho no balde, eu fui
sem camisa usando apenas um dhotī (um longo pedaço de tecido que os ho-
mens utilizam na Índia para cobrir a cintura e as pernas).
Quando chegamos no cais, uma senhora nos tratou como santos (sā-
dhus) e me ofereceu uma camisa nova. Eu pensei em não aceitar, mas Guru
Mahārāja disse: “Aceite a camisa. Se você vai usar ou não, fica por sua conta,
mas aceite. Não se torne um obstáculo para o desejo dessa senhora de prestar
algum serviço.”
No caminho de volta para a nossa tenda (paṇḍāla), após o banho no Gan-
ges, uma segunda senhora veio até mim e me ofereceu halavā (um doce feito
com semolina e manteiga) em um copo feito de folhas. Eu não queria aceitar
alimentos das mãos de uma pessoa que ainda não tivesse sido iniciada na
nossa linhagem espiritual (sampradāya) e, assim, recusei o doce. Mas a boa
senhora disse: “Esta halavā foi feita com ingredientes totalmente puros, com
a única intenção de servir os sábios (mahātmās), eu cozinhei com o mais puro
ghee (manteiga clarificada), feito pelas minhas próprias mãos, com um leite
de vaca puríssimo.”
Guru Mahārāja então me disse para aceitar o doce, e eu obedeci. A se-
nhora ofereceu um copo de halavā para Guru Mahārāja também e ele gracio-
samente aceitou.
No caminho de volta, refleti: “Śrī Guru Mahārāja pessoalmente nos ins-
truiu que não deveríamos comer nada que fosse oferecido por pessoas que
não fossem vaiṣṇavas. Mas então por que naquele dia ele pediu que eu acei-
tasse a oferta daquela senhora?”
Enquanto a minha mente estava ocupada com tal pensamento, Guru
Mahārāja conseguiu perceber a minha perplexidade e assim disse: “Aquela
senhora está oferecendo a sua halavā apenas para as grandes almas (mahāt-
mās) e para mais ninguém. Qualquer que seja seu desejo profundo, a sua úni-
ca intenção, pelo menos aparentemente, era servir os sādhus. É nosso dever
nutrir e encorajar qualquer intenção de servir os sādhus, nunca minimizar
isso. Portanto, só devemos encorajá-la nesse serviço aos sādhus aceitando a
sua oferenda. Se você quiser, você pode dar o que recebeu para uma pessoa
que lhe queira bem, seja confiável e fique satisfeita ao receber algo das mãos
de um sādhu.”
Compreendendo o que Guru Mahārāja queria dizer, eu segui aquelas
instruções e passei a aceitar as oferendas daqueles que possuem um desejo
sincero de servir sādhus.

27
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Vencer ou morrer
A terra que Guru Mahārāja tinha comprado em Calcutá para estabelecer o
templo da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha incluía um prédio velho - que precisa-
va ser demolido para a construção do novo templo. Durante a demolição, Śrī
Śrīmad Bhakti Śrīrūpa Siddhāntī Gosvāmī Mahārāja visitou o lugar. Depois
de observar nosso trabalho, ele me perguntou, “Vocês enlouqueceram? Este
prédio foi maravilhosamente construído com os materiais mais refinados,
piso de mosaico italiano, vitrais belgas, portas e molduras de janela feitas com
a melhor madeira da Birmânia (sāguna) – e vocês estão derrubando tudo!
Vocês todos enlouqueceram? Quando Mādhava Mahārāja chegar, por favor
digam que Siddhāntī Mahārāja esteve aqui visitando a obra e que desaconse-
lhou firmemente a demolição deste prédio.”
Eu pessoalmente dei a mensagem de Srīla Siddhāntī Gosvāmī Mahārāja ao
meu mestre espiritual, que me perguntou: “Se o seu objetivo fosse jogar uma
pedra nesta porta aqui à frente, como você faria isso?” Eu respondi fazendo o
gesto de quem atira uma pequena pedra com o mínimo de força.
Guru Mahārāja então perguntou: “Agora, se você quisesse jogar uma pe-
dra muito longe daqui, como você faria isso?” Eu então fiz o gesto de jogar
uma pedra com muito mais força.
Guru Mahārāja concluiu: “Do mesmo modo, quanto mais alto for o ob-
jetivo, maiores serão os nossos esforços para alcançá-lo. Quando Napoleão
chegava no país que ele queria atacar e conquistar, ele queimava ou afundava
seu próprio navio intencionalmente, deixando audaciosamente claro para os
seus soldados que eles tinham que vencer ou morrer. Quando ele deu ordens
ao seu exército que atravessassem os Alpes a pé, muitos soldados ficaram atô-
nitos e disseram, ‘Isso é impossível!’ Napoleão respondeu: ‘A palavra impossí-
vel só existe no dicionário dos tolos.’
“Quando a pessoa fica sem outra alternativa além de agir, ela faz o máxi-
mo esforço para alcançar a meta. Mas se ela tem a menor margem de dúvida,
ela vai pensar eternamente e deixar a ação para depois. Alguém disse, e com
razão, que a necessidade é a mãe da invenção. Portanto, derrube aquele pré-
dio para que nós sejamos forçados a construir um lugar para ficar. Mesmo
porque nós precisamos de um ambiente grande o suficiente para nossas pa-
lestras (hari-kathā) e para o canto dos Santos Nomes (kīrtana), mesmo que
seja um lugar simples, um barracão sem decorações opulentas e refinadas.”
As palavras do meu Guru Mahārāja encheram o meu coração de energia
e de um grande entusiasmo.

28
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

Diferentes instruções para diferentes naturezas


Uma vez, quando todos estávamos no templo de Calcutá, eu saí para pre-
gar com Śrī Maṅgala Mahārāja, Śrī Giri Mahārāja, Śrī Purī Mahārāja e alguns
outros irmãos espirituais. Durante os nossos eventos, ganhamos de doação
entre oito e dez conjuntos de roupas devocionais feitas com algodão cardado
[conferir se esse é esse algodão, mesmo]. Eu guardei as roupas com muito
cuidado e, quando voltei para o templo, entreguei-as ao responsável do nosso
depósito (bhaṇḍārī).
Um belo dia, Guru Mahārāja me disse: “Um dos moradores do templo
precisa de roupas novas. Por favor, compre um conjunto numa das lojas do
governo para que eu possa dar a roupa para ele.” (As lojas controladas pelo
governo indiano vendem roupas simples por preços e tarifas estabelecidos
pelo Estado).
Porque eu ainda era novo no templo naquela época, eu desconhecia a gra-
vidade e a profundidade dos insights e da perspicácia dos grandes vaiṣṇavas.
Então eu disse imediatamente: “Nós trouxemos oito ou dez conjuntos de rou-
pas que foram doadas para nós na última turnê de pregação e elas estão guar-
dadas com o bhaṇḍārī. Vou pegar um conjunto com ele e trazer para você.”
Guru Mahārāja respondeu: “Eu estou ciente que você trouxe esses con-
juntos de roupas finas, mas para essa pessoa, um conjunto de roupas simples
da loja do governo é muito mais apropriado, porque ele vem de uma comuni-
dade rural de baixa renda. Se nós dermos a ele coisas de primeira qualidade,
roupas caras logo no início de sua vida devocional, ele se tornará um desfru-
tador material. Devemos tomar muito cuidado na maneira como tratamos as
pessoas e também considerar o efeito que nossas ações podem ter sobre eles.
Se não formos cuidadosos, podemos desviar os devotos iniciantes no cami-
nho da devoção pura (bhakti).”

Nunca incentive o desejo material dos outros


Certa vez, Guru Mahārāja me deu um pedaço de tecido sofisticado, mui-
to macio e confortável. Quando eu usei o tecido, um outro jovem monge
(brahmacārī) ficou fascinado e alisou o pano várias vezes, como se desejasse
um igual. Em um primeiro momento, pensei que seria apropriado dar aquele
tecido de presente para ele, mas antes de fazer isso, um pensamento surgiu em
minha mente: “Śrīla Gurudeva me deu esse pano com suas próprias mãos. Ele
é um símbolo da sua generosidade e misericórdia. Portanto, antes eu preciso
da permissão dele.”
Então eu fui até Guru Mahārāja e disse: “Normalmente, eu passo a maior

29
Viśuddha Caytania-Vāṇī

do tempo em Māyāpura trabalhando na construção com os pedreiros. Eu não


preciso usar um tecido tão refinado; ele iria estragar rapidamente. Portanto,
se você gentilmente concordar, eu poderia dar esse pano para um brahmacārī
específico, que gostou muito dele.”
Guru Mahārāja respondeu gravemente: “Não. Não dê esse tecido para ele.
Ele gosta de vestir roupas de alta qualidade. Dar a ele objetos que ele deseja
só alimentará esse gosto, o que vai levá-lo cada vez mais profundamente ao
caminho da gratificação material dos sentidos. Desejando o seu verdadeiro
benefício espiritual, como um guia, alguém que lhe quer bem de verdade, eu
não posso agir como um inimigo e encorajá-lo no caminho dessa atração ma-
terial. É meu dever protegê-lo das garras de māyā da melhor maneira possí-
vel. [NOTA, māyā] Se esse pano se desgastar mais rápido com você, não tem
problema. Mas você, na posição de monge, nunca deve apoiar ou se tornar
um instrumento da gratificação material de ninguém.”

Fornecendo abrigo a um irmão espiritual


Depois do desaparecimento de Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta, um de
seus discípulos, Śrīpāda Ṭhākura dāsa Prabhu, passou a morar na Śrī Bāgbā-
zār Gauḍīya Maṭha de Mumbai. Quando sua saúde ficou frágil na velhice (si-
ckness pastimes), os dirigentes do templo (maṭha) disseram para ele: “Não
estamos em condições de nos responsabilizarmos por você.” Então Śrīpāda
Ṭhākura dāsa Prabhu partiu para Vṛndāvana, onde foi morar num quarto
alugado perto do famoso templo de Śrī Gopeśvara Mahādeva. Um devoto de
Mumbai costumava mandar uma doação mensal para ele.
Eu também estava em Vṛndāvana naquela época, ocupado com a cons-
trução do templo da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha. Um dia, um devoto me dis-
se que Śrīpāda Ṭhākura dāsa Prabhu caiu de uma escadaria depois de ter uma
vertigem. Imediatamente, enviei um irmão espiritual, Śrī Vīrabhadra Prabhu,
para levá-lo ao hospital da missão de Rāma Kṛṣṇa. Quando soube da notí-
cia, Guru Mahārāja me escreveu uma carta, na qual ele dizia: “Śrī Ṭhākura
dāsa Prabhu prestou um imenso serviço a Śrīla Prabhupāda. Seguindo as
instruções de Śrīla Prabhupāda, ele pregou ao lado de Śrī Bhakti Sarvasva
Giri Mahārāja. Ele era um excelente tocador de percussão indiana (mṛdaṅ-
ga) e cantava canções sagradas (kīrtana) muito doces. Certifique-se de que ele
receba todos os cuidados e de que não passe o menor desconforto. Traga-o
até a Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha assim que ele sair do hospital. Com alegria,
vamos assumir a responsabilidade de cuidar dele para o resto de sua vida.
Seguindo as instruções do meu Guru Mahārāja, eu trouxe Śrī Ṭhākura

30
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

dāsa Prabhu para o nosso templo (maṭha) depois que ele saiu do hospital – e
ali ele morou confortavelmente pelo resto de sua vida.
Nunca deixe para depois ou desperdice a oportunidade
de servir os vaiṣṇavas
Guru Mahārāja organizou um evento que durou três dias no templo da Śrī
Caitanya Gauḍīya Maṭha, em Vṛndāvana, para a consagração e instalação das
deidades no altar. No primeiro dia desse festival, um maravilhoso banquete
foi produzido para servir os vaiṣṇavas dos mais diferentes templos (maṭhas)
de Vṛndāvana; no segundo dia um outro banquete foi oferecido a todos os sa-
cerdotes (brahmāṇas) que cuidam pessoalmente das deidades e dos festivais
sagrados (paṇḍās) de Vṛndāvana e a todos os seus familiares; e no terceiro dia
um banquete foi oferecido ao público em geral, ao qual os vaiṣṇavas e paṇḍās
foram convidados novamente.
Guru Mahārāja gastou mais de vinte e uma mil rúpias naquele festival.
[colocar valor aproximado em reais?]Naquela época, era possível comprar
dois quilos e meio de farinha de trigo com uma rúpia. Até então, nós não
tínhamos uma cozinha apropriada no nosso templo (maṭha). Tudo foi cozi-
nhado em um espaço improvisado com um teto de folha de zinco. Ao obser-
var a situação, alguém disse ao meu Guru Mahārāja: “Com a quantidade de
dinheiro que você gastou nesse festival, você teria construído oito salas novas
para o templo (maṭha)”.
Guru Mahārāja respondeu:“Mais tarde, tanta gente vai aparecer queren-
do doar alguma coisa para a construção dos quartos que vai faltar espaço na
maṭha. Mas a oportunidade que tivermos de servir tantos vaiṣṇavas sêniores
e elevados de uma única vez agora neste lugar, nunca mais vai se repetir.”
Com esse estado de espírito, Guru Mahārāja organizou grandiosos festivais
em muitos locais, tais como Yāṣāḍā, Guwāhaṭī, Kolkata, Purī e outros, e con-
vidou todos os vaiṣṇavas.

A compra do divino local onde Śrīla Prabhupāda nasceu


Quando meu paramārādhyatama Guru Mahārāja soube da possibilidade de
adquirir o local do aparecimento divino de Śrīla Prabhupāda em Puri, ele foi
até Śrī Śrīmad Bhakti Vilāsa Tīrtha Gosvāmī Mahārāja, que era o presidente
ācārya (mestre perfeito) da Śrī Caitanya Maṭha na época. Com a ajuda de Śrī
Śrīmad Kṛṣṇadāsa Bābājī Mahārāja, ele pediu, ”Não há escassez de recursos a
sua disposição. Por favor, compre essa propriedade, pois assim teremos a infi-
nita boa fortuna de visitar e oferecer nossas infindáveis reverências (praṇāmas)
ao sagrado lugar onde Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddānta veio ao mundo.”

31
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Śrīla Tīrtha Gosvāmī Mahārāja disse,”Śrīla Prabhupāda não me deixou


instruções específicas a respeito da preservação daquele lugar. Em vez disso,
ele me aconselhou incessantemente a servir exclusivamente à sagrada terra de
Śrī Māyāpura-dhāma, para destacar a supremacia do Avatar Dourado Śrīman
Mahāprabhu, Seus ensinamentos e o local do Seu divino aparecimento (dhā-
ma). Além disso, Śrīla Prabhupāda não fez nenhum esforço para comprar o
local do aparecimento de Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura.”
Ao ouvir a resposta de Śrīla Tīrtha Gosvāmī Mahārāja, meu Guru Mahārā-
ja me levou como assistente junto a Śrīpāda Jagamohana Prabhu, para conver-
sar com um outro vaiṣṇava, Śrī Bhakti Kevala Auḍulomi Mahārāja, na época
presidente ācārya da Śrī Gauḍīya Maṭha de Bāgbāzār em Calcutá, pedindo
que o ajudasse a comprar a propriedade onde Śrīla Prabhupāda Bhaktisid-
dānta apareceu.
Ao ouvir o pedido de Guru Mahārāja, Śrī Auḍulomi Mahārāja respon-
deu: ”Não podemos gastar tanto dinheiro assim. Além disso, dentre aqueles
que arrecadam doações, você é famoso por ser o segundo melhor da Gauḍīya
Maṭha e, portanto, nenhuma restrição financeira poderia impedir você de as-
sumir essa responsabilidade”.
Após o encontro, quando estávamos retornando ao nosso templo
(maṭha) de taxi, Guru Mahārāja citou um provérbio bengali para Śrī Jaga-
mohana Prabhu: “bhāgera mā gaṅgā pāye nā - uma mãe com filhos demais
acaba sem ninguém para jogar suas cinzas no Ganges”. A lógica do provér-
bio é que nenhum dos filhos se encarrega de lançar as cinzas da mãe no rio
sagrado (Ganges) porque cada um acha que um outro fará isso em seu lugar.
Assim, as suas cinzas nunca chegam no Ganges.
Meditando desta maneira, Guru Mahārāja disse: ”Tudo ficará bem. Fare-
mos o nosso melhor para adquirir aquele terreno”.

Quem, além de Mādhava?


Naquela época, os discípulos de Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta se reu-
niam no templo (maṭha) de Śrī Śrīmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī
Mahārāja em Koladvīpa depois da peregrinação sagrada de Śrī Navadvīpa-
-dhāma (parikramā).
Quando o meu Guru Mahārāja encontrou seus irmãos espirituais, ele in-
formou a todos sobre a oportunidade de comprar o local de aparecimento
de Śrīla Prabhupāda em Jagannātha Purī e sugeriu que poderiam comprá-lo
juntos.
Após discutir o assunto entre eles, alguns irmãos espirituais prometeram

32
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

doar o dinheiro que pudessem, mas o valor total arrecadado por eles era qua-
se insignificante em relação ao necessário. Sentindo-se confuso sobre o que
fazer, Guru Mahārāja disse: ”Temos que pensar em outro meio para juntar o
dinheiro necessário”.
Naquele momento, Śrī Śrīmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārā-
ja recitou um verso do Nṛsiṁha Purāṇa:
mādhavo mādhavo vāci
mādhavo mādhavo hṛdi
smaranti mādhavaḥ sarve
sarva kāryeṣu mādhavam
Mādhava está em suas palavras, Mādhava está em seu coração. To-
das as pessoas santas lembram-se de Mādhava, o esposo de Lakṣmī
(a deusa da fortuna) em todos os seus esforços.
Embora o nome “Mādhava” no verso se refira a Bhagavān Śrī Kṛṣṇa, Śrīla
Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja recitou o verso em referência ao meu mais ado-
rado Guru Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī e, assim,
disse, ”Mādhava Mahārāja está nas palavras e nos corações dos seus irmãos
espirituais. Todos os seus irmãos espirituais pensam em Mādhava Mahārāja,
porque ele é capaz de coletar qualquer quantidade de dinheiro (lakṣmī). To-
dos os irmãos espirituais se lembram de Mādhava Mahārāja em todos os seus
empreendimentos, e é por isso que qualquer coisa pode ser realizada quando
Mādhava Mahārāja está por perto. Quem precisaria de alguém além dele?”
Ao ouvir isso, Guru Mahārāja compreendeu que os seus irmãos espirituais
o abençoavam e confiavam nele para realizar esse serviço e, assim, ele ofereceu
reverência a todos eles prostrado ao chão (daṇḍavat-praṇāma). Portanto, com
imensa felicidade, aceitou sozinho a responsabilidade de adquirir o local do
aparecimento de Śrīla Prabhupāda.
Mesmo os devotos da ISKCON, uma organização imensa e com mui-
tos recursos, tinham desistido de comprar esse lugar depois de enfrentarem
inúmeras dificuldades e complicações. Porém embora meu Guru Mahārāja
tenha sofrido inúmeras adversidades físicas e mentais tentando realizar esse
serviço, depois de muito tempo de esforço e persistência, ele chegou muito
perto de completar a tarefa.
Meu Guru Mahārāja me mandou até Purī na companhia dos nossos ado-
ráveis (pūjyapāda) Yaśodā-jīvana Brahmacārī, Ācārya Mahārāja (cujo nome
era Gaurāṅga-prasāda Brahmacārī naquela época) e outros para que ajudásse-
mos a comprar a propriedade onde nasceu Śrīla Prabhupāda. Enquanto estáva-
mos lá, ficamos hospedados numa pequena casa que havia sido comprada por

33
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Śrī Śrīmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja com o propósito de mais
tarde transformá-la em um templo. Quando chegou o momento do famoso
festival das carruagens do Supremo (Ratha-yātrā), eu enviei Gaurāṅga-prasāda
Prabhu para que ele pedisse permissão a Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja para
que ele nos deixasse ficar em uma pensão (dharmaśālā) durante o festival, já
que muitos de seus discípulos viriam para ficar com ele na pequena casa. Nós
podíamos retornar depois do festival, mas não queríamos atrapalhar Śrīla
Mahārāja ou seus discípulos.
Ao ouvir o nosso pedido, Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja, de maneira afe-
tuosa, porém firme, respondeu: “Como é possível que eu possa aceitar isso?
As palavras ‘sim, vocês podem ficar em outro lugar’, nunca vão sair da minha
boca. Por quê? Porque o trabalho que vocês vieram fazer aqui – comprar o
local de nascimento de Śrīla Prabhupāda – era na verdade um dever nosso, já
que somos os discípulos diretos dele. Mas não fizemos o menor esforço para
realizar isso e vemos que vocês estão realizando essa tarefa com grande entu-
siasmo. Portanto, é impossível que eu aceite essa proposta e peço que vocês
se acomodem e fiquem conosco tranquilamente usando aquilo que podemos
oferecer, embora não tenhamos muitos confortos disponíveis.
Um vaiṣṇava nunca pensa: “Este local é nosso e podemos controlar tudo.
Tudo deve ser feito de acordo com os nossos desejos”. Em vez disso, eles pen-
sam, “Não, este local não é nosso. Este local pertence aos devotos do Senhor
(vaiṣṇavas) e nós somos apenas membros e não proprietários. Nós iremos
cooperar com todos que vierem até aqui, acomodando as pessoas com o que
temos a disposição.

Determinação diante das adversidades


Enquanto isso, Śrī Bhakti Prajñāna Yati Mahārāja, um discípulo de Śrī Śrīmad
Bhakti Vilāsa Tīrtha Gosvāmī Mahārāja da Śrī Caitanya Maṭha, levou aos
proprietários do local de aparecimento de Śrīla Prabhupāda (Dakṣiṇa Pārśva
Maṭha) uma imensa coleção de documentos e cartas, afirmando: “Nós somos
a verdadeira e original Gauḍīya Maṭha. Somente nós temos o direito de assu-
mir as responsabilidades de gestão do local do aparecimento de Śrīla Prabhu-
pāda. A instituição de Śrī Mādhava Mahārāja, através da qual ele submeteu o
pedido de compra, não é o templo original.”
Eles também requisitaram à Corte Suprema a suspensão da transferên-
cia dos direitos sobre a propriedade. Guru Mahārāja ficou desolado ao saber
disso. No início, antes de ter feito qualquer esforço independente, ele tinha
pedido ajuda a Śrī Śrīmad Bhakti Vilāsa Tīrtha Gosvāmī Mahārāja. Como

34
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

Śrīla Tīrtha Gosvāmī Mahārāja tinha recusado, Guru Mahārāja pediu a ajuda
de seus outros irmãos espirituais, que acabaram depositando sobre ele toda
a responsabilidade de comprar a propriedade. Naquele momento, depois de
incalculáveis esforços, tinha se tornado impossível para ele renunciar ao seu
papel naquele serviço.
Embora Guru Mahārāja estivesse triste, ele não estava nem um pouco
desencorajado. Ele me disse: “Se não fosse por esse obstáculo, nós teríamos
feito somente progressos graduais em nossos esforços. Mas agora, diante dessa
adversidade, iremos prosseguir com uma determinação ainda maior, fazendo
tudo o que for necessário para alcançar o sucesso.” Pela misericórdia de Śrīla
Prabhupāda, a transferência da propriedade foi efetuada em nome da nossa
Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha um dia antes da Suprema Corte analisar o pedi-
do de suspensão da venda.

O primeiro ḟestival de aniversário de Śrīla Prabhupāda em


seu local de aparecimento
Com as bênçãos de meu mais adorado (paramārādhyatama) Guru Mahārāja,
Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī, foi organizado um grande fes-
tival para celebrar o 104º aniversário do aparecimento de Śrīla Prabhupāda,
que foi realizado em seu local de aparecimento no dia 28 de fevereiro, 1978.
Foi organizada também uma conferência espiritual que durou cinco dias – do
dia 26 de fevereiro ao dia 2 de março. Durante esse evento, ocorreu a cerimô-
nia na qual se instala a pedra angular da construção, acompanhada do vibrante
e tumultuoso canto dos Santos Nomes do Senhor (śrī nāma-saṅkīrtana).
Guru Mahārāja pessoalmente escreveu cartas convidando todos os seus
irmãos espirituais, pedindo a todos que fossem ao evento: “Por favor, presti-
gie o evento com a sua divina presença e derrame sobre nós toda a sua mise-
ricórdia.” Ao receber o convite de Guru Mahārāja, devotos de todas as ordens
de vida renunciantes (sannyāsīs), jovens monges celibatários (brahmacārīs),
pessoas que se retiraram da vida familiar (vānaprasthīs), chefes de família
(gṛhasthas) e muitas outras personalidades distintas foram participar da oca-
sião. Alguns devotos estrangeiros também estavam lá.
Além de Guru Mahārāja e de seu irmão espiritual e constante companhei-
ro no serviço a Śrīla Prabhupāda - Śrī Śrīmad Bhakti Pramoda Purī Gosvāmī
Mahārāja –, dentre os participantes do festival estavam personalidades como
Śrī Śrīmad Bhakti Śravaṇa Trivikrama Gosvāmī Mahārāja, Śrīpāda Kṛṣṇa-ke-
śava Brahmacārī, Śrīpāda Jagamohana Prabhu, Śrīpāda Uddhāraṇa Prabhu,
Śrī Śrīmad Indupati dāsa Bābājī Mahārāja e muitos outros discípulos rendi-

35
Viśuddha Caytania-Vāṇī

dos a Śrīla Prabhupāda. Os mais famosos e proeminentes eram Śrī Śrīmad


Bhakti Hṛdaya Vana Gosvāmī Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gos-
vāmī Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja, Śrī Śrīmad
Bhakti Kamala Madhusūdana Gosvāmī Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Saurabha
Bhaktisāra Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Vilāsa Bhāratī Gosvāmī Mahārāja,
Śrī Śrīmad Bhakti Vikāśa Hṛśikeṣa Gosvāmī Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Sau-
dha Āśrama Gosvāmī Mahārāja, Śrī Śrīmad Kṛṣṇadāsa Bābājī Mahārāja, Śrī
Śrīmad Rāsa-bihārī dāsa Bābājī Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Prapanna Daṇḍī
Gosvāmī Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Suhṛda Bodhāyana Gosvāmī Mahārāja,
Śrī Śrīmad Bhakti Prapanna Dāmodara Gosvāmī Mahārāja, Śrī Śrīmad
Bhakti Suvrata
Paramārthī Gosvāmī Mahārāja, Śrīpāda Dr. Śyāmasundara Brahmacārī e
Śrīpāda Yatiśekhara dāsa Adhikārī.
Durante a comemoração que durou cinco dias, muitos vaiṣṇavas falaram
sobre os ensinamentos, as instruções, os aforismas, a conduta, o caráter e a
personalidade de Śrīla Prabhupāda Bhaktissidhānta de múltiplos pontos de
vista. Durante a interminável sequência de discursos que tocavam o coração
de todos, Śrī Śrīmad Bhakti Hṛdaya Vana Gosvāmī Mahārāja, com grande
entusiasmo e o coração cheio de alegria, disse aos presentes: “Agora fomos
abençoados com a oportunidade de construir um templo da Gauḍīya Maṭha
no exato local do aparecimento de Śrīla Prabhupāda, todos os seus discípulos
ficarão extremamente felizes ao se reunirem aqui todos os anos no local do
seu nascimento para honrar o seu aparecimento no mundo material, bem
como no local onde repousa seu divino corpo (samādhi-pīṭha) na sagrada
terra de Śrīdhāma Māyāpura em honra ao seu desaparecimento. Não há dú-
vidas em relação a isso.”

Os centros de distribuição do mais elevado amor espiritual


No Padma Purāṇa, Śrīla Vyāsadeva disse hyutkale puruṣottamāt. Através
dessas palavras, ele profetizou que a mensagem da devoção mais pura e
perfeita (śuddha-bhakti) pelo Supremo Senhor Kṛṣṇa seria distribuída por
todo o mundo, e que o epicentro dessa distribuição seria a cidade dedica-
da à devoção da Suprema Personalidade (Puruṣottama) ou Śrī Jagannātha
Purī-dhāma. Essa profecia se cumpriu através do aparecimento de Śrīla
Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura naquela cidade sagrada
(Śrī Puruṣottama-dhāma).
Embora o Avatar Dourado Śrī Caitanya Mahāprabhu tenha aparecido
em Śrīdhāma Māyāpura para distribuir unnatojjvala rasa (as mais subli-

36
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

mes e radiantes emoções do doce serviço devocional, madhura-rasa), foi


a partir de Śrī Jagannātha Purī que tal elevado serviço amoroso foi efe-
tivamente distribuído. Tendo estabelecido esse mais elevado tesouro do
amor transcendental na cidade de Śrī Jagannātha Purī, o próprio Avatar
Dourado ali manifestou seu desaparecimento espiritual. Algum tempo de-
pois, Śrīla Prabhupāda apareceu na mesma cidade e coletou aquele tesou-
ro divino, que ele mesmo distribuiu para todo o mundo na cidade onde o
Avatar Dourado Śrī Caitanya Mahāprabhu Se manifestou.
Irrevogável ḟé apesar de qualquer circunstância externa
Antes de comprar a propriedade, nós ficávamos em muitos outros locais
quando visitávamos Jagannātha Purī-dhāma na companhia do nosso Guru
Mahārāja. Naquela época, Guru Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Pramoda Purī
Gosvāmī Mahārāja e todos os discípulos de Śrīla Prabhupāda ofereciam re-
verências prostrados no chão (daṇḍavat-praṇāma) a esse local, do lado de
fora da propriedade, pois a entrada ali era proibida sem autorização prévia.
Embora a área ao redor do portão de entrada fosse extremamente suja, os
discípulos de Śrīla Prabhupāda ainda assim se prostravam no chão em reve-
rências, ignorando completamente a aparência externa do lugar. Aqueles que
testemunhavam essa atitude ficavam surpresos e tomados de grande honra e
reverência.
Devido a sujeira do local, eu ficava hesitante em oferecer reverências.
Contudo, ao ver que os outros prestavam reverências ali, eu procurava um
local um pouco mais limpo para oferecer pañcāṅga-praṇāma (uma forma de
reverência na qual tocamos as cinco partes principais do corpo no chão) e
rapidamente me levantava. Mas após ouvir sobre as glórias desse local divino
diversas vezes dos lábios de lótus de nossos mestres (guru-varga), eu gradual-
mente comecei a prestar aṣṭāṅga-praṇāma (reverência completamente esten-
dida no chão na qual oito partes do corpo tocam o solo) naquele local, como
todos faziam. [NOTA: diferença entre os tipos de reverências]

Ignorando a hostilidade e reconhendo qualquer tipo de serviço


prestado
Śrī Śrīmad Kṛṣṇa-prema dāsa Bābājī Mahārāja, um discípulo de Śrīla Prabhupāda
Bhaktisiddhānta, era o administrador de um templo (maṭha) em Mymensingh
(que agora faz parte do estado do Bangladeche). Ele, mais tarde, fundou um
āśrama em Māyāpura. Uma vez, quando foi pregar em Medinīpura, ele acabou
escorregando e fraturando o cóccix.

37
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Depois da fratura, ele buscou ajuda no nosso templo da Śrī Caitanya


Gauḍīya Maṭha em Calcutá na Rāsa-bihārī Avenue, que meu Guru Mahārā-
ja havia estabelecido em uma casa alugada. Eu levei Śrīla Bābājī Mahārāja ao
Śambhunātha Hospital, onde eu conhecia um médico, Dr. Brahma, que fez
um exame de Raio X em sua coluna. Mais tarde, quando Śrīla Bābājī Mahārāja
recebeu alta do hospital, ele passou alguns dias no Ayurvedic Aṣṭāṅga Hospital
e, na sequência, voltou para o seu āśrama em Māyāpura. Durante o tempo em
que ele esteve sob nossos cuidados, nós tivemos o maior zelo possível por ele.
Em seu āśrama em Māyāpura, Śrīla Bābājī Mahārāja orgulhosamente
dizia, “Somos os filhos de um leão: Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura
Prabhupāda. Não temos medo de ninguém.” Eu também fiquei sabendo que
ele tinha feito algumas críticas ao meu Guru Mahārāja.
Śrīla Bābājī Mahārāja tinha feito um acordo com um camponês que
deveria extrair a seiva das tamareiras que cresciam em seu āśrama. Como
recompensa desse serviço, o trabalhador receberia metade da seiva que ele
conseguisse extrair. Contudo, o trabalhador era um sujeito mal intencionado
que queria ficar com tudo para si. Ele disse para Śrīla Bābājī Mahārāja: “Você
é um bābājī, uma pessoa renunciada. Qual será a utilidade dessa seiva para
você?” Quando ele recusou a ceder depois de inúmeros pedidos, eles tiveram
uma discussão acalorada e uma briga feia. Aquele trabalhador mal intencio-
nado golpeou Śrīla Bābājī Mahārāja violentamente com um pedaço de pau.
Śrī Gaura dāsa Prabhu, um discípulo de Śrī Śrīmad Bhakti Sāraṅga Gosvāmī
Mahārāja, me deu a notícia, dizendo: “O filho do leão apanhou de um cachor-
ro. Por favor ajude se você puder.”
Quando eu cheguei no āśrama de Śrīla Kṛṣṇa-prema dāsa Bābājī Mahārā-
ja, ele me contou toda a história. Depois, Śrī Gaura dāsa Prabhu e eu fomos
à delegecia e levamos um policial até Śrīla Bābājī Mahārāja para resolver a
questão. Mais tarde, eu escrevi uma carta para Guru Mahārāja informando o
incidente. Em sua resposta, ele disse: “Vocês devem servir Śrī Kṛṣna-prema
dāsa Bābājī Mahārāja cuidadosamente e satisfazer todas as suas necessidades
utilizando os recursos do nosso templo.
Eu escrevi uma resposta: “Embora tenhamos cuidado dele muito bem
em Calcutá, ele começou a fazer comentários depreciativos sobre você assim
que ele voltou para Māyāpura. Ele costuma usar uma linguagem muito afiada.
Por isso, eu perdi toda a fé (śraddhā) que tinha nele e não tenho nenhuma
inclinação para servi-lo.”
Guru Mahārāja enviou outra carta: “Eu ficarei extremamente satisfeito
com o seu serviço impecável a Śrī Bābājī Mahārāja.”

38
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

Eu respondi: “É apenas para a sua satisfação que eu continuarei cuidando


dele e farei o meu melhor para o satisfazer sem cometer erros. Não será pos-
sível, contudo, servi-lo com todo o meu coração.”
Sob a ordem de Guru Mahārāja, eu cuidei de Śrīla Kṛṣṇa-prema dāsa
Bābājī Mahārāja, que eventualmente se recuperou de seus ferimentos. De-
pois, ele escreveu uma carta para Guru Mahārāja dizendo: “Embora eu tenha
falado de maneira desrespeitosa com os seus discípulos usando a minha lín-
gua afiada, eles cuidaram de mim com muita sinceridade e sem medir esfor-
ços. Eu quero lhe dar de presente o meu āśrama em Māyāpura. Eu peço que
você gentilmente aceite.”
Eu li a carta de Śrīla Bābājī Mahārāja para meu Guru Mahārāja, que ditou
a sua resposta para que eu transcrevesse: “Você me escreveu dizendo que quer
me presentar com o seu āśrama de Māyāpura, mas nós já temos um templo
em Māyāpura. Eu não quero ter dois templos no mesmo local. Por favor, ofe-
reça seu āśrama a algum de nossos irmãos espirituais que não tem um templo
em Māyāpura. Por favor saiba que nós não cuidamos de você desejando ficar
com o seu āśrama. Na verdade, eu não tenho nenhum interesse em ficar com
ele. É apenas porque você possui fé irrevogável em Śrīla Prabhupāda que você
é um destinatário do nosso mais sincero serviço.”
Enquanto eu ouvia as palavras de Guru Mahārāja, a minha mão parou
de escrever e lágrimas correram dos meus olhos. Eu me lembrei de um verso
escrito por Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī:
prabhu kahe—bhaṭṭācārya, karaha vicāra
gurura kiṅkara haya mānya se āmarā
Śrī Caitanya-caitāmṛta (Madhya-līlā 10.142)
Śrī Caitanya Mahāprabhu disse, “Ó Sārvabhauma Bhaṭṭācārya, considere
isso: o servo de meu guru é sempre alguém que merece o meu respeito.”
Ao ouvir meu adorável (paramārādhyatama) Guru Mahārāja glorificando
um irmão espiritual que tinha sido crítico em relação a ele, eu pude realizar
que o verdadeiro significado das palavras de Śrīla Kavirāja Gosvāmī estavam
diante de mim. Embora eu tivesse lido esse verso muitas vezes, eu não tinha
realizado seu verdadeiro significado até aquele momento.
Ao me lembrar desse fato, outra consideração sobre a conduta extrema-
mente exemplar de Guru Mahārāja veio em minha mente: ele nunca reagiu ao
comportamento hostil das outras pessoas contra ele. Em vez disso, ele sempre
considerou que aqueles que tinham sincera devoção pelos pés de lótus de Śrīla
Prabhupāda eram tão respeitáveis quanto dignos do seu mais sincero serviço.
Porém hoje em dia esse tipo de visão não existe mais entre a maioria dos

39
Viśuddha Caytania-Vāṇī

devotos. Na verdade, em geral vemos o oposto disso, infelizmente: “Não im-


porta o quanto um devoto possa ter servido meu gurudeva e os outros mes-
tres da nossa tradição espiritual (guru-varga). Se no momento presente, tal
devoto não for favorável a mim ou não me apoiar, apesar dos meus incalculá-
veis defeitos, eu não irei servi-lo. Por que eu deveria ter alguma relação com
ele? De fato, ele me ofende e é indigno do meu serviço.”

Servindo os seus antagonistas


Śrī Śrīmad Guru dāsa Bābājī Mahārāja, um discípulo de Śrīla Prabhupāda
Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura, costumava dormir na Śrī Caitanya Maṭha
em Māyāpura. Uma vez, quando Guru Mahārāja estava ocupado pregando
em Nawab-gañja - uma pequena cidade perto de Calcutá -, Śrīla Guru dāsa
Bābājī Mahārāja, com segundas intenções, astuciosamente falou para todos
os discípulos de Guru Mahārāja que eram renunciantes: “O guru de vocês
mandou uma mensagem dando ordens que todos fizessem as malas imedia-
tamente e partissem para Nawab-gañja. Ele requisitou a ajuda do maior nú-
mero de devotos possível para fazer uma procissão acompanhada do canto
dos Santos Nomes (nagara-saṅkīrtana). Depois de sua pregação em Nawa-
b-gañja, ele vai fazer uma turnê para muitos lugares distantes e todos vocês
devem ir com ele.”
Ao ouvir as palavras dele, Śrī Bhagavān dāsa (agora pūjyapāda Bhakti
Niketana Turyāśramī Mahārāja), pūjyapāda Āśrama Mahārāja e muitos ou-
tros discípulos renunciados do meu Guru Mahārāja imediatamente partiram
de Māyāpura para Nawab-gañja. Quando chegaram, Guru Mahārāja pergun-
tou: “Por que vocês vieram até aqui? Eu não chamei vocês”. Após ouvir todo o
ocorrido, ele compreendeu a verdade por trás das intenções de Śrī Guru dāsa
Bābājī Mahārāja.
Na presença de todos os devotos, o nagara-saṅkīrtana foi um grande su-
cesso. Algum tempo depois, Guru Mahārāja foi a Calcutá sozinho e alugou
uma casa. Ele então chamou todos os devotos que foram para Nawab-gañja,
pedindo-lhes para que ficassem com ele. Lá, todos eles se ocuparam em ser-
viços devocionais.
Śrī Guru dāsa Bābājī Mahārāja eventualmente se mudou para a Śrī
Puruṣottama Gauḍīya Maṭha, o templo em Purī da Śrī Caitanya Maṭha, ape-
sar de ele frequentemente dizer para as pessoas: “Eu não tenho muita fé nos
devotos que residem na Śrī Caitanya Maṭha”. Devido a essa falta de confiança,
ele dava todas as doações que recebia aos discípulos de Śrī Śrīmad Bhakti Vilāsa
Gabhastinemi Gosvāmī Mahārāja, para que eles guardassem o dinheiro para ele.

40
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

Certa vez, Śrīla Guru dāsa Bābājī Mahārāja se submeteu a uma cirurgia no
olho no District Hospital em Purī. De lá, ele enviou uma mensagem através de
um devoto a Śrī Śrīmad Bhakti Prapanna Daṇḍī Gosvāmī Mahārāja - um dis-
cípulo de Śrīla Prabhupāda - e pedindo a mim para que fôssemos encontrá-lo.
Quando chegamos no hospital, ele me disse: “Estou precisando de que dois
devotos fiquem e cuidem de mim enquanto eu estiver no hospital—um du-
rante o dia e outro durante a noite. Por favor, arrume isso para mim”. Eu então
pedi a meus irmãos espirituais Śrī Lakhana Prabhu e Śrī Yaśodā-jīvana Prabhu
que servissem Śrīla Bābājī Mahārāja durante o dia e a noite, respectivamente.
Quando eu escrevi uma carta a Guru Mahārāja contando isso, ele respon-
deu: “Fiquei muito contente ao saber que todos vocês estão servindo Śrī Guru
dāsa Bābājī Mahārāja apropriadamente. Porque ele está conectado a Śrīla Pra-
bhupāda, ele é digno de nosso serviço. Por favor, utilize os recursos de nosso
templo (maṭha) para garantir que todas as necessidades dele durante a esta-
dia no hospital sejam satisfeitas. Estou ciente da terrível situação financeira da
maṭha em Purī, portanto enviarei dinheiro em breve.”
Como Guru Mahārāja desejava, nós fizemos um arranjo para servir os ali-
mentos oferecidos no altar (prasāda) de nossa maṭha a Śrīla Guru dāsa Bābājī
Mahārāja e tudo mais que ele precisou. Quando Śrīla Bābājī Mahārāja recebeu
alta do hospital, ele não voltou para a Śrī Puruṣottama Gauḍīya Maṭha, mas
expressou seu desejo de permanecer conosco em nosso templo da Śrī Caitanya
Gauḍīya Maṭha em Purī. Na maṭha, uma nova suíte havia sido construída re-
centemente para Śrī Śrīmad Bhakti Hṛdaya Vana Gosvāmī Mahārāja durante
a sua estadia na celebração do śrī vyāsa-pūjā de Śrīla Prabhupāda. [NOTA:
vyāsa-pūjā] Nós fizemos um arranjo para Śrīla Guru dāsa Bābājī Mahārāja
ficar naquele quarto.
Após a cirurgia, foi prescrito a Bābājī Mahārāja que ele utilizasse óculos
escuros, o que dificultava a sua visão. Certa vez, quando honrava prasāda na
maṭha, Śrīla Bābājī Mahārāja cruzou com Śrī Bhagavān dāsa, mas por conta
dos óculos escuros atrapalharem a sua visão, ele não soube dizer quem estava
em sua frente.
Ele perguntou: “Quem é você?”
Śrī Bhagavān dāsa respondeu: “Eu sou o mesmo Śrī Bhagavān dāsa que
o senhor astutamente enviou a Calcutá, liberando o templo de Śrīvāsa-aṅgana
em Māyāpura”.
Ouvindo essas ásperas palavras, Śrīla Bābājī Mahārāja se dirigiu a Śrī
Śrīmad Bhakti Prapanna Daṇḍī Gosvāmī Mahārāja e disse: “Olha o jeito
amargo que esse brahmacārī falou comigo. Mādhava Mahārāja jamais utili-

41
Viśuddha Caytania-Vāṇī

zaria esse tipo de palavras”.


Śrīla Daṇḍī Gosvāmī Mahārāja respondeu: “Bābājī Mahārāja, é a mais
pura verdade que Śrī Mādhava Mahārāja nunca falaria dessa maneira; ele é
um vaiṣṇava puro e espiritualmente realizado. Mas existe um abismo de dis-
tância entre a posição dele e a de Bhagavān dāsa. Por que você espera que não
haja a mesma diferença em suas palavras? Além disso, Bhagavān dāsa não
disse inverdade alguma”.
O significado dessa história é que sempre que aparecia a oportunidade,
Guru Mahārāja servia com entusiasmo até aqueles que eram contra ele. Ele
serviu tais pessoas não apenas sozinho, mas também engajou seus discípulos
a serviço delas.

Dançando e cantando apenas para o prazer de Deus


Certa vez, Guru Mahārāja foi pregar em Amritsar, onde sua palestra sobre tó-
picos espirituais (hari-kathā) tinha sido organizada em um templo situado em
Namak Maṇḍi. Um dia, após o hari-kathā, Guru Mahārāja viu (darśana) as
lindíssimas deidades do templo, Śrī Śrī Kṛṣṇa-Balarāma, cujas formas atraen-
tes agiam como uddīpana (um estímulo que despertou divino amor em seu
coração). Absorto naquele amor espiritual (kṛṣṇa-prema), Guru Mahārāja per-
deu a consciência material de tudo o que estava ao seu redor e começou a dan-
çar em êxtase e cantando os Santos Nomes (kīrtana) por um longo período.
Ao observar as características corporais divinas de Guru Mahārāja—que
são encontradas apenas nos corpos de mahāpuruṣas (grandes personalida-
des)—e os movimentos de sua dança, todos os devotos e visitantes ficaram
enfeitiçados.
No dia seguinte, antecipando uma repetição do kīrtana e da dança de
Guru Mahārāja, os organizadores arrumaram um holofote especial e belís-
simas decorações para serem colocadas na frente das deidades, onde Guru
Mahārāja havia dançado no dia anterior. Quando o hari-kathā de Guru
Mahārāja terminou, aquela área foi imediatamente isolada. O templo estava
lotado, pois aqueles que foram afortunados o suficiente para testemunhar o
kīrtana de Guru Mahārāja no dia anterior trouxeram consigo muitas outras
pessoas. Mas naquele dia, quando Guru Mahārāja concluiu sua aula (hari-ka-
thā), ele saiu do templo imediatamente após recitar os mantras e nomes que
glorificam a sucessão discipular (jaya-dhvani).
Algo similar conteceu em Sahāranapūra. Um dia, Guru Mahārāja cantou
o kīrtana em êxtase e dançou imerso em absoluta bem-aventurança. No dia
seguinte, as notícias de seu doce kīrtana e de sua dança espiritual se espalha-

42
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

ram por todos os lados e, por causa disso, muitas pessoas queriam assistir essa
cena. Muitos se reuniram ali no dia seguinte. Quando Guru Mahārāja soube
que muitas pessoas vieram apenas para ver seu kīrtana e sua dança, e que eles
se sentiriam abençoados se pudessem começar o evento com aquela dança,
ele disse “Sábios (sādhus) e vaiṣṇavas não dançam nem cantam para o prazer
e o entretenimento de pessoas comuns. Ao invés disso, eles dançam com o
puro intuito de servir Deus (Bhagavān). Se alguém canta para satisfazer pes-
soas comuns, tal pessoa pode desenvolver afeição ou apego por elas, mas isso
nunca pode ser considerado devoção ao Supremo (hari-bhakti). Dançar ou
cantar com o desejo de obter reconhecimento e elogios de pessoas atraídas
pela matéria é, de fato, algo não diferente do excremento, é completamente
desfavorável a hari-bhakti. Na verdade, essa dança e esse canto se encaixam
na categoria de traiyātrika, ou seja, a mera performance material de dança,
canto e do toque de instrumentos musicais.”

O mundo inteiro pode ser sacrificado pelo nome de Rāma


Certa vez, Guru Mahārāja pregou em Guwahati, no Assam, na companhia de
muitos outros devotos, dos quais os mais destacados eram Śrīpāda Kṛṣṇa-ke-
śava Prabhu e Śrīpāda Cintāharaṇa Pāṭagiri Prabhu, ambos nascidos no As-
sam, discípulos de Śrīla Prabhupāda, que conhecia muito bem o idioma local.
De acordo com a instrução de Guru Mahārāja, os dois se encontraram com
Śrī Gopīnātha Bordoloi—o então ministro chefe do estado do Assam, que era
muito querido por todos os cidadãos do país—para convidá-lo a ouvir aulas
sobre a devoção a Deus (bhāgavata-kathā) no evento de Guru Mahārāja.
Durante o encontro, Śrī Bordoloi imediatamente pediu para que eles pri-
meiro se apresentassem, depois apresentassem sua organização e, por último,
a razão de sua visita. Após a introdução, ele perguntou: “Vocês dois nasceram
no Assam. Por que, então, vocês não aceitaram os princípios espirituais (śrī
bhagavata-dharma) como são comumente pregados no Assam por Śrī Śaṅkara-
-deva, Śrī Dāmodara-deva e outros? Por que ao invés disso vocês aceitaram os
ensinamentos de Avatar Dourado Śrīman Caitanyadeva do estado da Bengala
Ocidental?”
Śrīpāda Cintāharaṇa Prabhu pediu a Śrīpāda Kṛṣṇa-keśava Prabhu que
gentilmente respondesse Śrī Bordoloi, o que Śrīpāda Kṛṣṇa-keśava Prabhu
aceitou, dizendo: “Respeitável Sr. Bordoloi, se possível, eu gostaria de iniciar
minha resposta à sua pergunta com uma outra pergunta. Você também nas-
ceu em Assam, pertence a uma família de sacerdotes (brāhmaṇas). Por que
então você considerou apropriado ir para a Universidade de Oxford, na Inglater-

43
Viśuddha Caytania-Vāṇī

ra, aceitar ingleses como seus professores (gurus) e seguir seus ensinamentos,
quando eles usam papel para se limparem ao evacuar ao invés de água, algo
muito mais higiênico? O que mais eu deveria falar sobre a falta de etiqueta
ocidental? ”
“Śrī Navadvīpa-dhāma tem sido famosa há muito tempo como a Oxford
indiana, acadêmicos até mesmo de Assam visitam Navadvīpa-dhāma regu-
larmente para receberem educação elevada. Portanto, nós não conseguimos
compreender qual seria o problema em seguir Śrī Caitanya Mahāprabhu, o
Avatar Dourado.”
Śrī Gopinātha Bordoloi ficou sem palavras. Śrīpāda Kṛṣṇa-keśava Pra-
bhu e Śrīpāda Cintāharaṇa Pāṭagiri Prabhu deixaram seu escritório e foram
até onde o meu Guru Mahārāja estava. Quando eles chegaram novamente
no quarto de Guru Mahārāja, eles ficaram muito surpresos ao encontrar Śrī
Bordoloi sentado perto de Guru Mahārāja. Eles entenderam que ele havia ido
de carro enquanto os dois viajaram de rikśaw (uma bicicleta adaptada para
transportar passageiros em uma pequena cabine).
Naquele momento, o canto dos Santos Nomes (kīrtana) estava aconte-
cendo na sala principal do templo. Após o kīrtana, Guru Mahārāja falou ha-
ri-kathā, que terminou com o canto do mahā-mantra. Mais tarde, enquanto
falava com Guru Mahārāja, Śrī Bordoloi disse: “Seu método de pregação é
muito similar ao de Mahātmā Gāndhī; ele repete os nomes de Rāma (rāma-
-dhuna) antes e depois de seus discursos e você também repete os nomes do
Supremo (saṅkīrtana) antes e depois do seu hari-kathā”.
Guru Mahārāja respondeu de imediato: “Quando eu li na revista do Con-
gresso, Young India, sobre a declaração de Śrī Mahātmā Gāndhī, - ‘Eu pode-
ria até sacrificar o canto dos nome de Rāma (rāma-dhuna) por meu país’ –,
eu concluí que as concepções dele são verticalmente opostas as dos Gauḍīya
Vaiṣṇavas, que acreditam com firmeza que até mesmo o mundo inteiro pode
ser sacrificado pelos nome de Deus (rāma-nāma), o que dizer de um país.
Rāma, sendo a Verdade Absoluta, existe para Si mesmo e por Si mesmo e
todos os objetos existem para o Seu serviço eterno. Até mesmo acadêmicos
ocidentais aceitam que a Verdade Absoluta exista para Si mesma e por Si só”.
Śrī Gopinātha Bordoloi ficou muito inspirado pelos pontos de vista pro-
fundamente enraizados e sutis de Guru Mahārāja. Após este incidente, ele com
frequência ouvia hari-kathā de Guru Mahārāja e honrava prasāda conosco.
Ele também muitas vezes expressou seu desejo de abandonar sua vida social
ativa, se tornar um monge renunciante (sannyāsi) e permanecer sempre na
companhia de Guru Mahārāja. Seus companheiros, membros do Partido do

44
Capítulo 1 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja

Congresso, porém, diziam a ele: “Se você aceitar sannyāsa (a ordem de vida
renunciada), então sua posição em Assam vai decair rapidamente”. Pouco
tempo depois, Śrī Gopinātha Bordoloi deixou este mundo.

O destinatário da confiança de seus irmãos espirituais


Algum tempo depois do desaparecimento de Guru Mahārāja deste mun-
do material, Śrīpāda Girendra-govardhana Prabhu, um discípulo de Śrīla
Prabhupāda, foi forçado a se abrigar na casa de um de seus discípulos, porque
não possuía assistentes pessoais para servi-lo. Certa vez, enquanto falava sobre
Śrī Girendra-govardhana Prabhu, Śrīla Paramārthī Gosvāmī Mahārāja, outro
discípulo de Śrīla Prabhupāda, com extremo pesar e lágrimas nos olhos disse:
“Se Śrī Mādhava Mahārāja ainda estivesse presente fisicamente neste mundo,
Śrī Girendra-govardhana Prabhu não teria sido forçado a ficar na casa de seu
discípulo, porque Śrī Mādhava Mahārāja teria certamente arranjado para que
ele permanecesse em seu templo (maṭha) sob o cuidado de seus próprios dis-
cípulos”. Este incidente demonstra a aflição que os irmãos espirituais de Guru
Mahārāja sentiram após a sua partida e a grande confiança que tinham nele
para cuidar do bem-estar de seus outros irmãos espirituais.

45
Çré Çrémad Bhakti Vicära
Yäyävara Gosvämé Mahäräja

Embora os antepassados de Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja fossem da re-


gião da Orissa, seus pais viviam em Durmuth, distrito de Midnapore na Ben-
gala Ocidental, onde ele nasceu. Antes de se tornar um renunciante (sannyāsi),
seu nome era Śrī Sarveśvara Paṇḍā. Foi nessa época, na cidade de Jagannā-
tha Puri, que ele conheceu Śrī Śrīmad Bhakti Prasūna Bodhāyana Gosvāmī
Mahārāja, um dos discípulos de Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura Pra-
bhupāda (1874 – 1937).
Após ouvir sobre os ensinamentos e as glórias de Śrīla Bhaktisiddhānta Pra-
bhupāda, o jovem Śrī Sarveśvara Paṇḍā sentiu tanta atração pela nossa filosofia
que se abrigou como discípulo aos pés de lótus deste proeminente vaiṣṇava. Śrīla
Bhaktisiddhānta Prabhupāda lhe concedeu iniciação no templo de Jagannātha
Puri, a Śrī Puruṣottama Maṭha. Como monge, seu nome passou a ser Śrī Sar-
veśvara Brahmacārī.

A previsão do astrólogo
Certa vez, um astrólogo famoso pela precisão infalível de suas leituras, leu as
mãos de Śrī Sarveśvara Brahmacārī e de outro monge que também vivia no
templo. Ao final da leitura, o astrólogo proclamou com toda a convicção: “Faz
parte do destino de ambos, ter esposa e filhos – está escrito, vocês não vão
poder evitar isso.”
Embora Śrī Saveśvara Brahmacāri fosse ainda muito jovem, Śrīla Prabhupā-
da queria que ele se tornasse um sannyāsi em virtude de sua experiência na
prática do kértana (o canto devocional ao Supremo Śrī Kṛṣṇa) e de seu vasto
conhecimento do siddhānta, as perfeitas conclusões filosóficas da escola gau-
diya-vaiṣṇava.
Mas a previsão do astrólogo tinha deixado o próprio Sri Sarveśvara Brahmaca-
ri relutante em aceitar o voto de sannyāsa, com medo de que o desejo de se casar es-
tivesse latente em seu íntimo. Percebendo a resistência do jovem monge, seu guru,
Śrīla Prabhupāda, disse: “Sannyāsa significa render-se plenamente aos pés de lótus
de Śrī Kṛṣṇa. Por que você está com medo de se refugiar em abhaya-caraṇāravinda

47
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Śrī Krṣṇa, aquele que propicia toda a coragem?”


Śrī Sarveśvara Brahmacārī, então, foi iniciado como renunciante em 1936
sendo, de fato, o último discípulo a tomar sannyāsa do próprio Śrīla Bhaktisi-
ddhānta Prabhupāda. Nessa ocasião, ele recebeu o nome de Śrī Śrīmad Bhakti
Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja.
O outro brahmacārī citado na previsão do grande astrólogo acabou se casan-
do, mas Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja, nunca.
Muito tempo depois, o astrólogo se encontrou novamente com Śrīla Yāyā-
vara Mahārājá e, ao analisar de novo a palma de sua mão, admitiu: “Não sei o
que dizer. As linhas de sua mão estão diferentes, elas mudaram e, com elas, o
seu destino. Eu já tinha ouvido dos próprios vaiṣṇavas, que quando alguém
se firma de fato em devoção, em kṛṣṇa-bhakti, tudo o que constava para tal
pessoa no livro da providência se dissolve, mas nunca tive muita fé nessa afir-
mação. Porém, agora estou diante da prova de que isso é a mais pura verdade.
Bhakti, a devoção a Deus tem realmente o poder de mudar nosso destino e o
karma escrito nas linhas das mãos!”

Não se precipite ao elogiar alguém – elogios podem tornar uma


pessoa orgulhosa e ocasionar sua queda
Śrīla Yāyāvara Gosvāṃī Mahārāja era um dūra-darśī—alguém capaz de pre-
ver com clareza o que irá acontecer no futuro.
Um episódio ilustra essa sua característica bastante incomum. Em 1960,
meu adorável (paramārādhyatama) Guru Mahārāja, Śrīmad Bhakti Dayita
Mādhava Gosvāmī Mahārāja, havia organizado um festival no nosso templo,
na Śrī Chaitanya Gauḍīya Maṭha de Vṛndāvana, para celebrar a instalação das
deidades de Śrī Gaurāṅga Mahāprabhu e Śrī Śrī Rādha-Govinda. Nessa ocasião,
ele tinha convidado quase todos seus irmãos espirituais, inclusive o próprio Śrīla
Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja.
Por ser um grande encontro, não tínhamos um lugar amplo o suficiente
para fornecer alojamento e alimento oferecido a Deus no altar (prasāda) para
todos os vaiṣṇavas que viriam.
Várias pousadas (dharmasālās) foram então reservadas. Os planos e os ar-
ranjos foram feitos de tal forma que os vaiṣṇavas puderam honrar a prasāda em
seus respectivos quartos.
Nessa ocasião, um devoto muito jovem que recentemente havia entrado na or-
dem de vida renunciada deu um hari-kathā (uma aula sobre Deus segundo a filosofia
devocional). Por ser relativamente erudito e intelectual, ele fez sua palestra em inglês
fluente, citando muitos versos dos manuscritos sagrados (śāstras). Todos ficaram im-

48
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja

pressionados ao presenciar uma palestra assim tão bem exposta.


No dia seguinte, enquanto honrava a prasāda, Śrī Śrīmad Bhakti Vikāśa Hṛṣīkeśa
Gosvāmī Mahārāja, um outro sannyāsī discípulo de Śrīla Prabhupāda, glorificou o tal
jovem monge renunciante que havia discursado no dia anterior. Śrīla Yāyāvara Gos-
vāmī Mahārāja e Śrīpāda Kṛṣṇa-Keśava Prabhu estavam na sala. E eu também, pois
acabei ficando ali como o responsável para servir a todos.
Ao ouvir o elogio feito ao jovem sannyāsī, Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja
imediatamente interrompeu Śrīla Hṛṣīkeśa Gosvāmī e fortemente o advertiu em
voz alta: “Não há necessidade de glorificar este jovem sannyāsī agora. Embora
ele certamente tenha dado um hari-kathā com muita desenvoltura, sendo ain-
da novo como devoto, quem pode dizer o quanto ele realmente realiza em seu
coração aquilo que pronuncia? Falar é uma coisa, mas quão fixo ele está nesse
caminho? Ainda há muito tempo restante em sua vida. Deixe-o primeiro viver
e crescer no mundo dos vaiṣṇavas antes de tecer suas glórias.”
Há um provérbio na Bengala que diz: morile *ˆjadi urale chāi tabe satīra
guṇa gāi – que significa que é impróprio afirmar que uma mulher é totalmente
casta sem que ela tenha vivido em perfeita castidade a vida inteira, até o mo-
mento em que seu corpo seja cremado e suas cinzas desapareçam no ar... Só
então, diz o antigo ditado, ela pode ser chamada de totalmente casta.
Da mesma forma, a menos que alguém tenha mostrado boa conduta e per-
feita etiqueta, não é muito inteligente glorificar tal pessoa por quaisquer quali-
dades que ela possa demonstrar, tal como a capacidade de falar bem.
Estudiosos mundanos também podem falar muito bem, mas geralmente
eles não têm fé em Śrī Hari, em Deus, no guru e nos vaiṣṇavas. Portanto, quais-
quer que sejam as qualidades que uma pessoa assim possa exibir, estamos sem-
pre falando de características meramente materiais.
Antes desse passatempo, eu havia testemunhado que Śrīla Yāyāvara Gos-
vāmī Mahārāja falava de uma maneira extremamente doce e gentil por nature-
za. Ele sempre era simples, direto e dizia o que sentia.
Em 1962, durante o festival de Kumbha Melā em Haridvāra, ficamos sa-
bendo que o jovem sannyāsī que havia recebido os elogios não estava tão fixo
assim no caminho de bhakti. Lá, ele efetivamente realizou atividades que o le-
varam a deixar a associação dos sábios (sādhus) da Gauḍīya Maṭha e, sucessiva-
mente, passou a criticar a todos.
Preocupação afetuosa por irmãos espirituais
Certa vez, Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja foi para Kālnā quando Śrī Śrīmad
Bhakti Pramoda Purī Gosvāmī Mahārāja estava lá, servindo no templo de

49
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Ananta Vāsudeva. Quando eles se encontraram, Śrīla Yāyāvara Mahārāja dis-


se: “Você assumiu a responsabilidade por este templo, bem como outros di-
ferentes encargos na Śrī Chaitanya Gauḍīya Maṭha. Como você vai conseguir
gerenciar todas essas atividades sozinho? Seria melhor para você investir sua
energia e tempo, integralmente, de todo coração, servindo em um só lugar.”
Depois de aceitar este bom conselho, Śrīla Purī Gosvāmī Mahārāja investiu
toda sua energia e atenção em serviços devocionais exclusivamente na nossa
Śrī Chaitanya Gauḍīya Maṭha.

Apenas se ocupe em kīrtana – Kṛṣṇa irá fornecer o que for


necessário
Muitos anos mais tarde, os brahmacārīs do templo de Śrila Yāyāvara Gosvāmī
Mahārāja ficaram preocupados e agitados ao ver que não havia mais arroz
para cozinhar e oferecer no altar à Ṭhākura-jī (a deidade adorada). Quando
expuseram o problema para Śrīla Mahārāja, ele imediatamente entendeu a
situação e disse: “Não se preocupem.” Depois disso, trancou o portão do tem-
plo, guardando a chave consigo. Foi até os brahmacārīs e disse: “Por favor, fa-
lem sobre Krṣṇa, dêem aulas (hari-kathā) e façam o canto dos Santos Nomes
(kīrtana) para o prazer do Senhor. Não há necessidade de se preocupar com
nada, especialmente porque vocês são devotos.” Depois disso, ele foi para seu
quarto no segundo andar e, mantendo a chave do portão do templo consigo,
ele começou a cantar harināma, os Santos nomes do Senhor, em voz alta.
Depois de algum tempo, apareceu um sujeito batendo no portão do tem-
plo, pedindo para que alguém abrisse, mas ninguém podia escutar, por conta
do canto do kīrtana alto que os brahmacārīs estavam realizando no salão. Fi-
nalmente, Śrīla Mahārāja ouviu de seu quarto que alguém estava batendo do
lado de fora do portão. Após o término de uma das canções do kīrtana e antes
da próxima começar, Śrīla Mahārāja jogou as chaves do segundo andar para o
térreo e pediu que um dos brahmacārīs abrisse o portão e verificasse quem era.
Quando abriram o portão, descobriram que o homem que estava batendo
do lado de fora estava com um saco imenso de arroz nos braços.
Os moradores do templo perguntaram quem havia comprado aquele arroz,
mas o homem respondeu: “Eu não sei. Tudo o que sei é que alguém me pediu
para realizar a entrega aqui. Eu não tenho ideia de quem seja ele.”
Os brahmacārīs perguntaram: “Por acaso ele pagou a tarifa de sua entre-
ga?” “Sim”, respondeu o homem.
Por Śrīla Yāyāvara Gosvami Maharaja ser completamente rendido ao Se-
nhor, o próprio Krṣṇa, vendo a dor que Śrīla Mahārāja sentia por ser incapaz de

50
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja

Lhe oferecer alimentos e preparações (bhoga), arranjou tudo o que era necessá-
rio para a realização de tal serviço.

Apenas se ocupe em kīrtana – Kṛṣṇa irá lhe trazer tranquilidade


Śrīla Yāyāvara Gosvami Maharaja costumava cantar kīrtanas magníficos do
fundo de seu coração. Em certa ocasião, a eletricidade falhou enquanto ele
estava realizando o kīrtana. Sem saber o que fazer, os devotos ficaram inquie-
tos. Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja reagiu imediatamente, dizendo para
que não se incomodassem, começando a cantar em voz alta bhajahu re mana,
śrī nanda-nandana, abhaya-caraṇāravinda re.
Sua conduta foi sempre uma prova de rendição total a Deus. Ele nunca se
preocupou com coisas materiais e queria ensinar aos outros que nunca se pre-
ocupassem com isso.

Vaiṣṇava-aparādha e o dedo infeccionado


Certa vez, um devoto foi ao médico devido a uma infecção ocasionada por
um machucado que ele havia sofrido na mão. Depois de examinar o devoto, o
médico concluiu que a única solução era amputar um dos seus dedos e disse
que ele mesmo poderia realizar a cirurgia dali a poucos dias.
Antes do devoto voltar ao médico para retirar o dedo, ele visitou Śrīla
Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja. Após oferecer sua reverência (praṇāma) a Śrīla
Mahārāja, ele mencionou que removeria seu dedo dali a um ou dois dias. Ao
saber disso, Śrīla Mahārāja respondeu: “Você deve ter cometido alguma vaiṣṇa-
va-aparādha (uma ofensa a um devoto do senhor), o resultado dela é a perda
de seu dedo. Vá imediatamente e implore pelo perdão de quem você ofendeu”.
O devoto assumiu uma expressão grave e admitiu: “Sim. Eu cometi uma
ofensa aos pés de lótus de um devoto puro. Mas tal devoto deixou este mundo.
O que devo fazer agora?"
Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja respondeu: “Vá para o local onde corpo
dele foi cremado e lá implore e chore pelo seu perdão.”
O devoto seguiu as instruções à risca.
Ao chegar no consultório médico para ter o dedo amputado, o médico fez
um último exame e ficou boquiaberto. Ele perguntou: “Que tipo de remédio
você andou tomando e onde, afinal, você comprou esse remédio?”
O devoto respondeu: “Eu não tomei medicamento algum. Por que você
está perguntando isso?” O médico disse: “É incrível. Quando te analisei, não
havia outra opção senão amputar esse dedo. Mas agora vejo que não é mais
necessário. Sua mão vai ficar curada.”

51
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Quem, senão Mādhava?


Todos os anos, logo após o festival de Gaura-pūrṇimā, muitos discípulos de
Śrīla Prabhupāda visitavam o templo de Śrīla Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gos-
vāmī Mahārāja em Koladvīpa, para se encontrarem e tomar prasāda. Num
desses encontros, meu Guru Mahārāja informou seus irmãos espirituais de
que havia uma oportunidade de comprar o local de aparecimento (a casa
onde nasceu) de Śrīla Bhaktisiddhānta Prabhupāda em Jagannātha Purī, su-
gerindo que todos os discípulos de Bhaktisiddhantha Prabhupada se juntas-
sem para adquirir a propriedade em questão. Depois de discutirem o assunto
entre si, alguns de seus irmãos espirituais prometeram ajudar com o dinheiro
que pudessem arrecadar, mas o valor total recolhido acabou sendo quase in-
significante em relação ao preço total. Sentindo-se perplexo sobre o que fazer,
meu Guru Mahārāja sugeriu: “Vamos ter que pensar em outra maneira de
coletar os fundos necessários.”
Naquela época, Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja mencionou um verso
do Nṛsiṁha Purāṇa:
mādhavo mādhavo vāci
mādhavo mādhavo hṛdi smaranti mādhavaḥ sarve sarva kāryesu mādhavam
A tradução diz: “Há Mādhava (termo que significa ‘doçura’ e, ao mesmo
tempo, é um dos nome de Kṛṣṇa) nestas palavras. Há Mādhava em seus co-
rações. Todas as pessoas santas lembram-se de Mādhava, o esposo de Lakṣmī
Devī, a deusa da fortuna, em todos os seus empreendimentos e em todas as
suas ações.”
Embora o nome ‘Mādhava’ neste verso se refira a Bhagavān Śrī Kṛṣṇa,
Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja pronunciou o verso referindo-se ao meu
Guru Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī, comentando:
“Mādhava Mahārāja está nas palavras e nos corações de seus irmãos espiri-
tuais. Todos os seus irmãos espirituais lembram-se que Mādhava Mahārāja é
capaz de coletar qualquer quantidade de lakṣmī (dinheiro). Todos os seus ir-
mãos espirituais lembram-se de Mādhava Mahārāja e de todos os seus incan-
sáveis esforços. Qualquer coisa pode ser realizada quando Mādhava Mahārāja
está presente. Qual é a necessidade de contar com outras pessoas?”
Ao ouvir isso, meu Guru Mahārāja entendeu que seus irmãos espirituais
estavam lhe abençoando, confiando esse serviço a ele, e então prestou sua
reverência prostrada (daṇḍavat-praṇāma) a todos os seus irmãos espirituais.
Assim, ele alegremente aceitou toda a responsabilidade de arranjar o dinheiro
para adquirir o local onde Śrīla Prabhupāda apareceu neste mundo.

