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A CRIAÇÃO DE

DIAGNÓSTICOS NA
PSIQUIATRIA
CONTEMPORÂNEA
Conselho Editorial

Bertha K. Becker (in memoriam)


Candido Mendes
Cristovam Buarque
Ignacy Sachs
Jurandir Freire Costa
Ladislau Dowbor
Pierre Salama
Rafaela Zorzanelli
Benilton Bezerra Jr
Jurandir Freire Costa
(orgs.)

A CRIAÇÃO DE
DIAGNÓSTICOS NA
PSIQUIATRIA
CONTEMPORÂNEA
Copyright © dos autores
Direitos cedidos para esta edição à
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Editoração Eletrônica
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Estúdio Garamond

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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, por


qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.
SUMÁRIO

Nota dos organizadores


Rafaela Zorzanelli, Benilton Bezerra, Jurandir Freire Costa (organizadores)

INTRODUÇÃO
A psiquiatria contemporânea e seus desafios
Benilton Bezerra Jr.

PARTE 1
Aspectos da história das nosologias psiquiátricas em curso no século XX
O lugar do diagnóstico na clínica psiquiátrica
Cláudio Banzato e Mario Eduardo Costa Pereira
Sobre os DSM’s como objetos culturais
Rafaela Zorzanelli
A Neurose como Encruzilhada Narrativa: Psicopatologia Psicanalítica e
Diagnóstica Psiquiátrica
Christian Ingo Lenz Dunker

PARTE 2
Diagnósticos e seus usos
O diagnóstico da esquizofrenia no contexto dos serviços de saúde mental
de base comunitária
Octavio Domont de Serpa Jr., Erotildes Maria
Leal, Nuria Malajovich Muñoz, Catarina Magalhães Dahl
Transtorno de ansiedade social no DSM-5: o paradoxo da ansiedade sem
sujeito
Rafaela Zorzanelli e JulioVerztman
Transtornos Psicóticos: a propósito da classificação espectral do DSM-5
Nelson Goldenstein
As fronteiras disputadas entre normalidade, diferença, patologia.
Jurandir Freire Costa.
PARTE 3
A psiquiatria no contexto do SUS
Classificações em Saúde Mental na Atenção Primária: mudam as doenças
ou mudam os doentes?
Sandra Fortes, Daniel de Almeida Gonçalves, Emilene Reisdorfer,
Ricardo Almeida Prado, Jair de Jesus Mari, Luis Fernando Tófoli
Do DSM-III ao DSM-5: Traçando o Percurso Médico-Industrial da
Psiquiatria de Mercado
Fernando Ramos

PARTE 4
Inflexões nosológicas sobre o campo da infância
Riscos e limites do uso do diagnóstico psiquiátrico na infância
Ana Maria Rocha e Ana Elizabeth Cavalcanti
A linguagem do DSM: entre a Novilíngua e a Lingua Tertii Imperii
Rossano Cabral Lima
NOTA DOS ORGANIZADORES

Esse livro reúne as conferências e mesas-redondas do even-


to “Debates em torno do DSM-5: Transtorno mental, psiquiatria
e sociedade”. O evento, organizado pelo grupo Pepas do Instituto
de Medicina Social, se realizou em 30 de novembro de 2012 na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A proposta de
desdobrá-lo em um livro deveu-se à importância acadêmica e inte-
lectual dos convidados – reconhecidos professores de universidades
brasileiras – e ao esforço conjunto de três instituições: a Escola de
Saúde Mental do Rio de Janeiro, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ
(IPUB), e o grupo Pepas/IMS.
Naquela ocasião, o público era formado por pessoas com diferen-
tes inserções no campo da saúde mental: gestores de saúde, alunos de
pós-graduação e graduação, professores de ensino superior ligados ao
campo da saúde mental, profissionais de saúde mental provenientes
de dentro e de fora do Estado do Rio de Janeiro, usuários de serviços
de saúde mental – além dos participantes on line, que puderam assis-
tir ao encontro graças ao serviço do Telessaúde/UERJ. O público
participante forma o grupo de leitores potenciais desta coletânea de
artigos.
O motivo principal do evento de 2012 foi a futura publicação,
em maio de 2013, da quinta revisão do DSM, o Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders – DSM). De acordo com o site da Associação
Americana de Psiquiatria, órgão responsável pela organização e pu-
blicação dos manuais, a quinta edição do DSM marcaria a nova grade
diagnóstica em Psiquiatria e seria um dos principais acontecimentos
no campo da saúde mental contemporânea. Em relação às edições
anteriores, é importante notar que essa foi a primeira vez que a re-

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visão de uma classificação médica foi aberta ao debate on line, e o


primeiro esboço, disponibilizado em 2010, gerou inúmeros debates
entre leigos e especialistas.
Tendo esse fato como disparador de inúmeras questões relativas
à psiquiatria, à psicanálise, à psicologia, os temas dos artigos apre-
sentados têm um eixo comum, qual seja, a discussão do impacto da
criação de diagnósticos em psiquiatria. Acreditamos que o impacto
repercute na formação de novas gerações de psiquiatras, na atuação
dos profissionais dos dispositivos públicos de atenção à saúde mental
e, sobretudo, na relação entre esse saber especializado e o saber leigo.
O último tópico é importante em virtude da grande difusão de as-
suntos relacionados à saúde mental em revistas populares, matérias de
televisão ou impressas, que influi diretamente nas concepções sobre
as “novas doenças” e na percepção social dos limites entre normal e
patológico.
O livro inclui as conferências realizadas no evento e outros textos
de participantes convidados. O intuito é ampliar as abordagens possí-
veis do tema tratado – os rumos da psiquiatria contemporânea – tan-
to no modus operandi dos profissionais da área quanto na forma como
os homens comuns passam a redescrever sentimentos e emoções de
desconforto e infelicidade à luz de categorias médicas.

