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FLOR DE MAIO

SÉRIE LIVRO
2 BIBLIOTECA DA ADOLESCÊNCIA 14

JAÇANÃ ALTAIR

FLOR DE MAIO
Impresso ,nas oficinas gráficas da
COMP. MELHORAMENTOS DE SÃO PAULO
.em papel fabricado pela mesma Companhia
em Caieiras.

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SÃO PAULO CAIEIRAS RIO DE J A N E I R O
EY 560.
S e c ç ã o E di to r a - Di r é ç 3 o do P r o f . L O U R E N Ç O F I L H O
N ão foi entre galas e sedas que meus olhos se
abriram para a vida. Mas também não foi
na miséria. Minha família era pobre, de uma
pobreza decente, caprichosamente suprida pelo
préstimo de minha mãe.
O casarão velho que habitávamos, cercado
de mangueiras e madre-silvas, servira de lar a
rneus avós; tinha sido, pois, o berço natal de
minha mãe.
Nunca vi a casa mal cuidada. Havia sempre
em modestos vasos de vidro algumas flores. Ali
não faltavam também os enfeites e decorações
que uma família pobre pode ter.
No dia em que nasceu minha mãe, planta-
IMPRENSA NiCIOKAL ram ao pé de uma das janelas uma pequena
muda de flor de maio. Na tarde em que nasci,
s e r v i ç o social
a planta já era uma árvore. Estava carregada
N'. ..... «£
de flores cor jde rosa. E um galho entrava com
Data.^.// ...... ?-/ 94..Í tanta insistência pela janela, que minha avó se
viu obrigada a cortá-lo. Tenho-o ainda, seco e
envolto num papel de seda. Sobre ele minha
mãe escreveu: «Flor de maio, colhida em 13
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de maio, dia em que nasceu minha filha Te- eram tão bons como os das outras. Nas feslas,
resa ». sentia que estava tão bem vestida como as que
Mereceria eu tanto carinho? Que um galho se diziam ricas.
tivesse florido e penetrado no quarto seria coisa E porque raciocinasse assim, nunca cumpria
muito natural... Mas, para o coração materno, com exatidão os meus deveres domésticos. Es-
isso pareceria de bom agouro. quecia-me do melhor vestido pendurado num pre-
Agora, só agora posso compreender a in- go qualquer, engraxava pouco os meus sapa l os.
tenção de seu gesto e vejo quanto carinho pode Então podia contar corto com as observações de
existir,num galho seco e descorado! minha mãe, que nunca perdoava os meus des-
mazelos.
Talvez por isso eu me sentisse mais voltada
** *
para meu pai, que nunca rne mandava engraxar
Meu pai era inteligente e bom. Lia muito. os sapatos nem tirar do prego o meu melhor
Discorria com facilidade sobre os mais variados vestido...
assuntos. Era um belo tipo de homem. ***
Imagino que, por todas estas razões, minha
mãe, muito jovem, tivesse adquirido aquele ar Aprendi com rolaiiva facilidade. Algumas ve-
sério e desconfiado que lhe era habitual. zes minha rnãe me ensinava em casa, o que
Tive uma infância relativamente fácil. O me permitia ser diante das colegas, mais «sa-
préstimo de minha mãe diminuía as possíveis bida». Não que as minhas lições fossem melho-
dificuldades que apareciam. A sua tenacidade res em capricho, nem mesmo sobressaíssem
operosa dava aos outros a impressão de que muito; maS é certo que eu possuia mais cultura.
tínhamos alguma coisa. Eu mesma ficava pen- Minha mãe me ensinara a gostar de livros.
sativa quando ela me dizia com ar sério: «Te- Aos domingos ou nas férias não me deixava
resa, precisas cuidar melhor dos teus calçados. vadiando de todo. Dava-rne livros para passar
Não somos ricos para estragares assim as tuas o tempo.
coisas...» A princípio aquilo me pareceu uma tirania.
Achava exagero aquela ideia de ser pobre Domingo, férias... Não eram as férias para va-
ou antes, achava severidade demais. diar completamente, dormir; brincar na porta o
Na escola, verificava que os meus vestidos dia todo, deitar na cama larga da vovó?
JAÇANÃ A L T A I R FLO:, DE MAIO

Mas o hábito é tudo. Logo as leituras pas- balava o filho, cobrindo-o de beijos, coçando-lhe
saram a interessar-me de tal modo que eu- sen- mansamente a cabeça, minha mãe nos levava
tia quando vovó me fazia deixar o livro para para o quarto e nos punha na cama. Beijava-
ir com ela à casa das tias. Li muitos livros de nos uma única vez e saía.
histórias, li a vida dos artistas, histórias musi- Esta atitude me parecia em extremo seca.
cais, livros de ciência de meu pai, e até dicio- Imaginava que ela nos queria pouco; a mim,
nários... Tomei gosto decidido pela leitura. menos que aos outros. Eu era maior, de modo
Um passatempo que me divertia muito tam- que mamãe acarinhava mais os menores. As
bém: era a, música por histórias. crianças julgam as coisas bem diferentemente,
Eu aprendia piano. Minha mãe me mandava a seu modo... Lembro-me das mãos sujas dos
fazer historiazinhas sobre as músicas que tocava. meus vizinhos, sempre maltratados, sempre na
Isto me dava gosto. Minha imaginação viva in- rua, com más companhias, com a boca cheia
ventava logo alguma coisa. As notas pulavam de beijos maternos e também de nomes feios
na pauta, viravam dansarinas ou polichinelos, que aprendiam com os garotos; com a cabeça
génios ou pássaros, flores ou rios. Eu mal en- cheia de coceirinhas de embalar, mas vazias de
xergava que todo este gosto era trabalho de ideias boas que se aprendem nos livros, vazias
minha mãe. de um gosto mais fino.
Se meu pai me parecia mais calmo, me- Tudo isto não me ocorria naquele tempo.
lhor, mais inteligente, minha mãe devera rece- A seriedade de minha mãe, as suas pequeninas
ber de mim alguma gratidão. exigências, pareciam tiranias. Os filhos da vizi-
A minha índole preguiçosa sempre mereceu nha, sujos, com o nariz distilando sempre, sol-
dela muita atenção. Sabia bem que não se deixa tos na rua ao sol e à chuva, esses sim l Esses
uma criança da minha idade deitada à-toa na me pareciam felizes l
cama grande da vovó, mas que se deve apro-
veitar a imaginação dela para alguma coisa que ***
lhe dê prazer e que lhe seja útil.
Minha mãe não era de natureza muito ale- O gosto de ler e de compor histórias musi-
gre. Não tinha também certos carinhos que eu cais, que eu aprendera com minha mãe, não
via nas outras mães. Nunca fazia os filhos impediam que eu lhe quisesse menos que a
adormecerem no colo. Enquanto a vizinha ern- meu pai.
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Eu estava com uns onze anos quando, pela jardim, o que não impediu que eu, escondida,
primeira vez, vi entre eles urna pequena tei- ouvisse o resto...
mosia. - Maria, ela ó criança para trabalhar. São
Mamãe entrou do quintal o se abeirou do tolices! Criança faz o que quer, vive como quer,
fogão para começar o almoço. Meu pai lia, sen- come quando quer. E' tolice você se incomodar
tado à mesa da varanda quando alguém bateu. com coisas de criança. Teresa tem onze anos l
Conheci a voz da minha professora o sumi pelo - E' tolice eu não ensiná-la a trabalhar,
fundo do quintal. Sentia-rne culpada do alguma isso sim. Desde que tem. capacidade para in-
coisa... ventar, terá para ser aproveitada.
Quando percebi que a professora havia saí- Meu pai riu. Entrei novamente. Entendi que
do, voltei cantarolando, com ares inocentes e tinha ali um protetor. Papai perguntou-me com
fiquei com meu pai na varanda. ar de brinquedo: «De quem gostas mais, minha
Minha mãe fazia barulho com as caçarolas filha? Do pai ou da mãe?
na cozinha. Dir-se-ia que estava nervosa, pois Prontamente respondi:
a todo instante derrubava uma caneca ou uma - De meu pai.
caçarola. Ele riu batendo umas palmadas no ombro
Eu já estava mais ou menos serena, quando de minha mãe:
a vi aparecer à porta: - Olha, Maria, sou mais querido...
- Teresa, então foste mentir na escola, Concordo hoje que foi má ideia. Desse dia
diante de todos, contra tua mãe? Então não le- em diante passei a olhar minha mãe como in-
vas as tarefas porque trabalhas muito, arcas justa, meu pai como um homem superior...
com o serviço todo da casa, heiii? Abaixo de mim, havia ainda duas crianças:
Dei de ombros. Meu pai deixou O' livro e Lulú o Júlia. O menino tinha apenas um ano
me encarou admirado. menos que eu; e a .menina, dois. Brincávamos
- Tens coragem de dizer isto na escola, muitas vezes juntos, não raro brigávamos. Lulú
Teresa? E' muito simples. De amanhã em dian- dava-se mais com Júlia, cuja índole mais doce,
te vais ajudar-me. Não é possível desmentir-te mais humilde, combinava melhor com o seu gé-
diante das tuas colegas. Ou trabalhas ou men- nio sossegado.
tes... Prefiro que trabalhes. Enquanto Júlia arramava « casinhas », vestia
Meu pai empurrou-me brandamente para o bonecas, conversava com elas e Lulú inventava
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monjolos e represas, eu me entretinha a imitar dura! Uma jovem moderna, escolhendo verdura,
as artistas de cinema, cujas atitudes desenvol- como uma cozinheira? Fiquei num canto, sem
tas me arrebatavam. arredar pé. Minha mão tornou a falar. Continuei
Muitas vezes surpreendi minha rnãe a olhar- quieta. Ficámos lutando: ela para me conven-
me, pensativa, com uma sombra triste no1 rosto. cer, eu por não ceder. Afinal tive um acesso
Nas pequeninas obrigações caseiras minha de ira e comecei a chorar gritando:
mãe conseguia sempre mais dos menores. - Não quero fazer isso, não vou.
- Hoje as -mulheres são outras! pensava - Como não vai? Você não passeou? Não
eu. Para que aprender coisinhas, quando a vida se divertiu? Vai, sim senhora!
moderna nos trouxe tanta coisa mais agradável Meu pai veio da sala saber o porquê de
para fazer? tanto barulho. Precipitei-me para ele, gritando.
A natação, os remos, os esportes modernos Mamãe segurou-me pelo braço, irritada com
me atraíam extraordinariamente. Ao lado deste aquele escarcéu, sem propósito.
gosto louvável, a desenvoltura imodesta das mo- Explicou a razão da manha.
cinhas da época exercia sobre mim poderosa - E' muito criança, Maria, não se inco-
fascinação. mode com ela. ÍJm dia compreenderá.
Papai satisfazia aos meus desejos, à me- - E' engano seu. Tenho negligenciado. Um
dida das suas posses. Matriculou-me a mim e dia... será tarde... Vai começar já.
a meus irmãos num curso de ginástica. Em casa Minha mãe era dessas naturezas corajosas
contava, entusiasmada, os sucessos do nosso e tenazes. Pequena, pálida, muito moça, nin-
progresso. Mamãe sorria. Nunca deixava de per- guém diria que aquele corpo débil, quasi infantil,
guntar particularmente por mim. encerrasse um espírito tão forte, tão decidido!
Um dia, depois tios banhos, chamou-nos: - Não chore, minha filha, sussurrou meu
- Não me esqueci do que disse há dias, pai. Você vai ser uma bonita moça, vai fazer
Teresa. Vou dar aos três uma obrigação diária. coisas que a mamãe não sabe fazer, vamos...
Lulú vai varrer o quintal. Júlia regará as flo- Gostei das palavras de papai. Naquele ins-
res, e você vai arrumar os quartos para voltar tante minha mãe era uma pessoa insignificante,
depois para escolher o arroz e as verduras... unia antiga a quem a gente pouca importância
Meus irmãos saíram, cada qual para o seu dá. Enxuguei os olhos, sorri para meu pai. Ele
serviço. Eu me senti humilhada. Escolher a ver- sim! Era bom, era um santo!
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Como não seria possível fugir, f u i limpar Minha mãe ajuntou os cacos e castigou-a.
os quartos. Inútil será dizer como fiz o meu Júlia abriu um berreiro terrível l
serviço. Uma raiva surda me envenenava. Olha- - Pare de gritar, disse minha mãe. Pare
va mamãe com o rabo dos olhos... Ela parecia e saiba que agora não terá sobremesa nem no
esquecida do incidente. Cantarolava baixinho ao prato de gatos nem no prato sem gatos. Espe-
mesmo tempo que preparava o almoço. rará até amanhã!
Escolhi a verdura com menos zelo que um - Não faça isso, disse assustada minha
cozinheiro de caserna. A mesa, notei que havia avó. A menina tem lombrigas. Imagine! Espe-
dois pratos de verdura: um no centro, outro à rar até amanhã... Pois eu vou buscar o prato.
minha frente. Dois caracóis enfeitavam as fo- E foi. Enquanto isso mamãe tirou-a da
lhas da chicória... mesa. Minha avó demorou um pouco na con-
Entendi bem porque eles ali estavam. A versa e quando voltou Júlia dormia profunda-
carapuça me servia até as orelhas. Mamãe re- mente.
tirou o prato dos caracóis sem dizer palavra. Mamãe ia lutando para vencer as resistên-
Reconheci que ela me era superior iio> zelo, qui- cias que surgiam. Para isso, era tenaz.
sesse ou não quisesse!
Minha avó devia ter sessenta e poucos anos.
Conquanto fosse forte ainda, pouco suportava
os serviços caseiros. Assim mesmo auxiliava,;
Vovó, mãe de meu pai, morava conosco.
pois nas nossas roupas punha ela grande parte
Era do mesmo modo 'que ele, n m i l o mansa
do seu tempo.
para nós, dessa mansidão doentia de deixar
criança praticar até os maiores absurdos. Lem- A pouca distância de casa, morava um ve-
bro-me de um dia mudar de cadeira três vezes lho amigo de família, a quem tratávamos por
ou quatro para satisfazer ao capricho do meu tio Neco.
irmão. Outro dia, Júlia teimou em querer sobre- Vovó e mamãe tinham por ele grande es-
mesa num pratinho pintado de gatos. Não se tima. Muitas vezes, em aperturas financeiras,
podia atendê-la porque o prato estava ern casa ele nos socorrera. Sabia de todos os negócios
das tias. Júlia, num desastroso mau modo, ati- da família, de todas as intimidades. Era o ami-
rou com o prato ao chão, esparramando com a go de todas as horas.
calda pelo assoalho lavadinho na véspera. Vivia como pensionista em um colégio, onde
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ensinava taquigrafia e dactilografia a uma classe querer ser banhista também e reconquistar o
de moços e moças. noivo.
Os dois velhos, vovó e tio Neco, ficavam Enchi-a de trapos, arranjei-lhe umas roupas
horas inteiras conversando no terraço. Eu me desengonçadas. Apresentei-a falando mal, caindo
sentava no degrau da escada a escutá-los. Fala- a todo instante dentro da bacia d'água, que
vam sempre de um tal major João Calazans e fingia de piscina, colocada ao centro do palco...
de Siá Donana do Angico Preto, gente antiga, Como a banhista era de celulóide, flutuava
com nomes engraçados, que eu aproveitava nas elegantemente aos olhos enlevados de João Ca-
minhas brincadeiras. lazans, que lhe dizia lisonjas. Siá Donana do
Lembro-me de que tínhamos um teatro de Angico Preto, coitada! era de massa. Pouco bas-
bonecas. tou para que a água lhe escorresse a pintura,
Minhas tias tinham me dado uma linda bo- desmantelasse o pé e estampasse os cabelos
neca, uma banhista elegante. Dos velhos ganhei branquicentos de lã de carneiro...
outra boneca e um boneco encasacado, em es- Foi um estouro l A pobre boneca saiu do pre-
tilo mais antigo. Num momento me vieram à tenso palco sob a vaia da criançada, enquanto
ideia o major João Calazans e a Siá Donana a minha banhista agradecia as palmas.
do Angico Preto. Batizei-os assim. Quando terminei o meu espetáculo dessa
Cada uma das minhas amigas trazia as suas noite estava deveras comovida. A banhista eu
bonecas para fazermos a nossa companhia tea- imaginava ser eu própria, tal qual me dizia
tral. A empresária era eu, por ter mais idade; meu pai: nadando, fumando, elegante e moderna
o papel de ensaiadora me cabia quasi sempre. como as moças do cinema...
Todos preferiam as minhas comédias e panto- E foi numa repetição da minha comédia,
mimas. Eu lia muito e punha em cena figuras que vovó e tio Neco me pegaram em flagrante,
das histórias dos livros, o que divertia muito chamando a Siá Donana do Angico Preto a al-
os meus assistentes. Num dos espetáculos in- tos brados, sob a vaia dos assistentes.
ventei uma história: uma briga entre o major - Faça ideia, seu Neco I Que menina! Qual!
João Calazans e Siá Donana do Angico Preto... O mundo está mesmo virado! Coitada da Ana
A banhista moderna saía em cena; com seus do Angico Preto! Agora essa bruxa com o nome
graciosos ares conquistava os amores do major dela...
boneco. A noiva deste, Siá Donana, inventa de Tio Neco riu e despediu-se.
2 Jaçanã Altair — Flor de- Maiu
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Minha mãe me chamou: Faziam flores, rendas, costuras e algumas ve-