52
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja

Sevā-niṣṭha, sua inabalável fé no serviço aos vaiṣṇavas


Depois que o lugar do aparecimento de Śrīla Prabhupāda havia sido com-
prado e enquanto o templo ainda estava em construção no local, meu Guru
Mahārāja organizou, lá mesmo, um festival no dia do aparecimento de Śrīla
Prabhupāda, em 1979. Ele enviou convites pessoais escritos a mão para todos
os seus irmãos espirituais dizendo: “Por favor, abençoe-nos comparecendo a
esse festival.” Todos os que puderam chegaram no primeiro dia dessa linda
celebração. Porém, por não ter recebido resposta de Śrīla Yāyāvara Gosvāmī
Mahārāja, meu Guru Mahārāja imaginou que o convite havia se perdido pelo
correio, enviando-lhe imediatamente um telegrama. Assim que Śrīla Yāyā-
vara Gosvāmī Mahārāja recebeu o telegrama, ele arrumou as malas e viajou
para Jagannātha Purī para poder participar das festividades.
O que geralmente acontece quando um hóspede chega ao seu destino é
que ele quer saber onde pode colocar sua bagagem, tomar banho e onde vai
se acomodar. Mas Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja não era assim. Ao chegar
no festival, a primeira coisa que ele fez foi juntar-se ao grupo do canto devo-
cional (kīrtana). Ele considerou: “A menos que eu preste algum serviço aqui,
que direito tenho de pedir um lugar até mesmo para deixar minhas malas?
Deixe-me primeiro executar o serviço de cantar com devoção e só então será
adequado para mim pedir um local para ficar.” Seu humor de serviço devo-
cional amoroso era assim...

Sempre distribuindo misericórdia


Śrīla Yāyāvara Gosvami Mahārāja oferecia prasāda para todos os seus visitan-
tes, imediatamente, assim que chegassem. Em certa ocasião, ele estava hospe-
dado em um local onde se achavam musambīs (um tipo de laranja indiana),
quando de repente um visitante trouxe uma quantidade dessa fruta de um
lugar muito distante. Embora aquelas frutas tivessem sido levadas especial-
mente para ele, Mahārāja imediatamente as cortou em fatias, oferecendo-as a
todos os devotos presentes. Assim era a sua generosa personalidade.

Seu kīrtana purificante


Parte das últimas instruções de Śrīla Prabhupāda a seus discípulos era que
eles pregassem coletivamente a mensagem de Rūpa-Raghunātha, os discí-
pulos do avatara dourado.[NOTA] Mantendo tal instrução em mente, meu
Guru Mahārāja costumava dizer aos seus irmãos espirituais: “De alguma for-
ma, pela vontade da providência, somos forçados a ficar em cidades separa-
das e criar organizações diferentes. Mas a fim de satisfazer o desejo de Śrīla

53
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Prabhupāda, todos nós devemos nos encontrar assim que possível.” Desta
forma, ele sempre convidava todos os seus irmãos espirituais quando organi-
zava um festival ou alguma reunião em nosso templo. Lá, ele dava a todos os
seus irmãos a oportunidade de falarem sobre as glórias e sobre ensinamentos
de Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvati Prabhupāda.
Durante um desses festivais, um convidado respeitável – um juiz chama-
do Durgānātha Vasu –, que também havia sido apontado como responsável
(sabhā-pati) por presidir o evento em questão, levantou de seu assento e infor-
mou meu Guru Mahārāja que precisava sair por conta de outro compromisso
e, assim, o sabhā-pati (e o hari-kathā) daquela noite estava sendo encerrado.
Muitos discípulos de Śrīla Prabhupāda tinham discursado, entretanto Śrīla
Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja ainda não havia tido a oportunidade de falar.
Vendo que o tempo estava esgotado, meu Guru Mahārāja pediu para Śrīla
Mahārāja que ao invés de falar, executasse o kīrtana. Cumprindo seu pedido,
Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja levantou-se e começou o a cantar.
Guru Mahārāja tinha me pedido para acompanhar o juiz até o carro e
para certificar que ele recebesse alguma prashāda. Depois que ele ofereceu
reverencias (praṇāmas) à deidade (Ṭhākura-jī) e aos vaiṣṇavas ali presentes,
caminhamos juntos em direção ao seu carro. Mas quando estávamos saindo,
Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja começou a cantar: Nārada muni bājāya vīṇā
rādhikā- rāmaṇa-nāme. Ao ouvir esse lindo kīrtana, o juiz ficou fascinado e
voltou ao seu lugar.
Após o fim do kīrtana, o juiz foi até meu Guru Mahārāja e pediu: “Por fa-
vor, leve esse sannyāsī na minha casa amanhã. Eu nunca havia experimentado
nenhum tipo de êxtase como esse que senti agora, ao ouvir seu kīrtana. Foi
um canto tão purificante que tocou meu coração, quero que a minha família
também experimente isso. Enviarei um carro. Todos vocês, por favor, venham
junto a Mahārāja até minha casa para o kīrtana amanhã.”

O significado da palavra 'jīva'


Certa vez, no transcorrer de uma assembleia na Śrī Chaitanya Gauḍīya Maṭha
em Calcutá, Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja comentou um dos famosos afo-
rismos do popular Vivekānanda: “jīve prema kare jei jana sei jana seviche īśvara
– aquele que tem amor sincero pelos homens, serve a Deus”.
Śrīla Mahārāja disse: “De acordo com tal declaração, somente os seres hu-
manos, homens e mulheres, devem ser classificados como jīvas, almas, partí-
culas de consciência ou seres vivos. As cabras, galinhas, peixes, aves e outros
animais por acaso não o são? Será que eles não têm olhos e ouvidos? Eles não
sangram se perfurarmos seus corpos? Eles não comem, dormem, acasalam e se

54
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja

defendem assim como os humanos? Embora eles morem em diferentes lugares,


na água ou na floresta, todos eles também são seres vivos.”
“Portanto, por que os seguidores de Vivekānanda comem animais? Será
que eles constroem hospitais e escolas apenas para os seres humanos por acre-
ditar que apenas seres humanos são dignos de amor? Na realidade, todos os
seres conscientes são entidades vivas, ou jīvas. Quando a compreensão de uma
pessoa sobre Deus, Bhagavān, é plena, ela facilmente percebe que todos os se-
res são partes integrantes do Senhor. Portanto, naturalmente ela terá amor por
todas as categorias de seres e não apenas pelos humanos.”
Depois que Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja terminou sua aula (kathā),
um cavalheiro se levantou e disse: “Vivekānanda era diferente de vocês, sábios
(sādhus); ele estava envolvido intensamente com a melhoria do bem-estar de
todos através da construção de hospitais e escolas, assim como a execução de
muitos outros tipos de caridade. Mas nós não vemos os sādhus da Gauḍīya
Maṭha realizando os mesmos atos de caridade”.
Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja, então, perguntou ao chairman (o me-
diador do evento), um professor universitário chamado Śrī Nārāyaṇa Gos-
vāmī, se ele poderia lhe conceder mais tempo para responder ao comentário
do cavalheiro. No entanto, Śrī Nārāyaṇa Gosvāmī disse: “É melhor que eu, es-
tando em um grupo neutro, comente sobre a declaração dele.” Dirigindo-se
ao cavalheiro, ele disse: “Quando você usa a palavra jīva nesse aforisma de Vi-
vekananda, a quem ela se refere? Para algumas pessoas, a palavra jīva se refere
à língua. Será que isso significa então que você está servindo Bhagavān, Deus,
por meio do serviço à sua língua, dando-lhe tudo o que ela deseja (comendo
carne)? Todos os seres vivos são chamados de jīva, não apenas os seres huma-
nos. Por que então os seguidores de Vivekānanda comem ovos, carne e peixe
se eles devem amar todas as jīvas?
“Se os seguidores de Vivekānanda aceitarem que a palavra jīva se refere
apenas aos seres humanos, então qual é a necessidade de existirem prisões para
desregrados? Não deveríamos fechar todas as prisões e servir os prisioneiros
da maneira que eles desejam, dando-lhes álcool, drogas e assim por diante?
É isto que realmente entendemos por jīva-sevā? Será que isso é equivalente
a servir a Deus? Espero que Vivekānanda não esteja supondo que devamos
servir essas pessoas que não têm controle sobre seus sentidos e ações ou cujos
desejos prejudicam outros seres vivos. Muito antes de Vivekānanda nascer,
o Avatar Dourado Śrī Caitanya Mahāprabhu deu a conclusão perfeita dos
śāstras: 'jīve dayā, kṛṣṇa-nāma, sarva-dharma-sāra – a essência de todos os
princípios religiosos é mostrar compaixão a todos os seres e cantar os Santos
Nomes: kṛṣṇa-nāma.”

55
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Quando o cavalheiro que se opôs ao kathā de Srila Yāyāvara Gosvāmī


Mahārāja ouviu a explicação de Śrī Nārāyaṇa Gosvāmī, ele pediu desculpas,
admitindo que não entendeu os significados profundos das escrituras e que ele
havia sido atraído pelos aforismos populares de Vivekānanda, sem compreen-
der se estavam ou não em harmonia com as escrituras originais.

Seu amor por cozinhar e por comer a prasāda de Jagannātha


Śrīla Mahārāja soubesse que um devoto tinha vindo de Jagannātha Purī, ele iria
perguntar se haviam trazido alguma prasāda de lá e onde é que ela estava. Ele
gostava especialmente do arroz e das lentilhas da prasāda distribuída no templo
de Jagannātha. Sabendo disso, sempre trazíamos esse alimento oferecido no al-
tar do templo para ele quando visitávamos Jagannātha Purī.
Ele também era um excelente cozinheiro, especialista em encontrar e utili-
zar tudo o que estava a disposição quando não tinha os ingredientes necessários.
Certa vez, quando ele não dispunha dos ingredientes adequados para fazer um
chutney, ele viu uma árvore com folhas e perguntou: “Que árvore é essa?” Quando
ele soube que era uma árvore de tamarindo, ele fez chutney das folhas da árvore!

Ocupando todos a serviço de Bhagavān


Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja costumava ocupar todos no serviço a Deus,
Bhagavān, de acordo com as respectivas qualificações e com as qualidades de
cada um. Se um sannyāsī ou brahmacārī viesse até seu templo, ele pedia para
que falassem hari-kathā. Ele pedia isso inclusive a mim. Por ele ser extrema-
mente sênior a nós, ficávamos com vergonha de falar na frente dele. Detectando
nossa timidez, ele dizia: “Não se preocupem, eu não estarei presente,” – e depois
ia para o seu quarto, no andar de cima. Mais tarde, ele nos dizia que tinha ouvi-
do tudo o que havíamos falado. Ele possuía a convicção de que devemos ocupar
imediatamente, quem quer que a gente encontre, de serviço a Deus.
Suas bênçãos e encorajamentos a mim
Certa vez, Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja falou sobre mim em uma assembleia,
dizendo: “Este devoto não possui ciúme, inveja ou um humor hostil com ninguém.
Ele é um nirmatsara-sādhu, uma pessoa cujo coração é desprovido de inveja.”
Embora eu realmente não tivesse alcançado tais qualidades, ele falou dessa
maneira para me abençoar, para que assim, um dia eu as alcançasse de verdade.
Pela misericórdia de meu paramārādhyatama Guru Mahārāja, tive a oportuni-
dade de servir Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja e assim pude viver em sua com-
panhia, observar sua conduta perfeita e receber suas bênçãos.

56
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja

57
Çré Çrémad Bhakti Kumuda
Santa Gosvämé Mahäräja

Eu considero Śrī Śrīmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja, discípulo


de Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura, um dos meus śikṣā-
-gurus (mestres que instruem sobre os detalhes da prática de bhakti). Seu pai,
Śrī Vaikuṇṭhanātha Prabhu, também era discípulo do mesmo Śrīla Prabhupā-
da, portanto muitos devotos visitavam sua casa com frequência.
Certa vez, Śrī Śrīmad Bhakti Hṛdaya Vana Gosvāmī Mahārāja e Śrī Prāṇa-
vānanda Brahmacārī (que mais tarde, como sannyāsī recebeu o nome Śrī Śrīmad
Bhakti Pramoda Purī Gosvāmī Mahārāja) visitaram sua casa quando ele era ain-
da um menino. Śrī Prāṇavānanda Brahmacārī percebeu que Śrīla Santa Gosvāmī
Mahārāja – que na época em que ainda não era sannyāsī se chamava Śrī Rādhā-
-Ramaṇa dāsa – ficou a maior parte de seu tempo sentado na sala do templo sere-
namente, ouvindo hari-kathā com atenção e cantando os Santos Nomes sempre
que possível. Ao analisar esse comportamento, Śrī Prāṇavānanda Brahmacārī
disse ao pai do menino: “Ficaríamos muito felizes se o seu filho morasse conosco
no templo (matha). Você deixaria ele vir conosco?”
Seu pai respondeu: “Se por acaso ele concordar... Tudo bem. Eu não discor-
daria.” E o menino aceitou! Foi embora de casa com os dois vaiṣṇavas que haviam
visitado seu pai! Eles foram para uma maṭha no bairro de Ulṭa Ḍāṅgā em Calcutá,
onde ele foi matriculado numa escola perto dali. Depois disso, passou a viver entre
suas tarefas no templo e a rotina de estudos. Ao ver a sinceridade de Śrī Rādhā-ra-
maṇa dāsa, Śrīla Prabhupāda o iniciou com harīnāma e dīkṣā, deu-lhe o nome Śrī
Rādhā-ramaṇa Brahmacārī.

Sua perícia no serviço


Passado algum tempo, Śrī Rādhā-Ramaṇa Brahmacārī foi transferido para a Śrī
Caitanya Maṭha em Māyāpura, onde o jornal diário Dainika Nadiya Prakāśa era
impresso. Certa vez acabou o papel para a impressão do jornal do dia seguin-
te, mas a chuva pesada impediu a entrega de uma nova remessa de papel. Śrī
Prāṇavānanda Brahmacārī, que era o editor do jornal na época, informou Śrīla
Prabhupāda sobre o problema e perguntou o que fazer.
Śrīla Prabhupāda disse: “Alguém pode trazer papel de nossa Bhāgavata

59
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Press em Kṛṣṇanagara?” Śrī Prāṇavānanda Brahmacārī respondeu: “Rādhā-


-Ramaṇa Brahmacārī está aqui. Ele vai se você pedir.”
Śrīla Prabhupāda então disse a Śrī Rādhā-Ramaṇa Brahmacārī que fosse
buscar papel. E o menino imediatamente partiu para Kṛṣṇanagara de bicicleta.
Depois de percorrer uma longa distância debaixo de chuva forte, ele finalmen-
te chegou lá. Após prepararem o suprimento de papel, os devotos na Bhāgavata
Press amarraram tudo na parte traseira da bicicleta. Porém, eles não amarra-
ram direito e todo o pacote de papel caiu no chão durante a viagem de volta.
Śrī Rādhā-Ramaṇa Brahmacārī imediatamente removeu seu dhotī, (um tecido
de aproximadamente cinco metros que os homens na Índia usam para cobrir
as pernas) e o substituiu pelo uttarīya (um tecido menor, usado para cobrir o
tórax). Ele usou o dhotī para amarrar os pacotes de papel, prendendo-os fir-
memente na bicicleta e pedalou cuidadosamente até Māyāpura. Após o retor-
no de Śrī Rādhā-Ramaṇa Brahmacārī, Śrīla Prabhupāda foi informado sobre o
que tinha acontecido e elogiou o menino, ressaltando que mesmo sendo muito
jovem, ele havia demonstrado grande habilidade em uma situação difícil.

O navio a vapor e a tempestade


Os devotos da Śrī Madhva Gauḍīya Maṭha em Ḍhākā certa vez escreveram para
Śrīla Prabhupāda e pediram que ele enviasse alguém perito em conduzir o can-
to devocional (kīrtanīyā) ao templo (maṭha). Sabendo que Śrī Rādhā-ramaṇa
Brahmacārī era um kīrtanīyā excepcional, Śrīla Prabhupāda perguntou se ele
poderia viajar sozinho. Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī afirmou com confian-
ça que sim e, aceitando a ordem de seu gurudeva, partiu em sua viagem para
Ḍhākā, o que o obrigou a viajar primeiro de navio a vapor e depois pela estrada.
Sendo o primeiro passageiro a chegar no navio, Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī
ocupou o assento que ficava ao lado de uma das janelas. Após algum tempo,
o navio lentamente começou a se encher de passageiros. Os passageiros que
chegaram depois dele disseram: “Saia daí. Por que você está sentado perto da
janela? Você ainda é uma criança e pode sentar-se em qualquer outro lugar. O ar
fresco é essencial para pessoas mais velhas. Por que você ocupou esse assento?
Levante-se e se acomode em outro lugar”.
Outra pessoa comentou: “Hoje em dia as pessoas trazem crianças ao mun-
do, e sem assumir a responsabilidade de cuidar delas, as deixam na maṭha. Tais
crianças, então, tornam-se ‘sādhus’, devido a sua preguiça e aversão ao trabalho”.
Depois de ouvir esses comentários, Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī calmamente
se levantou de seu assento e ficou perto da entrada do navio, de modo que nin-
guém se sentisse incomodado. Vendo isso, os passageiros ficaram satisfeitos e

60
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja

permaneceram pacíficos.
Cerca de dez minutos depois que ele havia mudado de lugar, um anún-
cio foi dado no alto-falante: “Todos prestem atenção, por favor. O oceano está
muito agitado hoje e não estamos conseguindo controlar o navio. Isso é muito
perigoso. Tudo pode acontecer, então lembrem-se de Deus e orem a Ele por
nossa segurança”.
Ao ouvir isso, um dos passageiros, um homem velho que anteriormente
havia reclamado de Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī, começou a chorar e lamen-
tou: “Minha filha vai se casar e eu estou carregando seu dote de casamento e os
ornamentos. Se algo de ruim acontecer ao nosso navio, o que vai ser do casa-
mento de minha filha? Tudo será arruinado”.
Outro passageiro respondeu: “Você não ouviu o anúncio? Eles estão dizen-
do para lembrarmos de Deus, de modo que este não é o momento apropriado
para falar tais coisas”.
O velho respondeu: “Deus não vai nos ouvir, porque nós nunca cantamos
Seus Santos Nomes (bhajana). Mas certamente Ele vai ouvir esse jovem sādhu.
Embora seja muito jovem, ele compreendeu o verdadeiro valor da vida“.
Depois disso, todos os passageiros que tinham anteriormente reclamado
de Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī colocaram ele sentado no meio deles e com
força pediram que ele orasse por segurança. Ele respondeu: “Eu ouvi de meu
Guru Mahārāja que o Senhor só ouve as orações dos Seus devotos rendidos.
Como eu ainda não estou rendido a Ele, Ele não vai sequer me ouvir. O que di-
zer de realizar qualquer pedido que eu faça? No entanto o meu Guru Mahārāja
também mencionou que devemos sempre cantar os Santos Nomes de Deus em
conjunto (nāma-saṅkīrtana). Portanto, eu posso cantar o mahā-mantra hare
kṛṣṇa e todos vocês podem repeti-lo em coro. Mas eu não posso garantir que
Deus vá nos ouvir ou nos salvar”. Todos os passageiros aceitaram sua proposta
e começaram a realizar o kīrtana. Depois de algum tempo, o navio chegou em
segurança ao seu destino.
Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja mencionava esse passatempo com frequên-
cia para nos ensinar que tanto as críticas quanto os elogios das pessoas mate-
rialistas não têm absolutamente nenhum valor, portanto nunca devemos nos
deixar afetar por aquilos que eles dizem. Tais pessoas elogiam e criticam apenas
para o prazer de seus próprios sentidos.
A visão profunda das grandes personalidades
Uma vez, Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja e meu paramārādhyatama Guru
Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja, estavam hos-

61
Viśuddha Caytania-Vāṇī

pedados na Gauḍīya Maṭha de Madras como brahmacārīs. Meu Guru Mahārāja


era então conhecido como Śrī Hayagrīva Brahmacārī. Embora fossem brahma-
cārīs e não sannyāsīs, eles eram respeitados como sêniores experientes porque
seguiam Śrīla Prabhupāda de maneira sincera.
Durante sua permanência, Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī notou que um
brahmacārī específico recusou a companhia dos outros moradores da maṭha
e quase não falava com ninguém. Ao invés disso, se mantinha sozinho sempre
que podia, a fim de se concentrar em sua leitura e cantar. Notando algo suspeito
nessas atividades, Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī comunicou suas preocupa-
ções a Śrī Hayagrīva Brahmacārī. Ele disse: “Prabhu, embora este brahmacārī
esteja cantando, lendo muito e evitando conversas inúteis, sinto que algo está
errado. Que tal investigar o que está acontecendo, por gentileza?”
Śrī Hayagrīva Brahamacārī entendeu a motivação legítima da preocupação
de Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī, chamou o tal brahmacārī e perguntou: “Ouvi
dizer que você não se relaciona com outros moradores da maṭha, não brinca e
nem se senta com eles para honrar prasāda. Por quê?"
O brahmacārī respondeu: “Eu não desejo me envolver em fofocas e é por
isso que eu prefiro ficar sozinho”.
Śrī Hayagrīva Brahamacārī disse: “Eu acho que seria melhor para você se
sentar com eles e cultivar uma relação humana. Tente conduzir a sua vida de uma
forma natural, assim como os outros moradores da maṭha fazem. Mesmo que
você brinque e se envolva em conversas triviais, isso não é um problema. Por quê?
Porque há uma lição a ser aprendida em cada atividade dos devotos no templo”.
Sentindo-se totalmente confuso, o brahmacārī respondeu: “Prabhu, mes-
mo sendo muito mais sênior que eu, você está dizendo que eu deveria fazer
o oposto do que eu ouvi de outros Vaiṣṇavas. Eu não quero que você se sinta
como se eu estivesse te desafiando, mas Śrīman Mahāprabhu disse para não
ouvirmos ou falarmos coisas triviais. Mas você está me pedindo para entrar em
conversas sobre assuntos materiais com brahmacārīs se for necessário. Isso é
muito estranho”.
Śrī Hayagrīva Brahmacārī em seguida explicou-se: “Ouça com atenção.
Atualmente, você está residindo nesta maṭha apenas com seu corpo e não com
a sua mente. Se você não prestar atenção em minhas palavras, depois de algum
tempo seu corpo também irá partir daqui; você certamente voltará para a sua
casa. Mas se você seguir o que sugeri, pelo menos irá continuar aqui fisicamen-
te e, depois, gradualmente tua mente também estará ligada à maṭha. Portanto
fique tranquilo e, por favor, tente seguir o que eu disse”.
Este exemplo mostra que, embora Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī fosse

62
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja

consideravelmente jovem, ele era um dūra-darśī, alguém capaz de ver o que


acontecerá no futuro, além das circunstâncias atuais. Enquanto pessoas comuns
possuem uma concepção externa de conduta própria e imprópria, a percepção
daqueles que são dūra-darśī se estende além das aparências externas. Tais pesso-
as podem ver claramente o que está no fundo dos corações alheios, bem como o
que será deles no futuro. Tanto o meu Guru Mahārāja quanto Śrī Rādhā-ramaṇa
Brahmacārī puderam perceber que, devido à mente deste brahmacārī não estar
fixa em servir Śrī Hari, o guru e os vaiṣṇavas, ele rapidamente iria se cansar de
seu sādhana rigoroso e deixaria a maṭha.
Algum tempo depois, tal brahmacārī recebeu uma carta. Mas em vez de
ela ter sido enviada ao templo, ela foi endereçada a uma família que morava
nas proximidades. Vendo que uma carta tinha chegado para um morador da
maṭha, a família explicou a situação para Śrī Hayagrīva Brahmacārī e entregou-
-lhe a carta. Ao ler tal carta, ele soube que o jovem brahmacārī havia previa-
mente enviado uma carta para a sua mãe, informando-a de que ele voltaria para
casa em breve e que ela então deveria arranjar um emprego e uma esposa para
ele. A carta que Śrī Hayagrīva Brahmacārī leu era a resposta da mãe, na qual ela
aceitava a responsabilidade e dizia para ele voltar rapidamente. Pouco tempo
depois o brahmacārī deixou a maṭha.
Embora absolutamente nenhuma indicação de sua perturbação mental
fosse visível quando ele estava hospedado na maṭha, tanto Śrī Rādhā-ramaṇa
Brahmacārī quanto meu Guru Mahārāja entenderam a situação de forma muito
clara. Devido as profundas impressões mentais (saṁskāras) que ele tinha acu-
mulado como resultado de morar no templo, esse brahmacārī acabou aceitando
a verdade última, voltou à maṭha por volta dos sessenta e cinco anos de idade e,
lembrando-se da dura-darśitā de Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja, acabou rece-
bendo dele iniciação na ordem de vida renunciada (sannyāsa).

Ele me salvou de um grande perigo


Śrīla Prabhupāda deixou este mundo quando Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī
estava saindo da infância. Naquela época, o coração de Śrī Rādhā-ramaṇa
Brahmacārī ficou abalado devido ao estado lamentável em que se encontrava
a organização da Gauḍīya Maṭha após a partida de Śrīla Prabhupāda. Desde
muito jovem, ele sentiu que seria melhor voltar para a casa de sua família em
vez de suportar aquela triste situação. Pensando dessa forma, Śrī Rādhā-ramaṇa
Brahmacārī expressou esse desejo a seu pai, Śrī Vaikuṇṭhanātha Prabhu, que
aceitou sua proposta e o recebeu novamente em casa.
Ouvindo a notícia de que Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī havia partido da

63
Viśuddha Caytania-Vāṇī

maṭha, meu Guru Mahārāja foi até sua casa e perguntou a Śrī Vaikuṇṭhanātha
Prabhu: “Você é discípulo de Śrīla Prabhupāda. Mesmo que o seu filho esteja
pedindo para voltar para casa, como você pode permitir que ele o faça?”
Śrī Vaikuṇṭhanātha Prabhu respondeu: “Na verdade, eu não desejo que ele
deixe a maṭha, mas ao mesmo tempo eu não quero que ele se sinta mal e pen-
se que não há ninguém para apoiá-lo por ter escolhido outro caminho; eu não
quero que ele se sinta abandonado ou privado de sua herança. Por causa disso,
eu permiti que ele voltasse para casa. Se você prefere que ele permaneça como
brahmacārī e retorne à maṭha, então ele pode ir com você, se ele concordar com
isso. Não tenho objeção alguma, e eu de fato ficaria satisfeito.”
Guru Mahārāja então discutiu o assunto com Śrī Rādhā-ramaṇa Brahmacārī
e eles saíram juntos para a maṭha pouco tempo depois. Embora meu Guru
Mahārāja não fosse um sannyāsī naquela época, ele pediu a Śrī Śrīmad Bhakti
Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja que concedesse sannyāsa a Śrī Rādhā-
-ramaṇa Brahmacārī. Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja aceitou a proposta e ele
recebeu a iniciação no templo Kṣīra-corā Gopīnātha em Remuṇā. Desde então,
ele é conhecido como Śrī Śrīmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja.
Nós nunca tínhamos ouvido alguém falar sobre este fato, incluindo o nosso
Guru Mahārāja, até que o próprio Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja nos contou so-
bre o fato durante o parikramā de Vraja-maṇḍala em Vṛndāvana, e também em
outra ocasião na nossa Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha em Chandigarh. Śrīla
Mahārāja frequentemente dizia: “Eu tenho sido incrivelmente abençoado
pela orientação afetuosa de pūjyapāda Mādhava Mahārāja. Ele salvou minha
vida. O que teria acontecido comigo se eu tivesse ficado em casa? Ele me
salvou de um grande perigo”.
Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja e meu Guru Mahārāja estavam entre os
muitos discípulos de Śrīla Prabhupāda que ficaram na Śyāmānanda Gauḍīya
Maṭha em Medinīpura, uma cidade da Bengala. Embora Guru Mahārāja tenha
coletado muitas doações e comprado a propriedade para a construção daquela
maṭha, ele fez tudo em nome de Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja e não em seu
próprio nome. Tal era o carinho que tinha por ele. Śrīla Santa Gosvāmī Mahārā-
ja costumava dizer: “Eu não sou o mestre de algo ou de alguém. Eu sou apenas
um servo. Enquanto meus irmãos espirituais aceitarem o meu serviço, eu os
servirei. Caso já não estejam mais interessados em receber os meus serviços,
procurarei alguém que possa me dar abrigo e ficarei por lá”.
Seu rigor e gravidade
Quer ele estivesse participando de uma reunião, organizando um festival ou

64
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja

sentado como chairman de uma assembleia, Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja era
sempre extremamente pontual. Fomos testemunhas de que quando ele presidia
um encontro e alguém falava hari-kathā além do tempo previsto, Śrīla Mahārāja
imediatamente o interrompia e terminava seu discurso. Se o orador fosse júnior em
relação a Śrīla Mahārāja, ele o segurava pelas orelhas e pedia que se sentasse e, aos
sêniores, de maneira educada mas com firmeza, ele pedia que parassem de falar.
Ele não tolerava desatenção. Se visse qualquer um durante o hari-kathā –
fosse um bramacārī, um sannyāsī, uma senhora, uma criança ou quem quer que
fosse – fazer algo além de ouvir de maneira sincera, ele repreendia essa pessoa
sem lhe dar a oportunidade de falar, dizendo: “Por favor, se retire. Você não sabe
a etiqueta de como se sentar em uma assembleia de vaiṣṇavas.”
Certa vez, uma mãe de família (mātā-jī) veio ouvir o hari-kathā com seu
neto, que tinha aproximadamente um ano e meio de idade. Quando o menino
começou a chorar em voz alta durante o kathā, ela tentou acalmá-lo. Vendo
isso, Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja disse a ela: “Não fique nesta assembleia por
mais tempo. Somente pessoas atentas que dão prioridade ao hari-kathā são
bem-vindas aqui, e não qualquer outro tipo de pessoa. Você acredita que cui-
dar de seu neto seja mais importante e que o hari-kathā seja secundário. Você
acha que este é um lugar onde as pessoas podem se sentar e fazer o que quiser?
Nosso tempo é muito precioso, não temos interesse em desperdiçá-lo. Por favor,
retire-se imediatamente”.
Se Śrīla Mahārāja visse que uma pessoa que dedicou sua vida ao serviço
constante, ao estudo e ao celibato (brahmacārya) não estivesse seguindo os re-
gulamentos necessários, tais como se barbear e cortar os cabelos na lua cheia
(pūrnimā), ele o castigava dizendo: “Por que você aceitou as roupas de um
brahmacārī? Você só está enganando a si mesmo. Pare de tentar arruinar a sua
vida. Basta seguir os ensinamentos dos nossos gurus. Mesmo se você não enten-
der o propósito de cada princípio, garanto que você será beneficiado ao seguí-los“.

Śrīla Mahārāja e o māyāvādī


Em certa ocasião, Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja organizou um encontro em seu
templo de Bihālā em Calcutá e concedeu a palavra a muitos convidados diferen-
tes. Entre eles estava uma série de discípulos de Śrīla Prabhupāda, incluindo Śrī
Śrīmad Bhakti Bhūdeva Śrautī Gosvāmī Mahārāja e discípulos-netos de Śrīla
Prabhupāda de vários templos, tais como pūjyapāda Bhaktivedānta Nārāyaṇa
Mahārāja e eu. Também foi convidado um velho brāhmaṇa professor univer-
sitário de uma faculdade local. Seu rosto exibia uma falta de interesse durante
a assembleia e, quando chegou a hora de ele dar sua palestra, ele expôs a filoso-

65
Viśuddha Caytania-Vāṇī

fia māyāvāda. Declarou: “Aham brahmāsmi – sou espírito (brahma)” e outros


aforismos māyāvādas. Depois que o professor terminou sua exposição, ele se
juntou aos outros oradores no palco e continuou a parecer visivelmente desin-
teressado durante os discursos sucessivos.
Quando chegou o momento de Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja dar o seu dis-
curso, Śrīla Mahārāja perguntou: “Você é espírito (brahma)?” O professor res-
pondeu: “Sim, eu sou.” Śrīla Mahārāja perguntou: “Então é verdade que você não
sofre mudança ou transformação (vikāra)?” “Correto. Eu não me transformo",
o professor disse. Então, com uma mão segurando o seu bastão de renunciante
(sannyāsa-daṇḍa) e a outra com punhos fechados, Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja
se levantou da cadeira e ameaçou o professor māyāvadī, simulando um gesto
de ataque. Aterrorizado, o velho homem se encolheu. Śrīla Mahārāja repetiu o
gesto mais duas vezes e o homem se encolheu de medo mais duas vezes.
Śrīla Mahārāja declarou: “Você não é espírito (brahma)! Brahma é nirvi-
kāra; nunca sofre mudança e nunca reage a nada. Ninguém pode prejudicar
o espírito (brahma), portanto, o espírito (brahma) nunca vai reagir em qual-
quer situação. Ao tornar-se temeroso agora mesmo, você revelou a toda a
congregação que você não é brahma."
Em poucas palavras, Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja desmascarou a filosofia
do velho brāhmaṇa. Com toda a assembleia, incluindo as crianças, rindo muito
alto dele, o velho professor se sentiu mortificado e implorou o perdão de Śrīla
Mahārāja. NOTA

Seu guru-niṣṭhā
Ouvi Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja expor seu ponto de vista sobre os ensina-
mentos que Śrī Caitanyadeva deu a Śrīla Sanātana Gosvāmīpāda:
ra 'svarūpa' haya—kṛṣṇera ‘nitya-dāsa’
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 20, 108)
Ele disse: “Este verso diz que a forma espiritual (svarūpa) do ser vivo (jīva)
é ser um servo eterno de Kṛṣṇa e, embora isso seja a mais pura verdade, eu gos-
taria de interpretá-lo de uma forma ligeiramente diferente. Do meu ponto de
vista, a palavra kṛṣṇa aqui não significa 'Kṛṣṇa que está realizando Seus passa-
tempos em Goloka Vṛndāvana.’ Em vez disso, eu considero que significa 'Kṛṣṇa,
que aparece na forma de guru neste mundo, liberta almas sinceras das garras de
māyā e as leva aos pés de lótus de Kṛṣṇa, onde elas se ocupam em Seu serviço.
A declaração de Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī dá suporte a minha posição:
guru rūpe kṛṣṇa kṛpā karena bhakta-gaṇe
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Ādi-līlā 1.45)

66
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja

Em Sua forma como guru, Kṛṣṇa distribui Sua misericórdia para os


devotos.

“Portanto, não é incorreto dizer jīvera ‘svarūpa’ haya – gurura ‘nitya-dāsa.’


(A forma espiritual (svarūpa) do ser vivo (jīva) é ser um servo eterno de um
guru fidedigno, um devoto puro).
“Por que eu aceito esse ponto de vista? Porque desde tempos imemoriais
estive vagando pelo universo em diferentes formas, aceitando corpos das di-
ferentes 8.400.000 espécies de vida, mas somente nesta encarnação Kṛṣṇa ma-
nifestou-Se diante de mim como śrī guru para me abençoar com tudo. Assim,
considero que Sua forma como śrī guru seja eternamente adorável”.
Vaiṣṇavas como Śrī Śrīmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārā-
ja e muitos outros discípulos de Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī
Ṭhākura são mahān-vibhūtīs, grandes personalidades. Suas vidas, conduta,
pensamentos, visão e tudo o mais sobre eles é tão impressionante que nos sur-
preendemos cada vez que ouvimos e falamos sobre eles.
Meu serviço a ele era sua misericórdia para comigo
Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja, sendo muito misericordioso comigo, me deu a
oportunidade de servi-lo de várias maneiras. Uma vez, o meu Guru Mahārāja me
enviou para Purī juntamente com o nosso pūjyapāda Yasoda-jīvana Brahmacārī,
pūjyapāda Ācārya Mahārāja (cujo nome era Gauraṅga-prasāda Brahmacārī na
época) e outros para o trabalho importante de adquirir a propriedade do local
de nascimento de Śrīla Prabhupāda em Jagannātha Purī. Enquanto estávamos lá,
ficamos com Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja em uma pequena casa que ele tinha
comprado com o objetivo de transformá-la em uma maṭha. Quando chegou a
época do festival Ratha-yātrā, enviei Gauraṅga-prasāda Prabhu para pedir humil-
demente a Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja que nos permitisse ficar em uma pensão
(dharmaśālā) nas proximidades durante o festival, uma vez que muitos dos seus
discípulos viriam para ficar com ele na pequena casa. Poderíamos voltar após o
festival, mas não queríamos nos aproveitar de Śrīla Mahārāja ou seus seguidores.
Ao ouvir o nosso pedido, Śrīla Mahārāja carinhosamente, mas com firme-
za, respondeu em grande surpresa: “Como é possível que eu posso aceitar isso?
As palavras, 'Sim, vocês podem ficar em outro lugar,' nunca poderiam sair de
minha boca. Por quê? Porque o trabalho que você veio fazer aqui – a compra do
imóvel do local de nascimento de Śrīla Prabhupāda – era, na verdade, o nosso
dever, já que somos seus discípulos. Mas não fizemos o menor esforço para isso
e vemos que você está com muito entusiasmo realizando este trabalho. Portan-
to, é impossível para mim aceitar essa proposta e peço que, embora não seja-

67
Viśuddha Caytania-Vāṇī

mos capazes de hospedá-los com tantas facilidades, por favor, faça os ajustes
necessários com as instalações que podemos fornecer, para que vocês possam
permanecer aqui tranquilamente”.
Um vaiṣṇava nunca pensa: “Este lugar é nosso e podemos controlar tudo.
Tudo deve ser feito de acordo com o nosso desejo”. Em vez disso, eles pensam:
“Não, este lugar não é nosso. Este lugar pertence ao vaiṣṇavas e nós somos meros
moradores, não os seus proprietários. Iremos cooperar com quem quer que ve-
nha, acomodando-os de acordo com os recursos disponíveis”.
Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja depois me deu a oportunidade de construir
uma maṭha adequada no terreno daquela casa. Ele me pediu: “Este é um lugar
tão pequeno, mas meus discípulos estão me dizendo que você pode criar uma
planta decente e um esboço para a construção de uma maṭha”.
Eu disse: “Sim, mas por ser pequeno, não pode ser construído de forma re-
tangular. Deve ser feito de uma forma paralela – a parte residencial (āśrama) pode
ser de um lado e o templo pode estar do outro”.
Ele respondeu: “Eu não entendo de 'construção paralela', 'construção re-
tangular' ou qualquer uma dessas coisas. Por favor, apenas faça de tal forma
que tudo aconteça corretamente”. Depois disso, desenhei a planta, inspecionei e
supervisionei todo o processo de construção.
Em um outro momento, ele queria organizar uma grande festa para a inau-
guração de uma maṭha que ele havia construído em Keśīyāḍī, no distrito de
Vardhamāna, na Bengala. Eles propuseram ao rei de Jagannātha Purī que com-
parecesse como um convidado de honra do festival, mas ele se recusou. Sabendo
que eu tinha um relacionamento amigável com o rei, Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja
escreveu para mim, pedindo que eu convencesse o rei a participar da ocasião.
Devido ao pedido de Śrīla Mahārāja, visitei o rei, que disse: “Eu já expliquei
que não poderei participar”.
Eu respondi brincando: “De tal frase, basta remover a palavra 'não' e, então,
será possível”. O rei disse que, embora ele quisesse participar, ele tinha um com-
promisso em outro lugar, ao mesmo tempo em que o festival ocorreria. Depois
de perguntar mais, eu vim a saber que a nova maṭha ficava no caminho de seu
outro compromisso. Eu disse a ele para não se preocupar e que gostaria de or-
ganizar suas viagens e todo o restante se ele concordasse em visitar a maṭha por
um curto período de tempo no caminho. Ouvindo isso, o rei aceitou a minha
proposta. Eu, então, trouxe pessoalmente o rei à maṭha de Śrīla Santa Gosvāmī
Mahārāja para o festival de inauguração.
Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja pediu que eu falasse hari-kathā no mesmo
dia. Eu escolhi explicar sobre a necessidade de uma Gauḍīya Maṭha em Keśīyāḍī,

68
Capítulo 2 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja

um lugar conhecido por sua abundância de templos. Em tal lugar, pode parecer
que não haveria necessidade de uma pequena maṭha por causa de sua proximi-
dade com muitos templos diferentes. Expliquei que, apesar disso, houve de fato
uma grande necessidade da inauguração de uma Gauḍīya Maṭha, porque mes-
mo que as pessoas tivessem por lá a oportunidade de ir para os muitos templos
da região, elas nunca teriam seus corações transformados. Mas a maṭha é um
lugar onde as pessoas podem tornar suas vidas bem-sucedidas, cobrindo seus
corpos inteiros com a poeira dos pés dos devotos puros. Aqui, um professor es-
piritual estará presente e, aqueles que quiserem se tornar estudantes espirituais
sinceros e verdadeiros, serão bem-vindos a frequentar, aprender e praticar. A
maṭha existe para o bem-estar de tais pessoas e fornece uma grande oportuni-
dade para os seus visitantes de se tornarem afortunados recebendo a misericór-
dia dos devotos que lá residem. Na associação de tais sādhus, o aprendizado dos
verdadeiros e profundos significados dos śāstras é inevitável.
Pela misericórdia de Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja, eu era capaz de prestar
vários serviços para ele. E o resultado desses serviços é que ele ficou satisfeito
comigo, nosso relacionamento se aprofundou e sua afeição por mim tornou-se
forte, tanto que, sempre que ficávamos no mesmo lugar, ele nunca me deixava
honrar prasāda sem ele e nem que permanecesse em qualquer outro lugar que
não o seu quarto.
Durante os festivais ou quaisquer outras reuniões onde meu Guru Mahārāja
ou seus irmãos espirituais estivessem, eu sempre sentava no chão, enquanto eles
se sentavam no estrado, mas Śrīla Santa Gosvāmī Mahārāja uma vez me pediu
que eu sentasse no palco. Sentindo-me embaraçado de sentar no mesmo nível
que os meus guru-vargas, recusei. Mas meu Guru Mahārāja me disse: “Porque
pūjyapāda Santa Mahārāja deu esta ordem, você deve sentar-se conosco. Não
diga não."
Ele foi o primeiro discípulo de Śrīla Prabhupāda a pedir que eu me sentasse
no estrado. Foi a partir daí que comecei a me sentar no palco, algo que eu nunca
havia feito.
É nosso dever lembrar-nos dos vaiṣṇavas em seus dias de aparecimento e
desaparecimento. Negligenciar esta regra é certamente uma aparādha (ofensa).
Nós definitivamente devemos orar para ele continuar a nos conceder a sua
misericórdia.

69
Çré Çrémad Bhaktyäloka
Paramahaàsa Mahäräja

Bhāgavata Press
Antes de se tornar um sannyāsī, Śrī Śrīmad Bhaktyāloka Paramahaṁsa Mahārāja,
discípulo de Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvātī Ṭhākura, era conheci-
do como Mahānanda Brahmacārī.
Enquanto Śrīla Prabhupāda esteve presente neste mundo, Śrī Mahānanda
Brahmacārī coordenava a Bhāgavata Press em Kṛṣṇanagara, que imprimia as
edições do Śrīmad-Bhāgavatam (o purāṇa da devoção) de Śrīla Bhakitsiddhanta
Prabhupāda. Na verdade, o título de diretor não é adequado para um devoto,
pois devotos vêem a si mesmos sempre como meros servos - mas na prática, os
deveres de Śrī Mahānanda Brahmacārī eram exatamente os de um diretor, por
isso nos referimos a ele dessa maneira. Ele organizava tudo para a impressão,
tanto do Śrīmad-Bhāgavatam quanto de outras publicações de Śrīla Prabhupāda
e, para isso, contratou um taquígrafo e um datilógrafo.
Certa vez, o rei de Nadīyā precisou de uma equipe de publicação, mas não
havia ninguém a seu dispor capaz de datilografar ou registrar palavras ditadas. Ao
saber disso, Śrī Mahānanda Brahmacārī ofereceu tanto os serviços do taquígrafo
e datilógrafo da Bhāgavata Press como os serviços de impressão e publicação, já
que a Bhāgavata Press com frequência prestava serviços a clientes externos.
Eles apresentaram o texto do rei perfeitamente exato e sem nenhum erro e,
ao notar a alta qualidade das publicações e o cuidado com o qual os devotos da
Bhāgavata Press produziam tudo, o rei decidiu que ele não enviaria mais suas
publicações futuras até Calcutá, mas utilizaria exclusivamente a nossa Bhāgavata
Press. Assim, a editora ganhou uma reputação extremamente positiva, também
pelos esforços de Śrī Mahānanda Brahmacārī. Todos da região ficaram saben-
do que podiam confiar plenamente nas habilidades dos devotos da Bhāgavata
Press. Por exemplo, caso algum pequeno erro fosse cometido, a editora se en-
carregaria de corrigir a impressão imediatamente.
Eventualmente, Śrī Mahānanda Brahmacārī também se ocupava de adqui-
rir propriedades e terrenos necessários para o templo. Devido a esse e outros
serviços de compra, ele era chamado de Kenārāma, que significa “alguém que
compra tudo”.

71
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Uma indicação sutil, um grande serviço


Todos os moradores do vilarejo de Campaka-haṭṭa, em Navadvīpa, tinham um
profundo respeito por Śrīla Prabhupāda, por isso muitos se tornaram seus dis-
cípulos e, devido à imensa consideração que sentiam por ele, eles lhe deram de
presente a propriedade onde estava a antiga casa de Jayadeva Gosvāmī e onde
hoje existe a Śrī Gaura-Gadādhara Gauḍīya Maṭha.
Um dos moradores desse vilarejo tinha duas filhas que haviam recente-
mente ficado viúvas. Os parentes de seus falecidos maridos não queriam deixar
que elas ficassem com as heranças e, por conta disso, as duas estavam pratica-
mente sem meios para se sustentar.
Quando Śrīla Prabhupāda soube da situação dessas senhoras, ele se pergun-
tou como elas iriam se manter. Tomando o questionamento aparentemente banal
de seu Guru Mahārāja como uma ordem, Mahānanda Brahmacārī foi aos tribu-
nais locais em Rāṇāghāṭa e moveu uma ordem judicial contra os parentes das duas
senhoras e, por fim, conseguiu que elas recebessem suas respectivas heranças.

Serviço Inteligente
Śrīla Prabhupāda tinha um discípulo chamado Niśikānta Sanyāl, um professor
do Ravensā College da cidade de Kaṭaka. Embora o Sr. Sanyāl tivesse uma famí-
lia inteira para sustentar, ele resolveu doar todo o seu salário para o serviço do
templo, mesmo depois de Śrīla Prabhupāda ter dito:"Se você continuar doando
seu salário para mim como sua família vai sobreviver? Você precisa ficar pelo
menos com o suficiente para a manutenção de todos eles."
Preocupado com essa família, Śrīla Prabhupāda disse a Śrī Mahānanda
Brahmacārī: "Como Niśikānta Sanyāl está doando toda a sua renda para nós,
é nossa responsabilidade cuidar de sua família. Eu quero que você cuide da ma-
nutenção de todos eles." Obedecendo a essa ordem, Śrī Mahānanda Brahmacārī
cuidou das necessidades dessa família durante muitos anos. Tudo o que foi ne-
cessário – educação, casamentos dos filhos e todo o resto – foi financiado e
organizado por ele pessoalmente.
Segundo as escrituras um renunciante não teria a obrigação de prover as
necessidades de uma família (gṛhastas). Ele deve, na verdade, concentrar seus
esforços no serviço a Śrī Hari (Deus), ao guru e aos vaiṣṇavas. Portanto, tal ati-
tude poderia parecer estranha em um primeiro momento. Contudo existem
duas considerações a serem feitas nesta situação. Primeiro, Śrīla Prabhupāda
lhe deu ordens diretas para que mantivesse aquela família,e nunca ninguém
erra ao seguir as instruções de um guru autorrealizado; pelo contrário, seguir
a ordem do guru é o dever do discípulo. Em segundo lugar, Śrī Mahānanda

72
Capítulo 3 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Bhaktyāloka Paramahaṁsa Mahārāja

Brahmacārī cuidou de tudo de tal forma que ele mesmo nunca precisasse estar
fisicamente presente para executar essas tarefas, já que para isso ele delegou tais
responsabilidades a várias pessoas. Assim, ele nunca teve que visitar essa famí-
lia nem mesmo uma única vez.

Meu serviço a ele


Algum tempo após Śrīla Prabhupāda abandonar o corpo, Śrī Mahānanda
Brahmacārī adquiriu um terreno a poucos passos do Gaṅgā-ghāṭa (um cais na
beira do Ganges) em Māyāpura, próximo ao Kṣetra-pāla Śhiva. Com o tempo,
refugiados do Bangladeche ocuparam aquela terra e se negaram a sair dali. En-
tão, agindo como se fosse um exército privado, um grupo de devotos do qual
eu fiz parte expulsou os refugiados dali. Mais tarde, um irmão espiritual de Śrī
Mahānanda Brahmacārī, que se chamava Śrīla Bhakti Saurabha Bhaktisāra
Gosvāmī Mahārāja, veio a Māyāpura e precisou de um lugar para ficar. Então,
Śrī Mahānanda Brahmacārī deu para ele de presente metade de seu terreno.
Após um tempo, a mesma situação que ocorreu com os refugiados do
Bangladeche no terreno de Śrī Mahānanda Brahmacārī aconteceu nessa outra
parte da propriedade. Ao saber disso, ofereci minha ajuda a Śrīla Bhaktisāra
Gosvāmī Mahārāja para remover os invasores de seu espaço, mas ele disse: "Eu
não desejo construir uma maṭha lá, porque eu posso sempre visitar os templos
dos meus irmãos espirituais. Portanto, não há problema se estes refugiados per-
manecerem aqui. Não tenho planos de expansão." Eu respondi: "Mahārāja-jī,
isto levaria apenas meia hora". Ele aceitou minha proposta e fui capaz de servi-
-lo desta maneira, tal como eu havia servido Śrī Mahānanda Brahmacārī.

Aceitando sannyāsa
Outro discípulo de Śrīla Prabhupāda, Śrīla Bhakti Svarūpa Parvata Gosvāmī
Mahārāja, nascido em Svarūpa Gañj, possuía uma maṭha chamada Vārṣabhānāvī-
-dayita Gauḍīya Maṭha em Udālā, no estado da Orissa, próximo a Kṣīra-corā
Gopīnātha. Depois que Mahārāja abandonou o corpo, muitos devotos queriam
que aquele templo fosse dado a meu mais que adorável (paramārādhyatama)
Guru Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja, para
que se tornasse um templo da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha.
Naquela época, os discípulos de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda tive-
ram uma conversa e concluíram que a Śrī Vārṣabhānāvī-dayita Gauḍīya Maṭha
deveria ser dada a Śrī Mahānanda Brahmacārī, pois ele ainda não tinha um
templo, e que ele deveria receber sannyāsa de Śrīla Bhakti Rakṣaka Śrīdhara
Gosvāmī Mahārāja. Ele aceitou a proposta de seus irmãos espirituais e daí

73
Viśuddha Caytania-Vāṇī

em diante ficou conhecido como Śrī Bhaktyāloka Paramahaṁsa Mahārāja, o


ācārya da Vārṣabhānāvī-dayita Gauḍīya Maṭha em Udālā.
Sua atitude de serviço
Quando meu Guru Mahārāja aceitou a responsabilidade de adquirir o local de apa-
recimento de Śrīla Prabhupāda, a casa onde ele havia nascido em Purī, muitos dos
documentos necessários estavam no idioma da Orissa, o oriá. Naquele período, um
devoto proveniente dessa mesma região, chamado Śrīpād Bhakti Sundara Sāgara
Mahāraj, estava morando na Śrī Vārṣabhānāvī-dayita Gauḍīya Maṭha. Meu Guru
Mahārāja pediu a Śrīla Paramahaṁsa Mahārāja: "Se não for um problema para você,
nós gostaríamos que Sāgara Maharāja ficasse conosco por algum tempo para nos
ajudar a comprar o local de aparecimento de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda."
Paramahaṁsa Mahārāja respondeu: "Eu jamais me oporia a um serviço tão impor-
tante. Eu pedirei que Śrī Sāgara Maharāja vá morar com vocês, mesmo que isso seja
inconveniente para mim. Seria um motivo de grande felicidade e honra executar
qualquer tipo de serviço a Śrīla Prabhupāda, até mesmo os mais indiretos e insignifi-
cantes." Nessa ocasião, todos testemunhamos pessoalmente a famosa especialidade
(a característica particular) de Śrīla Paramahaṁsa Mahārāja de ser incrivelmente
afetuoso e simples em qualquer circunstância.
Sempre que o encontrava, eu prestava reverências a seus pés completamen-
te deitado no chão (aṣṭāṅga daṇḍavat-praṇāma). E, embora eu fosse como seu
discípulo, todas as vezes que eu prestava essa reverência que simboliza rendição
completa (tocando as oito partes do corpo no chão – sendo elas os cotovelos,
a testa, os joelhos, o peito dos pés e as mãos em prece), ele sempre me erguia e
me abraçava. Ele nunca considerava alguém como sendo inferior (júnior) em
relação a si, mas ao invés disso, ele respeitava todos os devotos simplesmente
por estarem no caminho de bhakti.

74
Capítulo 3 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Bhaktyāloka Paramahaṁsa Mahārāja

75
Çré Çrémad Bhakti Prajïäna
Keçava Gosvämé Mahäräj

Pela divina misericórdia, meu mestre instrutor (śikṣā-guru), cujos pés são mais
que adoráveis (param-pūjyapāda), Śrī Śrīmad Bhakti Prajñāna Keśava Gosvāmī
Mahārāja, apareceu neste mundo no vilarejo de Vānarīpāḍā, que é parte do
distrito de Variśāla, no Bangladeche. Ele pertencia a uma rica família de pro-
prietários de terras. Quando era jovem, suas tias paternas Sarojinī e Priyatamā
o levaram para conhecer Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura.
Como sua tia Priyatamā abandonou o corpo ainda jovem, nós, seus discípu-
los, ouvimos mais acerca de Sarojinī na narrativa sobre a vida de Śrīla Keśava
Gosvāmī Mahārāja.

Uma jóia entre os sevakas


No início da sua vida no templo, ele recebeu o nome de Śrī Vinoda-Bihārī
Brahmacārī e, mais tarde, Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda deu para ele o títu-
lo de “Kṛti-ratna”, pelo qual ele se tornou bastante conhecido. Kṛti significa “ati-
vidade” e ratna significa “jóia”, portanto “Kṛti-ratna” refere-se a uma pessoa que
é perita em servir seu guru e os vaiṣhṇavas de diversas maneiras e que considera
esse serviço como sendo sua vida e sua alma. Este título era bastante adequado
para Vinoda-Bihārī Brahmacārī, já que ele era de fato uma jóia entre os sevakas
(aqueles que servem ao guru).
Quando Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī conheceu Śrīla Bhaktisiddhanta
Prabhupāda, ele recebeu a incumbência de administrar as ações judiciais da
maṭha, além de várias outras responsabilidades importantes. Durante esse pe-
ríodo, os muçulmanos estavam ocupando vários locais sagrados de Māyāpura,
incluindo o Candraśekhara-Bhavana, o Śrīvāsa-Aṅgan – onde morava Śrīdhara-
-Kholavecha e onde fica o samādhi (onde repousa o divino corpo) do Chand Kāzī.
Um dia, os muçulmanos que haviam invadido o samādhi do Chand Kāzī
(um governador local islâmico que havia se tornado discípulo do Avatar Dourado)
bateram em alguns brahmacārīs da Gauḍīya Maṭha. Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī,
o qual tinha um caráter protetor e era incapaz de tolerar esse comportamen-
to violento contra os devotos, decidiu abrir uma ação judicial em nome da Śrī
Chaitanya Maṭha, o que resultou na prisão dos agressores.

77
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Entretanto, Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda não gostou quando soube


que os muçulmanos tinham sido presos e afirmou: "Nós devemos ser contra as
atividades perversas, mas não contra as pessoas que as praticam. Não devemos,
portanto, punir ninguém colocando eles na prisão. Pelo contrário, devemos de-
fender os princípios que seguimos e explicar o porquê de sermos contra as ati-
vidades que consideramos demoníacas." Assim, obedecendo a ordem de Śrīla
Bhaktisiddhanta Prabhupāda, os próprios devotos pagaram a fiança dos muçul-
manos e eles foram soltos.

Seu heroico serviço ao guru


Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhanta defendeu fortemente que a casta (varṇa)
de alguém depende das qualidades individuais dessa pessoa e da sua prática
devocional, e não pura e simplesmente da linhagem familiar; e que é muito
vergonhoso se tornar um bhāgavata-jīvī – cobrar para ensinar o conhecimen-
to devocional que nos leva a Deus (bhāgavata-kathā). Também é igualmente
inapropriado pensar ou agir como um mantra-jīvī (aqueles que acreditam que
apenas descendentes de brāhmaṇas de casta podem pronunciar ou conceder
mantras sagrados); ou como um vigraha-jīvī (alguém que cobra para que as
pessoas possam contemplar (darśana) as deidades nos templos do Senhor). Es-
sas concepções incomodavam muitos membros desonestos e corrompidos da
casta dos brāhmaṇas.
Durante a época de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda Sarasvatī Ṭhākura,
cerca de cinco mil peregrinos de todas as idades participaram da peregrinação
(parikramā) de Navadvīpa-dhāma. Havia também muitos cavalos e a deidade
de Śrīman Mahāprabhu liderou a procissão montada sobre um elefante.
Ferozes antagonistas dos ensinamentos de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda,
a casta de brāhmaṇas decidiu atacar o gigantesco grupo do parikramā com a
intenção de assassiná-lo em Paramatalā, um local sagrado conhecido também
como Prauḍhamāyā, a residência de Yogamāyā em Navadvīpa.
Com ímpeto e coragem, Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī arriscou sua pró-
pria vida para proteger seu guru, tal como Kureśh, o histórico discípulo de
Rāmānuja Ācārya, séculos atrás.
Naquela época, Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī vestia roupas brancas e, diante
do grande perigo, ele teve a ideia de trocar suas roupas pelas vestes de sannyāsi
cor de açafrão de Śrīla Bhaktisiddhanta, implorando a Śrīla Prabhupāda para que
ele escapasse e fugisse para Māyāpura disfarçado de brahmacārī, vestido de bran-
co. Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda concordou e escapou com segurança do
atentado à sua vida.

78
Capítulo 4 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Prajñāna Keśava Gosvāmī Mahārāja

Enquanto isso, para se misturar com os moradores de Navadvīpa, Śrī


Paramānanda Brahmacārī trocou seu dhotī por um pano colorido (gamchā),
arranjou um narguilê e foi chamar a polícia.
Quando a polícia finalmente chegou, as multidões antagonistas se disper-
saram, só então Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī pôde retornar de forma segura
ao templo de Māyāpura.
Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī demonstrou fé inabalável em seu guru, pois sem-
pre estava pronto para arriscar sua própria vida no serviço de Śrīla Bhaktisiddhanta
Prabhupāda e nos devotos de Kṛṣṇa.

O protetor das instruções de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda


Devido às palavras e à pregação de Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī, seu irmão
mais velho foi até Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda e acabou indo morar no
templo. Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda deu ordens para que seu irmão mais
velho aceitasse sannyāsa, mas ele não quis.
Embora Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī fosse mais novo, ele repreendeu
seu irmão mais velho dizendo: "Por que você não satisfaz o desejo de Śrīla
Bhaktisiddhanta Prabhupāda em te conceder sannyāsa?" Desta maneira, ele
inspirou seu irmão a aceitar e receber o nome de Śrī Bhakti Kevala Auḍulomi
Mahārāja.
Algum tempo depois, após o desaparecimento de Śrīla Bhaktisiddhanta
Prabhupāda, Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāj viu que Śrī Auḍulomi Mahārāja e
seus seguidores estavam se desviando dos ensinamentos de Śrīla Bhaktisiddhanta
Prabhupāda de três maneiras: (1) eles ensinavam que o hare kṛṣṇa mahā-mantra
não devia ser cantado em voz alta, mas sim silenciosamente, de tal maneira que
ninguém pudesse ouvir a vibração sonora; (2) embora Śrīla Bhaktisiddhanta
Prabhupāda tivesse pessoalmente iniciado alguns de seus discípulos, incluindo
o próprio Auḍulomi Mahārāja na ordem de sannyāsa, eles pregaram contra a
iniciação e o sannyāsa-āśrama, declarando que ele é estritamente proibido em
Kali-yuga; e (3) embora Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda tivesse pessoalmen-
te estabelecido o parikramā de Śrī Navadvīpa, eles rejeitaram a sua execução.
Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāja não tolerava nem um único desvio dos en-
sinamentos de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda e, por isso, ele cortou relações
com seu irmão Śrī Auḍulomi Mahārāja e aqueles que o seguiam. Ele nunca permi-
tia que seus discípulos fossem a Bāgbāzār Gauḍīya Maṭha ou qualquer outro local
onde Auḍulomi Mahārāja e seus seguidores estivessem. Se Śrīla Keśava Gosvāmī
Mahārāja descobrisse que algum de seus discípulos tivesse ido a maṭha de Śrī
Auḍulomi Mahārāja, ele dava ordens para que tal devoto jejuasse por três dias,

79
Viśuddha Caytania-Vāṇī

ingerindo apenas pañca-gavya (uma manteiga purificada feita com os produtos


da vaca) como um meio de expiação (prāyaścitta). Ele perguntava: "Por que
você foi até lá? Você agora está impuro e precisa se purificar executando este
processo expiatório."
Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāja abriu um processo contra Śrī Auḍulomi
Mahārāja e seus seguidores, alegando com vigor que, pelo fato de não terem
aceitado muitos dos ensinamentos de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda, não
poderiam ser considerados seus verdadeiros discípulos e por isso não deveriam
ter permissão para residir em seus templos.
Meu paramārādhyatama Guru Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava
Gosvāmī, me encarregou de transcrever o que Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāja
ditava em relação ao processo. Eu levava, então, as transcrições para Śrī Śrīmad
Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja, que ajustava a linguagem e a edi-
ção para que ficasse tudo ainda mais claro. Quando o texto ficava pronto, eu ia
para o tribunal e entregava os documentos definitivos.
No dia em que o juiz estava para anunciar sua decisão final, Śrī Auḍulomi
Mahārāja e seus seguidores (que haviam deixado as vestes de sannyāsi) apare-
ceram no tribunal vestindo roupas cor de açafrão. Śrī Auḍulomi Mahārāja ha-
via concedido sannyāsa a oito pessoas naquele mesmo dia e entrou no tribunal
com uma grande procissão de pessoas cantando o mahā-mantra em voz alta.
Em frente ao juiz, eles disseram: "Nós estamos executando o parikramā
de Navadvīpa-dhāma, vestindo roupas açafroadas e usando nossos bastões
(sannyāsa-daṇḍas). Nós abrimos um templo em nome de Śrīla Bhaktisiddhānta
Sarasvatī Ṭhākura Prabhupada e também estabelecemos uma deidade que o
representa (murti) na maṭha que estamos construindo em Godrumadvīpa.”
Eles não tinham planejado previamente ter uma maṭha em nome de Śrīla
Bhaktisiddhanta Prabhupāda, nem planejaram manter sua murti lá, mas por te-
rem sido ameaçados pelos corajosos esforços de Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāja,
eles nomearam o templo como Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Gauḍīya Maṭha
e negaram todas as alegações feitas contra eles por Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāja,
audaciosamente dizendo: "Vejam! Estamos cantando em voz alta, trajando ves-
tes de sannyāsi e dedicamos o nome da nossa maṭha a Śrīla Bhaktisiddhanta
Prabhupāda. Como ele pode afirmar que não somos discípulos de Śrīla
Bhaktisiddhanta Prabhupāda?"
Avaliando suas ações, o juiz concedeu a decisão a favor de Śrī Auḍulomi
Mahārāja e seus seguidores.
Externamente, pareceu que Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāja havia sido
derrotado. Eu disse: "Muitos dos seus irmãos espirituais se envolveram por um

80
Capítulo 4 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Prajñāna Keśava Gosvāmī Mahārāja

longo período na construção desta ação judicial. Eu trabalhei tanto vindo até
você para transcrever o que você ditava, quanto aos pés de Śrī Śrīmad Bhakti
Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja para prover informações precisas para o
tribunal. Agora que você foi derrotado, você não vai apelar o veredito do juiz?"
Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāja respondeu: "Nós iremos proceder apenas
se eles forem contra os ensinamentos de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda."
Então ele me perguntou: "Quantos socos você conseguiria aguentar?" Eu res-
pondi: "Nem mesmo um único soco. Eu não gostaria de receber soco nenhum."
Śrīla Mahārāja então perguntou: "E quantos você poderia tolerar se suas mãos
e pernas estivessem amarradas por cordas?"Eu respondi: "Amarrado, eu seria
forçado a tolerar todos os socos que me dessem." "Da mesma maneira, sempre
que alguém comete erros e age contra os ensinamentos de Śrīla Bhaktisiddhanta
Prabhupāda, nós iremos amarrá-lo e golpear com todas as nossas forças até que
os ensinamentos sejam seguidos." E logo explicou: "Meu único desejo era que
eles voltassem a seguir a linha de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda e vemos
que agora eles estão fazendo isto. Voltaram a usar as vestes de um sannyāsi, es-
tão iniciando outros devotos e cantando em voz alta o hare kṛṣṇa mahā-mantra.
Esse era meu objetivo. Na verdade, nós vencemos. Nossa luta não era por nada
além de estabelecer as verdades conclusivas da nossa filosofia, o siddhānta ade-
quado, e reconectar todos eles a Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda."
Mesmo nos dias de hoje, todos os seguidores e devotos de Śrī Auḍulomi
Mahārāja na Bāgbāzār Gauḍīya Maṭha aceitam sannyāsa, fazem o parikramā
de Navadvīpa-dhāma, cantam o mahā-mantra em voz alta e executam o canto
congregacional dos Santos Nomes de Deus (harināma-saṅkīrtana). Tudo isso é
fruto da misericórdia de Śrī Śrīmad Bhakti Prajñāna Keśava Gosvāmī Mahārāja
e é apenas uma fagulha de suas incontáveis glórias.

81
Çré Çrémad Bhakti Rakñaka
Çrédhara Gosvämé Mahäräja

Sua glorificação sincera a um irmão espiritual júnior


Todos os anos após o festival de Gaura-pūrṇimā, Śrī Śrīmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara
Gosvāmī Mahārāja costumava convidar muitos de seus irmãos espirituais para
comparecerem a uma cerimônia em sua Śrī Caitanya Sarasvati Maṭha em Kolera
Gañj, Navadvīpa-dhāma. Durante o transcorrer de uma dessas ocasiões, meu
paramārādhyatama Guru Mahārāja Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī,
após o término do festival de Gaura-pūrṇimā, estava ocupado em administrar os
afazeres da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha – tais como despedir-se dos peregrinos e
liquidar as contas – e, apesar de seu desejo e esforços mais sinceros para chegar na
Śrī Caitanya Sarasvati Maṭha de maneira pontual, ele chegou um pouco atrasado
na assembleia dos vaiṣṇavas que lá estavam reunidos. Vendo que Guru Mahārāja
havia chegado, Śrī Śrīmad Bhakti Kamala Madhusūdana Gosvāmī Mahārāja dis-
se: “Mādhava Mahārāja, você chegou muito tarde. Nós estamos esperando por
você há muito tempo”. Guru Mahārāja respondeu: “Mahārāja, devido ao fato de
muitos peregrinos terem vindo até nossa maṭha para o parikramā de Navadvīpa-
-dhāma, nós contraímos uma grande dívida. Hoje eu estava ocupado em quitar
essas dívidas e resolver outros assuntos, para que assim os serviços da maṭha pu-
dessem continuar. Que você e todos os outros vaiṣṇavas aqui presentes perdoem
o meu atraso, por favor”. Śrī Śrīmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja,
tendo ouvido a resposta de Guru Mahārāja, disse: “Nārambhān ārabhet kvacit
— nunca se deve tentar aumentar a própria opulência material desnecessaria-
mente.” Ao ouvir isso, Śrī Śrīmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja
disse: “Mādhava Mahārāja, eu gostaria de responder ao comentário de pūjyapāda
Yāyāvara Mahārāja.” “Sim, Mahārāja-jī. Como você quiser”, Guru Mahārāja res-
pondeu.
“Para um elefante”, Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja começou, “um bastão
de cana de açúcar é tão insignificante quanto rapé (nasavāra), enquanto que para
uma formiga, o mesmo bastão de cana de açúcar é como uma montanha. Uma
atividade que para nós pode parecer um grande empreendimento, não é nada
além de uma tarefa insignificante para pūjyapāda Mādhava Mahārāja; ele pode
executar tais atividades sem dificuldade alguma.”

83
Viśuddha Caytania-Vāṇī

“Em relação a tal fato, eu tive uma experiência em primeira mão. Śrīla Pra-
bhupāda havia enviado pūjyapāda Mādhava Mahārāja — então Śrī Hayagrīva
Brahmacārī — e eu para adquirirmos algum terreno no local de encontro de
Caitanya Mahāprabhu e Rāya Rāmānanda em Kovvur, próximo às margens do
rio Godāvarī, para lá estabelecer as pegadas (pada-pīṭha) de Śrīman Mahāpra-
bhu. Após muitos dias de esforço sem fim, eu disse: ‘Hayagrīva Prabhu, Śrīla
Prabhupāda nos enviou aqui com uma grande esperança de obter algum ter-
reno para estabelecer o padapīṭha de Mahāprabhu. Meu nome de brahmacārī
dado por Śrīla Prabhupāda era Rāmānanda dāsa, e este é o local de encontro de
Mahāprabhu e Rāmānanda Rāya. Embora nós tenhamos tentado o nosso melhor
para obtermos algum terreno, não fomos bem sucedidos. Qual é a sua opinião?
Nós deveríamos permanecer aqui por mais tempo, ou ir a Madras para pregar?’
Śrī Hayagrīva Prabhu respondeu: “Eu sinto que até agora não empreende-
mos nenhum esforço especial. Creio que deveríamos continuar nos esforçando
por mais algum tempo.”
Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja então disse a todos os vaiṣṇavas presentes:
“Vocês podem estimar sua capacidade a partir dessa declaração feita por ele. O
aparente ponto final de nossas tentativas era para ele o ponto inicial de esforços
revigorados. Posteriormente, por meio de seus esforços incansáveis, um terre-
no foi adquirido em Kovvur e a maṭha foi lá estabelecida. Śrīla Prabhupāda cos-
tumava se referir a Śrī Hayagrīva Brahmacārī como sendo o possuidor de uma
‘energia vulcânica’. Śrī Vāsudeva Prabhu costumava chamá-lo de sarva ghaṭe, al-
guém que se sobressai em executar todos os tipos de tarefas”.
“Minha opinião pessoal sobre pūjyapāda Mādhava Mahārāja é de que ele é
comparável a ninguém menos que Śrīla Vakreśvara Paṇḍita, um associado de
Śrīman Mahāprabhu que podia dançar continuamente durante o kīrtana por se-
tenta e duas horas sem se cansar.”
Além da glorificação de meu Guru Mahārāja, esse relato narra uma lição
importante. Embora Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja fosse sênior a meu Guru
Mahārāja, tendo ido residir na maṭha e recebido sannyāsa-veśa mais cedo, ele não
hesitava em observar e falar sobre as boas qualidades de seu júnior. Śrī Goloka
Vṛndāvana é a morada mais elevada, superior a todos os planetas Vaikuṇṭha, ela
se mantém eternamente livre até mesmo do menor aroma de ciúme e inveja. Por
Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja estar entre as grandes personalidades que são
sinceras (nirmatsara) seguidoras dos amáveis residentes desta mesma Goloka
Vṛndāvana, ele se mantém livre das limitações materiais deste mundo, sendo
portanto capaz de oferecer tal glorificação genuinamente humilde e desprovida
de duplicidade.