Rafaela Zorzanelli
Benilton Bezerra Jr.
Jurandir Freire Costa
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Introdução

A PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA
E SEUS DESAFIOS
Benilton Bezerra Jr.

Em um artigo no qual analisa o estatuto do diagnóstico psiquiá-


trico, Thomas Szasz afirma que “a psiquiatria é, entre outras coisas,
a negação institucionalizada da natureza trágica da vida” (SZASZ
1991: 1574). A frase condensa em poucas palavras o fundamental de
sua análise das problemáticas relações entre psiquiatria e sociedade.
De sua perspectiva individualista libertária, Szasz via a psiquiatria
como um dispositivo social de controle e domesticação da existência
social, que reifica experiências de angústia e dor subjetiva ao nomeá-
-las sob a forma de diagnósticos médicos – transformando-as assim
em doenças da mente à espera de vigilância e intervenção por parte
de técnicos.
Desse ponto de vista, as intenções terapêuticas da psiquiatria vi-
sariam em última análise a resguardar os indivíduos de um encontro
trágico, mas potente, com sua condição essencial: a de seres ontologi-
camente abertos que, pela própria consciência de sua finitude, convi-
vem inevitavelmente com frustração, fracasso, sofrimento, dilaceração.
Em contrapartida, essa mesma condição humana ofereceria, a quem
se dispuser a buscar, algo impossível a outros seres: o exercício da
liberdade. Ao nomear a angústia de existir por meio de categorias pa-
tológicas, a psiquiatria transforma uma condição ontológica essencial
num espaço a ser regulado por discursos e intervenções de roupagem
técnica, cuja vocação moral normatizadora mal se esconderia por trás
das reivindicações de objetividade e neutralidade científica.
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A crítica de Szasz à psiquiatria baseava-se numa frontal recusa às


pretensões de cientificidade dos diagnósticos da disciplina. Para ele,
“doença mental” era nada mais que uma metáfora, um mito, criado
para tornar mais palatáveis certos problemas da existência individual e
justificar controle e intervenção sobre experiências e comportamen-
tos desviantes ou socialmente indesejados numa determinada época.
Segundo Szasz, só se deveria usar o termo “doença” para eventos
ou estados efetivamente associados a alterações anátomo-fisiológicas
cientificamente comprovadas, e não a problemas que dizem respeito
à esfera do sentido e da existência. Na linguagem de hoje, somente
na presença de marcadores biológicos precisos se poderia legitima-
mente falar em doença. Como isto não se aplicava às perturbações do
espírito, os diagnósticos psiquiátricos lhe pareciam despidos de res-
peitabilidade científica, sendo meros instrumentos de controle social
por meio de julgamentos normativos discutíveis: “Se você falar com
Deus, você está rezando; se Deus falar com você, você tem esquizo-
frenia. Se os mortos falarem com você, você é um espírita; se você
falar com os mortos, você é um esquizofrênico.” (SZSAZ, 1973: 101).
Examinando as posições de Szasz, é curioso notar como ele se
movimenta de forma singular, usando argumentos reducionistas e
cientificamente centrados para defender uma crítica, de colorido
existencial e humanista, ao mandato social da psiquiatria. Não por
acaso ele é colocado ao lado de outros autores associados ao movi-
mento antipsiquiátrico, que insistia numa análise psico-político-social
do sofrimento mental e que, junto com a orientação psicodinâmica
do movimento psicanalítico, compunha nos anos 1960-1970 uma
linha de resistência às concepções biológico-centradas da psicopato-
logia que nessa época começavam a ganhar terreno e começavam a
construir as bases de sua futura expansão.
No cenário contemporâneo, a crítica libertária de Szasz à psi-
quiatria pode parecer anacrônica. Em parte porque a dicotomia en-
tre “biológico” e “existencial” que dava lastro às suas argumentações
vem sendo desconstruída e redescrita pelos estudos em torno da plas-
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ticidade, da epigenética, do imageamento cerebral; em parte porque,


apesar das promessas não cumpridas de demonstração da natureza
estritamente biológica dos transtornos mentais, a pretensão de an-
corar a psiquiatria no campo sólido das teorias e práticas científicas
tem ampliado seu raio de influência, colocando em segundo plano
versões mais sujeito-centradas da psiquiatria. Apesar disso, a história
do campo mostra que a tensão entre perspectivas que poderíamos
chamar grosso modo de científicas (ou biológicas) e humanistas (ou
psicossociais), longe de representar um momento de imaturidade da
disciplina é, na verdade, um traço constitutivo desse campo singular
que é a psiquiatria. Ainda hoje essa tensão se manifesta no confron-
to entre perspectivas que sublinham a complexidade da experiência
humana de sofrimento (que pode ser descrita e compreendida de
múltiplas formas, porém jamais é explicada exaustivamente) e abor-
dagens comprometidas com a biologia e as ciências do comporta-
mento (que visam a categorizar, explicar e predizer empiricamente o
comportamento humano) (BRENDEL, 2006: 9). A psiquiatria, mais
que qualquer outro setor da medicina, é atravessada pela tensão, ao
mesmo tempo fértil e angustiante, entre duas vocações, a do conhe-
cimento e a do cuidado. Ela oscila inevitavelmente entre explicações
determinísticas da experiência e interrogação fundada na presunção
de autonomia do sujeito. Esta dupla marca faz dela um empreendi-
mento ao mesmo tempo cientifico e moral.
De todo modo, não é necessário estar de acordo com crítica de
Szasz para perceber que sua frase contém uma verdade indiscutível:
na origem da psiquiatria está a necessidade humana de tornar inteli-
gível e tolerável a complexidade e a ausência fundamental de sentido
que caracteriza a existência. É do encontro com “a natureza trágica
da vida”, e dos afetos que esse encontro suscita, que nasce a neces-
sidade de nomear, descrever, classificar, distinguir normativamente e
tratar condições existenciais que nos causam dor e angústia. Com a
concisão aguda que o caracteriza, Canguilhem, ao examinar como se
formam nossas concepções de normalidade e patologia, resume essa
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tese geral afirmando “O pathos precede o logos” (CANGUILHEM,