— Teresa, porque escolheste para tua bru- zes, aceitavam encomendas de doces. Pode-se
xa o nome da D. Ana? imaginar como a vida lhes era difícil neste
- Ora, mamãe, porque é um nome muito tempo em que tudo se faz à máquina, com per-
engraçado. Essa gente antiga tem cada nome! feição e facilidade. A máquina substituiu as
Ouvi vovó falar que ela queria muito casar-se mãos das rendeiras e bordadciras, de sorte que
com o major, mas que ele não quis. pagavam pouco pelos serviços das tias.
Minha mãe olhou-me admirada: - Você... Eu ouvia muito falar das solteironas. Com
de onde tirou isto, Teresa? A Siá Donana foi a idade, tornavam-se insuportáveis, ranzinzas,
uma linda moça. Morava na fazenda «Angico cheias de nervos. Meu pai às vezes se referia
Preto», porisso é que a tratavam assim. Fize- a elas com ar de caçoada. Sei agora que o fa-
ram-na casar com o major porque ele era rico... zia para brincar com minha mãe.
Ela é que não gostava dele. Como é que vais Um dia entregaram-me não sei que para
brincar com o nome dos mortos, menina? Foi levar à casa das tias; parece-me que umas cos-
noiva do tio Neco, porisso conversam sempre turas. Encontrei-as tirando biscoitos do forno.
nela... Tia Gotinha, a mais velha, começou a interro-
- Noiva do tio Neco? Daquele velho ca- gar-me :
reca, desdentado? Esta, agora! - Então Teresa, como vai Maria? Traba-
E comecei a rir... lhando muito? Você tem ajudado sua mãe?
Eu tinha apenas onze anos... Tudo era cla- - Vai bem. Ajudo um pouco... Limpo o
ro! Tudo era azul! Não me lembrei que um meu quarlo, tiro a mesa...
dia, um dia muito distante, eu também viesse - Só?
a ser uma velhinha feia, desdentada, de olhos - Só. A senhora sabe que não quero apren-
murchos como os de tio Neco. der o que faz minha mãe. Não tenho tempo.
De manhã vou à piscina. Estudo durante o dia
e à tarde papai rne leva ao clube de «tennis».
Não quero ser antiga, ficar mexendo pela casa.
Minha mãe tinha duas irmãs solteironas. Quero aprender os esportes, ser mais leve, mais
Moravam numa pequena casa, que lhes ficara elegante, aprender coisas mais importantes...
como única herança. Aí trabalhavam para viver. Titia riu do meu espevitamento.
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- Para seres moderna não precisas ser va- você solteirona é sinónimo do que há de peor.
dia. Varrer, limpar, jardinar, também são bons Vejo bem mais serenidade nelas do que nas ca-
exercícios. sadas da família...
- Mamãe sempre me manda fazer as coi- - Pode ser. Mas Teresa não gosta de ir lá...
sas duas vezes; eu não gosto. - Não gosto mesmo, disse eu aproveitando
- E' porque fazes mal feito da primeira, a observação de meu pai. Sempre a me dize-
menina. Precisas ajudar mais. Tua mãe não rem que sou vadia, que passeio demais. São
aguenta... muito antigas, papai... Vivem metidas naqueles
- Se ela morrer, meu pai se casará com bilros fora da moda, horríveis!
oulra... respondi malcriadamente. Papai riu gostosamente. Para ele a minha
Mas, arrependí-me logo do que disse. firmeza em dizer tudo divertia-o muito. Criança
Saí correndo e chorando como se a ofensa era criança. Não se devia teimar com elas, nem
me tivesse sido feita por outra pessoa. forçá-las a terem método. Com. o tempo, apren-
Cheguei à casa em pranto. O meu primeiro deriam...
cuidado foi ir à cozinha, ver se mamãe não ti- - Teresa, enrole um pouco a língua, ob-
nha morrido... servou mamãe. Os bilros das tias têm dado mui-
Ela estava cuidando do almoço. to presente aos sobrinhos.
- Que aconteceu, Teresa? perguntou.
Papai continuou conversando na cozinha.
- Não quero ir mais à casa das tias...
Saí para a varanda; não ouvi o resto. A insis-
Mamãe olhou-me admirada. Sabia o quanto
tência com que eu ouvia falar em. modernismo,
elas me queriam bem.
Nisto, papai entrou. Indagou o motivo do e o modernismo mal interpretado de muitas mo-
pranto. ças e senhoras mães de família, ia calando no
- Não quer ir à casa das tias, disse ma- meu espírito. A maneira desairosa e humilhante
mãe. Com certeza já tomou por lá alguns pi- de brincar a respeito das solteironas destruia-me
tos... Está ficando muito ousada... a simpatia que elas deviam merecer. Passei a
- Estas solteironas,.Maria! Não se casam, não visitá-las. Para as minhas próprias amigas
depois é implicar com a criançada, é franzir o eu caçoava delas, sem dó nem piedade.
nariz para tudo, disse, rindo, meu pai. Um dia, como umas colegas me falassem
- Fale menos, observou mamãe. Você é no casamento da irmã, contaram que os doces
muito descuidado para dizer as coisas. Para haviam sido feitos pelas tias.
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- Vocês não tiveram dor de barriga? per- Diante da dedicação das minhas tias, meu
guntei com maldade. anterior procedimento me vexou. Principalmente
- Por que? indagou uma das meninas. no dia da festa, em que as amigas me vieram
- Porque as solteironas têm inveja de buscar como oradora da turma.
quem se casa... Deus me livre! Tenho pavor O meu vestido de cassa branca, com larga
de ser solteirona I E' um ser implicante, inde- faixa azul celeste, estava um mimo! Minha mãe
sejável. cacheou-me os cabelos e amarrou-os ao alto da
As meninas me olharam espantadas com o cabeça num laço da cor da faixa.
meu indelicado modo de falar de minhas pró- - Que lindo vestido! disse a colega. Como
prias tias. Eu não me dei por vencida:
tua mãe tem gosto!
- Meu pai não gosta muito das solteironas,
Mamãe, parece que se sentiu envergonhada
continuei. Não as visita quasi. Nem eu. Quando com o meu luxo. Apressou-se em dizer:
vou lá, começam elas a indagar dos trabalhos que
- E' um presente das tias pela formatura
fiz, se sei croché, se já aprendi isto ou aquilo...
Ih! Detesto essas minhas tias... de Teresa... Eu não poderia mandá-la assim tão
Dois dias depois desta conversa maldosa, bem vestida...
recebi duas caixas. Numa, vinha um lindo ves- - Ah! presente das tias? repetiram as me-
tido de cassa branca; na outra, um par de sa- ninas, olhando-me admiradas.
patos e umas meias de seda. Bem se lembravam do que eu dissera de-
Eram presentes das tias solteironas. Eu ia las, dois dias antes. Tive vontade de afundar
tirar o meu diploma no curso primário do co- no assoalho. Fiquei cor de lacre!...
légio. Meu pai estava em dificuldades. Prepara- Quando saimos desculpei-me:
va-se para viajar; ia a negócios e nem se lem- - Vocês não pensem que não gosto das
brara da minha roupa para a festa. tias... Naquele dia eu estava com raiva delas
As solteironas, que sabiam muito bem das porque me chamaram de preguiçosa. Elas são
nossas dificuldades, privaram-se de mais um boas*..
prato em sua mesa, de um confortoziuho mere- - Nós sabemos disso, disse a mais velha,
cido, para presentearem a ingrata sobrinha... seria impossível não gostar das tuas tias, tão
simpáticas!
*** Chegámos ao colégio. Todos os pais dos
JAÇANÃ AJ/TAIR

alunos lá estavam para ver a primeira vitória


dos filhos. Faltava meu pai. Só ele.
Não demorou muito, vi entre os assistentes
a figura pequena e pálida de minha mãe, ves-
tida de preto, no seu único vestido de sair... As
tias solteironas, grisalhas... Minha avó, com a
sua antiga mantilha de renda... Corri para elas.
Beijei minhas tias, agradeci o presente, pedi
desculpas, tudo assim, de repente, como era do
meu temperamento.
- E papai?
- Papai não pôde vir. Viajou a negócio,
você bem sabe.
- Eu lhe pedi tanto que adiasse a via-
gem...
- E ele não veio-?
- Ele não pôde, Teresa. Não era possivel
adiar o negócio.
Fiquei quieta. Fui reunir-me às companhei-
ras mas não estava alegre.
A festa correu bern. Os diplomas foram en-
tregues pelos pais dos alunos. Como papai não
estivesse, minha mãe foi chamada em lugar
dele.
Senti um despeito surdo. Todas receberam
os diplomas pela mão de seus pais. Eu ia re-
cebê-lo de minha mãe, de minha mãe severa,
exigente, que me chamava a atenção todos os
dias e era tão antiga...
A figurinha acanhada 'Ir minha mar, ... conl r a n a v a - m c .
Ela se levantou comovida. Quando me en-
FLOR DE MAIO 25

tregou o diploma tremia muito. Recebi-o com


secura. Gostaria bem mais que ele me fosse
entregue por meu pai, calmo, alegre, moderno,
que tinha aparência e era conhecido como uma
brilhante inteligência...
A modéstia não era para meu orgulhoso
temperamento.
A figurinha acanhada de minha mãe, aquele
ar sério de quem não quer ser notada,, contra-
riava-me.
Eu gostava dos esplendores, dos lagares sa-
lientes, da desenvoltura ousada de meu pai. Ma-
mãe, conquanto fosse uma bonita morena, não
fazia grande figura. Era um tipo velado e sério
que ficava na sombra: só poderia ser notada
na sua beleza pelos que dela se aproximassem.
Entre outras senhoras desaparecia quasi por com-
pleto.
Meu pai, não. Entre todos era o primeiro.
Bonito, engraçado, loquaz! Onde ele estivesse,
atraía a atenção de todos.
Por todas estas razões cheguei em casa
amuada.
No dia seguinte, quando meu pai chegou,
corri para ele.
- Por que você não foi à minha festa?
- Que festa?! Não* me disseste nada...
- Como não? Pois então não contei a você
que ontem era o dia da formatura?
- E' verdade! Pois eu me esqueci. Já se
26 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE MAIO 27

viu? Preocupado com o meu negócio, deixei a mini: mais dócil, mais disciplinado. Tinha sem-
festa no tinteiro! pre hora para tudo. .lúlia estava bem crescida.
Minha mãe veio do quarto com um em- Era calada como minha mãe. Parecia uma senho-
brulhinho na mão. rita sentadinha à porta do quintal, desfiando va-
- Guardei esta jóia para te dar hoje. E' gens ou picando a verdura para os frangos.
um brochinho que ganhei de meu piai, justa- Pela manhã íamos à piscina com meu pai.
mente quando tirei o meu diploma de escola Até aí, nada demais. Ao voltar eu já estava
primária. pensando onde ir. Continuava apenas arruman-
Papai fitou-a. Vi nos seus olhos um não do o meu quarto; assim mesmo, nunca me lem-
sei quê de tristonho. brava de enfeitá-lo com flores ou com uma
Mamãe se aproximou dele e lhe entregou toalhinha bordada.
o broche: Minha mãe se contrariava com isso^.
- Pregue-o no vestido de Teresa. E' o nos- - Teresa, estás moça. Não seria preciso
so presente... Sei que ela gostará de recebê-lo que eu te mandasse ter gosto.
de você, pois eu já lhe entreguei o diploma. Ora, mamãe, neste século, a gente não per-
Meu pai pregou-me o broche no vestido. de tempo com coisinhas. Tudo se compra feito,
Naquele instante, sentí-me feliz. para que fazer? As mulheres de hoje não se
preocupam com bordadinhos... Hoje é diferente l
- Sim, será diferente para os que tenham
**
menos juízo.
Eu ia crescendo em tamanho e em pre- E minha mãe calou-se, muito triste.
sunção. Vestí-me para ir a um chá em casa de uma
Parava pouco em casa. As aulas do giná- colega. Quando voltei, meu quarto estava en-
sio, de música e os divertimentos tomavam-me feitado com toalhinhas de linho cor de rosa.
o tempo. O vaso da escrivaninha derramava cachos de
O excesso de diversões que o modernismo flor de maio. O jantar melhorado, meus irmãos
e o progresso oferecem às crianças terminou de roupa nova... As tias estavam om casa para
por absorver-me o afastar-me dos pequenos de- jantar conosco... Estranhei todo aquele movi-
veres caseiros. mento.
Lulú estava estudando. Era diferenle de Depois do jantar vovó me chamou para o