84
Capítulo 4 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja

Conhecer o Incogniscível
Śrī Śrīmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja certa vez pregou em
Bombaim (atual Mumbai) antes do estabelecimento da Gauḍīya Maṭha por
lá. Śrī M.P. Engineer, o primeiro Advogado Geral da Índia independente, era
então o presidente da Sociedade Teosófica e convidou Śrīla Śrīdhara Gosvāmī
Mahārāja para discursar em uma das reuniões da Sociedade. Devido ao fato de
muitos oradores terem sido convidados, foi solicitado a cada um deles que man-
tivessem seus discursos dentro de concisos quinze minutos.
Em sua fala, Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja mencionou que o Supremo
Senhor Śrī Bhagavān é advaya-jñāna para-tattva – que significa “aquele cuja su-
premacia não pode ser conhecida apenas através de esforços individuais, nem
o conhecimento acerca Dele pode ser concedido por outras pessoas (além Dele
mesmo)”:
nāyam ātmā pravacanena labhya
na medhayā na bahunā śrutena
Kaṭha Upaniṣad (1.2.23)
Mādhava está em suas palavras, Mādhava está em seu coração. Todas as
pessoas santas lembram-se de Mādhava, o esposo de Lakṣmī (a deusa da
fortuna) em todos os seus esforços.

Após a conclusão da apresentação de Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja, Śrī


M.P. Engineer fez uma pergunta a Śrīla Mahārāja antes mesmo de ele se sentar:
“Mahārāja, você acabou de dizer que Deus (Śrī Bhagavān) é desconhecido e
incognoscível. Se isso é verdade, então por qual propósito você renunciou aos
confortos materiais deste mundo e aceitou a ordem de vida renunciada, se não
para alcançá-Lo?” Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja respondeu de imediato:
“Śrī Bhagavān certamente pode ser conhecido”.
Ouvindo isso, Śrī M.P. Engineer disse de uma maneira bem humorada:
“Eu devo admitir que de acordo com a minha visão, você não parece ser um
renunciante em qualquer aspecto, pois você mudou instantaneamente a sua
posição neste assunto, tal como um advogado”.
Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja respondeu: “Você me deu um limite de
tempo. Eu fui capaz de expressar apenas um ponto de vista acerca de um as-
sunto altamente profundo e o período estipulado havia terminado antes de eu
mencionar o outro ponto de vista. Portanto, não pude completar a descrição de
meu objeto desejado no período estipulado”.
Ouvindo as palavras de Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja, Śrī M.P Engi-
neer disse: “Você começou explicando um tópico altamente perspicaz de uma

85
Viśuddha Caytania-Vāṇī

maneira muito bela. Portanto, por favor, tome outros quinze minutos e com-
plete a sua apresentação sobre esse assunto.”
Śrīla Mahārāja então prosseguiu com firmeza para estabelecer o siddhānta
completo e adequado: “Embora os śāstras mencionem que Śrī Bhagavān seja a
Verdade Absoluta não-dual, é mencionado nas mesmas escrituras que se Ele, a
Suprema Verdade Absoluta, não possui a habilidade de se revelar a quem quer
que Ele deseje, então Sua supremacia e qualidades enquanto ser ilimitado e
infinito seriam imediatamente questionáveis. É dito que:
yam evaiṣa vṛṇute tena labhyas
tasyaiṣa ātmā vivṛṇute tanuṁ svām
Kaṭha Upaniṣad (1.2.23)
A Alma Suprema é alcançável apenas por alguém a quem Deus concedeu
a Sua misericórdia. A tal pessoa, Ele revela Sua forma pessoal.

“Em outras palavras, é impossível obter conhecimento acerca de Bhagavān


por meio dos próprios esforços individuais ou através da ajuda de alguém no
mesmo nível de devoção. Contudo quando o Senhor Supremo observa em al-
guém a inclinação para servi-Lo, Ele concede conhecimento através do qual
pode-se compreendê-Lo, tanto diretamente quanto por meio de Seus compa-
nheiros e associados”.
ataḥ śrī-kṛṣṇa-nāmādi
na bhaved grāhyam indriyaiḥ
sevonmukhe hi jihvādau
svayam eva sphuraty adaḥ
Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.234)
O nome, a forma, as qualidades e os passatempos de Śrī Kṛṣṇa não po-
dem ser percebidos pelos sentidos materiais; eles se tornam manifestos
quando os próprios sentidos do indivíduo, começando com a língua, são
permeados pelo desejo de Lhe render serviço.
A apresentação de Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja causou um impacto tão
profundo em Śrī M.P. Engineer que, quando Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta
Sarasvatī Ṭhākura mais tarde visitou Bombaim, ele humildemente pediu a Śrīla
Prabhupāda que ele não privasse os residentes da cidade de seu vicāra-dhāra
(linha de conceitos filosóficos) e lá estabelecesse uma maṭha. Mais tarde, de
acordo com as instruções de Śrīla Prabhupāda, uma propriedade foi alugada
em Bombaim para estabelecer uma Gauḍīya Maṭha, através da qual a pregação
da linhagem Gauḍīya foi iniciada naquela cidade.

86
Capítulo 4 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja

A humildade natural dos vaiṣṇavas


Śrīla Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja e meu Guru Mahārāja (até
então conhecido como Śrī Hayagrīva Brahmacārī) certa vez pregaram na cidade
de Madras (atual Chennai). Naquela época, um debate entre o Dr. Rādhā-Kṛṣṇa
— que, ao contrário do que seu nome indicaria, era um forte propositor da es-
cola advaitavāda (não dualismo ou impersonalismo) — e o Dr. Nāgarāja Śarmā
— o qual, diverso do que seu nome poderia indicar, era um firme propositor
da escola dvaitavāda (dualismo) — foi publicado no jornal diário inglês Hindu
na forma de uma série de artigos. Em tais artigos, ambos expuseram argumen-
tos a favor de suas respectivas fés enquanto refutavam os argumentos um do
outro. Isso continuou por algum tempo, até que os dvaitavādīs e advaitavādīs
de Madras decidiram organizar um debate entre os dois sob a mediação de um
representante da Gauḍīya Maṭha. Qualquer que fosse a conclusão do mediador,
seria considerada final e aceitável para todos.
Quando os residentes locais propuseram que Guru Mahārāja fosse aponta-
do como o representante da instituição Gauḍīya Maṭha e mediador do debate,
ele ficou muito satisfeito, porém pediu a Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja que fi-
zesse a mediação. De uma maneira humilde, digna de um vaiṣṇava (vaiṣṇavocita-
-vyavahāra), Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja aceitou a proposta.
Enquanto isso, Guru Mahārāja recebeu um telegrama de Śrīla Prabhupāda
dando- lhe ordem para que fosse até Calcutá. Quando Śrīla Śrīdhara Gosvāmī
Mahārāja ouviu sobre a mensagem de Śrīla Prabhupāda, ele disse a Guru
Mahārāja: “Ó Hayagrīva Prabhu, não serei capaz de aceitar o posto de mediador
para o debate se você não estiver presente”.
Guru Mahārāja respondeu: “Śrīla Prabhupāda certamente ficaria satisfeito
se eu partisse agora para Calcutá conforme ele me instruiu, mas acredito com
firmeza que ele ficaria ainda mais satisfeito ao saber que a Gauḍīya Maṭha re-
cebeu a mediação de um debate que acontecerá numa grande assembleia de
pessoas notáveis, mesmo que isso gere um pequeno atraso em minha chegada
a Calcutá”.
No dia do debate, Śrīla Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja foi
apontado formalmente como o mediador. Em seu discurso de abertura, ele
humildemente disse: “Embora eu não seja qualificado para estar no posto de
mediador deste debate, aceitei tal posição para cumprir as instruções e desejos
dos vaiṣṇavas, tal como dos nobres membros da sociedade”.
Quando o debate começou, o Dr. Rādhā-Kṛṣṇa falou primeiro e tentou es-
tabelecer a superioridade da escola advaitavāda. Após isso, quando foi pedido
ao dvaitavādī Dr. Nāgarāja Śarmā que estabelecesse seu ponto de vista, ele co-

87
Viśuddha Caytania-Vāṇī

meçou seu discurso dizendo: “Devido ao fato dos vaiṣṇavas serem humildes
por natureza, eles se apresentam dizendo ‘dāso ’smī—eu sou vosso servo’.
Advaitavādīs, contudo, sendo incapazes de apreciar tal dignidade, estão sem-
pre desejosos de introduzirem-se orgulhosamente dizendo ‘aham brahmāsmi
— eu sou brahma (o espírito, a Verdade Absoluta)’.” Indiretamente se referindo
à humilde conduta de Śrīla Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja, ele
disse: “Francamente, não é necessário que os vaiṣṇavas exibam sua humildade
em todos locais e circunstâncias”. Após isso, Dr. Nāgarāja Śarmā prosseguiu es-
tabelecendo seu ponto de vista acerca de dvaitavāda.
No fim do debate, Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja disse em seu discur-
so conclusivo como mediador: “É fato que alguém fica com o orgulho inflado
quando convive com pessoas inferiores a si mesma. Mas esse tipo de orgulho
enganoso nunca pode surgir em alguém que sempre se mantém na companhia
de personalidades elevadas e transcendentais. Assim como um pai que natural-
mente se comporta como um sênior diante de seu filho e como um júnior em
frente a seu próprio pai, uma pessoa que convive com aqueles que obtiveram a
perfeição mais elevada — o serviço à Pessoa Suprema — não exibe humildade
de maneira forçada; ao invés disso, a humildade divina naturalmente se mani-
festa em seu coração e é refletida em sua conduta. Se uma pessoa convive com
alguém inferior a ela, o orgulho está sujeito a se manifestar em seu coração”.
Ser humilde não é um processo mecânico, mas sim um subproduto natural
da realização espiritual. Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja referiu-se a si mesmo dizendo:
jagāi mādhāi hôite muñĩ se pāpiṣṭha
purīṣera kīṭa hôite muñi se laghiṣṭha
mora nāma śune ĵei tāra puṇya kṣaya
mora nāma laya ĵei tāra pāpa haya
emana nirghṛṇa more kebā kṛpā kare
eka nityānanda binu jagata bhitare
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Ādi-līlā 5.205-207)
Sou mais pecaminoso que Jagāi e Mādhāi e até mesmo inferior a um
verme no excremento. O karma positivo, as atividades piedosas daquela
pessoa que ouve meu nome são completamente destruídas. Qualquer
um que pronuncie meu nome cometerá um pecado. Quem neste mundo
além de Nityānanda poderia mostrar Sua misericórdia a alguém tão vil
como eu?
Śrīla Rūpa Gosvāmī, a autoridade mais exaltada na esfera de bhakti, ex-
pressou sentimentos similares:

88
Capítulo 4 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja

adharo ‘py aparadhanaṁ


aviveka-hato ‘py aham
tvat-karuṇya-pratikṣo ‘smi
prasīda mayi madhava
Stava-mālā, Volume 1
Praṇāma-praṇaya-stava (14)
Embora eu seja uma mina de ofensas e não possa distinguir o certo do
errado, eu ainda espero por Sua misericórdia. Ó Mādhava, por favor seja
misericordioso comigo.
Śrī Mādhava Sarasvatī, um poeta (kavi) vaiṣṇava do Sul da Índia, expressou
sua humildade da seguinte maneira:
jñānāvalambakāḥ kecit kecit
karmāvalambakāḥ
vayaṁ tu hari-dāsānāṁ
pāda-trāṇāvalambakāḥ
Alguns são inclinados ao árido cultivo de conhecimento (jñāna), enquan-
to outros são inclinados a executar práticas que só visam ganhos mate-
riais (karma). Nós, contudo, somos inclinados a nos abrigar sob os pés de
lótus dos servos do Senhor Supremo (Śrī Hari).
Analisando as declarações humildes de tais grandes personalidades,
pode-se claramente compreender a verdadeira posição dos impersonalistas
advaitavādīs comparada à dos vaiṣṇavas dvaitavādīs. O representante do pri-
meiro grupo assume os dois conceitos de aham brahmāsmi e “pāśa-baddho
bhavet jīvaḥ pāśamuktaḥ sadāśivaḥ – uma pessoa presa pelas cordas de māyā
é uma jīva, mas quando ela é liberta de tais amarras, se torna então Sadāśiva,
o próprio Senhor Supremo”. Já os membros do segundo grupo concebem a si
mesmos da seguinte maneira:
maj-janmanaḥ phalam idaṁ madhu-kaiṭabhāre
mat prārthanīya mad-anugraha eṣa eva
tvad bhṛtya-bhṛtya-paricāraka-bhṛtya-bhṛtya
bṛtyasya-bhṛtyam iti māṁ smara lokanātha
Mukunda-mālā-stotra (25)
Ó Lokanātha (Senhor de todos)! Ó matador dos demônios Madhu e
Kaiṭabha! Por favor, seja misericordioso comigo e satisfaça a minha ora-
ção: que Você possa se lembrar de mim como um servo do servo do
servo do servo do servo de Seu servo.

89
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Os mensageiros da filosofia de Caitanya Mahāprabhu


Certa vez, meu paramārādhyatama Guru Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita
Mādhava Gosvāmī Mahārāja (naquela época, Śrī Hayagrīva Brahmacārī), foi
com Śrī Śrīmad Bhakti Śrīrūpa Siddhāntī Gosvāmī Mahārāja (até então Śrī Si-
ddha-svarūpa Brahmacārī) e Śrīla Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārā-
ja pregar em Sylhet, na Bengala Oriental (atual Bangladeche), onde eles foram
convidados a falar em uma cerimônia espiritual que duraria três dias. No pri-
meiro dia, Śrī Siddha-svarūpa Brahmacārī utilizou palavras muito diretas – mas
também ásperas e desprovidas de moderação – em seu discurso, enquanto es-
tabelecia a superioridade dos ensinamentos de Śrī Caitanya Mahāprabhu em
relação às filosofias māyāvādis que prevaleciam naquele período. Ele se referiu
a Vivekānanda como ‘Bi-bekā-nanda’ (alguém desprovido de inteligência) e a
Rāmākṛṣṇa Paramahaṁsa como ‘Rāma-haṁsa’ (um grande cisne, porém inú-
til). Ao ouvir tais epítetos, muitos moradores de Sylhet ficaram irritados. Naque-
la noite, folhetos que criticavam a Gauḍīya Maṭha e exigiam o cancelamento da
cerimônia foram publicados e distribuídos por toda a cidade.
No dia seguinte, Śrī Hayagrīva Brahmacārī encontrou-se com o organiza-
dor, um juiz distrital, que expressou suas preocupações em relação a segurança,
dizendo que, como o evento havia encontrado uma oposição tão grande, seria
melhor cancelar os próximos dois dias do encontro, apenas para excluir a pos-
sibilidade da ocorrência de algum incidente indesejável. Śrī Hayagrīva Brahma-
cārī garantiu ao juiz que o orador que havia utilizado palavras incendiárias na
noite anterior definitivamente não iria discursar de novo, e que apenas ele e Śrī
Śrīmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja falariam daí em diante. O
juiz respondeu: “É apenas devido a sua garantia que irei permitir que a cerimô-
nia continue. Farei todos os arranjos necessários para prover maior segurança,
mas por favor considere o conteúdo de seu hari-kathā”.
Na noite seguinte, o local de reunião estava repleto de opositores. Śrī
Haryagrīva Brahmacārī foi o primeiro a se direcionar à multidão, elogiando a
hospitalidade das pessoas de Sylhet. Após terminar sua fala introdutória e esta-
belecer seu objetivo, ele concedeu o palco a Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja.
Durante sua apresentação, Śrīla Mahārāja disse: “Nosso Guru Mahārāja, Śrīla
Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura Prabhupāda nos ensinou que em nossa
pregação devemos entregar a mensagem do próprio Svayaṁ Bhagavān Śrī Cai-
tanya Mahāprabhu. Nosso único propósito em vir até aqui é entregar, por meio
de um discurso destemido, porém justo, a filosofia (vāṇī) que, como um rio,
flui sem cessar do Śrīmad-Bhāgavatam, o comentário natural do Vedānta-sutra
tal como foi apresentado por Śrīman Mahāprabhu em nossa linha de mestres

90
Capítulo 4 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja

(guru-vargas) — assim como Śrī Raghunātha dāsa Gosvāmī, Śrīla Jīva Gos-
vāmī, Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī e outros, que constituem nosso bhāga-
vata-paramparā. Não estamos aqui para pregar com a apreensão e acanhamen-
to de uma senhora, escondendo o rosto atrás de um véu.
“No que tange as doutrinas filosóficas de personalidades como Śrī Śaṅkarā-
cārya, Jaimini, Patañjali, Kaṇāda e assim por diante, a ideologia manifesta por
Svayaṁ Bhagavān Śrī Gaurāṅga Mahāprabhu é sem igual e amplamente supe-
rior às ideologias estabelecidas até mesmo pelos quatro ācāryās vaiṣṇavas pré-
vios — Śrī Rāmānuja, Śrīla Madhvācārya, Śrī Nimbāditya e Śrī Viṣṇusvāmī.
Através de Seus ensinamentos, Ele realçou as imperfeições de tais doutrinas e
derrotou de uma vez por todas as filosofias fabricadas erroneamente. Portanto,
em nossa apresentação da ideologia de Śrīman Mahāprabhu, como é possível
que as ideologias de pessoas como Vivekānanda, Rāmakṛṣṇa Paramahaṁsa e
Bhandarkar não sejam contestadas?”
“Além disso, somos apenas mensageiros do Avatar Dourado, Śrī Caitanya
Mahāprabhu; nosso dever é meramente entregar Seus ensinamentos. Se alguém
nessa assembleia possuir quaisquer objeções, tal pessoa pode apresentá-las a
Śrīman Mahāprabhu, Śrīla Vedavyāsa ou Śrīla Rūpa Gosvāmī. Embora tenha-
mos fé indesviável nesta linhagem ideológica (vicāradhārā), nós nos renderí-
amos sem dúvidas a qualquer pessoa que possa apresentar uma ideologia su-
perior àquela apresentada por Śrīman Mahāprabhu. Mas como tal pessoa não
existe, que ser inteligente não desejaria seguir ou se deixar inspirar pelo auspi-
cioso caminho espiritual descrito por Śrīman Mahāprabhu e Seus seguidores?
“O Śrīmad-Bhāgavatam estabeleceu claramente que Śrī Kṛṣṇa é o próprio
Senhor Supremo (Svayaṁ Bhagavān):
ete cāṁśa kalāḥ puṁsaḥ
kṛṣṇas tu bhagavān svayam
Śrīmad-Bhāgavatam (1.3.28)
Todos os avatāras são: ou porções plenárias, ou porções de porções ple-
nárias da Pessoa Suprema, mas Kṛṣṇa é a Personalidade de Deus original.
“Além disso, o próprio Kṛṣṇa declarou no Bhagavad-gītā que Ele é o objeto
supremo da rendição em versos tais como:
sarva-dharmān parityajya
mām ekaṁ śaraṇaṁ vraja
ahaṁ tvāṁ sarva-pāpebhyo
mokṣayiṣyāmi mā śucaḥ
Śrīmad Bhagavad-gītā (18.66)

91
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Abandonando completamente os deveres materiais (dharma), abrigue-


-se exclusivamente em Mim. Eu te livrarei das reações dos seus pecados.
Não se lamente.

man-manā bhava mad-bhakto


mad-yājī māṁ namaskuru
mām evaiṣyasi satyaṁ te
pratijāne priyo ’si me
Śrīmad Bhagavad-gītā (18.65)
Ofereça a sua mente a Mim, torne-se Meu devoto, adore somente a Mim
e ofereça-Me reverências (praṇāma). Assim você irá me alcançar. Eu re-
velo a você essa verdade porque você é muito querido a Mim.

ananyāś cintayanto māṁ


ye janāḥ paryupāsate
teṣāṁ nityābhiyuktānāṁ
yoga-kṣemaṁ vahāmy aham
Śrīmad Bhagavad-gītā (9.22)
Para aqueles que, desprovidos de outros desejos, estão sempre absortos
em contemplar-Me e sempre Me adoram, pessoalmente cuido de suas
necessidades e preservo o que eles já possuem.

“Portanto, que benefício há em aceitar a ideologia de Rāmakṛṣṇa Paramahaṁsa,


que advoga a adoração de devatās (semideuses)? Tal adoração é contrária ao
Śrīmad-Bhāgavatam (4.31.14), que estabeleceu com firmeza:
yathā taror mūla-niṣecanena
tṛpyanti tat-skandha-bhujopaśākhāḥ
prāṇopahārāc ca yathendriyāṇāṁ
tathaiva sarvārhaṇam acyutejyā
Ao regar a raiz de uma árvore, nutrimos seu tronco, galhos, folhas e ra-
mos; ao fornecer alimento ao estômago, nutrimos todos os sentidos e
membros do corpo; da mesma maneira, todos os semideuses são auto-
maticamente adorados quando se adora o Supremo Infalível (Śrī Acyuta).
“A filosofia de Vivekānanda é ‘jīve prema kare ĵei jana sei jana seviche īśvara
– alguém que tem amor por todos os seres vivos na verdade serve ao Senhor
Supremo’. Contudo vemos que seus seguidores matam e comem animais, de-
vemos então concluir que, nesse aforismo, a palavra jīva, como utilizada por
Vivekānanda, refere- se apenas aos seres humanos. Porém o verdadeiro signifi-
cado da palavra jīva se estende a todos os seres. Todos vocês devem considerar
estes pontos profundamente. Não é necessário dizer mais nada. Vocês são livres

92
Capítulo 4 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja

para fazerem reclamações acerca das imperfeições em nossos métodos de expo-


sição, mas saibam, com certeza, que a filosofia que apresentamos se mantém ima-
culadamente pura em todos os momentos, sem o menor traço de contaminação”.
Após Śrīla Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja concluir seu discurso, a audiência
respondeu com aplausos trovejantes. De fato, eles estavam realmente satisfeitos,
pedindo que os organizadores estendessem a cerimônia com um adicional de
quinze dias. Assim, a pregação da vāṇī de Śrīman Mahāprabhu na cidade de
Sylhet foi um grande sucesso. Como Sylhet era bem conhecida como uma ci-
dade tendo cal de boa qualidade, os moradores, demonstrando sua apreciação,
deram um vagão de cal de presente, para branquear as paredes da Śrī Caitanya
Maṭha, os templos na Yogapīṭha e outras construções na Śrīdhāma Māyāpura
de Mahāprabhu.

93
Çré Çrémad Bhaktisiddhänta
Sarasvaté Öhäkura

Quando meu param-gurudeva – Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī


Ṭhākura – e seus discípulos começaram a difundir, por toda a parte, a perfeita
filosofia daqueles que seguem diretamente a guia e a instrução do avatar doura-
do Śrī Chaitanya Mahāprabhu e de Seus companheiros e discípulos (rūpānuga
vaishnavas), eles se depararam com críticos e antagonistas por toda parte. Apesar
da imensa oposição, Śrīla Prabhupāda nunca se desviou nem um milímetro do
seu objetivo. Pelo contrário, através de seus discípulos e textos ele derrotou com-
pletamente quase todas as ideologias inventadas, especulativas e sem fundamen-
to em vigor na época, estabelecendo o gauḍīya-vicāra-dhārā, a linhagem perfeita
e pura do Gauḍīya Vaiṣṇavismo.
Sua humildade e tolerância
Śrīla Prabhupāda era a personificação da humildade descrita por Śrī Chaitanya
Mahāprabu no Śrī Śikṣāṣṭakam (3):
tṛṇād api sunīcena
taror api sahiṣṇunā
amāninā mānadena
kīrtanīyaḥ sadā hariḥ
Somente aquele que é mais humilde do que uma folha de grama e mais to-
lerante do que uma árvore, capaz de respeitar a todos sem desejar respei-
to para si mesmo pode cantar constantemente os Santos nomes de Deus.
Podemos ter uma ideia da humildade de Śrīla Prabhupāda durante a fa-
mosa peregrinação sagrada (parikramā) de Śrī Navadvīpa-dhāma em 1925, na
qual ele guiou um grupo de mais de cinco mil peregrinos junto a cento e oito
tocadores de mṛdaṅga (um instrumento de percussão tradicional da Índia, sím-
bolo da propagação do canto do mahamantra Hare Krishna na sociedade). Em
frente ao massivo grupo do parikramā estava uma deidade de Śrīman Mahāprabhu,
montada de maneira magnífica no topo de um elefante.
Naquela época, um grupo de pessoas, incluindo bābājīs e jātigoshā̃is
(brâmanes de casta nascidos na linhagem familiar dos Gosvāmīs), estavam
perdendo prestígio social e doações por causa da pregação destemida e sincera

95
Viśuddha Caytania-Vāṇī

de Śrīla Prabhupāda sobre a doutrina Gauḍīya, tal como ela foi ensinada por
Śrīman Mahāprabhu. As instruções de Śrīla Prabhupāda muitas vezes con-
tradiziam e desafiavam as filosofias adulteradas desses grupos adversários. As
pessoas de tais grupos ficaram com inveja da fama crescente e da gloriosa in-
fluência de Śrīla Prabhupāda. Assim, foram até a procissão do parikramā com
a monstruosa intenção de atentarem contra a vida dele. Apesar de tudo, Śrīla
Prabhupāda estava despreocupado e considerou o ataque mortal contra si como
se fosse apenas uma tentativa de agressão física.
Quando os oficiais da polícia chegaram ao local e perguntaram quem esta-
va por trás do ataque, ele respondeu: “Ninguém.”
Seus discípulos obviamente ficaram assustados ao ver seu pouco caso dian-
te do incidente, pois acreditavam que, a menos que tomassem alguma precau-
ção contra seus invejosos inimigos, seria impossível organizar peregrinações
pacíficas no futuro. Em resposta, Śrīla Prabhupāda declarou com firmeza: “O
incidente não causou dano algum. Na verdade, foi favorável para nós; com isso
conseguimos uma coisa impossível que não alcançaríamos nem gastando mi-
lhões de rúpias. O atentado apareceu na capa dos jornais, ou seja, uma quanti-
dade incalculável de pessoas que nunca tinha ouvido falar da Gauḍīya Maṭha do
avatar dourado agora sabem da nossa existência. Personalidades proeminentes
de lugares distantes – como os reis de Tripura, Vārdhamāna, Koch Bihar e até
mesmo o rei de Jaipur – nos procuraram querendo saber sobre o que aconteceu.”
Deste modo, mesmo sendo uma alma eternamente livre das ilusões mate-
riais, um companheiro de Śrī Krishna e, consequentemente, uma personalida-
de sem falhas, livre das influências do karma, Śrīla Prabhupāda, através de sua
própria ética e conduta perfeitas, demonstrou a aplicação adequada do seguinte
verso do Śrīmad Bhāgavatam (10.14.8):
tat te ’nukampāṁ su-samīkṣamāṇo
bhuñjāna evātma-kṛtaṁ vipākam
hṛd-vāg-vapurbhir vidadhan namas te
jīveta yo mukti-pade sa dāya-bhāk
Aquele que ansiosamente espera pela misericórdia sem causa do Supremo,
ao mesmo tempo em que tolera com paciência as reações de seus próprios er-
ros cometidos no passado e que constantemente oferece a Krishna o máximo
respeito em seu coração com suas palavras e seu corpo, é digno de se libertar
do mundo material, pois receber tal bênção se torna seu direito legítimo.

Sua reputação
Em outro momento, enquanto estava se preparando para mais um parikramā

96
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

de Śrī Navadvīpa-dhāma, Śrīla Prabhupāda, na companhia de seu assistente


pessoal Śrī Paramānanda Brahmacārī, foi procurar um lugar aberto que fosse
apropriado e grande o suficiente para que todos os que participavam da pere-
grinação pudessem se acomodar. Naquela época, os peregrinos dormiam a céu
aberto, pois apenas as cozinhas tinham telhado. Em Campaka-haṭṭa eles encon-
traram um grande pomar de mangas a poucos metros de um lago. Consideran-
do o espaço como sendo adequado, Śrīla Prabhupāda reservou o local com seus
proprietários e retornou ao templo.
Naquela noite, alguns itens foram roubados de uma residência próxima ao
pomar. Um boletim de ocorrência - First Information Report (FIR) - foi apre-
sentado na delegacia local contra Śrīla Prabhupāda, no qual ele era acusado de
ter explorado a área em busca de bens de valor durante a manhã e de ter retor-
nado durante a noite para furtar os objetos. Śrīla Prabhupāda simplesmente não
respondeu à acusação.
Quando Śrī Pal Choudhury – um fazendeiro local muito influente por suas pos-
ses que, dentre outras, coisas possuía uma plantação de chá – soube do incidente,
ele correu até a delegacia no mesmo instante. Sua propriedade era tão extensa que já
na primeira metade do século XX incluía um heliporto utilizado pelos ingleses com
frequência. Ele era um dos membros mais respeitados da sociedade local, reconhe-
cido até mesmo pelo governo britânico, por isso os oficiais de polícia ouviram-no
com muita atenção. Ele disse que também queria abrir um boletim de ocorrência,
porque o lago de sua propriedade havia sido furtado na noite anterior. Confuso, o
oficial responsável perguntou: “Senhor, como podem ter roubado um lago? Isto é
impossível. Como podemos anotar um depoimento sobre o roubo de um lago?”
Śrī Pal Choudhury respondeu: “Você está certo; é impossível. Mas ainda
mais impossível é Śrī Bhaktisiddhānta Sarasvatī roubar alguma coisa! Por acaso
vocês estão minimamente conscientes de sua grandeza espiritual?” Com o fir-
me pedido de Śrī Pal Choudhury, a acusação contra Śrīla Prabhupāda foi ime-
diatamente retirada.
Após cancelarem a queixa, as pessoas de Champaka-haṭṭa, tendo compre-
endido seu erro em acusar falsamente uma personalidade divina, sentiram-se
envergonhadas. Considerando que haviam cometido uma grave ofensa, elas
concluíram que a única forma de se redimirem era servindo Śrīla Prabhupāda e,
portanto, doaram o templo Śrī Gaura-Gadādhara para a Gauḍīya Maṭh. Nesse
mesmo templo, o irmão mais novo de Śrīla Gadādhara Paṇḍita, Dvija Vaṇīnātha,
havia prestado seus serviços aos grandes santos.

97
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Sua defesa e proteção aos rūpānugas


Embora Śrīla Prabhupāda tolerasse em silêncio os ataques dirigidos à sua pessoa,
ele nunca, nem por um segundo, deixava passar o menor ataque aos princípios
da ideologia rūpānuga (a filosofia do discípulo do avatar dourado, Śrīla Rūpa
Gosvāmī)e tampouco àqueles que seguiam a filosofia com sinceridade. Ele não
permitia que nenhuma declaração em oposição à verdadeira filosofia de Śrī Rūpa
Gosvāmīpāda ficasse sem uma contra-resposta eficaz. Ao responder, ele não le-
vava em consideração o status social da pessoa com a qual estivesse debatendo.
Apesar de não reagir aos ataques pessoais, se fosse necessário, ele seria ca-
paz de abrir um processo judicial contra seus oponentes para estabelecer a au-
tenticidade e superioridade da linha de pensamento gauḍīya vaishnava. É por
isso que seu praṇāma-mantra (o mantra que exalta seu impecável serviço ao
Supremo) declara “rūpānuga-viruddhāpasiddhānta-dhvānta-hāriṇe – você li-
berta as almas caídas e aniquila a escuridão proveniente dos conceitos equivo-
cados (apasiddhānta) e opostos (viruddha) aos preceitos enunciados por Śrīla
Rūpa Gosvāmī.”
Em poucas palavras, Śrīla Prabhupāda era indiferente ao que os outros di-
ziam ou faziam em relação a ele mesmo; pois nunca levava nada para o lado pes-
soal. Ele estava, em vez disso, cuidadosamente ocupado em seguir e estabelecer
as instruções de nosso guru-varga (a sucessão de mestres e discípulos perfeitos).
Ele servia incansavelmente de inúmeras formas, tais como publicar literatu-
ra sobre bhakti, estabelecer novos templos, executar a adoração de Deus diante
das deidades no altar (archana), organizar palestras sobre o conhecimento es-
piritual e enviar seus discípulos ao redor do mundo para pregar a mensagem de
Śrī Chaitanya Mahāprabhu. Na verdade, o comportamento de Śrīla Prabhupāda
Bhaktisiddhanta é arrebatador e inspira profundo respeito, maravilhamento e
reverência em todos os que escutam sobre os esforços sem tamanho com os
quais ele estabeleceu o bem-estar espiritual eterno das almas condicionadas
deste mundo.

É muito raro aceitar o caminho de kṛṣṇa-bhakti


Certa vez, um menino foi ao templo com o desejo de ficar lá, declarando: “Eu
não vou mais voltar para a minha casa. Só volto se Śrīla Prabhupāda mandar.”
Quando um discípulo lhe contou sobre o menino, ele respondeu: “Você me con-
sidera uma pessoa com o coração tão duro a ponto de mandar alguém que tem
tanto desejo de residir e servir no templo, voltar para casa? Após vagar por vários
universos (brahmāṇḍas), incontáveis seres vivos se acumularam neste mundo.
Dentre eles, é extremamente raro que um ou outro deseje morar com os devotos

98
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

no templo. Raríssimas almas, extremamente afortunadas, sentem essa vontade.


Como eu poderia pedir para que tal alma deixasse a maṭha e retornasse ao serviço
da ilusão material (māyā)?”

O sentimento divino é o valor profundo do nosso canto


Dias antes de abandonar o corpo, Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura
Prabhupāda expressou o desejo de ouvir alguns cantos sagrados (kīrtanas) es-
pecíficos. Para satisfazer tal pedido, seu assistente pessoal (sevaka) chamou um
devoto que era conhecido por cantar com uma linda voz, acompanhada de me-
lodia e compassos rítmicos perfeitos. Todos sabiam que Śrīla Prabhupāda apre-
ciava aquele cantor (kīrtanīya). Porém ao vê-lo, ele disse: “Eu não quero ouvir um
kīrtana melodioso e bem elaborado, quero ouvir um kīrtana cantado do âmago
do coração, por alguém que compreenda completamente os sentimentos divinos
(bhāvas) e os significados mais transcendentais das canções sagradas.”
Ele então deu ordens para que Śrī Śrīmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī
Mahārāja e Śrī Navīna-Kṛṣṇa Vidyālaṅkāra cantassem Śrī Rūpa-mañjarī-pada e
Tuhũ Dayā-sāgara, respectivamente. Por meio desse episódio, Śrīla Prabhupāda
estabeleceu a importância de cantar após compreender totalmente os significa-
dos do kīrtana, realizar o sentido profundo de suas poesias através dos humo-
res e sentimentos ocultos de nossos mestres perfeitos (ācāryas), em vez de nos
preocuparmos apenas com a melodia e o ritmo. Mesmo assim, não devemos
pensar que o devoto cujo canto Śrīla Prabhupāda não quis ouvir naquele mo-
mento fosse uma pessoa comum ou alguém interessado somente nos aspectos
musicais do kīrtana. Na verdade, ele era um kīrtanīya muito elevado. Anterior-
mente, em Purī, Śrīla Prabhupāda havia escutado seu kīrtana inúmeras vezes
com grande avidez. Śrīla Prabhupāda só o impediu de cantar naquela ocasião
para estabelecer e ensinar um ponto de vista específico, que a realização plena
do significado das canções sagradas é superior ao aspecto musical e estético.
Sendo uma personalidade eternamente livre das ilusões materiais, um
companheiro espiritual de Bhagavān Śrī Krishna (nitya-siddha parikāra), Śrīla
Prabhupāda sabia de tudo. Por conhecer passado, presente e futuro, ele é cha-
mado de trikāla-jña (onisciente). Ele compreendia que os seres vivos condicio-
nados às ilusões deste mundo, desprovidos de bom senso, não prestam a devida
atenção na gravidade dos sentimentos e no significado profundo do kīrtana.
Visando ganhar fama e reconhecimento, pessoas materialistas se absorvem
em meditar na melodia, na afinação da voz, no ritmo, considerando tais coisas
como a essência do kīrtana. Assim, Śrīla Prabhupāda aproveitou a presença de
um de seus queridos associados para nos deixar um ensinamento de grande

99
Viśuddha Caytania-Vāṇī

importância, fundamental para o benefício de pessoas superficiais como nós.


Apenas as pessoas mais íntimas, completamente rendidas às grandes almas
autorrealizadas, podem compreender verdadeiramente seus ensinamentos fun-
damentais e entender através de quem e em qual momento elas decidem nos
conceder esses exemplos mais que perfeitos.
Sem penetrar no coração dos grandes ācāryas, como alguém seria capaz
de compreender os verdadeiros motivos de Śrīla Prabhupāda? Sabendo que an-
tes dessa ocasião ele mesmo havia docemente condecorado Śrī Mohinī Bābū,
o tio de Śrī Śrīmad Bhakti Kumuda Shanta Gosvāmī Mahārāja, com o epíteto
‘rāga-bhūṣaṇa’ — que significa ‘aquele que é agraciado por uma bela melodia’
–, justamente por ter ficado muito satisfeito ao ouvir seus kīrtanas melodiosos
e artísticos, cantados num ritmo primoroso? Por que ele teria permitido o uso
de instrumentos musicais tais como karatālas, kāṅssā e mṛdaṅgas durante os
kīrtanas diários na maṭha? Por que ele ordenou o arranjo de uma apresentação
de cento e oito tocadores de mṛdaṅga quando restabeleceu o parikramā de Śrī
Navadvīpa-dhāma (a terra sagrada onde nasceu o Avatar Dourado)? E por que
Śrīla Muni Gosvāmī Mahārāja, um discípulo de Śrīla Prabhupāda, tirava as
karatālas das mãos dos devotos que cometiam pequenos erros ao tocar du-
rante o kīrtana?
Muitos dos ācāryas anteriores também haviam estabelecido a extrema
importância do ritmo e da melodia no kīrtana, explicando em detalhes como
tais arranjos se correlacionam com os passatempos de Śrī Śrī Rādhā-Kṛṣṇa. Por
exemplo, Śrīla Narottama dāsa Ṭhākur escreveu no seu Prārthana (25):
Su yan tre miśā̃iyā gābô su-madhura tāna
ānande kôribô dũhāra rūpa-guṇa-gāna
Acompanhado de instrumentos musicais, vou cantar doces melodias.
Mergulhado em bem aventurança, devo cantar as canções que glorificam
a forma e as qualidades do Casal Divino.
Bhaktivinoda Ṭhākura escreveu:
śrī viśākhā-pade, saṅgīta śikhibô,
kṛṣṇa-līlā rasamaya
Śrī Śrī Gīta-mālā (5.4.3)
Rendido aos pés de lótus de Śrī Viśākhā Devi, devo aprender canções
repletas do divino néctar dos passatempos de Krishna.
tāthai tāthai’ bājalô khol,
ghana ghana tāhe jhā̃jhera rola
Gītāvalī (1.1.2)

100
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

“Tátham, tátham” as mṛdaṅgas ressoaram, e as karatālas tilintaram num


ritmo perfeito.

nārada muni, bājāya vīṇā,


rādhikā-ramaṇa-nāme
Gitavali (11.8.1)
Os dedos de Nārada Muni extraíram as notas de sua vīṇā, enquanto ele
cantava ‘Rādhikā-ramaṇa.’
Outro ācārya Vaishnava escreveu:
lalitā bājāiya vīṇā, viśākhā mṛdaṅga,
phula caḓāya nāce sakhī vidyā tuṅga
Śrī Lalitā Sakhī toca a vīna, Śrī Viśākhā Sakhī toca o tambor, e Śrī Tuṅgavidyā
Sakhī dança, espalhando flores por todos os lados.
Até mesmo o próprio Śrī Krishna, a partir de seu hábito de tocar Sua flauta
transcendental, aprova a utilização de instrumentos musicais. Na verdade, to-
das as sessenta e quatro artes têm sido manifestadas pelo próprio Senhor sim-
plesmente para Seu eterno prazer.
Portanto, após saber que Śrīla Prabhupāda havia recusado ouvir um kīr-
tana melodioso, não devemos concluir que o uso de instrumentos musicais
vaishnavas no kīrtana seja inapropriado ou que os devotos que cantam com
uma voz doce e melodiosa devam ser desencorajados. A mensagem real é que
o verdadeiro kīrtana é realizado após compreendermos adequadamente o sub-
texto espiritual de seus versos poéticos. No entanto, as características estéticas
do kīrtana – tais como melodia, ritmo e expressão vocal – não devem ser com-
pletamente descartadas, mas sim vistas como sendo algo favorável à bhakti. Em
seu Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.200), Śrīla Rūpa Gosvāmī citou:
laukikī vaidikī vāpi yā kriyā kriyate mune hari-sevānukūlaiva sā kāryā
bhaktim icchatā
Ó, santo! Se um devoto puro deseja agir de acordo com os costumes so-
ciais ou de acordo com os preceitos védicos, tudo o que ele faz é favorável
ao serviço de Śrī Hari.

Śrīla Prabhupāda era capaz de enxergar a devoção sincera por trás


dos gestos e dos atos aparentemente materiais
Dias antes de abandonar o corpo, Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura
Quando Śrī Śrīmad Bhakti Vaibhava Sāgara Gosvāmī Mahārāja, um discípu-
lo sannyāsī de Śrīla Prabhupāda, dava aulas sobre Deus (hari-kathā), poucos
podiam compreendê-lo, porque o modo como ele se expressava era quase in-

101
Viśuddha Caytania-Vāṇī

compreensível. Embora todos na platéia fossem, aos poucos, saindo um por


um durante suas palestras, ele continuava falando. Vendo o salão vazio, alguns
brahmacārīs que acompanhavam Mahārāja pediam: “Mahārāja, você pode parar
o seu discurso agora; não tem mais ninguém aqui. Já podemos arrumar as estei-
ras e dobrar todos os tapetes na sala do kīrtana.”
Mas Mahārāja respondia: “Vocês não conseguem ver. Vocês têm consciên-
cia somente dos seres que estavam aqui com seus corpos materiais, mas há mui-
tos seres vivos nesta sala, presentes em seus corpos sutis e outros seres que vivem
ao nosso redor – as árvores, as trepadeiras, os insetos. Todos estão ouvindo.
Além disso, estou falando para o meu próprio bem-estar espiritual. Se
alguém fica e escuta, também é beneficiado. Será que eu não receberia ne-
nhuma bênção ao falar hari-kathā, mesmo que ninguém estivesse presente?
Śrīla Prabhupāda nos disse que devemos executar nityaṁ bhāgavata-sevā – ou
seja, que devemos nos ocupar sem parar no serviço ao Śrīmad-Bhāgavatam (ao
grande purāṇa da devoção a Deus) através de śravaṇa (ouvir constantemente
os passatempos e o conhecimento acerca de Krishna) e kīrtana (pronunciar ou
louvar as glórias do Absoluto) – ou ele nos instruiu a executar tal bhāgavata-sevā
apenas como uma demonstração pública diante de um certo número de pes-
soas?”. Mais tarde, alguns devotos expuseram o ponto de vista de Śrīla Sāgara
Gosvāmī Mahārāja para Śrīla Prabhupāda.
Śrīla Sāgara Gosvāmī Mahārāja tampouco tinha habilidades para coletar
doações. Certa vez, quando Śrīla Mahārāja estava voltando para Calcutá, ele
nem sequer tinha dinheiro suficiente para pagar sua passagem de trem e, assim,
embarcou no trem sem bilhete junto aos dois brahmacārīs que o acompanha-
vam. Ao chegar na estação ferroviária, os três foram detidos por viajar sem pa-
gar. A notícia chegou rapidamente a Śrīla Prabhupāda no templo de Calcultá e
mais tarde, quando finalmente Śrīla Sāgara Mahārāja chegou na maṭha, Śrīla
Prabhupāda enviou seus discípulos com o intuito de recepcioná-lo com um
lindo saṅkīrtana, e afirmou: “Śrī Sāgara Mahārāja é de fato um jīvan-mukta
mahāpuruṣa – uma grande personalidade, livre das ilusões materiais.”
Śrīla Prabhupāda, o servo perfeito de bhāva-grahī Janardana – isto é, do
Krishna que aceita e avalia as emoções e intenções daqueles que se dirigem a
Ele, ao invés de prestar atenção nos objetos materiais utilizados a Seu serviço –
reconhecia e apreciava o humor e a disposição favorável das pessoas envolvidas
no serviço de Śrī Hari, do guru e dos vaiṣṇavas. Śrīla Prabhupāda observava
esses sentimentos com um coração puro e sincero, sem o menor traço de hipo-
crisia. Ele não se importava com qualificações externas, tais como a eloquência
ao falar o hari-kathā ou a capacidade de coletar grandes doações para o templo.

102
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

Através desse passatempo, Śrīla Prabhupāda estabeleceu para todos nós um


padrão de imparcialidade total, bem como um modo de agir totalmente livre de
inveja e hipocrisia. Sua conduta deve ser seguida por todos os devotos sinceros.
Aceitando a substância
A certo ponto, meu śikṣā-guru, Śrīpāda Kṛṣṇa-Keśava Prabhu, que tinha se abri-
gado em Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākur Prabhupāda, acabou se mudan-
do para o templo. Seu pai, Śrī Sarveśvara dāsa Adhikārī, que não era iniciado
na época, veio até Śrī Māyāpura durante o festival de Gaura-pūrṇimā com a
intenção de levar seu filho de volta para casa, em Assam. No entanto, após en-
contrar-se com Śrīla Prabhupāda, observar sua conduta, ouvir o seu hari-kathā
e constatar sua influência iluminadora, bem como a dos discípulos rendidos a
seus pés de lótus, ele não só deixou de lado os pensamentos de levar seu filho de
volta como também desejou aceitar a iniciação na prática de meditar e cantar
os Santos Nomes (harināma) do próprio Śrīla Prabhupāda. Vendo os devotos
aspirantes com a cabeça raspada esperando do lado de fora do bhajana-kuṭīr (do
quarto de orações) de Śrīla Prabhupāda para receberem harināma, ele também
raspou a cabeça e juntou-se a eles. Naquela hora, um dos discípulos de Śrīla
Prabhupāda foi até ele e disse—“Você não poderá receber harināma hoje, por-
que você ainda tem o hábito de fumar cigarros e bīḍīs.”
Mas ele respondeu: “Se meu vício está me impedindo de ser aceito como
discípulo de Śrīla Prabhupāda, então, de agora em diante, eu não tocarei mais
em nenhum tipo de cigarro.”
Tendo ouvido a conversa de dentro de seu bhajana-kuṭīr, Śrīla Prabhupāda
disse a seu discípulo: “Por favor, chame esse senhor agora mesmo. Darei sua
iniciação de harināma ainda hoje.”
Por ser uma alma autorrealizada, Śrīla Prabhupāda podia compreender o
significado implícito de declarações simples do coração de todos; ele sabia se
uma pessoa era realmente determinada ou se estava falando de uma maneira
sentimental sob a influência da ocasião.
A partir desse dia, Śrī Sarveśvara dāsa Adhikārī sempre se lembrava, “A fim
de receber harināma de um mahāpuruṣa, eu fiz voto de nunca fumar cigarros ou
bīḍī novamente.” Assim, ele levou uma vida ancorada nos princípios vaiṣṇavas e
nunca mais usou qualquer tipo de intoxicante.

Reconhecendo sinceridade
Uma vez, um senhor que desejava receber harināma foi até Śrīla Prabhupāda
e disse com o coração sincero, “Mahārāja, tenho levado uma vida abominável.
Comi vários tipos de carne, até mesmo carne de porco. Faço agora o voto de re-

103
Viśuddha Caytania-Vāṇī

nunciar a todas essas atividades detestáveis. Por favor, me aceite como um servo
aos seus pés de lótus.”
Embora outras pessoas, apesar de residirem na maṭha há alguns anos,
nunca tivessem recebido a iniciação do harināma ou a dīkṣā, Śrīla Prabhupāda,
reconhecendo a simplicidade e sinceridade daquele homem, concedeu-lhe ini-
ciação sagrada dos Santos Nomes de Krishna.

A maṭha é um local para se executar serviço aos mestres autorrealizados


Porque a abertura de templos envolve seus moradores em possíveis processos
judiciais e disputas pela sua propriedade, Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura aconse-
lhou que não abríssemos mais templos e mosteiros. No entanto, Śrīla Prabhupā-
da, considerando os aspectos positivos de tais instituições, estabeleceu muitas
maṭhas. Sua intenção era oferecer àqueles que desejavam se dedicar integral-
mente à vida espiritual e ao Santos Nomes – mas eram incapazes de realizar
bhajana sozinhos por causa do contato com o mundo material e da dificuldade
de controlar seus sentidos – a oportunidade de conviver e de receber a mise-
ricórdia de almas autorrealizadas. Śrīla Prabhupāda costumava dizer: “Embora
Bhagavān (Deus) Se revele através do mestre autorrealizado, dos sábios e das
escrituras (guru, sadhu e śāstra) é impossível entrar nos significados mais pro-
fundos dos textos sagrados sem obter a misericórdia de devotos puros. Śrī Jaḍa
Bharata, Śrī Prahlāda e Śrī Rṣabhadeva, enfatizaram a importância de conviver-
mos com os grandes mestres (mahat-saṅga). Eles afirmaram que ‘vinā mahat-
-pāda-rajo-‘bhiṣekam – a menos que alguém esfregue sobre o corpo a poeira dos
pés de lótus de devotos puros, não é possível a Verdade Absoluta’; 'mahīyasām
pādarajo-’bhiṣekaṁ niṣkiñcanānām na vṛṇīta yāvat – é impossível alcançar as
glórias de Śrī Krishna para aqueles que não se refugiam sob os pés de lótus dos
grandes devotos, que são completamente desapegados dos objetos mundanos’
e ‘mahat-sevāṁ dvāram āhur vimuktes – somente prestando serviço às grandes
almas é que podemos alcançar o caminho da libertação deste cativeiro material.'
Embora externamente um lugar possa se parecer com um templo, ou pos-
sa ser famoso como um templo, ele não pode ser chamado de maṭha no ver-
dadeiro sentido da palavra se dentro de seus muros não for possível escutar e
pronunciar hari-kathā. Todas as atividades realizadas num templo onde nin-
guém ensina sobre as glórias do Supremo permanecem simplesmente presas ao
âmbito do karma. Os frutos do karma nos levam apenas para vidas e destinos
materiais, dentro dos catorze sistemas planetários, e nunca além deles. Porém,
como resultado de se ocupar em mahat-sevā (no serviço às grandes almas),
pode-se alcançar a qualificação necessária para servir Śrī Śrī Rādhā-Krishna em

104
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

Goloka Vṛndāvana, a morada mais elevada da esfera espiritual de Vaikuṇṭha.


Śrīla Prabhupada explicou: “Uma pessoa que mora no templo mas não es-
cuta um devoto puro falar sobre Krishna simplesmente executa atividades liga-
das ao karma.” Em outras palavras, se uma pessoa afirma com orgulho que mora
num templo, mas não participa ativamente ouvindo e proferindo hari-kathā,
então sua permanência no templo (maṭha-vāsa) é algo puramente superficial;
ela não reside no templo verdadeiramente.

Śrī Navadvīpa-pañjikā e a importância de se lembrar dos vaiṣṇavas


Mesmo em idade avançada, vaiṣṇava-sārvabhauma Śrīla Jagannātha dāsa Bābājī
Mahārāja, devido à sua compaixão infinita, costumava visitar o bhajana-kuṭīra
de Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura. Por estar muito magro e deblitado, ele não con-
seguia mais caminhar e assim era transportado em uma cesta por seu discípulo,
Śrīla Bihārī dāsa Bābājī.
Uma vez, quando Śrīla Bābājī Mahārāja soube do profundo conhecimento
que Śrīla Prabhupāda tinha sobre astrologia, ele pediu que Prabhupāda publi-
casse o Śrī Navadvīpa-pañjikā, um calendário que inclui os dias de aparecimento
das encarnações de Krishna e as manifestações de suas diferentes potências e
energias (śakti), bem como os dias de aparecimento e desaparecimento de gran-
de vaiṣṇavas, tal como ensina a filosofia Gauḍīya. Śrīla Bābājī Mahārāja disse:
“Não é possível alcançar bem-estar espiritual sem se lembrar dos pés de lótus
dos vaiṣṇavas. Além disso, é uma ofensa não se lembrar deles e esquecer de glo-
rificá-los, especialmente nos dias de seus aparecimentos e desaparecimentos.”
Śrīla Jagannātha dāsa Bābājī Mahārāja então deu a Prabhupāda seu próprio ca-
lendário pessoal com as datas mais importantes e suas respectivas descrições.
Lembrando as palavras de Śrīla Narottama dāsa Ṭhākura, “guru-mukha-
-padma-vākya, cittete kôriyā aikya – Unifique as palavras que emanam da boca
de lótus de śrī guru com o teu próprio coração”, Śrīla Prabhupāda considerou
essas instruções de Śrīla Jagannātha dāsa Bābājī Mahārāja como algo extrema-
mente importante e, por isso, publicou o Śrī Navadvīpa-pañjikā, no qual incluiu
todas as datas necessárias (tithis).
É unicamente por causa da grande bênção de Śrīla Bābājī Mahārāja, mani-
festada através de Śrīla Prabhupāda, que nos tornamos conscientes dessas im-
portante tithis e temos recebido a oportunidade de observá-las de todo o cora-
ção, conforme elas respectivamente chegam durante o transcorrer do ano.
Śrī Vṛndāvana dāsa Ṭhākura escreveu:
ĵe vaiṣṇava bhajile acintya kṛṣṇa pāi se vaiṣṇava-pūjā hôite baḓa āra nāi
Śrī Caitanya-bhāgavata (Antya-khaṇḍa 4.357)

105
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Não há nada melhor do que adorar os vaiṣṇavas porque, por adorá-los,


pode-se alcançar o inconcebível Śrī Krishna.
Podemos desenvolver afeição pelos vaiṣṇavas das seguintes maneiras: pro-
nunciando suas glórias, nos relacionando com eles, e prestando-lhes serviço.
Como resultado de tais atividades, a mente – que caso contrário ficaria comple-
tamente absorta na infinita expansão de māyā – se purifica e atinge a realização
espiritual plena além da influência material e, assim, torna-se absolutamente
imersa na bem-aventurança transcendental.
Serviço afetuoso é serviço grandioso
Uma vez, os discípulos de Śrīla Prabhupāda se reuniram e apresentaram uma
pergunta ao seu assistente pessoal, Śrī Paramānanda Prabhu: “Entre os devotos
no templo que aceitaram o abrigo de seus pés de lótus e se ocupam de forma sin-
cera, dia e noite, em prestar vários tipos de serviço para a sua divina satisfação, o
serviço de quem você considera o mais elevado?”
Śrīla Prabhupāda respondeu tal pergunta tão complexa com palavras sim-
ples: “A grandeza do serviço de uma pessoa é diretamente proporcional à quan-
tidade de amor e carinho que ela desenvolve em seu coração pelos vaiṣṇavas;
quanto maior for o afeto, maior será o serviço.”

Restabelecendo a peregrinação sagrada (Śrī Dhāma-parikramā)


Em sua vida, Śrīla Prabhupāda viajou para quase todos os locais sagrados da
Índia. Na realidade, por ser uma alma perfeita, que possui relação eterna com
Krishna (nitya-siddha parikāra), essas peregrinações não seriam necessárias,
mas para estabelecer através do seu próprio comportamento a importância do fa-
moso verso do Śrīmad Bhāgavatam (9.4.18), “pādau hareḥ kṣetra-padānusarpaṇe
– os pés devem ser ocupados em caminhar pelos locais dos passatempos do
Senhor”, ele embarcou em extensas jornadas. No entanto, surpreendentemente
afirmou: “Embora eu tenha ido para muitos locais sagrados com o desejo de me
relacionar com grandes vaiṣṇavas, eu não encontrei um único vaiṣṇava puro em
todas as minhas viagens.”
Compreendendo que visitar todos os locais sagrados espalhados pela Índia
poderia representar um grande e inútil esforço, pois neles não era possível obter
sādhu-saṅga (relação direta com grandes sábios), Śrīla Prabhupāda organizou
e restabeleceu a tradição anual do parikramā em três dhāmas sagrados, o três
locais principais relacionados aos passatempos de Krishna no mundo material
– ŚrīVraja-maṇḍala, Śrī Kṣetra-maṇḍala e Śrī Gaura-maṇḍala – a fim de propor-
cionar a todos a oportunidade de ouvir e falar hari-kathā em mahat-saṅga, na
presença de vaiṣṇavas muito elevados.

106
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

Sua visão sobre jīva-hiṁsā


Normalmente, a expressão jīva-hiṁsā em sânscrito é compreendida como: 'um
ato físico ou emocional de violência desnecessária contra qualquer ser vivo ou
contra si mesmo.' Mas se. por exemplo, uma pessoa comete suicídio, diz-se que
ela cometeu ātma-hatyā (um assassinato do eu). Porém, Śrīla Prabhupāda expli-
cou que isso não pode ser considerado ātma-hatyā, mas sim śarīra-hatyā (assas-
sinato do corpo material¹).
Portanto, a violência física ou emocional contra o corpo físico ou contra o
corpo sutil da alma (jīva) não constituem jīva-hiṁsā, pois a jīva é uma alma espi-
ritual distinta desses seus dois corpos. O ato de prejudicar esses corpos, grosseiro
e sutil, tem sido chamado de jīva-hiṁsā pelas pessoas em geral, mas esse, na
verdade, não é o verdadeiro significado perfeito da expressão.
A alma é indestrutível e não pode ser prejudicada. Bhagavān Śrī Kṛṣṇa expli-
ca no Bhagavad-gītā (2.23):
nainaṁ chindanti śastrāṇi nainaṁ dahati pāvakaḥ na cainaṁ kledayanty
āpo na śoṣayati mārutaḥ acchedyo ’yam adāhyo ’yam akledyo ’śoṣya eva
ca nityaḥ sarva-gataḥ sthāṇur acalo ’yaṁ sanātanaḥ
A alma nunca pode ser perfurada por qualquer arma, nem queimada
pelo fogo, umedecida pela água ou seca pelo vento. Ela é indivisível, in-
solúvel e não pode ser queimada ou seca. Ela a tudo permeia, é eterna,
permanente, imóvel e existe para sempre.
Surge então a pergunta: qual é o significado real de jīva-hiṁsā?
Śrīla Prabhupāda explicou que a jīva possui qualificação para alcançar a rea-
lidade mais elevada, desde que ela se submeta ao treinamento necessário e tenha
compreendido corretamente a natureza de tal realidade. Portanto a verdadeira
jīva-hiṁsā é de dois tipos: (1) consciente ou inconscientemente desviar a jīva do
caminho que conduz à morada mais elevada (o caminho da devoção pura, bhakti),
instruindo-a a tomar um outro processo que conduza a um destino temporário,
tais como os caminhos do karma, de jñāna, yoga e assim por diante, e (2)
abster-se de ajudar o progresso da jīva no caminho que leva à realidade suprema.
Portanto, a verdadeira ahiṁsā (não-violência) é pregar e seguir o caminho de
bhakti pura, e não os caminhos do karma, de jñāna, do yoga e assim por diante.
A menos que uma pessoa tenha entendido a verdadeira profundidade desse
assunto, seu esforço em evitar jīva-hiṁsā é algo inútil.

1 - O conteúdo dos Vedas informa que a alma é eterna e que portanto nunca deixa de existir. Porém,
cometer suicídio é uma ação abominável, o Skanda Purana (IV.i.12.12-13) afirma:
Aqueles que se matam penetram a imensa escuridão. Após padecerem através de mil di-
ferentes tipos de sofrimento infernal, nascem como porcos. O suicídio nunca deve ser co-
metido, pois nada de bom recai sobre aqueles que se matam, neste ou em outros mundos.

107
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Śrīla Prabhupāda especificou muito claramente em seu comentário sobre


o Guṇḍicā-mandira-mārjana-līlā-rahasya que jīva-hiṁsā (a violência contra a
alma individual) significa hesitar (kuṇṭhā) ou limitar, reduzir (kṛpaṇatā) a pró-
pria pregação do processo puro da devoção pura e exclusiva (śuddha-bhakti);
abrir espaço para advaitas, māyāvādīs, karmīs ou anyābhilāṣīs fornecendo a eles
uma oportunidade (praśraya) para que disseminem suas pseudo-filosofias; e,
por fim, falar unicamente sobre os aspectos que agradam ao público também é
considerado jīva-hiṁsā.

Ocupando outros em serviço, de acordo com suas respectivas qualificações


Não é fácil compreender as atividades e intenções dos mahā-bhāgavata vaiṣṇavas
(aqueles que alcançam o nível máximo de entrega e realização). Apesar de seu
comportamento parecer externamente contraditório, as vezes, tais contradições
estão em harmonia perfeita com o foco e determinação unidirecional que eles
possuem em servir Śrī Hari (Deus), o guru e os vaiṣṇavas. Sendo um servo do
onisciente Senhor Supremo, Śrīla Prabhupāda era capaz de perceber até mesmo
a mais sutil das intenções no coração de todas as pessoas e, portanto, ele sabia
como interagir com todos os indivíduos para levá-los a um bem-estar espiritual
definitivo. O que se segue é um exemplo de como ele lidou de maneiras muito
diferentes com duas situações bastante semelhantes entre si.
Antes de Śrīpād Yadumaṇi Bābū (um morador da cidade de Khurdā na
Orissa), tomar abrigo nos pés de lótus de Śrīla Prabhupāda, ele trabalhava para
o Município de Jagannatha Purī. Mais tarde, ele foi morar na Śrī Puruṣottama
Gauḍīya Maṭh, estabelecida por Śrīla Prabhupāda, perto de Caṭaka-parvata em
Purī. Durante o tempo em que morou por lá ele cultivou um lindo jardim cheio
de vegetais, frutas e flores. Ele mesmo preparava fertilizantes com suas próprias
mãos. Nessa mesma época, Śrīla Prabhupāda morava no templo de Kaṭaka e
quando ouviu muitos devotos elogiando o famoso jardim, enviou uma carta ao
administrador da Śrī Puruṣottama Gauḍīya Maṭha, pedindo que enviassem Śrī
Yadumaṇi Bābū para Kaṭaka.
Ao ler a carta, o administrador da maṭha ficou muito chateado e respondeu
a Śrīla Prabhupāda, “Se Śrī Yadumaṇi Bābū deixar este lugar, a manutenção do
nosso jardim vai acabar e tudo voltará a ser como antes. Não há ninguém no
templo capaz de servir assim como ele.”
Śrīla Prabhupāda respondeu: “Eu posso suportar ver um jardim secar, mas
eu não posso tolerar o enfraquecimento da vida espiritual de Yadumaṇi Bābū. A
alma condicionada nunca deve ser incentivada a desenvolver apego por um ser-
viço material, mesmo que ela seja sua inclinação natural para servir; isso signi-

108
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

fica que algo está errado. Por favor, envie-o para Kaṭaka imediatamente. Devido
a seu apego por esse jardim, sua relação com Deus pode ficar em segundo plano
e diminuir gradualmente até que seu apego pelo jardim tome conta de tudo. É
nosso dever desenvolver apego por Bhagavān e pelo mundo espiritual.
anāsaktasya viṣayān yathārham upayuñjataḥ nirbandhaḥ
kṛṣṇa-sambandhe yuktaṁ vairāgyam ucyate
Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.125)
Uma pessoa sem apego a prazer dos sentidos materiais que aceita quais-
quer facilidades que sejam adequadas para o serviço de Śrī Kṛṣṇa não é
capturada pelas amarras da ilusão ao executar tais atividades. Esse tipo
de desapego é chamado de yukta-vairāgya, que significa uma renúncia
profunda através de uma conexão constante com Śrī Kṛṣṇa.
“Permanecer apegado aos objetos que dão prazer aos sentidos e não aos prin-
cípios estabelecidos pelos nossos ācāryas não só é desfavorável para bhakti, como
é completamente contrário a ela. A verdadeira identidade da nossa Śrī Chaitanya
Maṭha é constituída por seus ideais transcendentais. No momento, a consciência
de Yadumaṇi Bābū está mais inclinada a prestar atenção naquele jardim do que
lembrar-se de Bhagavān. Ele não atingiu o estágio de fé absoluta no qual se enten-
de que servir o jardim do templo é equivalente a servir o próprio Deus. A menos
que a pessoa desenvolva tal fé inabalável, é essencial que ela sirva sob a orientação
de vaiṣṇavas sêniores. Na realidade, Yadumaṇi Bābū simplesmente alimenta a sua
tendência de executar karma e se identifica como o executor da ação. Ele pensa
que é especialista em jardinagem e que pode ensiná-la aos outros“.
Em contraste com essa história, lembramos de Śrīpāda Rāma dāsa Prabhu,
outro discípulo de Śrīla Prabhupāda, que mantinha o jardim na Śrī Chaitanya
Maṭha em Māyāpura. Porém Śrīla Prabhupāda não tinha a mesma opinião sobre
ele, pois ao contrário de Śrīpāda Yadumaṇi Bābū, Rāma dāsa Prabhu nunca se
identificou como sendo o executor de suas ações materiais. Ele tinha aceitado o
seu serviço de jardinagem não para impressionar alguém com seu talento, mas
sim porque ele acreditava que esse serviço era o único meio para ele atingir seu
bem-estar espiritual. Assim, ele cuidava do jardim com firme fé de que estava ser-
vindo Bhagavān e Seus devotos.
Certa vez, quando uma pessoa que queria estudar o purāṇa da devoção a
Deus (Śrīmad-Bhāgavatam) foi até Śrīla Prabhupāda, ele a encaminhou para Śrī
Rāma dāsa Prabhu. Após o encontro com Śrī Rāma dāsa Prabhu, essa pessoa
observou que ele era um simples jardineiro. Quando ela o questionou sobre o
purāṇa sagrado, Rāma dāsa Prabhu explicou que a essência do Bhāgavatam é
ocupar-se no serviço de Bhagavān e de Seus devotos puros. Essa pessoa voltou

109
Viśuddha Caytania-Vāṇī

para Śrīla Prabhupāda e reclamou: “Rāma dāsa Prabhu não é qualificado para
ensinar bhakti. Ele deseja apenas me ocupar em jardinagem, e diz que tal serviço
é a essência do Bhāgavatam.”
Śrīla Prabhupāda respondeu: “Śrī Rāma dāsa Prabhu é um verdadeiro
bhāgavata. Ele aperfeiçoou sua vida por meio de absorver perfeitamente os
ensinamentos do Śrīmad-Bhāgavatam.”
etāvaj janma-sāphalyaṁ dehinām iha dehiṣu prāṇair arthair dhiyā vācā
śreya-ācaraṇaṁ sadā
Śrīmad-Bhāgavatam (10.22.35)
É o dever de todos os seres encarnados realizarem atividades que pro-
movem bem-estar para o benefício de outras pessoas com a sua vida,
riqueza, inteligência e palavras.
Em outro exemplo, que demonstra sua perspectiva transformadora, o próprio
Śrīla Prabhupāda pediu que um devoto comprasse um par de sapatos caros para
Śrī Śrīmad Bhakti Hṛdaya Vana Gosvāmī Mahārāja que vivia descalço pelo tem-
plo, devido a seu caráter renunciado. O devoto enviou sapatos que custaram trinta
e duas rúpias (um preço considerável na época) a Śrīla Vana Gosvāmī Mahārāja
com uma mensagem informando que Śrīla Prabhupāda havia pedido que ele fosse
até Prabhupāda calçando o par de sapatos. Quando Śrī Vana Gosvāmī Mahārāja
obedeceu sua instrução, Śrīla Prabhupāda declarou: “Hoje a sua renúncia alcan-
çou a perfeição, porque você renunciou até mesmo sua ideia de renúncia para o
serviço de Śrīman Mahāprabhu.”
Por outro lado, por ser capaz de enxergar o coração das almas condicionadas,
quando Śrīla Prabhupāda observou um devoto calçando sapatos que custavam
meros oitenta e cinco centavos de rúpias, ele disse, “Você ainda é um grande des-
frutador de objetos materiais que satisfazem os sentidos. É extremamente vergo-
nhoso alguém utilizar sapatos sofisticados depois de ter aceitado a idumentária
(veśa) e os votos de um monge renunciante.“
Śrīla Prabhupāda costumava dizer, “Somente a mulher que merece a posição
de rainha pode se vestir de rainha.” Com tal concepção em mente, embora hou-
vesse um carro disponível no templo, Śrīla Prabhupāda não permitia que todos o
utilizassem livremente.

Aceitar e distribuir, a serviço de Śrī Hari


Śrīla Prabhupāda costumava dizer: “Nunca na minha vida aceitei, para mim
mesmo, nada que pertencesse a este mundo material. Como um servo de śrī
guru, dos vaiṣṇavas e de Bhagavān Śrī Krishna, tenho distribuído abertamente o
que me oferecem, para todos.”