2011).
A história das teorias e das práticas na psiquiatria está profunda
e essencialmente ligada aos contextos sociais, culturais, epistêmicos,
políticos e tecnológicos em que elas se dão. Uma das maneiras de
explorar a relação entre as fórmulas conceituais da psiquiatria e o
universo social que as modula é o estudo dos sistemas de classificação
diagnóstica e de sua história. Categorias psiquiátricas são elas mesmas,
por assim dizer, sintomas – no sentido freudiano de revelarem de
forma deslocada a verdade de um conflito que não se deixa apreen-
der imediatamente pela consciência – de seu tempo. A histeria e a
neurastenia são testemunhas eloquentes dos impasses que atravessam
as metrópoles urbanas ocidentais no final do século XIX; a depressão
e o TDAH são chaves de interpretação dos imperativos e dilemas que
assolam os sujeitos no início do século XXI.
Teorias psiquiátricas e categorias diagnósticas não apenas descre-
vem os sintomas dos pacientes, eles os moldam, ao criarem roteiros
de identificação e designação das experiências de sofrimento, além
de indicar modos de responder, técnica e socialmente, a elas. As-
sim, além de sua dimensão descritiva, elas exibem uma imensa força
prescritiva. O encontro com o diagnóstico modifica sensivelmente a
maneira como o sujeito pensa a si próprio, a maneira como inter-
preta as próprias emoções, o modo de se conduzir na relação com os
outros (o exemplo próximo mais eloquente desse fenômeno talvez
se encontre nos relatos autobiográficos de pacientes autistas). Se po-
demos dizer que esses efeitos performativos são inerentes a qualquer
prática de nomeação e, portanto, estão inescapavelmente presentes
em qualquer prática diagnóstica, é possível também afirmar que na
atualidade esse efeito tem se espraiado imensamente para além dos
dispositivos estritamente terapêuticos, por conta da ampla difusão dos
diagnósticos psiquiátricos em todo o campo cultural, pelo acesso fácil
à informação técnica, pelo uso de diagnósticos como ancoragem para
estratégias de construção identitária, e assim por diante. Nesse qua-
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dro, os diagnósticos psiquiátricos alcançaram uma importância cul-


tural inquestionável, estando presentes não só na prática psiquiátrica
strictu sensu, mas em todo o campo da assistência à saúde, na educação,
na linguagem cotidiana, nas múltiplas plataformas de comunicação
etc. Assim, compreender um pouco melhor as diversas faces desse
objeto, o diagnóstico psiquiátrico, torna-se um meio privilegiado de
conhecer não só a complexa história desse campo peculiar de prática
sobre o sofrimento, a psiquiatria, como também o universo social do
qual ela faz parte.

O problema da classificação
Com a famosa citação no início de As palavras e as coisas, Mi-
chel Foucault tornou muito conhecido o conto intitulado “O idio-
ma analítico de John Wilkins”, de Jorge Luis Borges. Nele, Borges
afirma que “sabidamente não há classificação do universo que não
seja arbitrária e conjectural. A razão para isso é muito simples: não
sabemos o que é o universo”. Para persuadir o leitor da justeza da sua
tese, o escritor argentino lança mão de diversos argumentos e recorre
a uma de suas inúmeras pérolas literárias: uma incerta enciclopédia
chinesa chamada Empório celestial de conhecimentos benévolos em cujas
“remotas páginas” encontramos uma classificação de todos os ani-
mais existentes. Eles são divididos em 14 categorias:“(a) pertencentes
ao imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leões, e) sereias,
(f) fabulosos, (g) cães soltos, (h) incluídos nesta lista, (i) que se agitam
como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um pincel finíssi-
mo de pelo de camelo (l) etc., (m) que acabam de quebrar o jarro, (n)
que de longe parecem moscas” (BORGES, 1989: 111).
Essa surpreendente taxonomia perturba o leitor por sua aparên-
cia de absurdo, incoerência e arbitrariedade. É curioso observar, no
entanto, que a lista consegue realizar o seu intento, que é o de reco-
brir a totalidade dos animais – sucesso garantido (de forma preguiço-
sa, insinua Borges) pela presença do item (l). Classificações não são
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espelhos da realidade, mas construções, arranjos, que configuram um


domínio da realidade sistematizando sua multiplicidade de maneira
inteligível. Arranjos que parecem fora de propósito aos nossos olhos
podem expressar uma inteligibilidade que, por desconhecermos, não
enxergamos. Diferentemente da leitura habitual do conto, que apenas
vê um intuito lúdico na composição, o linguista George Lakoff, por
exemplo, se utiliza da lista de Borges em seu livro Women, Fire and
other Dangerous Things como um argumento na sustentação de que há
inúmeros modos de ordenar as aparências do mundo, e a compara a
classificações existentes em culturas não ocidentais (LAKOFF, 1987:
92).
Classificações produzem pontos estáveis que organizam nosso
olhar sobre a realidade que queremos conhecer e sobre qual de-
sejamos agir. Ao instituir um quadro mental que torna a realidade
reconhecível, elas permitem estabelecer semelhanças e diferenças,
continuidades e descontinuidades, hierarquias, critérios de demarca-
ção, mecanismos de inclusão e exclusão – em suma, permitem agru-
par experiências, seres e objetos, estabelecendo mapas que permitem
demarcar fronteiras normativas entre entres. Como todo mapa, elas
necessariamente operam a partir de alguma forma de redução da
paisagem mapeada. Implicam escolhas, exclusões, privilégios, que
são decididos pragmaticamente em função de interesses presentes no
contexto de sua criação. Um mapa “perfeito”, que coincidisse ponto
a ponto com a realidade representada seria simplesmente inútil.1
Toda classificação supõe certas coisas: um autor, um agente, um
princípio classificador, um eixo ordenador que preside a criação das
categorias que a compõem e organiza hierarquicamente sua distri-
buição. Toda classificação tem uma destinação, visa um objetivo. Toda
classificação tem um contexto de criação e uma história. Ela surge
como resposta às exigências presentes num determinado horizonte
histórico e se constitui tendo como referência classificações que a