/l
28 JAÇANÃ ALTAIR
FLOR DE MAIO 29

quarto de minha irmã. Só então me lembrei - Ora, Teresa, então você não conhece o
de que era o aniversário do J ú l i a . Chico, aquele moço que estava comigo, domin-
Sobre a cama estavam os presentes dos de go, na praia?
casa, das amigas, de uma vizinha... Só eu pas- - Ah! Já sei! Um alto, moreno?
sara o dia fora, alheia a tudo. Nem uru al- - Isso!
finete me lembrei de trazer à minha irmã... - Um que vai sempre ao clube de «ten-
**# nis» e que no último baile estava com uma ca-
misa de seda azul?
Eu estava com 15 anos quando passei a - Esse mesmo. Pois disse ao Jorge que
frequentar as aulas de dactilografia e taquigrafia. gosta muito de dansar comigo... Corno é bonito
Tio Neco continuava como professor da ma- o Chico, Teresa! Pena é esse nome... Chico!
téria. A-pesar dos seus anos era um ó ti mo pro- Chico!
fessor: assíduo, entusiasta. Nesse instante o tio Neco fez a chamada
Levantava-se antes do sol. Ia para o chu- do meu nome: D. Teresa Magalhães.
veiro como um menino de dez anos, fazia exer- E eu, no meio do silêncio da classe que
cícios e, às seis e meia, já estava pronto para nos observava, gritei:
começar o trabalho. Era o tipo do homem sadio. - Chico!
Na classe, eu ocupava um lugar bem dis- Tio Neco pôs o lenço na boca e saiu da
tante do professor, junto de Clarinda, uma me- sala, bufando de rir. A classe inteira parecia
nina levada, da «alta roda». Tinha maneiras um enxame...
ousadas, mas, em todo caso, encantadoras. Sus- Desnorteada, vermelha como um pimentão,
tenta vá opiniões muito falhas sobre todas as corri para casa chorando de raiva.
coisas, mas o seu ar de rainha moderna me A saída., o meu colega da esquerda me fa-
embevecia. lou: - - Até amanhã, senhor Chico! Não chore,
Um dia tio Neco principiou a chamada. Nós cabeça de vento é assim mesmo...
sentávamos no fundo da sala e estávamos dis- A noite, corno de costume, tio Neco foi con-
traídas numa conversa animada. versar em casa.
Clarinda me contava o seu namoro com um - Não pense que Chico é meu namorado,
rapaz muito bonito, que morava pelos arredores apressei-me em dizer. Ele riu, lembrando o fato
do colégio. Era aluno da Escola de Medicina. aos de casa.
30 JAÇANÃ ALTAIR

Expliquei porque me ficara na cabeça, tão


insistentemente, aquele nome. Vendo o sucesso
que a minha distracão causara, tive uma von-
tadezinha de magoar o tio Neoo, que tanto se
rira à minha custa:
í brasileiro.
FLOR DE MAIO

catedrais e dos palácios construídos com o ouro

Naturalmente percebeu a desatenção do co-


lega e por isso o chamou:
31

- Pode dizer-me, senhor Jorge, que fim ti-


- O senhor devia chamar-se Chico... nha o ouro brasileiro em Portugal?
- Por que, Teresa? Era o meu colega da esquerda. Estava roxo
- Porque... Siá Donana do Angico Preto de emoção com o seu livro.
só pode combinar com Chico... Jorge levantou a cabeça. Estava Jonge!
Fiz uma concha com as mãos e assoprei:
E saí para a aula de música.
- Fizeram o cavalo de Tróia.
No dia seguinte quando entrei no colégio,
Jorge, um pouco assustado, pois não sabia
o mesmo colega da esquerda me cumprimen-
decerto em que aula estávamos, nem ouvira a
tou: Bom dia, senhor Chico, como foi de pergunta, repetiu:
passeios ? - Fizeram o cavalo de Tróia, professora.
Eu já maquinava um jeito de me vingar. Foi um estouro! Eu estava vingada! O ca-
Era preciso uma vingança. Todos os dias o co- valo de Tróia do colega era maior que o meu
lega fazia a classe reviver o meu caso. irreverente Chico!
No fim da semana surgiu o dia da minha No dia seguinte, Jorge me encontrou à en-
desforra. trada do colégio. Dardejou uns olhos de cobra
Tínhamos aula de História Geral com a para mim e cumprimentou-me irónico:
mesma professora de História do Brasil. O meu - Bom dia, senhor Chico, como vai de
colega da esquerda, desde a manhã andava às passeios?
voltes com um romance. Não ouviu nenhuma E eu mais que depressa dei-lhe o troco:
aula. Eu não o perdia de vista. Estava sempre - Bom dia senhor cavalo de Tróia. Está
com a cabeça baixa, o livro no colo, esconden- satisfeito com a derrota?
do-se e saboreando as belezas da sua leitura,
alheio a tudo. * **
A professora leu uns trechos históricos so- Entre estas cenas escolares, os divertimen-
bre bandeirantes. Depois começou a contar das tos e a seriedade de minha mãe, eu ia vencendo
H L O R DK M A M ,
32 JAÇANÃ ALTAIR serviço soei

os meus anos despreocupadamente. Cheguei ao mais fina dos mais grosseiros, eram preconcei-
fim do curso ginasial e recebi o meu segundo tos; os assuntos familiares, simples, eram insí-
diploma das mãos de meu pai. pidos; as reuniões onde apareciam músicas boas
Daí por diante, minha vida ficou mais ou de algum autor mais velho, cheiravam ao tempo
menos no ar. Apenas os divertimentos me toma- do dantes. As leituras dos mais ilustres escri-
vam o tempo. tores, que deixaram obras admiráveis de beleza
Passámos a receber algumas visitas. Na casa <> sentimento eram as chamadas leituras dos
mortos...
já havia uma senhorita. Fazíamos modestas reu-
niões, porque meu pai desejava que eu fosse Eu encarava o modernismo sob o ponto
desenvolta e soubesse portar-me com certo re- mais fraco e fútil, mais falho e nocivo, sob os
quinte. A elas compareciam alguns dos meus moldes do cinema, que eu pensava poder imitar.
Sem que eu percebesse bem, não eram as ideias
colegas de turma e vizinhas.
Quando minhas tias solteironas apareciam que me dominavam; era o desejo do aparecer,
nas festas, eu as evitava. Com ares protetores de sobressair, de ser original, diferente dos an-
tigos e de todo mundo.
dizia aos convidados:
* - Vocês não reparem nas irmãs de minha Nunca havia pensado (era muito criança)
mãe... Solteironas... Elas nunca poderão estar que a sensibilidade e a inteligência é que dis-
contentes; é natural... Não acharam o príncipe tinguem bem o ser superior, o ser que, velho
encantado... ou novo, tem sempre o que ensinar.
E todos concordavam rindo. Ria-mo dos sensíveis porque diziam que eles
Tudo nos mais velhos ou nos que não pro- pensavam pouco... Eu desconhecia, nesse tempo,
fessavam as minhas ideias era atraso, antigui- Edmundo De Amicis, o poeta dos pobres, dos
dade, que cheirava a mofo e a bolor. A mania que sabiam pouco o portanto só poderiam apren-
da época invadia até as minhas veias. Seria ca- der pelo sentimento. Desse escritor delicado «cu-
paz de jurar que até os nervos dos novos mu- jas páginas nos obrigaram a derramar lágrimas
daram de substância e que seu coração pulsava ou a sorrir placidamente com o doce sabor da
diferentemente. Era um exagero de modernismo, beleza artística». Ouvia, falar dele, mas o f a l o
um desprezo extremo pelos que iam um pou- de ser um l.ertio e afotuoso, um escritor que
quinho atrás do mim. O recato era atraso; os tinha sempre no bico da pena nina. l á g r i m a
bons modos, que sempre distinguiram a gente sentimental, já me aborrecia. Mal sabia eu a
Jaçanã Altair — Flor de Maio
34 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE MAIO 35

influência que este sentimental poeta exercia na mas coisas, mamãe. Vou estudar mais, como
vida do seu país! Quando ele passava nas ruas não? E' que pretendo estudos que me dèm mais
de Turim os operários se descobriam, as mulhe- futuro. Para que hei de dedicar-me a esses tra-
res queriam vê-lo, as crianças seguiam-no com balhinhos? A moça de hoje faz outras coisas...
carinhoso afeto. - Sim, sim, mas você não quer fazer nada.
Escrevia simplesmente, com o coração, não Hoje esteve aqui & diretor do colégio. Gostaria
somente para letrados, mas para o povo, para que você ensinasse a classe das pequenas...
as crianças, para os pobres que não têm muito - Não, mamãe; eu quero ser alguma coisa
tempo disponível e, portanto, muita cultura. mais que uma apagada professora de colégio...
Olhava sem interesse os velhos livros des- - Teresa, o que me parece é que os ex-
ses mais velhos escritores, que choravam pelo cessos de modernismo fizeram de você uma pes-
bico da pena. Algumas vezes discuti com minha soa inútil para si e para os outros... Sempre
mãe; muitas, com meu pai. Queriam ambos que houve antigos e modernos e o mundo vai pro-
eu visse melhor, lesse autores um pouco mais gredindo, essa é a verdade. A custa dos serviços
velhos, mas admiráveis, sentidos, sensatos. Não. deles é que os modernos continuaram. Por uma
Eu preferia os moderníssimos. Confesso que mui- escada em que haja um só degrau não se pode
tas vezes eu não os entendia. Eram tantas as subir, é claro. E' preciso que haja outros de-
originalidades que eu ficava perdida no meio graus que sirvam de ponto de apoio. Você não
delas e não me achava mais. entende o que seja modernismo. Em todos os
tempos ele existiu. Cada qual, na sua época,
*** trabalhou por ele, aproveitando as fadigas dos
As coisas andavam assim quando um dia que passaram. Afinal... vamos ver que espera a
minha mãe me chamou: jovem moderna... Não podemos vadiar assim...
- Teresa, você hoje vai conversar um pou- Somos pobres.
co comigo. Já estou cansada de fazer «furos Minha mãe se retirou. Eu estivera até ali,
na água». Já tirou o diploma ginasial; é tempo numa atitude de pouco caso. Senti uma raiva
de dedicar-se a alguma coisa. Os estudos para- surda de minha mãe, que não me entendia. Pas-
ram. Trabalhos de costura você não faz. Se sei a sentir uma espécie de tédio por tudo. Meu
tudo lhe parece antigo, que pretende fazer? desejo era subir, ser diferente de todo mundo,
- Eu sabia que você já vinha com as mes- original...
**
36 J A Ç A N Ã ALTAIR FLOR DF. MAIO 37

Meus irmãos estavam grandes. meros diversos de canto e violão, brinquedo


Lulú cursava o ginásio. Júlia, modesta,, quie- que pudessem 'divertir aos moços e velhos.
ta, auxiliava mais em casa do que eu. A princípio f i q u e i i n f l u í d a . Arranjei um ves-
Meu pai melhorara de situação. tido de linho branco, urn chapéu de palha clara,
Um dia chamou-me a atenção para a saúde uma gravata leve, de cores vivas e fiquei es-
de mamãe: perando pelo dia do passeio.
- Estamos melhor de finanças... Precisamos Durante a semana papai conversou com as
arranjar uma empregada para tua mãe... Já no- lias e convidou-as lambem. Quando ouvi que
taste que ela anda abatida? combinavam de ir com minha mãe fiquei de-
Eu não percebera. Fiquei mesmo perplexa, veras contrariada. Aquela gente ia estragar a
ouvindo papai. Nunca imaginei que minha mãe festa... A presença dela i,i fazer de mim uma
lhe merecesse muitas e especiais atenções... colegial do maneiras sóbrias e comedidas.
O dia do piqueniq' .o chegou. Mamãe disse-
Dois dias depois deste diálogo chegou em
me baixo:
casa uma empregada.
- Teresa, •- o. Vê se vais exceder-te
Eu já eslava com dezesseis anos.
nos teus ^"-^ untes...
Minhas tias nos visitavam sempre rna.s eu - Já «vi. L/W v o com1 ->rtar-me como uma co-
continuava a dar-lhes pouca importância. Não ti- legial.
nha a natural delicadeza de fazer companhia às - Está claro, respondei1 secamente minha
velhas irmãs de minha mãe, que, vivendo sós, mãe.
nos procuravam, sentindo-se bem ao contacto - Pois então não vou. N •> me candidato
dos mais moços. a solteirona, nem sou uma i n;., na colegial.
Lulú e Júlia já eram diferentes. Tinham - Pois então não vais, obst ~>u meu pai,
maior poder de afeição. Faziam muita festa às que nunca me havia repreendido...
solteironas e ao tio Neco. Ficavam horas à roda O automóvel partiu, levando Júlia em meu
da mesa grande da varanda contando histórias, lugar.
jogando, fazendo adivinhações. Entrei para o meu quarto chorando. Julga-
Um dia meu pai inventou realizar uru pi- va-me uma grande alma infeliz; uma jovem me,
quenique. Tomariam parte nele as melhores fa- por não ser bem compreendida, nada poderia
mílias do nosso bairro. Levaríamos músicas, nú- fazer. Minha mãe me contrariava sempre. Aqu<_
38 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE MAIO 39

lês modos contidos demais, aquelas atitudes mo- A casa estava quieta, Tudo arrumado. Os va-
nótonas, deslustravam o brilho do meu talento. sos cheios de flores; os móveis lustrosos; as
A sombra era para os fracos, para os ineptos, cortinas de cassa balouçando ao vento. Sobre a
para os que não podiam suportar a intensidade mesinha, o retrato de meu pai, ao lado do meu.
de um sol ardente. Minha mãe, com a sua an- Sobre o piano um retratinho de minha mãe,
tiquada modéstia, era o entrave que me embar- séria, triste, preocupada... O sentimento de re-
gava os voos de águia, obrigando-me aos vergo- volta foi esmaecendo' aos poucos... Eu 'Senti a
nhosos arremessos dos galináceos de terreiro... ausência de minha mãe dentro de casa. Senti
Vejam bem: era assim que eu raciocinava. o vazio, que ela deixava, apenas arredava o pé
Pobre de mim! As madrugadas e as tardes são de nosso velho casarão... Depois compreendi que
mais belas, justamente porque se cobrem da se- ela era, na verdade, a alma de tudo aquilo.
rena penumbra das meias tintas. O sol muito Minha avó estava no quarto de costura.
vivo ofusca a vista, desvirtua as paisagens, Sentada à máquina, cosia roupas brancas. Os
queima o frescor das flores e dos prados... seus dedos, já um pouco vagarosos, dobravam
Minha mãe, quando assim me dirigia, evi- preguinhas, atavam fitas, pregavam rendas ainda
tando as arrojadas atitudes, pondo-me à som- com perfeição.
bra, era justamente porque desejava que eu Ela não me viu entrar. Cantarolava modi-
conservasse frescos e naturais os dons de inte- nhas do seu tempo, numa toada tristonha e
ligência e de imaginação que eu possuía. A mo- num ritmo monótono. Fiquei a ouvi-la recostada
déstia faria deles alguma coisa aproveitável. a um canto da janela. Surpreendi nos seus
O meu natural rompante fazia-me pensar olhos descorados, uma lágrima antiga, fora de
que eu era um talento. Minha mãe bem perce- uso nos costumes modernos.
bia tudo isto e procurava desviar semelhantes - Vovó, a senhora canta chorando?
e absurdas ideias. Não me faltavam, dons de in- Ela levantou os olhos anuviados e sorriu:
teligência e mesmo artísticos. Nem por isso po- - Saudades, Teresa, saudades...
deria considerar-me um talento. Hoje me acanha - Saudades de um velho romantismo, de
a ideia lisonjeira que eu fazia a meu próprio umas pequenas tolices, não é, vovó?
respeito... - E não vejo em que se sentem vocês
Depois que minha mãe saiu, e meu pri- mais felizes, minha neta.
meiro ímpeto de raiva serenou, saí do quarto. - E' porque ele não morreu de todo, vovó.
40 J A Ç A N Ã ALTAIR FLOR DE MAIO 41