110
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

Se refletirmos no significado literal dessa frase, as palavras de Śrīla Prabhupāda


poderiam soar como falsas, porque, a fim de executar diversos serviços – tais
como o estabelecimento de sessenta e quatro templos, organizar a manutenção
de todos eles, enviar pregadores por toda a Índia e até mesmo para países es-
trangeiros, publicar um calendário vaiṣṇava, jornais, revistas e outras literaturas
espirituais, organizar os parikramās (peregrinações) de Śrī Navadvīpa-dhāma e
Śrī Vraja-maṇḍala – ele aceitou doações de muitas pessoas. E não só isso, com
o objetivo de coletar doações para esses mesmos serviços, ele pessoalmente, ou
através de seus discípulos, solicitou ativamente a ajuda de doadores.
No entanto, o humor interno de Śrīla Prabhupāda, enquanto aceitava ca-
ridade para tais serviços foi semelhante ao do discípulo caçador de Śrī Nārada
Muni. Śrī Nārada tinha assegurado a seu discípulo que ele próprio enviaria o que
fosse necessário para que o caçador mantivesse sua vida. O caçador, tendo fé nas
palavras de Nārada Muni, destruiu seu arco e flecha, que eram as ferramentas
de sua subsistência, e engajou-se em bhajana. Enquanto isso, ele recebeu muitas
ofertas de pessoas que foram atraídas por sua devoção. E ele acreditava firme-
mente que: “Todas essas coisas estão sendo enviadas por śrī guru. Essas pessoas
estão simplesmente entregando-as a mim como se fossem carteiros. Porque śrī
guru forneceu-me tais coisas, é meu dever usá-las no serviço de Bhagavān, como
eu achar mais adequado. Se eu compassivamente distribuí-las entre esses mes-
mos mensageiros ou outras pessoas, isso pode ser considerado um serviço para
śrī guru e Bhagavān.”
Quando Śrī Nārada e Śrī Parvata Muni visitaram o caçador depois de um
ano, Nārada Muni confirmou o entendimento de seu discípulo. Quando o ca-
çador disse, “Gurudeva! Você está enviando mais do que eu preciso para minha
manutenção. Por favor, não envie tantas coisas,“ Śrī Nārada-jī não respondeu
dizendo: “Eu nunca lhe enviei coisa alguma. Estou chegando só agora para vê-lo
depois de um ano inteiro.” Em vez disso, ele disse, “Use apenas o que você precisa
e distribua o restante aos demais”.
Portanto, Śrīla Prabhupāda, que nutria uma profunda fé nas palavras das
escrituras, demonstrou esses princípios através de sua própria conduta. Se en-
tendermos e sinceramente seguirmos as palavras do caçador em nossa própria
vida, não seremos submetidos à prisão material depois desta encarnação. Mas se
nós nos atrairmos pelos objetos e criarmos dívidas com as pessoas deste mundo,
ficaremos presos pela gratificação dos sentidos.
Seu apreço pelo livro Śrī Chaitanya-caritāmṛta
Meu param-gurudeva, Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Gosvāmī
Ṭhākura, uma vez perguntou repentinamente para Śrī Rājarṣi Śaradendu

111
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Nārāyaṇa Rāy, o líder do Departamento de Filosofia na Universidade de Lahore


em Agastya Villa, Darjeeling, “Se você fosse forçado a viver sem a associação dos
devotos, mas pudesse somente manter um texto espiritual consigo, qual texto
você escolheria?” Rājarṣi Śaradendu Rāya respondeu imediatamente: “O Śrīmad
Bhagavad-gītā, porque está dito:”
Ekaṁ śāstraṁ devakī-putra-gītam
Gītā-māhātmya (7)
A canção divina cantada por Śrī Kṛṣṇa é a escritura mais elevada entre
todas as escrituras sagradas.
Sarvopaniṣado gāvo dogdhā gopāla-nandanaḥ pārtho vatsaḥ su-dhīr
bhoktā dugdhaṁ gītāmṛtaṁ mahat
Gītā-māhātmya (6)
Os Upaniṣads são como uma vaca. O menino vaqueiro Śrī Kṛṣṇa tira o leite
dessa vaca sagrada. Na verdade, o nectáreo e maravilhoso leite é o Śrīmad
Bhagavad-gītā, que é primeiro bebido por Arjuna como se fosse um be-
zerro. O restante do leite é tomado pelos estudiosos, eruditos e devotos.
gītā su-gītā kartavyā kim anyaiḥ śāstra-vistarāyaḥ yā svayaṁ
padmanābhasya mukha-padmād-viniḥsṛtā
Gītā-māhātmya (4)
Deve-se ouvir e ler de maneira atenta e regular o Bhagavad-gītā. Qual é
a necessidade de ler qualquer outra escritura védica? Esse livro será sufi-
ciente, porque é a essência de todos os textos védicos e emanou da boca
de lótus de Padmanābha (Śrī Krishna).
mala-nirmocanaṁ puṁsāṁ jala-snānaṁ dine dine sakṛd
gītāmṛta-snānaṁ saṁsāra-mala-nāśanam
Gītā-māhātmya (3)
Por banhar-se diariamente em água, o indivíduo purifica-se apenas de sua
sujeira física. Mas banhando-se apenas uma única vez nas águas sagradas
do Bhagavad-gītā, que são como as águas do Gaṅges, remove-se comple-
tamente a sujeira desta existência material e grosseira (saṁsāra-mala).
Depois de ouvir a resposta de Śrī Rājarṣi Śaradendu, Śrīla Prabhupāda disse:
“Āge kaha āra – fale mais”, assim como Śrīman Mahāprabhu havia dito para Śrī
Rāmānanda Rāya às margens do Rio Godavārī. Depois de pensar profunda-
mente por um tempo, Śrī Rājarṣi Śaradendu respondeu: “E também o Śrīmad-
-Bhāgavatam”, e citou os seguintes versos:
dharmaḥ projjhita-kaitavo ’tra paramo nirmatsarāṇāṁ satāṁ
vedyaṁ vāstavam atra vastu śivadaṁ tāpa-trayonmūlanam
śrīmad-bhāgavate mahā-muni-kṛte kiṁ vā parair īśvaraḥ
sadyo hṛdy avarudhyate ’tra kṛtibhiḥ śuśrūṣubhis tat-kṣaṇāt
Śrīmad-Bhāgavatam (1.1.2)

112
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

Neste Śrīmad-Bhāgavatam – que foi manifestado por Vyāsadeva, o maior


santo das épocas originais, o verdadeiro e mais elevado dever dos seres
vivos (bhāgavata-dharma) foi explicado. Se uma pessoa ouve esta escri-
tura extremamente sublime e segue o bhāgavata-dharma explicado nela
com devoção, as três categorias de miséria que afligem a vida humana
serão destruídas. Tal pessoa encontrará todos os bons auspícios e poderá
compreender o verdadeiro conhecimento acerca da Verdade Suprema.
Assim, irá se tornar capaz de capturar o Senhor Supremo em seu coração
de acordo com sua própria doce vontade. Para uma pessoa desejosa de
alcançar os sintomas acima mencionados, não há necessidade de ouvir
ou seguir qualquer escritura além do Śrīmad-Bhāgavatam. Porém esse
mesmo candidato da Universidade de bhāgavata-dharma (do caminho do
amor ao Supremo) deve ter duas qualificações. Em primeiro lugar, ele não
deve se envolver em kaitava (atividades pretensiosas, enganosas), e em
segundo lugar, ele deve ser um nirmatsārasādhu, uma pessoa cujo cora-
ção é cheio de compaixão por todos os seres vivos, incluindo ele próprio.
yasyāṁ vai śrūyamāṇāyāṁ
kṛṣṇe parama-pūruṣe
bhaktir utpadyate puṁsaḥ
śoka-moha-bhayāpahā
Śrīmad-Bhāgavatam (1.7.7)
A mera recepção auditiva desta literatura védica provoca o surgimento
direto de devoção (bhakti) por Bhagavān Śrī Krishna e apaga o fogo da
lamentação, da ilusão e do medo.
nigama-kalpa-taror galitaṁ phalaṁ
śuka-mukhād amṛta-drava-saṁyutam
pibata bhāgavataṁ rasam ālayaṁ
muhur aho rasikā bhuvi bhāvukāḥ
Śrīmad-Bhāgavatam (1.1.3)
O Śrīmad-Bhāgavatam é o fruto maduro e suculento da árvore dos desejos
da literatura original. Ele emanou dos lábios de Śrī Śukadeva Gosvāmī e,
através da sucessão discipular de gurus fidedignos, de bom grado desceu
sobre a Terra na sua totalidade. Ele está saturado com o néctar ambrosí-
aco e extremamente agradável das emoções transcendentais (rasa). Não
tendo casca, sementes duras, fibras ou outras partes descartáveis, ele
está pronto para o consumo, porque é completamente líquido. Ó grandes
devotos – vocês que são bhāvuka (profundamente familiarizados com as
emoções nectáreas e transcendentais do amor divino) e rasika (especia-
listas em saborear todas as formas específicas da liquefeita ambrosia da
emoção transcendental) – vocês devem repetidamente beber o doce néc-
tar do Śrīmad-Bhāgavatam, mesmo estando de enredamento material.
Na verdade, as almas absolutamente libertas ininterruptamente sabo-
reiam o Śrīmad-Bhāgavatam.

113
Viśuddha Caytania-Vāṇī

artho ’yaṁ brahma-sūtrāṇāṁ


bhāratārtha-vinirṇayaḥ
gāyatrī-bhāṣya-rūpo ’sau
vedārtha-paribṛṁhitaḥ
Garuda Purāṇa
Os verdadeiros significados e comentários ao Vedānta-sūtra estão pre-
sentes no Śrīmad-Bhāgavatam, tal como nele também estão contidas
as mais elevadas constatações filosóficas do Mahābhārata. O Śrīmad-
-Bhāgavatam é a personificação do comentário ao brahma-gāyatrī, e dá
uma explicação elaborada dos significados presentes nos Vedas.

sarva-vedānta-sāraṁ hi
śrīmad-bhāgavatam iṣyate
tad-rasāmṛta-tṛptasyā
nānyatra syād ratiḥ kvacit
Śrīmad-Bhāgavatam (12.13.15)
O Śrīmad-Bhāgavatam é aceito como sendo a essência de todo o Vedānta.
Quem quer que tenha sido satisfeito pela doçura transcendental (bhakti-
-rasa) do Śrīmad-Bhāgavatam nunca mais é atraído por qualquer outra
literatura.
cāri-veda—‘dadhi’, bhāgavata—‘navanīta’
mathilena śuke, khāilena parīkṣita
Śrī Caitanya-bhāgavata (Madhya-khaṇḍa 21.16)
Os quatro Vedas são como iogurte e o Śrīmad-Bhāgavatam é como a
manteiga. Śrī Śukadeva Gosvāmīt ransformou aquele iogurte em manteiga,
e Śrī Parīkṣit Mahārāja saboreou esse produto final.
Śrī Rājarṣi Śaradendu Nārāyaṇa Rāya, então disse: “Há muitos outros versos
em várias escrituras que glorificam o Śrīmad-Bhāgavatam da mesma maneira.
Podemos concluir portanto, que o Śrīmad-Bhāgavatam é o texto mais elevado de
toda a literatura védica. Na minha opinião, não há nenhuma escritura superior
ao Śrīmad-Bhāgavatam”. Śrīla Prabhupāda disse novamente, “Āgekaha āra – fale
sobre algo ainda mais elevado.”
Rājarṣi Śaradendu Nārāyaṇa Rāya olhou para ele e respondeu: “Eu não pos-
suo qualificação para dizer algo além disso.” Śrīla Prabhupāda então disse: “O
Śrī Chaitanya-Charitāmṛta é a escritura mais gloriosa de todas. Se eu estivesse
vivo para testemunhar o mundo inteiro desaparecer sob as águas no momento
de sua destruição (mahā-pralaya), eu não salvaria nenhuma outra escritura além
do Śrī Chaitanya-Charitāmṛta; abraçando-o contra o peito enquanto eu nadasse.
O vazio deixado pela aniquilação de todos os textos védicos seria preenchido
simplesmente pela existência do Śrī Chaitanya-Charitāmṛta.”

114
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

A fim de revelar gloriosamente o caráter extraordinário e divino de Śrīman


Mahāprabhu, o autor do Śrī Chaitanya-Charitāmṛta, Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja
Gosvāmī, descreveu nityānanda-tattva, śrī-guru-tattva, kṛṣṇa-tattva, rādhā-tat-
tva e advaita-tattva, bem como a manifestação especial de Śrī Krishna como
pañca-tattva. Ao narrar os passatempos do Ratha-yātrā e a limpeza do templo
de Guṇḍicā (guṇḍicā-mandira-mārjana), Śrīla Kavirāja Gosvāmī estabeleceu as
glórias de Vraja (a terra onde Deus se manifesta), dos Vrajavāsīs (dos habitantes
dessa divina morada), sua rendição, seu humor de serviço a Śrī Krishna e a su-
perioridade das vraja-gopīs (as castas camponesas de Vṛindāvana) entre todos os
devotos do Supremo Senhor.
Através da narração do Rāya Rāmānanda Saṁvāda, ele apresentou a es-
sência de todos os textos védicos por meio de uma análise comparativa e pro-
gressiva das instruções mais significativas de todas as escrituras e estabeleceu as
glórias mais surpreendentes de parakīya-rasa.
Em Rūpa-śikṣā e Sanātana-śikṣā, ele forneceu análises dos aspectos mais su-
tis de sambandha, abhidheya e prayojana-tattvas. Através da narração dos pas-
satempos do próprio senhor Brahma, que participou da līlā do Avatar Dourado
como Nāmācārya Śrīla HaridāsaṬhākura e de outros vaiṣṇavas, o autor estabele-
ceu as esplêndidas glórias do canto dos Santos Nomes (harināma).
Ao descrever as discussões de Śrīman Mahaprabhu com Śrī Sārvabhauma
Bhaṭṭācārya e Śrī Prakāśānanda Sarasvati, ele nos relembrou da rejeição comple-
ta que o Senhor possui pelos princípios da doutrina advaitavāda (o não-dualis-
mo do advaita vedanta) e da Sua revelação: a doutrina acintya-bhedābheda-tattva
(a inconcebível unidade e diferença simultâneas da alma com Deus), citando
referências dos textos sagrados (śāstras).
Além disso, a maneira com a qual Śrīla Kavirāja Gosvāmī descreveu os múl-
tiplos passatempos de Śrīman Mahāprabhu, em que o Senhor transmitiu ensina-
mentos através de seu comportamento e conduta exemplares, é extremamente
benéfica para os seres vivos nesta Era de Ferro (Kali-Yuga).
Abrigando-se no sutra “mitaṁ ca sāraṁ ca vaco hi vāgmitā – a verdade
essencial falada de maneira concisa é a verdadeira forma da eloqüência,” Śrīla
Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī explicou de maneira exemplar a essência de todas
as escrituras no texto do Śrī Chaitanya-Charitāmṛta.
Por causa dos motivos acima mencionados é que Śrīla Prabhupāda afirma
tão categoricamente a supremacia do Śrī Chaitanya-Charitāmṛta sobre as ou-
tras escrituras.
Eu costumava visitar a casa de Śrī Rājarṣi Śaradendu Nārāyaṇa Rāya para
recolher donativos (bhikṣā), juntamente com Śrī Mādhavānanda Prabhu, que

115
Viśuddha Caytania-Vāṇī

recebeu harināma de Śrīla Prabhupāda e dīkṣā de nosso gurudeva. Lá, em duas


ocasiões tive a oportunidade de ouvir diretamente de Śrī Rājarṣi Śaradendu
Nārāyaṇa Rāya sobre as glorificações do Śrī Chaitanya-charitāmṛta feitas por
Śrīla Prabhupāda. Embora eu tenha desenvolvido fé firme nas glórias do Śrī
Caitanya-caritāmṛta depois de ouvir seu relato, tal realização ainda estava au-
sente em meu íntimo. Nem mesmo ao ler o Śrī Chaitanya-charitāmṛta mais
tarde eu obtive a realização das declarações de Śrīla Prabhupāda.
Após ouvir os discursos sobre o Śrī Chaitanya-charitāmṛta dos muitos dis-
cípulos de Śrīla Prabhupāda ao longo dos anos e, especialmente quando eu co-
mecei a traduzir o Śrī Chaitanya-charitāmṛta do Bengali para o Hindi, e tive que
prestar atenção ao significado de cada palavra, fui iluminado pelas explicações
sempre novas dos muitos assuntos espirituais contidos nessa grande escritura.
Através de tal trabalho de tradução, eu vim a entender, de uma forma muito sim-
ples e intuitiva, os significados detalhados de muitos versos altamente sutis do
Śrīmad-Bhāgavatam. Só agora estou experimentando diretamente e percebendo
a importância das palavras de Śrīla Prabhupāda.
O Śrī Chaitanya-charitāmṛta é certamente mais misericordioso e benéfico
do que até mesmo o Śrīmad-Bhāgavatam e, por isso, é o mais elevado de todos
os textos védicos.
Em sua introdução ao texto, Śrīla Prabhupāda descreveu sua completa sur-
presa ao constatar que Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī, ao relatar os passatem-
pos de Śrī Chaitanya Mahāprabhu, exibia uma proficiência inigualável na compre-
ensão dos significados mais profundos das escrituras, uma visão extraordinária
acerca de assuntos filosóficos insondáveis, uma perícia profunda e sem preceden-
tes ao escolher uma terminologia acessível para descrever às massas comuns até
mesmo o mais sutil dos princípios espirituais, e uma compreensão tão clara quan-
to o cristal das principais categorias da literatura védica: Purāṇas e Itihāsas (épicos
ou textos que revelam passatempos e histórias sagradas); Kavyas (obras poéticas);
Smṛtis (diálogos onde os sábios explicam o que é o conhecimento relativo a dife-
rentes áreas de maneira mais sucinta) e Gaṇitas – um ramo da astrologia.
Especialistas e eruditos previram que, para ler e praticar essa literatura trans-
cendental e extraordinária, estudiosos de vários países do mundo se sentiriam
inspirados a aprender a língua bengali. A aptidão e o talento de Śrīla Kavirāja
Gosvāmī em fazer doces composições poéticas (bhāva-madhurya-parākāṣṭha)
é valorizada por todos os poetas de renome em todo o mundo. Sua solenidade
em descrever os doces passatempos de Śrī Krishna (madhurya-rasa) pode ser
avaliada apenas por pessoas altamente qualificadas, as quais possuem gostos ex-
tremamente difíceis de serem agradados.

116
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

Nesse livro, o autor do Śrī Chaitanya-Charitāmṛta apresentou ao mundo uma


compilação extraordinária dos passatempos mais sutis de Śrīman Mahāprabhu
acompanhado de citações de várias escrituras, e assim removeu dos fracos cora-
ções dos leitores a tendência à especulação, que é inspirada pela ilusão material.
A vida, as atividades, a conduta e o caráter de Śrīman Mahāprabhu (Śrī
Caitanya-Charita) são todos eternos. Os ideais representados no Śrī Chaitanya-
-charitāmṛta, portanto, destrõem a inclinação que os seres vivos possuem ao
desfrute dos sentidos (bhoga-pravṛtti) ao conduzir a todos à sua verdadeira ativi-
dade constitucional: serviço amoroso ao Senhor Supremo (sevā-vṛtti).
Seus encontros com personalidades de destaque
Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura Prabhupāda iniciou a publicação de
um jornal espiritual diário chamado Dainika Nadīyā Prakāśa. Meu śikṣā-guru,
Śrī Śrīmad Bhakti Pramoda Purī Gosvāmī Mahārāja (então conhecido como Śrī
Prāṇavānanda Brahmacārī) era o responsável pela edição do jornal, no qual ar-
tigos transcendentais e sempre novos, relacionados ao mundo espiritual, eram
publicados. Dele eu ouvi o seguinte passatempo de Śrīla Prabhupāda.
Certa vez, Śrī Madana-Mohana Malaviya, o fundador da Universidade Hindu
de Banaras em Vārāṇasī, – reconhecida em todo o mundo –, perguntou a Śrīla
Prabhupāda na Śrī Bāgbāzār Gauḍīya Maṭh em Calcutá, “Por quanto tempo você
será capaz de publicar esse jornal Dainika Nadīyā Prakāśa? Aonde você vai con-
seguir o grande número de artigos espirituais necessários para mantê-lo na im-
prensa todos os dias?”
Śrīla Prabhupāda respondeu: “O seu espanto desaparece em comparação
com o espanto que eu sinto ao ver que você, alguém considerado o principal
entre os melhores estudiosos da Índia, esteja expressando admiração em relação
a tais assuntos. Esta criação material é apenas o reflexo distorcido de um quarto
da criação transcendental.”
“Em todo o mundo, inúmeros jornais são publicados todos os dias em di-
ferentes idiomas, e este planeta Terra é apenas uma parte dos catorze sistemas
planetários, que pertence a apenas a uma das inúmeras brahmāṇḍas (universos
materiais) da criação. Portanto, por que você fica surpreso com a publicação diá-
ria de um jornal que tem seu foco no mundo transcendental? Na verdade, temos
conteúdo espiritual suficiente sobre o reino absoluto para publicar inúmeros jor-
nais diários a partir de agora para todo o sempre.”
Porque um estudioso pode facilmente detectar significados implícitos, Śrī
Madana-mohanaMalaviya ficou extremamente satisfeito ao ouvir Śrīla Prabhupāda
Bhaktisiddhānta descrever a natureza eterna do mundo espiritual, como um re-

117
Viśuddha Caytania-Vāṇī

servatório ilimitado de assuntos transcendentais a partir do qual o papel do jor-


nal poderia trazer um registro infinito.
Śrī Madana-mohana Malaviya perguntou a Śrīla Prabhupāda, “Vemos na
Gauḍīya Maṭh que as pessoas de todos os varṇas e āśramas (ordens sociais e
espirituais) estão recebendo dīkṣā. Homens nascidos em famílias que nada têm
a ver com brâmanes estão recebendo o cordão sagrado (upanayana) reservado
exclusivamente para os brâmanes de casta, e vemos que estão todos prestando
serviço a Bhagavān – tais como arcana (adoração à Deidade), cozinhar, estudar
as escrituras – que são atividades tradicionalmente realizadas apenas por aqueles
que nasceram nas famílias dos brâmanes. E existem também muitos outros prin-
cípios não convencionais adotados aqui no templo. Isto não seria uma violação
do varṇāśrama-dharma e dos preceitos escriturais?”
Śrīla Prabhupāda respondeu: “Assim como a alma e o corpo estão relaciona-
dos um ao outro, o amor transcendental por Deus (bhagavat-prema) e as diferen-
tes ocupações sociais e espirituais da alma condicionada(varṇāśrama-dharma)
também estão conectados. Embora a alma seja o principal objeto de nossa aten-
ção, e não o corpo material, o corpo não pode ser negligenciado, especialmente
na fase de vida condicionada. Da mesma forma, embora o nosso principal ob-
jetivo seja alcançar bhagavat-prema, não é sensato sermos completamente indi-
ferentes ao varṇāśrama-dharma, especialmente enquanto estivermos no estágio
condicionado².
“Mas o verdadeiro sistema de organização social baseado em princípios
divinos (daivavarṇāśrama-dharma) que foi estabelecido nas escrituras, e não o
sistema social mundano desconectado dos princípios divinos (adaiva varṇāśrama-
-dharma). Esse tipo de sistema de castas mundano considera que o nascimento
em uma família de sacerdotes é a qualificação necessária para que alguém seja
reconhecido como um brâmane, sem verificarmos se a pessoa em questão re-
almente possui ou não as qualidades de um sacerdote ,ou se ela se ocupa em
atividades condizentes com aquelas de um sacerdote. Ao contrário, no daiva-
-varṇāśrama-dharma, a ocupação profissional (varṇa)e o estado civil e espiritual
(āśrama)de uma pessoa são baseados nas qualidades que ela demonstra, e ativi-
dades nas quais ela se envolve. O Śrīmad-Bhāgavatam (7.11.35) declara:

2 - A palavra varṇa em sânscrito significa "cor" e não simplesmente "casta". O texto das escrituras
fala de gradações da evolução da alma através do processo da reencarnação e não de um princípio
que justifique o preconceito e a injustiça, como os vaiṣṇavas esclarecem. A relação entre o compor-
tamento e a consciência é fundamental na explicação de Śrīla Prabhupāda. Os vaiṣṇavas, ao mesmo
tempo em que rejeitam a ideia de castas rígidas e paralisantes, muitas vezes afirmam que é preciso
deixar os modos, as ações hipócritas e egocêntricas, que transparecem a inveja por Deus e pelas
outras entidades vivas – para que a iniciação da dīkṣā alcance um efeito espiritual.

118
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

ayasya yal lakṣaṇaṁ proktaṁ


puṁso varṇābhivyañjakam
yad anyatrāpi dṛśyeta
tat tenaiva vinirdiśet
Um indivíduo deve ser considerado membro da casta cujas qualidades ele pos-
sui, mesmo ele tendo nascido em uma família de casta e tradições diferentes.
Além disso, Śrī Krishna diz no Śrīmad Bhagavad-gītā (4.13):
cātur-varṇyaṁ mayā sṛṣṭaṁ
guṇa-karma-vibhāgaśaḥ
O sistema quádruplo de ordens sociais foi criado por mim de acordo com as
divisões de guṇa (qualidade) e karma (trabalho).
“Os dois versos citados acima confirmam exclusivamente os princípios do
sistema social divino (daiva-varṇāśrama-dharma). Foi puramente devido as suas
qualidades e atividades individuais que dos cem filhos de Śrī Ṛṣabhadeva, oitenta
e um deles ficaram conhecidos como brâmanes ritualísticos, nove ficaram conhe-
cidos como nobres guerreiros (kṣatriyas) proprietários de nove ilhas, outros nove
filhos ficaram conhecidos como praticantes de bhakti yoga, e apenas um entre
eles, Śrī Bharata, foi um mahā-bhāgavata, uma grande personalidade transcen-
dental situada muito além da esfera dos quatro varṇas e āśramas“.
Depois de ouvir o profundo e sábio esclarecimento de Śrīla Prabhupāda acerca
do daiva-varṇāśrama-dharma, Śrī Madana-mohana Malaviya aceitou tal explicação
em seu coração e disse: “O ponto de vista da Śrī Gauḍīya Maṭha abriu meus olhos.
Embora eu também tenha estudado o Śrīmad-bhāgavatam e o Bhagavad-gītā, eu
nunca tinha compreendido intimamente algo sobre as maravilhosas revelações
que você acabou de me apresentar.”
Antes de partir, Śrī Madana-Mohana Malaviya convidou Śrīla Prabhupāda
para visitar a Universidade Hindu de Banaras.
Quando a pregação da mensagem de Śrīman Mahāprabhu o levou para
Vārāṇasī, Śrīla Prabhupāda e seus discípulos foram convidados pelo vice-reitor
da Universidade Hindu de Banaras para uma visita. Śrīla Prabhupāda aceitou o
convite e se dirigiu a um grande encontro entre fundador da Universidade, os
membros da comissão de gestores, os professores e os alunos.
Quando Śrīla Prabhupāda terminou seu discurso, o vice reitor se aproximou
dele e disse: “Eu tive uma certa dificuldade em acompanhar o seu discurso, e es-
tou certo de que outros também acharam sua terminologia um tanto complexa.
Se você tivesse expressado seus pontos de vista em uma linguagem mais simples,
teria sido mais fácil para todos acompanharem o discurso perfeitamente.”
Śrīla Prabhupāda respondeu: “Seria melhor ainda se você pudesse aconselhar

119
Viśuddha Caytania-Vāṇī

os estudantes e os professores da Universidade a elevarem seu nível de compreen-


são. Por que você me pede para descer o nível do discurso? Ouvir que os alunos e
professores da Universidade Hindu de Banaras têm dificuldade em compreender
os ensinamentos mais simples das escrituras védicas é algo vergonhoso.”
A filosofia de Śrīla Prabhupāda era tão pura e elevada que era difícil, até mes-
mo para os professores altamente instruídos de Universidade de Banaras com-
preendê-la perfeitamente.

Śrī Rabindranath Tagore


Na época em que Śrīla Prabhupāda estava pensando em mandar alguns de seus
discípulos para outros países com o intuito de espalhar a mensagem do Avatar
Dourado, ele se encontrou com Śri Rabindranath Tagore, autor de renome mun-
dial e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. Śrīla Prabhupāda queria ouvir
as impressões do famoso escritor sobre o Ocidente, relacionadas à sua viagem
para receber o Prêmio Nobel, assim ele perguntou: “Em sua opinião, para qual
país ocidental nossos pregadores da Gauḍīya Maṭha devem ser enviados para
espalharmos a mensagem de Śrī Chaitanya Mahāprabhu?”
Rabindranath Tagore respondeu: “Para nenhum. É desaconselhável enviar
pregadores para qualquer país ocidental neste momento. Muitas pessoas sem es-
crúpulos que anteriormente visitaram esses lugares para pregar o dharma védico
mancharam a imagem dos santos indianos. Como resultado, as pessoas dos paí-
ses ocidentais estão perdendo a fé nos sādhus”.
Depois de uma profunda discussão sobre o assunto, Śrīla Prabhupāda apre-
sentou brevemente a ideologia de Śrī Chaitanya Mahāprabhu, a doutrina filosó-
fica dos Gauḍīya Vaishnavas a Rabindranath Tagore, que se sentindo cativado e
movido pela apresentação de Śrīla Prabhupāda, disse: “Somente se você se visitar
os países ocidentais pessoalmente, é que podemos ter um grande sucesso ga-
rantido na pregação. Todos irão certamente ouvir e receber você com todas as
honras.” Śrīla Prabhupāda respondeu: “Enviarei pessoas que são tão qualificadas
quanto eu.”
Durante a conversa, quando se referia aos pseudo Gauḍīya Vaiṣṇavas, Śrīla
Prabhupāda utilizou o termo prakṛta-sahajiyā. Ao ouvir esse termo, Śrī Rabindranath
Tagore disse: “Eu nunca me deparei com esta expressão na minha vida; eu não
vi esse termo em lugar algum do dicionário“.
Śrīla Prabhupāda explicou: “A palavra sahajiyā é um termo altamente sa-
grado. Ela refere-se aos devotos verdadeiramente puros de Śrī Krishna, cujos
corações estão repletos de amor, de afeição espontânea e incondicional por Ele, e
que não dependem das declarações das escrituras que o glorificam como como

120
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

Bhagavān (o Supremo). Exemplos de tais devotos exaltados, eternamente per-


feitos são os residentes de Vraja, tais como Śrī Nanda e Yaśodā, Śrī Rādhārāṇī e
outros. Hoje em dia, muitas almas condicionadas sem qualificação tentam imitar
o humor dessas grandes personalidades eternamente livres das ilusões materiais,
enganando o público imitando tais estados de espírito extremamente elevados
em si próprios. Portanto, eu uso esta palavra prakṛta-sahajiyā para me referir a
tais pessoas, porque hoje em dia a prostituição das palavras, a deturpação gros-
seira ou a inversão do verdadeiro significado dos vocábulos, para apoiar inte-
resses pessoais deste ou daquele indivíduo, ou mesmo de um grupo, tornou-se
uma prática comum. Nos dias de hoje, a vasta maioria das pessoas é incapaz de
compreender o verdadeiro significado das palavras e, assim, as perversões da
terminologia muitas vezes permanecem despercebidas.”
O subtexto mais sutil deste tópico é que as palavras de Śrīla Prabhupāda não
pertenciam ao mundo material, mas sim ao mundo do espírito. Ele frequente-
mente utilizava termos que eram desconhecidos até mesmo para os estudiosos
mais eruditos e admiráveis da sociedade.

Śrī Subhas Chandra Bose


Meu śikṣā-guru, Śrī Śrīmad Bhakti Śaraṇa Trivikrama Gosvāmī Mahārāja certa
vez me contou sobre quando Śrī Subhas Chandra Bose, o famoso herói político
que lutou pela independência da Índia, foi à Śrī Gauḍīya Maṭha acompanha-
do de muitas personalidades ilustres para se encontrar com Śrīla Prabhupāda
Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākur.
Durante o encontro, Śrī Subhas Chandra Bose disse para Śrīla Prabhupāda,
“Tendo feito um voto de libertar a nossa pátria do domínio estrangeiro, eu de-
clarei uma máxima por todo o país: 'Dê-me seu sangue e eu lhe prometo a liber-
dade.' Recentemente eu soube que muitos jovens têm se abrigado no senhor. Por
favor empreste-me alguns desses jovens, para que eles possam lutar ao meu lado
pela liberdade deste país.“
Em resposta, Śrīla Prabhupāda lhe perguntou: “Você já leu o Śrīmad Bhagavad-
-gita?” Śrī Subhas Chandra Bose respondeu: “Sim, eu li.” ŚrīlaPrabhupāda per-
guntou em seguida: “Você se lembra deste verso:”
yaṁ yaṁ vāpi smaran bhāvaṁ
tyajaty ante kalevaram
taṁ tam evaiti kaunteya
sadā tad-bhāva-bhāvitaḥ
Śrīmad Bhagavad-gītā (8.6)
Ó filho de Kuntī, qualquer que seja o estado de consciência que alguém pos-
sua ao deixar o corpo, esse mesmo estado ele alcançará sem dúvida alguma.”

121
Viśuddha Caytania-Vāṇī

"Sim, certamente."
“Então com certeza você acredita em reencarnação.”
“Claro que sim”, respondeu Śrī Subhas Chandra Bose. “Qual hindu neste
mundo não acredita em reencarnação?”
Śrīla Prabhupāda em seguida perguntou: “Se por acaso você morresse agora
e nascesse na Inglaterra em sua próxima vida, você continuaria a lutar pela liber-
dade da Índia ou lutaria para manter o domínio inglês sobre ela?”
Śrī Subhas Chandra Bose respondeu: “Eu entendo seu ponto de vista, mas
devemos certamente pensar na liberdade desta nossa pátria.”
E então ŚrīlaPrabhupāda disse: “Você está preocupado apenas com a liberta-
ção temporária e mundana de algumas pessoas que, no momento, possuem uma
designação material, a de serem indianos. Eu, no entanto, estou preocupado com
a libertação não só de toda a raça humana, quero libertar todos os seres vivos da
escravidão a este nível material.”
Śrī Subhas Chandra Bose respondeu: “Eu nunca ouvi nada como isso antes.
Antes de conhecer o senhor, nunca ninguém havia descrito com essas palavras
tão significativas os ensinamentos do Gītā. Mas tenho medo de ter ido longe
demais na minha luta pela liberdade política para olhar para trás agora...” Di-
zendo isso, Śrī Subhas Chandra Bose deixou a maṭha sem fazer qualquer outro
pedido a Śrīla Prabhupāda para que lhe fornecesse homens para lutar pela in-
dependência do país.

122
Capítulo 5 - ŚrĪ ŚrĪmad Bhaktisiddhānta SarasvatĪ Ṭhākura

123
Püjyapäda Bhaktivedänta
Vämana Mahäräja

Sua fé inabalável no guru (guru-niṣṭhā)


Quando pūjyapāda Bhaktivedānta Vāmana Mahārāj era criança e foi pela pri-
meira a um templo vaiṣnava, sua mãe o colocou sob os cuidados de Śrī Vinoda-
-Bihārī Brahmacārī – que mais tarde viria a se chamar Śrī Śrīmad Bhakti Prajñāna
Keśava Gosvāmī Mahārāja. Nessa época, ele estudou no Instituto Bhaktivinoda,
onde concluiu sua formação escolar. Depois de algum tempo, quando Śrīla
Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura desapareceu deste mundo, co-
meçaram a surgir alguns problemas na maṭha. Por causa de uma falsa acusação,
Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī e muitos outros devotos foram presos. Pūjyapāda
Vāmana Mahārāja – que na época se chamava Śrī Sajjan-Sevaka Brahmacārī –
não tinha recebido de Śrīla Bhaktisiddhanta Sarasvati Prabhupāda a iniciação
nos dīkṣā-mantras e, por isso, ele não podia cozinhar para Śrī Vinoda-Bihārī
Brahmacārī e todos os outros devotos que estavam presos. Para remediar tal si-
tuação, Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī deu a iniciação nos dīkṣā-mantras a Śrī
Sajjan-Sevaka Brahmacārī através das barras da cela da prisão. Só mais tarde Śrī
Śrīmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāj realizou a cerimônia de fogo
(yajña) para formalizar sua dīkṣā. Śrī Sajjan-Sevaka Brahmacārī pôde, a partir de
então, preparar prasāda para todos os devotos que estavam detidos.
Embora Śrī Sajjan-Sevaka Brahmacārī tivesse testemunhado a prisão de Śrī
Vinoda-Bihārī Brahmacārī, sua fé (niṣṭhā) era tão firme que ele nunca duvidou
da qualificação de Śrī Vinoda-Bihārī Brahmacārī para ser seu guru. Ele nunca
pensou nem por um momento: “Como eu posso aceitar como guru alguém cujas
ações podem tê-lo levado à prisão?”
Sem inveja nem possessividade
Embora ele fosse um discípulo de Śrī Śrīmad Bhakti Prajñāna Keśava Gosvāmī
Mahārāja, Śrī Sajjan-Sevaka Brahmacārī costumava acompanhar meu
paramārādhyatama Guru Mahārāja (Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava
Gosvāmī) em suas viagens de pregação. Naquela época, havia pouca distinção
entre os diferentes templos dos discípulos de Śrīla Prabhupāda que seguiam
suas instruções (vāṇī) estritamente. Śrī Sajjan-Sevaka Brahmacārī costumava

125
Viśuddha Caytania-Vāṇī

visitar as hortas da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha em Māyāpura e, sem precisar


da permissão de ninguém, ele escolhia os vegetais necessários para o serviço
aos vaiṣnavas que residiam na Śrī Devānanda Gauḍīya Maṭh. Ninguém nunca
pensou: “Esta terra é nossa, e estes produtos agrícolas também.” Ele nunca uti-
lizou um riquixá (uma espécie de moto-táxi indiano), pois ele mesmo levava a
pé até a Śrī Devanānda Gauḍīya Maṭha todos os legumes colhidos. Ao ver seus
esforços incessantes para servir os devotos (vaiṣṇava-sevā), desenvolvi grande fé
e respeito por ele.
As preocupações e diferenças entre as maṭhas e entre os ācāryas não co-
meçaram naquela época. Os dois irmãos espirituais mais proeminentes de
pūjyapāda Vāmana Mahārāja – que são pūjyapāda Bhaktivedānta Trivikrama
Mahārāja e pūjyapāda Bhaktivedānta Nārāyaṇa Mahārāja – foram morar no tem-
plo após ouvir a pregação de Śrī Śrīmad Bhakti Kamala Madhusūdana Gosvāmī
Mahārāja (na época, Śrī Narottamānanda Brahmacārī), um discípulo de Śrīla
Prabhupāda. Quando sua atração por bhakti surgiu, Śrīla Madhusudana Gosvāmī
Mahārāja conduziu pūjyapāda Vāmana Mahārāja até seu irmão espiritual, Śrīla
Keśava Gosvāmī Mahārāja. Não havia inveja ou uma concepção como: “Por eu
ter instruído esses devotos e tê-los trazido para o caminho de bhakti, eles são
os meus discípulos.” Da mesma forma, Guru Mahārāja costumava levar mui-
tos devotos até Śrī Śrīmad Bhakti Saraṅga Gosvāmī Mahārāja e também até Śrī
Śrīmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja.
Sua humildade
Após o desaparecimento de Śrī Śrīmad Bhakti Jīvana Janārdana Gosvāmī
Mahārāja, um festival de três dias (viraha mahotsava) foi realizado na sua maṭha
em Khaḍagapur. Eu fui convidado para ser o presidente (sabhā-pati) no primeiro
dia, pūjyapāda Vāmana Mahārāja foi convidado para exercer a mesma função
no terceiro dia. Pūjyapāda Vāmana Mahārāja teve que vir de trem de Chennai
(antiga Madras) para Khaḍagapur para participar da assembleia. Devido ao
atraso do trem, ele demorou a chegar e me pediram para assumir a sua função.
Quando pūjyapāda Vāmana Mahārāja chegou e finalmente pôde discursar, ele
me perguntou: “Por quanto tempo eu devo falar?”
Eu respondi: “Mahārāja, hoje você é o sabhā-pati e por isso pode falar o quan-
to quiser.” Embora estivesse doente e os seus servos lhe pedissem para que paras-
se de falar, ele continuava, sem se preocupar com o seu bem-estar físico. Assim,
ele demonstrou forte apego pela glorificação a Śrī Hari, ao guru e aos vaiṣṇavas.
Ficando longe de problemas
Durante o mesmo festival em Khaḍagapur, eu fiquei no quarto ao lado de

126
Capítulo 6 - Pūjyapāda Bhaktivedānta Vāmana Mahārāja

pūjyapāda Vāmana Mahārāja. Quando conversávamos, falávamos exclusiva-


mente sobre os ensinamentos e a conduta de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda.
Ele me disse: “Eu conheci três gerações de devotos em minha vida e estou per-
plexo ao ver que a aplicação dos ensinamentos e da conduta de Śrīla Prabhupāda
por parte dos devotos, em geral, se diluiu com o tempo. Eu quero lhe dizer uma
coisa mas, por favor, tome isso como conselho em vez de uma instrução, por-
que eu não sou tão arrogante a ponto de pensar que sou qualificado para ins-
truir alguém: 'dekhibe, śunibe, bolite nā – observe e ouça, mas nunca diga nada.'
Ao seguir tal conduta, você ficará longe de problemas.” Ele mesmo seguiu este
ideal sem cometer falhas e manteve uma etiqueta espiritual perfeita (vaiṣṇava-
-maryādā), o comportamento digno de um vaiṣṇava.
Chamou a minha atenção uma situação em especial, que demonstrava
a conduta perfeita de pūjyapāda Vāmana Mahārāja. Durante a peregrinação
(parikramā) de Navadvīpa-dhāma, mesmo quando milhares de devotos se reu-
niam para ouví-lo falar, ele permanecia em silêncio e solicitava que seus irmãos
espirituais juniores – pūjyapāda Trivikrama Mahārāja e pūjyapāda Nārāyaṇa
Mahārāja – proferissem o hari-kathā, visando ensinar para discípulos a conduta
adequada. Ele dizia com profunda humildade: “Apesar de serem considerados ju-
niores a mim, na realidade, eles sabem muito mais do que eu.” Mesmo possuindo
vasto conhecimento, sendo profundamente versado nas conclusões (siddhānta)
das nossas escrituras e também um exímio orador, ele se abstinha de falar e, em
vez disso, concedia aos outros a oportunidade de falar em seu lugar.
Nós não vemos tal conduta exemplar nos devotos hoje em dia. Muitos devo-
tos parecem experimentar as dores de um parto (prasava-pīḍā) se não recebem
a oportunidade de falar hari-kathā. Eles tampouco toleram ou querem permitir
que outros falem, mesmo quando devotos mais qualificados estão presentes ou
o público é pequeno.

127
Püjyapäda Bhakti
Vallabha Tértha Mahäräja

Hoje é o dia do aparecimento do Senhor Rāmacandra, bem como do meu ir-


mão espiritual e atual ācārya da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha, pūjyapāda Bhakti
Vallabha Tīrtha Mahārāja.
É extremamente importante para os praticantes (sādhakas) sinceros honrar
os dias sagrados (tithis) relativos aos avatāras de Deus e dos vaiṣṇavas, pois é
mais uma oportunidade de glorifica-los e lembrar de seus pés de lótus. Não ouvir
nem pronunciar suas glórias em tais dias certamente é uma ofensa.
Śrī Vṛndāvan dās Ṭhākura escreveu:
ĵe vaiṣṇava bhajile acintya kṛṣṇa pāi
se vaiṣṇava-pūjā hôite baḓô āra nāi
Śrī Caitanya-bhāgavata (Antya-khaṇḍa 4.357)
Ao servir os pés de lótus dos Vaiṣṇavas, alcança-se os pés de lótus do incon-
cebível (acintya) Śrī Kṛṣṇa; não há prática espiritual (sādhana) maior que essa.
É impossível aproximar-se do Senhor transcendental através dos sentidos
materiais. No estágio condicionado, no qual a alma individual (jīva) está sujei-
ta aos muitos desejos materiais, ela não consegue pensar em Acintya (Kṛṣṇa)
com sua mente, nem pode vê-Lo com seus olhos. Ela torna-se qualificada para
alcançar a misericórdia inconcebível do Senhor somente depois de se refugiar
completamente nos pés de lótus dos vaiṣṇavas.
Pensando nessa instrução, hoje servirei pūjyapāda Tīrtha Mahārāja lem-
brando-me dele e glorificando suas atividades.
Sua fé firme nas palavras de nossa sucessão discipular (guru-varga)
Pūjyapāda Tīrtha Mahārāja apareceu em Gwalpada, Assam. Ele foi o pri-
meiro membro de sua família a aceitar o Gauḍīya Vaiṣṇavismo e a seguir os
seus princípios. Ele costumava ouvir hari-kathā com muita atenção e grande
interesse. Ele apenas pronunciava (kīrtana) as instruções que havia escutado
(śrauta-vāṇī) – ou seja, ele falava exclusivamente o que tinha ouvido do nosso
paramārādhyatama Guru Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī,
bem como de outras autoridades sêniores a ele. Em seu hari-kathā e em seus

129
Viśuddha Caytania-Vāṇī

discursos em geral, ele não adicionava uma vírgula sequer ao que nosso Guru
Mahārāja e o guru-varga haviam ensinado. Essa era uma das suas qualidades
mais especiais. Devido a isso, a maioria dos nossos irmãos espirituais cari-
nhosamente se referiam a ele como sendo um gravador vivo.
Especialista em sevā
Certa vez, pūjyapāda Tīrtha Mahārāja (ainda chamado de Śrī Kṛiṣhṇa-Vallabha
Brahmacārī), Śrī Kanhāī Brahmacārī, eu (então Narottama Brahmācarī) e Śrīpād
Mādhavānanda Vrajavāsī, um discípulo de Śrīla Bhaktisiddhanta Prabhupāda, viaja-
mos para Sarbhog, em Assam, para pregar nossa filosofia. Enquanto estivemos
por lá, choveu sem parar e não vimos o sol por quatro ou cinco dias. Ficamos
ilhados, impossibilitados de sair na rua. Durante esse tempo, pūjyapāda Tīrtha
Mahārāj cozinhou para todos nós. Ele era um cozinheiro fantástico e todos gos-
tavam muito do que ele preparava. Esta é uma das qualidades dos vaiṣṇavas,
eles são especialistas em tudo relacionado ao serviço aos grandes santos. Para
pūjyapāda Tīrtha Mahārāj cozinhar era apenas uma das especialidades do seu
serviço devocional (vaiṣṇava-sevā).
Seu humor suave
Após o desaparecimento de Śrī Śrīmad Bhakti Jīvana Janārdana Gosvāmī Pūjyapāda
Tīrtha Mahārāj era também muito bem-humorado (rasika). Enquanto estáva-
mos em Sarbhog, um menino vinha nos ver com frequência, sempre se refe-
rindo a pūjyapāda Tīrtha Mahārāj como sendo o sábio barrigudo (peṭa moṭā
sādhu). Śrīpād Mādhavānanda Prabhu era mais gordo que pūjyapāda Tīrtha
Mahārāj – quem, na verdade, não era tão gordo, por isso ficamos bastante sur-
presos ao ouvir o menino se referir a pūjyapāda Tīrtha Mahārāj desse jeito e não
a Śrīpād Mādhavānanda Prabhu.
Não conseguíamos entender porque aquele menino estava chamando
Mahārāj por esse nome repetidamente, até que um dia eu vi pūjyapāda Tīrtha
Mahārāj sozinho com o menino. Mahārāj-ji estava inspirando profundamente
para expandir sua barriga, que ele mostrava divertidamente ao menino. Assim,
finalmente entendemos porque o menino chamava pūjyapāda Tīrtha Mahārāj
de peṭa moṭā sādhu.
Embora pūjyapāda Tīrtha Mahārāj fosse geralmente muito sério e estive
sempre ouvindo hari-kathā atentamente e servindo os vaiṣṇavas, ele também ti-
nha um ótimo senso de humor.
O Śrī Chaitanya-charitāmṛta (Madhya-līlā 22.75) afirma: “Kṛiṣhṇa-bhakte
kṛṣṇera guṇa sakali sañcāre – todas as qualidades de Krishna surgem em Seu de-
voto.” Dessa forma, podemos entender que, embora os vaiṣṇavas sejam geral-

130
Capítulo 7 - Pūjyapāda Bhakti Vallabha Tīrtha Mahārāja

mente muito sérios, eles também tem um ótimo senso de humor, porque todas as
qualidades de Krishna – que é a fonte de toda a doçura transcendental, incluindo
o bom humor – também estão presentes em Seus devotos puros.
Sua humildade e entrega
Pūjyapāda Tīrtha Mahārāj – bem como uma série de outros devotos, incluindo
eu mesmo – , nunca desejou dar hari-kathā na frente dos membros do nosso
guru-varga, em vez disso, ele estava sempre ansioso para ouvi-los falar sobre
Kṛiṣhṇa. Porém outros brahmacārīs estavam sempre muito ansiosos para falar
hari-kathā. Eles se dirigiam ao nosso Guru Mahārāja e a outros membros do
guru-varga pedindo permissão para falar.
Eu observei em nossos sêniores – particularmente em nosso Guru Mahārāja
e em Śrī Śrīmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāj – uma qualidade es-
pecial: se alguém pedisse a eles para falar hari-kathā, eles nunca permitiam. Por
outro lado, forçavam aqueles que eram relutantes em discursar publicamente a
falar sobre Deus.
Pūjyapāda Tīrtha Mahārāj era um ouvinte perito, mas era muito relutante
em falar hari-kathā. Certo dia, Śrīla Yāyāvara Gosvāmī Mahārāj anunciou: “Hoje
o nosso Śrīman Kṛiṣhṇa-Vallabha Brahmacārī vai dar hari-kathā para nós.” E,
sem protestar, Pūjyapāda Tīrtha Mahārāj deu um hari-kathā, só para obedecer
ao nosso guru-varga. Eu, pessoalmente, testemunhei incontáveis exemplos de
como ele sempre permaneceu sob a guia (anugatya) dos grandes vaiṣṇavas. Sua
completa rendição aos pés de lótus do guru-varga não pode ser comparada.
Sempre buscando o conselho dos vaiṣṇavas
Outra qualidade de Pūjyapāda Tīrtha Mahārāja é que, sempre que ele tinha al-
guma dúvida, ele se aproximava dos nossos sêniores e fazia perguntas a eles.
Um devoto sênior da Maṭha mencionou uma vez: “Embora eu tenha ficado
no templo por muito tempo, realizado peregrinações (parikramā) e muitas ou-
tras atividades espirituais, nada aconteceu; tanto a minha mente quanto a minha
vida não mudaram em nada.”
Ouvindo isso, Śrī Kṛiṣhṇa-Vallabha Brahmacārī e muitos outros devotos fi-
caram um pouco desanimados. Eles questionaram: “Qual é a utilidade de perma-
necer no templo se tal vaiṣṇava, sênior a todos nós, sente que não obteve nenhum
benefício como resultado de sua vida no templo (Maṭha-vāsa)?”
Para solucionar esse enigma, Śrī Kṛiṣhṇa-Vallabha Brahmacārī foi conver-
sar com Śrīpād Kṛiṣhṇa-Keśhava Prabhu, um discípulo de Śrīla Bhaktisiddhanta
Prabhupāda que costumava permanecer na Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha com o
nosso Guru Mahārāj, perguntando: “Prabhu, um vaiṣṇava sênior comentou que

131
Viśuddha Caytania-Vāṇī

ele sente que não recebeu nenhum benefício por ter vivido no templo. Alguns
dos devotos estão incomodados depois de terem ouvido isso. Para ajudar to-
dos eles, estou aqui sinceramente pedindo um esclarecimento. Como entender,
como conciliar tal declaração?"
Vendo sua sinceridade, Śrīpāda Kṛiṣhṇa-Keśhava Prabhu explicou: “Pro-
porcionalmente aos anos de convivência, a humildade naturalmente surge no
coração de alguém que viva na companhia de vaiṣṇavas sêniores e avançados
em bhakti. Assim, por causa de sua humildade espontânea, um devoto que é es-
piritualmente avançado fala sobre sua falta de progresso em bhakti. É assim que
devemos conciliar declarações como estas nas afirmações de vaiṣṇavas sêniores“.
Ao ouvir a resposta de Śrīpād Kṛiṣhṇa-Keśhava Prabhu, Śrī Kṛiṣhṇa-Vallabha
Brahmacārī pôde compreender tudo com clareza.
Kīrtanīyaḥ sadā hariḥ (quem pode pronunciar os Santos Nomes de Deus)
Com o passar do tempo, Pūjyapāda Tīrtha Mahārāja mergulhou completamente
na atividade de dar hari-kathā. Para ele, tornou-se impossível não falar sobre Śrī
Kṛiṣhṇa, onde quer que fosse.
Nosso relacionamento afetuoso
Às vezes, Pūjyapāda Tīrtha Mahārāja me telefonava ou se encontrava comigo
para pedir meu conselho sobre vários assuntos. Se alguém estivesse presente
naquele momento, ele dizia: “Por favor, nos perdoe, mas queremos falar um
com o outro em particular.” Dessa forma, nós costumávamos sentar juntos e
discutir várias coisas.
A relação entre nós é tal que não pode ser facilmente compreendida pela
maioria das pessoas, mas meu coração diz que nosso relacionamento sempre foi
muito doce. Desde o primeiro dia que nos conhecemos, viajamos e moramos
juntos, e juntos servimos nosso Guru Mahārāja de inúmeras maneiras diferentes.
Nós temos – e sempre tivemos – um relacionamento profundo e carinhoso, mas
porque muitas pessoas observam apenas as aparências externas, deixando de
considerar os verdadeiros e sinceros sentimentos que existem entre nós, elas per-
manecem incapazes de perceber nossa profunda e mútua afeição. Em vez disso,
tiram conclusões equivocadas sobre o nosso relacionamento.
Embora eu queira continuar glorificando meu querido irmão espiritual
pūjyapāda Tīrtha Mahārāja, a minha saúde não me permite sentar ou falar por
muito tempo. Hoje, no auspicioso dia de seu divino aparecimento neste mundo,
eu oro aos seus pés de lótus para que ele me perdoe por qualquer ofensa que eu
possa ter cometido contra ele, tanto consciente quanto inconscientemente.

132
Capítulo 7 - Pūjyapāda Bhakti Vallabha Tīrtha Mahārāja

133
Püjyapäda Bhaktivedänta
Näräyaëa Mahäräja

Em primeiro lugar, eu peço perdão aos vaiṣṇavas aqui reunidos. Embora eu me


considere alguém de baixa qualificação espiritual, minha condição física exige
que eu me sente em uma cadeira, o que me obriga a ficar num nível mais alto que
o de todos vocês aqui sentados no chão.
Hoje é uma ocasião muito auspiciosa, pois celebramos a data de desapa-
recimento de pūjyapāda Bhaktivedānta Nārāyaṇa Mahārāja. É uma atitude
ofensiva não honrarmos as datas de aparecimento e desaparecimento do nosso
guru-varga com toda nosso empenho. Glorificar os vaiṣṇavas nesses dias cons-
titui nossa verdadeira riqueza, porque assim preenchemos nossa memória com
suas atividades e qualidades.

O resultado de se lembrar dos vaiṣṇavas


Sobre a glorificação dos vaiṣṇavas, o Śrīmad-Bhagavatam (12.12.55) diz:
avismṛtiḥ kṛṣṇa-padāravindayoḥ
kṣiṇoty abhadrāṇi ca śaṁ tanoti
sattvasya śuddhiṁ paramātma-bhaktiṁ
jñānaṁ ca vijñāna-virāga-yuktam
Lembrar-se dos pés de lótus de Śrī Kṛṣṇa— em outras palavras, lembrar dos
queridos devotos do Senhor, aqueles que se abrigaram completamente nos
Seus pés de lótus— destrói toda a inauspiciosidade e aumenta a auspicio-
sidade. Quando o coração está purificado, a devoção pela Alma Suprema
(bhakti) é despertada, obtendo-se primeiramente conhecimento (jñāna)
e, posteriormente, a realização espiritual (vijñāna), que conduz a uma es-
pontânea renúncia material.
Nesse caso, a frase em sânscrito avismṛtiḥ kṛṣṇa-padāravindayoḥ não signi-
fica somente “lembrar-se dos pés de lótus de Kṛṣṇa”, mas também “lembrar-se
dos devotos de Sri Kṛṣṇa”. Isso quer dizer que devemos meditar profundamente
na conduta e nos ensinamentos dos devotos puros. A consequência dessa forma
particular de lembrança – em sânscrito, kṣiṇoty abhadrāṇi ca śaṁ tanoti –, aniqui-
la toda a inauspiciosidade de nossas vidas e faz prosperar toda a auspiciosidade.
Nesse caso, não estamos falando de auspiciosidade ou bênçãos mundanas ou
materiais, mas sim do auspicioso desejo de que o amor puro por Deus (krṣṇa-prema),

135
Viśuddha Caytania-Vāṇī

desperte no coração da alma condicionada (jīva). Depois que essa auspiciosidade


é nutrida, nossa consciência é totalmente purificada (sattvasya śuddhiṁ). Depois
disso, surge um forte desejo de servir o Supremo (paramātma-bhaktiṁ).
Então, o conhecimento se estabelece (jñānaṁ cha) – o conhecimento acerca
de si mesmo, da nossa posição espiritual eterna, do eterno relacionamento com
o guru e do eterno relacionamento com Deus –, manisfestando-se claramente.
Isso não ocorre apenas num âmbito sentimental ou emocional, mas sim na pla-
taforma da transcendência mais pura. Quando um discípulo vive de acordo com
os ensinamentos de seu guru, então o conhecimento (jñāna) é transformado em
realização (vijñāna) e, depois disso, o desapego (vairāgya) surge em seu coração.
O termo vairāgya possui dois significados. O significado secundário e comum
é desapego do mundo material. Tal desapego é uma consequência do significado
primário e mais profundo da palavra, que corresponde a viśeṣa-rūpena rāga, ape-
go extraordinário, que indica o apego espiritual aos pés de lótus do Supremo .
Embora tenhamos, de alguma maneira, entrado em contato com os devotos
de acordo com os frutos de boas ações exetuadas em vidas passadas (sukṛti), ain-
da nos deparamos com vários tipos de obstáculos. Dentre eles, os três principais
são: ganância e riqueza (kanaka); atração sexual (kāminī); fama e reconhecimen-
to (pratiṣṭhā). Ao avançarmos no caminho espiritual, o indivíduo pode conse-
guir escapar da ganância por riqueza e satisfação sexual até com certa facilidade,
mas livrar-se do desejo por pratiṣṭhā é algo dificílimo.
Sobre este tópico, Śrīla Raghunātha dāsa Gosvāmī escreveu em seu Manaḥ-
-śikṣā um verso que começa com a frase pratiṣṭhāśā dhṛṣṭā, no qual ele fala com
sua própria mente no intuito de nos ensinar a instruir a nossa mente. Ele des-
creve o desejo por fama e reconhecimento público (pratiṣṭhā) como sendo uma
abominável, interesseira prostituta de baixo nível.
A única maneira de se livrar das garras do desejo por pratiṣṭhā é prestar ser-
viço contínuo aos devotos que são muito queridos para Śrī Caitanya Mahāprabhu
(sadā tvaṁ sevasva prabhu-dayita-sāmantam atulaṁ), pois eles são muito po-
derosos. O quão poderosos? Incomparavelmente. Uma análise de quanto poder
espiritual eles possuem não pode ser devidamente elaborada.
Então, como podemos serví-los? Lembrando sempre deles, seguindo suas
palavras e aplicando os seus ensinamentos. É somente por meio desse tipo de
serviço que se pode superar o desejo por prestígio (pratiṣṭhā); o que é completa-
mente impossível de qualquer outra maneira.
O devoto puro de Bhagavān Sri Kṛṣṇa Lhe é mais querido do que Ele próprio
O aparecimento e o desaparecimento dos vaiṣṇavas neste mundo material são
mais auspiciosos do que o aparecimento do próprio Kṛṣṇa. E qual a razão disso?

136
Capítulo 8 - Pūjyapāda Bhaktivedānta Nārāyaṇa Mahārāja

No estágio materialmente condicionado em que estamos, devemos compreen-


der que Deus está situado em uma plataforma tão elevada e distante, que é im-
possível para nós alcançá-Lo e estar em Sua companhia. Porém podemos estar
com Seus devotos puros que são manifestações de Sua misericórdia.
Devido à sua misericórdia ilimitada, os devotos puros descem até o nível em
que nós estamos situados atualmente para nos dar a oportunidade de nos rela-
cionarmos com eles, estar em sua companhia e assim purificar nossa consciência.
Desse modo, um dia poderemos estar na presença direta de Deus e servi-Lo. É
por isso que Śrī Kṛṣṇa declara no Śrīmad-Bhāgavatam (11.19.21):
ādaraḥ paricaryāyāṁ
sarvāṅgair abhivandanam
mad-bhakta-pūjābhyadhikā
sarva-bhūteṣu man-matiḥ
“Somente aqueles que prestam serviço aos Meus devotos mais queridos
e, com grande amor, se oferecem completamente por meio da da mente,
do corpo e das próprias palavras, é que são capazes de Me satisfazer plena-
mente. Por isso eu considero que adorar e prestar serviço sincero aos pés
de lótus dos Meus devotos puros é muito superior a Me servir diretamente,
mad-bhakta-pūjābhyadhikā”.
Embora seja impossível prestarmos serviço aos pés de lótus de Bhagavān
em nossa condição atual, Seus devotos puros são capazes de fazê-lo e, assim,
sendo, eles podem nos ocupar em serviço devocional ao Senhor, levando nos-
sas oferendas diretamente até Ele. Além disso, os devotos conhecem muito bem
o que agrada e desagrada Śrī Kṛṣṇa, mais do que Ele próprio. Na verdade, so-
mente através dos devotos puros é que podemos servir O Senhor.
Mas como podemos servir os pés de lótus de tais devotos depois que eles par-
tiram e se tornaram invisíveis no mundo material? Podemos nos lembrar deles,
refletir, meditar e, por fim, adotar sua conduta altamente exemplar – e, também,
compartilhar e distribuir seus ensinamentos para que outros possam estabelecer
uma relação com eles.

Bhagavān reside onde quer que seus devotos puros sejam glorificados
As palavras de Bhagavān nunca podem se mostrar como sendo falsas; elas são
sempre a verdade (satya). Kṛṣṇa disse no Padma Purāṇā (Uttara-khaṇḍa, 92.21):
nāhaṁ tiṣṭhāmi vaikuṇṭhe
yogināṁ hṛdayeṣu vā
yatra gāyanti mad-bhaktāḥ
tatra tiṣṭhāmi nārada

137
Viśuddha Caytania-Vāṇī

“Eu não resido em Vaikuṇṭha nem no coração dos yogīs. Então onde eu resi-
do, Ó Nārada? Yatra-gāyanti mad-bhaktaḥ – lá onde Meus devotos narram
Minhas glórias, que se conectam naturalmente a eles mesmos”.
Por Kṛṣṇa estar sempre acompanhado dos Seus devotos puros, as glórias
do Senhor são intrinsecamente conectadas a eles. Portanto, a palavra gāyanti re-
fere-se às glórias de Kṛṣṇa conectadas a Seus devotos tais como Śrīmatī Rādhikā,
Nanda Bābā, Yaśodā Mātā, os Vrajavāsīs, śuddha vaiṣṇavas (vaiṣṇavas puros) e
śrī guru. Nesse verso, Kṛṣṇa declara que Ele corre para o lugar onde as glórias dos
Seus devotos são louvadas.
Bhagavān é controlado pelo pedido de Seus devotos
O Śrī Caitanya-caritāmṛta descreve como, durante o festival do Ratha-yātrā, a
carruagem (ratha) daquele Senhor do universo, Śrī Jagannātha, que é absoluta-
mente independente e se move exclusivamente conforme o Seu desejo. Se Ele
não deseja sair do lugar, então ninguém no mundo possui força suficiente para
movê-lo, nem mesmo um milímetro.
Eu mesmo testemunhei tal situação. Embora elefantes, cavalos e multidões
de homens tenham tentado puxar a carruagem, ela permaneceu imóvel. Em tal
momento, um devoto chamado Sadāśiva Ratha Śarmā, que estava sofrendo mui-
to, começou a cantar em voz alta: "Ó Senhor! Como Você pode ser tão cruel?
Milhares de devotos estão sofrendo muito porque Você se recusa a mover Sua
carruagem. Como Seu coração não derrete ao ver o choro profuso e nossos es-
forços intensos?”
Porque seu canto estava impregnado de profunda fé, a gigantesca carruagem
de Jagannātha entrou em movimento, de modo que parecia voar. Naquele dia,
eu testemunhei pessoalmente como o coração do Senhor Se derrete ao ouvir os
pedidos intensos de Seus devotos mais queridos.
A afeição especial de Jagannātha por Seus devotos mais queridos
Certa vez, o rei de Jagannatha Purī, Mahārāja Gajapati, foi ignorado pelo governo
do estado da Orissa durante o festival do Ratha-yātrā. Na celebração, o governo
assume toda a responsabilidade administrativa e a supervisão total do evento. Faz
parte da antiga tradição do festival que o rei varra a rua na frente das carruagens
de Jagannātha antes que as mesmas sejam puxadas pela multidão. O preço dessa
atividade é alto, pois se pressupõe que o governo cubra as despesas de todas as
etapas ligadas ao transporte do rei e de toda sua comitiva até os portões do templo.
Naquele ano em particular, o ministro-chefe da Orissa, para economizar
com os gastos do festival, propôs que o governo ignorasse o ritual de convite ao
monarca. No dia do Ratha-yātrā, então, ninguém do templo de Śrī Jagannātha

138
Capítulo 8 - Pūjyapāda Bhaktivedānta Nārāyaṇa Mahārāja

foi buscar o rei, que estava esperando em seu palácio completamente vestido e
preparado para a ocasião.
No local do festival, Baladeva Prabhu, Subhadrā-devī e a Sudarśana chakra
foram levados tranquilamente do templo para as Suas respectivas carruagens
na procissão cerimonial. Contudo, quando os servos (paṇḍās) da deidade
de Jagannātha tentaram levá-Lo, eles não conseguiam levantá-Lo do lugar. Os
paṇḍās de Baladeva Prabhu e Subhadrā-devī foram ajudá-los. Em seus esforços,
alguns deles foram feridos – um deles quebrou a perna, o outro fraturou a mão e
muitos outros paṇḍās sangraram.
Finalmente, Sadaśiva Ratha Śarmā disse em voz alta: “Ouçam todos! Vocês
ofenderam um devoto do Senhor ao deixar de convidá-lo. Insultar um devoto do
Senhor produz resultados tais como os que estamos vendo agora. Como é possível
satisfazer o mestre insultando Seu servo? Vão e, com grande respeito, tragam o rei".
Os paṇḍās ouviram suas palavras e foram buscar sua majestade. Quando
chegou, o rei tocou as vestes de Śrī Jagannāthadeva e orou a Ele: “Ó, Maṇimā
(personalidade incomparável)! Essas pessoas são ajña (ignorantes). Elas são
como crianças desprovidas da visão e da maturidade necessárias para ponde-
rar adequadamente antes de fazerem qualquer coisa. Mas Você é a Suprema
Personalidade Divina, Você sabe de tudo. Por que Você está agindo de tal
maneira, causando sofrimento a tantas pessoas?”
Depois disso, Jagannātha foi finalmente levado até a sua carruagem com fa-
cilidade, sendo erguido por apenas alguns de seus paṇḍās.
Deus afirma que fica mais satisfeito com quem serve Seus devotos do que com
quem O serve diretamente, demonstrando tal fato por meio de Suas atividades.
Ele assim o demonstra diretamente e com frequência. Aqueles que são altamente
afortunados puderam testemunhar esse fato e relatá-lo aos demais. Tais pessoas
são capazes de compreender os profundos significados das escrituras (śāstras).
Lembranças de pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja
Hoje é o dia de desaparecimento de pūjyapāda Bhaktivedānta Nārāyaṇa
Mahārāja. Nara significa ‘ser humano’ e ayaṇa significa ‘abrigo’. Portanto, quan-
do as escrituras mencionam o nome Nārāyaṇa, se referem a uma personalidade
que é o verdadeiro abrigo de todos os seres vivos.
Pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja para mim era como um irmão espiritual
(satīrtha). Quando ele era mais jovem e residia em Mathurā, certa vez nos senta-
mos juntos e eu disse a ele: “Mahārāja, por ter nascido no norte da Índia, você é
muito versado em hindi. Seria uma grande fortuna para todos se você viajasse e
pregasse em hindi por todo o país.”
Pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja respondeu: “Minha saúde não está boa atual-

139
Viśuddha Caytania-Vāṇī

mente, portanto não posso viajar muito.”


Eu perguntei sobre os detalhes de sua saúde e, depois que ele me respondeu,
eu falei: "Por favor, venha para Calcutá para que eu possa levar você até um médi-
co muito bom. Depois disso, podemos falar sobre a pregação.”
Pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja concordou e foi para Calcutá durante o pe-
ríodo em que eu também estava lá. Eu o levei pessoalmente para se consultar
com esse médico que era extremamente respeitoso com os sādhus (sábios). O
médico disse: “Os sādhus estão sempre ocupados em recitar os nomes de Deus
(bhajana). Por isso eu não deixo que eles percam seu precioso tempo esperando
para se consultar comigo". Assim, ele atendia imediatamente qualquer sādhu que
fosse até ele fazer algum tratamento. Depois de examinar pūjyapāda Nārāyaṇa
Mahārāja, ele o aconselhou a comer apenas arroz e um prato indiano de banana
crua (sabjī), além de outras coisas.
Depois de um breve período, pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja recuperou-se
totalmente e me disse: “Vou fazer o que você me aconselhou; vou viajar para to-
dos os locais possíveis onde eu possa pregar." Foi nessa época que ele passou a
ensinar a nossa filosofia.
Meu serviço afetuoso a ele
Em outra ocasião, eu e pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja fomos a um festival de
abertura do templo de Śrī Śrīmad Bhakti Vaibhava Purī Gosvāmī Mahārāja em
Viśākhāpaṭnām e ficamos hospedados no mesmo quarto. Muitos vaiṣṇavas sê-
niores compareceram ao festival.
Alguns de nós planejávamos ir até Purī depois do festival e ficar em nossa
Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha. Pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja me disse: "Eu tam-
bém quero ir a Purī, mas devido ao meu estado de saúde, as acomodações da
nossa Nīlacāla Gauḍīya Maṭha seriam desconfortáveis para mim. Embora eu
queira acompanhar vocês, não posso.” Eu respondi imediatamente: "Não pre-
cisa se preocupar com essas coisas. Por favor, venha conosco e fique em nossa
maṭha. Podemos nos organizar para que você receba as acomodações e as faci-
lidades que a sua saúde exige.”
Ao ouvir isso, ele ficou extremamente satisfeito e disse: "Então, se for possí-
vel, com certeza irei a Purī com todos vocês depois desse festival.”
Embora minha passagem de trem já estivesse reservada para que eu viajasse
com Śrī Śrīmad Bhakti Pramoda Purī Gosvāmī Mahārāja e outros devotos, aca-
bei viajando um dia antes de todos. Ocultando os detalhes, eu disse a todos que
por um motivo especial eu precisava ir antes. Então, com uma passagem compra-
da de última hora, eu fui para Purī.