1 Essa eventualidade é ficcionalmente elaborada noutro conto de Borges: “Sobre o Rigor na


Ciência”, em História universal da infâmia. São Paulo, Ed. Globo, 2001.
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precederam. Classificações psiquiátricas contêm todos esses elemen-


tos. Mas pelo fato de que suas categorias são usadas em contextos
relacionais e incidem sobre indivíduos vivendo em ambientes sociais
complexos, os sistemas classificatórios criados pela psiquiatria alcan-
çam importância cultural decisiva, por refletirem no interior de sua
lógica aspectos constitutivos da cultura e por se tornarem, pela força
performativa de suas categorias, verdadeiros atores sociais, com forte
poder de agenciamento na vida subjetiva dos indivíduos. Examinar o
modo como se descrevem as modalidades patológicas da experiência
subjetiva ilumina, portanto, não só o interior do campo psiquiátrico,
mas também o universo social do qual ele faz parte.
Essa é a linha que costura os escritos que compõem este li-
vro. Tomando como mote e ponto de partida a publicação da quinta
versão do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, o DSM
5, os artigos procuram explorar diversos caminhos de interpretação
de seu papel em diversas dimensões da prática clínica e da elaboração
teórica sobre a psicopatologia e do seu impacto no cenário social
contemporâneo. Nos bastidores dessa discussão estão os processos
responsáveis pela profunda mudança de rumo ocorrida na psiquiatria
a partir da publicação do DSM III em 1980.
O DSM III e seus sucessores têm sido apontados como o fator
decisivo na configuração do cenário psiquiátrico atual, marcado pela
expansão crescente de diagnósticos e patologização da vida cotidiana,
pelo predomínio do paradigma biológico ou cognitivista em detri-
mento de concepções psicodinâmicas, psicossociais ou humanistas,
pela subordinação da prática clinica aos ditames da indústria farma-
cêutica, pela infiltração do vocabulário psicopatológico nos processos
de construção de identidades culturais, pela evacuação das noções de
sujeito e inconsciente do raciocínio clinico, e assim por diante.
Embora todos esses elementos devam estar presentes na análise
do lugar ocupado pelos manuais americanos na prática psiquiátrica
e na cultura atuais, é preciso estudar os DMS com uma perspectiva
mais abrangente, situando metodologicamente a análise em diferen-
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tes planos. O DSM é fruto dos conflitos que atravessaram a história


interna da psiquiatria americana nos anos 1970, mas é também o
resultado de muitos outros fatores externos ao campo técnico, refle-
tindo sua inscrição no universo social à sua volta. Quando o DSM
III vem à luz, ele ilustra e ao mesmo tempo catalisa no campo da pa-
tologia psíquica processos epistêmicos, culturais e tecnológicos que
atravessavam a sociedade em sua época. Assim, para se compreender o
impacto que a publicação do DSM 5 na prática clínica e na sociedade
em geral é preciso ao mesmo tempo elucidar a lógica que governou
a reestruturação radical do sistema classificatório em 1980 (do qual
a quinta versão, na realidade, não é mais que um desdobramento),
como também deslindar os elementos que tornaram possível não só
sua emergência, mas seu estrondoso sucesso dentro e fora do campo
psiquiátrico. É preciso, por assim dizer, interpretar o DSM como um
sinal dos deslocamentos conceituais no interior da psiquiatria e um
sintoma de processos políticos, culturais e tecnológicos em curso à
sua volta.

DSM I e DSM II
No início dos anos 1950, o campo da psicopatologia era marcado
pela pluralidade de orientações e princípios. Fundadas em premis-
sas filosóficas e eixos de ordenação diversos, diferentes tradições se
constituíram desde o surgimento da psiquiatria como especialidade
médica no início do século XIX, norteadas por dois grandes paradig-
mas: o clínico-descritivo, presente nos tratados nosográficos de Pinel
e Esquirol, e o etiológico-anatômico, encontrado nas obras de Morel,
Kahlbaum e Griesinger. Na primeira metade do século XX, duas
figuras centrais se destacam nesse cenário. De um lado, Emil Krae-
pelin. De outro, Freud. Kraepelin alicerçou as bases das classificações
contemporâneas, construindo uma classificação fundada na evolu-
ção dos pacientes e no estabelecimento de categorias mutuamente
excludentes. Com Freud, o centro de gravidade do diagnóstico se
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deslocou da descrição dos sintomas para adquirir uma dimensão psi-


codinâmica, borrando a fronteira entre normalidade e patologia e
estruturando sua nosografia não em uma variedade de diagnósticos
particulares, mas em três estruturas fundamentais: as neuroses, as psi-
coses e as perversões. Essas macrovisões sustentavam as duas grandes
orientações que dividiam as águas da psicopatologia até o fim da II
Grande Guerra: a somático-constitucionalista, fundada na ideia do
sintoma como sinal, e a psicodinâmica-reacional, baseada na presun-
ção do sintoma como signo. Mais próxima desta última, uma terceira
orientação compunha o quadro das grandes referências do campo da
psicopatologia: a fenomenologia existencial de Karl Jaspers, Eugene
Minkowski e Kurt Schneider.
A presença dessas tradições teóricas, no entanto, não se refletia na
existência de classificações de uso sistemático, utilizado em larga es-
cala para fins clínicos e de registro estatístico. A primeira classificação
psiquiátrica oficial nos EUA veio à luz por ocasião do censo de 1840,
no qual apareciam apenas duas categorias: insanidade e idiotia. Em
1880, uma classificação oficial lista sete categorias: mania, melancolia,
monomania, paresia, demência, dipsomania e epilepsia. Em 1917 sur-
ge uma primeira classificação voltada para a produção de estatísticas
hospitalares, mas somente após o fim da II Guerra Mundial, em gran-
de parte por força da pressão resultante dos problemas de um imenso
contingente de veteranos, aparece um sistema que não apenas atende
a exigências burocráticas, mas indica uma transformação interna no
campo psiquiátrico que refletia a ascensão do modelo psicodinâmico
e o recuo da influência da tradição biológica (GAINES, 1992).
Ao final da guerra, havia nos EUA três diferentes sistemas de
classificação em uso: a Standard Classified Nomenclature of Disea-
se – 1942 revision; a Armed Forces Nomenclature (medical 203); e
a Veterans Administration Nomenclature. Nenhum desses sistemas,
porém, correspondia aos sistemas que eram utilizados por hospitais
na produção de seus relatórios (GROB, 1991). O fim da guerra ainda
estava próximo. Havia uma imensa pressão por parte dos veteranos de
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que o estado americano se incumbisse de financiar sua reinserção na