Quando essas modinhas que a senhora canta de- dosamente m© vingara na a u l a de história.
saparecerem, tudo irá muito melhor. Eslava um rapagão bonito. Cursava a Escola
Minha avó abriu os olhos espa.nlados, sacu- Naval, no Rio de Janeiro.
diu a cabeça, e curvou-a de novo piara a cos- O segundo sinal do colégio me chamou a
tura... Aquela resignação me fez mal. atenção. íSaí correndo e gritando alegre para
Nesse dia, tínhamos no colégio exame de trás:
trabalho. Despodí-mn de vovó e saí. A medida - Apareça lá em casa, Jorge, gostaremos
quo andava, ia lendo uma receita de tricô e da sua visita!
procurando decifrá-la. De repente, ouvi o pri- Ele ficou na esquina, olhando-me risonho,
meiro sinal. Não queria perder a aula porque com ares de bom amigo, que não se esquece
os alunos que perdessem a primeira aula não da gente. Ao entrar, virei para trás e disse-lhe
poderiam ir às outras. Fechei o caderno num adeus. Ele se empertigou e me fez uma grande
ímpeto e me pus a correr. Ao dobrar urna es- continência. Durante o dia, essa continência vá-
quina dei urn valente encontrão num rapaz alto, rias vezes me passou pela cabeça...
que também virava a mesma esquina, em lado
contrário. Espalhei os cadernos pela calçada
***
e ia eu também parar no chão se ele não me
amparasse. Fiquei cor de lacre! Não tinha co- A tarde, ao chegar à casa, notei preocupa-
ragem de fitá-lo. Ele ergueu os cadernos. Es- ção, tristeza em todos. Com a cabeça debru-
tava fardado de branco, farda de marinha. Fez çada sobre a mesa, rneu pai parecia engolfado
menção de dar-me os objetos mas parou, inde- num pensamento angustioso. Mamãe fez-me si-
ciso... Olhou-me... Em vez de entregar-me os nal para que não o incomodasse.
cadernos tomou-me as mãos num cumprimento Entrei para o quarto com ela. Sentada ao
de amigo velho: pé da cama começou a retirar das gavetas as
- Então, é você, Teresa? Gomo vai o suas jóias: um anel pequeno, de brilhante; uns
Chico ? brincos e uma. barrerezinha com esmeraldas e
Olhei espantada: pequeníssimos diamantes. Eram as suas jóias.
- E' você?! O cavalo de Tróia? Enquanto as embrulhava num papel de seda
Apertámos as mãos, rindo. Era o rneu co- foi rne contando o motivo da preocupação de
lega da esquerda, o Jorge, de quem eu tãO' mal- todos:
42 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE MAIO 43

- Seu pai anda doente... Hoje foi ao médi- mós músicas a quatro mãos. Fazíamos sempre
co; precisa operar-se logo, sem perda de tempo; histórias musicais; nunca eram tristes. Eu já
segundo lhe disse ele, o seu caso não é muito havia contado a Jorge da operação do meu pai.
fácil... Só a operação ficará em dois contos de Propusémo-nos a distraí-lo com as nossas «se-
réis. A entrada no hospital é paga adiantada- ratas» enquanto esperasse pelo dia da entrada
mente. A diária, a minha comida, porque pre- no hospital.
ciso ficar com ele, a alimentação do doente,
tudo isto vai ficar numa pequena fortuna para
**
nós. Temos apenas o que ele ganha para viver.
E' preciso arranjar o dinheiro... A semana corria rápida. Na próxima segun-
Minha mãe estava pálida. A sua voz tremia da-feira, papai seria internado.
levemente, mas os seus movimento» eram deci- Minha mãe dispensou a empregada. Meu
didos, enérgicos, revelavam o espírito forte, sé- irmão empregou-se como dactilógrafo no próprio
rio, capaz de arcar corajosamente com as difi- colégio em que estudava. Tio Neco arranjou-lhe
culdades que lho aparecessem. esse lugar onde ganharia, além cio estudo, cem
Meu coração teve um vago estremecimento. mil réis mensais. Era ativo e disciplinado.
Nunca imaginara quê meu pai pudesse adoecer Urna tarde, mamãe me pediu que fosse com
ou morrer. A esta ideia senti um vazio na ca- ela à cidade. Deixámos em casa tio Neco, jo-
beça... gando xadrez com papai.
Nesse instante, bateram. Era Jorge. Apre- Quando tomámos o bonde, mamãe me con-
sentei-o a todos, inclusive às tias que estavam tou que ia a um ourives, antigo conhecido,
em casa. vender as suas jóias. Não me sensibilizou esse
Por algumas horas, ficámos entretidos com sacrifício. Achei aquilo natural, porque eu era
a sua prosa simples e interessante. Contou-nos egoísta. Não imaginei mesmo que mamãe pu-
viagens, passagens engraçadas da Escola Naval, desse gostar de suas jóias e que dispusesse
divertiu-nos tanto que chegámos a esquecer a delas com tristeza.
doença de meu pai. Ao entrarmos na ourivesaria, encontrámos
Daí por diante, Jorge passou a ser um as tias solteironas.
dos nossos amigos, companheiro do serão diá- - Vocês por aqui?! perguntou mamãe. E
rio. Tocava bem piano. Muitas vezes estudáva- antes que as tias solteironas tivessem tempo
44 J A Ç A N Ã ALTAIR FLOR DE M A I O 45

de atrapalhar a tagarelice do homenzinho, este madre-pérola lavradas de ouro e recobertas por


continuou: delicada renda de Bruges... O leque do seu ca-
- Trouxeram-me um riquíssimo objeto, D. samento, primorosamente conservado...
Maria, arho ale judiação vendê-lo... Aqui está E todas aquelas pessoas antigas, que eu
a baixela de prata de sua mãe... Sabe que julgava atrasadas, mostravam-me uma ciência
quem compra, compra sempre mais barato, di- q u e eu não cultivara ainda, alguma coisa mais
go-lhe a verdade... adiantada que tudo: a bondade, a capacidade
Minhas tias ficaram atrapalhadas com a de sacrifício pelos outros...
palração do ourives.
- Vão vender uma coisa de família? Mas,
por que? perguntou mamãe. Papai foi internado. Enquanto permaneceu
- Para nós não ó útil, Maria; que adianta no hospital as tias vi (ira m ajudar-nos no serviço
isto em cirna do bufete? Não se aflija, há mui- da casa. Vovó costurava muito; fazia, principal-
to que pretendíamos fazer este negócio... mente, camisas de homem para vender a uma
Minha mãe não' respondeu. Expôs as suas loja vizinha. Percebi que o dinheiro era pouco"
jóias. Alcançou pouco: oitocentos mil réis. A o que as mulheres, na falta do dono da casa,
baixela, foi vendida por dois contos, entregues supriam com o seu trabalho as necessidades
à minha mãe. principais.
As solteironas, de quern eu tanto zombara, Meu irmão ia levar a comida de minha
a quem tanto eu ridicularizara, despojavam-se rnãe ao hospital, para diminuir as diárias. Eu
ainda uma vez do seus mais gratos objetos, fazia alguma coisa em casa, não resta dúvida,
dos restos da casa paterna, em nosso favor - mas muito menos do que devia o podia fazer.
em favor também de minha própria tranquili- Jorge continuava a visitar-nos. Às vezes ia
dade e bem-estar. ver meu pai, e ficava alguns minutos conver-
Vovó também entregou à minha mãe o que sando com minha rnãe, para distraí-la.
a sua possibilidade permitiu. Mandara tio Neco Uma tarde convidou-nos, a mini e J ú l i a ,
vender a uma conhecida de casa um leque pin- para irmos a um p a r q u e de diversões. ConiO' eu
tado, preciosa recordação de sua mocidade. Era não mo sentisse dependente de ninguém, achei
um objeto finíssimo. Teria uns quarenta cen- que não devia dar grandes satisfações em casa.
tímetros de comprimento; as varetas eram de As moças modernas andam sós, vão com os rã-
46 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE M A I O 47

pazes aqui e acolá; porque precisaria eu contar - Sim, não resta dúvida, é um amigo, mas
às minhas tias que ia com Jorge e Júlia a não sabíamos onde procurar-te, se não fosse
um parque? E fui sem avisá-las. Combinei com Júlia, disse vovó.
Jorge que me esperasse no bonde das cinco. - Desculpe, eu não sabia que a senhora
Júlia, porque estivesse brincando com algumas não estava avisada, d. Albertina, disse Jorge.
amiguinhas, não aceitou o meu convite e po- - São tolices, vovó. Hoje as moças já sa-
risso fui só. bem ir sozinhas a tudo. Para que tantas per-
Passámos por todos os divertimentos do missões? Não sou um nené e nem estamos em
parque. Depois, cansados, sentámo-nos para con- 1830... Hoje sabemos o caminho...
versar. - Sim, há muitos caminhos, minha neta,
Deviam ser oito horas da noite, uma noite caminhos retos e caminhos curvos... Hoje as
fresca e estrelada. meninas «sabem» e, no entanto, escolhem às
Não passou meia hora, quando ouvi alguém vezes o caminho peor... Seja como for, você
que me chamava. Era minha avó. Tinha os sempre deve avisar aonde vai.
olhos marejados e um ar aflito de quem sofria - Está vendo, Jorge? Mamãe, vovó e as
muito. tias querem ver as coisas através dos binóculos
- Vamos, Teresa, vamos que teu pai está da moda antiga.
peor...
Jorge, desapontado, não respondeu. Fixou-
Jorge cumprimentou-a, informou-se mais mi-
me com ar sério, desculpou-se e, na primeira
nuciosamente da saúde de meu pai, enquanto
esquina, despediu-se.
eu, com os olhos admirados dos que nunca sen-
Seguimos. Nossas tias esperavam no centro
tiram a dor própria ou alheia, caminhava sem
da cidade.
saber bem o que nos esperava.
No caminho minha avó me advertiu: - Com efeito, Teresa, como é que você
- Teresa, porque não avisaste para onde sai, assim sem avisar? disse uma delas.
ias? Tive ímpetos de fazer-lhe as peores mal-
Jorge olhou-me surpreso: criações. Minha avó continuou:
- Não avisaste, Teresa? - Você fez mal, minha neta. Não está
- Não, para que? Se eu ia com você... acostumada, é muito criança ainda... Depois,
é tão conhecido... temos responsabilidade sobre você. Seus pais
48 J A Ç A N Ã ALTAIR

deixaram-na conosoo. Precisamos dar-lhes contas


de seus atos.
- Quem sabe se eu ia sumir! respondi.
- Talvez não sumisse... mas se teu pai
morresse... não lho dirias sequer um adeus...
As palavras de vovó me fizeram tremer
um pouco. Era a primeira vez que meu pai
adoecia, eu nunca havia pensado que ele pudes-
se morrer. Quando entrámos no hospital senti
as mãos um pouco frias.
A porta do quarto do doente estava cerrada.
Uma luz branda coava-se pelas venezianas, vinda
dos focos da rua, e trazendo ao aposento um
pouco do verde da pintura das janelas.
Minha mãe tinha presíf nas suas a mão de
meu pai, imóvel, pálido, recostado aos traves-
seiros. Respirava dificilmente. O médico tomava-
lhe o pulso.
Aproximei-me. Falei com ele. Não deu acor-
do de nada.
- Está mal, sussurrou minha mãe ao meu
ouvido. Está muito mal...
E dizendo isto puxou-me pelo braço e levou-
mo para o saguão. As tias também saíram do
q u a r t o deixando vovó só corn o doente.
Eu estava engasgada de emoção.
-- Se a febre passar... Se não passar teu
pai corre perigo de vida, sussurrou mamai'.
Jorge e tio Neco entraram e vieram ao - r. s t M m a l , s i i s s i i i TOII m i n h a mãe ao meu ouvido.
nosso encontro perguntar pelo doente. (IVig. 48)
FLOR DE M A I O 49