140
Capítulo 8 - Pūjyapāda Bhaktivedānta Nārāyaṇa Mahārāja

Como havia muitos devotos hospedados na maṭha em Purī, seria difícil


conseguir um quarto separado para ele. Então eu retirei todas as coisas do meu
próprio quarto, limpei tudo e fui para um quarto sem banheiro, deixando meu
quarto reservado para pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja.
Eu sabia que, se Mahārāja me visse arrumando meu quarto para recebê-lo,
ele não aceitaria ficar ali e insistiria para que eu não me mudasse de quarto. Por
isso eu viajei um dia antes e, sem que ele soubesse, preparei meu quarto para a sua
chegada. Assim, ele pôde ficar ali sem maiores preocupações.
Eu me lembro carinhosamente de uma conversa bem humorada que
ele teve com seu servo pessoal (sevāka) Navīn-Kṛṣṇa Brahmacārī (agora Śrī
Bhaktivedānta Mādhava Mahārāja). Pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja disse para
Navīn: “Me dê mais um roṭī (pão indiano)”, no que Navīn respondeu: “Não, não.
Chega de roṭīs para você.” Pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja então disse brincando:
“Me recusar outro roṭī, será vaiṣṇava-aparādha, pois você terá desobedecido a
ordem de um vaiṣṇava.”
Sempre que me encontro com Mādhava Mahārāja, eu lhe pergunto:"Você
ainda lembra daquele dia?"
Sua conduta em serviço e seu respeito pelos vaiṣṇavas
Certa vez, pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja me convidou para participar do
festival de desaparecimento de Śrī Śrīmad Bhakti Prajñāna Keśava Gosvāmī
Mahārāja na Śrī Keśava-jī Gauḍīya Maṭha de Mathurā. Depois que as glórias de
Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāja foram relatadas, todos os vaiṣṇavas se sentaram
para honrar a prasāda, porém pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja queria esperar
até que todos fossem servidos e estivessem satisfeitos antes que ele honrasse a
prasāda do Senhor.
Ele pediu para que eu me sentasse, mas eu disse a ele:“Não, eu vou esperar
e vamos honrar a prasāda juntos.” Depois que todos os vaiṣṇavas terminaram e
se levantaram de seus assentos, nos sentamos no quarto de pūjyapāda Nārāyaṇa
Mahārāja e, quando estávamos prestes a honrar a prasāda, Śrī Śrīmad Bhakti Pra-
panna Dāmodara Gosvāmī Mahārāja, um discípulo de Śrīla Prabhupāda, che-
gou. Ao ver Śrīla Dāmodara Gosvāmī Mahārāja, pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja
imediatamente se levantou de seu assento e disse:"Mahārāja, por favor sente-se
aqui para tomar prasāda comigo.” Śrīla Dāmodara Gosvāmī Mahārāja respondeu:
“Com certza aceitarei seu convite , mas só depois de tomar um banho. Eu já volto."
Depois que ele saiu, pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja se virou em minha dire-
ção e disse: “Mahārāja, por favor honre a sua prasāda agora. Ainda vai demorar
um bom tempo até que eu consiga fazer isso.”

141
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Eu respondi: "Não, não. Eu também vou esperar.” Assim, após Śrīla


Dāmodara Gosvāmī Mahārāja voltar e honrar sua prasāda, eu e pūjyapāda
Nārāyaṇa Mahārāja finalmente honramos prasāda juntos.
Daquele dia em diante, eu adotei a mesma conduta exemplar de pūjyapāda
Nārāyaṇa Mahārāja em meu coração. Pude ver como ele possuía imensa afeição
pelos vaiṣṇavas e como sua atitude servil era sem precedentes.
Seu profundo desejo de estudar os textos devocionais
Cinquenta anos atrás, pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja morou em Govardhana
por alguns meses no local onde agora é a sua Śrī Giridhārī Gauḍīya Maṭha.
Naquela época, ele me escreveu uma carta dizendo: "Estou em Govardhana e
quero me aprofundar na filosofia de Śrī Caitanya Mahāprabhu, para compreen-
der integralmente o presente que Śrīla Rūpa Gosvāmīpāda deu a este mundo.
Portanto, peço que você compre e me envie cópias dos livros Ujjvala-nilamaṇi e
Bhakti-rasāmṛta-sindhu de Calcutá, pois não estão disponíveis por aqui."
Naquela época, encontrar tais livros não era uma tarefa fácil, pois nenhum
desses dois títulos eram impressos há muito tempo. De alguma forma conse-
gui comprar versões antigas e de segunda mão dos dois textos e os enviei para
pūjyapāda Nārāyaṇa Mahārāja realizar seu estudo. Em sua vida, ele sempre de-
monstrou um profundo interesse pelos textos de Śrīla Rūpa Gosvāmīpāda.

142
Capítulo 8 - Pūjyapāda Bhaktivedānta Nārāyaṇa Mahārāja

143
Krishna escuta Seus
devotos amorosos

O Senhor Supremo conhece todas as línguas. Ele compreende perfeitamente


todas as linguagens, tanto aquelas faladas pelos seres humanos quanto as dos
semideuses, mamíferos, pássaros, insetos e todos os demais seres vivos. Apesar
de Kṛṣṇa conhecer todos os idiomas e ter a capacidade de ouvir a todos, é impor-
tante entender em quem Ele presta mais atenção.
Quando Śrī Advaita Ācārya orou fervorosamente implorando a Kṛṣṇa para
que Ele Se manifestasse neste mundo, o Senhor Supremo surgiu sob a forma de
Śrī Gaurāṅga Mahāprabhu, o Avatar Dourado, para satisfazer seu pedido.
Quando Gajendra enfrentava imensa dificuldade e chamou por Ele, O Se-
nhor Supremo apareceu sem demora salvando o Seu querido devoto do sofri-
mento. A princesa Draupadī também suplicou pela ajuda de Deus enquanto
Duḥśāsana tentava arrancar seu sari em plena corte real, e Śrī Kṛṣṇa também
a salvou do perigo. E depois, quando os Pāṇḍavas estavam no exílio, Śrī Kṛṣṇa
novamente salvou Draupadī quando ela teve problemas para fornecer alimen-
tação suficiente aos dez mil discípulos de Durvāsā Muni – um santo auto-rea-
lizado, conhecido pelo seu caráter rigoroso e reativo – quando eles chegaram
após o meio-dia sem aviso prévio. Por que então, nossos pedidos e nossas ora-
ções parecem nunca chegar aos ouvidos de Deus? Por que parece que Ele nunca
ouve as nossas orações?
Vamos analisar esse assunto de forma apropriada através de alguns exemplos.

O sannyāsī e o papagaio
Certa vez, um sannyāsī da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha saiu para pedir doações
pelas casa e, em uma delas, havia uma papagaia. Assim que o sannyāsī chegou à
porta dessa casa, a ave começou a gritar e se aproximou da cabeça dele. Apesar de
ter tentado de todas as maneiras conversar com a papagaia em Bengali e explicar
que ele era amigo do seu dono, o pássaro não prestou a atenção às palavras dele e
o sannyāsī não conseguiu dar um passo sequer para dentro da casa.
Quando o dono do papagaio viu aquilo, disse: “O que você está fazendo?
Não sabe que ele é meu amigo e não um inimigo?” Ele repetiu as palavras:
“Amigo, amigo, amigo”, em Bengali. Ao ouvir a voz do dono, o papagaio mudou

145
Viśuddha Caytania-Vāṇī

de tom por completo e começou a repetir as palavras: “Bem-vindo, bem-vindo.


Por favor, entre”.
A vaca poliglota
Quando eu morava na Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha em Hyderabad, perto dali
vivia uma vaquinha chamada Sarasvatī. Um devoto da Bengala costumava cuidar
delatodos os dias, com todo amor e afeto. A vaca, por sua vez, fazia tudo o que ele
mandava. Observando a obediência dela, um devoto de Hyderabad me pergun-
tou espantado:
“Mahārāja-jī! Como a vaca entende tudo o que mandam ela fazer em bengali?
Por acaso ela é da Bengala?” E eu expliquei: “Essa vaca conhece todos os idiomas:
bengali, hindi,inglês, tamil, telegô e várias outras línguas; mas ela só obedece às
orientações de quem cuida dela com amor. Se você dissesse algo para ela, mesmo
em Bengali, ela não responderia nada, porque você nunca a serviu”.

O dono controla seu cão


Certa vez, eu acompanhei Śrī Mādhavānanda Prabhu, um discípulo de Śrīla
Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura, à casa de um músico famoso, o senhor K.L.
Sehgal.Assim que Mādhavānanda Prabhu bateu à porta da casa, o cão de estima-
ção do senhor Segal correu até nós e se colocou em posição de ataque. O senhor
Sehgal, que observava tudo da varanda do segundo andar, disse: “Deixa entrar.
Não fique preocupado com eles”. Ouvindo seu dono, o cão ficou calmo, começou
a abanar a cauda e nos acompanhou até dentro da casa.

A vaca poliglota
Quando eu morava na Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha em Hyderabad, perto dali
O mesmo princípio que se aplica às aves e aos animais, aplica-se a todos os seres
vivos, semi-deuses, e até mesmo a todos os avatares do Senhor, inclusive ao pró-
prio Supremo Śrī Kṛṣṇa. Qualquer ser vivo presta muito mais atenção e dá mais
valor às palavras de quem o serve e cuida dele com amor. Desse modo, Śrī Kṛṣṇa
responde apenas às orações de quem Lhe presta serviço devocional amoroso ou
àqueles que cultivam um desejo profundo e sincero de prestar semelhante servi-
ço. Ele não escuta as orações de mais ninguém.
Talvez seja essa a razão pela qual nosso param-gurudeva, Śrī Śrīmad
Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura Śrīla Prabhupāda, dizia que não podemos
pregar a devoção à Deus (bhakti) através de qualquer idioma que não seja a pró-
pria linguagem da devoção. Sim, a língua é essencial para expressar as questões do
amor, mas para aqueles que não têm bhakti em seu coração, o mero conhecimen-
to da linguagem não é suficiente para inspirar a devoção a Deus nos demais. É

146
Capítulo 9 - Krishna escuta Seus devotos amorosos

somente pela presença de bhakti pura no coração de alguém que suas palavras se
tornam empoderadas de amor divino. Só então é possível que bhakti, a devoção a
Śrī Kṛṣṇa, seja transmitida aos corações de quem ouve tais palavras. E só a par-
tir desse momento os ouvintes se sentem impelidos a se renderem ao serviço
devocional amoroso.

147
Näma-cintämaëi

śrī hari-vāsare hari-kīrtana-vidhāna


nṛtya ārambhilā prabhu jagatera prāṇa
puṇyavanta śrīvāsa-aṅgane śubhārambha
uṭhilô kīrtana-dhvani ‘gopāla’ ‘govinda’

Śrī Caitanya-bhāgavata (Madhya-khaṇḍa 8.138, 139)


As escrituras ensinam que devemos sempre cantar os Santos Nomes (hari-kīrtana)
no dia de Ekādaśī (Hari-vasāra), o dia que Deus (Śrī Hari) abençoa e aceita como
sendo de Sua propriedade. Para dar exemplo disso, o Avatar Dourado, Śrīman
Gaurahari, iniciou o auspicioso movimento do canto congregacional dos Santos
Nomes de Kṛṣna (saṅkīrtana) em Śrīvāsaaṅgan, o abençoado pátio da casa de
Śrīvāsa Ṭhākura, num dia de Ekādaśī. Os sons dos florescentes nomes de Śrī
Kṛṣṇa, entre eles ‘Gopāla’, ‘Govinda’ e outros, reverberaram ali. Ouvindo as me-
lodias transcendentais, Śrī Caitanya Mahāprabhu, aquele que é, na verdade, a
vida e a alma de todos os seres vivos, de repente começava a dançar em êxtase.

A superioridade dos Santos Nomes


Existem diferentes maneiras de glorificar o Senhor que correspondem ao que
chamamos de hari-kīrtana. Existem o canto e a recitação (kīrtana) que glori-
ficam os Nomes do Supremo (harināma), o kīrtana que glorifica Sua forma
transcendental (rūpa), o que glorifica Suas qualidades divinas (guṇa), o dos
Seus passatempos eternos (līlā), aquele que glorifica Sua morada espiritual (dhāma),
o canto que glorifica Seus companheiros e associados (parikāras) e, por fim, o
kīrtana que glorifica Seus aspectos especiais (vaiśiṣṭhya). No entanto, Śrī Gaurahari,
o Avatar Dourado, induzia todos a cantarem o nāma-kīrtana de Hari cantando
Gopāla, Govinda, Kṛṣṇa e outros nomes sagrados.
Por que será que Mahāprabhu Śrī Gaurahari escolheu praticar apenas o
nāma saṅkīrtana e não o kīrtana de qualquer um dos outros aspectos do Senhor
Supremo? A razão disso nos é apresentada por um de Seus discípulos mais ínti-
mos, Śrīla Sanātana Gosvami:

149
Viśuddha Caytania-Vāṇī

kṛṣṇasya nānā-vidha-kīrtaneṣu
tan-nāma-saṅkīrtanam eva mukhyam
Bṛhad-bhāgavatāmṛta (2.3.158)
“Entre as muitas categorias do kīrtana de Śrī Kṛṣṇa, a mais elevada e suprema
é o canto dos Seus Santos Nomes (nāma saṅkīrtana)”.
Pois, transcendentalmente, o nome sagrado e Aquele que possui tal nome
(nāma e nāmī), não são diferentes entre si. A analogia a seguir nos ajuda a com-
preender esse fato.
As limitações do som material
Existem diferentes maneiras de glorificar o Senhor que correspondem ao que
Este mundo material é formado por cinco elementos, a saber: terra, água, fogo,
ar e éter. As respectivas qualidades desses elementos são: cheiro, gosto, for-
ma, tato e som. O som é a mais sutil dentre essas cinco qualidades, e ninguém
consegue impedi-lo de circular por toda parte dentro do mundo material. Por
exemplo, uma vez, durante a guerra entre a Índia e o Paquistão, foram instau-
rados por toda a Índia um toque de recolher e um apagão noturnos. Na época
da guerra, eu estava passando um período num templo da Śrī Caitanya Gauḍīya
Maṭha em Chandigarh e era proibido acender até mesmo uma vela nas ruas e
nas demais áreas públicas. Mesmo assim, com o corte da eletricidade, meu ir-
mão espiritual Bhakti Prasāda Purī Maharāja conseguia ouvir o noticiário sobre
a guerra pelo rádio. Isso nos faz compreender o quão impossível é limitar ou
impedir a difusão do som no espaço.
Neste mundo, os seres ou objetos sutis dominam, controlam e governam
os seres materiais e os objetos densos. Assim, o som permeia tudo e mantém o
controle sobre o mundo inteiro e sobre cada objeto no espaço (vastu). Todas as
transações, como o comércio e a aquisição de terras, e todas as comunicações
– quer aquelas feitas frente-a-frente ou à distância através da tecnologia – acon-
tecem por intermédio do som das palavras. No entanto, o som deste mundo não
passa de uma manifestação de aparā-śakti (a potência externa de Bhagavān) não
podendo, portanto, adentrar o mundo espiritual (vaikuṇṭha). O som material
circula livremente no universo material. Porém, esse som material controla ape-
nas o âmbito da matéria, no máximo sua ação tem efeito dentro das fronteiras
dos catorze sistemas planetários, mas não além deles.
As peculiaridades extraordinárias do som espiritual
Além desse som material, existe outra espécie de som chamado śabda-brahma,
que é a manifestação de Deus (Bhagavān) na forma de som. Esse som trans-
cendental (śabda-brahma) é o som do universo absoluto (Vaikuṇṭha), o objeto

150
Capítulo 10 - Nāma-cintāmaṇi

mais sutil do reino espiritual. O nome Kṛṣṇa é o mais sutil de todos os sons
transcendentais. O Kaṭhpaniṣad (1.2.20), descreve Kṛṣṇa como sendo ainda
mais sutil do que aquilo que há de mais sutil na existência. Kṛṣṇa é a mais su-
til de todas as personalidades e o som do Seu Nome é o mais sutil dos sons
transcendentais. Desse modo, o nome de Deus (Kṛṣṇa-nāma) é poderosíssimo
e capaz de controlar tudo o que existe.
O som comum deste mundo material não tem vida, ao passo que śabda-
-brahma é dotado de consciência. O som material precisa de um intermediário
pessoal ou mecânico para ser transmitido de um lugar a outro. No entanto,
śabda-brahma é tão poderoso que consegue viajar por intermédio de sua própria
vontade independente. O som material não possui forma espiritual, ao passo que
śabda-brahma possui uma lindíssima forma transcendental.
Todas as palavras de śabda-brahma correspondem a uma forma própria e
independente. Kṛṣṇa-nāma também possui uma forma eterna de beleza extra-
ordinária (svarūpa); Kṛṣṇa-nāma tem ouvidos, um nariz, uma boca, olhos, pés,
braços, uma cabeça e assim por diante. Essa forma se alimenta, caminha, é ca-
paz de se relacionar reciprocamente com outros indivíduos, descansa, concede
prazer e também saboreia a felicidade. É por isso que os devotos se referem a
Kṛṣṇa-nāma como sendo uma personalidade: Śrī Nāma Prabhu. Com este en-
tendimento, um dos membros do nosso guru-varga, Śrī Bhagavān dās Bābājī
Mahārāja – natural de Kālanā – costumava servir a Śrī Nāma Prabhu como se
serve à Deidade (vigraha), oferecendo-Lhe alimentos (bhoga), adoração (pūjā),
colocando-O para dormir e assim por diante.
Essas são apenas algumas das tantas razões pelas quais Kṛṣṇa-nāma é não
diferente de Śrī Kṛṣṇa. Ouvindo essas verdades podemos compreender a supe-
rioridade de Kṛṣṇa-nāma e porque Śrī Kṛṣṇa-nāma-saṅkīrtana é a principal en-
tre todas as formas de kīrtana.
Deve-se recitar o som transcendental cada vez mais
Conforme Śrīla Jīva Gosvāmī afirma em seu livro Śrī Harināmāmṛta-vyākaraṇa,
um dos objetivos da gramática sânscrita (vyākaraṇa) é reduzir o número de
vogais intrassilábicas (mātrās) sem perder o significado da frase. Quando os
eruditos conseguem reduzir o número de mātrās, eles experimentam uma fe-
licidade equivalente àquela de ser abençoado com o nascimento de um filho.
Porém, essa conquista, essa síntese, é digna de louvor apenas em relação aos
sons do mundo material, e não a śabda-brahma:
vaikuṇṭha-nāma-grahaṇam
aśeṣāgha-haraṁ viduḥ
Śrīmad-Bhāgavatam (6.2.14)

151
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Nesse caso, a palavra grahaṇam (aceitar) refere-se ao ato de cantar. Ao ser


cantado ou recitado, o nome que se origina em Vaikuṇṭha (śabda-brahma) tem
o poder de nos libertar de ilimitados pecados. Como a alma individual (jīva)
é parte integrante de Deus (Bhagavān), que por Sua vez é a personificação de
ānanda (bem-aventurança, amor e êxtase espiritual), a constituição da alma in-
dividual também é ānanda. Logo, é apenas quando recitamos constantemente
esse śabda-brahma que limpamos toda a impureza do nosso coração (citta) e ex-
perimentamos a bem-aventurança de realizar, de conhecer e de permanecermos
firmemente estabelecidos em nosso eu verdadeiro.
Com o objetivo de recitar um número cada vez maior dos Santos Nomes
de Deus que descendem a este mundo vindos da plataforma transcendental
(vaikuṇṭha-nāma), Śrīla Jīva Gosvāmī identifica substantivos pertencentes ao
gênero masculino (pul-liṅg) como sendo Nomes de Kṛṣṇa, e todos os substanti-
vos pertencentes ao gênero feminino (strī-liṅg) como sendo nomes de Lakṣmī,
e o gênero neutro (kliṇg-liṅg) como substantivos relativos ao espírito impessoal
(Brahman). Além do mais, as vogais, que são letras e sons inteiramente inde-
pendentes, são denominadas de sarveśvara (nome em sânscrito que significa o
Senhor dos senhores), ao passo que as consoantes, que sempre dependem das
vogais, são chamadas de viṣṇujana em sânscrito, ou seja, de“devotos”, porque os
devotos dependem de Viṣṇu (Deus).
Apenas o nome Kṛṣṇa contém a totalidade dos atributos do Supremo
Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura Prabhupāda costumava dizer que, em-
bora nos dicionários mundanos nomes como Kṛṣṇa, Rāma e Balarāma sejam
apresentados como sinônimos de vaikuṇṭha-nāma (Nomes de Deus que descen-
dem a este mundo vindos da plataforma transcendental), segundo o dicionário
espiritual, o único sinônimo do nome “Kṛṣṇa” é a própria palavra Kṛṣṇa. Ape-
nas Kṛṣṇa-nāma exprime de maneira correta e perfeita os atributos do Supremo
Deus – nenhum outro nome ou palavra pode exprimir tal conceito.
Śrī Nāma Prabhu não é nosso escravo
Śrī Nāma Prabhu tanto quanto o Senhor, é absolutamente independente e ili-
mitadamente misericordioso, todo poderoso e confere pleno destemor a quem
quer que nEle se refugie. Ele é a entidade superior em máximo grau e nós somos
os mais caídos. É impossível que cantemos o Santo Nome pelos nossos próprios
esforços, já que Śrī Nāma Prabhu não está sob nosso controle. Tudo o que po-
demos fazer é orar a Ele: “Óh Śrī Nāma Prabhu! Na poesia (kīrtana) de Śrīla
Bhaktivinoda Ṭhākura, ficamos sabendo que você surge na língua dos devotos
que cantam o Seu Nome da maneira mais pura:

152
Capítulo 10 - Nāma-cintāmaṇi

nārada muni, bājāya vīṇā


rādhikā-ramaṇa-nāme
nāma amani, udita haya,
bhakata-gīta-sāme
Gītāvalī, Śrī Nāmāṣṭaka (8.1)
Um desejo profundo brotou no coração de Nārada Muni: que o nome
Rādhikā-Ramaṇa se manifestasse em sua língua. Enquanto ele estava pro-
fundamente concentrado meditando nisso, seus dedos tocaram notas em
sua vina (instrumento de cordas), e a vina cantou Rādhikā-Ramaṇa. Ouvin-
do aquele vaikuṇṭḥanāma, o próprio Rādhikā-Ramaṇa Śrī Kṛṣṇa compre-
endeu o desejo de Nārada Muni e se manifestou em sua língua.
“Oh Śrī Nāma Prabhu (Oh personificação dos santos nomes de Kṛṣṇa)! Śrīla
Rūpa Gosvāmīpāda menciona igualmente em seu Śrī Kṛṣṇa-nāmāṣṭakam (8),
‘sphura me rasane rasena sadā – ‘Por favor manifeste-Se sempre em minha lín-
gua’. Neste exato momento que oro a Você com o mesmo sentimento”.
Quando śabda-brahma Śrī Nāma Prabhu, que é absolutamente auto-con-
trolado por natureza, conceder a Sua misericórdia imotivada e Se manifestar em
nossas línguas, nossas vidas serão abençoadas e, desse modo, totalmente bem-
-aventuradas.
ataḥ śrī-kṛṣṇa-nāmādi
na bhaved grāhyam indriyaiḥ
sevonmukhe hi jihvādau
svayam eva sphuraty adaḥ
Śrī Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.234)
Todos os objetos transcendentais que pertencem à esfera de Vaikuṇṭha –
entre eles nāma, rūpa, guṇa, līlā, dhāma, parikāras e vaiśiṣtya de Kṛṣṇa – jamais
podem ser percebidos pela alma condicionada através dos sentidos materiais.
Contudo, manifestam-se naturalmente por sua própria vontade para os mesmos
sentidos – a língua, os ouvidos, o nariz, a pele, os olhos e assim por diante – de
quem é sevonmukha, em outras palavras, aquele em quem surge o desejo de ser-
vir a Śrī Kṛṣṇa e aos Seus devotos.
Podemos então concluir que, se realmente desejamos cantar esse
vaikuṇṭhanāma transcendental, em primeiro lugar devemos nos tornar
sevonmukha. Para isso precisamos implorar pela misericórdia de Śrī Nāma
Prabhu com toda humildade e sinceridade, com o firme desejo de alcançar o
serviço a Śrī Bhagavān em Sua morada transcendental. Além disso, precisamos
deixar de lado nossa inclinação aos prazeres materiais (bhogonmukha-vṛtti). Em
outras palavras, é preciso que deixemos de invocar os nomes de Śrī Bhagavān
com o objetivo de satisfazer nossos egocêntricos desejos de desfrute material dos

153
Viśuddha Caytania-Vāṇī

sentidos, que são alheios à satisfação de Deus. Precisamos nos desvencilhar do


perverso conceito de que Śrī Nāma Prabhu está sob nosso controle e, ao invés
disso, devemos nos entregar por inteiro e, dessa maneira, aumenta cada vez mais
a nossa inclinação para servir Śrī Nāma Prabhu.
A fortuna do mendicante
Certa vez, um mendicante que não conseguia comida suficiente mesmo após um
dia inteiro pedindo esmolas, estava caminhando sozinho pela floresta, quando
viu vários pedaços de ferro largados no chão, que pareciam não ter dono. Ele
olhou com toda cautela para todas as direções e não viu ninguém por perto. Sem
desperdiçar nem um instante, com todo o entusiasmo ele pegou aqueles pedaços
de ferro, embrulhou alguns no pano do turbante que levava sobre sua cabeça,
depois encheu suas bolsas, carregou tudo o que pôde com suas mãos e continuou
caminhando. Apesar de estar carregando todo aquele peso, ele não sentia nenhu-
ma dificuldade. Na verdade, se considerava muito afortunado.
A forma mais natural de deixar o apego por objetos sem valor
é encontrar objetos mais valiosos
Após caminhar por certa distância, o mendicante encontrou um monte de pe-
daços de cobre no chão e, assim, largou todos aqueles pedaços de ferro que
estava carregando, porque entendeu que eles não tinham tanto valor quanto os
de cobre. Então ele encheu o pano do turbante e as bolsas com aqueles pedaços
de cobre, juntou tudo que conseguia carregar com as mãos e voltou a caminhar.
Mais adiante na estrada, ele encontrou bronze, prata e ouro, sucessivamente.
Tendo noção dos diferentes valores daqueles metais, ele se desfazia de tudo o que
tinha juntado antes e recolhia os novos metais mais valiosos.
A confusão é o resultado da falta de experiência
Ao caminhar um pouco mais, ele encontrou várias pilhas de diferentes tipos
de pedras preciosas. A primeira pilha continha um tipo de joia capaz de ilumi-
nar uma casa como se fosse o Sol (sūryakāntamaṇi); a segunda pilha era feita
de joias que emanavam um frescor comparável à esplêndida doçura do luar
(candrakānta-maṇi); na terceira, havia joias que emitiam brilhantes raios azuis
e enchiam o espaço à sua volta com um lindo tom azulado que se espalhava pelo
ar (nīlakānta-maṇi); depois, ele encontrou joias que transformam qualquer me-
tal que toquem em ouro (sparśa-maṇi); e, por fim, uma pilha de joias que todos
os dias produz quilos de ouro (śyāmantakamaṇi).
O mendicante ficou totalmente confuso ao ver aquelas diferentes espécies
de joias em um só lugar, tanto que achou que estivesse sonhando, ou que tivesse

154
Capítulo 10 - Nāma-cintāmaṇi

ido parar num país estrangeiro, ou que de alguma forma tivesse sido levado para
algum dos planetas celestiais. Apesar de já ter ouvido a respeito daquelas joias
preciosas, ele não conseguia decidir se deveria guardar o ouro ou jogá-lo fora e
pegar as joias que estavam bem na frente dele.
Nosso dever, sempre que estivermos confusos
O mendicante não tinha certeza se as joias eram verdadeiras ou falsas. Ele pen-
sou que se levasse as joias e elas fossem falsas, ele não só perderia o ouro, mas
também ficaria com pedras inúteis. Embora aquelas joias fossem mais do que
preciosas, ele duvidou da autenticidade delas porque não conseguia calcular o
seu valor. Se um joalheiro estivesse com ele naquela ocasião, poderia ter feito a
avaliação correta. Sem dúvida alguma um joalheiro teria descoberto o valor ver-
dadeiro de cada uma delas, bem como a maneira correta de usar todas as pedras
e seus respectivos preços no mercado.
Precisamos ficar alerta quando nos sentirmos confusos
Vale a pena mencionar neste contexto que nem todos os joalheiros têm o mes-
mo nível de expertise ou o mesmo caráter. Vários joalheiros poderão atribuir
valores drasticamente diferentes à mesma joia por conta de suas específicas ca-
pacidades e intenções. Visando o próprio benefício pessoal, alguns joalheiros
desonestos conscientemente atribuem um valor mais baixo a uma pedra muito
preciosa, para então comprar aquela joia ao preço que sugeriram, enquanto ou-
tros são capazes de dar um valor inflacionado às suas próprias pedras para se
aproveitar de um cliente sem conhecimento e obter um lucro exorbitante.
Cinquenta anos atrás em Hyderabad, o dono de uma loja de doces chama-
da Āgrā Sweets comprou uma casa velha. Durante a reforma daquela casa, um
trabalhador encontrou um diamante, mas como não sabia nada sobre diaman-
tes, achou que deveria ser um brinquedo. Por isso, ele deu o diamante ao dono
da casa dizendo: “Eu achei isso aqui. O senhor pode dar aos seus filhos”. O dono
da casa deu ao pedreiro dez rúpias de recompensa e levou o diamante. O traba-
lhador ficou muito satisfeito e elogiou o homem por sua generosidade. O dono
levou o diamante a um joalheiro que avaliou a joia em uma lākha (cem mil rú-
pias). E como o dono da casa era muito inteligente, ele não vendeu o diamante
em Hyderabad, mas o levou a Bengalor para avaliá-lo durante uma viagem de
negócios. O joalheiro de Bengalor avaliou o diamante em trezentas mil rúpias.
Mesmo assim, o dono não o vendeu, ao invés disso, levou a gema para Mumbai,
onde a mesma joia foi avaliada em um milhão de rúpias.
Pela história acima, podemos entender claramente que, embora o diamante
tivesse sido avaliado por três profissionais diferentes, cada um deles forneceu

155
Viśuddha Caytania-Vāṇī

cotações destoantes. A primeira razão para essa discrepância é a diferença entre


as respectivas capacidades profissionais de cada um ao avaliar o preço exato do
diamante. O segundo motivo é a cobiça daqueles joalheiros que desejavam obter
um lucro maior trapaceando ao avaliar o diamante com um preço mais baixo.
Uma joia que faz com que todas as outras não tenham valor
Cada coisa, todos os objetos neste mundo e nos catorze sistemas planetários
deste universo, inclusive todas as joias acima mencionadas, são por sua nature-
za definidos como jaḍa, ou seja, objetos sem consciência. Existe, porém, uma
pedra tão preciosa e especial diante da qual todas as joias do mundo físico, sem
exceção, se tornam tão insignificantes e abomináveis quanto excremento. Essa
joia ultra especial chama-se kṛiṣṇa-nāma-cintāmaṇi, a joia que satisfaz todos os
desejos, a joia dos Santos Nomes de Śrī Kṛṣṇa, que é, na verdade, a personifica-
ção das transcendentais doçuras da consciência:
nāma cintāmaṇiḥ kṛṣṇaś
caitanya-rasa-vigrahaḥ
Padma Purāṇa
As glórias dos Santos Nomes de Kṛṣṇa são compreendidas segundo
a capacidade de cada um
Apenas os devotos puros e auto realizados, que percebem por inteiro a potência
dos objetos transcendentais do mundo espiritual (Vaikuṇṭha), têm capacidade
para descrever as verdadeiras glórias desta joia tão magnífica, kṛṣṇa-nāma. Al-
gumas pessoas, incalculavelmente afortunadas em virtude do acúmulo de mé-
ritos espirituais (sukṛti), desta vida ou de vidas anteriores, alcançam a oportu-
nidade de ouvir as glórias do canto dos nomes puros de Kṛṣṇa (śuddha-nāma)
dos lábios desses tão queridos companheiros de Bhagavān, os vaiṣṇavas autor-
realizados. Mesmo assim, ainda não existem garantias de que semelhantes al-
mas afortunadas conseguirão compreender, aceitar ou perceber a importância
transcendental do nome puro (śuddha-nāma) no mesmo nível que o percebem
aquelas almas auto realizadas.
Cada praticante terá sua própria percepção segundo sua capacidade, com-
petência e inteligência.
As percepções dos desqualificados
Kṛṣṇa-nāma é a joia transcendental que satisfaz todos os desejos possíveis ima-
gináveis; a gama total dos desejos que alguém pode manifestar é imediatamente
satisfeita através do Santo Nome. Às vezes, os praticantes têm muito sucesso
em alcançar objetivos materiais ao recitar o mahā-mantra hare kṛṣṇa e acabam

156
Capítulo 10 - Nāma-cintāmaṇi

imaginando que compreenderam plenamente a verdadeira potência transcen-


dental deste Nome tão glorioso.
Certa vez, todos os poços d’água de um lugar chamado Devaghar se esvazia-
ram por conta de um longo período de seca. Todos os moradores daquele lugar
ficaram tão desesperados por água que encarregaram os sacerdotes locais de rea-
lizar um sacrifício de fogo que trouxesse a chuva de volta, mas todas as tentativas
dos sacerdotes foram em vão.
Desesperadas, um grupo de moças Marwari reuniu-se para realizar um can-
to em grupo (kīrtana) do mahā-mantra – Hare Kṛṣṇa Hare Kṛṣṇa Kṛṣṇa Kṛṣṇa
Hare Hare, Hare Rāma Hare Rāma Rāma Rāma Hare Hare – enquanto tocavam
tambores e outros instrumentos. Após algum tempo, a chuva começou. Desde
então, os moradores daquela aldeia praticam o mahā-mantra em kīrtana sempre
que há escassez de chuva. Porém, não sentem a necessidade de realizar o kīrtana
em outras ocasiões. Mas por acaso essa seria a glória verdadeira do Kṛṣṇa-nāma?
No município de Rāṇāghāṭa, havia um comerciante atacadista cujos clien-
tes, certa vez, atrasaram seu pagamento. E então ele não conseguiu pagar seus
credores que estavam insistindo em receber imediatamente. O comerciante es-
tava em sérios apuros e, não vendo outra solução, organizou um canto conjunto
do mahā-mantra por vinte e quatro horas. Logo depois do kīrtana, seus clientes
pagaram o que deviam e ele pôde quitar suas dívidas a tempo.
Esse comerciante costumava repetir tal história cheio de orgulho alegando
ser testemunha das verdadeiras glórias dos nomes de Deus (Kṛṣṇa-nāma). No
entanto, sua afirmação não passa de mera ilusão. Esses resultados triviais podem
ser obtidos pelo simples cantar dos Santos Nomes de maneira impura e ofensi-
va (nāma-aparādha) – consciente ou inconscientemente. Se esses resultados tão
triviais são considerados gloriosos, o que dizer, então, das verdadeiras glórias
de se cantar de maneira pura, sem ofensas, num sentimento de total rendição
(śuddhanāma)?
O fato de comprar um objeto qualquer, por mais precioso que ele seja, não
faz de seu comprador alguém capaz de compreender seu valor. Por exemplo,
após a morte de Hari Singh, o rei da Caxemira, seu filho e sua nora levaram a
maior parte dos seus pertences para a casa deles, deixando para trás apenas um
móvel antigo cheio de coisas inúteis. Eles trancaram o móvel e o deixaram no
palácio do rei falecido.
O móvel ficou ali sem ser tocado por muitos anos, até que o futuro primeiro
ministro da Caxemira, Sheikh Abdullah, ordenou que quebrassem a tranca do
móvel e tirassem todo o seu conteúdo. Entre os objetos, encontraram uma joia
tão singular e preciosa que nenhum joalheiro da Índia conseguiu avaliá-la e, por

157
Viśuddha Caytania-Vāṇī

isso, tiveram que trazer um joalheiro da França, que espantou todo mundo ao
declarar que o valor da joia era em torno de quinhentos crore (1 crore equivale a
dez milhões de rúpias).
Os Sikhs alegaram que a joia pertencia ao seu soberano, Ranjeet Singh; já o
povo da Caxemira disse que a joia era deles, e o governo indiano afirmou que a
joia era um bem nacional e que por isso eles deveriam ser seus donos legítimos.
O verdadeiro valor do Kṛṣṇa-nāma pode ser compreendido por intermédio
da companhia das almas autorrealizadas (sādhu-saṅga)
Enquanto a joia da Caxemira ficou guardada naquele móvel ninguém tinha
noção do seu tremendo valor. Da mesma maneira nós ignoramos totalmente as
glórias do Kṛṣṇa-nāma.
Mesmo que grandes personalidades nos informem das glórias do canto dos
Santos Nomes, isso parece não ser suficiente para nos inspirar a considerar o
mahā-mantra como sendo nossa vida e nossa alma. Primeiro temos que con-
quistar qualificação para só então considerarmos a joia dos Nomes Sagrados que
realiza todos os desejos (nāma-cintāmaṇi) nossa posse mais valiosa. A esse res-
peito, Śrīla Jagadānanda Paṇḍita, companheiro íntimo de Śrīman Mahāprabhu,
escreveu:
ĵadi kôribe kṛṣṇa-nāma sādhu-saṅga kara
bhukti-mukti-siddhi-vāñchā dūre parihara
Prema-vivarta (7.3)
“Se você deseja cantar os nomes de Kṛṣṇa (Kṛṣṇa-nāma), fique na com-
panhia dos devotos puros e rejeite todos os desejos de obter prazer dos
sentidos, libertação e poderes místicos”.

‘sādhu-saṅge kṛṣṇa-nāme’—ei mātra cāi


saṁsāra jinite āra kona vastu nāi
Prema-vivarta (6.13)
Deseje apenas estar na companhia de devotos puros e cantar o Kṛṣṇa-
-nāma. Fora isso não há outra maneira de superar o ciclo de nascimen-
tos e mortes neste mundo material”.
Nāma-cintāmaṇi
śrī hari-vāsare hari-kīrtana-vidhāna
nṛtya ārambhilā prabhu jagatera prāṇa
puṇyavanta śrīvāsa-aṅgane śubhārambha
uṭhilô kīrtana-dhvani ‘gopāla’ ‘govinda’
Śrī Caitanya-bhāgavata (Madhya-khaṇḍa 8.138, 139)

158
Capítulo 10 - Nāma-cintāmaṇi

As escrituras ensinam que devemos sempre cantar os Santos Nomes (hari-


-kīrtana) no dia de Ekādaśī (Hari-vasāra), o dia em que Deus (Śrī Hari)
abençoa e aceita como sendo de Sua propriedade. Para dar exemplo dis-
so, o Avatar Dourado, Śrīman Gaurahari, iniciou o auspicioso movimen-
to do canto congregacional dos Santos Nomes de Kṛṣna (saṅkīrtana) em
Śrīvāsaaṅgan, o abençoado pátio da casa de Śrīvāsa Ṭhākura, num dia de
Ekādaśī. Os sons dos florescentes nomes de Śrī Kṛṣṇa, entre eles ‘Gopāla’,
‘Govinda’ e outros, reverberaram ali. Ouvindo as melodias transcenden-
tais, Śrī Caitanya Mahāprabhu, aquele que é na verdade a vida e a alma
de todos os seres vivos, de repente começava a dançar em êxtase.

159
Quem e verdadeiramente humilde?
-

Em seu comentário ao Śrī Caitanya-caritāmṛta, intitulado Amṛta-pravāha-


bhāṣya, Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura faz referência a um verso do Śrīmad-Bhāgavatam
(1.1.2) que se inicia com as palavras dharmaḥ projjhita-kaitavo, no qual ele ca-
racteriza o nirmatsara como um indivíduo altruísta cujo coração está repleto de
compaixão por todos os seres vivos.

Boas qualidades só podem ser consideradas virtudes quando estão


relacionadas ao Supremo
A menos que alguém tenha compaixão por si mesmo, não é possível ter com-
paixão pelos demais. Caso a consciência do nosso relacionamento eterno com
Bhagavān (sambandha-jñāna) ainda não tenha se manifestado, então qualquer
qualidade percebida externamente e que pareça ser compaixão ainda não pode
ser considerada compaixão genuína. Nesse tipo de compaixão aparente com
certeza estão presentes traços de egoísmo. Apenas quando compreendermos
sambandha- jñāna em seu grau superlativo conseguiremos enxergar todos os
seres vivos como partes integrantes do Senhor. Nesse momento, tal pessoa pen-
sará: “Se através do meu esforço for possível despertar a consciência de Kṛṣṇa
neste indivíduo, e ele se ocupar no serviço a Deus, então o Supremo Śrī Kṛṣṇa
ficará satisfeito comigo e me recompensará com os tesouros do seu divino amor
(prema-dhana). Portanto, cuidarei desse ser vivo em particular, para satisfazer
meu Senhor”.
Aquelas pessoas nas quais a relação com Deus (sambandha-jñāna) ainda
não amadureceu devidamente, apreciam, seguem e ensinam ideologias que tra-
zem como consequência a conquista do dharma (religiosidade), de artha (ri-
queza), de kāma (prazer dos sentidos) e de mokṣa (libertação). Tais pessoas, na
verdade, expressam malícia (matsaratā) e são desalmadas (nirmama), além de
serem enganosas e cruéis não somente com os seus próprios alunos mas tam-
bém consigo.
Embora o gesto desse tipo de professor enganoso externamente pareça algo
positivo e isento de qualquer crueldade, é somente após uma análise cuidadosa
que poderemos compreender todas as verdades a esse respeito.

161
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Madhusūdana Rāya e o sábio Rāmānandī


Quando eu era jovem, um colega de classe chamado Madhusūdana Rāya certa
vez encontrou um sábio (sādhu) Rāmānandī, um seguidor de Śrī Rāmānanda
– santo Śrī-vaiṣṇava da Índia medieval –, viajando em um elefante conduzido
por um tratador. Quando chegaram diante de um riacho, o tratador perguntou
ao meu colega de infância: “A água desse rio é muito profunda? Será que nosso
elefante pode atravessar com segurança até o outro lado?” O menino primeiro
prestou suas respeitosas reverências ao santo Rāmānandī e, então, com toda edu-
cação, demonstrando conhecer as dimensões do rio, orientou-os a tomar um ca-
minho que atravessava um pântano, ao invés de indicar o caminho pela água rasa.
O santo Rāmānandī, impressionado com o cavalheirismo do menino, con-
fiou nele e, assim, pediu que o seu servo seguisse o caminho recomendado.
Logo em seguida, enquanto meus amigos e eu voltávamos para casa da es-
cola, ficamos sabendo da notícia de que um santo Rāmānandī, o condutor e seu
elefante haviam ficado presos num pântano. Fomos até lá ver o que acontecia e
descobrimos que a situação era grave. Quanto mais o condutor fazia o elefante se
mexer, mais eles afundavam no pântano. Apesar de todos os esforços, o elefante
e o condutor não conseguiram se livrar daquela situação. O santo Rāmānandī
estava em prantos.
Vendo aquela cena de dar dó, eu pedi que um colega de escola notificasse o
principal proprietário de terras da nossa aldeia, quel era um vaiṣṇava iniciado na
linhagem de Śrī Śyāmānanda. Ao ficar sabendo da terrível situação ele mandou
dois elefantes e um caminhão para resgatar o grupo.
Com extrema dificuldade e incontáveis esforços, o elefante foi retirado do
pântano. Externamente, meu colega de infância Madhusūdana Rāya não demons-
trou nenhum gesto evidente de crueldade em relação ao santo Rāmānandī – tal
como atirar nele, atacá-lo com uma faca, usar linguagem chula, ou qualquer outro
tipo de abuso físico ou mental –, contudo, apesar de ter prestado suas reverên-
cias (praṇāmas) e pronunciado palavras de respeito, ninguém descreveria o que
Madhusūdana Rāya fez como um ato totalmente livre de malícia (nirmatsaratā).
Na verdade, teria sido melhor que ele não tivesse falado nada para o santo, ou
que confessasse sua ignorância dizendo não saber qual era o caminho seguro e
aconselhasse que eles perguntassem isso para outra pessoa.
Apesar de parecer que o santo foi a única vítima, será que Madhusūdana
Rāya não vai sofrer uma reação negativa por semelhante ato de malícia? Como
diz o ditado: “Toda ação gera uma reação contrária e de igual intensidade”. Tratar
os outros com malícia (matsara) é ser cruel consigo mesmo, pois quem age será
obrigado a experimentar os frutos de suas próprias ações.

162
Capítulo 11 - Quem é verdadeiramente humilde?

Apenas instruções de absoluta humildade fazem parte do conhecimento


devocional perfeito, bhāgavata-dharma
Após nascer incontáveis vezes dentre as 8.400.000 espécies de vida deste univer-
so, almas extremamente afortunadas alcançam a raríssima forma humana. Ape-
nas os seres humanos são qualificados para trilhar o caminho da autorrealização
e, assim, alcançar a morada transcendental de Bhagavān, o destino supremo de
todos os seres vivos. No entanto, a potência material ilusória (māyā) do Senhor é
tão poderosa que apenas uma alma profundamente correta e sincera, e que tenha
acumulado grande quantidade de ações benéficas, pode se libertar das garras da
ilusão e cultivar o desejo de trilhar o caminho da compreensão espiritual. Isso é
realmente algo muito raro.
Se o guru não orienta seu discípulo a seguir o mais elevado caminho de
bhakti-yoga (que rapidamente o conduzirá à infinita morada transcendental),
mas ao invés disso o desorienta, estimulando-o a seguir os caminhos do dharma,
de artha, de kāma ou de mokṣa (escolhas que forçam o ser vivo a permanecer va-
gando pelos catorze sistemas planetários deste universo material); ou ainda, se o
mesmo guru indica qualquer outro caminho como, por exemplo, o caminho das
ações que promovem o bem-estar e o avanço material (karma), o da aquisição de
conhecimento desprovida de devoção ao Supremo (jñāna), o do ascetismo por
si só (tapa) e o caminho da caridade como um meio único de autorrealização
(dāna) – tais caminhos não passam de longas e cansativas rotas, cheias de curvas
e atropelos que fazem com que o buscador não sobreviva ao processo – então,
deve-se compreender que essa orientação é imprópria e que está contaminada
por matsaratā (malícia).
Para exprimir isso, Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura escreve em seu Kalyāṇa-
kalpataru (3.1.4):
āre mana, ki vipada hôilo āmāra māyāra durātmya-jvare,
vikāra jīvere dhare tāhā hôite pāite nistāra
Minha querida mente, veja que calamidades eu enfrento nesta vida. Pa-
deci de uma febre alta, sob a forma do imenso sofrimento causado pela
ilusão material (devido aos meus próprios erros). Tal febre ardia em mim
como um incêndio. Por isso eu procurava um meio de me livrar deste mal”.
sādhinu advaita mata, ĵāhe māyā haya hata
viṣa sebi’ vikāra kaṭilô kintu e durbhāgya mora,
vikāra kaṭilô ghora viṣera jvālāya prāṇa gelô

163
Viśuddha Caytania-Vāṇī

“Para me libertar do fogo das aflições materiais eu havia escolhido o ca-


minho do advaita-vedanta (a filosofia não-dualista que prega que a alma
individual é igual ao Supremo). Este caminho sugere abolir a existência
pessoal e fundir nosso eu individual no Brahman, a refulgência do corpo
transcendental de Śrī Kṛṣṇa, para que meu sofrimento material deixasse
de existir. Bebendo desse veneno, acreditei que teria aliviado meus sofri-
mentos, mas veja meu infortúnio: agora essa escolha estraga e queima a
minha própria vida”.
‘āmi brahma ekamatra’, e jvālāya dahe gātra
ihara upāya kiba bhāi? vikāra ĵe chilô bhālô, ausadha jañjāla hôilo
ausadha-ausadha kothā pāya?
“Sinto que teria sido melhor continuar sofrendo como antes, já que o
pseudo remédio da filosofia māyāvāda, a ideia segundo a qual “Eu sou o
Brahman (o Espírito)”, representa um terrível problema, cuja chama quei-
ma meu corpo inteiro. Por favor, diga-me onde encontrarei o antídoto que
cura o efeito ardente deste falso remédio? Onde poderei encontrar um
sábio (sādhu) que, como um médico, possa prescrever a cura definitiva
para me aliviar dessa infecção e do efeito negativo desse veneno que por
equívoco eu tomei?”
A jīva (alma), por sua própria constituição, é imortal e transcendente. Seu
dever constitucional eterno (sva-dharma) é prestar serviço devocional amoroso
ao Supremo Senhor Śrī Kṛṣṇa e conquistar kṛṣṇa-prema (amor puro por Deus).
Pretensos e maliciosos (matsaras) gurus costumam declarar que o sva-
dharma da jīva consiste em atividades piedosas materiais (puṇya), atividades
ímpias (pāpa) e atividades praticadas para se conquistar liberação (mokṣa) e, por
isso, é extremamente difícil que pessoas inocentes consigam diferenciar entre
sva-dharma e as demais atividades que parecem semelhantes à sva-dharma, só
que, na verdade, são chala-dharma (religião enganosa).
pṛthivīte ĵata kathā dharma-nāme cale bhāgavata kahe
saba paripūrṇa chale
Jaiva Dharma (Phala Śruti 1)
“Tudo que se realiza neste mundo em nome do dharma é condenado pelo
Śrīmad-Bhāgavatam como sendo uma espécie de trapaça”.
Considera-se que o resultado de semelhantes atividades leva a um fruto
contrário àquilo que se deseja. Ocupar-se em karma, conhecimento sem devo-
ção (jñāna) e prazer dos sentidos, ou ensinar filosofia espiritual com o desejo
de alcançar objetivos materiais em nome do dharma, tudo isso leva à decepção.
Esses esforços, aparentemente espirituais, pertencem ao âmbito da ignorância
(tamo-dharma).

164
Capítulo 11 - Quem é verdadeiramente humilde?

Somente aquelas atividades realizadas com objetivo de obter conhecimento


verdadeiro a respeito do serviço devocional amoroso a Śrī Kṛṣṇa e que visam a
obtenção do amor puro por Deus (kṛṣṇa-prema) é que constituem o caminho
mais elevado e correto (śreya-mārga). Os professores que ensinam exclusiva-
mente este assunto são, de fato nirmatsara-sādhus, ou santos cheios de compai-
xão. Apenas as diretrizes de semelhantes indivíduos – e de ninguém mais – po-
dem de fato ser consideradas isentas de qualquer vestígio de engodo, pois eles
nos aconselham a como seguir o sva-dharma mais elevado.

165
Como realizar dhäma-parikramä

Como obter verdadeiro benefício ao fazer as peregrinações aos


locais sagrados (dhāma-parikramā)
Em seu livro Prema-bhakti-candrikā (2.5), Śrīla Narottama dāsa Ṭhākura escre-
ve:“tīrtha-jātrā pariśrama kevala manera bhrama – o esforço que se faz ao visi-
tar lugares de peregrinação não passa de confusão mental”. Em outras palavras,
“É mera ilusão achar que podemos conseguir mérito espiritual visitando lugares
de peregrinação”. Quem ouve isso pode ser levado a concluir que a realização do
dhāma-parikramā (peregrinação nas terras sagradas) não traz benefício algum.
No entanto, nas páginas do Śrīmad-Bhāgavatan (9.4.20), Śrī Śukadeva Gosvāmī
glorifica Ambarīṣa Mahārāja e descreve a maneira como ele utilizava todos os
seus sentidos a serviço de Śrī Kṛṣṇa Bhagavān: “pādau hareḥ kṣetra-padānusarpaṇe
– Ele usava suas pernas para caminhar em direção aos lugares onde Śrī Hari
realizou Seus passatempos”. Portanto, como podemos harmonizar essas duas
perspectivas aparentemente diferentes a respeito da prática do parikramā?
Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura revela o verdadeiro significado da afirmação de
Śrīla Narottama dāsa Ṭhākura mencionada anteriormente. Ao fazê-lo ele har-
moniza a frase que fala da peregrinação como algo aparentemente inútil e o fa-
moso verso do Śrīmad-Bhāgavatam:
gaura āmāra, ĵe-saba sthāne karalô bhramaṇa raṅge se-saba sthāna,
heribô āmi
praṇayi-bhakata-saṅge

Śaraṇāgati (6.3.3)
“Na companhia de praṇayi-bhaktas, eu hei de visitar e de contemplar to-
dos os lugares que meu Gaura alegremente visitou. O verdadeiro objetivo
de se realizar o parikramā é evoluir em bhakti e desenvolver amor e apego
aos lugares onde Kṛṣṇa realizou Seus passatempos. Esse apego é transmiti-
do do coração dos praṇayi-bhaktas (devotos que possuem transcendental
e profundo amor pelo Senhor) para os corações de quem aceita refúgio
em Seus pés de lótus. É apenas quando realizamos peregrinações santas
(parikramā) na companhia de semelhantes devotos puros e sob sua guia e
orientação que se obtém o máximo benefício.

167
Viśuddha Caytania-Vāṇī

O fogo da saudade toca quem está perto


Em 1956, durante a peregrinação de Vṛindāvana (vraja-maṇḍala parikramā),
meu paramārādhyatma Guru Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava
Gosvāmī, estava cantando um kīrtana em Bengali diante de Śrī Ādikeśavadeva:
ohe! vrajavāsī torā bole dāo kothā gele Kṛiṣhṇa pābo
“Oh habitantes da terra sagrada de Vṛindāvana (Vrajavāsīs)! Por favor,
digam onde devo ir para encontrar Kṛṣṇa”.
Como a maioria dos devotos presentes durante esse kīrtana eram do norte
da Índia, eles não conseguiram compreender o significado da letra em Bengali.
Mesmo assim, jorraram lágrimas dos olhos de todos os que ouviram a voz de
Guru Mahārāja, que era de derreter o coração. Eu jamais havia dançado antes du-
rante os kīrtanas, no entanto, o poder daquele kīrtana em particular foi tamanho
que meus pés começaram a se mexer e eu comecei a dançar sem nenhuma in-
tenção ou sequer sentir o menor desejo – era como se algo me forçasse a dançar.
Após o kīrtana do meu Guru Mahārāja, uma ilustre senhora (mātā-jī) de
Jagadhari, no Punjab, chamada Mitrarāṇī, aproximou-se de Śrī Śrīmad Bhakti
Vikāśa Hṛśīkeśa Gosvāmī Mahārāja, um discípulo de Śrīla Prabhupāda
Bhaktisiddhanta e perguntou: “O senhor poderia, por favor, explicar o sig-
nificado desse kīrtana que Mahārāja acabou de cantar?”. Quando Śrīla Hṛśīkeśa
Gosvāmī Mahārāja explicou o significado, ela disse: “A bem-aventurança trans-
cendental que experimentamos durante o kīrtana foi indescritível. Mas ao ouvir
o significado do kīrtana, a mesma espécie de êxtase não se manifestou no meu
coração. Pode me dizer por quê?”
Naquele momento, eu perguntei: “Mātā-jī, se a senhora não conhecia o sig-
nificado do kīrtana, por que, então, chorava enquanto ouvia?”
Ela respondeu: “Na verdade, eu não sei. Ao ouvir o kīrtana, começaram a
jorrar lágrimas de meus olhos, foi algo natural e espontâneo”.
Por causa do seu profundo amor, os praṇayi-bhaktas sentem viraha (sau-
dades) de Śrī Kṛṣṇa quando não conseguem ter o Seu darśana (a bênção da
visão da forma transcendental eterna de Deus). Se sinceramente realizamos o
parikramā na companhia de semelhantes vaiṣṇavas e ouvimos suas orientações,
então o viraha-agni (fogo dessa saudade espiritual) presente em seus corações
com certeza chegará aos nossos. Contudo, aqueles que realizam o parikramā
com devotos que não possuem amor transcendental pelo Senhor, jamais pode-
rão experimentar esses transcendentais sentimentos de saudade e separação.
Quando uma mãe perde seu filho pequeno, a dor e a angústia que ela sen-
te no seu coração podem ser transmitidas a todos à sua volta. Ao presenciar as
lágrimas caindo sem parar de seus olhos, as pessoas ficam tocadas pela aflição

168
Capítulo 12 - Como realizar dhāma-parikramā

da mãe e também começam a chorar. No entanto, se uma mulher solteira e sem


filhos finge a mesma dor e angústia, e grita: “Meu filho morreu!”, então, mesmo
chorando de dar dó, suas expressões tão falsas não terão impacto algum sobre
aqueles que a conhecem, e talvez tenham algum efeito, mas de curta duração,
naqueles que não a conhecem. De maneira semelhante, os verdadeiros frutos
da realização do parikramā, que são o amor profundo e o apego a Śrī Hari e a
lugares onde Ele realiza seus passatempos, jamais serão conquistados na compa-
nhia de devotos comuns. Pode ser possível, apesar de raro, que se experimente
sentimentos parecidos com a saudade na companhia dos devotos comuns, mas
esses sentimentos são apenas experiências fugazes – não são nem transcenden-
tais nem eternos.
Enquanto se assiste a um filme, alguém poderá, por alguns instantes, expe-
rimentar as emoções produzidas pelos atores, entretanto essas emoções se esvai-
rão em pouco tempo após o fim da história. Da mesma maneira, os sentimentos
experimentados por quem realiza parikramā na companhia de devotos que não
têm praṇaya (amor afetuoso) pelo Senhor e pelos lugares de Seus passatempos
se extinguirão rapidamente. Em semelhante grupo de devotos (saṅga) alguém
pode conseguir bons méritos karmicos (puṇya) ou se livrar de pecados passados,
mas jamais a fortuna espiritual que leva alguém a trilhar o caminho da devo-
ção (bhakty- unmukhī sukṛti). Isso para não falar de praṇaya, o verdadeiro fruto
amoroso de se realizar o dhāma-parikramā na companhia dos praṇayi-bhaktas.
Parikramā sem praṇayi-saṅga não é parikramā
Eu tive a boa fortuna de realizar o parikramā com meu Guru Mahārāja e muitos
outros discípulos de Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura. Eles
traziam sentimentos profundamente intensos de saudade em seus corações. Suas
palavras eram tão poderosas que experimentávamos imensa bem-aventurança
na companhia deles, apesar de estarmos ocupados da manhã até à noite no esfor-
ço físico de organizar a peregrinação.
Certa vez, durante o Vraja-maṇḍala parikramā de Govardhāna, o grupo
dos peregrinos chegou ao Govinda-kuṇḍa mais tarde do que o previsto no cro-
nograma.
Śrī Śrīmad Bhakti Pramoda Purī Gosvāmī Mahārāja dirigiu-se aos devotos
reunidos, dizendo: “Embora seja muito tarde e eu não seja um orador capaz,
Śrī Bhakti Dayita Mādhava Mahārāja me incumbiu do serviço de falar a respei-
to de cada local que visitamos lendo trechos do Śrī Chaitanya-Caritāmṛta, do
Bhakti-Ratnākara e de outras escrituras que descrevem as glórias desses lugares
sagrados. Não me incomoda falar aqui e agora, mas é tarde e há muitos outros
lugares para visitarmos. Todos vocês devem estar sentindo muita fome e, por

169
Viśuddha Caytania-Vāṇī

isso, falarei apenas se vocês quiserem ouvir – caso contrário, vamos contemplar
(darśana) os demais lugares agora e falaremos de suas glórias quando o tempo
assim permitir, para que vocês possam honrar o alimento oferecido a Deus
(prasāda) o quanto antes”.
Todos responderam quase em uníssono: “Temos bastante comida em nos-
sas casas, no entanto viemos realizar o parikramā e provar o néctar que o senhor
derrama em nossos ouvidos. Não estamos aqui apenas para comer, beber e dor-
mir. Por favor, tenha a bondade de narrar os passatempos que ocorreram nesses
lugares que estamos visitando”.
Então, Śrīla Purī Gosvāmī Mahārāja começou a ler os passatempos de Śrī
Mādhavendra Purīpāda e as glórias do Govinda-kuṇḍa no Śrī Chaitanya-
-Caritāmṛta. Em seguida, ele falou das glórias da colina que Kṛṣṇa levanta em
seus passatempos (Girirāja Govardhana) e recitou o Śrī Govardhana-vāsa-
-prārthanādaśakam, escrito por Śrīla Raghunātha dāsa Gosvāmī, no qual ele
ora: “nija-nikaṭa-nivāsaṁ dehi govardhana tvam! – Oh Girirāja Govardhana!
Por favor, permita-me morar perto de você”.
Todo o grupo ali presente ouvia com toda atenção e se mantinha tão quieto
que daria para ouvir um alfinete cair. Muitos derramavam lágrimas e ninguém sen-
tia fome nem sede, porque todos estavam plenamente concentrados no hari-kathā.
Hoje em dia, os devotos que realizam e organizam o parikramā não pre-
cisam se submeter ao mesmo árduo nível de esforço dos devotos do passado.
Eles têm tempo suficiente para relaxar e ouvir hari-kathā. Apesar disso, não pre-
senciamos o mesmo tipo de êxtase e bem-aventurança que experimentávamos
durante aqueles parikramās acontecendo nos grupos de hoje em dia.
Quando realizamos o parikramā na companhia de praṇayi-bhaktas, não te-
mos tempo para bobagens, pois ficamos completamente concentrados em ouvir,
cantar e lembrar das glórias de Kṛṣṇa e do Avatar Dourado. É apenas na compa-
nhia dos devotos puros que podemos compreender e realizar o verdadeiro bene-
fício de fazer as peregrinações no dhama sagrado.

170
Capítulo 12 - Como realizar dhāma-parikramā

171
O processo devocional deve
ser realizado sem trapacas
,

Um irmão espiritual meu de Bangladeche, chamado Manorañjana dāsa (que


depois de sua iniciação ficou conhecido como Madhumaṅgala dāsa), era mui-
to direto e simples por natureza. Ele tinha comprado um pedaço de terra em
Kṛṣṇanagara e também possuía uma loja ali por perto. Certa vez, fui visitá-lo
e ele mesmo cozinhou e me ofereceu prāsada, sentindo-se muito satisfeito em
me ver. Percebi que ele não tinha boas roupas e, por isso, ofereci para ele um
corte de tecido novo que eu tinha na mala. Embora ele não quisesse aceitar o
presente, dei o tecido para ele à força.
Após conversarmos por algum tempo, me dei conta de que, apesar dele ter
uma loja e uma boa porção de terra em Kṛṣṇanagara, sua natureza simples e
ingênua o mantinha numa condição de dar pena – pois não existia outro motivo
para ele estar naquele aspecto de indigente. Acabei sabendo que o servo dele ti-
rava proveito de sua simplicidade, pois embora parecesse que aquele servo estiva
trabalhando arduamente, ele estava enganando Madhumaṅgala Prabhu e cau-
sando um grande prejuízo. Ele não apenas roubava mercadorias, mas também
estava transferindo a loja para o seu próprio nome.
Diante daquilo, fiz o que pude para ajudar Madhumaṅgala Prabhu a se livrar
daquela situação da melhor maneira possível. Assim, sua situação acabou me-
lhorando. Por conta disso, ele desenvolveu uma confiança profunda em mim e,
mais tarde, transferiu sua terra para o meu nome. Quando eu lhe perguntei por
que ele tinha feito aquilo, ele respondeu: “Meu irmão quer ficar com essa terra e
me perturba o tempo todo querendo que eu passe a terra para o seu nome e não
me deixa mais em paz. Por isso, transferi a terra para você. Agora posso viver o
resto da minha vida em paz, sem medo que meu irmão me perturbe por causa
desse assunto. Não importa se o meu irmão vai ficar com essa terra ou vender
tudo depois da minha morte”.
Madhumaṅgala Prabhu abandonou o corpo poucos dias depois de transferir
a terra para o meu nome e, por isso, ele nunca me disse o que queria que eu fizesse
com ela. Após seu falecimento, seu irmão veio até mim e disse: “Mahārāja, eu que-
ro ficar em Kṛṣṇanagara. Como essa terra pertencia a meu falecido irmão, agora

173
Viśuddha Caytania-Vāṇī

sou o seu proprietário legítimo. Por favor, transfira a terra para o meu nome”.
Fazendo o que ele pediu, passei a propriedade da terra para o nome dele.
Quando os residentes do templo ficaram sabendo disso, me perguntaram sur-
presos: “Mahārāja! Madhumaṅgala Prabhu lhe deu a propriedade sobre essa ter-
ra. Por que você transferiu a terra para o nome do irmão dele? Como esse irmão
é um materialista, ele vai usar essa propriedade para o prazer dos seus próprios
sentidos. Não teria sido melhor vender a terra e usar o dinheiro a serviço do tem-
plo? Fazer isso traria benefício espiritual para Madhumaṅgala Prabhu”.
Eu respondi assim: “Por acaso eu poderia conquistar algum benefício es-
piritual servindo à maṭha através de meios impróprios? Alguma escritura reco-
menda a prática da trapaça como um ramo de bhakti? Como é possível que Śrī
Kṛṣṇa, o senhor das seis opulências e que Rādharāṇī, que é sarvalakṣmī-mayī (a
fonte de toda a prosperidade e de todas as potências de Deus, adorada até mesmo
pela própria deusa da fortuna, Lakṣmī Devi), experimentem qualquer tipo de
pobreza? Como então é possível aceitar algo obtido por meios ilegais para prestar
serviço devocional?
“Śrī Madhumaṅgala Prabhu não me instruiu claramente para utilizar sua
propriedade a serviço da maṭha. E ele a transferiu para o meu nome para evitar
complicações ou conflitos futuros enquanto estivesse vivo. Ele não doou a terra
para mim por qualquer outro motivo. Por acaso eu deveria me sentir proprietá-
rio ou apegado a esse bem material simplesmente porque ele abandonou o corpo
inesperadamente sem esclarecer que desejo tinha em relação à propriedade?”

Aceitar objetos segundo a própria capacidade


E eu continuei falando: “Não haveria problema algum em usar um objeto que
tivesse sido intencionalmente doado para o serviço da maṭha, de śrī guru, dos
vaiṣṇavas e de Bhagavān. Eu não aprendi a considerar a propriedade alheia
como minha para em seguida usá-la a serviço do Senhor Supremo”.
“Ao ensinar Śrīla Sanātana Gosvāmī, Śrīman Mahāprabhu nos deu uma li-
ção muito importante:
eta saba chāḓi’ āra varṇāśrama dharma akiñcana haĩyā laya
kṛṣṇaika-śaraṇa
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līla 22.93)
Desvencilhando-se de todas essas coisas negativas (más companhias, tru-
ques, hipocrisia e duplicidade [kutīnāt]), bem como o apego aos princípios do
varṇāśrama-dharma, o sádhaka deve render-se aos pés de lótus de Śrī Kṛṣṇa,
compreendendo que ele não precisa de nenhum outro refúgio ou meio”.

174
Capítulo 13 - O processo devocional deve ser realizado sem trapaças

Não temos como conquistar bem-estar espiritual se não abandonarmos o


apego à percepção mundana de lucro e prejuízo. Não me parece que eu tenha
adquirido a permissão de agir como eu bem quiser. Eu me sinto na obrigação
de cumprir as regras e proibições mencionadas nos textos sagrados. Talvez in-
divíduos competentes e espiritualmente qualificados conseguiriam usar objetos
adquiridos à força para o serviço do Senhor, mas eu me sinto desqualificado para
fazer isso. Se alguém assume ou se ocupa em algo que não condiz com à sua ca-
pacidade, ele terá que sofrer as consequências mais tarde”.

Use para o serviço apenas o que é doado voluntariamente


Uma irmã espiritual minha, Nandarāṇī devī dāsī, quis transferir a propriedade
de sua casa para o meu nome. Eu não aceitei a oferta dela e sugeri que ela transfe-
risse a propriedade para o nome do nosso templo. Ela respondeu que não se sen-
tia inclinada a fazer a doação para a maṭha e que queria apenas transferi-la para
o meu nome. Eu lhe disse: “Mātā-jī, seria impróprio da minha parte aceitar a
propriedade de sua casa como doação, pois não estou qualificado espiritualmen-
te para receber essa doação. E como você não deseja voluntariamente doar a casa
para a maṭha, meu coração não me permite aceitar agora para mais tarde ven-
dê-la e usar o dinheiro para o serviço da maṭha. Isso também seria inadequado”.
Em outra ocasião, uma senhora que morava perto do nosso templo de Calcutá
me nomeou como o titular de todos os seus depósitos, contas bancárias e outros
assuntos financeiros. Depois que ela abandonou o corpo, seu filho vinha com
frequência à maṭha perguntando por mim, mas eu não estava ali naquela época.
Quando voltei pra Calcutá, usei uma parte do dinheiro para realizar a cerimônia
de fogo para a sua alma (śrāddha), que incluiu um maravilhoso banquete ofere-
cido aos vaiṣṇavas. Assim, convidei todos os seus parentes, conforme ela havia
pedido. Após o encerramento da cerimônia, devolvi o restante do dinheiro ao
seu filho.
Muitas pessoas que observaram aquela cerimônia me disseram mais tarde
que também queriam que eu fosse o administrador dos seus bens, para que eu
providenciasse uma bela cerimônia de śrāddha depois que elas abandonassem o
corpo. Elas me disseram: “Nossos próprios filhos não vão realizar uma cerimô-
nia tão perfeita como essa”.
Não é que eu tenha deixado de usar o dinheiro daquela senhora a serviço de
śrī guru e dos vaiṣṇavas, eu usei o dinheiro para isso, no entanto, fiz exatamente
o que ela havia pedido. Já que ela não tinha dado nenhuma outra orientação para
o uso do restante do dinheiro, eu o devolvi para o seu filho. Não vi necessidade
alguma de estragar meu bem-estar espiritual ficando apegado ao dinheiro dela.

175
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Aceitar os objetos para nós mesmos provoca consequências


Certa vez, uma devota de Jagadhārī trouxe cobertores para todos os devotos da
maṭha. Ela distribuiu um tipo de cobertor para cada um deles e um cobertor
diferente e mais caro especialmente para mim. Eu disse: “Mātā-jī, só aceitarei
esse cobertor se a senhora estiver me dando para que eu o utilize a serviço do
templo. Se a senhora me disser que é para meu uso pessoal, então não me sen-
tirei na posição de aceitá-lo. Eu não tenho como aceitar um cobertor tão caro
para o meu próprio uso”.
Ouvindo aquilo, ela não me forçou a aceitar o cobertor. Depois disso, um
brahmacārī aproximou-se dela e disse: “Já que a senhora trouxe esse cobertor
com a intenção de doá-lo, pode dá-lo para mim”. Então a senhora deu o coberto
ao brahmacārī e, apesar de eu desconhecer o que aconteceu depois disso, vi que
ele deixou o templo para sempre alguns dias depois de aceitar o cobertor.