sociedade, e isto incluiu organizar ações de saúde em grande escala. E
para as organizações que se ocupavam dos veteranos, as classificações
existentes eram inadequadas para a maioria absoluta de seus pacien-
tes. Isso levou a que a APA (Associação Americana de Psiquiatria)
desenvolvesse junto a seus membros a proposta de estabelecer uma
classificação psiquiátrica homogênea independente do instrumento
utilizado pela Organização Mundial de Saúde, a Classificação Inter-
nacional de Doenças, já então na sua sexta versão, mas considerada
insuficiente por não contemplar situações caras aos veteranos, como
síndromes cerebrais crônicas e reações situacionais.
O trabalho resultou num documento com 145 páginas em que
figuravam 106 categorias diagnósticas. Expressando a influência da
psicopatologia psicanalítica na sua construção, o documento dividia
o espectro psicopatológico em transtornos neuróticos, psicóticos e
de caráter. A descrição das categorias foi organizada sob a forma de
parágrafos, que sublinhavam aspectos do funcionamento subjetivo e
do padrão relacional dos pacientes. Para se ter uma ideia do estilo
narrativo, tome-se como exemplo o diagnóstico de Paranoia: “Este
tipo de transtorno psiquiátrico é extremamente raro. É caracterizado
pelo lento desenvolvimento de um complexo e intrincado sistema
paranoide, com frequência elaborado logicamente a partir de uma
falsa interpretação de um fato real. Frequentemente, o paciente se
considera dotado de uma habilidade superior única. O sistema pa-
ranoide é particularmente isolado de boa parte do fluxo normal da
consciência, sem alucinações e com relativa preservação do restante
da personalidade, a despeito do curso crônico e prolongado” (APA,
1952: 28)
Ou ainda este, em que o subjetivismo da definição se mostra
mais evidente ainda, o de Personalidade inadequada: “Tais indivíduos
se caracterizam pela resposta inadequada a exigências emocionais,
sociais e físicas. Eles não se apresentam, ao exame, física ou mental-
mente deficientes, mas efetivamente mostram inadaptação, inaptidão,
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julgamento pobre, ausência de vigor físico ou emocional e incompa-


tibilidade social” (APA, 1952: 35).
A pedra de toque do DSM I estava no conceito de “reação”,
que reunia os diagnósticos de um grupo. O diagnóstico de Paranoia,
por exemplo, se juntava ao de Estado paranoide, para compor o gru-
po das Reações paranoides. Os diversos quadros esquizofrênicos se
dividiam em nove categorias para formar o grupo das Reações esqui-
zofrênicas, e assim por diante. De maneira geral, as doenças mentais
eram consideradas como uma reação a situações existenciais para as
quais o indivíduo não seria capaz de oferecer uma resposta adequada.
Os sintomas manifestos eram entendidos como a expressão de con-
flitos subjacentes que desorganizam a vida subjetiva do individuo,
impondo-lhe padrões estereotipados de conduta e experiências de
dor psíquica. A falência na adaptação às exigências da vida podia se
expressar em reações de maior ou menor gravidade, que se manifes-
tavam no surgimento de sintomas neuróticos ou psicóticos. Os sin-
tomas tinham, portanto, uma forte dimensão simbólica e relacional,
carregando em si mesmos um sentido que era preciso desvendar para
acionar estratégias terapêuticas. Essa visão não reclamava a existência
de categorias discretas, sendo o conjunto das reações psicopatológi-
cas percebidas mais como um espectro que permitia a continuidade
entre os domínios da saúde e da doença e entre os diversos graus de
comprometimento psíquico.
Embora tenha abandonado o uso do termo reação e a concepção
da doença mental como reação a fatores biopsicossociais, a segunda
versão do DSM reteve a forte influência da psicanálise, não só pela
manutenção de uma nomenclatura em que termos como neurose e
psicose ocupam lugar central, mas sobretudo pela presunção da na-
tureza simbólica dos sintomas psiquiátricos, a serem tomados como
enigmas demandando interpretação. O DSM II é, na verdade, uma
extensão da primeira versão. Aumentou o número diagnósticos para
180, mas a rigor continuava sendo usado mais como um instrumento
para fins administrativos, sem muita influência na atividade clínica,
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ainda pautada pelos manuais clássicos e pelas orientações teórico-


-clinicas tradicionais. Seu uso ficou inteiramente restrito à psiquiatria
americana, sem nenhuma repercussão internacional.
O cenário em que o DSM II vem à luz, porém, já é bastante di-
verso daquele em que sua primeira versão foi publicada. Era o ano de
1968, uma ano que viria a se tornar símbolo das turbulências sociais
que modificariam profundamente as instituições e a cultura, não só
na sociedade americana mas no mundo todo. O impacto dessas trans-
formações, que viria a ser decisivo para a ruptura com as classificações
psiquiátricas provocada pelo DSM III, já se prenuncia nos debates que
se seguem à publicação do DSM II e ocupam toda a década de 1970.
O novo manual apresentava pela primeira vez uma seção dedica-
da a transtornos comportamentais na infância e na adolescência. Mais
importante que isso, trazia uma nova seção voltada para a descrição
de desvios de natureza sexual que incluía a homossexualidade na lista
de transtornos mentais. Como se sabe, este foi o estopim de uma
enorme querela e acarretou uma grande novidade: pela primeira vez
na história das classificações psiquiátricas o estatuto patológico de
uma determinada condição foi politicamente contestado na arena
pública. Em 1970, representantes e simpatizantes do movimento in-
vadiram o congresso da APA impedindo a entrada de psiquiatras e
levantando uma discussão que resultou, após os trabalhos de uma co-
missão e a votação entre os membros da APA, na retirada da categoria
na sétima edição do DSM II (McCOMMOM, 2006).