Eu não podia falar. Perder meu pai era


como se o sol se apagasse para mini. Nem sequer
prestei atenção em mamãe, nos seus olhos pisa-
dos, nos seus cochilos, prova de urna, fadiga
do muitas noites. Ela estava agora apoiada sobre
a mesa. Dormia. Às vezes, levantava-se com
ar sobressaltado dos que velam por um doente e
tornava a descer a cabeça sobre a mesa.
As tias, vovó o lio Neeo sa.iram para levar
os menores para casa. Eu fiquei com Jorge e
mamão. O doente estava sob a guarda da enfer-
meira da noite.
- Então, Teresa, disse Jorge, vendo-me re-
costada, quieta, 110 sofá, em que pensa você?
- Em meu pai. Tenho medo de que ele
morra.
- Não acontecerá isso... Seu pai é ainda
moço. Há de resistir.
Meu pai é tudo para mim. Se ele morrer...
- Não penso nisso, Teresa. Mas se Deus
não permitir que ele sare, você deve ser corajosa
como sua mãe; ser valente por ela, que fica
na trincheira da vida; ajudará como um bom
soldado à sentinela do seu batalhão...
- Não, Jorge, dou-me pouco com minha
mãe... Ela não me entende... Meu pai, sim, me
compreende. Ele rne ama, é meu amigo, é...
Jorge fez-me sinal para que eu ficasse
quieta o apontou para mamãe que continuava
deitada sobre os braços apoiados na mesa. Tive
4 Jaçanã Altair — Flor de Maio
50 JAÇANÃ ALTAIR
FLOR DE MAIO 51
ura sobressalto. Jorge tornou a fazer-me sinal,
- Pois você não viu? Por eu sair sem
apontando o colo de minha mãe e os olhos.
dizer onde ia, sair com você, um amigo, foi
Prestei atenção: as lágrimas caíam quietas, sal-
um nunca acabar de falar. Meu pai já é dife-
picando-lhe a saia azul escuro...
rente...
Ficámos suspensos. As lágrimas continua-
- É engano, Teresa. Seu pai não pode
vam a salpicar a saia azul...
repreendê-la a todo instante porque está sempre
Jorge levantou-se. Tomou minha mãe pelo
ocupado, não observa as pequenas coisas. Creio
braço:
que ele faria o mesmo que a vovó fez. Deixe
- Vamos dormir um pouco, d. Maria. A
estar que você devia ter avisado...
senhora deve estar exhausta.
- Você também, Jorge? Então acha que
Ela se ergueu quieta, pálida, e entrou no
para ir com um conhecido eu precisaria... Sim
quarto. Eu fiquei pregada ao chão, entre o deses-
senhor l Quando tiver filhas vai ser um vovô l
pero de perder meu pai e o remorso de haver
Jorge ficou quieto. Sorriu apenas e entrou
ferido profundamente o coração de minha mãe.
devagar no^quarto de meu pai. Eu o acompanhei.
*** Papai parecia morto, na mesma posição de
Quando Jorge voltou, eu estava recostada abandono, de indiferença, que indica a ausên-
ao peitoril de uma janela, que dava para o cia completa de forças. Respirava dificilmente.
jardim. O médico assistente dera-lhe uma injeção e
- Você fez mal, Teresa, s aã mãe ouviu... esperava o resultado.
- Eu disse a verdade, Jorge. Minha mão Meu coração apertou. O desespero me desas-
não é má. Mas o seu modo me aborrece; sinto- sossegava de tal forma, que precisei sair diver-
me amarrada por ela nas menores coisas que sas vezes do quarto. Minha mãe retomara o seu
desejo fazer. posto junto do doente, com uma coragem admirá-
- E exagero, menina, isso é exagero seu. vel. As vezes alisava-lhe os cabelos castanhos
D. Maria é enérgica, mas não severa. e respirava profundamente como se quisesse
- È antiquada, Jorge. Por ela a gente só tirar de si um peso sufocante.
cuida de deveres. Passámos aquela noite em vigília.
- Mas você passeia tanto, estuda música, E muitas noites de espera se seguiram,
tem tudo, Teresa... noites longas e angustiosas.
Eu não fiquei no hospital para não- pré-
52 JAÇANÃ ALTAIR
FLOR DE M A I O 53
cisarem mandar mais ura prato de comida, o
minha filha Teresa». Junto do galho seco en-
que seria trabalho-, e despesa de mais uma cama.
contrei algumas cartas de meu pai, quando era
As coisas em casa estavam difíceis. Do
noivo e sonhos escritos por minha, mãe, quando
ordenado de meu pai uma parte era descontada
nasci. Um deles guardei: «Minha filha vai ser
por licença; a outra era dividida entre a casa
boa, porque na vida quero guiá-la pelo caminho
e mamãe. Tudo, no hospital, se pagava à parte:
da modéstia, da instrução e dos deveres. Se
o banho, o caie. Por essa razão, era preciso
não for bela, será agradável como os que,
dinheiro, dinheiro sempre.
sendo bons, desprendem de si um f l u i d o de
Os serviços da casa estavam a nosso cargo.
simpatia. Rste galho de flor veio saudá-la no
Vovó continuava a coser para fora. As tias
dia do seu nascimento, entrando pela janela
tomavam encomendas de doces para casamentos,
e derrubando sobre a cama algumas pétalas...
batizados e festas. Meu irmão dava inteiros
Parece um bom agouro»...
os seus cem mil réis para pagar o colégio de
Tirei dos guardados o galho e o papel que o
Júlia e as suas despesas escolares.
acompanhava. Relí-o, várias vezes... E então
O piano ficou de lado. Eu, mais feliz,
senti que o coração parecia não caber no peito.
conseguira vencer o quinto ano de música.
Debrucei sobre a cama, e as lágrimas corre-
Júlia já não podia levar adiante o estudo. O
ram fáceis, abundantes - - mas amargas...
pouco dinheiro que entrava mal chegava para
Nessa tarde, fui cedo ao hospital. Entrei
as despesas.
devagar. Minha mãe cochilava no espaldar da
Eu visitava meu pai todos os dias. Ele
cadeira. Meu pai estava acordado. Beijei-o. Con-
melhorava, mas seu estado ainda inspirava cui-
versei sobre os manos brevemente e abracei
dados.
mamãe que abrira os olhos. Informei sobre
Uma tarde, encontrei Júlia muito silenciosa
os de casa, entreguei-lhe a avaliação do anel.
mexendo nos guardados de minha mãe.
Saimos para o saguão.
- Em que você mexe? perguntei.
A tarde vá ao relojoeiro e dê o anel,
- Estou procurando um anel que mamãe
disse ela. O preço serve.
me pediu levasse ao relojoeiro para ser avaliado.
- Por que você quer vendê-lo?
Ajudei-a. Entre os guardados achei um galho
- Amanhã seu pai vai começar um tra-
de flor de maio, com os dizeres: « Flor de maio,
tamento caro. O dinheiro acabou... Havemos de
apanhada no dia 13 de maio, dia em que nasceu
lutar. Trabalharemos juntos...
54 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE MAIO 55

Minha mãe pequena, pálida, quasi débil, Durante a doença de meu pai, eu quis ter
era um espírito admirável. Nem um minuto dias de uma bondade, de uma doçura sem
papai perdeu a confiança na cura, animado pela conta. Depois que achei o galho de flor de
fortaleza daquela alma tão forte! maio com os dizeres que o acompanhavam nos
Lutámos assim dois meses, dois longos guardados de mamãe, fui, por uns dias, uma
meses de hospital, tristes e difíceis. Durante filha quasi boa.
esses dias tive horas de tédio e de revolta. Lá um dia, as solicitações daquela outra
Respondia mal às tias, trabalhava pouco, asse- vida fútil me arrebatava... E lá se ia a minha
diada pelo desespero de aparecer e continuar as serenidade! Aquela vida monótona, de deve-
minhas amizades modernas. As roupas já falta- res caseiros, parecia-me horrível. Pondo a minha
vam, e eu era orgulhosa. Os dois melhores vida apagada ao lado da vida das meninas mo-
vestidos que me restavam não eram suficientes dernas, eu me sentia verdadeiramente humilha-
para acompanhar as roupas das amigas. Devo da, extremamente diminuída.
confessar que me deixei ficar em casa mais
de vergonha que por amor aos meus.
Se as tias me chamavam a atenção para ***
um descaso qualquer, eu me achava no direito Papai estava melhor. Na entrada do mês
de ridicularizá-las. As solteironas! Gente descon- viria para casa. Passámos a semana preparando
fiada, descontentes eternas. Ranzinzas, cujo úni- tudo para recebê-lo. No dia em que instalámos
co prazer consistia em chamar a atenção, ralhar meu pai, foi como se a casa se enchesse de sol!
com os sobrinhos; invejosas da minha mocida- Passei horas no quarto, com ele. Mamãe foi
de... Assim pensava eu, tolamente. dormir. O seu cansaço era tanto que a noite
Muitas vezes, Jorge ouvia as minhas tolices, veio, amanheceu, anoiteceu de novo e ela dormia
os desrespeitosos qualificativos que eu dava sempre.
às velhas irmãs de minha mãe. Ficava sério Pouco a pouco recuperou as forças. Passou
e silencioso. Eu, em falta de quem me aprovasse, a receber encomendas de bordados. Júlia au-
ou desaprovasse, serenava esses arrebatamentos xiliava-a. Todos trabalhavam um pouco, na me-
injustificados. dida das suas forças, para melho-rar as condições
da casa.
*** Quando mamãe assumiu o seu cargo come-
.56 J A Ç A N Ã ALTAIR FLOR DF, M A I O 57

cei a me furtar aos deveres. Hábil nada, a vê-la - Não é preciso, observou meu pai. Júlia
sempre disposta à testa do serviço, não me já veio. E' para ajudar-me a levantar... E meu
preocupava achá-la sempre trabalhando. Larguei pai pôs em mim uns olhos tristes de queixa.
as poucas obrigações, salvo as que me diziam Os cachos pretos do cabelo de Júlia cairam
respeito. sobre os ombros dele. Ela se debruçara atrás
Há pessoas que têm um «doce modo de do doente enquanto minha mãe o sustentava
falar», carinhos sutís e um coração seco. Agra- para frente, esperando que a menina acomo-
dam muito e sacrificam-se pouco. Eu estava dasse as almofadas.
assim. Ficava horas e horas com meu pai, pe- Voltei o rosto. Disfarcei, saí para o quintal,
dia o chá, o creme, o mingau, que Júlia prepa- e a garganta parecia que me queimava.
rava, e fazia figura diante dos que entrassem.
Diriam que eu era exemplar quando eu era **
apenas vaidosa, fazia o que havia de mais fá- Papai ia melhorando. Estava livre do perigo
cil na enfermagem de meu pai. da. operação, mas sujeito ainda às surpresas
Ultimamente comecei a -notar que ele sem- da convalescença.
pre chamava Júlia quando queria alguma coisa, As tias voltaram para sua, casa. Nossa
mesmo que eu estivesse perto. Lembro-me que, vidinha ia vagarosa, apertada entre a doença
um dia, mamãe conversava e cerzia sentada e os poucos vencimentos que entravam. Ia para
ao lado da cama. Eu e Júlia estávamos no quarto quatro meses que as coisas estavam mal para-
contíguo. Ela bordava um pano do mesa em das quando um dia o dono da casa em que
talagarça; eu lia notícias de teatros, recepções, morávamos se apresentou:
corridas, pensando no dia em que eu pudesse ir - O senhor seu pai está?
com meu pai a esses divertimentos, Minha mãe foi atender. Explicou-lhe o mo-
Duas ou três vezes minha mãe me chamou: tivo da demora dos últimos pagamentos. Mais
- Já vou, dizia eu. E continuava a ler. tarde, o vendeiro pedia que entrássemos com a
Júlia se ergueu e foi para o quarto: metade do dinheiro. Assim, outros fornecedores,
- Você me chamou? disse ela. Os nervos cederam à fadiga e às preocu-
Levantei-me depressa, como se tivesse acor- pações e pela primeira vez vi minha mãe cho-
dado. rando do desespero. Sentí-me mal, entre aflita
— Você me... e envergonhada.
58 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE MAIO 59

Mamãe saía duas vezes por semana para levar-me aos salões de pintura, às festas, às
entregar, ora as suas encomendas, ora as ca- piscinas, aos teatros... Esquecê-lo doente, quan-
misas de homem que vovó fazia. Numa destas do eu o amava tanto no seu tempo de são!
saídas, Júlia foi também para entregar um pano Acompanhei minha mãe à cozinha. Ela mes-
de mesa para uma professora do colégio. Minha ma fez o mingau e me deu o prato para que eu
mãe tinha desmanchado um vestido de seda o levasse a papai. No momento em que entrei no
de uma prima para ela. Naturalmente graciosa, quarto Júlia brincava com ele:
minha irmã ficou bonitinha, como se estivesse
- Adivinha o que eu te trouxe...
com um vestido novo. Eu, que também já não
- Biscoitos...
tinha muita roupa, achei que o vestido devia
Não! Melhor do que isso... E eu comprei
ser meu.
E daí veio uma discussão que minha mãe com o meu dinheiro...
serenou com bastante energia, não podendo evitar - Que a mamãe te deu?
que papai ficasse a par do malentendido. De- - Não senhor; que recebi da venda do meu
pois que sairam o ambiente ficou pesado. atoalhado. Adivinha...
Mamão recomendou-me que desse o> remédio E como meu pai não acertasse Júlia pôs na
e o mingau ao doente, porque vovó também bandeja um pacote de uvas e pêras. Ele tomou
não estava em casa naquele dia. Pouco habituada o prato de mingau das minhas mãos com leve
a tomar interesse pelos outros, pus-me a ler as gesto de cabeça. Agradeceu. Naquela tarde, não
notícias da próxima festa do ano novo e me saí mais do quarto. Tio Neco e Jorge vieram
esqueci de tudo. Dei-lhe o remédio uma vez disfarçar o meu embaraço.
só, quando devia ter-lhe dado três. Quando Durante alguns dias estive menos egoísta.
mamãe entrou, acordei! Mas durou pouco. A visita inesperada de Cla-
- Você tomou bem o mingau? pergun- rinda, a minha colega elegante, que chegara
tou ela. do Rio, desabou novamente o «temporal da
Meu pai não respondeu. Fixou-me com os época». Com atitudes cinematográficas Clarinda
mesmos olhos de queixa... Mamãe logo en- sorria superiormente de tudo e de todos. Da
tendeu. Não disse nada no momento. nossa terrinha modesta, de costumes ainda reca-
Tive vontade de afundar no chão l Esquecer tados, dos vestidos, das prosas, dos velhos...
meu pai, tão querido quando era forte e podia - No último baile as moças só aceitaram
FLOR Dl! MAIO Cl
60 JAÇANÃ ALTAIR