Dependa apenas de Bhagavān


A mensagem por trás dessa história é que, ao invés de depender das pessoas
deste mundo material ou da nossa própria capacidade de adquirir coisas enga-
nando os outros, devemos sempre depender do Senhor Supremo e da miseri-
córdia de Seus queridos devotos, tendo em mente as orientações dos ācāryas do
passado, perfeitamente resumidas por Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura:
nijera poṣaṇa, kabhu nā bhāvibô,
rahibô bhāvera bhare
Śaraṇāgati (3.3.5)
“Jamais pensarei em minha própria subsistência; pelo contrário,
permanecerei absorto em êxtase espiritual (bhāva)”.

śrī-kṛṣṇa-bhajane, anukūla ĵāhā,


tāhe ha’bô anurāgī
bhajanera ĵāhā, pratikūla tāhā, dṛḓha-bhāve teyāgibô
Kalyāṇa-Kalpataru (Ucchvāsa 2.6.3, 4)
“ Vou me apegar apenas àquilo que seja favorável ao bhajana de Śrī Kṛṣṇa. Com
toda convicção, vou rejeitar tudo o que é desfavorável para o bhajana.”

jīvana-nirvāhe āne udvega nā


dibe para-upakāre nija-sukha
pāsaribe
Gītāvalī (2.3.4)
“No decorrer da vida, não cause ansiedade a ninguém. Pelo benefício alheio,
esqueça do seu próprio conforto”.

176
Capítulo 13 - O processo devocional deve ser realizado sem trapaças

Considerando tudo como sendo providência divina de Śrī Kṛṣṇa e dos Seus
devotos, o praticante (sadhaka) deve aceitar respeitosamente sua situação atual
e, mantendo-se satisfeito em praticar kṛṣṇa-bhakti amorosamente. Ocupando-
-nos dessa maneira, conquistaremos a misericórdia do Senhor e dos Seus devo-
tos e, assim, alcançaremos a meta mais elevada.

177
Os mais queridos, incomparavelmente
misericordiosos e poderosos comandantes
do exercito de Çré Caitanya Mahäprabhu

Primeira parte
Ao dirigir-se de maneira simbólica à própria mente no Manaḥ-śikṣā (7), Śrīla
Raghunātha dāsa Gosvāmī nos aconselha a sempre prestar serviço devocional
sincero aos queridos comandantes do exército de Śrīman Mahāprabhu:
pratiṣṭhāśā dhṛṣṭā śvapaca-ramaṇī me hṛdi naṭet
kathaṁ sādhu-premā spṛśati śucir etan nanu manaḥ
sadā tvaṁ sevasva prabhu-dayita-sāmantam atulaṁ
yathā tāṁ niṣkāśya tvaritam iha taṁ veśayati saḥ
“Oh, mente, como pode o puro amor divino brotar em meu coração se o
desejo de fama e prestígio (pratiṣṭhā) dança com audácia dentro do meu
peito – como uma meretriz interesseira, uma comedora de cachorros? Por
isso, sempre se lembre e sirva aos incomparáveis e poderosos comandantes
do exército de Śrī Krsna, os queridos devotos do Senhor. Eles removerão
de uma vez por todas esse desejo impuro e iniciarão o imaculado fluxo
de amor que os habitantes da morada sagrada (vraja-prema) sentem por
Deus em seus corações”.
Esses companheiros íntimos de Śrīman Mahāprabhu consideram que o Senhor
é o favorito dos seus corações, ainda mais querido do que suas próprias vidas. A
profundidade da fé que eles sentem por Deus e pelas Suas palavras e instruções
é tamanha, que eles vivem da maneira mais pura seguindo os princípios que o
Avatar Dourado pregou e praticou. Śrīman Mahāprabhu enviou pessoalmente
essas personalidades a este mundo para o bem-estar específico de almas caídas e
condicionadas como nós.
Em Śrī Navadvīpa-dhāma, Śrīman Mahāprabhu deu as primeiras ordens para
a marcha de Seus comandantes, Śrī Nityānanda Prabhu e Śrīla Haridāsa Ṭhākura:
śunô śunô nityānanda, śunô haridāsa
sarvatra āmāra ājñā karahô prakāśa
prati ghare ghare giyā karô ei bhikṣā ‘bôlô
Kṛiṣhṇa, bhajô Kṛiṣhṇa, karô Kṛiṣhṇa-sikṣā’
ihā bai āra nā bôlibā, bôlāi
bādina-avasāne āsi’ āmāre kahibā
Śrī Caitanya-bhāgavata (Madhya-khaṇḍa 13.8-10)

179
Viśuddha Caytania-Vāṇī

O Senhor disse: “Oh, Nityānanda! Oh, Haridāsa! Ouçam. Façam com que a
Minha ordem fique conhecida em toda parte. Vão de casa em casa e implorem a
todos os moradores da seguinte maneira: ‘Cante o nome de Kṛṣṇa, sirva a Kṛṣṇa
e aprenda sobre Kṛṣṇa!”. Nesse verso, “aprenda sobre Kṛṣṇa” refere-se aos ensi-
namentos transmitidos por Kṛṣṇa a Arjuna, a Uddhava, aos Vrajavāsīs e aos de-
mais, bem como às palavras faladas a respeito de Kṛṣṇa por Śrī Brahmā, Śukadeva
Gosvāmī, Bilvamaṅgala Ṭhākura, Jayadeva Gosvāmī e outros.
Śrīman Mahāprabhu prosseguiu: “Não falem nem façam ninguém falar de
outro assunto além de Kṛṣṇa. Ao final do dia, voltem aqui e Me relatem tudo o
que aconteceu”.
Assim como um rei, Śrīman Mahāprabhu quis expandir Seu reino e por isso
revelou aos Seus comandantes Śrī Nityānanda Prabhu e Haridāsa Ṭhākura Seu
desejo de conquistar o império de māyā, a potência ilusória de Bhagavān, e trans-
formar seus residentes em cidadãos naturalizados do Seu próprio reino espiritual.
Todo comandante de exército deve derrotar o inimigo, protegendo e expan-
dindo os limites do império de seu rei. Śrī Nityānanda, o principal comandante
do exército de Śrīman Mahāprabhu, tinha tanta avidez em servir à ordem do Se-
nhor que - sem nenhum interesse pessoal, colocando Sua própria vida em risco
- transmitiu a mensagem de seu mestre aos mais pecaminosos, como os bêbados
Jagāī e Mādhāī. Śrī Nityānanda Prabhu compreendeu literalmente a ordem de
Śrīman Mahāprabhu que os orientou a pregar para todos. Por isso, Nityānanda
quis que mesmo as almas mais pecaminosas tomassem consciência da pura
mensagem divina. Afinal, por que elas deveriam ser deixadas de fora?
Śrīla Raghunātha dāsa Gosvāmī refere-se a esses discípulos, os comandantes
do exército de Śrīman Mahāprabhu como atulam, incomparáveis. Eles detêm
capacidades inigualáveis, podendo manifestar uma energia extraordinária, ca-
paz de transformar até os mais pecaminosos, não apenas em devotos comuns,
mas também em mahā-bhāgavatas, ou seja: nos mais elevados e auto realiza-
dos devotos do Senhor, devotos capazes de trazer para todos os seres vivos deste
mundo, o mais elevado bem-estar eterno.
Foi apenas pela misericórdia imotivada de Śrī Nityānanda que Jagāī e
Madhāī obtiveram a misericórdia de Śrīman Mahāprabhu:
brahmāra durlabha āji e dõhāre dibô
e dõhāre jagatera uttama kôribô
e dui-paraśe ĵe kôrilô gaṅgā-snāna
e dõhāre bôlibe se gaṅgāra samāna
nityānanda-pratijñā anyathā nāhi haya
nityānanda-icchā ei jānihô niścaya
Śrī Caitanya-bhāgavata (Madhya-khaṇḍa 13.232-3)

180
Capítulo 14 - Os mais queridos, incomparavelmente misericordiosos e poderosos comandantes
do exercito de Śrī Caitanya Mahāprabhu

Śrī Caitanya Mahāprabhu disse aos devotos reunidos: “Hoje vou conceder
a Jagāī e Mādhāī uma bênção que é difícil de se obter, inclusive para o próprio
Brahmā. Eu os transformarei nos devotos mais honrados do mundo. Todos
aqueles que antes corriam para se lavar no Ganges após encostar neles, a partir
de agora dirão que esses dois homens são tão puros como a própria mãe Gaṅgā.
Uma promessa, um voto que Śrī Nityānanda Prabhu pronuncie, não podem ja-
mais deixar de ser cumprido. Por favor, estejam certos de que tudo isso acaba de
acontecer exclusivamente por causa do desejo de Śrī Nityānanda Prabhu”.
Com relação a Jagāī e Mādhāī, Śrī Vṛndāvana dāsa Ṭhākura Mahāśaya escreve:
kāra śakti bujhite caitanya-abhimata
dui dasyu kare dui mahābhāgavata
Śrī Caitanya-bhāgavata (Madhya-khaṇḍa 13.243)
“Quem pode compreender o misterioso plano de Śrīman Mahāprabhu?
Ele transformou dois ladrões em mahā-bhāgavatas, os mais elevados de-
votos do Senhor”.
Pela misericórdia de Śrīla Haridāsa Ṭhākura, uma prostituta chamada
Lakṣahīrā transformou-se em uma elevada e respeitada devota de Kṛṣṇa:
prasiddhā vaiṣṇavī hôilô parama-mahāntī
baḓô baḓô vaiṣṇava tāra darśanete ĵānti
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līla 3.142)
“A prostituta tornou-se assim uma vaiṣṇavī renomada e avançadíssima.
Muitos vaiṣṇavas proeminentes iam visitá-la”.

Segunda parte
Em uma conversa entre Śrī Caitanya Mahāprabhu e Śrī Rāmānanda Rāya a res-
peito da excelência da poesia de Śrīla Rūpa Gosvāmī, Mahāprabhu glorificou
Śrīla Rūpa Gosvāmī e seu irmão Śrīla Sanātana Gosvāmī da seguinte maneira:
prabhu kahe, – prayāge ihāra hôilô milana
ihāra guṇe ihāte āmāra tuṣṭa hôilô mana
ĩhāra ĵe jyeṣṭha-bhrātā, nāma – ‘sanātana’
pṛthivīte vijña-vara nāhi tāra sama
tomāra ĵaiche viṣaya-tyāga, taiche tāra rīti
dainya-vairāgya-pāṇḍityera tāhātei sthiti
ei dui bh āiye āmi pāṭhāilũ vṛndāvane
śakti diyā bhakti-śāstra kôrite pravartane
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līla 1.197, 200-202)
“Rūpa encontrou-se comigo em Prayāga. Por causa de suas virtudes, meu co-
ração ficou satisfeito com ele. Seu irmão mais velho, cujo nome é Sanātana,

181
Viśuddha Caytania-Vāṇī

é um sábio sem comparação neste mundo. A renúncia aos vínculos mate-


riais de Sanātana é como a tua, Rāmānanda. Ele é a personificação perfeita
da humildade sem o menor traço de hipocrisia ou duplicidade, ele personi-
fica yukta-vairāgya (a renúncia mais completa) e a excelência da erudição
espiritual – ele é versado nas conclusões perfeitas dos Vedas (siddhānta) e
nas emoções e êxtases puros experimentados através do amor devocional
(rasa de prema-bhakti) e conhece ambas coisas profundamente. Eu con-
cedi poder a esses dois irmãos, para que fossem a Vṛndāvana expandir e
difundir a literatura sobre a devoção a Deus (bhakti)”.
Durante seu encontro em Jagannātha Purī, Śrī Caitanya Mahāprabhu disse
a Śrīla Sanātana Gosvāmī:
tomāra śarīra – mora pradhāna ‘sādhana’
e śarīre sādhimu āmi bahu prayojana
bhakta-bhakti-Kṛiṣhṇa-prema-tattvera nirdhāra
vaiṣṇavera kṛtya, āra vaiṣṇava-ācāra
Kṛiṣhṇa-bhakti, Kṛiṣhṇa-prema-sevā-pravartana
lupta-tīrtha-uddhāra, āra vairāgya-śikṣaṇa
nija-priya-sthāna mora – mathurā-vṛndāvana
tāhā eta dharma cāhi kôrite pracāraṇa
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līla 4.78-81)
“Seu corpo é o meio pelo qual Eu alcançarei muitos objetivos. Você vai
estabelecer as verdades relativas aos vaiṣṇavas, à bhakti e ao amor a Śrī
Kṛṣṇa; vai apresentar os princípios relativos aos rituais sagrados, à ética e à
etiqueta dos vaiṣṇavas, e vai consolidar as verdades a respeito de Kṛṣṇa-
-bhakti e do serviço repleto de amor a Śrī Kṛṣṇa; quero que você revele
os lugares dos passatempos do Senhor que se perderam com o tempo; e
que ensine a renúncia verdadeira. Mathurā-Vṛndāvana é uma região muito
querida para Mim, e é de lá que Eu desejo que se distribuam todas essas
coisas pelo mundo, por teu intermédio.”
Assim, Śrīla Kṛṣṇa dāsa Kaviraja Gosvāmī escreve em seu Śrī Caitanya-
Charitāmṛta (Ādī-līlā 7.164) escreveu:
mathurāte pāṭhāilô rūpa-sanātana
dui senā-pati kôilô bhakti pracāraṇa
“Śrīman Mahāprabhu enviou dois comandantes, Śrī Rūpa e Sanātana
Gosvāmī, à Vraja-maṇḍala para pregar bhakti yoga”.
Durante seu encontro em Jagannātha Purī, Śrī Caitanya Mahāprabhu disse
a Śrīla Sanātana Gosvāmī:
Śrīla Rūpa Gosvāmī e Śrīla Sanātana Gosvāmī manifestam os passatempos
(vraja-līlā) de Śrī Kṛṣṇa
Śrīla Kṛṣṇa dāsa Kavirāja Gosvāmī compôs estes versos em Sânscrito para descre-
ver como Śrīman Mahāprabhu concedeu poderes a Śrīla Rūpa e Sanātana Gosvāmī:

182
Capítulo 14 - Os mais queridos, incomparavelmente misericordiosos e poderosos comandantes
do exercito de Śrī Caitanya Mahāprabhu
kālena vṛndāvana-keli-vārtā
lupteti tāṁ khyāpayituṁ viśiṣya
kṛpāmṛtenābhiṣiṣeca devas
tatraiva rūpaṁ ca sanātanaṁ ca
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 19.119)
“Devido à influência do tempo, as conversas a respeito dos passatempos
amorosos de Vṛndāvana haviam praticamente desaparecido. Śrī Gaurāṅga
deva concedeu poder a Śrī Rūpa e Sanātana Gosvāmī para que expressas-
sem, com toda a clareza, esses passatempos sagrados ao derramar sobre
eles o néctar de Sua misericórdia”.
Śrīla Kavirāja Gosvāmī também descreve a maneira pela qual esses dois co-
mandantes seguiram com todo o cuidado as ordens de Śrīman Mahāprabhu:
dui bhāi mili’ vṛndāvane vāsa kôilā
prabhura ĵe ājñā, dũhe saba nirbāhilā
nānā-śāstra āni’ lupta-tīrtha uddhārilā
vṛndāvane Kṛiṣhṇa-sevā prakāśa kôrilā
sanātana grantha kôilā ‘bhāgavatāmṛte’
bhakta-bhakti-Kṛiṣhṇa-tattva jāni ĵāhā hôite
āra ĵata grantha kôilā, tāhā ke kare gaṇana
‘madana-gopāla-govindera sevā’-prakāśana
rūpa-gosāi kôilā ‘rasāmṛta-sindhu’ sāra
Kṛiṣhṇa-bhakti-rasera ĵāhā pāiye vistāra
‘ujjvala-nīlamaṇi’-nāma grantha kôilô āra
rādhā-Kṛiṣhṇa-līlā-rasa tāhā pāiye pāra
‘vidagdha-mādhava’, ‘lalita-mādhava,– nāṭaka-ĵugala
Kṛiṣhṇa-līlā-rasa tāhā pāiye sakala
‘dāna-keli-kaumudī’ ādi lakṣa-grantha kôilô
sei saba granthe vrajera rasa vicārila
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 19.119)
“Enquanto moravam em Vṛndāvana, Śrīla Rūpa e Sanātana Gosvāmī cum-
priram juntos a vontade de Śrī Caitanya Mahāprabhu. Eles compilaram su-
cessivas escrituras reveladas e, pelas evidências contidas nessas escrituras,
eles encontraram e trouxeram à tona todos os lugares de passatempo de Śrī
Kṛṣṇa, que haviam ficado escondidos com o tempo. Em Vṛndāvana, mani-
festaram o serviço amoroso ao Senhor (Kṛṣṇa-sevā). Śrīla Sanātana Gosvāmī
compilou o Bṛhad- Bhāgavatāmrta, um livro a partir do qual podemos com-
preender as verdades sobre os devotos, sobre processo de bhakti e sobre
Śrī Kṛṣṇa. Ele também compilou incontáveis outros textos sagrados. Quem
poderia enumerá-los?
Śrīla Rūpa Gosvāmī e Śrīla Sanātana Gosvāmī manifestaram o serviço à dei-
dade de Madanagopāla (Śrī Madana-mohana) e a Śrī Govindadeva, respectiva-

183
Viśuddha Caytania-Vāṇī

mente. Śrīla Rūpa Gosvāmī centrifugou o oceano das nectáreas doçuras espirituais
e apresentou essa essência sob a forma de um livro chamado Bhakti-rasāmrta-
-sindhu. Através desse livro podemos compreender os mais doces detalhes da
pura devoção a Deus (Kṛṣṇa-bhakti). Além disso, ele escreveu o Ujjvalanīlamani,
com o qual podemos compreender, da forma mais completa possível, os passatem-
pos transcendentais amorosos de Śrī Śrī Rādhā-Kṛṣṇa; duas importantes peças
dramatúrgicas chamadas Vidagdha-Mādhava e Lalita-Mādhava, a partir das
quais podemos compreender toda a doçura (rasa) presente nos passatempos do
Senhor (Kṛṣṇa-līlā); e o Dāna-keli-kaumudī. Somados todos os textos, ele com-
pilou cem mil versos. Em todas essas escrituras, ele explicou de forma elaborada
vraja-rasa, as doçuras transcendentais do local onde o Supremo Se manifesta”.
Assim como o exército de um país cumpre as ordens do governante de uma
nação, Śrīla Rūpa e Sanātana Gosvāmī, por ordem de Śrīman Mahāprabhu, re-
velaram os lugares de passatempo de Śrī Śrī Rādhā-Kṛṣṇa que haviam ficado es-
condidos por todo aquele tempo – e, pessoalmente, orientaram muitos devotos a
seguirem o caminho de bhakti, ensinando como avançar por esse caminho espi-
ritual. Assim, eles garantiram a continuidade do serviço àquele local sagrado, Śrī
Vraja-maṇḍala, ao longo do tempo. Por terem escrito inúmeros textos espirituais
que descrevem os diferentes tópicos relacionados a bhakti, eles consolidaram os
ensinamentos de Śrīman Mahāprabhu e derrotaram, de uma vez por todas, as
doutrinas heréticas dos seus adversários – a religião imprópria (apadharma), a
religião falsa (upadharma) e a religião enganosa (chala-dharma). Os prodígios
maravilhosos de Śrīla Rūpa Gosvāmī são devidamente enaltecidos em uma can-
ção sagrada (vaiṣṇava-bhajana), escrito por Śrī Mādhava dāsa:
yaṅ kali rūpa śarīra na dharata
taṅ vraja-prema, mahānidhi kuṭharīka,
kon kapāṭa ughāḓata

“Se Śrīla Rūpa Gosvāmī não tivesse aparecido nesta era de Kali, quem teria
aberto as portas da sala do tesouro do amor puro por Deus (vraja-prema)?”
nīra-kṣīra-haṁsana, pāna-vidhāyana,
kon pṛthak kôri pāyata
ko saba tyaji’, bhaji’ vṛndāvana,
ko saba grantha viracita
“Quem, senão Śrīla Rūpa Gosvāmī, poderia ter extraído a essência dos tex-
tos sagrados da mesma maneira que um cisne separa a água do leite? Quem
poderia ter deixado tudo para trás para praticar o canto dos Santos Nomes
(bhajana) em Vṛndāvana? Quem poderia ter escrito tais textos divinos?”

184
Capítulo 14 - Os mais queridos, incomparavelmente misericordiosos e poderosos comandantes
do exercito de Śrī Caitanya Mahāprabhu
ĵab pitu vana-phula, phalata nānā-vidha,
manorāji aravinda
so madhukara binu, pāna kon jānata,
vidyamāna kari bandha
Ele era uma abelha em meio a milhares de margaridas silvestres desabro-
chando na floresta e milhares de lótus que encantam a mente. Sem aque-
la abelha, quem poderia ter conhecido a arte de extrair o néctar presente
(porém oculto) em tais flores?”.
ko jānata, mathurā vṛndāvana,
ko jānata vraja-nīta
ko jānata, rādhā- mādhava-rati
ko jānat soi prīta
“Quem poderia ter compreendido as glórias de Mathurā e Vrṇdāvana?
Quem poderia ter entrado nas complexidades dos passatempos de Deus em
Vraja? Quem poderia ter compreendido o amor transcendental (rati) entre
Śrī Rādhā e Mādhava? Quem poderia ter conhecido aquele amor espiritual?”
Os soldados toleram com serenidade e paciência os problemas em nome
da proteção de seu país. Eles cumprem seu dever mesmo nas condições mais
hostis, em regiões encobertas de neve e assoladas pelo frio intenso. Às vezes falta
alimento e eles sofrem de saudades de seus entes amados. Da mesma maneira,
o exército de Śrīman Mahāprabhu aceita toda sorte de dificuldade afim de satis-
fazer os desejos que Deus encerra em Seu coração: guardar e proteger o reino de
bhakti do ataque dos antagonistas e dos invejosos.
O Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 19.127- 131) menciona:
aniketa dũhe, vane ĵata vṛkṣa-gaṇa
eka eka vṛkṣera tale eka eka rātri śayana
‘vipra-gṛhe’ sthūla-bhikṣā, kāhā mādhukarī
śuṣka ruṭī-cānā cibāya bhoga parihari’
karõyā-mātra hāte, kāthā chĩḍā, bahirvāsa
Kṛiṣhṇa-kathā, Kṛiṣhṇa-nāma, nartana-ullāsa
aṣṭa-prahara Kṛiṣhṇa-bhajana, cāri daṇḍa śayane
nāma-saṅkīrtane seha nahe kona dine
kabhu bhakti-rasa-śāstra karôye likhana
caitanya-kathā śune, kare caitanya-cintana
“Śrīla Rūpa Gosvāmī e Śrīla Sanātana Gosvāmī não têm residência fixa. Eles vi-
vem pelas florestas debaixo das árvores – uma noite sob uma árvore e a noite
seguinte sob outra. Deixando de lado todo o tipo de prazer material, às vezes
eles aceitam um prato de comida (sthūla-bhikṣā) na casa de um brāhmaṇa
e consideram que não precisam comer mais nada naquele dia. Em outras
ocasiões, sobrevivem com o pouco que recebem ao mendigar de casa em
casa (mādhukarī). Às vezes, conseguem apenas pedaços de pão (roṭī) seco
para comer, ao passo que, em outras ocasiões, recebem um punhado de

185
Viśuddha Caytania-Vāṇī

grão-de-bico assado para mastigar. As únicas posses que eles levam consigo
são um pote d’água, uma coberta feita de panos velhos e sua roupa íntima,
já puída. Eles sempre falam Kṛṣṇa-kathā, cantam Hare Kṛṣṇa e dançam em
êxtase. Todo dia, ocupam quase que todas as vinte e quatro horas em prestar
serviço ao Senhor. Em geral, dormem apenas noventa e seis minutos (quatro
daṇḍas) e, em certos dias, estando plenamente imersos em sua prática do
canto em grupo dos nomes de Deus (nāma-saṅkīrtana), simplesmente se
esquecem de dormir. Em outros dias, escrevem textos transcendentais sobre
as emoções da devoção pura (bhakti-rasa) e, às vezes, ouvem a respeito de
Śrī Caitanya Mahāprabhu e passam seu tempo lembrando-se dEle.”
É por essas razões que Śrīla Kavirāja Gosvāmī escreve:
mahāprabhura ĵata baḓô baḓô bhakta mātra
rūpa-sanātana — sabāra kṛpā-gaurava-pātra
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 19.123)
“Śrīla Rūpa Gosvāmī e Śrīla Sanātana Gosvāmī eram os receptáculos da mi-
sericórdia e da reverência de todos os famosos devotos do Avatar Dourado,
Śrīman Mahāprabhu”.
Esses dois incomparáveis e dedicados comandantes do exército de Śrīman
Mahāprabhu têm sido o ponto máximo do louvor de muitos vaiṣṇavas. Śrīla
Raghunātha dāsa Gosvāmī, por exemplo, glorifica Śrīla Sanātana Gosvāmī em
seu Śrī Vilāpa-kusumāñjali (6), como segue:
vairāgya-yug-bhakti-rasaṁ prayatnair
apāyayan mām anabhīpsum andham
kṛpāmbudhir yaḥ para-duḥkha-duḥkhī
sanātanaṁ taṁ prabhum āśrayāmi
“Eu hesitava, eu não estava querendo beber o néctar de bhakti-rasa, tão
bem embrulhado pela renúncia material. Porém, Śrīla Sanātana Gosvāmī,
sendo um oceano de misericórdia, tão capaz de tolerar o sofrimento alheio,
habilmente me fez beber desse néctar. Por isso, refugio-me completamente
em Śrīla Sanātana Gosvāmī”.
No livro Śrī Chaitanya-Chandrodaya (9.30), Śrīla Kavi Karṇapūra Gosvāmī
nos conta como Śrīla Rūpa Gosvāmīpāda era querido por Śrīman Mahāprabhu:
priya-svarūpe dayita-svarūpe
prema-svarūpe sahajābhirūpe nijānurūpe prabhur eka-rūpe
tatāna rūpe svavilāsa-rūpe
"Śrīla Rūpa Gosvāmī é muito amado por Śrīman Mahāprabhu. Ele é a per-
sonificação do amor a Deus e, com profunda naturalidade, conhece o cora-
ção do Senhor. Sua forma assemelha-se àquela de Śrīman Mahāprabhu – de
fato, é como se externamente os dois fossem iguais. Śrīla Rūpa Gosvāmī é a
própria personificação dos passatempos de Śrī Caitanya Mahāprabhu, pois
foi por intermédio dele que o Senhor cumpriu muitas tarefas”.

186
Capítulo 14 - Os mais queridos, incomparavelmente misericordiosos e poderosos comandantes
do exercito de Śrī Caitanya Mahāprabhu

Todos os comandantes do exército de Śrīman Mahāprabhu provenientes da


sucessão discipular da Śrī Brahmā-Madhva-Gauḍīya Sampradāya têm servido
com total entrega e dedicação com o intuito de satisfazer Seus desejos mais pro-
fundos. No entanto, as realizações de Śrīla Rūpa Gosvāmī e Śrīla Sanātana Gos-
vāmī estão além do que o próprio Śrī Caitanya Mahāprabhu, o Senhor Supremo
em pessoa, poderia jamais ter concebido.

187
Paraçuräma Jayanté

Hoje celebramos, o dia do advento de ŚrīParaśurāmaavatarā, o Paraśurāma-


Jayantī.Segundo as escrituras, existem três Rāmas: Paraśurāma, Dāśarathi
Rāma (o príncipeŚrīRāmacandra), e Rādhikā-Ramaṇa Rāma, ou o próprio Śrī
Kṛṣṇa, que é o Rāma a que se refere o maha-mantra Hare Kṛṣṇa. Para nós, ‘Hare
Rāma’ quer dizer ‘Rādhā-Kṛṣṇa.’
Seguindo a ordem de śrī guru sem qualquer hesitação
O nome do pai de Paraśurāmaavatarā era um poderoso sábio chamado Jamadagni
Ṛṣi, e sua mãe chamava-se Reṇukā. No Śrīmad-Bhāgavatam, o Purāna da de-
voção a Deus, conta-se que certa vez Jamadagni Ṛṣi mandou que seus filhos,
que também eram seus discípulos, decapitassem sua mãe, Reṇukā. Não con-
seguindo compreender como seria possível cortar a cabeça da própria mãe, os
três filhos mais velhos se recusaram a cumprir a ordem do pai. No entanto,
Paraśurāma, seu quarto e último filho, imediatamente obedeceu e decepou a
cabeça da mãe. Em seguida Jamadagni Ṛṣi deu ordens para que ele decapitasse
seus irmãos mais velhos. Paraśurāma novamente obedeceu sem hesitar.
Satisfeito com a obediência do filho e desejando conceder-lhe uma bênção,
Jamadagni Ṛṣi disse ao jovem Paraśurāma: “Em retribuição, posso realizar qual-
quer coisa que você me peça”.
Paraśurāma respondeu: “Se o senhor quer de fato me conceder uma bênção,
então, por favor, faça com que minha mãe e os meus três irmãos apareçam como
eram antes que eu cortasse suas cabeças. E quero que eles se esqueçam do que eu
fiz”. Jamadagni Ṛṣi imediatamente satisfez odesejo de seu filho e a família voltou
a ser o que era antes.
Quanto a esse passatempo, o Caitanya-Caritāmṛta (Madhya-līlā, 10.145,
146) cita o Raghu-Vaṁśa (14.46), “ājñā gurūṇāṁ hy avicāraṇīyā – deve-se cum-
prir a ordem do guru sem qualquer outra consideração”. E também o Rāmāyaṇa
(Ayodhyā-kāṇḍa 22.9), “nirvicāraṁ guror ājñā mayā kāryā mahātmanaḥ – é pre-
ciso seguir a ordem do guru, uma personalidade extraordinária sem levar nada
mais em consideração”.

189
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Qualquer que seja a ordem que nos dê śrī guru devemos cumpri-la custe o
que custar. No entanto este princípio aplica-se apenas a um guru competente
capaz de satisfazer inteiramente qualquer desejo de seu discípulo. Jamadagni Ṛṣi
não foi apenas o pai de Paraśurāma, senão que também seu guru que tinha como
atender plenamente a solicitação de seu filho. Desse modo, não houve absoluta-
mente erro da parte de Paraśurāma ao matar sua mãe e seus irmãos. O Śrīmad
Bhagavad-gītā (2.19) afirma:
yaenaṁvettihantāraṁ
yaścainaṁmanyatehatam
ubhau tau na vijānīto
nāyaṁhanti na hanyate
Quem acha que a alma mata ou é morta é ignorante, pois a alma não é
nem quem mata nem quem morre.

O requisito básico para o relacionamentoentre guru e discípulo


Se alguém se dá conta de que seu guru não está capacitado para satisfazer seu
desejo de conquistar o serviço a sua divindade adorável (īṣtadeva), pelo qual
ele anseia tanto, então, não há necessidade de seguir inteiramente as ordens de
semelhante guru em todas as ocasiões. Em um caso como este, pode-se levar
em consideração se deve ou não cumprir determinada ordem. Os śāstras men-
cionam que o guru e o discípulo devem se examinar reciprocamente antes de
aceitar um relacionamento mútuo.
Śrīla Vṛndāvanadāsa Ṭhākura Mahāśaya menciona em seu Caitanya-
-bhāgavata (Ādikhaṇḍa 2.68) que, em decorrência de um imenso infortúnio,
alguém aceita um guru incompetente e não abandona semelhante “guru”, após
perceber que ele não é capacitado, ou, se um “guru” aceita um discípulo com a
esperança de receber benefício material, então, “śiṣyā (ou śrotāra) sahite yama-
-pāse ḍubi’ mare – semelhante guru (ou orador) sofre nas garras de Yamarāja
acompanhado de seus discípulos (ou ouvintes)”.
Quando Lakṣmaṇa pediu que Sugrīva se refugiasse aos pés de lótus de
Bhagavān Śrī Rāmacandra, que é o próprio Senhor Supremo, ele respondeu: “Ja-
mais aceitarei o abrigo de Rāma a menos e até que eu O examine por inteiro e
Ele demonstre ser digno da minha entrega”. Então ele disse a Śrī Rāmacandra:
“Com apenas uma única flecha, quero que Você atire com o Seu arco e com essa
única flecha derrube sete árvores tāla. Eu só o aceitarei como o Senhor Supremo
se você conseguir realizar esse feito.“ Foi apenas depois que Śrī Rāmacandra sa-
tisfez o pedido de Sugrīva que ele se entregou aos pés de lótus do Senhor, e não
antes disso.

190
Capítulo 15 - Paraśurāma Jayantī

A origem do nome Paraśurāma


Certa vez havia o poderoso rei dos Haihayas chamado Kārtavīrārjuna, que ti-
nha recebido mil braços como bênção por ter adorado Śrī Dattātreya. Ele tinha
tanto poder que conseguiu interromper o fluxo do rio Narmadā, e certa vez
prendeu o poderoso Rāvaṇa de dez cabeças. Em certa ocasião, Kārtavīrārjuna
viajava com o seu exército em um período de seca e fome. Bem no momento
em que começou uma tempestade terrível, Kārtavīryārjuna e seu exército che-
garam a comunidade (āśrama)de Jamadagni Ṛṣi e lhe pediu para abrigá-los.
Diante da chegada daqueles hóspedes inesperados, Jamadagni Ṛṣi sentiu ser
sua obrigação hospedá-los da melhor maneira possível cuidando de cada ne-
cessidade deles, inclusive a dos elefantes e cavalos que faziam parte do exército.
Kārtavīyārjuna ficou impressionado com a capacidade de Jamadagni Ṛṣi
de prestar um serviço tão dedicado durante aquela época de fome e seca. Ele
não conseguiu compreender como foi possível ao Ṛṣi propiciar acomodações
confortáveis para um grupo tão grande, considerando aquela situação de es-
cassez. Por isso, perguntou a Jamadagni Ṛṣi: “Como foi que o senhor conse-
guiu tomar todas essas providências de maneira tão impressionante?”
Jamadagni Ṛṣi respondeu: “Eu o consegui pela misericórdia de minha mãe”.
Confuso, Kārtavīyārjuna perguntou: “Como assim? Onde está a sua mãe?”
“Quando digo ‘mãe’, quero dizer ‘sagrada mãe’”, respondeu Jamadagni
Ṛṣi. “Tenho uma kāma-dhenu (vaca celestial que satisfaz todos os desejos)
em meu āśrama, e, por causa dela, consegui dar a você e a seu exército as de-
vidas boas-vindas. Isso não teria sido possível sem ela”.
Ouvindo aquilo, Kārtavīyārjuna disse: “Por favor, considere a devida uti-
lização de uma kāma-dhenu. O Senhor vive nesse āsrama com necessidades
limitadas, ao passo que eu tenho milhões de súditos em meu reino. Seria ade-
quado da sua parte me dar esta kāma-dhenu, já que as necessidades do meu
reino são superiores às suas”.
Ouvindo as propostas de Kārtavīyārjuna, Jamadagni Ṛṣi não conseguiu
decidir o que fazer. Confuso, aproximou-se de sua kāma-dhenu e fez-lhe uma
oração: “Óh mãe! Até hoje você tem sido tão misericordiosa comigo. Mas
agora este Kārtavīyārjuna me pede para que eu lhe dê de presente a ele. Talvez
seja a boa fortuna do rei e de agora em diante você deseja abençoá-lo com sua
presença. Eu só desejo servi-la e satisfazer seus desejos. Por isso, qualquer
que seja a sua vontade–quer você queira ir com ele ou ficar comigo–que as-
sim seja”. Apesar daquela oração de Jamadagni Ṛṣi, Kārtavīyārjuna tomou a
kāma-dhenu a força e levou-a para seu palácio.
Quando Paraśurāma ficou sabendo disso, ficou extremamente irado. Ele

191
Viśuddha Caytania-Vāṇī

considerou que, embora seja dever dos guerreiros e aristocráticos(kṣatriyas)


respeitar, servir e proteger os sábios (sādhus) sem pedir nada em troca,
Kārtavīyārjuna tinha acabado de tomar a milagrosa vacakāma-dhenu a for-
ça de seu pai, Jamadagni Ṛṣi. Devido à degradação dos kṣatriyas, ele fez um
voto, então, de exterminar toda a casta dos kṣatriyas. Ele antes era conhecido
apenas pelo nome Rāma, porém, ao fazer aquele voto, escolheu como arma
um machado(paraśu), e passou então a ser conhecido como Paraśurāma. Em
observância a seu voto, matou toda a casta de kṣatriyas vinte e uma vezes.

192
Capítulo 15 - Paraśurāma Jayantī

193
O resultado da imitacão
,

Imitar os devotos de Bhagavān nos afasta da misericórdia do Senhor Supremo,


mesmo que se faça isso com intenção de obter a graça do Senhor. Para nos qua-
lificarmos e, assim, recebermos a Sua misericórdia, precisamos seguir (anusaraṇa)
os passos dos Seus devotos mais queridos, sendo sempre orientados pelos hu-
mores internos (pravṛtti) e pela conduta pessoal deles. A mera imitação de suas
ações externas não será suficiente.
Vamos procurar compreender isso com uma história.
Certa pessoa mantinha sua família cortando e vendendo madeira seca da
floresta. Certo dia, avistou uma árvore seca à margem de um rio e começou a
cortar a árvore do tronco para cima. Logo após começar aquela operação, o ma-
chado escorregou de suas mãos e caiu nas profundezas do rio. Com o coração
triste, ele pensou: “Agora estou com um grande problema. Acabo de perder meu
machado e, como não tenho madeira para vender, não conseguirei comprar ar-
roz, lentilha e outros suprimentos para a minha família. Como posso voltar para
casa com as mãos vazias?” Sem encontrar uma solução, ele começou a chorar.
Ouvindo aquele choro triste, o semideus da água, Śrī Varuṇa-deva, emergiu
do rio e perguntou àquele lenhador a razão das suas lágrimas. O lenhador repli-
cou: “Eu achei que se eu cortasse esta árvore e vendesse a madeira, eu poderia
manter confortavelmente meus familiares por muitos dias. Eu estava tomado
pela cobiça e semelhante pensamento poluído me levou a um grande infortúnio.
Em consequência, meu único bem – meu machado – escapou de minhas mãos
e foi parar no fundo do rio. Por causa da forte correnteza eu não conseguiria ir
até o fundo do rio para recuperar o meu machado. Agora, estou com medo de
voltar para casa, já que meus filhos estarão chorando de fome. Não vejo solução
para o meu sofrimento”.
Após ouvir suas palavras, Varuṇa-deva entrou na água e reapareceu com um
machado de ouro em uma mão e um machado de prata na outra e perguntou
ao lenhador se algum daqueles dois machados era dele. O lenhador respondeu:
“Oh, Deva, nenhum deles é meu. Como poderia eu ter comprado machados
como esses? Eu não tenho sequer alimento suficiente em casa para alimentar
meus filhos, logo, como poderia ter machados feitos de ouro e prata?”

195
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Varuṇa-deva voltou a entrar na água e apareceu com um machado doura-


do em uma das mãos e o machado de ferro do lenhador na outra, e voltou a
perguntar ao lenhador se algum dos machados lhe pertencia. O lenhador lhe
respondeu: “Antes esse machado de ferro era meu, mas como agora ele está em
suas mãos, ele é seu. Se o senhor tiver a misericórdia de me devolver o machado,
eu poderei cortar e vender um pouco de madeira e prover para a minha família
as suas necessidades”.
Varuṇa-deva, ficando satisfeitíssimo com a conduta do lenhador – o qual,
apesar de pobre e necessitado, manteve-se um veraz e honesto seguidor do cami-
nho do dharma –, deu a ele os três machados, o de ouro, o de prata e o de ferro.
E disse ao lenhador: “Porque já está tarde, você não precisa cortar e vender ma-
deira hoje.Vá a um joalheiro, venda um pouco do ouro e da prata desses macha-
dos, compre arroz, lentilhas, sal e quaisquer outros ingredientes que a sua família
necessite. E, então, leve essa compra para a sua casa. Mas não conte a ninguém o
que aconteceu aqui hoje”.
Após seguir o conselho de Varuṇadeva, o lenhador voltou para casa com
toda aquela compra. Seus familiares ficaram satisfeitíssimos de vê-lo trazendo
tantas coisas. O lenhador manteve sua família com toda comodidade por cerca
de dois meses, vendendo apenas um pouquinho dos metais daqueles machados
valiosos. Quando a esposa do lenhador se dirigia a um lago próximo de sua casa
para lavar suas panelas, ela se encontrava com as outras moças da vizinhança e
conversava com elas. Certo dia, a esposa de um vizinho mencionou o seguinte
para ela: “Notamos que o seu marido já não vai mais para a selva cortar madeira,
mas mesmo assim sua família come e vive bem. Também nos parece que você
tem comprado muitos artigos para o seu lar. Como isso é possível? Por acaso
agora vocês têm algum outro meio de subsistência?”
Apesar do lenhador ter explicitamente dito à sua esposa que Varuṇa-deva o
instruiu a não revelar o segredo de sua dádiva, ela não conseguiu resistir e con-
tou tudo à esposa do vizinho. Após revelar o segredo de seu marido, ela disse à
esposa do vizinho que não contasse aquele segredo a ninguém, pois seu marido
ficaria furioso se soubesse que ela havia ignorado o seu pedido de que ela man-
tivesse segredo. A esposa do vizinho, contudo, não conseguiu se abster de relatar
um incidente tão extraordinário a seu esposo, que também era lenhador.
Após ouvir sobre a misericórdia de Varuṇa-deva, o vizinho madeireiro acor-
dou bem cedo na manhã seguinte e foi rápido para o mesmo rio com o seu ma-
chado. Ali, ele começou a agir como se estivesse se esforçando para derrubar uma
árvore seca e, então, de propósito, jogou o seu machado no fundo do rio e fingiu
chorar bem alto. Ouvindo o choro daquele lenhador, Varuṇa-deva emergiu da
água e perguntou por que ele estava chorando. Após ouvir a história daquele ou-

192
Capítulo 16 - O resultado da imitação

tro lenhador, Varuṇa-deva entrou na água e saiu dela com machados de prata e
ferro em suas mãos. Então perguntou àquele lenhador se algum daqueles macha-
dos lhes pertencia. O lenhador indicou que aquele machado de prata era dele.
Então, Varuṇa-deva voltou a entrar na água e apareceu com um machado de
ferro e ouro em suas mãos. De novo, perguntou ao lenhador se algum daqueles
machados lhes pertencia. O lenhador indicou que o machado de ouro era dele.
Ouvindo as palavras enganosas daquele lenhador, Varuṇa-deva desapareceu na
água, levando consigo o machado de ouro, o machado de prata e também o ma-
chado de ferro do lenhador.
O primeiro lenhador era simples, honesto, veraz, não dado à duplicidade
ou hipocrisia e um sincero seguidor do caminho do dharma. Em consequência
disso, recebeu a misericórdia de Varuṇa-deva, que lhe deu não apenas seu ma-
chado de ferro, como também os machados de ouro e prata. O segundo lenhador
era um trapaceiro, desonesto, mentiroso e dado à dissimulação, que desprezava
o caminho do dharma. Embora externamente tivesse realizado as mesmas ati-
vidades que o primeiro lenhador, por causa de sua conduta ele foi privado não
apenas da misericórdia de Varuṇa-deva, mas também do seu próprio machado
de ferro – sua única riqueza.
Da mesma maneira, uma pessoa que não é dissimulada e está totalmente li-
vre do desejo de conseguir o prêmio da religiosidade (dharma), riqueza (artha),
gratificação dos sentidos (kāma) e libertação (mokṣa), desejando apenas prestar
serviço devocional a Deus (Bhagavān), recebe a misericórdia divina – e sua vida
é bem-sucedida. Por outro lado, aquele que se ocupa externamente do mesmo
serviço que os devotos, mas que permanece dado à dissimulação em seu coração
e, internamente, alimenta o desejo de alcançar dharma, artha, kāma e mokṣa, se
vê privado da verdadeira misericórdia de Bhagavān.
Quem observa as mesmas ramificações de bhakti – como ouvir sobre o
Supremo (śravaṇa) e cantar Seus nomes e glórias (kīrtana) – que os devotos pu-
ros, mas só faz isso externamente sem seguir os humores internos inerentes ao
serviço sincero, é excluído do verdadeiro benefício desse mesmo serviço; os sig-
nificados profundos das escrituras descritos por śrī guru e pelos vaiṣṇavas, bem
como a essência dos seus ensinamentos divinos, não se manifestam em seu co-
ração. Além disso, perde-se o crédito das atividades piedosas espirituais (sukṛti)
acumuladas no passado. Em consequência de praticar śravaṇa, kīrtana e as outras
ramificações de bhakti com mentalidade ofensiva, só se consegue objetos de pra-
zer material. Isso faz com que sua vida se torne mais miserável do era que antes.

193
As sutilezas do verdadeiro sevä

O que é preciso compreender antes de servir.


yaḥ śāstra-vidhim utsṛjya
varttate kāma-cārataḥ
na sa siddhim avāpnoti
na sukhaṁ na parāṁ gatim
Śrīmad Bhagavad-gīta (16.23)
“Aquele que desconsidera os preceitos das escrituras e age segundo seus
desejos caprichosos, não alcança nem a perfeição, nem a felicidade, nem
o destino supremo”.
Aquele que presta serviço com atitude de total independência, sem aceitar
orientação alguma, não presta serviço de verdade aos vaiṣṇavas ou Bhagavān –
pelo contrário, ele age apenas para satisfazer seus próprios sentidos. Semelhante
pessoa é conhecida como svecchācāri, ou aquele que age apenas segundo seus
próprios desejos.
Antes de começar a prestar qualquer serviço, é preciso compreender os hu-
mores e desejos do sevya (o objeto desse serviço). É somente após conseguir se-
melhante entendimento que o serviço de alguém pode satisfazer de fato o sevya
e inclusive ser chamado de sevā. Caso contrário, o serviço será mera svecchācāritā
(ato de independência). É comum observar pessoas que insistem repetidas vezes
para que determinado vaiṣṇava aceite seu serviço. Embora o serviço de seme-
lhante pessoa não seja satisfatório para o vaiṣṇava, o vaiṣṇava lhe permite con-
tinuar realizando esse tal serviço para que aquela pessoa consiga satisfazer seus
próprios desejos e assim o vaiṣṇava evita perturbações. Essa pessoa poderá sen-
tir alguma aceitação e a oportunidade de realizar a atividade que deseja, porém,
essa atividade jamais poderá ser considerada serviço de verdade.
Atividades independentes geram grandes transtornos
śruti-smṛti-purāṇādi-
pañcarātra-vidhiṁ vinā
aikāntikī harer bhaktir
utpātāyaiva kalpate
Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.101)

199
Viśuddha Caytania-Vāṇī

“O candidato a servo só causa transtornos ao não levar em consideração


as normas apresentadas no Śruti, Smṛti, Purāṇas e no Nārada-pañcarātra,
mesmo que seu serviço se concentre exclusivamente em Śrī Hari”.
Ekāntika-bhakti (devoção exclusiva), por definição, quer dizer prestar serviço
de maneira agradável ao adorado destinatário do nosso serviço. Logo, apenas ativi-
dades que satisfaçam ao sevya podem ser tidas como serviço.
Uma atividade, duas categorias: esforço e serviço (sevā)
Bhagavān Ācārya e Mādhavī-devī são companheiros eternos de Śrī Caitanya
Mahāprabhu. Certa vez, orientado por Bhagavān Ācārya, Choṭa Haridāsa levou
um saco de arroz sobre a cabeça da cidade de Purī até a casa de Mādhavī devī
em Ālālanātha e, em troca, trouxe arroz da casa dela para a casa de Bhagavān
Ācārya, que mais tarde cozinhou aquele arroz e ofereceu a Śrīman Mahāprabhu.
Assim que Śrīman Mahāprabhu provou o arroz, perguntou a respeito da fonte
daquele arroz. Quando Bhagavān Ācārya Lhe disse que Choṭa Haridāsa o havia
trazido da casa de Mādhavī-devī, Ele louvou o arroz e externamente não pare-
ceu incomodado, porém, internamente ficou bastante insatisfeito. Ao voltar à
Sua residência, Ele logo orientou Seu servo pessoal Govinda Prabhu a impedir
Choṭa Haridāsa de visitá-lO. Eis o motivo pelo qual Śrī Jagadānanda Paṇḍita
menciona no Prema-vivarta (8.7), “gopanete atyācāra gorā dhare curi – mes-
mo que você se comporte mal em segredo, O Avatar Dourado vai desmasca-
rar você”. Alguém pode até conseguir esconder seu comportamento imoral do
mundo inteiro, no entanto, Gaurāṅga Mahāprabhu com certeza detectará isso,
pois Ele é onisciente.
À primeira vista, o fato de Choṭa Haridāsa ter levado arroz sobre a cabeça
de Purī até Ālālanātha e depois de volta a Purī, parece ser um ato de serviço.
Contudo, por essa atividade não ter agradado Śrīman Mahāprabhu, não era con-
siderada sequer karma – pelo contrário, não passava de mero esforço físico. Se
Mahāprabhu tivesse ficado satisfeito com semelhante atividade, isso teria sido
considerado bhakti.
Não satisfazer o objeto de serviço é o resultado de mesclar serviço
com atividades proibidas
Qual foi, então, o erro de Choṭa Haridāsa? Sem mencionar quaisquer detalhes,
Śrī Caitanya Mahāprabhu deixou claro que Choṭa Haridāsa tinha feito algo
contrário às regras e proibições prescritas para a sua posição social (āśrama)
enquanto um renunciante:
prabhu kahe – vairāgī kare prakṛti sambhāṣaṇa
dekhite nā pārõ āmi tāhāra vadana

200
Capítulo 17 - As sutilezas do verdadeiro sevā

Śrī Caitanya Mahāprabhu disse: “Eu não quero ver o rosto de um renunciante
que [com luxúria] fale com mulheres”.
durvāra indriya kare viṣaya-grahaṇa
dāru prakṛti hare munerapi mana
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līlā 2.117-118)
“É tão difícil impedir que os sentidos se voltem para os objetos de prazer,
que mesmo uma estátua de madeira de uma mulher rouba a mente inclusive
de um santo”.
kṣudra-jīva saba markaṭa-vairāgya kariyā
indriya carāiya bule ‘prakṛti’ sambhāṣiyā
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līlā 2.120)
Há muitas pessoas de poucas posses que aceitam a ordem de vida renun-
ciada como se fossem macacos. Elas vão daqui para ali, se envolvendo em
prazeres dos sentidos e falando intimamente com mulheres.
prabhu kahe,—“mora vaśa nahe mora mana
prakṛti-sambhāṣī vairāgī nā kare darśana
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līlā 2.124)
Ele disse ainda: “Minha mente não está sob o Meu controle. Minha mente
não gosta de ver ninguém pertencente à ordem renunciada que converse
intimamente com mulheres.
‘haridāsa kāhā?’ ĵadi śrīvāsa puchilā
‘sva-karma-phala-bhuk pumān’– prabhu uttara dilā
Quando Śrīvāsa Paṇḍita perguntou a Śrī Caitanya Mahāprabhu “onde está
Choṭa Haridāsa?”, o Senhor replicou: “Com certeza, todos colherão os resul-
tados de suas atividades (karma).
tabe śrīvāsa tāra vṛttānta kahila
ĵaiche saṅkalpa, ĵaiche triveṇī praveśila
Śrīvāsa Paṇḍita, então, relatou os detalhes da decisão de Haridāsa e o fato de
ele se lançar às águas na confluência da Gaṅgā, Yamunā e Sarasvatī.
śuni’ prabhu hāsi’ kahe suprasanna citta
‘prakṛti darśana kôile ei prāyaścitta’
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līlā 2.163-165)
Ao ouvir aqueles detalhes, Śrī Caitanya Mahāprabhu sorriu como que satis-
feito e disse: “Se movido por intenções sensuais, alguém olha para mulheres,
este é o único processo de expiação.
Embora nenhum dos ācāryas anteriores tenham mencionado os detalhes,
Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura – que é um ācārya per-

201
Viśuddha Caytania-Vāṇī

tencente à verdadeira linhagem de Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī e que é


um companheiro eterno de Śrīman Mahāprabhu, sendo, desse modo, onisciente
como Ele –, explicou em pormenores porque Śrī Caitanya Mahāprabhu externa-
mente rejeitou Choṭa Haridāsa. Segundo o que Śrīla Prabhupāda explica em seu
Sat-śikṣā Pradarśanī (demonstração de educação espiritual), Mādhavī-devī, uma
devota idosa e avançada em serviço devocional e uma dos três e meio[uma en-
tre os tantos] companheiros mais próximos de Śrīman Mahāprabhu, tinha uma
jovem serva em sua casa. Foi para essa serva que Choṭa Haridāsa olhou luxurio-
samente e ‘falou’ intimamente através desse olhar.
Restrições ao se aceitar o serviço
Por intermédio deste passatempo, Śrī Caitanya Mahāprabhu demonstra com
clareza como o mero toque de um desfrutador dos sentidos afeta o praticante
(sādhaka). Se mesmo cereais ainda não cozidos trazem o sentimento e a cons-
ciência daqueles que tocam neles, o que dizer de oferendas preparadas por
alguém que não é devoto ou por pessoas com desejos materiais? É por essa
razão que nossos ācāryas nos aconselham a termos todo o cuidado quanto ao
que aceitamos dos demais. Em Hindi, se diz “jaisā khāyoge anna, vaisā banega
mana – o indivíduo desenvolve sua consciência de acordo com as energias de
diferentes pessoas que se acumulam nos grãos que ele come.” Em outra pas-
sagem, Śrī Caitanya Mahāprabhu também menciona:
viṣayīra anna khāile malina haya mana malina mana
haile nahe kṛṣṇera smaraṇa
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līlā 6.278)
Quando ingeridos, os cereais tocados por um materialista contaminam a
mente. A mente contaminada não consegue se lembrar de Kṛṣṇa.
Śrīman Mahāprabhu era tão sensível a essas questões sutis que podia logo
reconhecer o humor presente naquela oferenda de arroz. Apesar de uma pessoa
comum não ser avançada ao ponto de poder identificar a consciência sutil pre-
sente em uma oferenda feita por um materialista, o efeito de fato realmente existe
e, com certeza, será preciso arcar com as reações. Portanto, se realmente deseja-
mos permanecer sinceros em nossos esforços no caminho de bhakti, devemos
simplesmente seguir os ensinamentos do nosso guru-varga, ao mesmo tempo
em que reconhecemos nossa incapacidade de compreender adequadamente a
consciência daqueles que nos oferecem alimento.
Uma lição a respeito da consciência adequada em relação ao serviço
Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī menciona que Choṭa Haridāsa não deve ser

202
Capítulo 17 - As sutilezas do verdadeiro sevā

considerado alguém tomado por desejos luxuriosos. De fato, ele é companheiro


eterno de Śrī Caitanya Mahāprabhu e, através dele, Śrīman Mahāprabhu ensi-
nou diversas lições úteis para nós, como ilustra o passatempo mencionado.
mahāprabhu—kṛpā-sindhu, ke pāre bujhite?
priya bhakte daṇḍa karena dharma bujhāite
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Antya-līlā 2.143)
“Śrīman Mahāprabhu é um oceano de misericórdia. Quem pode entendê-
-lO? Ao repreender Seus devotos queridos, Ele estabelece o dharma”.

203
Obter os resultados desejados nas atividades
depende da parceria do corpo com a mente

Quando Śrī Caitanya Mahāprabhu desejou visitar o sul da Índia sozinho, Śrī
Nityānanda Prabhu, com todo respeito, o convenceu a levar consigo em Sua
viagem o brāhmaṇa Kālā Kṛṣṇadāsa. No caminho, Kālā Kṛṣṇadāsa ficou en-
cantado pelos Bhaṭṭathāris – um grupo de ciganos que aumenta o seu contin-
gente usando mulheres para seduzir os forasteiros – e deixou a companhia de
Śrīman Mahāprabhu, porém depois foi resgatado pelo próprio Mahāprabhu. O
fato de Kālā Kṛṣṇadāsa ter ficado suscetível ao encantamento dos Bhaṭṭathāris
demonstra que, embora ele estivesse diretamente na companhia de Śrīman
Mahāprabhu, sua mente estava em outro lugar.
Para obter o benefício máximo de qualquer atividade é necessário concen-
trar a mente plena e atentamente naquela atividade em particular. As atividades
realizadas apenas com o corpo quase sempre serão infrutíferas, porque tais ati-
vidades não envolvem a atuação da mente. Apesar de um aluno universitário
poder ter um bom registro de frequência, ele mesmo assim não passará em seu
exames se não se concentrar em seus estudos. Desse modo, quando alguém diri-
ge um carro ou opera uma máquina com a mente distraída, é bem provável que
aconteçam acidentes.
Durante a época de Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura,
havia um brahmacārī que já morava na maṭha há dois ou três anos. Certo dia,
Śrīla Prabhupāda apontou para aquele bramhacārī e perguntou aos devotos pró-
ximos dele: “Quem é essa pessoa?”
Confusos, seus discípulos responderam: “Śrīla Prabhupāda, o senhor sabe
perfeitamente bem que ele já está na maṭha há algum tempo. Não conseguimos
compreender porque o senhor nos faz esta pergunta”.
Śrīla Prabhupāda replicou: “Na verdade, eu nunca vi semelhante pessoa na
maṭha.” O significado profundo das palavras de Śrīla Prabhupāda é que, embora
alguém possa estar morando fisicamente na maṭha por muitos anos, ele não resi-
de verdadeiramente no templo a menos que sua mente more ali também.
Em outra ocasião, um brahmacārī estava sentado quieto em um canto quan-
do Śrīla Prabhupāda apontou para ele e perguntou aos devotos ali próximos dele:
“Por que este brahmacārī fala tanto? Digam-lhe para ficar quieto, mesmo que
por um instante”.
205
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Após ouvir as palavras de Śrīla Prabhupāda e testemunhar sua manifestação


de onisciência, os devotos ficaram impressionadíssimos. Eles compreenderam
que Śrīla Prabhupāda estava chamando a atenção para o fato de que, embora o
brahmacārī estivesse ali sentado em silêncio e externamente parecesse estar em
paz, a sua mente não estava nem quieta, nem pacífica.
A conclusão é que a posição verdadeira de uma pessoa é determinada, não
por suas atividades externas, mas sim por sua consciência durante a realização
daquelas mesmas atividades.
Embora Śrīla Svarūpa Dāmodara Gosvāmī nunca tivesse estado fisicamen-
te em Śrī Vṛndāvana-dhāma, Śrīman Mahāprabhu afirma, conforme cita o Śrī
Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 14.217): “ĩho dāmodara-svarūpaśuddha-
-vrajavāsī – Este Svarūpa Dāmodara é um puro Vrajavāsī (morador de Vṛndāvana).”
De igual maneira, embora Śrīla Prabodhānanda Sarasvatīpāda jamais tivesse
estado fisicamente em Navadvīpa-dhāma, seria impossível que os eruditos de-
duzissem este fato ao ler o Śrī Navadvīpa-ṣaṭaka, no qual ele descreve as impres-
sionantes glórias de Śrī Navadvīpa-dhāma.
Há o seguinte provérbio em inglês: “Você está onde sua mente está”. A mente
liga o corpo à alma e, assim, realizar alguma atividade com o corpo não será mui-
to benéfico se a mente estiver ausente. Por outro lado, os resultados de se realizar
uma atividade podem ser colhidos por quem realiza aquela atividade não com
o corpo, mas com a mente plenamente concentrada. Por exemplo: embora não
seja possível realizar fisicamente vaiṣṇava-sevā, dhāmaparikramā, ou morar em
Vraja, o sādhaka obterá resultados impressionantes se com toda a atenção prati-
car essas atividades em pensamento.
Ao descrever os passatempos e as atividades diárias de Ambarīṣa Mahārāja,
o Śrīmad Bhāgavatam menciona que ele, em primeiro lugar, ocupava a mente
em lembrar-se dos pés de lótus de Śrī Kṛṣṇa antes de ocupar suas outras facul-
dades– sua fala, mãos, nariz, ouvidos, olhos e assim por diante– a serviço de Śrī
Kṛṣṇa (Śrīmad-Bhāgavatam 9.4.18-20):
sa vai manaḥ kṛṣṇa-padāravindayor
vacāṁsi vaikuṇṭha-guṇānuvarṇane
karau harer mandira-mārjanādiṣu
śrutiṁ cakārācyuta-sat-kathodaye
mukunda-liṅgālaya-darśane dṛśau
tad-bhṛtya-gātra-sparśe ‘ṅga-saṅgamam
ghrāṇaṁ ca tat-pāda-saroja-saurabhe
śrīmat-tulasyā rasanāṁ tad-arpite
pādau hareḥ kṣetra-padānusarpaṇe
śiro hṛṣīkeśa-padābhivandane
kāmaṁ ca dāsye na tu kāma-kāmyayā
yathottamaśloka-janāśrayā ratiḥ

206
Capítulo 18 - Obter os resultados desejados nas atividades depende da parceria do corpo
com a mente
“Ambarīṣa Mahārāja ocupava sua mente em servir os pés de lótus de Śrī
Kṛṣṇa, suas palavras em descrever as qualidades de Śrī Bhagavān, suas mãos
em limpar o templo de Śrī Hari e seus ouvidos a ouvir a respeito dos bem-
-aventurados passatempos de Acyuta (Kṛṣṇa). Ocupava os olhos em ver a
Deidade de Mukunda, os templos e os lugares sagrados; todos os membros
de seu corpo em tocar os corpos dos bhaktas de Kṛṣṇa; suas narinas em chei-
rar o aroma divino da tulasī oferecida aos pés de lótus de Kṛṣṇa; e sua língua
em saborear a prasāda oferecida a Bhagavān. Seus pés viviam caminhando
para os lugares santos de Bhagavān e ele prestava reverências aos pés de
lótus de Śrī Kṛṣṇa. Ambarīṣa Mahārāja oferecia guirlandas, pasta de sândalo,
alimentos (bhoga) e apetrechos semelhantes a serviço de Bhagavān, não
com o desejo de ele próprio desfrutar, mas sim para receber o amor por Śrī
Kṛṣṇa que está presente apenas em seus (devotos puros) śuddha-bhaktas”.
Śrī Ambarīṣa Mahāraja realizava essas atividades na sequência apropriada,
em primeiro lugar concentrando sua mente, ele recebeu o verdadeiro benefício
das mesmas atividades, apego amoroso a Bhagavān, que é a própria vida de Seus
devotos puros.

207
A compaixão e a ausência de dissimulacão
,
´
Pre-requisitos para a prática sincera de Bhägavata-dharma

No início do Śrīmad-Bhāgavatam, Śrīla Vedavyāsa afirma (Śrīmad- Bhāgavatam 1.1.2):


dharmaḥ projjhita-kaitavo ’
tra paramo nirmatsarāṇāṁ satāṁ
vedyaṁ vāstavam atra vastu
śivadaṁ tāpa-trayonmūlanam
śrīmad-bhāgavate mahā-muni-kṛte
kiṁ vā parair īśvaraḥ
sadyo hṛdy avarudhyate ’tra
kṛtibhiḥ śuśrūṣubhis tat-kṣaṇāt
“Neste Śrīmad-Bhāgavatam, explicarei o verdadeiro e mais elevado dever
dos seres vivos (bhāgavata-dharma). Se alguém ouvir com devoção esta es-
critura tão sublime e seguir o bhāgavata-dharma nela explicada, sua sujeição
às três grandes misérias (aquelas causadas pela mente e o corpo do indivíduo,
aquelas causadas por fenômenos da natureza e semideuses, e aquelas causadas
por outros seres vivos) será destruída, ele receberá todos os bons auspícios e, as-
sim, compreenderá o verdadeiro conhecimento a respeito da Verdade Suprema.
Assim, terá como atar o Senhor Supremo ao seu coração a seu bel-prazer.
Para uma pessoa desejosa de conseguir os sintomas supramencionados, não
é necessário ouvir ou seguir outra escritura além do Śrīmad-Bhāgavatam. No en-
tanto, um candidato da universidade do bhāgavata-dharma precisa ter duas qua-
lidades. Em primeiro lugar, não deve praticar kaitava (trapaça calculista) e, em
segundo lugar, deve ser um nirmatsara sādhu, um sábio livre de inveja e cujo cora-
ção está saturado de compaixão por todos os seres vivos, inclusive por ele próprio.”
Vamos primeiro analisar o termo kaitava. Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī
escreveu (Śrī Caitanya-caritāmṛta Ādī-līlā 1.90, 92):
ajñāna-tamera nāma kahiye ‘kaitava’
dharma-artha-kāma-mokṣa-vāñchā ādi saba
tāra madhye mokṣa-vāñchā kaitava-pradhāna
ĵāhā hôite kṛṣṇa-bhakti haya antardhāna

209
Viśuddha Caytania-Vāṇī

O grau superlativo de ignorância (ajñānatama) chama-se kaitava e refere-se


a atividades realizadas com o objetivo de alcançar religiosidade (dharma),
riquezas (artha), gratificação dos sentidos (kāma) e libertação (mokṣa). Entre
elas, mokṣa é o pior de todos, já que resulta na anulação de kṛṣṇa-bhakti.
Com isto podemos compreender que os atos realizados com o objetivo de
conquistar dharma, artha, kāma ou mokṣa, são executados devido a um grau su-
perlativo de ignorância, ou seja, uma profunda falta de conhecimento espiritual.
É essencial que o sādhaka aspirante compreenda a natureza intrínseca (svarūpa)
dessas quatro coisas. Por isso, vamos analisá-las a partir de agora.
Dharma: Neste caso, dharma refere-se às atividades prescritas nos Vedas,
entre elas varṇāśrama-dharma, e não ātma-dharma. Varṇāśrama-dharma quer
dizer apenas cumprir os deveres prescritos para o próprio varna, ou classe social
(que pode ser: brāhmaṇa, kṣatriya, vaiśya e sūdra), e āśrama, ou ordem espiritual
(brahmacārī, gṛhastha, vānaprastha e sannyāsī). Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī
afirma que, embora alguém seja promovido aos sistemas planetários superiores,
ao seguir o varṇāśrama-dharma, na realidade essa pessoa cai em uma condição
infernal de vida material caso deixe de prestar serviço a Kṛṣṇa (Śrī Caitanya-
caritāmṛta Madhya-līlā, 22.26):
cāri varṇāśramī ĵadi kṛṣṇa nāhi bhaje
svakarma kôrite se raurave paḓi’ maje
Semelhante pessoa, adepta do enganoso caminho de varṇāśrama-dharma,
fica desprovida da competência para alcançar sua residência transcendental
eterna que está além desta existência material. Logo, ela fica no âmbito dos ca-
torze sistemas planetários, onde sofre os resultados de seu karma, sejam eles
positivos ou negativos.
Por exemplo, se alguém fica trancado em um quarto escuro e não lhe dão
nada para comer ou beber, com certeza acabará morrendo de fome ou desidra-
tação após algum tempo. Por outro lado, se alguém é forçado a se alimentar com
uma quantidade muito grande de comida e for chicoteado toda vez que parar de
comer, também morrerá com certeza. Assim como esses dois métodos, a inani-
ção e a gula são contrários entre si, porém são métodos igualmente eficientes para
matar alguém. A alma (jīva) recebe tanto o castigo quanto o prazer arquitetados
por Māyādevī, a qual concede às jīvas residência tanto nos sistemas planetários
superiores quanto nos inferiores, segundo seus respectivos karmas. Independen-
temente delas receberem residência nos sistemas planetários superiores ou infe-
riores, as jīvas, de fato, sofrem. Eis a razão pela qual Śrīla Kavirāja Gosvāmī encara
os resultados de quem observa varṇāśrama-dharma como infernais.
Artha: A palavra artha, neste caso, refere-se à riqueza material mundana, e
não à kṛṣṇa-prema-dhana, a meta suprema e a verdadeira riqueza da alma (jīva).