A revolução do DSM III


Diferentemente da sua transição entre a primeira e a segunda
versões do DSM, a publicação DSM III em 1980 representou uma
revolução, em mais de um sentido. Em primeiro lugar, afastou-se
completamente dos princípios que haviam governado a construção
dos DSM I e II. Isto se expressou em pelo menos três pontos cru-
ciais: a adoção de uma descrição puramente descritiva ou “a-teórica”;
21

a definição de critérios específicos para cada categoria diagnóstica;


e a introdução de um sistema multiaxial (GAINES, 1992; DEMA-
ZEUX, 2013). O primeiro movimento implicou o rompimento com
a psicanálise. A consequência mais importante dessa manobra foi o
abandono da concepção do sintoma como signo e sua definição en-
quanto sinal. O pressuposto empiricista do modelo deixava de lado
operações de inferência ou interpretação dos sintomas do pacientes
para restringir a tarefa diagnóstica a uma detalhada e rigorosa obser-
vação da superfície visível de comportamentos e atitudes. O diag-
nóstico deixava de ser pensado como uma chave de entendimento
de conflitos ou desarranjos intrapsíquicos ou relacionais por trás dos
sintomas, para se transformarem em balizas na detecção de distúrbios
visíveis. Propalada como uma estratégia sem compromissos episte-
mológicos particulares para permitir a comunicação entre profissio-
nais de orientação teórica diversa, essa mudança, na verdade, trazia
em seu subsolo a crescente importância adquirida pelas descrições
biológicas, alavancadas pelo sucesso alcançado pelas intervenções psi-
cofarmacológicas nas duas décadas anteriores.
Diferentemente de suas duas versões iniciais, o DSM III tinha o
objetivo claro e declarado de transformar o panorama clínico da psi-
quiatria, recuperando a aspiração a transformar a nosologia num em-
preendimento científico, voltado para delimitação de síndromes pre-
cisas que pudesse levar à descoberta de doenças subjacentes definidas
como entidades anátomo-clínicas. Embora reivindicando a filiação
ao clássico sistema nosológico kraepeliniano, o modelo do DSM III
se afasta dele em pelo menos um aspecto fundamental: Kraepelin
procurou agrupar os diferentes quadros sintomatológicos com base
em hipóteses etiológicas e no estudo estrutural e evolutivo dos qua-
dros clínicos. Isso lhe permitia supor um principio explicativo para
uma grande variedade de apresentações sintomáticas. O DSM III, na
verdade, difere dessa perspectiva, por recusar o fundamento etiológi-
co para o diagnóstico e por situar na própria diversidade dos sintomas
o seu centro descritivo.
22

Isto se reflete no estabelecimento de critérios diagnósticos espe-


cíficos para cada categoria diagnóstica, com fronteiras muito defi-
nidas e critérios precisos de inclusão e exclusão, que redefiniu, ainda
que de maneira inconsistente, a própria noção de doença mental. O
termo “neurose”, centro de uma feroz controvérsia que opôs psi-
canalistas e psiquiatras frente ao novo manual, sofreu uma transfor-
mação radical, perdendo o peso estrutural que tinha anteriormen-
te, sendo substituída por uma multiplicidade de categorias discretas.
Deixou-se de lado a ideia de um continuum, não só entre normalidade
e patologia, como entre as diversas psicopatologias, que caracterizava
as versões anteriores do manual. Além disso, ao se abandonar a ideia
de um instrumento capaz de ultrapassar a superfície do discurso e
do comportamento do individuo para elucidar a dinâmica interior
de sua subjetividade, perde-se toda intenção heurística do diagnós-
tico. A partir de agora ele se refere a um processo processo de coleta
de informações a partir das declarações explícitas do paciente e da
observação do seu modo de agir socialmente, devendo o psiquiatra
se abster de qualquer interpretação do que o paciente diz e, sobretu-
do, de qualquer suposição acerca do que não é dito. O diagnóstico
passou a se definir pela consulta a uma lista de critérios de inclusão
e exclusão que fixam o número, a duração e a qualidade dos traços
a serem escrupulosamente observados na construção do diagnóstico.
Esse modo de operar a construção das categorias desestabilizou e
pulverizou os diagnósticos, que passam a ser agregados uns aos ou-
tros, fazendo surgir a noção de comorbidade e precipitando um pro-
cesso constante de redefinição das categorias existentes – e a constan-
te criação de novas; se o DSM II continha 180 categorias, a terceira
versão contempla 295.
A abordagem multiaxial redefiniu o escopo do diagnóstico am-
pliando sua utilidade para além do encontro clínico. Nesse sistema, o
diagnóstico de um transtorno específico é apenas o primeiro de cin-
co diagnósticos possíveis. O primeiro diz respeito à síndrome clínica
propriamente dita, e os outros quatro focam os transtornos de desen-
23