guaraná! Imagine, Teresa, uma criatura de hoje, Aconteceu que minha mãe precisava entregar
aceitar num baile um simples guaraná! umas costuras até a tarde. Coisa inédita! Ofereci-
E eu ajudava a rir, pedantemente. me para fazer a entrega da encomenda. E não
- Então você brilhou... voltei. Lá para as nove da noite, meu irmão apa-
- Pus todas as moças num «chinelo»! Em receu num bar onde nos reuníramos.
meia hora estava eercadinha de rapazes, cada -Tão cedo? O' rolinha! já vai para o
qual mais elegante que o outro... Acredito que berço? disse Clarinda, irónica.
as jovens quisessem bem imitar-me... Mas qual! - Não, Clarinda, é que papai está um pouco
É um atraso! Falta-lhes coragem... As mamães, peor o por essa razão pediu ao Lulú que me
as titias solteironas, só faltavam as vovós... viesse buscar...
Nem é bom falar, Teresa! As solteironas princi- - As «coisas» é que se «buscam» porque
palmente! Coitadas! Pensam, ter grande valor elas não1 se locomovem...
porque se deixaram ficar... - Eu é que vou ensinar-lhe o caminho
E uma risada ferina cascateou na boca do médico, Clarinda.
encarnada de Clarinda. E saí, dizendo um adeuzinho aos compa-
Vestida de cor de vinho, a cor da moda, nheiros, moída de raiva e despeito.
dos sapatos ao chapéu... Finíssima, mais que Não havia andado muito quando uni dos
isso, esquelética, d© tal forma passara fome rapazes me alcançou. Era um amigo de Jorge:
para se fazer uma parisiense. A curta inteli- - Quer que a acompanhe?
gência lhe encurtara, também, demais, a saia... - Não, vou bem só, obrigada.
Sim, porque mostrava um par de gâmbias finas O rapaz se despediu. Continuámos o> nosso
e mal feitas, que dariam vergonha ao mais des-
caminho.
pretensioso pavão...
- Você vai ser observada, Teresa, disse
- Combinamos um passeio para amanhã.
meu irmão. Custei a encontrá-la. Em casa estão
Queres ir?
Eu ia dizer: -- «Se mamãe deixar...» Mas, zangados.
- Eu já sabia...
o o meu amor-próprio? Fazer-me antiga? Não.
Respondi: « Vamos, com quem ? » Logo ao chegar na esquina vi que mamãe
- Com uns amiguinhos, disse ela. me esperava no portão. Senti um certo receio...
Passei o dia seguinte muito nervosa, pen- Fez-me entrar pelo quintal para não acordar meu
sando no passeio. pai, ainda fraco:
62 J A Ç A N Ã ALTAIR FLOR DE M A I O 63

- Onde esteve, Teresa? liberdade com licença... Não quoro que mante-
- Com uns amigos... nhas amizade com Clarinda. Há na vida muita
- Com uns amigos, não senhora. Com coisa triste que desconheces. Quando eu te
uns pedantes, uns idiotas, é que deve dizer. disser que ali existem espinhos, minha filha, é
Com uma gente que sabe que sou pobre, que porque já passei por ali, já me feri em muitos
Lenho o marido doente, e por essa razão não deles. Quero poupar-te às dores e às amarguras.
respeitam a minha casa. Com uma senhorita A mãe que assim não pensa e não proceda,
que escandaliza toda a nossa terra com seu modo não é mãe. Uma menina moderna deve ser
desabusado, não de moderna, mas de fraca inteligente, ver mais longe. E não é inteligente
de espírito! A quem pediu para sair com essa nem sábio quem se atira à dor por gosto próprio,
gente? A quem deu contas? Acha bonito andar mas quem se prepara e fortalece para rebatê-la.
com uma menina de modos iguais aos da Cla- Quem aproveita as experiências dos que passa-
rinda, acha? Olhe, Teresa, só fazem semelhan- ram para uma vida mais segura e mais feliz...
tes tolices os que não possuem dons brilhantes Minha mãe ficou sentada no degrau da porta
e querem realçar-se, mostrar-se tolamente. Não da cozinha; eu me dirigi para o meu quarto.
demora que a jóia deixe ver as cintilações de Olhei-a um instante antes de entrar... Pequena,
pedra falsa... Não é de boa educação... mais magra, com os cabelos em trança... Tive
- A educação hoje é tão diferente, aven- pena dela, mas confesso que não a compre-
turei. endi bem.
- E' mesmo... Não se conhecem mais as
meninas de boa índole, disse minha mãe. No ***
meu tempo, a que chamas antigo, uma menina
tinha outra compostura. No dia seguinte notei um desusado movi-
- Que culpa temos, mamãe? Os costumes mento na casa. Júlia arranjava as roupas de
mudaram. papai. As tias entraram trazendo costuras.
- Mudaram, sim. Mas os pais devem zelar Mamãe queria levar o seu convalescente
pela felicidade dos filhos, Teresa. Não há mãe para uma vilazinha onde o ar e o sossego lhe
nem pai, que, tendo um filho pequenino ainda, restituissem as forças. Júlia o acompanharia.
já não perca o sono pensando nos seus dias À tarde, deixámos na estação os dois via-
futuros. Só os anormais. Hoje confunde-se a jantes.
64 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE MAIO 05

No dia seguinte mamãe não se levantou. Ninguém diria que Júlia e eu fôssemos irmãs, tal
Esteve de cama durante alguns dias. Depois a diferença física e moral entre nós.
que ela se restabeleceu começou outra vez a Passámos um dia agradável. A tarde, veio
procurar trabalho que lhe rendesse alguns ex- visitar-nos uma prima de meu pai, uma senhora
traordinários. Fazia humildes o morosos traba- morena, engraçada, pessoa antiga, acostumada
lhos. Depois tomou alguns alunos particulares. á simplicidade dos lugares pequenos, Estava
Para mantermos meu pai, era preciso man- também em busca de ar o saúde para o netinho,
dar-lhe todo o ordenado e vivermos dos peque- um menino magro, de olhos parados, que trazia
ninos salários de Lulú e de mamãe. pela mão.
Num sábado, à noite, Jorge apareceu. Vinha Como se falasse sobre o leite bom da terra,
despedir-se. Seguiria para o Rio. Talvez não a prima Honória deu uma receita, dirigindo-se
voltasse antes de completar o curso. Em con- a meu pai:
versa, mamãe contou-lhe que pretendia mandar- - Olhe, primo, tome leite com ruibarbo;
me visitar meu pai. Jorge pediu licença para ir leite com ruibarbo^ é um grande remédio! Não
comigo dizer um adeus a ele e a Júlia. há fraqueza que ele não vença. A prima Can-
No domingo', em companhia de tio Neco, dinha andava que parecia um fantasma. Umas
fomos para a vilazinha. Fiquei espantada! Numa perninhas finas como dois paus do fósforo...
semana meu pai recuperara quasi completa- Pois com leite e ruibarbo sarou. Está que é
nienl.e o belo porte de outrora. Mais gordo, uma lindeza! Experimente, primo, vai lhe fazer
alegre, animado, fazendo planos para recomeçar bem...
a vida com coragem. Júlia, modesta, no seu No dia seguinte saímos cedinho. Antes de
vestidinho azul, extremamente encantadora. Não tomarmos o trem fomos com papai e Júlia
era bonita. Mas os olhos escuros num rosto claro a um curral onde as vacas esporavam pelos
e rosado, os cabelos muito negros, ondulados, gulosos do leito. No caminho, a prima Honória
dentes bons numa boca ligeiramente rasgada, se uniu ao nosso bando e despejou no copo de
faziam-na uma encantadora menina. meu pai o seu benemérito açúcar com ruibarbo.
Eu tinha a beleza do meu pai. Aparecia Era uma romaria de «leite com ruibarbo», que
logo. Era vistosa, elegante, perfeita nas formas a prima Honória criara na torrinha, da qual meu
e feições; onde eu estivesse era logo notada. pai ficou fazendo parte. Até hoje, quando alguém
Jaçauã Altair Flor de Maio
66 J A Ç A N Ã ALTAIR FLOH DE MAIO 67

se queixa, em nossa família, lembramos o leite Foi em maio. Minha mãe encheu a casa
com ruibarbo da prima Honória, já tão distante... de flores, engomou as velhas toalhas de linho
cor de rosa e as cortinas de cassa cerzidas,
***
mas ainda decentes e alegres. As flores de
maio se derramavam nos galhos e invadiam a
Embarcámos de volta para casa às sete e janela do quarto, esperando papai! No dia treze
meia da manhã. Na estação Jorge deu a Júlia desse mesmo mês eu completaria dezoito anos.
uma «lembrancinha» no tamanho, mas um le- Lembra-me ainda, como se fosse hoje, da alegria
souro de inestimável preço para um espírito quasi infantil de meu pai falando em mim
como o de Jídia: era um livro do Wagner. para tio Neco:
Na primeira folha escreveu: Ã Júlia, com quem - Uma filha moça! Estou envelhecendo mas
cata jóia combina, tão admiravelmente, oferece revivendo nela... E os seus grandes olhos bri-
com estima o Jorge. lharam, docemente encantados.
Naquele mesmo dia, fui acompanhá-lo à
Uns quatro dias antes do meu aniversário,
estação. A mini nada deixou como lembrança,
mamãe deu as providências para melhorar um
mas eu tive certeza de que o presente dado
a Júlia não era senão um moio de conquistar- pouco o jantar e fazer algum docinho para es-
perar as amigas. Pouca coisa, o dinheiro único
me... Por mim, talvez tivesse um pouco mais
qno simpatia. Por essa razão não me impressio- de que se dispunha não passava de trinta mil
nei com a falta do presente. Durante o tempo réis adquiridos à custa do crochés e rendas que
que permaneceu fora, Jorge nos escrevia com mamãe vendera. Pode-se bem imaginar quais
frequência. A mim enviava os mais lindos pos- poderiam ser os festejos dos meus dezoito anos.
tais, algumas fotografias. A Júlia mandava caixas Papai chegou na tarde do dia 9. Todos os
de papéis ou alguma flor dentro das cartas. Não da família se reuniram para esperá-lo. A vida
sei se por hábito ou por presunção tive sauda- voltou para mim àquela casa, onde tudo faltava
des dele e quasi certeza de que o amava, ou com a ausência de meu pai.
pelo menos, de que era amada. No dia 12, à tarde, mamãe e Júlia começa-
Um mês depois da partida de Jorge, meu ram a fazer uns doces. Eu repicava papel para
pai veio para casa. Era o antigo homem que balas quando entrou tio Neco. Trazia dois em-
voltara à vida depois de tanta luta. brulhos: duas músicas e um presente, de cuja
68 JAÇANÃ ALTAIR
FLOR DE MAIO 69

entrega fora incumbido por Jorge: um corte mamãe exercia sobre mim alguma influência
de azul pervinca... Nem me passou pela mente que o hábito, mais que tudo, havia criado.
a diferença entre o meu presente e o> de Jú- A vida caminhava lentamente. Papai ia pon-
lia... No dia seguinte, quando mo levantei, a do as contas em dia, auxiliado por mamãe e
casa já estava um brinco. As flores de maio, Lulú. Júlia divertia-se em fazer flores, em ler ou
tão queridas flores, plantadas quando nasceu tocar um pouco. Eu não escondia o meu surdo
minha mãe, estavam espalhadas pela casa: so- desespero do não poder ser da roda elegante,
bre a mesa da varanda, no escritório e entran- o que não passava despercebido aos olhos de
do pelas janelas do aposento, elas espiavam ninguém.
a «outra menina» que viram nascer e era Uma tardo papai me trouxe um convite
hoje uma presunçosa jovenzinha... para uma festa num dos parques da cidade.
Logo cedo as tias apareceram. Recebi delas Pedi a mamãe que fizesse o meu vestido. Ela
um lindo jogo de roupas brancas. Passei um me fez ver que seria melhor esperar. No mês
dia alegre. Muitas colegas o amigas vieram seguinte Júlia ia tirar o seu diploma, e então,
ver-me. Não escondi a ninguém que me sentia sim. Na ocasião ela não tinha um vestido que
feliz com a volta de meu pai © que o estimava estivesse de acordo com o meu. Teimei. O meu
mais que a minha mãe. vestido não custara a ninguém... Estava enjoada
No dia seguinte ao do meu aniversário, da minha roupa... Minha mão começou a impa-
meu pai começou a trabalhar. Os negócios esta- cientar-se com a teima desarrazoada e o egoís-
vam atrapalhados a mais não poder: contas mo que eu mostrava possuir em tão alto grau.
atrasadas da farmácia e do hospital, mil e Meu pai entrou do trabalho sem que eu notasse,
uma coisinhas. Era preciso redobrar os esforços. e pôde ouvir distintamente todas as tolas ideias
que eu, moderna e sabida, estava expondo:
Júlia, que havia abandonado os estudos, voltou
- Você entrava muito a vida, mamãe. En-
para o último ano do ginásio. Lembro-me vô-la,
quanto ela corre lá fora, dando a todos um
nas vésperas das aulas, desmanchando uma saia
quinhão de felicidade ou de glória, passo os
já usada das tias para fazer o seu uniforme.
dias a lhe ouvir: dever! dever!
Continuei a fazer pequenos trabalhos, espe- - Teresa, deixe de ser tola. Você fala
cialmente os que me diziam respeito e favo- por paus e por pedras. Você é uma criança.
reciam a minha vaidade. Embora a contragosto. A vida é sempre a vida, com alegrias e dores
70 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE MAIO 71

em todos os tempos... E afinal, por causa de Gotinha que fizesse o vestido para o próximo
um vestido! Coisa tão sem importância! sábado, dia da festa. Não contei nada a res-
- A vida do agora deve ensinar aos p;iis peito do que acontecera em casa. Sexta-feira
a dar aos filhos todo o bem-estar que eles dese- fui buscar a minha costura. Entrei devagar pelos
jam... fundos da casa. Mamãe estava sentada no de-
Nesse momento, ouvi atrás de mim, a voz grau da porta, olhando as estrelas e o azul do
trémula de meu pai: céu, que aparecia por entre as folhas das la-
- A vida do agora devia ensinar aos fi- ranjeiras.
lhos que compreendessem as coisas, Teresa... - O meu vestido ficou bonito, aventurei.
A culpa não é nossa, minha filha. E' da vida; - Que vestido? disse ela levantando os
ela que nos peça perdão... olhos surpresos para mim.
E meu pai levou mamãe para o quintal... - O que Jorge me deu... Achei melhor
Ao sol reluziram os seus primeiros cabelos mandá-lo às tias. Você tom pouco tempo', e
brancos. Ouvi ainda: depois, não< concordei com o que você disse...
- E uma criança, Maria. Não faça caso. - Que deixasse para depois...
- Sim. Preciso de roupa. Não devo esperar.
Júlia não faz caso disso...
*** - Mas faço eu, Teresa. Não fica bem ter
Vendo meu pai sair, tive um sentimento uma princesa o a outra gata borralheira...
esquisito, entre desespero, raiva e ciúme. Aquele - Júlia tem o vestido...
modo tão carinhoso para com minha mãe, abor- - Sim, um vestido velho que consertei para
recia-me. ela. Realmente, estão muito parecidos.
Os novos! Que novos, que nada! Eles eram Fingi não ouvir e entrei.
esmagados pela velharia das tias, das mães, No dia da festa estreei os meus novos
das avós. Eu poderia com certeza ser uma trajes. Toda azul, vaporosamente azul, nos olhos
estrela se estes antiquados não me entravassem e nas vestes, ouro nos cabelos... Verdadeiramente
o passo... «ouro sobro azul». Não reparei em minha irmã
Tirei do guarda-roupa o corte do vestido. senão muitas horas depois. Num vestido acin-
Embrulhei-o o saí. A casa das tias estava ainda zentado, de uma cor indecisa de céu chuvoso,
aberta. Eram oito horas. Entrei e pedi a tia que à última hora minha mãe enfeitou com um.
72 JAÇANÃ ALTAIR