210
Capítulo 19 - A compaixão e a ausência de dissimulação: Pré-requisitos para a prática sincera
de Bhāgavata-dharma

Em um de seus kīrtanas, Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura escreve (Śrī Kalyāṇa-


-kalpataru 1.12.3):
dhane ĵadi prāṇa dita, dhanī rāja na marita,
dharamara hôite rāvaṇa
dhane nāhi rakhe deha, deha gele nahe keho,
ataeva ki kôribe dhana?
Se a riqueza tivesse a faculdade de prolongar a vida, então, um rei rico ja-
mais teria que morrer e Rāvaṇa, o rei de Laṅkā (que tinha um palácio feito
de ouro), teria se tornado morador eterno do planeta Terra. Valendo-se da
riqueza, alguém pode proteger seu corpo e, se o corpo vai embora, não se
pode ter vínculo com ninguém. Logo, o que se fará com semelhante riqueza?
Em conclusão, essa riqueza material não protege ninguém. Muito pelo contrá-
rio, observamos que, na maioria dos casos, as palavras de Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja
Gosvāmī demonstram ser verdadeiras (Śrī Caitanya-caritāmṛta Antya-līlā 6.199):
tathāpi viṣayera svabhāva — kare mahā-andha
sei karma karāya, ĵāte haya bhava-bandha
A natureza de viṣaya (riqueza material) é ampliar a cegueira completa e
forçar alguém a realizar atividades pelas quais fique enredado na exis-
tência material.
Embora um indivíduo possa externamente vestir roupas vaiṣṇavas, tilaka,
kaṇṭhi-mālā e assim por diante, embora possa realizar algum ato de prática espiri-
tual (bhajana-kriyā) e externamente receber iniciação, ele não é considerado um
vaiṣṇava puro até que seja anyābhilāṣa śunya, livre de todos os desejos materiais.
A riqueza, sob a forma de finanças, a posição social e outras coisas, são enganosas
e forçam-nos a realizar as atividades pelas quais ficamos enredados em questões
materiais. Se após ouvir e tomar plena consciência deste fato alguém voluntaria-
mente dedica seu tempo e energia a acumular a riqueza deste mundo material,
isso é puro auto enganação.
Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī afirma (Śrī Caitanya-caritāmṛta Antya-līlā 20.37):
prema dhana binā vyartha daridra jīvana
dāsa kôri’ vetana more deha prema-dhana
Minha vida insustentável é inútil sem o tesouro do amor por Você e, por
isso, oro para que Você Me aceite como Seu servo e Me pague um salário
sob a forma de prema, amor puro por Deus.
A única riqueza digna da nossa aspiração é amor puro por Deus (prema- dhana).
Essa riqueza é eterna, plena de bem-aventurança transcendental e atrai Śrī Kṛṣṇa
por inteiro. Sendo assim, tem a capacidade de nos levar para o mundo espiritual,
a nossa morada eterna.
Kāma: Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī descreve a palavra kāma da seguinte

211
Viśuddha Caytania-Vāṇī

maneira (Śrī Caitanya-caritāmṛta Ādi-līla 4.165, 171):


ātmendriya-prīti-vāñcha - tāre bôli ‘kāma’
kṛṣṇendriya-prīti-icchā dhare ‘prema’ nāma
ataeva kāma-preme bahuta antara
kāma–andha-tamaḥ, prema–nirmala bhāskara
O desejo de satisfazer os próprios sentidos chama-se kāma (luxúria), e o
desejo de satisfazer os sentidos de Śrī Kṛṣṇa chama-se prema (amor). Logo,
a luxúria e o amor são bastante diferentes entre si. A luxúria representa o
grau superlativo da escuridão, ao passo que o amor é como o Sol brilhante.
Bhagavān nos proporciona olhos, ouvidos, nariz, boca, mãos, pernas, cora-
ção, rins e tantos outros órgãos bem como milhares de outros objetos relacionados
a esse mundo material. Se ocuparmos esses objetos a serviço dEle, teremos plena
garantia da satisfação de todos os nossos sentidos. No entanto, se utilizarmos es-
ses objetos que Ele nos forneceu para satisfazer nossos próprios desejos sensoriais
ou aqueles de outros indivíduos de mentalidade semelhante, isso não seria con-
siderado ardiloso? Por exemplo: quando alguém competente consegue um bom
emprego, o empregador lhe promete um salário proporcional, acomodações luxu-
osas, escritório com ar condicionado e um carro com ar condicionado para que
ele possa dedicar toda a sua energia e seus esforços no cumprimento eficiente de
sua tarefa. No entanto, se essa pessoa usar todos aqueles recursos concedidos por
seu empregador para satisfazer suas próprias necessidades ou as necessidades de
seus familiares, parentes e amigos, ao invés de ocupá-los a serviço do empregador,
então isso será considerado trapaça. Semelhante trapaça levará à perda daquele
emprego e, consequentemente, será suspenso o uso de todos aqueles recursos
oferecidos pelo empregador. De modo semelhante, se não ocuparmos os nossos
sentidos e recursos oferecidos pelo Senhor Supremo para a satisfação de Seus sen-
tidos transcendentais, acabaremos privados da obtenção desses sentidos em nosso
próximo nascimento.
Mokṣa: Aqui, a palavra moṣka refere-se a sayujyāmukti, ou seja, imergir em Śrī
Bhagavān ou fundir-se em Seu corpo ou em Sua refulgência espiritual (Brahman).
Qualquer esforço empreendido para se conseguir essa espécie de mokṣa se revela
como o maior ato de dissimulação. Os tolos acham que conquistando mokṣa se
aliviarão dos sofrimentos deste mundo material, mas semelhante lógica equivale
ao fato de alguém cometer suicídio para livrar-se de uma dor de cabeça. Na verda-
de, o esforço para se alcançar mokṣa elimina por inteiro o desejo de identificar- se
como servo amoroso do tão compassivo Śrī Kṛṣṇa, sendo, por isso, considerado o
maior ato de kaitava.

212
Capítulo 19 - A compaixão e a ausência de dissimulação: Pré-requisitos para a prática sincera
de Bhāgavata-dharma

Kaitava e pratiṣṭhā
Em seu Śrī Manaḥ-śikṣā, Śrīla Raghunātha dāsa Gosvāmī afirma nos versos ini-
ciados com are cetaḥ prodyat-kapaṭa-kuṭināṭībhara-khara e pratiṣṭhāśā dhṛṣṭā
śvapacaramaṇī me hṛdi naṭet, que dissimulação (kaitava) é o maior inimigo da
jīva, referindo-se a kaitava como a personificação de um jumento e também
como a mais desavergonhada bruxa que come carne de cachorro, a proscrita
e desclassificada Pratiṣṭhā (o desejo de fama e reconhecimentos mundanos).
Śrīla Dāsa Gosvāmī expressou o sentimento no qual sua mente se deixava
iludir pensando estar purificada quando, na verdade, estava tomando banho
na urina desse jumento, que podemos comparar à dissimulação e à duplici-
dade (kaitava). Na verdade, sua mente estava ardendo e queimando por conta
desse banho impuro. Por fim, ele pede à sua mente que deixe de se envolver
com essa duplicidade e, ao invés disso, banhe-se no oceano nectáreo do amor
puro a Śrī Śrī Rādhā-Kṛṣṇa Yugala. Pensando nesses versos do Śrī Manaḥ-śikṣā,
Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura expressa em seu kīrtana: “pratiṣṭhā lāgiyā, śāṭhya
ācaraṇa – para o prazer (da bruxa chamada) pratiṣṭhā, minha mente sente-se
inclinada à realização de atividades dissimuladas”. Kapaṭa, o ato de mentir, con-
siderado o amante da bruxa Pratiṣṭhā, faz tudo o que pode para agradar a sua
amada e, inclusive, se dispõe a realizar as atividades mais vulgares, evitadas in-
clusive por animais das espécies inferiores.
A palavra kaitava usada por Śrīla Vedavyāsa é explicada em pormenores por
nossos ācāryas, os quais nos aconselham que, para nos libertarmos de kaitava,
precisamos nos refugiar nos mais puros devotos do Senhor.
Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura Prabhupāda escreve:
rādhā-dāsya rahi, chāḓi’ bhoga-ahi
pratiṣṭhāśā nahe kīrtana-gaurava
Vaiṣṇava ke? (16)
Posicione-se em rādhā-dāsya (o serviço a Śrīmatī Rādhikā) e deixe para trás
a serpente do prazer material. Saiba que o desejo por respeito e adoração
nada têm a ver com as glórias do kīrtana.
jaḓera pratiṣṭhā, śūkarera biṣṭhā
jāna nā ki tāhā māyāra vaibhava
kanaka-kāminī, divāsa-jāminī
bhāviyā ki kāja, anitya se-saba
tomāra kanaka, bhogera janaka
kanakera dvāre sevaho mādhava
Vaiṣṇava ke? (2,3)

213
Viśuddha Caytania-Vāṇī

A fama mundana é o excremento dos porcos. Você por acaso não sabe que
semelhante fama é a glória de Māyā? De que adianta empregar o dia e a
noite em busca de ouro e mulheres quando semelhantes coisas são tempo-
rárias? O seu ouro convida à indulgência. Use-o para servir a Mādhava.
Śrīla Prabhupāda também menciona que viver milhões de vidas no corpo de
um animal, no corpo de um mamífero, pássaro ou inseto, é superior a agir com
kaitava em um corpo humano – e que apenas as pessoas honestas sem nenhum
resíduo de duplicidade alcançam o mais elevado bem-estar espiritual.
Em conclusão
Dharma, artha, kāma e mokṣa só podem ser considerados puruṣārtha, a meta
da vida, quando usados para se conquistar prema, o puruṣārtha máximo, o ob-
jetivo espiritual. Caso contrário, deve-se compreender que não passam de pura
tolice. Alguém desejoso de conseguir bhāgavata-dharma (a ocupação eterna
da alma) precisa estar bem ciente disso. Alguém só poderá compreender esses
assuntos após refugiar-se de modo completo e incondicional aos pés de lótus
dos mais queridos companheiros do Senhor e, assim, seguir seus passos. Caso
contrário, serão enganados por Śrī Kṛṣṇa.

214
Capítulo 19 - A compaixão e a ausência de dissimulação: Pré-requisitos para a prática sincera
de Bhāgavata-dharma

215
A ocupacão suprema do Senhor Supremo

Śrī Kṛṣṇa devota-se a Seus devotos


Os devotos de Bhagavān, exclusivamente dedicados a Ele, ocupam-se o tempo
todo ao Seu serviço, dedicando suas vidas a pregar Suas glórias por todos os
lugares do mundo. De forma semelhante, o Senhor reciprocamente ocupa-Se a
servir os Seus mais queridos devotos. Assim, Ele faz com que a grandeza de Seus
devotos seja conhecida por toda parte. Logo, a definição da palavra bhakta é:
alguém que tem devoção (bhakti) por Deus (Bhagavān),” e a definição do nome
Bhagavān passa a ser “uma personalidade que tem bhakti por Seus bhaktas”.

Revelando as glórias das vraja-gopīs


Com o objetivo de difundir as glórias das vraja-gopīs ao mundo inteiro, Śrī
Kṛṣṇa, enquanto estava na companhia de Śrī Nārada em Dvārakā, certa vez rea-
lizou o passatempo de sentir dor de cabeça. Presenciando a aflição do Senhor, Śrī
Nārada Muni perguntou: “Meu Senhor, como posso serví-lO? Você gostaria que
eu Lhe trouxesse algum remédio para aliviar Sua dor de cabeça?”
Śrī Kṛṣṇa respondeu: “Sim, porém o remédio de que preciso é bastante espe-
cífico. O único remédio para esta dor de cabeça é passar a poeira dos pés de Meu
devoto em minha testa. Portanto, por favor, procure um devoto ou devota que
deseje doar a poeira de seus pés para Mim”.
Após ouvir o pedido de Śrī Kṛṣṇa, o pensamento de curar o Senhor com a
poeira de seu próprio pé nem sequer passou pela mente de Śrī Nārada e, assim, ele
se aproximou das rainhas de Śrī Kṛṣṇa. Ele não apenas abordou todas rainhas de
Dvāraka, mas também aquela mais destacada entre todas as outras, Śrī Rukmiṇī-
devī. Todas elas, inclusive Śrī Rukmiṇī, não aceitaram dar a poeira de seus pés
para curar a dor de cabeça do Senhor.
A entrega aparentemente completa de Śrī Rukmiṇī a Śrī Kṛṣṇa
Antes de se casar com Śrī Kṛṣṇa, Śrī Rukmiṇī-devī havia Lhe escrito uma carta
de derreter o coração, na qual expressava suas emoções e seu humor de total
entrega a Ele: “Tendo ouvido falar de Suas glórias divinas, me senti conquista-
da e seguidamente conquistada. Assim, ninguém além de Você me atrai. Por

217
Viśuddha Caytania-Vāṇī

favor, não me considere desavergonhada por eu estar Lhe escrevendo essa car-
ta. Não vejo outra saída. Prometo que jamais me casarei com algum homem
comum feito de carne e ossos. Se Você se negar a me aceitar como Sua esposa,
praticarei rigorosas penitências, abandonarei este corpo e continuarei reali-
zando rigorosas austeridades por centenas de vidas até que eu consiga final-
mente obter Sua misericórdia”.

Preocupar-se com o próprio sofrimento pode ser um obstáculo


ao serviço divino (prema-seva)
Embora Śrī Rukmiṇī-devī tivesse um profundo humor de entrega a Śrī Kṛṣṇa,
devido ao seu medo de sofrer uma condição infernal colocando a poeira de seus
próprios pés na cabeça do Senhor Supremo, ela não ofereceu a poeira de seus
pés para aliviar a dor de cabeça dEle. O fato dela ter se negado a servir ao Senhor
daquela maneira nos ensina que, apesar de alguém poder ter chegado a uma fase
elevada da devoção e da entrega, poderá ainda estar nessa pessoa algum vestígio
de ātmendriya-prīti-vāñchā (preocupação com o prazer dos próprios sentidos).
Como Śrī Nārada Muni não conseguiu encontrar sequer um devoto em
Dvārakā disposto a oferecer a poeira de seus pés a Śrī Kṛṣṇa, ele voltou para falar
com o Senhor Supremo e informá-lo de que sua tentativa foi em vão. Śrī Kṛṣṇa
perguntou: “Você foi até Vraja e pediu a algum de seus residentes (Vrajavāsīs) a
poeira dos seus pés?” Śrī Nārada respondeu: “Não, meu Senhor, não fui a Vraja.”
Śrī Kṛṣṇa lhe pediu, então: “Por favor, vá até lá e peça a poeira dos pés de algum
Vrajavāsī”.

A glória do serviço destemido das gopīs


Quando Śrī Nārada Muni chegou em Vraja, informou aos habitantes a situa-
ção de Śrī Kṛṣṇa e explicou que não conseguiu encontrar nenhum devoto em
Dvārakā disposto a ajudá-lo, porque todos tinham medo de ir para o inferno.
Ouvindo tudo aquilo, as vraja-gopīs responderam: “Óh Nārada! Você acha que
o medo de ir para um planeta infernal vai nos impedir de prestar nosso serviço
a Kṛṣṇa? Estamos preparadas para morar eternamente no inferno pelo bem de
fornecer a Ele um momento que seja de prazer. Por favor, leve a poeira de nossos
pés a Kṛṣṇa sem demora”. Dizendo aquilo, as vraja-gopīs recolheram a poeira de
seus pés e deram-na a Śrī Nārada. .
No passatempo citado, Śrī Kṛṣṇa manifestou para o mundo inteiro as glórias
das vraja-gopīs, sua superioridade sobre as rainhas de Dvārakā e sua supremacia
sobre todos os Seus outros devotos. De forma semelhante, para expressar o fato
de Śrīmatī Rādhikā ser a principal entre todas as vraja-gopīs, Śrī Kṛṣṇa deixou um
bilhão de gopīs durante a dança da rāsa e entrou na floresta procurando por Rādha.

218
Capítulo 20 - A ocupação suprema do Senhor Supremo

Śrī Kṛṣṇa profundamente testa cada um de nós


Existem diferentes tipos de devotos de Śrī Kṛṣṇa e Ele Se manifesta em propor-
ção ao nível de devoção de cada um (Śrīmad Bhagavad-gītā 4.11):
ye yathā māṁ prapadyante
tāṁs tathaiva bhajāmy aham
Bhakti-rasāmṛta-sindhu (1.2.101)
As pessoas comuns não conseguem determinar a verdadeira competência
de um devoto, visto que a aparência externa não é a base pela qual se pode apurar
a competência de alguém. O Supremo Senhor Śrī Kṛṣṇa, contudo, pode com-
preender plenamente as emoções (bhāvas) mais sutis e íntimas de Seus devotos,
assim como um grande médico consegue reconhecer a mais sutil das doenças
em uma pessoa aparentemente saudável ao olhar para ela, ao examinar seu pul-
so, usando uma máquina de raio-x, de ultrassom, por meio de um escaneamen-
to por tomografia computadorizada, ressonância magnética ou qualquer outro
equipamento médico. O Senhor corresponde amorosamente e revela, então, as
glórias das emoções puras (bhāvas) de Seus puros devotos ao mundo inteiro ao
longo do tempo. Esta é a Sua ocupação suprema.

219
Somente bhakti purifica a nossa mente

Vṛndāvana – a manifestação do coração de Śrīmatī Rādhikā


No Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 13.137), Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja
Gosvāmī cita as palavras de Śrī Gaurasundara, que pessoalmente falava com as
mesmas emoções de Śrīmatī Rādhikā:
anyera hṛda ya-mana, mora mana-vṛndāvana,
‘mane’ ‘vane’ eka kôri’ jāni
tāhā tomāra pada-dvaya, karāha ĵadi udaya,
tabe tomāra pūrṇa kṛpā māni
Nesse verso, Śrī Gaurasundara diz: “As pessoas mundanas comuns conside-
ram que o coração, que vive ocupado em desejos e fantasias (saṅkalpa e vikalpa),
seja a sua mente (mana). Porém, tendo se desvencilhado de todos os desejos,
tanto de desfrutar deste mundo material quanto de renunciar a ele, Meu cora-
ção constantemente aspira a servir Śrī Kṛṣṇa. Considero este Meu coração como
não sendo diferente de Śrī Vṛndāvana, a terra dos passatempos divinos de Śrī Śrī
Rādhā-Kṛṣṇa. Óh Kṛṣṇa! O Meu desejo mais intenso é que Você por favor mani-
feste Seus pés de lótus naquela Vṛndāvana, que é a manifestação do Meu próprio
coração e que vive decorada com todos os ornamentos adequados para que Eu
possa prestar serviço aos Seus pés. Somente então terei certeza de que Você é
extremamente misericordioso comigo”.

A diferença entre mente e citta


A afirmação acima indica claramente que, quando nosso coração vive imerso
em pensamentos relacionados a este mundo material e oscila, instável, ele se per-
de entre desejos e fantasias (saṅkalpa e vikalpa). Nessa condição, ele é chamado
de mana (mente). Essa mente (mana) é a conexão entre a alma e o corpo mate-
rial, sua única função é oscilar entre saṅkalpa e vikalpa.
Contudo, quando a mente se ocupa no serviço a śrī guru, aos vaiṣṇavas e a
Bhagavān – por conta da positiva influência de estar na companhia dos devotos
e como consequência da misericórdia deles –, ela abandona essa oscilação entre
saṅkalpa e vikalpa e permanece fixa na posição constitucional eterna da alma: a

221
Viśuddha Caytania-Vāṇī

de ser um servo de Śrī Kṛṣṇa. A partir desse ponto, a mente pode ser chamada de
citta ou sattva. Somente um coração assim puro, estabelecido em seu estado pu-
rificado (viśuddha-sattva ou nirguṇa), completamente livre das contaminações
de tama, raja e sattva-guṇas (as qualidades materiais da ignorância, da paixão e
da bondade), pode para levar Kṛṣṇa a Se manifestar.
Você é o que ‘come’
O Chāndogya Upaniṣad (7.26.2) afirma: “āhāra-śuddhau sattva-śuddhiḥ –
quando nosso alimento (āhāra) é puro, nosso coração (mana) se purifica”.
Também há o seguinte ditado em Hindi: “jaisā khāoge anna vaisā banegā
mana – sua mente se torna igual aquilo que você come”.
O que é importante observar aqui é que para as pessoas de mentalidade
mundana, o termo āhāra se refere apenas àquilo que elas consomem pela boca.
Contudo, na realidade, nós consumimos diferentes espécies de āhāra com to-
dos os nossos órgãos dos sentidos – os olhos, o nariz, a língua, os ouvidos e
a pele. Portanto, o simples fato de consumir alimento santificado pela boca
não é suficiente para purificar a mente (mana); também é preciso santificar o
alimento (āhāra) aceito pelos outros cinco sentidos.
Aceitar āhāra impuro mesmo que apenas com um dos sentidos
pode provocar uma queda
Śrīmad-Bhāgavatam narra que Ajāmila era um homem muito virtuoso, ver-
sado nas escrituras, de boas maneiras, com bom temperamento, disciplinado,
veraz e inclinado a servir a todos os seus hóspedes, particularmente os idosos.
Externamente, não havia impureza em nenhum alimento que ele comia. Um
vez, quando ele voltava da floresta depois de colher frutas, flores e lenha a pe-
dido de seu pai, ele avistou uma prostituta semi-nua envolvida em atividades
impróprias com um homem de quarta categoria (śūdra) luxurioso e sem pu-
dor. Através da prostituta, em consequência do āhāra impuro que invadiu os
olhos de Ajāmila, o demônio da chamada Luxúria apoderou-se de sua mente.
Ajāmila, em consequência disso, caiu de sua plataforma de comportamento
veraz e adequado estabelecido nas escrituras e, assim, afastou-se dos princí-
pios religiosos.
O único processo para purificar a mente
Apesar dos esforços sinceros de nos purificarmos, santificando o āhāra absor-
vido pelos cinco sentidos, ainda resta uma dúvida: se sairemos exitosos ou não.
Como nossa mente ainda não se purificou por completo, os cinco sentidos
–que podem ser comparados a cinco gravadores dentro do nosso corpo – fun-

222
Capítulo 21 - Somente bhakti purifica a nossa mente

cionam automaticamente, apesar dos esforços que fazemos para nos manter
artificialmente afastados dos objetos dos sentidos materiais. Quando um ‘gra-
vador’ pára, o outro automaticamente toca qualquer coisa que tenhamos ante-
riormente gravado por intermédio de nossos sentidos, nesta vida ou em vidas
passadas. Portanto, as gravações anteriores só são deletadas quando paramos
de criar novos registros. A menos que nos esforcemos ininterruptamente, com
sinceridade, para alimentar nossos sentidos com uma dieta purificada, man-
tendo-nos exclusivamente na companhia dos sábios (sādhus), cujas mentes já
estão purificadas, nossas gravações anteriores não serão canceladas. A menos
que façamos isso, não alcançaremos o objetivo e nossa mente não se purificará.
A fim de nos ensinar como limpar a mente, Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī
escreve no Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā, 22.29): “vastutaḥ buddhi
‘śuddha’ nahe kṛṣṇa-bhakti bine – na realidade, não é possível purificar a men-
te sem realizarmos kṛṣṇa-sevā.”
A mente só pode se purificar quando ocupamos todos os nossos sentidos
a serviço de Bhagavān sob a orientação de vaiṣṇavas puros; não é possível fa-
zê-lo de nenhuma outra maneira.

223
Reconhecendo um praëayi-bhakta

O significado de praṇayi-bhakta
O termo praṇayi-bhakta é usado por Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura em seu kīrtana
(Śaraṇāgati 6.3.3):
gaura āmāra, ĵe-saba sthāne
karalô bhramaṇa raṅge
se-saba sthāna, heribô āmi
praṇayi-bhakata-saṅge
“Na companhia de praṇayi-bhaktas, contemplarei todos os lugares que meu
Gaura, o Avatar Dourado visitou com grande júbilo”.

Outro termo para praṇaya é “apego profundo” e, por isso, o praṇayi-bhakta é


aquele que traz um apego profundo em seu coração por Bhagavān e Seus devo-
tos. Por causa desse apego, o praṇayi-bhakta demonstra uma inclinação a glo-
rificar tudo o que está relacionado a Bhagavān, motivo pelo qual deseja visitar,
glorificar e inclusive morar nos lugares de Seus passatempos, que são abençoa-
dos por Sua presença e pela presença de Seus devotos (Bhakti-rasāmṛta-sindhu
1.3.25–6):
kṣāntir avyartha-kālatvaṁ
viraktir māna-śūnyatā
āśā-bandhaḥ samutkaṇṭhā
nāma-gāne sadā ruciḥ
āsaktis tad-guṇākhyāne
prītis tad-vasati-sthale
ity ādayo ’nubhāvāḥ
syur jāta-bhāvāṅkure jane
Quando surge o êxtase espiritual (bhāva), observam-se os nove seguintes
sintomas no devoto: (1) tolerância, (2) uso eficiente do próprio tempo, (3)
desapego, (4) ausência de orgulho, (5) esperança firme de que Kṛṣṇa lhe
concederá Sua misericórdia, (6) anseio intenso por atingir a própria meta,
(7) gosto constante por cantar os Santos Nomes, (8) apego a descrever e
ouvir acerca das qualidades de Kṛṣṇa e (9) afeição pelos lugares onde Kṛṣṇa
realiza Seus passatempos.

225
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Praṇayi-bhaktas não se encontram na plataforma material, na qual em geral


as pessoas se identificam falsamente com o corpo. Cada atividade que eles re-
alizam é exemplar, seja quando eles comem, caminham, sentam-se ou mesmo
quando dormem. Eles praticam sevā a cada instante e nunca se dedicam a ativi-
dades mundanas de satisfação dos sentidos.
Os praṇayi-bhaktas conhecem muito bem as glórias dos lugares onde
Bhagavān realiza Seus passatempos. As respectivas glórias e os passatempos que
ocorrem nesses lugares se manifestam automaticamente em seus corações pela
misericórdia divina do Senhor. A este respeito, Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura es-
creve em seu kīrtana: “dhāmera svarūpa, sphuribe nayane – a forma transcen-
dental dos locais sagrados (dhāma) se tornará visível para mim”. Segundo explica
o uso do termo sphūrti neste contexto, os passatempos manifestam-se esponta-
neamente em seus corações. Em consequência disso, eles não precisam meditar
em o que vão falar em determinado lugar – o hari-kathā relacionado às glórias
daquele lugar surge naturalmente.

Os praṇayi-bhaktas só se preocupam em se concentrar nas emoções


do serviço devocional (sevā)
Antigamente, durante o Ratha-yātrā, a administração do festival costumava pro-
videnciar uma área especial diante das carruagens, onde os devotos pudessem
realizar kīrtana sem perturbação alguma; outras pessoas comuns não tinham
permissão de entrar naquela área. Certa vez, os devotos da Gauḍīya Maṭha rea-
lizaram kīrtana naquela área sob a orientação de meu paramārādhyatama Guru
Mahārāja, Śrī Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī. Os sevakas do Senhor
Jagannātha que estavam na carruagem sentiram tamanho êxtase ouvindo kīrtana
que ergueram Guru Mahārāja sobre seus ombros e trouxeram-no à força para a
carruagem do Senhor.
Naquela ocasião, Śrī Śrīmad Bhakti Pramoda Purī Gosvāmī Mahārāja dan-
çava e cantava diante da carruagem, concentrado nas emoções experimentadas
pelas vraja-gopīs no momento em que elas se encontram com Śrī Kṛṣṇa em
Kurukṣetra – Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā, 13.113):
sei ta parāṇa-nātha pāinu
ĵāhā lāgi’ madana-dahane jhuri’ genu
Acabo de conquistar o Senhor da minha vida, na ausência de quem eu vivia
à deriva enquanto o cupido me queimava.
Enquanto Śrīla Purī Gosvāmī Mahārāja estava concentrado em cantar este
kīrtana, todos os devotos ao redor dele também experimentaram as mesmas
emoções relativas ao encontro de Kṛṣṇa com as gopīs e se encheram de êxtase.

226
Capítulo 22 - Reconhecendo um praṇayi-bhakta

Um ladrão se aproveitou da oportunidade para roubar a carteira de Śrīla Purī


Gosvāmī Mahārāja de sua bolsa. A maioria dos devotos estava concentrada no
kīrtana e não reparou aquilo, mas um brahmacārī, tendo presenciado o furto,
agarrou o ladrão.
O brahmacārī, enquanto segurava o ladrão, tentou chamar a atenção de Śrīla
Purī Gosvāmī Mahārāja, mas Śrīla Mahārāja estava de tal forma concentrado no
kīrtana que não prestou a menor atenção às palavras do brahmacārī. Quando
o brahmacārī insistiu em chamar sua atenção, Śrīla Mahārāja ficou chateado e
o corrigiu: “Por que você me perturba assim? Deixe que ele leve o dinheiro. O
dinheiro vem e vai, no entanto, as emoções que estamos experimentando agora
talvez não voltem mais”.
Quem pode reconhecer um praṇayi-bhakta?
Quem, de todas as pessoas que estavam ali enquanto Śrīla Purī Gosvāmī
Mahārāja cantava, podia realmente entender as suas emoções ou a causa de
sua irritação? Somente alguém altamente sincero e espiritualmente maduro –
ou, em outras palavras, inteiramente rendido – poderia ser capaz de perceber
que tal fato havia ocorrido. O que dizer, então, de compreender o significado
espiritual de tal fato. Portanto, mesmo quando um praṇayi-bhakta está dian-
te de nós e mesmo quando pessoalmente testemunhamos sua conduta, não
seremos capazes de reconhecê-lo até que nos tornemos totalmente sinceros e
completamente rendidos à sua vontade. Sem sinceridade e entrega, não percebe-
remos que suas atividades são aquelas de um devoto elevado (mahābhāgavata),
e não de um devoto comum.
É somente quando nos tornamos sinceros que o praṇayi-bhakta, por sua
misericórdia livre de qualquer duplicidade, revela sua verdadeira natureza e sua
elevada posição. Quando isso acontecer, conseguiremos não apenas compreen-
der a conduta dos praṇayi-bhaktas, mas também conservaremos essa compreen-
são em nossa mente e em nosso coração. Preservaremos tal conduta mergulhan-
do nela nossa consciência e atenção. Pela misericórdia de tão elevados vaiṣṇavas,
alcançaremos a clara visão que nos permitirá entender com exatidão a verda-
deira forma e o significado de suas atividades transcendentais – e os profundos
humores por trás delas.
Os praṇayi-bhaktas não manifestam sua misericórdia onde há falta de ren-
dição. Sem a misericórdia dos praṇayi-bhaktas, não temos a capacidade para re-
conhecer suas personalidades elevadas e, por causa disso, iremos considerar seu
comportamento como sendo impróprio.

227
Viśuddha Caytania-Vāṇī

mahat-kṛpā vinā kona karme ‘bhakti’ naya


kṛṣṇa-bhakti dūre rahu, saṁsāra nahe kṣaya
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 22.51)
Não é possível conquistar bhakti sem a misericórdia de um grande devoto.
O que dizer, então, de kṛṣṇa-bhakti – [sem essa misericórdia] não é possível
nem mesmo alcançar libertação do condicionamento material da existência.
Portanto, é somente quando se recebe a misericórdia dos praṇayi-bhaktas
que alguém se torna capaz de identificá-los e de identificar aqueles que sincera-
mente se esforçam para alcançar a plataforma de um praṇaya-bhakta.
Conforme observamos, se alguém doava uma só rúpia a Śrī Śrīmad Bhakti
Pramoda Purī Gosvāmī Mahārāja, ele aceitava a doação, encostava a moeda em
sua testa e, depois, com todo cuidado, a colocava em sua bolsa, dizendo: “Esse
dinheiro foi enviado por Śrīla Prabhupāda para eu prestar serviço a Bhagavān”.
Mas no incidente mencionado, Śrīla Mahārāja diz: “Deixe que levem meu di-
nheiro, mas não me incomodem”. Por que será que, em um momento ele mos-
tra profundo respeito por um objeto que ele considera ter sido enviado por seu
Guru Mahārāja para o serviço a Bhagavān, mas em outro, demonstra descaso
pelo mesmo objeto? Através disso, Śrīla Purī Gosvāmī Mahārāja demonstra que,
quando alguém está concentrado realizando um serviço maior, pode-se automa-
ticamente negligenciar o serviço menor. Quanto a isso, não se leva em conside-
ração perda ou prejuízo.
Muitas pessoas estavam ali quando o ladrão roubou o dinheiro de Śrīla Purī
Gosvāmī Mahārāja, e cada uma delas reagiu ao incidente segundo suas respec-
tivas competências. Os vaiṣṇavas sêniores estavam inteiramente absortos em
kīrtana e nos humores divinos do festival do Ratha-yātrā e, por isso, não se per-
turbaram. Os devotos juniores e neófitos, contudo, quiseram prender e castigar o
ladrão e por isso devem ter se sentido tristes quando Śrīla Purī Gosvāmī Mahārāja
os castigou por terem perturbado o seu humor.
Quando fui testemunha daquele incidente, lembrei-me de um verso do
Bhagavad-gītā (2.69):
yā niśā sarva-bhūtānāṁ
tasyāṁ jāgarti saṁyamī
yasyāṁ jāgrati bhūtāni
sā niśā paśyato muneḥ
A inteligência relacionada à alma é como a noite para os materialistas. Um
sábio autocontrolado permanece fixo, em sintonia com esse mesmo nível
de inteligência (o conhecimento espiritual). A pessoa comum se sintoniza
num nível de inteligência que se relaciona aos objetos materiais, mas para
quem enxerga o Absoluto, essa realidade é que parece escura, invisível
como a noite.

228
Capítulo 22 - Reconhecendo um praṇayi-bhakta

Os materialistas só têm consciência de coisas relacionadas a esse mundo


material, estão tão preocupados em arrecadar dinheiro que chegam a lutar por
um único centavo. Para eles, não há tempo para pensar a respeito da eterna e ver-
dadeira prosperidade (paramārtha), tampouco eles se incomodam em saber a
respeito desse tesouro infinito (paramārtha). Por outro lado, aqueles inteiramen-
te conscientes de ātma-tattva, a verdade a respeito da alma, sempre se esforçam
para adquirirem sua verdadeira riqueza transcendental e não desperdiçam um
único instante lidando com posses materiais, pois sabem bem que semelhantes
objetos não têm valor algum.
Segundo esse verso do Bhagavad-gītā, pude observar que os vaiṣṇavas seniores
que participaram do kīrtana de Śrīla Purī Gosvāmī Mahārāja estavam inteira-
mente raptados por emoções de humor semelhantes às vividas por Śrī Caitanya
Mahāprabhu durante o Ratha-yātrā. Devido a tal concentração, eles nem repara-
ram naquele ladrão. Os devotos neófitos, contudo, não perceberam as emoções
dos vaiṣṇavas seniores e, por isso, deram prioridade a capturar o ladrão.
Apenas o estudante sincero é qualificado para avaliar a competência
do mestre
Suponhamos que encontremos dois indivíduos: um é praṇayi-bhakta e o outro
apenas afirma ser um praṇayi-bhakta. Poderemos observar que aquele fingin-
do ser um praṇayi-bhakta manifesta externamente todos os sintomas de um
praṇayi-bhakta, forçando-nos a aceitá-lo como tal, ao passo que o verdadeiro
praṇayi-bhakta não faz o menor esforço para demonstrar a sua posição peran-
te os outros. Se somos desqualificados, desonestos e sem inteligência adequa-
da, e nem somos versados nos manuscritos originais, como conseguiremos
diferenciar entre os dois?
Os pais de um aluno da oitava série contrataram um professor para o filho.
O professor era altamente qualificado e era, inclusive, um PhD. Contudo, após
algumas aulas, o aluno queixou-se com os seus pais: “Estou insatisfeito com esse
professor – ele não consegue me ensinar da maneira adequada. Seria melhor que
vocês me arranjassem um outro”.
Por causa da sinceridade desse aluno em seus estudos, foi fácil para ele per-
ceber que o professor não ensinava como deveria. Da mesma maneira, só pode-
remos identificar um praṇayi-bhakta se também formos sinceros a toda prova. Se
não formos assim sinceros em nosso coração, simplesmente enganaremos a nós
mesmos, quer encontremos um praṇayi-bhakta, quer encontremos um farsante.
O verdadeiro significado da sinceridade
Quando usada num discurso comum, a palavra “sincero” pode ter dois sen-

229
Viśuddha Caytania-Vāṇī

tidos. O primeiro, indica veracidade: “Tudo o que digo é cem por cento ver-
dade”. Esse sentido é expresso quando escrevemos cartas e nos apresentamos
como indivíduos dignos de confiança, pelo fato de finalizarmos com “sincera-
mente” ou “sinceramente seu”.
O segundo significado da palavra “sincero” relaciona-se aos sérios e ho-
nestos esforços que alguém faz para se dedicar a um compromisso que lhe foi
designado ou que ele aceitou conscientemente. O sinônimo em sânscrito para
“sincero” encontra- se no Śrīmad-Bhāgavatam (2.7.42):
yeṣāṁ sa eṣa bhagavān dayayed anantaḥ
sarvātmanāśrita-pado yadi nirvyalīkam
te dustarām atitaranti ca deva-māyāṁ
naiṣāṁ mamāham iti dhīḥ śva-śṛgāla-bhakṣye
Quem quer que seja especificamente favorecido por Deus, Bhagavān, de-
vido à sua rendição sincera – isto é, a rendição sem pretensões de serviço
a Bhagavān –, pode superar o intransponível oceano da ilusão e pode com-
preender Deus. Porém, aqueles que estão apegados a este corpo – que
serve como alimento para cães e chacais –, não podem fazê-lo.
Neste caso, o conceito de sinceridade é evocado pelo uso da palavra
nirvyalīkam, que se refere a quem nunca nutre desejos relativos ao mundo ma-
terial e aspira apenas permanecer o tempo todo ocupado em kṛṣṇa-bhakti. É
este segundo significado que deve ser aceito quando se usa a palavra “sincero”
para descrever indivíduos cujo único desejo é servir a Bhagavān e Seus devotos.
Embora desejos materiais e temporários possam se manifestar em um devoto
– devido à presença de misérias ainda não purificadas, qualidades indesejáveis
(anarthas) que ainda não foram inteiramente extirpadas –, esse devoto deve ser
considerado sincero se traz em seu coração sentimentos genuínos de remorso e
ora pela misericórdia dos vaiṣṇavas para superar tais anarthas.
Bhagavān Śrī Kṛṣṇa disse para Uddhava (Śrīmad-Bhāgavatam 11.20.28-30):
tato bhajeta māṁ prītaḥ
śraddhālur dṛḓha-niścayaḥ
juṣamāṇaś ca tān kāmān
duḥkhodarkāṁś ca garhayan
proktena bhakti-yogena
bhajato māsakṛn muneḥ
kāmā hṛdayyā naśyanti s
arve mayi hṛdi sthite
bhidyate hṛdaya-granthiś
chidyante sarva-saṁśayāḥ
kṣīyante cāsya karmāṇi
mayi dṛṣṭe ‘khilātmani

230
Capítulo 22 - Reconhecendo um praṇayi-bhakta

O sādhaka que desenvolve fé nas narrativas a Meu respeito e sente aver-


são por todos os tipos de karma ainda pode ficar preso ao prazer material
e ao desejo de experimentar semelhante prazer. Sabendo que esses pra-
zeres são, na verdade, fonte de sofrimento, ele deve condenar a si mesmo
enquanto procura desfrutá-los. Mais tarde, no devido curso do tempo, ele
pode conseguir Me adorar com amor, fé e firme determinação. Quando
um sādhaka Me adora constantemente pelo método de bhakti-yoga con-
forme Eu descrevo, Eu venho e Me instalo em seu coração. Assim que me
acomodo ali, todos os desejos materiais e os saṁskāras em que se baseiam
esses desejos são destruídos. Quando o sādhaka Me vê diretamente como
a Superalma (Paramātmā) presente no coração de todos os seres vivos, o
nó do falso ego que existe em seu peito é dilacerado, todas as suas dúvidas
são despedaçadas e seu desejo de realizar karma é erradicado por inteiro.
O uso da palavra prītaḥ, nesse caso, indica que o sādhaka se ocupa e se ab-
sorve totalmente no processo espiritual e que a totalidade de seus esforços – sa-
turados de amor e afeição sinceros –, é dedicada a fazer de sua vida espiritual
(kṛṣṇa-bhajana) a sua vida e sua alma. Ele não se dedica a essas atividades por
uma questão de dever – pelo contrário, realiza-as com total sinceridade por
amor verdadeiro e intrínseco, em sânscrito: prīti.
Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura expressa essa ideia em um kīrtana baseado no
quarto verso do Śrī Śikṣāṣṭakam, no qual ele ora comas emoções e o humor de
um sādhaka sincero:
tviṣaye ĵe prīti ebe āchaye āmāra
sei mata prīti hauka caraṇe tomāra
Qualquer que seja a atração que eu sinta pelos prazeres mundanos,
que eu desenvolva a mesma afeição pelos Seus pés de lótus.
De igual maneira, Śrīla Rūpa Gosvāmī ora como se segue (Bhakti-
-rasāmṛta- sindhu 1.2.153):
yuvatīnāṁ yathā yūni
yunāṁ ca yuvatau yathā
mano ’bhiramate tadvan
mano me ramatāṁ tvayi
Assim como as moças sentem prazer em pensar nos rapazes e os rapazes,
em pensar nas moças, permita que minha mente sinta prazer em pensar em
Você, apenas.
Nos ślokas supramencionados do Śrīmad Bhāgavatam, Śrī Kṛṣṇa diz que
embora os devotos possam ter falhas e dificuldades em seu śādhana (tal como
a incapacidade de controlar os sentidos) devido anarthas residuais, Ele próprio
corta pela raíz todos os desejos materiais daqueles que, enquanto se lamentam
por terem anarthas, O adoram com sinceridade – a mesma espécie de sinceri-

231
Viśuddha Caytania-Vāṇī

dade expressada por Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura e Śrīla Rūpa Gosvāmī – e têm
plena fé e convicção em seus corações que querem realizar, a todo custo, o sevā
a Bhagavān e a Seus devotos sem o menor interesse no resultado material. Desse
modo, tais devotos se livrarão de todos os obstáculos.
É simplesmente o real desejo de ser sincero que garante ao devoto a con-
quista da sinceridade. Com essa sinceridade, o devoto se torna capaz de executar
o tipo de devoção (bhakti) que o eleva à plataforma na qual poderá identificar
quem é um praṇayi-bhakta de verdade.

232
Capítulo 22 - Reconhecendo um praṇayi-bhakta

233
As glórias de invocarmos
os nomes dos puros vaiñëavas

Embora há quem ignore as verdadeiras qualidades e glórias dos vaiṣṇavas mais


puros e elevados, obtemos o máximo bem-estar espiritual cantando ou excla-
mando os nomes de semelhantes personalidades com o sentimento de uma
oração fervorosa. Nosso purva-ācārya Śrīla Raghunātha dāsa Gosvāmī escreve
em seu Śrī Manaḥ-śikṣā (5):
asac-ceṣṭā-kaṣṭa-prada-vikaṭa-pāśālibhir iha
prakāmaṁ kāmādi-prakaṭa-pathapāti-vyatikaraiḥ
gale baddhvā hanye ’ham iti bakabhid vartmapa-gaṇe
kuru tvaṁ phutkārān avati sa yathā tvāṁ mana itaḥ
A luxúria, a ira e assim por diante, são um grupo de criminosos que nos as-
saltam de repente na estrada aberta da vida material. Eles amarram nosso
pescoço licenciosamente com a torturante e ameaçadora corda das ações
pecaminosas e assim nos matam”. Oh, mente, usando essas palavras, você
precisa chorar com todas as suas forças clamando pelos poderosos e miseri-
cordiosos devotos do Senhor, que são os verdadeiros protetores do caminho
da devoção que conduz a Śrī Kṛṣṇa, o exterminador de Bakāsura – o demônio
que representa a falsidade, a propensão a enganar e a dissimulação. Ouvindo
essa profunda lamentação, eles certamente protegerão você.
Em seu comentário ao Śrī Manaḥ-śikṣā, Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura apre-
senta a tradução do verso citado acima em uma composição poética em Bengali:
kāma-krodha-lobha-moha- mada-matsaratā-saha,
jīvera jīvana-pathe bôsi’
asac-ceṣṭā rajju-phāse, pathikera dharma nāśe,
prāṇa la’ye kare kaṣākaṣi
mana, tumi dharô vākya mora
ei saba bāṭapāḓa, atiśaya durnivāra,
ĵakhôna gheriyā kare jora
āra kichu nā kôriyā, vaiṣṇavera nāma lôĩyā,
phukāriyā ḍākô uccarāya
baka-śatru-senāgaṇe, kṛpā kôri’ nija-jane,
ĵā’te kare uddhāra tomāya

235
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Nesse verso, Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura diz: “A luxúria, a raiva, a cobiça e a


dúvida posicionam-se juntamente com o orgulho e a inveja no caminho da exis-
tência material do ser vivo para prendê-lo com as cordas das más ações (asac-
-ceṣṭā), por meio das quais a religiosidade do ser vivo, ou seja, seu caráter pessoal,
suas nobres intenções e sua determinação em seguir os princípios espirituais são
destruídos. Eles continuam apertando cada vez mais o laço em volta do pescoço
do ser vivo, para tentar destruir sua vida espiritual.
“Portanto, óh mente, ouça minhas palavras com todo cuidado. A luxúria, a
raiva e os demais são desonestos e mentirosos, enganadores e embusteiros. Quan-
do eles cercam uma pessoa desamparada e manifestam seu pleno poder sobre ela,
torna-se extremamente difícil e imensamente doloroso para tal pessoa se proteger
e se livrar de suas garras.
“Óh mente! Não faça nada além de cantar em voz alta o nome dos vaiṣṇavas.
Como resultado, os comandantes do exército de Śrī Kṛṣṇa, o exterminador de
Bakāsura, considerarão que você é tão querida como algo de propriedade deles,
e com certeza sentirão compaixão, libertando você das garras destes terríveis
criminosos”.
Śrī Devakīnandana dāsa escreve no final de seu Vaiṣṇava-vandanā:
prabhāte uṭhiyā paḓe vaiṣṇava-vandanā
kona kāle nāhi pāya kona-i ĵantraṇā
devera durlabha sei premabhakti labhe
devakīnandana dāsa kahe ei lobhe
O significado desses versos é: “Aqueles que se levantam de manhã e recitam
essas orações aos vaiṣṇavas – dirigindo-se essencialmente a cada um deles –,
nunca enfrentam nenhuma aflição em suas vidas. Pelo simples fato de adotar este
método – exclamar os nomes dos vaiṣṇavas –, essas pessoas conquistam amor
puro por Deus (prema-bhakti), uma benção rara até mesmo para os semideu-
ses. Com o desejo fervoroso e exclusivo de conquistar a devoção amorosa, eu,
Devakīnandana dāsa, exclamo o nome dos vaiṣṇavas.”

236
Capítulo 23 - As glórias de invocarmos os nomes dos puros vaiṣṇavas

237
A misericórdia de Kåñëa
depende de snehamayi-sevä

A misericórdia é consequência do serviço


Muitas pessoas vêm até mim para pedir o seguinte: “Mahārāja-jī, por favor nos
conceda sua misericórdia e nos abençoe para que conquistemos serviço devo-
cional puro (śuddha-bhakti) e, por fim, alcancemos amor verdadeiro por Śrī
Bhagavān”. No entanto, para falar a verdade, a misericórdia e as bênçãos não são
objetos que alguém possa pedir. Além do mais, śrī guru, os vaiṣṇavas e Bhagavān
não concedem sua misericórdia pelo simples fato de pedirmos tal graça. Ape-
sar de podermos ver externamente que śrī guru e os vaiṣṇavas estendem suas
bênçãos e bons votos com suas doces palavras, colocando a mão deles sobre a
cabeça desta ou daquela pessoa, esses atos não devem ser considerados como
bênçãos efetivas. Bênçãos e misericórdia verdadeiras surgem naturalmente do
próprio coração de śrī guru, dos vaiṣṇavas e de Bhagavān, mesmo que ninguém
peça nada a eles. Embora tais bênçãos não tenham sido expressadas externa-
mente por palavras ou ações, o efeito, o fruto dessas verdadeiras bênçãos, po-
dem ser percebidos de imediato ou no devido curso do tempo.
O desejo de conceder misericórdia e bênção não surge no coração de śrī
guru, vaiṣṇavas e Bhagavān sem razão; a manifestação de semelhantes coisas
depende exclusivamente de alguém ter praticado ou não snehamayi-sevā, serviço
cheio de afeto amoroso. É apenas por este motivo que Śrīman Mahāprabhu diz
(Śrī Caitanya- caritāmṛta Madhya-līlā 10.139):
sneha-sevapeksā mātra śrī-kṛṇṣa-kṛpāra
sneha-vaśa haĩyā kare svatantra ācāra
A misericórdia de Śrī Kṛṣṇa depende apenas do serviço prestado com o má-
ximo de amor e de afeição. Por Ele ser conquistado apenas pela afeição, ele
age independentemente”.
A manifestação da misericórdia de Śrī Kṛṣṇa não depende de casta, linha-
gem familiar ou quaisquer outras capacidades materiais, mas depende, definiti-
vamente, do serviço amoroso e afetuoso prestado por quem busca a misericórdia.
Muito embora Śrī Kṛṣṇa seja absolutamente independente, Ele Se deixa
controlar pelo sneha-yukta sevā, o serviço repleto de amor e afeição. E, a fim de

239
Viśuddha Caytania-Vāṇī

satisfazer os desejos de seus devotos, Ele Se envolve na realização de passatem-


pos, ao mesmo tempo em que preserva Sua independência completa.
O verdadeiro significado de serviço amoroso e afetuoso a Śrī Kṛṣṇa consis-
te em ocupar-se de serviço a Ele, segundo as recomendações, os humores e os
desejos íntimos do Senhor. Ninguém mais tem como conhecer esse assunto me-
lhor do que a sua anukūla-śakti, Śrīmatī Rādhikā. Ela é a personificação do amor
puro por Kṛṣṇa, estando sempre absorta no humor de serví-lO, sendo assim, é
tida como a mais elevada entre todos os sábios (sādhus).
Seguir regras não é suficiente
Nós não atraímos a misericórdia divina de Śrī Kṛṣṇa apenas por prestarmos
serviço conforme as normas estipuladas nas escrituras (maryādā-sevā), mas
sim ao realizarmos esse serviço com o máximo de amor e afeição ou com uma
sede intensa e sincera de prestar esse serviço afetuoso. Serviço amoroso e afe-
tuoso quer dizer ocupar-se em śrī kṛṣṇānuśīlana (serviço favorável a Kṛṣṇa)
sob a orientação de Sua anukūla-śakti, Śrīmatī Rādhārāṇī, a personificação
do mais alto nível de devoção (uttamā-bhakti). Nenhum outro método é tão
eficiente como este para atrair a misericórdia de Śrī Kṛṣṇa. A esse respeito,
Śrīman Mahāprabhu diz (Śrī Caitanya-caritāmṛta Madhya-līlā 10.140):
maryādā hôite koṭi sukha sneha-ācaraṇe
paramānanda haya ĵāra nāma-śravaṇe
Concluindo, os relacionamentos afetuosos promovem uma felicidade mi-
lhões de vezes superior àquela dos relacionamentos que seguem as regras
de conduta dos textos sagrados. Pelo simples fato de ouvir a expressão
‘relacionamentos afetuosos’, o coração mergulha em bem-aventurança
transcendental.
Esse assunto se demonstra com toda clareza na circunstância em que Śrīman
Mahāprabhu concede Sua misericórdia ao rei Pratāparudra, conforme descreve o
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā, Capítulo 12).
O desejo do rei Pratāparudra
A princípio, o rei Pratāparudra escreveu uma carta para Śrī Sārvabhauma
Bhaṭṭācārya pedindo-lhe permissão para se encontrar com Śrīman Mahāprabhu.
Quando Śrī Sārvabhauma Bhaṭṭācārya respondeu à carta, afirmando que
Śrīman Mahāprabhu não tinha dado Seu consentimento para semelhante en-
contro, o rei lhe enviou outra carta dizendo: “Por favor, faça este pedido em
nome de todos os companheiros de Śrīman Mahāprabhu. Por serem devotos
grandiosos, são cheios de compaixão espontânea para com todos os seres vivos
(jīvas) e, com certeza, terão misericórdia de mim. Somente se eles pedirem a

240
Capítulo 24 - A misericórdia de Kṛṣṇa depende de snehamayi-sevā

Śrīman Mahāprabhu para que me dê Sua misericórdia é que eu conseguirei


ter a divina visão (darśana) de Seus pés de lótus, sem a qual abandonarei este
reino e me tornarei um mendigo”.
Śrī Sārvabhauma Bhaṭṭācārya mostrou a carta do rei a Śrīman Nityānanda
Prabhu e aos demais devotos. Quando Nityānanda Prabhu apresentou a solicita-
ção do rei a Śrīman Mahāprabhu, o Senhor respondeu: “Não vou Me encontrar
com o rei a pedido de vocês. Só farei isso se Dāmodara Paṇḍita o recomendar”.
Em resposta à afirmação de Mahāprabhu, Śrī Dāmodara Paṇḍita disse:
“Quem sou eu para dizer algo a você a esse respeito? Mesmo assim, posso com
certeza dizer que Você vai acabar se encontrando com o rei e eu serei testemu-
nha desse encontro. Se você me pergunta que certeza eu tenho disso, a minha
resposta é a seguinte (Śrī Caitanya-caritāmṛta Madhya-līlā, 12.28):
rājā tomāre sneha kare, tumi-sneha-vaśa
tāra snehe kôrābe tāre tomāra paraśa
O rei Pratāparudra tem intenso amor e afeição por Você. É de Sua natureza
deixar-se facilmente controlar pelo amor e afeição de Seus devotos. É apenas
em virtude desse afeto – isso para não falar de receber a bênção da Sua
visão (darśana) – , que o rei obterá a Sua misericórdia através do Seu toque
Aqui surge uma dúvida sobre como podemos afirmar, apenas pela car-
ta antes mencionada, que o rei Pratāparudra tinha imensa afeição por Śrīman
Mahāprabhu e se existiam outros indícios desse seu grande amor. Apesar de Śrī
Dāmodara Paṇḍita ter dito no verso acima: “O rei tem intenso amor e afeição
por Você”, o verdadeiro significado disso é: “O coração do rei está repleto de
desejo de Lhe prestar serviço devocional com todo amor e afeição”. Isto fica evi-
dente pelo fato de o rei ter prestado serviço direto aos companheiros de Śrīman
Mahāprabhu com todo o seu coração e com tudo o que ele possuía.
Śrī Dāmodara Paṇḍita disse, ainda, a Śrīman Mahāprabhu: “Embora Você
seja o Senhor absolutamente independente, é de sua natureza deixar-Se contro-
lar pelo amor de Seus devotos imaculados, por isso Você é premaparatantra,
dependente do amor (prema)”.
Nesse contexto, parece que o Senhor Supremo Se deixa controlar pelos de-
votos que o servem com profundos amor e afeição. Ao referir-se ao Seu devoto,
o rei Ambarīṣa, o próprio Senhor disse a Śrī Durvāsā Muni (Śrīmad-Bhāgavatam
9.4.63):
ahaṁ bhakta-parādhīno
hy asvatantra iva dvija
sādhubhir grasta-hṛdayo
bhaktair bhakta-jana-priyaḥ

241
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Me deixo controlar por inteiro pelos Meus devotos. De fato, não sou absolu-
tamente independente. Como Meus devotos são inteiramente desprovidos
de desejos materiais, Eu Me sento exclusivamente no âmago de seus cora-
ções. O que falar, então, do Meu devoto – mesmo aqueles que são devotos
do Meu devoto são muito queridos a mim.
O Senhor afirma ainda (Śrīmad-Bhāgavatam 9.4.66):
mayi nirbaddha-hṛdayāḥ
sādhavaḥ sama-darśanāḥ
vaśe kurvanti māṁ bhaktyā
sat-striyaḥ sat-patiṁ yathā
Assim como as mulheres castas mantêm seus gentis esposos sob controle
pelo serviço que lhes prestam, os devotos puros – que enxergam cada pes-
soa segundo sua respectiva posição e são inteiramente apegados a Mim no
âmbito do coração –, Me mantém sob seu pleno controle.
Se assim é a expressão de amor do Senhor para com Seu devoto Ambarīṣa
Mahārāja, podemos, então, considerar quão intenso deve ser o Seu amor por
anukūlaśakti Śrīmatī Rādhikā. A esse respeito, certa vez Kṛṣṇa assumiu a for-
ma de Śrī Jayadeva Gosvāmī e pessoalmente escreveu as palavras “smara garala
khaṇḍanam, māmā śirasi maṇḍanaṁ, dehī pada-pallavam udaraṁ – Rādhike!
Ofereça os viçosos brotos de Seus pés encantadores como um ornamento para
colocar sobre Minha cabeça” (Gīta-govinda 10.8), expressando, assim, seus sen-
timentos. Para que Kṛṣṇa faça semelhantes declarações ou para que tenha esses
sentimentos de fato, não há absolutamente perda alguma de Sua independência
sumamente divina. Ele não se deixa controlar por ninguém, a não ser pelo Seu
próprio desejo sincero. Logo, essa sua submissão é conhecida como prema-
-paratantrata, dependente apenas de prema.
O afetuoso serviço do rei
Enquanto Dāmodara Paṇḍita garantia a Śrīman Mahāprabhu que Ele com cer-
teza iria Se encontrar com o rei Pratāparudra em algum momento no futuro,
Nityānanda Prabhu sugeriu algo ao Senhor. Se Śrīman Mahāprabhu, propôs
ele, pudesse fornecer ao rei uma veste que Ele próprio já tivesse usado, talvez
a agitação do rei ficasse apaziguada até certo ponto, permitindo-lhe preservar
sua vida. Śrīman Mahāprabhu aceitou aquela proposta e fez com que envias-
sem ao rei uma das roupas por Ele usadas. Embora o rei tenha ficado extrema-
mente feliz ao receber a misericórdia (prasāda) do Senhor sob a forma de Sua
roupa, ele ainda assim ansiou vê-lo (darśana) diretamente.
Depois disso, o rei Pratāparudra aproximou-se de Śrī Rāmānanda Rāya e
pediu-lhe para transmitir ao Senhor suas súplicas sinceras na intenção de vê-Lo

242
Capítulo 24 - A misericórdia de Kṛṣṇa depende de snehamayi-sevā

pessoalmente. Concordando com o pedido do monarca, Śrī Rāmānanda Rāya


repetidas vezes informou ao Senhor a respeito desse desejo do rei pedindo-lhe
para que Ele se encontrasse com o rei. Śrīman Mahāprabhu não aceitou. No en-
tanto, mencionou que estaria disposto a Se encontrar com o filho do rei. No
encontro dos dois, o Senhor abraçou o príncipe transmitindo-lhe amor puro
(prema), e chegou a dizer ao príncipe que ele deveria visitá-lO diariamente!
Apesar do rei Pratāparudra ter conseguido que vários companheiros de
Śrīman Mahāprabhu pedissem ao Senhor em nome dele, ele mesmo assim não
conseguiu obter o darśana do Senhor. No entanto a previsão de Śrī Dāmodara
Paṇḍita, de que Śrīman Mahāprabhu haveria de Se encontrar com ele rapida-
mente, se mostrou verdadeira quando o Senhor foi testemunha de que o rei esta-
va fazendo serviço cheio de afeto amoroso (snehamayi-sevā).
Na ocasião do festival do Ratha-yātrā, o rei Pratāparudra pegou uma vassou-
ra dourada com as mãos e varreu a avenida em frente às carruagens. Depois disso,
borrifou água perfumada com sândalo por todo o caminho. Embora fosse um rei,
ele prestou aqueles serviços aparentemente subalternos com muito amor e afei-
ção, compreendendo plenamente a importância do serviço ao Senhor Supremo.
mahāprabhu sukha pāila se-sevā dekhite
mahāprabhura kṛpā hôilô se-sevā hôite
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 13.18)
Śrīman Mahāprabhu encheu-se de bem-aventurança ao observar o ser-
viço do rei Pratāparudra e, apenas em consequência daquele serviço, o rei
Pratāparudra pôde presenciar Śrīman Mahāprabhu dançando simultaneamente
diante de sete grupos de devotos e praticando saṅkīrtana durante o festival da
carruagem, uma cena que a maioria dos devotos não pôde testemunhar. Mais
tarde, o rei também conquistou a fortuna de recitar a canção das gopīs (Gopī-gīta)
para Mahāprabhu, uma canção dEle, enquanto dedicava-se ao raríssimo serviço
de massagear-Lhe os pés de lótus. Ao ouvir o verso da Gopī-gīta que começa
com tava-kathāmṛtaṁ, Mahāprabhu ficou tão satisfeito que não apenas tocou
no rei, mas também deu-lhe um abraço apertado, dizendo: “Você acaba de Me
dar joias inestimáveis. Eu o abraço porque não tenho mais nada com que retri-
buir.” Recebendo o toque de Mahāprabhu, o rei manifestou sintomas de prema.
Dessa maneira, Śrīman Mahāprabhu se deixou controlar pelo serviço afetuoso e
amoroso do rei, e assim aceitou todos os serviços dele, conforme era seu desejo.
O significado de ahaitukī
Agora surge outra dúvida que é a seguinte: se o fato dO Senhor manifestar a
Sua misericórdia depende do serviço amoroso e afetuoso realizado por Seus

243
Viśuddha Caytania-Vāṇī

devotos, qual é então o significado do termo ahaitukī citado nas escrituras


com referência à misericórdia dEle? Embora ahaitukī seja um termo em geral
compreendido como sendo ‘aquilo que se manifesta sem causa (hetu) alguma’,
há outro significado. A vogal a [em ahaitukī] refere-se a Viṣṇu e, por sua vez,
a Kṛṣṇa – do mesmo modo que a vogal a representa Kṛṣṇa na palavra auṁ [a
combinação de a, u e m]. A palavra haitukī quer dizer ‘em relação a’, ‘apenas
a’ e ‘para’ a pessoa ou objeto em questão. Quando acrescentamos esses dois
conceitos, o significado completo da palavra ahaitukī torna-se ‘com relação a
Kṛṣṇa, apenas a Kṛṣṇa, e para Kṛṣṇa.’
Quando as escrituras mencionam que Bhagavān concede Sua misericórdia
ahaitukī, isso quer dizer que, quando Ele Se dá conta de que o coração de deter-
minado devoto é isento do menor apego a qualquer outra pessoa senão Ele, e
percebe que o devoto vive totalmente imerso em prestar-Lhe devoção exclusiva
– ananyāś cintayanto māṁ (Bhāgavad-gītā 9.22) –, só então é que Ele lhe conce-
de Sua misericórdia.
Por outro lado, quando o devoto ora ao Senhor com atitude semelhante
àquela do kīrtana de Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura, baseado no quarto verso do
Śrī Śikṣāṣṭakam, “ahaitukī bhakti hṛde jāge anukṣane – que ahaitukī-bhakti pelo
Senhor Supremo desperte em meu coração” –, o verdadeiro significado de
ahaitukī nesse caso é que o devoto ora para absorver o humor de serviço amo-
roso e afetuoso relacionado a Kṛṣṇa, diretamente para Kṛṣṇa e direcionado a
Kṛṣṇa, e que esse humor se manifeste em seu coração. Se o outro significado de
ahaitukī se aplicasse a esse caso – isto é, ‘sem motivo ou propósito algum’–, então
indicaria niṣkāma-karma (atividades altruístas), e assim a palavra não teria sig-
nificado ou importância especial. Se fosse esse o caso, o fato de Kṛṣṇa conceder
Sua misericórdia a uma pessoa e não à outra, sem motivo algum, O “levaria” a
cometer o erro da parcialidade (pakṣa-pāta). No entanto, o próprio Kṛṣṇa diz no
Bhagavad-gītā (9.29):
samo ’ham sarva-bhūteṣu
na me dveṣyo ’sti na priyaḥ
ye bhajanti tu mām bhaktyā
mayi te teṣu cāpyaham
Disponho-Me igualmente para com todos os seres vivos, não sendo hostil
nem parcial com ninguém. No entanto, já que aqueles que Me servem
com bhakti são apegados a Mim, Eu também estou ligado a eles pelos
laços do afeto.
Por isso, a palavra ahaitukī não quer dizer “sem motivo”, mas sim “ apenas
por causa de Kṛṣṇa”; essa definição é mais apropriada.

244
Capítulo 24 - A misericórdia de Kṛṣṇa depende de snehamayi-sevā

245
O verdadeiro significado
de morar em um local sagrado

Pergunta: Meu Guru Mahārāja me orientou a morar em Śrīdāma Māyāpura,


porque ali a misericórdia de Śrīman Mahāprabhu e a misericórdia de Śrīman
Nityānanda Prabhu fluem livremente, sem discriminação. Apesar de eu ter obe-
decido sua ordem e ter ficado ali por algum tempo, meu coração é árido mesmo
assim e não consigo me concentrar na prática dos processos de bhakti. Minha
mente oscila daqui para lá atraindo-me à força para este mundo material. Além
disso, lá não é fácil obter a companhia dos devotos (sādhu-saṅga). Sei de um ou
dois lugares onde posso ter facilmente semelhante contato, porém tenho medo
que se eu sair de Māyāpura-dhāma, eu estarei desobedecendo a ordem de meu
Guru Mahārāja. Qual é o meu dever em semelhante situação?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: As palavras e orientações de personali-
dades transcendentais têm significados profundos que não são fáceis de com-
preender nem mesmo para grandes eruditos, isso para não falar dos ignorantes.
Mesmo neste mundo material percebemos que há desentendimentos em toda
parte. Assim, como podemos esperar de fato apreender [ou compreender] o
significado profundo das orientações de um sādhu?
Certa vez, havia um homem cujo pai estava à beira da morte. Antes de mor-
rer, o pai deu ao filho quatro orientações sob a forma de charadas: (1) “Construa
um mercado próximo à nossa casa”; (2) “Beba água apenas no meio do lago”;
(3) “Cada vez que você der uma mordida em algum alimento, nisso deverá ser
incluso a cabeça de um peixe”; (4) “Sempre que você estiver confuso, busque o
conselho de alguém com três cabeças”.
O pai faleceu antes de seu filho conseguir perguntar-lhe os significados da-
quelas orientações enigmáticas, assim o filho levou essas orientações ao pé da
letra. Assim fazendo, ele ficou cada vez mais pobre, fraco e com a mente cada
vez mais instável. Ele se lembrou de que seu pai tinha mandado que ele buscasse
o conselho de um homem com três cabeças quando ele não tivesse certeza de
algo – e ele buscou semelhante pessoa, em vão.
De alguma forma, ele acabou entrando em contato com um senhor idoso
e sábio. Aquele homem, percebendo o pesar do rapaz, perguntou-lhe: “O que
o incomoda?”

247
Viśuddha Caytania-Vāṇī

O rapaz replicou: “Segundo dizem, encontramos toda espécie de bênçãos


seguindo as ordens de nossos seniores. Porém, após seguir as orientações do
meu pai, percebo que está acontecendo comigo exatamente o oposto”. O filho,
então, revelou àquele senhor idoso as quatro orientações de seu pai.
Sorridente, o senhor idoso disse: “‘Alguém que tenha três cabeças’ refere-se
a alguém que mantenha sua cabeça apoiada nas duas mãos o tempo todo – em
outras palavras, uma pessoa muito idosa e experiente. Como já sou velho, posso
ajudá-lo a compreender corretamente as orientações de seu pai. ‘Estabelecer
um mercado perto do seu lar’ não quer dizer que você deva alugar a sua pro-
priedade para os outros em troca de construir lojas. Pelo contrário, quer dizer
que, como você é fazendeiro, deve vender as suas colheitas em sua própria casa
ao invés de fazê-lo em um mercado distante. Se fizer assim, você terá sucesso
financeiro. ‘Beber água apenas no meio do lago’ quer dizer que você deve beber
água durante as refeições, não antes, nem após. Isso vai lhe proporcionar boa
saúde. ‘Comer uma cabeça de peixe a cada mordida’ quer dizer que você deve
comer pequenos peixes que são comidos inteiros, de uma só mordida, nunca
peixes grandes”. [Segundo aqueles que comem peixes, os pequenos são consi-
derados mais saudáveis que os peixes maiores].
Depois de ter ouvido os verdadeiros significados das orientações de seu
pai, o filho começou a segui-las e acabou se tornando rico e saudável. Da mes-
ma maneira, como é impossível compreender os verdadeiros significados das
orientações de nossos ācāryas pelo nosso próprio esforço, é preciso que con-
sultemos autoridades superiores que possam explicar nosso dever com clareza.
A fim de entender a orientação que seu Guru Mahārāja lhe deu, de ficar
no dhāma, em primeiro lugar você precisa compreender que a mera presença
física não representa dhāmavāsa. Śrīla Svarūpa Dāmodara Gosvāmī jamais pi-
sou em Vṛndāvana, mesmo assim, Śrīman Mahāprabhu diz: “iṅho dāmodara-
svarūpaśuddha-vrajavāsī – esse Svarūpa Dāmodara é um Vrajavāsī puro”. De
igual maneira, embora Śrīla Prabhodānanda Sarasvatīpāda não tenha visitado
Śrīdhāma Navadvīpa, as autoridades eruditas sempre aceitam que ele tenha fei-
to isso, devido à maneira extraordinária pela qual ele glorifica aquele lugar.
Todos nós temos um corpo denso, um corpo sutil e uma alma. Neste mun-
do material, percebemos que certas pessoas se preocupam mais com a mente.
Se surge a necessidade, essas pessoas fazem pouco caso dos confortos físicos em
nome da paz de espírito; elas escolhem tolerar dificuldades físicas a fim de mo-
rar em um ambiente que seja mais favorável para a tranquilidade mental. Há,
ainda, pessoas mais inteligentes que dão preferência às necessidades da alma.
Considerando esses temas, podemos concluir que a presença física não é o

248
Capítulo 25 - O verdadeiro significado de morar em um local sagrado

aspecto pelo qual se define a morada de alguém. Na verdade, é somente quando


a própria mente se concentra em pensamentos a respeito de um lugar que se
pode de fato considerar que alguém mora ali. Dessa maneira, quando o sādhu
orienta alguém a permanecer no dhāma, ele na verdade está inferindo que é
preciso pensar sempre no dhāma, em Śrī Caitanya Mahāprabhu, Seus ensina-
mentos e em como refugiar-se plenamente naquele lugar – e que é preciso per-
manecer concentrado nos humores dos verdadeiros dhāma-vāsīs.
Conforme Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura menciona em seus escritos, “yathāya
vaiṣṇava-gaṇa sei sthāna vṛndāvana – onde quer que haja vaiṣṇavas, esse lugar
é Vṛndāvana”. Segundo o conceito mais elevado, dhāma-vāsa se refere a estar
na companhia e servir aqueles que glorificam Śrī Kṛṣṇa e Seus companheiros
e falam de Seus passatempos. Esse lugar deve ser conhecido como Vṛndāvana;
ali, a poeira é tida como vraja-raja, uma montanha ou uma colina é considerada
Girirāja Govardhana e um rio ou riacho é considerado Yamunā-devī. Tamanho é o
poder do devoto puro. Se moramos em um lugar onde não há vaiṣṇavas dos quais
possamos ouvir hari-kathā, então jamais poderemos dizer que estamos
de fato no dhāma sagrado. Certa vez, Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta
Sarasvatī Ṭhākura foi aconselhado por seu Guru Mahārāja, Śrīla Gaura-kiśora
dāsa Bābājī Mahārāja, a nunca ir para Calcutá, porque Calcutá é a residência de
Kālī. No entanto, externamente, vemos que Calcutá foi o primeiro lugar onde
Śrīla Prabhupāda estabeleceu um templo (maṭha) e ali ele realizou tantas ati-
vidades, como imprimir livros, pregar, organizar festivais e assim por diante.
Quando lhe perguntaram porque ele desobedeceu a ordem de seu gurupāda-
-padma, de não ir jamais a Calcutá, ele respondeu: “Jamais estive em Calcutá.
Eu apenas, e sempre, tenho visitado Vaikuṇṭha-dhāma.” Embora a maioria das
pessoas tivesse compreendido a orientação de Śrīla Bābājī Mahārāja de maneira
externa, Śrīla Prabhupāda compreendeu o seu significado profundo. Ao dizer
que jamais tinha ido a Calcutá, Śrīla Prabhupāda estava se referindo ao fato de
jamais ter contato com o mundo material e de apenas ter tido darśana de obje-
tos transcendentais. Onde quer que ele fosse, ele só ia a serviço de Hari, do guru
e dos vaiṣṇavas. Na realidade, embora parecesse estar hospedado em alguma
cidade distante, ele sempre morava aos pés- de-lótus de seu gurudeva.
Compreender as palavras de uma personalidade do calibre de Śrīla Gaura
Kiśora dāsa Bābājī Mahārāja não é algo fácil. Certa vez, Jagadīśa Bābū – o pri-
meiro discípulo de Śrīla Prabhupāda, que mais tarde ficou conhecido como Śrī
Śrīmad Bhakti Pradīpa Tīrtha Gosvāmī Mahārāja – visitou Bābājī Mahārāja.
Ao chegar no bhajana-kuṭīra de Bābājī Mahārāja, Jagadīśa Bābū ofereceu-lhe
uma melancia. Bābājī Mahārāja aceitou a fruta e disse: “É ótimo que você tenha

249
Viśuddha Caytania-Vāṇī

vindo ao dhāma. Você deve sempre morar aqui”.