volvimento ou de personalidade; os transtornos e condições de natu-


reza física; os fatores psicossociais; e a avaliação funcional. O objetivo
dessa abordagem, e sua novidade em relação aos usos consagrados
até então, é transformar o diagnóstico num instrumento de pesquisa,
já que os dados coletados ultrapassam em muito as necessidades da
prática terapêutica imediata e podem ser usados como informação de
base para estudos epidemiológicos, ensaios controlados para avaliação
de psicofármacos, pesquisas multicêntricas etc., exigências emergen-
tes no cenário dos anos 1970-80.
Essas mudanças centrais na maneira de conceber a classificação
psiquiátrica tiveram consequências na clínica (na concepção do que
seja uma doença mental e no modo de lidar com ela), e para além
dela. Nenhum outro manual diagnóstico teve a influência que os
DSM, a partir de sua terceira versão, têm tido não só no interior da
psiquiatria, mas também na vida social, e isto não apenas no cenário
americano e sim, num processo que ainda se encontra em expansão,
em todo o planeta. De fato, a paisagem da psiquiatria mudou a partir
de 1980, assim como mudou o lugar ocupado pelo vocabulário, pelo
olhar e pelas práticas da psiquiatria no ambiente cultural. Mas, como
já dissemos, seria enganoso supor que o “evento DSM III” tenha
sido o principal responsável por esse processo. Na realidade, situando
historicamente os acontecimentos ocorridos no âmbito da Associa-
ção Americana de Psiquiatria, é possível perceber um conjunto de
fatores que trouxeram à tona as condições de possibilidade do seu
aparecimento e de sua imensa influência social posterior.Vale a pena
ao menos aludir a alguns dos principais.
A ascensão do naturalismo. Nos DSM I e II a classificação das
doenças refletia a tensão clássica entre as concepções biológica e psi-
cossocial, com os transtornos sendo divididos entre aqueles “associa-
dos a perturbações orgânicas do cérebro” e aqueles “que ocorrem
sem a presença de tais perturbações orgânicas primárias do cérebro”.
No DSM III ainda há o capítulo dos Transtornos Mentais Orgâni-
cos, mas já aparece a observação de que sua presença “não implica
24

que transtornos mentais não-orgânicos (‘funcionais’) são de algum


modo independentes de processos cerebrais.” Ao contrário, presume-
-se que todos os processos psicológicos, normais e anormais, depen-
dem da função cerebral. (APA, 1980: 101). Essa mudança discreta,
mas decisiva, reflete os efeitos da introdução dos psicofármacos na
prática psiquiátrica, que começa apenas no inicio da década de 1950.
Quando o DSM II foi publicado, praticamente inexistiam interven-
ções biológicas eficazes para o tratamento dos transtornos mentais.
O efeito dramático da clorpromazina, dos diazepínicos e dos antide-
pressivos triciclos abalou completamente a ideia de separação entre
processos orgânicos e psicológicos, ajudou a desmontar a centralida-
de do tratamento hospitalar, e ampliou imensamente o contingente
de condições tratáveis pelos médicos. O identificação da dupla hélice
do DNA em 1952 acendeu expectativas grandiosas quanto às possi-
bilidades de a biologia vir a se tornar uma ciência do homem total,
iniciando um processo que desde então não parou de crescer. Com
a neuroplasticidade, a epigenética e os métodos de imageamento ce-
rebral, a biologia cruzou a linha que a separava do campo das huma-
nidades, construindo campos de investigação entrelaçados com elas e
se consolidando como um discurso privilegiado de entendimento da
condição humana. Tornou-se trivial, no imaginário social, a ideia de
que “a mente é aquilo que o cérebro faz”. Se o surgimento das inter-
venções biológicas eficazes estiveram presentes na antessala de parto
da psiquiatria biológica, o fortalecimento do paradigma naturalista
na cultura reforçou sua legitimidade e caucionou colateralmente a
expansão de um instrumento como o DSM que, se não tem como
sustentá-lo, pelo menos não o põe em questão.
A contestação à instituição psiquiátrica e seus instrumentos. Os
anos 1960 se tornaram particularmente conhecidos pela imensa
quantidade de movimentos de contestação e crítica que atingiram
praticamente todos os setores das sociedades ocidentais. O espirito li-
bertador e contestatário que empolgou estudantes, minorias e povos
colonizados mundo afora tiveram nos EUA um palco privilegiado
25

de manifestação: os momentos pelos direitos civis, os movimentos


estudantil, gay, feminista, hippie, a contestação à guerra do Vietnam, o
apoio às guerras de libertação nacional das ultimas colônias, a presen-
ça no espaço público de intelectuais “engajados”, todos esses elemen-
tos compunham uma atmosfera de intensa politização do cotidiano e
uma grande sensibilidade em relação a situações de opressão e a insti-
tuições vistas como seus instrumentos. A psiquiatria foi percebida por
muitos como uma delas. Não por acaso, o filme dirigido por Milos
Forman, e lançado em 1975, O estranho no ninho, um verdadeiro libe-
lo antipsiquiátrico, teve sucesso estrondoso, destacando-se como uma
das maiores bilheterias da década. Mas as críticas mais contundentes
surgiram no interior do próprio campo, como o experimento con-
duzido por David Rosenhan que causou escândalo ao demonstrar
publicamente a total falta de consistência do instrumento fundamen-
tal da psiquiatria, o diagnóstico (ROSENHAN, 1972), e pesquisas
como a de Cooper, que demonstrou que 60% dos pacientes interna-
dos em Nova York eram diagnosticados com esquizofrenia, enquan-
to em Londres eles representavam apenas 30%, ao passo que 49%
dos pacientes londrinos eram diagnosticados com psicose depressiva,
mania ou distúrbios de personalidade, enquanto em Nova York esse
número ficava em 10% comprovando a fragilíssima confiabilidade
desses diagnósticos (COOPER, 1972). Críticas como estas tornaram
quase inevitável o desejo de criar um sistema de classificação capaz
de sustentar a confiabilidade de suas categorias.
A desinstitucionalização e o surgimento do campo da saúde men-
tal. Viabilizados pela introdução dos psicofármacos e impulsiona-
dos pela crítica ao modelo asilar, surgiram nos anos 1960 diversos
movimentos de desinstitucionalização da assistência psiquiátrica que
propunham construir um sistema de atenção à saúde mental centrado
no território, e não nos espaços segregados dos hospitais. A criação,
em 1963, da rede de Centros Comunitários de Saúde Mental repre-
sentou uma ampliação do campo de prática da psiquiatria criando
exigências inéditas de ordem burocrática. Planos e programas de larga
26