cinto do veludo maravilha; vestido velho, lus-


troso, nm pouco cerzido nos cotovelos.
De olhos escuros, numa tez levemente amo-
renada, Júlia era exatamente um contraste comi-
go. Ficámos prontas à espera de papai, que
nos viria buscar. Ele entrou às seis da tarde.
Júlia, já de chapéu, lia sentada à mesa da
varanda, enquanto eu dava os últimos retoques
nas minhas vestes. Ao chamado de papai, saí.
Júlia se ergueu. Papai nos fitou de um modo
doloroso. Encarou-me com uns olhos de queixa,
que eu conhecia bem... Tirou o chapéu e sentou-
se. Júlia deu uma risada, sem entender o gesto:
- Bonito, nós pusemos o chapéu e você
tirou-o, disse ela.
Papai olhou indecisamente, sem saber hrm
o que diria. Minha mãe se ergueu; falou-lhe
aJguma coisa ao ouvido, que nós não pudemos
escutar. Impeliu-o docemente para a porta. Ele
saiu conosco. Falou pouco. Egoistamente fingi
não ver e não entender o silêncio. Encontrei
no parque muitos colegas, antigos companheiros
do ginásio, professores, moças elegantes com
quem nos divertimos muito.
Entre os meus contemporâneos havia um
que- mo rodeava particularmente; era filho de
um padeiro. Estudava numa escola superior.
Dedicava-se às ciências naturais. A noite fazia
pão junto do pai, enfarinhado, de avental bran- Trrrs;i, se (Ml l l i c dissesse i j n c voei' 1 í i c m i i m u f l o r . . .

co; um padeiro profissional complelo. Encon- (1'ág. Tii)


FLOR DE MAIO 73

trei-o na festa. Era um bonito rapagão. Nas


horas vagas fazia-se poeta. O jornal do colégio
publicava alguns dos seus versos. Veio sentar-
se comigo e procurou jeito de cortejar-me:
- Teresa, se eu lhe dissesse que você ficou
uma flor...
- Eu acreditaria, Valério, tenho espelho,
respondi rindo.
— E só eu lhe dissesse que os meus
amores por você são velhos o que deles ainda
não estou curado?
- Também acreditaria, senhor Valério...
mas dar-lhe-ia urn espelho... Porque não vai
fazer pão? Deve ser tarde.
Nunca me esquecerei da expressão1 do seu
rosto. Valério empalideceu. Os lábios se crispa-
ram, levemente trémulos. Levantou-se. Fez-me
l uma ligeira cortesia e saiu.
Não o vi mais durante muito tempo. Ima-
gino que humilhação deveria ter sofrido! Foi
bem vingado. Duas vezes vingado! Da primeira,
falarei aqui.
Valério não se distanciara muito, quando
atrás de nós, num banco oculto por folhas lar-
gas de palmeira ouvi o meu nonue e o de Júlia.
Algumas vozes me pareceram conhecidas, outras
não. O assunto', que a princípio pensei que fosse
um brinquedo, foi este:
Você reparou em Teresa? Que linda está!
74 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE MAIO 75

- E' mesmo. Que belo vestido! Elegantís- Percorri as páginas e um título me chamou
simo! a atenção: Ã menina que me mandou aos pães.
- Mas pouco adianta... Porque eu teria ver- Não repetirei os versos todos mas três ape-
gonha do sair assim e trazer comigo uma irmã nas, que me feriram bastante:
tão mal vestida. Fazer pão ?
- Que injustiça! Porque falar de Júlia? E' Pois para fazer pão não há farinha.
tão boazinha... Dela fez monopólio o vosso rosto...
- Porisso mesmo. Pois então uma irmã Esto era o fecho do trabalho de Valério.
veste seda o não tem dó de ver a outra de ves- O jornal existo ainda. E' uma lição que a vida
tidos desbotados e cerzidos? me deu o que não posso nem quero perder.
- Que! Vocês não sejam tagarelas. Eles Devo passá-la às meninas que tão mal como eu
estão muito mal de finanças. Não sabem que o compreendam o valor do um ofício. Geralmente
pai delas esteve tanto tempo no Hospital? nós nos envergonhamos um pouco do oficial de
- Sim, eu sei... Teresa ó que parece não marceneiro, carpinteiro, padeiro ou coisa que
saber... o valha. E' coisa erradíssima,, quo devo mere-
Levantei-me de chofre para não ouvir o cer dos enfatuados mais atenção e cuidado. Já
resto. Queimavam-me as. faces. Júlia olhou-me, desde pequenos noto a mal disfarçada indife-
comparando os vestidos. Papai encarou-me do- rença, ou melhor, a evidente vergonha com que
lorosamente. as nossas crianças que estudam param na rua
Fomos andando quietos algum tempo. com o antigo companheiro de bancos escolares,
- Então, Teresa? disse ele. que se conservou fiel à marcenaria de seu pai
Não respondi. Andava depressa para chegar ou às costuras de sua mãe...
logo, arrancar tudo do corpo, chorar surdamente Exatamcnte o que me acontecia... O tão fa-
rio meu quarto. Cortejada por um padeiro; criti- lado «modernismo ç quo eu pretendia exercer,
cada pelas ricas elegantes e pelas pobretonas esquecera esta falta, levado pelo mau convívio
como eu... social... O modernismo, que ensina a ver longe
No domingo seguinte, eu estava à janela e desprezar preconceitos de raça não me ensi-
quando o menino vizinho mo dou um jornal do nara a respeitar o ofício!
Colégio. Os alunos e ex-alunos colaboravam na Durante o ano que se seguiu após o in-
folha domingueira, inclusive eu e Júlia. cidente do parque,, encontrei-me algumas vezes
FLOR DE MAIO 77
76 JAÇANÃ ALTAIR

com Valério. Nunca mais me olhou. Tirava o nasial, mamãe lhe havia feito um vestido beige,
chapéu à minha passagem sem dizer palavra. todo em preguinhas em cujos intervalos bordou
A última vez que o vi foi na estação. Tí- miosótis azues e cor de rosa. Esperávamos al-
nhamos ido esperar Jorge, que chegaria do guns colegas para o jantar. A aniversariante,
Rio. Ao descer, viu o antigo colega. Abraçou- aproveitando a oportunidade, se fez bela para
nos, deu pequenas indicações ao carregador e a festa. E como estava linda mesmo! Tão mi-
foi ter com ele: mosa!
- Olá, Valério, você por aqui?! Eu esperava os convidados apoiada ao pei-
- Jorge, como vai? Gozando férias, feli- toril da janela do meu quarto, um pouco afas-
zardo? tada, do maneira que não era vista da área de
- Uns dias... E você, para onde se atira entrada.
com esses mostruários? Tio Neco, do portão, chamou Júlia. Como
- Para o mato... Colhendo exemplares. eu mo interessasse pouco pelo que ele pudesse
- Dedicou-se às ciências? conversar fiquei quieta na minha posição des-
- Apaixonadamente! preocupada... ou antes, pensando em Jorge que
- E você veio pedir a mão dela? não deveria tardar... A princípio a prosa de tio
- Talvez... E' possível que desta vez... Como Neco me chegou aos ouvidos como uma bulha
é Valério? Você esqueceu os velhos amores? qualquer de torneira que escorre ou do vento
- Talvez... Gosto das ciências e do meu que canta... Pouco a pouco, porém, a atenção
branquíssimo pão... despertou o comecei a ouvir:
Jorge riu. Abraçou o amigo o subiu conos- - Tio Neco, o senhor está enganado... não
co. Eu que tão bem ouvira tudo, ia pensando pode ser comigo...
na frase: «Veio pedir a mão dela?» - E' Júlia. E' com você, sim; tenho que
Separam o-nos na esquina. Jorge prometeu falar a seus pais, mas Jorge me pediu que con-
que ia jantar conosco no dia dos anos de Júlia. sultasse primeiro você. Que diz? Será capaz de
E foi. Dia memorável para o meu diário. se casar com ele?
Dia que eu devera marcar com tarjas de luto - Mas... não sei... dizia Júlia.
o que, entretanto, enfeitei com flores cor de - Como? Não sabe se gosta dele?
anil... - Gosto, sim, tio Neco, gosto muito, mas...
Como Júlia tivesse tirado o seu diploma gi- não pode ser comigo... Teresa é mais bonita,
78 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE M A I O 79

foi sua colega, é elegante... Não, o senhor está guei a luz depressa, cerrei as janelas e caí na
enganado. Volte, tio Neco. Pergunte melhor... cama. Ela me abraçou doida de alegria.
depois responderei. - Sabe Teresa?
Fiquei petrificada. Minhas mãos gelaram. - Sei Júlia... Você ó noiva de Jorge... Ele
Meu coração batia como se fosse rachar o peito. me havia dito mesmo...
Jorge! Júlia! Era um sonho. Não sei quanto - E não vens?
tempo fiquei ali pregada, sofrendo mil contrários - Estou doente... Mais tarde...
sentimentos.
Ouvi a voz de Jorge que chegava e de Jú- ***
lia que o recebia:
- Júlia, é você. Não há engano. E' de você E sobre o meu primeiro sonho de mocinha
que eu gosto; de você mesmo. Consente que passei uma cruz. Estava desfeito l Jorge era sen-
peça a sua mão? sato, inteligente, bom... Júlia era sensata, inte-
- E Teresa? ligenle, bua...
— Mas... eu nunca lhe disse que a amava, Ouo mais faltava?
nunca... O' Vida! Por moderna que sejas, não pode-
- Mas seria mais natural, Jorge... Ela é rás substituir o ouro verdadeiro pelo metal re-
mais bonita, mais elegante, mais... Estou per- luzente, mas falso...
plexa. Jorge ficou alguns dias noivando. Era o
- Sim, mas você é mais terna, Júlia, mais seu último ano de curso, mas já tinha colo-
ajuizada, mais sensata. A beleza passa, a bon- cação, bom ordenado. Pretendia, no fim do ano,
dade fica... E então, aceita?... casar-se e levar Júlia para o Rio onde fixariam
- fiirn, Jorge... quero-lhe muito bem... residência.
Enlraram, As palavras dos dois soavam aos Depois que ele p a r l i u , minha mãe começou
meus ouvidos, tristemenle, como um dobre de a dar providências para o enxoval de minha
sinos... Como não? Era o meu primeiro sonho irmã. Papai já estava em dia com as suas con-
de menina vaidosa que se finava. tas. Tudo corria bem. Marcámos uma segunda-
Não pude sair do quarto. Quando minha feira para as primeiras compras.
mãe entrou e me chamou para jantar pretestei Na noite de domingo f u i cedo para a cama.
doença. Dois minutos depois entrou Júlia. Apa- Dormi mal. Ao lado da minha, na sua pequena
80 JAÇANÃ ALTAIR l FLOR DE MAIO

«Jorge e Júlia... noivos...» Percebi então alguém


81

cama de jacarandá amarelo, Júlia dormia pro-


fundamente feliz... Eu... pensava, dentro da es- atrás de mim. Era minha mãe.
curidão do quarto, quebrada por um ténue cla- - Caiu da cama, Teresa?
rão, que entrava pela fresta da janela. Não pude responder. Minha mãe, tão pouco
Jorge e Júlia! Que destino misterioso os afeita a carícias, abraçou-me. Seus olhos pousa-
unira na vida? Como poderia Jorge não ter me ram no chão... O seu pressentimento era reali-
dade! Conversou comigo, acalmou-me um pouco.
dado todo o seu afeto, toda a sua atenção? Os
Quando entrou era dia. Eu fiquei só, espe-
meus naturais encantos não^ passaram nunca ig-
rando dissipar-se o vermelho dos olhos. Racio-
norados e jamais um colega me pareceu indi-
cinei: o excesso de modernismo desviara do meu
ferente a eles... Recordei o dia em que lhe dei
caminho o afeto da minha infância. Os modos
um tremendo esbarrão ao virar a esquina do
desenvoltos que eu procurava imitar das estre-
colégio, esparramando na sargeta os meus ca-
las do cinema, a prosa desabrida que eu sus-
dernos. Recordei a sua gentil figura a me se- tentava com colegas, afirmando com corl.eza ex-
guir de longe, a continência que me ficou ro- traordinária certas tolices com que os « originais »
dando pela cabeça... E eu quasi menina... Júlia, pretendem mudar de vida... O exagero estragou
uma criança... E elo a escolhera! o frescor do meu espírito de criança. O medo de
A figura séria de minha mãe veio juntar-se parecer educada sob antigos moldes me fez
ao meu desconhecido sofrimento. Quando o peito uma tola. Como acontece aos velhos que não
me estalava de dor, a palavra de minha rnííc, querem parecer velhos e se tornam ridículos...
severa mesmo, mo serviria tanto! Um velho e Tudo quanto o modernismo proporciona aos
arcaico coração fora da moda também mo ser- desta geração é, quasi sempre, pouco ou mal
viria se ele soubesse da mágoa que eu sofria!... aproveitado.
Abri levemente a janela... Madrugava no A educação foi feita para melhorar o indi-
céu e na terra. Um bater de asas acordava os víduo, não só para o seu bem, como para o
ninhos. Eu não pregara os x>lhos. Vesti o rou- bem dos outros, O modernismo não é senão uma
pão e^saí para o quintal. A frescura do vento educação melhorada; deveria, portanto, ir mais
dissipou o peso que me apertava o cérebro. longe, aprimorar as qualidades dignas do um
Sentei-me na beirada do tanque, esgravatando a ser, em seu favor e em favor da sociedade em
terra com uma varinha. Instintivamente escrevi: quo ele vive; respeitar o que é digno de respeito
Jaçanã Altair — Flor de Maio
82 JAÇANÃ ALTAIR
FLOR DE MAIO 83