Jagadīśa Bābū respondeu: “Bābājī Mahārāja, não posso ficar aqui. Já tenho
uma passagem de volta para casa”.
Bābājī Mahārāja arregalou os olhos, espantado, e então disse: “Uma pas-
sagem de volta? Jamais ouvi dizer que era possível para alguém que tenha che-
gado no dhāma retornar”.
Ouvindo aquilo, Jagadīśa Bābu ficou chocado. Ele pensou assim: “ Apesar
de eu ter lido as palavras de Śrī Kṛṣṇa pronunciadas por Ele no Bhagavad-gītā
muitas vezes, até agora eu não havia entendido a Sua declaração: “yad gatvā na
nivartantetad dhāma paramaṁ mama – quem quer que venha à Minha morada
não regressa jamais”. Ele logo prestou praṇāma a Bābājī Mahārāja e fez-lhe o
seguinte pedido: “Por favor, diga-me como seria possível que eu permanecesse
sempre no dhāma, já que tenho tantas outras obrigações e responsabilidades”.
Ao perceber a sinceridade de Jagadīśa Bābū, Bābājī Mahārāja ensinou que
morar no dhāma não quer dizer morar fisicamente em um lugar sagrado, e ele
poderia tornar-se morador do dhāma apenas refugiando-se em dhāma-vāsīs,
como Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura. Então, ele lhe disse que se ele se refugiasse
plenamente aos pés de lótus de Ṭhākura, ele seria considerado um dhāma-vāsī
e não importava onde ele estivesse. Dessa maneira, ele jamais sairia do dhāma,
mesmo que voltasse para sua casa física.
Quando alguém renuncia totalmente a sua independência e se refugia aos
pés de lótus de um companheiro do Senhor, essa pessoa jamais deixa o dhāma,
mesmo que às vezes ele tenha que ir fisicamente para algum outro lugar para
servir ao guru-varga.

250
Capítulo 25 - O verdadeiro significado de morar em um local sagrado

251
O meio para se conquistar paz
eterna e satisfacão
, plena

Realizar karma é insatisfatório


Neste mundo material, pouquíssimas pessoas estão de fato ocupadas cumprindo
o seu karma – ou atividades prescritas pelos Vedas. A maioria das pessoas realiza
vikarma, as atividades proibidas pelas escrituras, ao passo que os poucos restan-
tes se dedicam a akarma, atividades que não são nem prescritas, nem proibidas
pelos Vedas. Mesmo pessoas que cumprem sinceramente com seu karma não
têm como conquistar paz eterna e satisfação completa – o que dizer, então, da-
queles ocupados em vikarma e akarma.

Não existe satisfação nem mesmo nos sistemas planetários


superiores
Segundo afirma o Śrīmad-Bhāgavatam (11.19.18), pelo fato de cada atividade
realizada nesta criação material ser temporária, todos os sistemas planetários,
inclusive Brahmāloka, contêm apenas maus presságios:
karmaṇāṁ pariṇāmitvād
ā-viriñcyād amaṅgalam
A felicidade existente na criação material é um mero resultado do karma e
por isso não existe felicidade nem bons presságios permanentes neste mundo,
muito menos nos sistemas planetários superiores. De fato, não é possível con-
quistar satisfação eterna mesmo nas moradas celestiais, porque elas também
são temporárias e existem por um período finito de tempo. Ao se referir a esta
falta de satisfação, o Garuḍa Purāṇa (2.12.13, 14) afirma:
icchati śatī sahasraṁ
saha śrī lakṣamīhate kartum
lakṣādhipatī rājyaṁ rājāpi
sakalāṃ dharāṁ labdhum
cakradharo ’pi suratvaṁ surabhāve
sakalasurapatir-bhavitumt
surapatir-ūrdhvagatitvaṁ
tathāpi na nivartate tṛṣṇā

253
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Aquele que tem cem peças de prata, deseja mil. Aquele que tem mil pe-
ças, deseja cem mil. Aquele que tem cem mil, deseja um reino. Quem tem
um reino, deseja a posição de imperador. Quem tem a posição de impera-
dor, deseja a posição de um semideus e, depois disso, ele sucessivamente
vai desejar e conquistar as posições de Indra, Brahmā e, eventualmente,
Śiva. Mesmo após chegar a tal posição, sua sede de poder permanece
insatisfeita.
É apenas praticando bhakti que alguém consegue completa
satisfação e paz duradoura
Até que alguém conquiste os pés de lótus da entidade eterna Śrī Kṛṣṇa, que
é a fonte de tudo o que é bom, jamais conseguirá alcançar paz verdadeira ou
satisfação plena:
kṛṣṇa-bhakta—niṣkāma, ataeva ‘śānta’
bhukti-mukti-siddhi-kāmī—sakali ‘aśānta’
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 19.149)
O devoto de Śrī Kṛṣṇa não cultiva desejos, e por isso vive em paz. Aquele
que deseja o prazer dos sentidos, libertação e perfeições místicas, contudo,
continua perturbado.
Todos os seres vivos deste mundo desejam apenas satisfazer seus sentidos,
oferecendo doces sons para os ouvidos, objetos macios para a pele, belas formas
para os olhos, deliciosos alimentos para a língua e doces fragrâncias para o na-
riz. Esses cinco elementos – som, forma, gosto, toque e cheiro – encontram-se
em quantidades completas, infinitas, apenas em Śrī Kṛṣṇa, e Śrī Kṛṣṇa revela
as verdadeiras formas transcendentais desses objetos apenas a Seus devotos
puros. Tendo experimentado as formas puras desses elementos, os devotos de
Śrī Kṛṣṇa ficam completamente satisfeitos e se libertam de todos os desejos de
conseguir algum objeto que não seja o serviço a Śrī Kṛṣṇa. Dessa maneira, eles
conquistam paz de verdade. Portanto, a conquista da paz verdadeira e da satis-
fação plena só é possível pela prática de kṛṣṇa-bhakti.

250
Capítulo 26 - O meio para se conquisstar paz eterna e satisfação plena

251
Perguntas e respostas

Nosso dever na ausência de sādhu-saṅga


Pergunta: Como agora temos a oportunidade de estar na companhia de vaiṣṇavas
no dhāma e ouvir o hari-kathā deles, nos sentimos entusiasmados. Porém, em
breve, precisaremos voltar para casa em nossos respectivos países, onde não te-
mos semelhante oportunidade. Enquanto estivermos lá, qual é a melhor classe
de sādhana que devemos praticar, para que possamos sempre nos lembrar do
Senhor Supremo e serví-lO com o mesmo entusiasmo que temos agora?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Após ter estado na companhia dos vaiṣṇavas, é
dever do sādhaka tentar, da melhor maneira possível, praticar qualquer coisa que
tenha visto, ouvido ou gravado no coração enquanto esteve na companhia desses
vaiṣṇavas. Śrīla Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī afirma no Śrī Caitanyacaritāmṛta
(Madhya-līla, 22.69):
ĵāhāra komala śraddhā, se ‘kaniṣṭha’ jana
krame krame tẽho bhakta hôibe ‘uttama’
Aquele cuja fé é tenra e maleável chama-se neófito, mas pelo processo gra-
dual de sādhana, ele se elevará ao patamar de devoto de primeira classe.
Se o sādhaka segue os ensinamentos e a conduta de nossos ācāryas com o
coração sincero, então acaba se estabelecendo com firmeza na devida conduta
(sadācāra) e princípios filosóficos (siddhānta) vaiṣṇavas, mesmo que tenha ape-
nas recentemente começado a praticar o caminho espiritual (sādhana-bhajana).

O verdadeiro significado de ‘Śrī Kṛṣṇa-saṅkīrtana’


Pergunta: Eu li nos śāstras que às vezes a palavra kīrtana é usada para se referir ao
cantar de harināma, ao passo que, em outras vezes, usa-se a palavra saṅkīrtana.
Qual é o significado da palavra saṅkīrtana?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Em seu Bhakti-sandarbha (Annucheda 269),
Śrīla Jīva Gosvāmī define o termo saṅkīrtana como “bahubhir militvā kīrtanaṁ
saṅkīrtanam ity ucyate – quando muitos devotos se reúnem e praticam kīrtana,
isso se chama saṅkīrtana.” Em outra passagem, em seu Krama-sandarbha, ele
também descreve saṅkīrtana como “saṅkīrtanaṁ bahubhir militvā tad-gāna-

257
Viśuddha Caytania-Vāṇī

-sukhaṁ śrī- kṛṣṇa-gānam – saṅkīrtana se dá quando muitos devotos se reúnem


e, levados pela fé, cantam os nomes de Śrī Kṛṣṇa para o prazer dEle.”
Śrī Śrīmad Bhakti Rakṣaka Śrīdhara Gosvāmī Mahārāja explica, ainda, a pa-
lavra saṅkīrtana como significando samyak rasera kīrtana – aquele kīrtana em
que se incluem todas as nuances das relações transcendentais (rasas). Madhura-
rasa, a doçura conjugal, abrange todas as demais rasas, a saber: neutralidade
(śānta), servidão (dāsya), amizade (sākhya) e amor de pai e mãe (vātsalya). Em
saṅkīrtana, todas essas rasas se expressam em relação a madhura-rasa.
É somente em Vrajendra-nandana Śrī Kṛṣṇa que todas essas cinco rasas exis-
tem em perfeição plena – e não em Seus outros avatāras, como Śrī Rāmacandra,
Nṛsiṁhadeva e assim por diante, nem sequer em Dvārakādīśa Kṛṣṇa. Logo,
saṅkīrtana é formado apenas pelos nomes de Śrī Kṛṣṇa e não por algum de Seus
avatāras ou expansões.
No primeiro verso do Śrī Śikṣāṣṭakam, Śrī Caitanya Mahāprabhu nos ensina
especificamente a realizar śrī kṛṣṇa-saṅkīrtanam e não apenas kṛṣṇa-saṅkīrtanam.
A expressão śrī kṛṣṇa-saṅkīrtanam quer dizer praticar kīrtana dos nomes de
Kṛṣṇa juntamente com os de Śrī. Nesse caso, o nome ‘Śrī’ refere-se a sarva-
-lakṣmīmayī Śrī Rādhikā. É apenas quando Śrīmatī Rādhikā está ao lado de Śrī
Kṛṣṇa que se pode chamá-lO corretamente de ‘Kṛṣṇa.’ Sem Ela, Ele é apenas
‘Bakāri,’ o matador do demônio Bakāsura. O nosso purva-ācārya Śrī Raghunātha
dāsa Gosvāmī menciona sobre isso em seu Śrī Vilāpakumsumāñjali (102):
āśābharair amṛta-sindhumayaiḥ kathañcit
kālo mayāti-gamitaḥ kila sāmprataṁ hi t
vaṁ cet kṛpāṁ mayi vidhāsyasi naiva kiṁ me
prāṇair vrajena ca varoru bakāriṇāpi?
Oh, Śrīmatī Rādhikā! É apenas por causa da esperança de conquistar o oce-
ano nectáreo de sevā a Você e de ter darśana de Seus passatempos que eu
tenho sobrevivido a duras penas. No entanto, se Você não me conceder Sua
misericórdia agora mesmo, de que valerá esta vida, a terra Vraja ou mesmo
Bakāri (o inimigo de Bakāsura)?” .
Śrī Kṛṣṇadāsa Kavirāja Gosvāmī explica no Śrī Caitanya-caritāmṛta (Ādi-
-līlā 4.13):
ataeva viṣṇu takhôna kṛṣṇera śarīre
viṣṇu-dvāre kare kṛṣṇa asura-saṁhāre
Viṣṇu está presente no corpo de Kṛṣṇa. É por intermédio desse Viṣṇu que
Kṛṣṇa mata os demônios.
Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura ecoa os sentimentos de Śrīla Raghunātha dāsa
Gosvāmī em seu Gitāvalī (Śrī Rādhāṣṭaka 8.1, 3):

258
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

rādhā-bhajane ĵadi mati nāhi bhelā


kṛṣṇa-bhajana tava akāraṇa gelā
Se o desejo de adorar Śrī Rādhā não surgir em seu coração, então sua
adoração a Kṛṣṇa será em vão.
kevala mādhava pūjaye, so ajñānī
rādhā-anādara karôi abhimānī
Quem adora apenas Mādhava é ignorante e quem desrespeita Śrī Rādhā
não passa de um arrogante.

O siddhānta e as emoções profundas só são compreendidos


por intermédio de sādhu-saṅga
Pergunta: Já ouvimos dizer que as formas de Śrī Kṛṣṇa, Baladeva e Subhadrā-devī
que se manifestam em Jagannātha Purī são o resultado de terem experimenta-
do os oitos sintomas de êxtase transcendental (aṣṭa-sāttvika vikāra) ao ouvirem
Rohiṇī- Maiyā falar das glórias dos Vrajavāsīs. Como é possível que Subhadrā-
-devī, uma dvārakā-parikāra (companheira do Senhor em Dvārakā-dhāma) e
não vrajaparikāra (companheira do Senhor em Vrajadhāma), pudesse manifes-
tar os mesmos sintomas de vraja-prema (o amor por Deus exclusivo dos habi-
tantes de Vraja) experimentado por Śrī Kṛṣṇa e Baladeva?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Todas as formas de Deidades (vigrahas) de
Bhagavān se manifestam neste mundo para conceder misericórdia aos seres
vivos. A palavra vigraha é formada por dois vocábulos menores: vi e graha. A
palavra vi quer dizer viśeṣa (especial) e graha significa grahaṇa (aceitar). Assim,
o termo vigraha quer dizer que o Senhor aceita oferendas de um modo bastan-
te especial por intermédio de Sua manifestação como Deidade. Não é possível
compreender esses assuntos sem estar na companhia dos devotos.
Pelo fato de ouvirmos os vaiṣṇavas falarem, podemos nos convencer ple-
namente de que as formas de Śrī Kṛṣṇa e Śrī Balarāma como Jagannātha e
Baladeva em Purī são manifestações das transformações surgidas no corpo por
causa do amor (prema-vikāra) que Eles experimentaram ao ouvir as glórias dos
Vrajavāsīs – mas mesmo assim, não conseguimos compreender o motivo pelo
qual Śrī Subhadrā-devī, sendo dvārakā-parikara, conseguiu experimentar este
vraja-rasa. Por que isso acontece?
Vou lhes apresentar alguns exemplos para ajudá-los a compreender tal fato.
Antigamente, durante o Ratha-yātrā, a administração do festival costumava
reservar uma área especial diante das carruagens, na qual os devotos podiam
praticar kīrtana sem perturbação alguma; ninguém mais tinha permissão de
entrar naquela área. Certa vez, os devotos da Gauḍīya Maṭha praticaram kīrtana

259
Viśuddha Caytania-Vāṇī

naquela área sob a orientação de meu paramārādhyatama Guru Mahārāja, Śrī


Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī. Os sevakas do Senhor Jagannātha na
carruagem sentiram tamanho êxtase por ouvirem kīrtana, que ergueram Guru
Mahārāja sobre seus ombros e o levaram à força até a carruagem do Senhor.
Naquela ocasião, Śrī Śrīmad Bhakti Pramoda Purī Gosvāmī Mahārāja dan-
çava e cantava em frente à carruagem, concentrado no humor experimentado
pelas vraja-gopīs quando se encontram com Śrī Kṛṣṇa em Kurukṣetra (Śrī
Caitanya-caritāmṛta Madhya-līlā, 13.113):
sei ta parāṇa-nātha pāinu
ĵāhā lāgi’ madana-dahane jhuri’ genu
Śrī Caitanya-caritāmṛta (Madhya-līlā 13.113)
Acabo de conquistar o Senhor da Minha vida, em cuja ausência Cupido me
queimava e eu definhava.
Quando Śrīla Purī Gosvāmī Mahārāja estava todo concentrado em cantar
aquele kīrtana, todos os devotos à sua volta também experimentaram o mesmo
humor de encontro com Kṛṣṇa e sentiam-se jubilantes. Um ladrão aproveitou-
-se da oportunidade para roubar a carteira de Śrīla Purī Gosvāmī Mahārāja de
sua bolsa. A maioria dos devotos estava concentrada no kīrtana e nem percebeu
o acontecido, no entanto, um brahmacārī, testemunhando o roubo, saiu na di-
reção do ladrão e o agarrou. O brahmacārī restringiu o ladrão e tentou chamar
a atenção de Śrīla Purī Gosvāmī Mahārāja, no entanto, Śrīla Mahārāja estava
tão concentrado no kīrtana que não prestou a menor atenção nas palavras do
brahmacārī. Quando o brahmacārī insistiu ainda mais em chamar a atenção
para si, Śrīla Mahārāja ficou bastante irritado e o repreendeu: “Por que você me
perturba? Deixe-o levar o dinheiro. Dinheiro vem e vai. Porém, o humor que
estamos experimentando neste momento, talvez nunca mais volte”.
Em outra ocasião, em 1956, meu Guru Mahārāja cantava um kīrtana em
Bengali em frente ao Ādikeśava-deva durante o parikramā de Vraja-maṇḍala:
ohe! vrajavāsī torā bole dāo
kothā gele kṛṣṇa pābo
Oh, Vrajavāsīs! Por favor, digam-me onde devo ir para me encontrar com Kṛṣṇa.
Como a maioria dos devotos presentes durante o kīrtana não eram Bengalis,
eles não conseguiam compreender o significado daquelas palavras, e mesmo
assim fluíam lágrimas dos olhos de todos. Antes disso, eu jamais dançara em
kīrtanas, porém o poder daquele kīrtana foi tamanho que comecei a dançar sem
ter planejado nada ou sem nem mesmo ter tido o mais ligeiro desejo; era como
se algo me levasse a dançar. Depois do kīrtana de Guru Mahārāja, uma mātā-
-jī de Jagadhari (no Punjab) chamada Mitrarāṇī, aproximou-se de Śrī Śrīmad

260
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

Bhakti Vikāśa Hṛṣīkeśa Gosvāmī Mahārāja, um discípulo de Śrīla Prabhupāda,


e perguntou: “O senhor poderia me explicar, por favor, o significado do kīrtana
que Guru Mahārāja estava cantando agora a pouco?” Depois que Śrīla Hṛṣīkeśa
Gosvāmī Mahārāja explicou-lhe o significado, ela disse: “A bem-aventurança
que todos nós sentimos durante aquele kīrtana foi indescritível. Porém mesmo
após ouvir seu significado, aquela mesma espécie de bem-aventurança não atin-
ge o meu coração. Por quê?”
Naquele momento, perguntei-lhe: “Mātā-jī, se a senhora não sabia o signi-
ficado do kīrtana, por que, então, chorava ao ouvi-lo?”
Ela respondeu: “Na verdade, não sei. Ao ouvir o kīrtana lágrimas começa-
ram a brotar dos meus olhos espontaneamente – foi algo natural”.
Por intermédio desses dois passatempos, podemos compreender que
quando praṇayi-bhaktas, tais como Śrī Śrīmad Bhakti Pramoda Purī Gosvāmī
Mahārāja e meu paramārādhyatama Guru Mahārāja, sentem a bem-aventurança
do encontro ou a dor da distância em relação ao Supremo, os devotos em volta
deles também se sentem afetados.
Quando há perto de nós um ar-condicionado ou uma grande fogueira, não
precisamos nos aproximar deles para sentir seus efeitos, podemos sentir seu
frescor ou calor mesmo à certa distância. Além do mais, quando uma mulher
tem um filho ou o perde, ela sente bem-aventurança ou chora de dor. Numa
circunstância como essa, a linguagem não é necessária para que os outros com-
preendam a bem-aventurança ou a dor experimentada. Quem quer que se apro-
xime dela sente-se afetado por suas emoções e sente sua alegria ou sua aflição.
As lições contidas nesses exemplos podem se aplicar ao passatempo em que
Śrī Kṛṣṇa e Śrī Baladeva tentavam entrar no quarto onde se encontrava Rohiṇī
Maiyā, que explicava a respeito das relações amorosas entre Śrī Kṛṣṇa e os Vraja-
vāsīs. Śrī Subhadrā-devī guardava a porta, proibindo seus dois irmãos de entra-
rem. Embora fossem forçados a ficarem fora do quarto, eles puderam ouvir um
pouco do kathā de Rohiṇī Maiyā e, assim, Eles dois pressionaram Seus ouvidos
contra a porta. Ouvindo aquele vraja-līlā kathā, Śrī Kṛṣṇa e Śrī Baladeva come-
çaram a manifestar em Seus corpos transcendentais sintomas de intenso amor
espiritual (prema). Pelo simples fato de estar perto dEles, Śrī Subhadrā-devī
também ficou saturada dos sintomas manifestados nos corpos transcendentais
dos dois irmãos. Dessa maneira, embora ela morasse em Dvārakā, por causa da
sua proximidade com Śrī Kṛṣṇa e Śrī Baladeva, ambos concentrados em vraja-
-rasa, ela se sentiu afetada por aqueles êxtases (bhāvas) e conseguiu manifestar
sintomas elevados de prema.

261
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Yukta-vairāgya
Pergunta: Qual é o significado da expressão yukta-vairāgya?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Por sua renúncia natural, Śrī Śrīmad Bhakti
Hṛdaya Vana Gosvāmī Mahārāja nunca usou calçados durante anos a fio en-
quanto esteve na maṭha. Certa vez, seu mestre espiritual, Śrīla Bhaktisiddhānta
Sarasvatī Gosvāmī Ṭhākura Prabhupāda, quis que ele fosse ao estrangeiro para
pregar a missão de Śrī Caitanya Mahāprabhu. Śrīla Prabhupāda pediu a seu dis-
cípulo Śrī Kuñja-bihārī Vidyābhūṣaṇa Prabhu (mais tarde conhecido como Śrī
Śrīmad Bhakti Vilāsa Tīrtha Gosvāmī Mahārāja, após aceitar a iniciação sannyāsa)
que fosse a Calcutá e comprasse o par de sapatos mais caro que ele encontrasse
para Śrīla Vana Gosvāmī Mahārāja. Śrī Kuñja-bihārī Vidyābhūṣaṇa Prabhu com-
prou um par que custava trinta e duas rúpias – na época uma quantia muito alta
– e trouxe os sapatos para o templo. Śrīla Prabhupāda disse: “Dê esses sapatos a
Vana Mahārāja e peça que ele venha me ver com eles nos pés”.
Após Śrī Kuñja-bihārī Vidyābhūṣaṇa Prabhu dizer a Śrīla Vana Gosvāmī
Mahārāja a respeito do desejo de Śrīla Prabhupāda, Śrīla Mahārāja calçou os
sapatos e apareceu diante de Śrīla Prabhupāda. Ao vê-lo com os sapatos, Śrīla
Prabhupāda disse: “Hoje o seu vairāgya (renúncia) chegou à perfeição, pois
você renunciou inclusive à sua própria renúncia em prol de um objetivo supe-
rior – o serviço a Śrīman Mahaprabhu.”
Aceitar tudo o que é favorável ao serviço de Bhagavān e aos Seus devotos,
enquanto se rejeita tudo que seja desfavorável ao mesmo serviço é a verdadeira
definição de yukta-vairāgya.
Subhadrā-devī é Yogamāyā
Pergunta: Por que costumam chamar Subhadrā-devī de Yogamāyā?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Śrī Kṛṣṇa tem uma śakti conhecida como
yogamāyā, que significa “a energia que une os devotos ao Senhor”. Essa potência
do Senhor, em Sua forma externa, separa o indivíduo de Deus – nessa função, tal
potência é chamada de māhāmāyā. Em seu Kalyāṇā-kalpataru, Śrīla Bhaktivinoda
Ṭhākura compôs um kīrtana em que escreveu o seguinte:
kuladevī yogamāyā more kṛpā kôri’
āvaraṇa samvaribe kabe viśvodarī
Oh, Kuladevī Yogamāyā! Quando será que você, tendo misericórdia de
mim, erguerá a cortina com a qual cobre o universo com sua forma externa
chamada de Mahāmāyā?
Esta Yogamāyā organiza e providencia as variedades intermináveis de pas-
satempos do Senhor; é este o serviço (sevā) dela. Embora ela sirva estritamente

262
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

segundo o desejo do Senhor, suas providências são tais, que tanto os devotos
quanto o Senhor não percebem sua influência e se consideram seres humanos
comuns e independentes. Sem a presença de Yogamāyā, os maravilhosos passa-
tempos do Senhor não podem se manifestar. Logo, a fim de manifestar os secre-
tos passatempos do Senhor em Dvārakā, esta yogamāyā-śakti manifesta-se como
Śrī Subhadrā-devī. Śrī Subhadrā-devī também é conhecida como Bhakti-devī.

Rendição e a superioridade de bhakti


Pergunta: Ouvi dizer que śaraṇāgati (rendição) é tida como a porta para o pro-
cesso devocional (bhakti-yoga) e que, sem ela, não podemos de fato praticar
bhakti. Devo praticar bhakti em minha condição atual apesar de não conseguir
me entregar plenamente ou devo primeiro esperar até conseguir me render
totalmente?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Śrī Prahlāda Mahārāja descreve as nove práti-
cas de bhakti, desta maneira:
śravaṇaṁ kīrtanaṁ viṣṇoḥ
smaraṇaṁ pāda-sevanam
arcanaṁ vandanaṁ dāsyaṁ
ātma-nivedanam
iti puṁsārpitā viṣṇau
bhaktiś cen nava-lakṣaṇā
kriyeta bhagavaty addhā
tan manye ’dhītam uttamam
Śrīmad-Bhāgavatam (7.5.23-24)
A devoção (bhakti) a Bhagavān Viṣṇu tem nove ramificações: (1) ouvir e (2)
cantar a respeito dos transcendentais Santos Nomes, passatempos, forma
e qualidades do Senhor Viṣṇu; (3) lembrar-se dEle; (4) servir Seus pés-de-
-lótus; (5) oferecer adoração ao Senhor; (6) oferecer orações ao Senhor; (7)
tornar-se Seu servo; (8) tornar-se Seu amigo, e (9) entregar tudo comple-
tamente a Ele. Se alguém pratica essas nove ramificações da devoção com
atitude de entrega, então, estamos diante da forma de conhecimento mais
elevado relativo às escrituras. Tal pessoa conseguiu extrair o conhecimento
mais elevado que as escrituras têm a oferecer.
Nesses versos, tanto a expressão ātma-nivedanam quanto a palavra arpitā
querem dizer “oferecer” ou “entregar-se”, no entanto a palavra arpitā refere-se ao
processo de rendição preliminar inicial, ao passo que ātma-nivedana refere-se à
total dedicação de si mesmo. Ātma-nivedana é o resultado de se ter seguido as
outras ramificações de bhakti com arpitā (a rendição preliminar).
Em seu comentário aos versos acima, Śrīla Viśvanātha Cakravartīpāda afir-
ma que o sādhaka conquista rendição plena (ātma-nivedana) apenas após ter se

263
Viśuddha Caytania-Vāṇī

rendido desde o início (arpitā) ao Senhor Supremo e, depois de se ocupar nas


outras práticas de bhakti mencionadas. É apenas a partir dessa fase de arpitā que
o indivíduo começa a praticar o verdadeiro śravaṇa, kīrtana e assim por diante,
por meio dos quais pode conquistar bhakti pura. Em outras palavras, as nove
práticas de bhakti produzem frutos apenas quando são realizadas com total de-
dicação aos pés-de- lótus de Bhagavān.
Percebe-se que as escrituras costumam prescrever caminhos que não o de
bhakti, tais como karma-yoga, o cumprimento de deveres prescritos nos Vedas;
o cultivo de conhecimento empírico, jñāna-yoga; a prática de penitências,
tapasya; e outros caminhos. Aperfeiçoando a prática de karma-yoga, chegamos
ao estágio de jñāna-yoga e, aperfeiçoando jñāna-yoga, ao caminho de bhakti.
Todos esses caminhos constituem, de fato, degraus que aos poucos nos levam
à devoção unidirecionada – o único caminho que nos conduz aos pés-lótus de
Bhagavān.
O Supremo Senhor Śrī Kṛṣṇa em pessoa minimiza todos os demais cami-
nhos e estabelece com firmeza bhakti como sendo o meio superior para se al-
cançá-lO. Em uma conversa com o Seu querido devoto Uddhava, Ele transmitiu
esta mensagem para o benefício de todos os seres vivos (Śrīmad Bhagavatam
11.14.20):
na sādhayati māṁ yogo
na sāṅkhyaṁ dharma uddhava
na svādhyāyas tapas tyāgo
yathā bhaktir mamorjitā
Meu querido Uddhava, Eu não posso ser controlado por aqueles que estu-
dam a filosofia relativa à Natureza material (Sānkhya), ou que praticam o
yoga místico, atividades piedosas, austeridade ou renúncia. Eu sou contro-
lado apenas por aquela poderosa devoção a Mim, exibida pelos devotos
de coração puro e sincero

Subhadrā-devī é Yogamāyā
Pergunta: Onde Kṛṣṇa mora?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Nosso purva ācārya (um mestre das gerações
passadas) Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura escreveu em um de seus kīrtanas:
ĵe-dina gṛhe, bhajana dekhi
gṛhete goloka bhāya
Śaraṇāgati (6.3.6)
O dia em que eu vir a devoção (kṛṣṇa-bhakti) na forma do canto em grupo
dos Santos Nomes (harināma-saṅkīrtana) ser praticado em minha casa sob
a orientação de devotos puros, o reino espiritual (Goloka), a morada supre-
ma de Śrī Śrī Rādhā Kṛṣṇa, vai parecer ter se manifestado ali.

264
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

Devemos considerar que a residência de um devoto puro realmente se


transforma em Goloka pela prática do harināma-saṅkīrtana, ou essa declaração
é mera especulação mental e um exagero? Esta verdade factual é confirmada
pelo próprio Śrī Kṛṣṇa (Padma Purāṇa Uttara-khaṇḍa 92.21–22):
nāhaṁ vasāmi vaikuṇṭhe
na yogināṁ-hṛdayeṣu vā
mad-bhaktā yatra gāyanti
tatra tiṣṭhāmi nārada
Óh Nārada, não moro em Vaikuṇṭha, tampouco no coração dos yogīs. Vivo
onde quer que Meus devotos puros cantem Minhas glórias”.
Em conclusão, Śrī Kṛṣṇa mora onde Seus devotos puros cantam Seus No-
mes Sagrados. Como a palavra ‘Goloka’ simplesmente significa “o local onde
mora Śrī Kṛṣṇa”, esses lugares se transformam em Goloka pela presença dEle
durante a prática do harināma-saṅkīrtana puro.
O significado de Śyāma-varṇa Rādhā
Pergunta: Percebemos que as deidades de Kṛṣṇa em diferentes templos são ou
śyāma-varṇa (de tez escura) ou gaura-varṇa (de tez da cor do ouro derretido).
No entanto, apenas em poucos lugares, isto é, no templo de Ṭoṭā-gopinātha em
Purī e em Māna-sarovara em Vṛndāvana, observamos que a deidade de Śrī Rādhā
é de tez escura (śyāma-varṇa). Há algum propósito especial por trás disso?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Quando Śrīmatī Rādhikā, sentindo aguda sau-
dade de Śrī Kṛṣṇa, absorve-se por inteiro na lembrança constante (cintana) de
Seu nome, forma, qualidades e passatempos, Sua meditação se torna tão inten-
sa que Ela assume a escura tez de Kṛṣṇa. Com imenso apreço e reverência por
esse humor especial que Ela manifesta, alguns devotos instalaram a deidade de
Śrīmatī Rādhikā como śyāma- varṇa. Da mesma maneira, quando Śrī Kṛṣṇa se
concentra em lembrar-Se de Śrīmatī Rādhikā, Ele assume a tez da cor do ouro
derretido dEla.
Com uma ideia semelhante em mente, Śrī Śrīmad Bhakti Prajñāna Keśava
Gosvāmī Mahārāja instalou um gaura-varṇa, um Kṛṣṇa de tez da cor do ouro
derretido, em todos os templo da Śrī Gauḍīya Vedānta Samiti. Para explicar o
aspecto filosófico (siddhānta) relativo a isso, Śrīla Keśava Gosvāmī Mahārāja
compôs um aṣṭaka entitulado Śrī Rādhā-vinodavihāri-tattvāṣṭakam, no qual
escreveu no primeiro verso: rādhā-cintā-niveśena, que quer dizer: “adoro os
pés-de-lótus daquela forma de Śrī Kṛṣṇa, que por estar inteiramente imerso em
saudades de Śrīmatī Rādhikā, perdeu Sua tez escura e assumiu o brilho cintilan-
te da cor do ouro derretido que Ela possui”.

265
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Dessa maneira, tanto a forma gaura-varṇa de Śrī Kṛṣṇa quanto a forma


śyāma-varṇa de Śrīmatī Rādhikā revelam a intensidade de Seus sentimentos de
forte saudade um do outro.

A posição do guru
Pergunta: Qual é a natureza de śrī guru e de suas instruções?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Quando Hiraṇyakaśipu pediu a seu filho Śrī
Prahlāda que descrevesse a essência dos ensinamentos que ele recebeu de seu
guru, Prahlāda não disse uma palavra sequer sobre as lições de política que lhe
ensinaram os professores do gurukula, Ṣaṇḍa e Amarka. Em vez disso, porém,
falou sobre a essência dos ensinamentos que havia recebido de Śrī Nārada Muni
sobre navadhā-bhakti, ou seja, as nove práticas da devoção a Deus (viṣṇu-bhakti).
Por falar sobre esses ensinamentos, Śrī Prahlāda Mahārāja, que é um de-
voto famoso de Śrī Hari, consolidou o fato de que só quem ensina a respeito de
bhagavad-bhakti é digno de ser chamado de guru – e não quem dá lições relati-
vas aos assuntos materiais deste mundo. Dessa maneira, Śrī Prahlāda destacou
o guru que ensina sobre a prática de hari-bhakti.
O significado de ‘sevā’
Pergunta: Ouvimos falar que a prática de bhakti consiste em sevā, ou serviço. A
quem devemos direcionar tal serviço? Qual é a diferença entre servir ao homem
e servir a Deus?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Segundo o Garuḍa Purāṇa (Purva-khaṇḍa
231.3), “bhaja-dhātu sevāyāṁ – o significado verdadeiro de bhajana é sevā, ou
serviço devocional”.
Sevā, no verdadeiro sentido do termo, só é prestado ao sevya-vastu ou a alguém
digno de receber serviço – e não a alguém que esteja em um estado miserável.
Ter empatia por uma pessoa em estado lamentável que implora sincera-
mente por algo chama-se “compaixão”, satisfazer seu desejo concedendo-lhe o
objetivo de suas orações chama-se “caridade”. Quando deparamos com essas
pessoas desesperadas, podem surgir sentimentos de compaixão em nosso cora-
ção que nos inspiram a dar algo em caridade.
Esses sentimentos ficam ausentes quando nos colocamos diante de alguém
que não conhece escassez, que não deseja receber nada e a quem muitas pes-
soas ansiosamente esperam poder servir, aguardando a oportunidade. Nessas
circunstâncias, para o nosso bem-estar, esperamos pelo abençoado momento
em que tal pessoa misericordiosamente aceitará as nossas humildes oferendas.
Essas oferendas são o que chamamos de sevā.

266
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

O sevaka (servo amoroso) considera-se subordinado ao objeto do seu ser-


viço a quem ele considera superior a si mesmo. O ato de dar em caridade produz
falso orgulho e leva ao prazer materiais nos quatorze sistemas planetários, ao
passo que o serviço altruísta a Deus (Bhagavān) e a Seus devotos gera humilda-
de e leva à conquista de kṛṣṇa-prema, a conquista do máximo objetivo espiritual
das almas condicionadas. Como śrī guru, os vaiṣṇavas e Bhagavān já têm tudo,
eles jamais são receptáculos de caridade. Com isso em mente, devemos prestar
sevā a essas personalidades e, assim, receber sua misericórdia.

Como agradar śrī guru


Pergunta: Como posso saber se śrī guru está satisfeito com o meu serviço?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Se, mediante o seu serviço a śrī gurudeva o seu
desejo de servir aumenta e, se você observar em si mesmo sentimentos de grande
plenitude e satisfação por ter realizado tal serviço, então, poderá compreender
que śrī guru está de fato satisfeito.
Como desenvolver fé nas escrituras sagradas
Pergunta: Como podemos cultivar fé profunda nos śāstras?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Servindo a śrī guru e aos vaiṣṇavas, acumula-
mos bom karma espiritual (sukṛti) e, através desta sukṛti, temos a oportunidade
de conviver com sábios (sādhus). Esse convívio é a única causa para o desenvolvi-
mento de fé firme nos śāstras.
Quando uma criança começa o período escolar, seu professor lhe ensina:
“Este é o A, este é o B e este é o C”. Embora a criança não compreenda o motivo
para cada letra ter seu nome em particular, ela deposita sua fé nas palavras de
seu professor. Após anos de estudos, ela finalmente chega à graduação e começa
sua atividade profissional, embora possa continuar sem entender a razão lógica
pela qual A se chama A e B se chama B. De igual maneira, quando alguém tem a
oportunidade de ouvir os sādhus falarem e sinceramente aplica sua fé neles, essa
pessoa se qualifica a compreender a natureza tanto do mundo material quanto do
mundo transcendental. Tal pessoa, embora talvez não compreenda por inteiro a
razão pela qual o śāstra menciona algo de maneira particular, ela assim considera
com toda firmeza: “Tudo o que os śāstras afirmam está perfeitamente correto.
Apesar de eu não conseguir harmonizar vários assuntos, chegará o momento
em que com certeza irei perceber claramente cada assunto e harmonizarei tudo”.
A necessidade de se refugiar em um sādhu vivo
Pergunta: Será possível que eu atinja a perfeição máxima exclusivamente me re-

267
Viśuddha Caytania-Vāṇī

fugiando em Śrīla A.C. Bhaktivedānta Svāmī Prabhupāda e lendo os seus livros,


ou é necessário que eu me refugie em um vaiṣṇava avançado ainda presente nes-
te mundo?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Em primeiro lugar, não é possível compreen-
der a verdadeira essência dos ensinamentos de Śrīla Svāmī Mahārāja ou de qual-
quer outro vaiṣṇava simplesmente lendo os seus livros. Quem confirmará que
você compreendeu e percebeu a essência das conclusões filosóficas (siddhānta)
que ele apresenta? Embora uma criança na sexta ou sétima série tenha como ler
e pronunciar as palavras escritas nos livros de um candidato a PhD, é impossível
que ela compreenda algo. Sem alcançar um nível de educação superior e sem
aceitar a orientação de um mestre avançado, ela não conseguirá reconhecer seus
próprios conceitos errôneos. Ler é fácil, no entanto, se fizermos isso por conta
própria, será impossível que capturemos os significados profundos dos śastras.
Sem a orientação de um sādhu pessoalmente presente neste mundo, não tere-
mos como compreender a essência verdadeira dos ensinamentos daqueles que
fazem parte do nosso guru-varga e já concluíram os seus passatempos neste
mundo material.
Certa vez, quando Śrīla Svāmī Mahārāja veio em nosso Śrī Caitanya Gauḍīya
Maṭha em Hyderabad, ele nos disse o seguinte durante uma conversa: “Eu ten-
tei da melhor maneira possível ensinar aos meus discípulos como observar
vaiṣṇava-sadācāra. Há muitas outras coisas que quero ensinar–lhes, porém, eles
não estão preparados para receber tudo neste momento. No futuro, haverão de
se encontrar de novo com sādhus puros e evoluirão segundo a devida sequência,
avançando passo-a-passo.
Meu irmão espiritual Śrī Anaṅga-mohana Brahmacārī (agora Śrīpāda
Bhikṣu Mahārāja) certa vez esperava no lado de fora do quarto de Śrīla Svāmī
Mahārāja, esperando vê-lo (ter seu darśana). Naquela ocasião ele se deparou
com um devoto ocidental bem jovem sentado ali perto que estava aplicando
a marca da tilaka (símbolo sagrado) na própria testa. O devoto segurava uma
bola de gopī-candana (argila sagrada) na mão, mas não tinha o recipiente de
ācamana (água santificada para purificação) ou nenhuma água com ele e, por
isso, cuspiu em sua mão e começou a esfregar nela a bola de gopī-candana. Śrī
Anaṅga-mohana Brahmacārī ficou chocado ao ver aquilo e logo exclamou para
o devoto: “Isso é totalmente incorreto! Por que você faz isso?”
Naquela ocasião, Śrīla Svāmī Mahārāja saiu de seu quarto, pediu que
Anaṅgamohana Brahmacārī se aproximasse dele e, com voz bem suave, disse:
“Não é necessário orientar esse devoto. De alguma maneira, ele se sente inspi-
rado a fazer a marca da tilaka em seu corpo, coisa que não existe em sua cultura

268
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

nativa. Qual é o problema se ele não sabe todas as regras e proibições ainda?
Chegará um momento em que, com certeza, ele aprenderá a maneira correta de
realizar todas as atividades de bhakti”. nota
Nesta história, Śrīla Svāmī Mahārāja não consolidou um novo siddhānta
para que seus discípulos seguissem pelo resto da vida; pelo contrário, por ele ser
um exímio professor, ele ensinou aquele discípulo em particular segundo sua
natureza e competência.
Concluindo, é impossível que você compreenda, por si só, quais ensina-
mentos de Śrīla Svāmī Mahārāja estão ligados a um tempo, lugar e
circunstância e quais deles são absolutos. Portanto, se você deseja seguir
Śrīla Svāmī Mahārāja, será essencial que aceite refúgio de um vaiṣṇava qualifica-
do que entenda as verdadeiras intenções e as emoções de Śrīla Svāmī Mahārāja.

Convívio à distância
Pergunta: Embora nosso desejo de conviver com os sādhus não pare de crescer,
frequentemente não temos como viajar com eles e estar na sua presença. É pos-
sível obter a companhia deles mesmo que circunstâncias materiais nos separem
fisicamente deles?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: É sempre possível estar na companhia dos
sādhus, mesmo que não possamos estar fisicamente com eles. Se aceitamos
sinceramente o que ouvimos um sādhu ensinar e seguimos sinceramente o que
ele nos ensina, então estaremos na companhia do sādhu, mesmo que não este-
jamos com ele fisicamente.
O significado de “sinceridade"
Pergunta: O que significa ser sincero em nossas práticas de devoção ao Supremo
(kṛṣṇa-bhakti)?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Sinceridade quer dizer não ter um coração
dissimulado. Se alguém quer tornar-se um praticante sincero da devoção ao
Supremo (kṛṣṇa-bhakti), precisará deixar completamente para trás todas as
espécies de cálculos para o benefício próprio e hipocrisia. O indivíduo deve
pensar: “Eu sou uma pessoa íntegra”.
Bhagavān, em Sua forma de Vāmanadeva, manifestou passatempos como
se fosse o irmão caçula de Indra. Externamente, Indra parecia servir ao Senhor
de muitas maneiras, mas em seu íntimo, ele pensava: “Prestando esses serviços,
minha posição como rei dos planetas celestiais se tornará permanente. Poderei
desfrutar cada vez mais e jamais passarei alguma privação”. Esse é um exemplo
de falta de sinceridade. A pessoa sincera não tem outro desejo além do serviço

269
Viśuddha Caytania-Vāṇī

a Śrī Kṛṣṇa e a Seus devotos. Embora alguém possa executar todas as práticas
de bhakti e ouvir harikathā o tempo todo, tal pessoa não pode ser considerada
sincera até que ela se livre de todos os desejos e contaminações egoístas.
Dharma, artha, kāma e mokṣa são elementos conhecidos como ajñānatama.
Ajñāna significa “ignorância” e ajñānatama, “o grau superlativo da ignorância”.
Tudo o que existe nos catorze sistemas planetários deste universo é temporário
e portanto inauspicioso. Qualquer pessoa que deseje semelhantes coisas jamais
poderá ser considerada sincera. O vocábulo “sincero” está reservado a quem
anseia apenas chegar ao universo transcendental para servir Bhagavān.

Orando com as palavras dos nossos mestres


Pergunta: Ao orar, meditar ou escrever sobre os passatempos de Śrī Śrī Rādhā-
Kṛṣṇa, podemos fazê-lo segundo nossos próprios desejos ou devemos seguir
apenas o que nossos mestres nos deram?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Embora possamos orar da maneira que bem
entendermos, é sempre preferível orar segundo o exemplo estabelecido por
nossos mestres, entre eles Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura, Śrīla Narottama dāsa
Ṭhākura, Śrīla Rūpa Gosvāmī e Śrīla Sanātana Gosvāmīpāda. Contudo, se por
acaso houver algum anseio em nosso coração que não tenha sido descrito nas ora-
ções de nossos ācāryas, então é aceitável que oremos com esse sentimento; caso
contrário, devemos sempre preferir as palavras dos grandes mestres (ācāryas).
Quando alguém se refugia nos pés-de-lótus dos vaiṣṇavas, desenvolve
irrevogável fé (niṣṭhā), segundo a qual as palavras usadas por esses vaiṣṇavas
carregam uma potência imensa. Considerando que suas próprias palavras sejam
incapazes de produzir algum resultado desejável, ele então decide usar exclu-
sivamente as palavras dos vaiṣṇavas ao orar para Bhagavān. Portanto, quem
é śaraṇāgata (rendido) sempre expressará seus sentimentos devocionais ao
Senhor usando apenas as orações escritas pelos nossos ācāryas. Menosprezar
esse princípio parece ser considerado um sinal de que o indivíduo ainda não se
entregou por inteiro.
Não podemos compreender as atividades do Supremo com
a inteligência material
Pergunta: Apesar de o Śrīmad-Bhāgavatam descrever com clareza como Śrī
Kṛṣṇa foi levado para Mathurā por Akrūra, nossos Gosvāmīs afirmam que Kṛṣṇa
jamais sai de Vṛndāvana. Como podemos harmonizar essa contradição aparente?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: É impossível compreender com a nossa in-
teligência material como essas duas afirmações conflitantes podem ser ambas

270
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

verdadeiras, todavia, com certeza elas são harmoniosas. Nossos Gosvāmīs são
totalmente livres dos quatro defeitos: bhrama (erro), pramāda (confusão),
virpalipsā (enganos) e karaṇāpāṭava (sentidos imperfeitos), assim, eles têm
como apresentar e explicar os passatempos de Śrī Kṛṣṇa. Quando Akrūra es-
tava levando Kṛṣṇa e Balarāma para Mathurā e os dois irmãos foram tomar
banho, ele observou que os dois estavam simultaneamente se divertindo na
água e sentados na carruagem. Akrūra, confuso, pensou: “O que é isso que
eu estou vendo?” Nesse caso, segundo explicam os nossos Gosvāmīs, o Kṛṣṇa e o
Balarāma divertindo-Se na água eram Yaśodā-nandana Kṛṣṇa e Rohiṇī-nandana
Balarāma, que não prosseguiram em direção a Mathurā, permanecendo em
Vraja, ao passo que Devakīnandana Kṛṣṇa e Devakī-nandana Balarāma segui-
ram viagem rumo a Mathurā na carruagem com Akrūra. A inteligência mate-
rial não tem como compreender tal coisa, porque os passatempos do Senhor
estão para além deste reino físico.
No Bhagavad-gītā, Śrī Kṛṣṇa afirma: “janma karma ca me divyam – Meu
aparecimento e Minhas atividades são transcendentais”. Independentemente
do modo como os passatempos do Supremo aparecem para a visão mundana,
eles continuam sendo transcendentais. Por exemplo, embora externamente pa-
reça que Vasudeva Mahārāja trouxe seu filho para Gokula, esse filho, Vāsudeva
Kṛṣṇa, na verdade jamais saiu de Mathurā. Quando eles chegaram à frontei-
ra entre Mathurā e Gokula, Vāsudeva Kṛṣṇa se fundiu em Svayaṁ Bhagavān
Nandanandana Kṛṣṇa. Isso aconteceu sem que Vasudeva Mahārāja percebesse,
pois era vontade do Senhor que essa atividade se mantivesse oculta. Só podemos
enxergar algo que Kṛṣṇa permita que enxerguemos; caso contrário, tal fato com
certeza permanecerá oculto.

A saudade de Vāsudeva Kṛṣna


Pergunta: Se Vāsudeva Kṛṣṇa não entra jamais em Vṛndāvana, como é possível
que Ele sinta saudade dos Vrajavāsīs, sobretudo das gopīs?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Viraha (saudades) é uma emoção (rasa), e
Śrī Kṛṣṇa deseja que tanto Ele quanto Seus devotos saboreiem a ānanda (fe-
licidade espiritual) contida nessa rasa. Quando Śrī Kṛṣṇa quer experimentar
viraha-rasa, Yogamāyā, pela vontade do Senhor, providencia para que Seus
passatempos se manifestem de tal modo que os Vrajavāsīs sintam que Ele já
não está mais presente entre eles, embora, na verdade, Ele jamais dá sequer um
passo para fora de Vraja. Ao mesmo tempo, Yogamāyā providencia para que os
devotos do Senhor em Dvāraka ou Mathurā sintam que Ele está presente com
eles. Naquela ocasião, Devakīnandana Kṛṣṇa, pelo desejo independente de

271
Viśuddha Caytania-Vāṇī

Svayaṁ Bhagavān Yaśodā-nandana Kṛṣṇa, que é a causa de todas as causas, sa-


boreia viraha-rasa a fim de nutrir a vraja-līlā de Yaśodā-nandana Kṛṣṇa. Esses
passatempos incompreensíveis são possibilitados pela acintya-śakti (potência
inconcebível) do Senhor, que atua segundo a vontade do Supremo.

Plantando a semente da devoção


Pergunta: Apesar de termos ouvido dizer que śrī guru concede a semente de
bhakti no momento da segunda iniciação (dīkṣa), também ouvimos dizer que
a alma (jīva) é nitya-kṛṣṇadāsa, serva eterna do Senhor. Por acaso essa semente
é realmente concedida pelo guru ou já se encontra presente no âmago da jīva?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Apesar de ser correto dizer que śrī gurudeva
concede a semente de bhakti, o verdadeiro significado por trás dessa afirmação
é que a semente já está ali no coração da jīva, mas tem sido guardada em um
espaço onde jamais poderá crescer. Por exemplo, se nós mantivermos uma
bolsa de sementes em um armário poderemos esperar que elas brotem e cres-
çam? Certamente que não. No entanto, se alguém nos lembrar a respeito das
sementes, poderemos retirá-las do armário, colocá-las na terra, fornecer luz
do Sol e água e elas eventualmente se transformarão em árvores enormes re-
pletas de frutas.
Da mesma maneira, śrī guru nos lembra de que trazemos em nossos co-
rações a maravilhosa semente de kṛṣṇa-bhakti e nos ensina como nutri-la uti-
lizando todo o nosso corpo em sevā; ele nos ensina a ouvir hari-kathā com os
ouvidos, a limpar o templo do Senhor com as mãos, a falar das glórias do Senhor
com a nossa língua e assim por diante. Seguindo de maneira correta e sincera o
processo apresentado por śrī guru, percebemos como a semente de bhakti brota,
cresce, se fortalece e acaba dando o doce e tão maravilhoso fruto de kṛṣṇa-prema.
A irrevogável fé no Avatar Dourado, Śrī Caitanya Mahāprabhu
e seus ensinamentos nos leva à perfeição
Pergunta: No Bṛhad-Bhāgavatāmṛta de Śrīla Sanātana Gosvāmī, Gopa-kumāra
precisou submeter-se a um dificílimo processo para conseguir alcançar os pés-
-de- lótus de Śrī Kṛṣṇa em Goloka Vṛndāvana, indo de um planeta a outro, tanto
neste mundo quanto no universo espiritual (Vaikuṇṭha). Também teremos que
passar por esse mesmo processo ou poderemos praticar os processos de bhakti
da posição em que estamos?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Só nos submeteremos a uma jornada seme-
lhante àquela de Gopakumāra se não tivermos firme convicção de que o que
Śrī Caitanya Mahāprabhu nos ensina é a pura e mais elevada instrução que

272
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

conduz ao destino supremo.


Śrīla Rūpa Gosvāmīpāda ora a Śrīman Mahāprabhu (Vidagdha-mādhava 1.2):
anarpita-carīṁ cirāt
karuṇayāvatīrṇaḥ kalau
samarpayitum unnatojjvala
rasāṁ sva-bhakti-śriyam
Que o filho de Śrīmatī Śacī-devī, Śrī Gaurahari, manifeste-se para sempre
no âmago do seu coração. Adornado com o esplendor do ouro derretido,
Ele aparece na Era de Kali por Sua misericórdia imotivada para proporcio-
nar ao mundo aquilo que a muito não se compartilhava: a beleza de Sua
própria e radiante ujjvala-prema-rasa bhakti — serviço na elevada doçura
da relação conjugal.
Neste verso, Śrīla Rūpa Gosvāmī menciona que Śrīman Mahāprabhu
aparece neste mundo para conceder algo que há muito ninguém comparti-
lhava: o acesso aos espirituais sentimentos do casto amor conjugal pelo Supremo
(unnatojjvala-rasa), que é propriedade de Śrīmatī Rādhikā e das vrajagopīs.
Trata-se de um objeto elevadíssimo.

Bhagavān não aceita glorificações vazias


Pergunta: Embora Śrī Caitanya Mahāprabhu seja de fato o próprio Bhagavān,
Ele tampava os ouvidos e ficava perturbado quando alguém O chamava de
“Nārāyaṇa”. Por que, então, Ele aceitou quando Śrīla Rūpa Gosvāmī se referiu a
Ele como “Kṛṣṇa”?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Śrīla Rūpa Gosvāmīpāda ora a Śrī Caitanya
Mahāprabhu dizendo:
namo mahā-vadānyāya
kṛṣṇa-prema-pradāya te
kṛṣṇāya kṛṣṇa-caitanya
nāmne gaura-tviṣe namaḥ
Toda vez que passam por um sannyāsī, os seguidores de Śaṅkarācārya di-
zem namo nārāyaṇa. Isso significa o seguinte: “Todas as jīvas são Nārāyaṇa e,
por você ter tomado sannyāsa, você é a tão elevada e direta manifestação de
Nārāyaṇa. Portanto, presto-lhe minhas reverências praṇāma”. Quando as pes-
soas em geral se aproximavam de Śrī Caitanya Mahāprabhu dizendo-Lhe namo
nārāyaṇa, Ele tampava os ouvidos e lhes ensinava que dizer aquilo a um ser
humano não está correto. No entanto quando Śrīla Rūpa Gosvāmīpāda orou
“kṛṣṇāya kṛṣna-caitanya namine – Você é próprio Kṛṣṇa e veio ao mundo com o
nome Śrī Kṛṣṇa Caitanya”, Śrīman Mahāprabhu não tampou os ouvidos e acei-
tou o que foi dito. Isso parece ser surpreendente: por um lado, o Senhor rejeitava

273
Viśuddha Caytania-Vāṇī

o fato de as pessoas se referirem a Ele como Nārāyaṇa, mas por outro lado, Ele
aceitou quando Śrīla Rūpa Gosvāmīpāda O chamou de “Kṛṣṇa”. Por que será?
Em Hindi, as atividades daqueles que têm fé firme e cega são chamadas
de bheḍa-cāla, atividades tais quais a de uma ovelha. Assim como um rebanho
de ovelhas poderá acompanhar uma ovelha sem motivo algum, muitas dessas
pessoas de fé cega proferem “namo nārāyaṇa” sem levar em consideração o sig-
nificado verdadeiro da expressão; elas adotam essa expressão simplesmente por
terem escutado isso de outras pessoas. No entanto, Śrīla Rūpa Gosvāmīpāda,
sendo inteiramente autorrealizado, compreendia a gravidade e o significado de
sua afirmação, sendo esse o motivo pelo qual Śrīman Mahāprabhu ter aceito
suas palavras.

Śrīman Mahāprabhu é mais bondoso do que o próprio Śrī Kṛṣṇa


Pergunta: Por que Śrīla Rūpa Gosvāmī descreve Śrīman Mahāprabhu como sen-
do mais bondoso do que Śrī Kṛṣṇa, quando nossos ācāryas afirmam que ambos
são a mesma pessoa?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: No Sanātanaśikṣā (Śrī Caitanya-caitāmṛta,
Antya- līlā 23.73), Śrīman Mahāprabhu descreve Kṛṣṇa como vadānya, ou
misericordioso. No entanto Śrīla Rūpa Gosvāmīpāda descreve Śrī Caitanya
Mahāprabhu como mahā-vadānya, ou a personificação máxima da miseri-
córdia. Śrī Kṛṣṇa, por si só, é apenas vadānya. Somente quando Ele está na
companhia de hlādinī-śakti Śrīmatī Rādhikā é que Ele é conhecido como
mahā-vadānya. Porque Śrīman Mahāprabhu é a forma combinada de Śrī Śrī
Rādhā-Kṛṣṇa – e porque Ele distribuiu kṛṣṇa-prema, que há muito tempo não
era distribuída. Śrīla Rūpa Gosvāmī se dirige a Ele dessa maneira, portanto.
Limpando a poeira do coração
Pergunta: Qual é o significado do passatempo no qual Śrī Caitanya Mahāprabhu
limpa o Guṇḍicā Mandira (templo de Guṇḍicā) no dia anterior ao festival do
Ratha- yātrā?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Antes de Śrī Caitanya Mahāprabhu, os de-
votos jamais realizavam Guṇḍicā Mandira-marjana, a limpeza do templo; era
da responsabilidade dos servos do rei prepararem o templo para receber Śrī
Jagannāthadeva e jamais ocorreu a alguém que tal serviço era, de fato, dever
dos devotos. Porém, Śrīman Mahāprabhu considerou o seguinte: “Como devo-
tos do Senhor, é nossa responsabilidade preparar o templo para a chegada dEle”.
No dia anterior ao início do festival do Ratha-yātrā, quando todos se reu-
niram na Gambhīrā, Śrīman Mahāprabhu informou a Seus antaraṅgaparikaras

274
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

– não às pessoas comuns, mas apenas àqueles devotos avançados e próximos


de Seu coração – que eles partiriam em breve com Ele para limpar o templo de
Guṇḍicā. O ato de limpar, em geral, é uma atividade bastante suja e, por isso, é
notável que Śrīman Mahāprabhu jamais tenha orientado aqueles devotos a tro-
carem suas roupas por roupas velhas. Em vez disso, cada um deles usava roupas
novas. A mentalidade deles era: “Como limpar o templo do Senhor é um serviço
(sevā) tão especial, devemos todos usar roupas novas. Como poderíamos reali-
zar um serviço de tamanha importância com roupas velhas e puídas?”
Antes de partir, Śrīman Mahāprabhu pessoalmente deu guirlandas e pasta
de sândalo (candana) a cada um dos devotos ali presentes, pois Ele considerava
adorável qualquer pessoa em quem se manifesta o desejo de servir ao Senhor.
Depois disso, Śrīman Mahāprabhu conduziu os devotos para o Guṇḍicā
Mandira, onde eles limparam o templo como se estivessem limpando seu pró-
prio coração. Śrīla Kṛṣṇa dāsa Kavirāja Gosvāmī usa dois termos para descrever
o estado do templo após o término da limpeza: śītala e nirmala. Nirmala quer
dizer “imaculado” ou “limpo” e śītala, “fresco” ou “relaxante”. O clima em Purī
é bem quente na época do Ratha-yātrā, por isso eles não apenas limparam o
templo como também o prepararam de tal maneira que o Senhor Se sentisse
refrescado quando ali estivesse.
Em seu comentário à descrição do guṇḍicā-mandira-marjana-līlā, que
podemos encontrar no décimo segundo capítulo do Śrī Caitanya-caritāmṛta
Madhya-līlā, Śrīla Prabhupāda Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura revela os sig-
nificados ocultos e profundos desse passatempo. Ali ele descreve as diferentes
categorias de “sujeira” encontradas no coração do praticante (sādhaka), bem
como o processo de purificação que o sādhaka deve seguir se, inspirado pela
companhia dos sábios (sādhus), ele desejar convidar o Senhor a sentar-Se em
seu coração.
Segundo escreve Śrīla Prabhupāda, a verdadeira “sujeira” no coração do
sādhaka é o desejo de conseguir dharma, artha, kāma e mokṣa, pois o coração
precisa estar inteiramente limpo antes que o Senhor possa ali sentar-Se. Aqueles
que falsamente ensinam que alguém se purifica alcançando esses objetivos –
seguindo yoga-mārga, jñāna-marga, tapa-mārga, siddhi-mārga – ou qualquer
outro caminho, fazem tal coisa com extrema matsaratā (hostilidade). Essa
matsaratā não é direcionada somente aos demais, mas também a si mesmo.
Conforme Śrī Caitanya Mahāprabhu explica com toda clareza, o coração só se
limpa por intermédio de bhakti ou por meio da prática de serviço devocional
amoroso a Bhagavān e a Seus devotos. Não há outro caminho.
Certa vez, Śrīla Bhakti Kumuda Santa Gosvāmī Mahārāja acompanhou os

275
Viśuddha Caytania-Vāṇī

devotos da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha durante a limpeza do templo de Guṇḍicā


(Guṇḍicā Mandira-marjana). Ele liderava um grupo de devotos ao templo de
Guṇḍicā. Ao ver um número de devotos limpando o templo com pequenas vas-
souras, ele logo os repreendeu: “O que vocês estão fazendo? Para que vieram
aqui? Por acaso vocês acham que é possível, sinceramente, conseguirem limpar
um pequeno pedaço que seja do templo, ou que vocês vão obter algum benefício
pelo simples fato de usar essa vassoura em sua mão e espalhar a poeira de um
lado para o outro? Qual é a sua intenção verdadeira? Este não é o lugar para pes-
soas que não têm sequer um milímetro de vontade de servir. Seria melhor que
vocês voltassem para casa ao invés de ficarem aqui, fazendo esforços inúteis. Os
devotos de verdade ficam perturbados ao verem essas demonstrações despro-
vidas de sentimento e emoção. Mesmo que vocês não consigam prestar serviço
algum, vocês deveriam ajudar àqueles que realmente servem, comportando-se
de maneira adequada”.

Como observar corretamente o Śrī Jagannātha Ratha-yātrā


Pergunta: Para que propósito e com quais sentimentos os Gauḍīya Vaiṣṇavas
observam o Śrī Jagannātha Ratha-yātrā?
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja: Durante o Ratha-yātrā, Śrī Caitanya Mahāprabhu
e Seus muitos companheiros eternos dançavam em frente à carruagem de Śrī
Jagannāthadeva. Eles jamais pensavam coisas como: “Tenho que puxar a car-
ruagem”, “Preciso tocar na corda”, ou “Tenho que exclamar ‘Jaya Jagannātha,’
assim como todo mundo está fazendo”.
Hoje em dia, aqueles que participam do Ratha-yātrā trazem consigo muitas
emoções e sentimentos. Eles dizem coisas tais como: “Puxei a carruagem por
um minuto inteiro”, e “Pude ver o Senhor Jagannātha bem de perto”. Na reali-
dade, tais atos como puxar a corda da carruagem (ratha) jamais transformaram
os corações daqueles que não são sinceros em seus esforços – no sentido de se-
guir o caminho de bhakti –, mesmo se eles segurassem a corda por centenas de
milhares de vidas. É claro que essas espécies de atividades podem conferir um
certo tipo de bom karma espiritual (sukṛti) para as pessoas comuns, no entan-
to, para sādhakas sérios, atividades sentimentais desta natureza não conferem
nenhum resultado prático. Esses gestos vazios foram totalmente rejeitados por
Śrīman Mahāprabhu e Seus companheiros, que observavam o Ratha-yātrā de
Śrī Jagannāthadeva com apenas um sentimento: “kṛṣṇa laña vraje yāi e-bhāva
antara – concentração interna plena na ideia de que ‘Estamos levando Kṛṣṇa
até Vraja’ ”.
A menos que durante a nossa participação no Ratha-yātrā encontremos

276
Capítulo 27 - Perguntas e respostas

verdadeiros sādhus, escutemos suas palavras e permaneçamos sob sua orien-


tação, não obteremos benefício algum participando de semelhante festival; não
conseguiremos compreender seus significados e verdades profundas.

277
Sobre o autor

O autor deste livro, Śrī Śrīmad Bhakti Vijñāna Bhāratī Gosvāmī Mahārāja apa-
receu neste mundo material em uma família de brāhmaṇas Cakravartīs de uma
linhagem (gotra) chamada Bharadvāja, no abençoado dia de Śayana Ekādaśī, 21 de
julho de 1926, na aldeia de Bankurā, em Sītā-Rāmapura na Bengala Ocidental. Os
discípulos de Śrī Śrīmad Bhakti Vicāra Yāyāvara Gosvāmī Mahārāja, que mora-
vam na Śrī Śyāmānanda Gauḍīya Maṭha em Medinīpura, costumavam visitar a
casa onde ele cresceu quando saíam para arrecadar donativos. Estimulado por
aqueles devotos, Śrīla Mahārāja visitava com regularidade o templo (maṭha)
para ver as deidades Śrī Guru-Gaurāṅga e Śrī Śrī Rādhā-Śyāmasundara-jī e tam-
bém para ouvir aulas sobre o Śrīmad-Bhāgavatam. Foi ali que ele conheceu Śrī
Śrīmad Bhakti Dayita Mādhava Gosvāmī Mahārāja, um dos principais discípu-
los de Śrīla Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura, durante uma das muitas visitas
de Śrīla Mādhava Gosvāmī Mahārāja àquele templo.
Após estabelecer um relacionamento próximo e afetuoso com Śrīla Mādhava
Gosvāmī Mahārāja ao longo de muitos anos, Śrīla Mahārāja deixou o seu lar
ainda jovem, em 1955 e, rendendo-se completamente ao serviço de Deus (Śrī
Hari), do guru e dos vaiṣṇavas, foi morar no recém construído templo da Śrī
Caitanya Gauḍīya Maṭha em Calcutá. Naquele mesmo ano, Śrīla Mahārāja re-
cebeu harīnāma e dīkṣā no dia de seu aniversário, Śayana Ekādaśī, e recebeu o
nome Śrī Narottama dāsa.
Durante o período em que morou no templo (maṭha), Śrī Narottama Prabhu
teve a oportunidade de servir intimamente a muitos irmãos espirituais de seu
Guru Mahārāja. Como resultado de tal serviço, ele foi o objeto da afeição da-
queles vaiṣṇavas e de suas profundas bênçãos e, assim, ele pôde compreender
as verdades profundas da filosofia (siddhānta) Gauḍīya Vaiṣṇava. Percebendo a
dedicação inabalável e o serviço dedicado de Śrī Narottama Prabhu a śrī guru,
aos vaiṣṇavas e a Deus (Bhagavān), Śrīla Mādhava Gosvāmī Mahārāja lhe con-
cedeu a ordem de vida renunciada (sannyāsa) em 1969, ocasião em que lhe deu
o nome Śrī Bhakti Vijñāna Bhāratī Mahārāja.
Confiando profundamente nas habilidades de seu discípulo, Śrīla Mādhava
Gosvāmī Mahārāja colocou em suas mãos muitas tarefas importantes – entre

279
Viśuddha Caytania-Vāṇī

elas, administrar as peregrinações sagradas (parikramās) de Vrajamaṇḍala, a


cidade onde Kṛṣṇa se manifesta, no Norte da Índia, e em Navadvīpa-dhāma,
o vilarejo onde nasceu o Avatar Dourado na Bengala Ocidental; acompanhar
peregrinos de norte a sul; organizar mostras e instalações (pradarśanīs) em di-
versos lugares; pregar em muitas partes da Índia e supervisionar a construção
da maior parte dos templos da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha – ele foi nomeado
Secretário Geral da Śrī Caitanya Gauḍīya Maṭha e foi premiado com o título ‘Sevā-
-vigraha, a personificação do serviço devocional’; também recebeu um certifi-
cado que o descrevia poeticamente como anālasya (alguém jamais tocado pela
preguiça) e sadā-satarka (alguém que vive sempre alerta). Após a partida de
seu paramārādhyatama Guru Mahārāja desta realidade material, Śrīla Bhāratī
Gosvāmī Mahārāja serviu incansavelmente no templo da Śrī Caitanya Gauḍīya
Maṭha como secretário por aproximadamente vinte e cinco anos.
Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja é famoso na comunidade Sarasvata
Gauḍīya Vaiṣṇava por sua contribuição com um serviço capaz de beneficiar
toda a linhagem filosófica (sampradāyika-sevā) de traduzir do Bengali para o
Hindi a obra Śrī Caitanya-bhāgavata de Śrīla Vṛndāvana dāsa Ṭhākura, com
o comentário de Śrī Śrīmad Bhaktisiddhānta Sarasvatī Ṭhākura Prabhupāda,
bem como os numerosos volumes do Śrī Caitanya-caritāmṛta de Śrīla Kṛṣṇa-
dāsa Kavirāja Gosvāmī, com os comentários de Śrīla Bhaktivinoda Ṭhākura e
Śrīla Prabhupāda.
Com o exemplo de sua conduta impecável, Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja
ensinou a todos aqueles que tiveram a bênção de sua companhia que o não-
sectarismo, a glorificação e o serviço aos vaiṣṇavas são os maiores bens daque-
les que aspiram evoluir na vida espiritual, e que servir e glorificar os piedosos
vaiṣṇavas é mais importante do que servir e glorificar o próprio Supremo Senhor
Śrī Kṛṣṇa. Ele é, sobretudo, conhecido por seu conhecimento enciclopédico so-
bre a história da Gauḍīya Maṭha e por sua fé irrevogável no serviço aos grandes
santos (vaiṣṇava- sevā). Sendo um vaiṣṇava estrito e bem respeitado, suas lições
e orientações são objetos de estudo não apenas de praticantes comuns de bhakti-
-yoga, mas também de vaiṣṇavas seniores.
Mesmo em idade avançada, Śrīla Bhāratī Gosvāmī Mahārāja viajou e pre-
gou a puríssima filosofia do Avatar Dourado, Śrī Caitanya Mahāprabhu – a
Viśuddha Caitanya-Vāṇī –, sem se preocupar nem se lamentar sobre suas difi-
culdades físicas ou sobre qualquer outro obstáculo. Através de sua compaixão
infinita, Śrīla Mahārāja abençoa todos os praticantes sinceros que buscam a sua
companhia, imprimindo em seus corações as impressões do que representa es-
tar na companhia de um sábio (sādhu) genuíno.

280
Sobre o autor

281
Título original: Viśuddha Caitanya-Vāṇī

Copyright © 2020 Editora CMI

Todos os direitos reservados: É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer


forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito da Editora CMI.
A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184
do Código Penal Brasileiro.

IMPRESSO NO BRASIL
2020

Você também pode gostar