para o bera de todos, da própria raça. Os que das para começo do seu enxoval. Escolhi cuida-
mal compreendem estas coisas descambam do dosamente, como se fosse para mim. Nesse
modernismo à futilidade, do bom para o mau, mesmo dia entrei num curso de trabalhos do
do útil para o prejudicial; descem em vez de colégio. Em um mês bordei uma toalha com
subir. uma revoada d© andorinhas, que dei a Júlia no
Eu tinha avançado muito. Em vez de rosas dia em que recebeu o> anel de noivado.
colhi desilusões. Se elas vêm aos poucos, com os O ano passou depressa. No fim do último
anos, -como corre a vida, a gente vai ficando mês ajudei minha mão nos arranjos da casa,
forte, mais resistente, mais prudente como quem para recebermos os poucos convidados que as-
toma soro em doses, contra moléstias infeccio- sistiriam ao casamento de Júlia.
sas... Mas se chegam antes da hora, maltratam Foi de manhã, numa clara manhã de de-
horrorosamente! zembro... Ela estava simples, graciosamente ves-
Agora eu compreendia porque Jorge me tida, boni tinha e simpática. Não os acompanhei.
havia posto à margem da sua vida, para colocar Quando o automóvel partiu para a estação le-
dentro dela minha irmã. E mais fácil dansar, vando minha irmã, não sei o que senti... Ale-
remar, aprender atitudes de cinema, mostrar-se; gria de vê-la partir, feliz; tristeza de deixá-la,
é fácil aprender-se meia dúzia de «coisas ori- despeito por ter sido preterida...
ginais » e conquistar dos rapazes «ocos » o título E a tristeza abriu na minha inteligência
batido de meninas interessantes,.. O que não um raio do luz desconhecida.
é fácil 6 ser sensato; separar o que existe de A noite senti saudades de Júlia. Papai e
útil no espírito moderno; não é fácil a gente minha mãe estavam na varanda, quietos, mas
esquecer-se um pouco para dar a mão aos que serenos, felizes.
não podem subir sozinhos a dura escalada da Fiquei em casa uns dois meses, num silêncio
vida. Não.,é fácil estudar, trabalhar em humildes que a minha tristeza não podia evitar. Quando
misteres, fazer-se modesto e útil, ignorado e minha mão passava ao pé de mim eu a seguia,
operoso... comovida...
* #* Que de razões tinha ela quando me cha-
mava a atenção para os meus tolos modernis-
Júlia apareceu à po>rta e me chamou. Entrei mos! Qual o homem sensato que escolheria para
e vestí-me. Ajudei-a a escolher cretones e ren- esposa uma moça nas minhas condições? Como
l'LOH DK M A I O
84 JAÇANÃ ALTAIR

poderia eu ser o modelo dos meus filhos nos No dia seguinte fui procurar uni lugar de
deveres sociais, se nem nos caseiros eu me professora no colégio, que anunciava duas vagas.
portava bem? Comecei a reparar nas amigas Deram-mo aulas de ciência nas duas primeiras
que eu antes achava encantadoras: borboleteando séries ginasiais. Lutei bastante para me ver mais
inúteis, mal entendendo a vida, numa inconciên- ou menos senhora da matéria dos programas.
cia do idiotas. Comparei os originais com os que Os anos passaram.
lutavam deveras... Mamão cosia-me os vestidos e a roupa bran-
Júlia escrevia sempre. Estava feliz. A pri- ca porque vovó já não podia trabalhar. Lulú
meira carta que chegou provocou-me um despeito foi para o Rio. Morava com Júlia e cursava uma
vizinho da cólera. Caçoei dela. Caçoei da escolha escola superior. Papai, cansado, um pouco do-
de Jorge. Mostrei-mo de tal forma inconveniente ente, trabalhava pouco-, de maneira que eu passei
que meu pai me chamou a atenção: a ser o forto da casa. Inteirava com o dinheiro
- Parece que a felicidade de Júlia te abor- de meu pai uma pequena mesada para os gastos
rece, Teresa... Sei porque. Não posso desviar de Lulú no Rio.
de ti a tristeza, minha filha, mas podes diminuí- E os anos passavam. As vezes sobressaltava-
la, o até esquecê-la. Basta querer. Sinto que, me a ideia do que eu ia ser solteirona. Eu,
tão inteligente, deixasses a vaidade tomar conta que as ridicularizava tanto I Estava já com vinte
da tua cabeça e do teu amor... E' tempo ainda, e seis anos o o príncipe encantado não chegava...
minha filha; és uma criança; o homem foi feito Tivo desesperos quo esta pena não contaria, por
para progredir. Recomeça, Teresa. Recomeça um mais leve que fosse! Ver minha irmã casada,
modernismo real, sensato, inteligente e benéfico. feliz, e estar eu tão sobrecarregada de trabalho,
tão esquecida.
Um modernismo útil numa vida simples e natu-
ral, quo constrói na paz, renova cada ser em As vezes alguém, distraidamente falava em
solteironas e delas caçoava como eu fazia quando
cada dia... E' tempo...
menina... Quantas lágrimas me custaram essas
E levantou-se. As palavras saídas tão sin-
zombarias! Das moças de meu tempo, nenhuma
ceramente da boca de meu pai foram como
solteira. Dos moços, um apenas: Valério, o
faúlhas de fogo no meu coração. Queimaram e
padeiro, o esse mesmo não morava na cidade...
deixaram sinal.
Aos trinta anos descambou para sempre
a ideia de casamento. Serenei. E com a sere-
***
86 JAÇANÃ ALTAIR FLOR DE M A I O 87

nidade voltou-mo a alegria. Sentia-me satisfeita, assuntos do colégio, sobro o aproveitamento


trabalhando. Divertiam-me as aulas e os alunos. das classes. Trabalhávamos de comum acordo:
Tanto me esforcei que um dia a diretora me eu nas classes primárias e ele nos anos que se
chamou: seguiam, de maneira que os alunos aproveita-
- D. Teresa, desejo fundar aqui um esta- vam muito porque combinávamos bem os nossos
belecimento para crianças. Um curso primário programas.
mais prático o mais científico. Pensei na senhora. Uma tarde recebemos um telegrama de Júlia.
Vai dirigir esta escola e incumbir-se de arranjar Vinha passar o treze de maio em casa, com
professores. Tenho confiança na sua capacidade. Jorge o seus dois filhos. Fui para a aula sa-
Passei um ano a dirigir os trabalhos da tisfeita e passei a notícia a Valério, que con-
nova escola. Formulei programas, dividi as lições, tinuava amigo de Jorge. Correspondiam-se e
arranjei as classes com o que era mais necessário estimavam-se como irmãos.
ao novo ensino e, por fim, comecei a contratar Fomos todos esperá-los à estação. Júlia
professores. eslava linda. Eu agora ficava longe dela! As
Um dia entrei mais cedo para o colégio. crianças, um casal encantador. Ao abraçar Valé-
Ocupava-me em rever os livros e a organização rio, Jorge disse:
da minha escola quando a porteira me anunciou - Então, já pediu a mão dela?
a presença de um senhor. Vinha oferecer-se Valério sorriu:
para o lugar vago cruo eu ia deixar no ginásio. - Só tiver coragem...
E muito alto, levemente pálido, entrou Valério... Não me perturbei com a pergunta. Já não
Tive um sobressalto! Lembrei-me da grosseria era comigo. Dizia-se que Valério ia pedir a
com que o tratara... mão da professora de desenho do colégio.
Em poucas palavras disse ao que vinha. No dia treze, bem cedo, eu me levantei
Estava lecionando em São Paulo, mas preferia para ir ao mercado, dar as providências no
a sua terra natal, onde tinha a família. Durante arranjo da casa. Não deixei mamão sair da
o tempo em que esteve no gabinete não tocou no cama. Estava um pouco adoentada. Fiz as mi-
passado, em Jorge, nos tempos colegiais. Era nhas compras, arrumei tudo cedo.
um homem de trinta e sete anos. Minha mão me deu de presente um jogo
Foi contratado pelo colégio. Daí por diante de toalhinhas cor do rosa enfeitadas com uma
começámos a conversar muitas vezes sobre os renda de croché, exatamente como nos meus
88 J A Ç A N Ã ALTAIR FLOR DE MAIO 89

verdes anos de menina... Tive um aperto, uma - Pois então vamos jogar esta Teresa fora,
emoção, quando ela mas entregou... Já de ócu- minha mãe. Estas flores de maio foram os meus
los eu a via tantas noites trabalhando nelas... primeiros anos, os meus defeitos de filha presun-
A ronda dos meus pecados de filha se çosa...
acercou de mim... Tive remorsos. Se eu pudesse Atirei o- ramo- seco. Apanhei o ramo que
virar a roda da vida para trás, como- eu seria entrava pela janela, desabrochado e fresco.
boa!... E' errando que se aprende... quo fazer?! - Este galho, minha mãe, é a outra Teresa.
Meu pai saiu com Jorge. Júlia escovava os A Teresa de trinta e dois anos, que sofreu e
dentinhos das suas crianças. Entrei no quarto aprendeu. Estas são as flores das minhas qua-
de minha mãe. Ela ressonava levemente. As lidades, poucas, mas seguras... Estas você deve
longas tranças já grisalhas caíam-lhe no peito. guardar... São o seu trabalho1, a sua energia,
No rosto cansado, ainda belo, havia os primeiros o seu amor...
sinais da velhice que se aproximava. Aos meus Minha mãe me abraçou. Não conseguiu dizer
passos ela abriu os olhos. Beijei-a na testa. nada. Eu me senti comovida. Beijei minha mãe
Abri a janela. e saí.
- Quer café? perguntei.
- Não, Teresa, eu já me levanto.
- Olhe, mamãe, as flores do maio estão
a espiar no quarto a «menina Teresa»... E Passámos rim dia agradável.
escancarei as janelas. As flores de maio verga- Eu estava debruçada à janela do quarto de
vam os ramos docemente rosados. Na casa, todos minha mãe lendo uma carta de Lulú, quando
os ramos floridos espalhavam perfume... Jorge entrou:
Fui à escrivaninha. Tirei do lá um papel - Teresa, preciso falar-lhe...
de seda um pouco amarelado pelo tempo, em - Pois não...
cujas dobras ainda se podia ler: «Flor de maio, - Estou incumbido do fazer-lhe um pedido,
colhida a treze do maio, dia em que nasceu mas tenho medo que você me mande plantar
minha filha Teresa». batatas...
- Conhece isto, minha mãe? - Ora essa, porque?!
Ela não pôde responder, mas sacudiu a - Porque urna vee... você já mandou o
cabeça. Valério fazer pão...
90 J A Ç A N Ã ALTAIR FLOR DE MAIO 91

- Que tolice! Aquela Teresa morreu. Coita- sadas não movem moinho... O juízo já veio e
do! E' tão boa criatura! Tão inteligente... estamos mudados...
- E essa a sua opinião, Teresa? Entrámos juntos. O pedido foi simples, dian-
- Claro! Ninguém melhor do que eu pode te de todos, como convinha a pessoas da nossa
dizê-lo... Trabalhamos juntos. idade.
- Pois então lá vai: Valério incumbiu-me Depois do chá, Valério se despediu. Todos
de pedir-te em casamento. Aceitas? estavam contentes. Era um bom rapaz.
- A mim? Que ideia! Estou velha, o tem- - Fiquei algum tempo no> terraço, serena,
po correu muito... Não podo ser. Você não en- feliz, pensando nas voltas que o mundo dá...
tendeu.
- Como não entendi?! Você sabe há quan- ***
to tempo você é querida... Não se faça de tola.
No dia seguinte, ao entrar para o meu
- Se ele pudesse esquecer o que eu lhe
trabalho, achei sobre a minha mesa um ramo
disse há anos... E' um nobre rapaz... Porque
de flores de maio, as flores que marcaram sim-
não?
paticamente o dia do meu natal. Sobre ele des-
- E' o sim, Teresa? então é o sim?
cansava uma caixinha com um cartão. Abri.
Sorri apenas.
Era o me>u anel de noivado...
- Então, responde...
Rasguei o envelope:
- Vou atendê-lo, Jorge; já estou tão ve-
«Teresa, bom dia! O bom dia mais feliz
lha... Mas se assim mesmo me admira...
da vida do Valério».
- Viva! até que enfim, disse Jo<rge. E saiu
cantarolando pela casa e espalhando a notícia
ruidosamente, desde a cozinha até a porta da
rua.
A noitinha, Valério chegou. Esperei-o à
porta.
- Teresa, não sei como tive coragem...
- Sim, coragem paxá perdoar o que te dis-
se há anos. Obrigada, Valério, por ter esquecido.
— O passado, Teresa, passou. Aguas pas-
FLOR DE MAIO 93

«13 de maio de 1939.

Minha filha!
Recebi tua, cartinha. Agradeço os teus felizes
votos. Plantei fio jardim, junto da janela ao teu
quarto, uma pequena muda de flof de maio tira-
da do "mesmo pé que mu nascer tua mãe e tua
avó Maria. Quando vieres nas férias cia já estará
com os primeiros brotos.
Com ela deixo-te «Flor de Maio», memórias
de tua mãe, que um dia te servirão na vida con-
tra, os ataques de ideias infelizes que por acaso te
assaltem.
Escolhe o que a, civilização te der de útil e
de alegre sem o exagero dos que desejam ser
originais... Estuda. Aprende a gostar do que é se-
reno e simples, c faz aquilo que tua mãe não
soube jazer.
Segue a moda mas não estragues o teu espi-
rito nem o teu coração.
Não se colhe fruto doce sem que ele esteja
maduro, nem se olilém boa colheita se a sementeira
não foi feita em tempo certo.
Saudades dos teus pais
VALÉRIO
e
TERESA
E d j coes Melhoramentos

C. M. S. P.

Primeiro Catecismo da Doutrina Cristã $500


Segundo Catecismo da .Doutrina Cristã $900

ALESA

Sereis as Minbas Testemunhas C$000

PE. JOSÉ MICHEL, S. J.

Primeira Comunhão das Criancinhas . . . . . 2$000

MARQUES DA CRUZ
A Virgem de Fátima C$000

J. B. JULIAO E J. GOMES JÚNIOR

Ciranda, Cirandinha 3$000

C. M. S. P.

Alegria das Crianças — Alhuin I 2$000

RENATO SÊNECA FLEURY


Brincar de Ler 4$000

FRANCISCO ACQUARONE

O Carnaval do Ha-cha-cha 3$000


O Casamento de Maçarico 3$000
O Piquenique dos Animais . . . . . . . . . 3$000
Parque de Diversões õ$000

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