escala, para serem racionalmente implementados e avaliados, precisam


dispor de sistemas de classificação simples, estáveis e consensualmen-
te aplicados que possibilitem estudos epidemiológicos e estatísticos
confiáveis. Esse tipo de instrumento inexistia no cenário pré-DSM
III. Ao deslocar o centro de atuação do conjunto mais restrito dos
pacientes graves e crônicos internados para a população com algum
tipo de sofrimento psíquico, esse movimento contribuiu também
para alargar o mercado das opções terapêuticas e para aumento ex-
pressivo no número de profissionais gravitando em sua órbita. A
reorganização do campo das profissões com legitimidade para agir
no campo terapêutico, que punha em risco o monopólio médico
das práticas terapêuticas, teve participação importante na produção
de uma estratégia de remedicalizar a psiquiatria (da qual o DSM III
é parte), discriminando-a de outras práticas de intervenção subjetiva.
Emergência da indústria farmacêutica e a pesquisa experimen-
tal. A introdução dos psicofármacos levou rapidamente, como era
de se esperar, ao surgimento de estratégias de regulação governa-
mental de seu uso. Para terem sua circulação no mercado biomédico
aprovada, os medicamentos precisavam comprovar os efeitos clínicos
que anunciavam. Em 1962 o congresso americano aprovou uma
legislação que exigia que todas as medicações tivessem sua seguran-
ça e eficácia testadas em ensaios clínicos randomizados controlados.
Para serem aprovadas, as substâncias precisavam demonstrar que eram
eficazes no tratamento de doenças bem definidas. Rapidamente a
afinidade entre as exigências metodológicas desse tipo de pesquisa e
os critérios classificatórios do DSM III começaram a produzir uma
interpenetração entre os dois polos, com a indústria farmacêutica
incentivando a difusão das categorias (e junto com elas a prescrição
correspondente) e o processo de alocação diagnóstica das categorias
sendo progressivamente influenciado pela ação dos fármacos (se uma
condição clínica melhora sob a ação de um antidepressivo, trata-se de
uma depressão).
O pano de fundo sociocultural. A difusão do vocabulário psi-
27

quiátrico e das categorias diagnósticas do DSM III no meio cultural


tem sido facilitada por fenômenos e processos que extrapolam os
limites da disciplina médica e a envolvem. Sem eles, dificilmente o
DSM teria alcançado tanta penetração social Basta assinalar algu-
mas das transformações que têm caracterizado os ambientes urbanos
atuais para evidenciar a “afinidade eletiva” entre as marcas que essas
transformações impõem no universo das relações sociais e o modo
de aproximação à experiência subjetiva que o modelo operacional
dos DSM tende a produzir: a) a emergência do que se convencio-
nou chamar de “sociedade do risco”, na qual o sentimento de inse-
gurança e a necessidade de autogoverno impulsionam o exercício
de autorreflexividade incessante na busca da performance adequada à
evitação cuidadosa de desvios em relação a normas (BECK, 1990;
GIDDENS, 1990); b) o ocaso da cultura da interioridade psicológica
e a “exteriorização” da vida subjetiva, com a rarefação da experiência
de conflito interno como enigma causador do sofrimento psíqui-
co (BEZERRA JR., 2002); c) o surgimento de uma “neurocultura”
propulsora da constituição de individualidades somáticas e “selves
neuroquímicos2; d) a banalização crescente do uso de tecnologias de
regulação da vida cotidiana, estendendo a aplicação de intervenções
biológicas no monitoramento e controle dos estados emocionais, do
sono, da vigília, da atenção, e assim por diante.
A época de ascensão dos DSM talvez esteja encontrando na atua-
lidade seu ponto de inflexão. A construção DSM 5, publicado em
2013, se deu em meio a uma enorme polêmica quanto às diretri-
zes que o norteavam. A intensidade das críticas mais contundentes
dirigidas ao processo soaram mais eloquentes porque vinham não
de fora, mas de dentro da comunidade psiquiátrica afinada com sua
história pregressa – as mais ferozes contestações vieram de Francis
Allen, o responsável pela elaboração do DSM IV, em 1994. O fato
de que ele escolheu a internet para veicular suas opiniões fez com

2 Rose, N. The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the Twenty-first
Century. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2007.
28

que dentro e fora do campo psiquiátrico suas críticas fossem co-


nhecidas. Mais relevante ainda, pouco depois de sua publicação o
DSM 5 sofreu um importante revés, com a publicação oficial, por
parte da direção do NIMH (Mental Institute of Mental Health) de
um desvio em relação ao DSM que já havia se anunciado. Baseado
numa análise quanto ao esgotamento do seu modelo diagnóstico, o
Instituto decidiu substituir o DSM como instrumento orientador de
suas pesquisas, utilizando no seu lugar o RDoC (Research Domain
Criteria), que vinha sendo desenvolvido desde 2009. O argumento,
que atinge o centro mesmo dos critérios do manual, se baseou na
convicção de que “os atuais sistemas diagnósticos para transtornos
mentais se apoiam em sinais e sintomas apresentados, com o resulta-
do de que as atuais definições não refletem adequadamente sistemas
neurobiológicos e comportamentais – impedindo não só a pesquisa
etiológica e patofisológica, mas também o desenvolvimento de novos
tratamentos.” O objetivo dessa manobra não poderia ser enunciado
de maneira mais clara:“O objetivo do RDoC é prover um paradigma
para a pesquisa para transformar a abordagem nosológica dos trans-
tornos mentais” (CUTHBERT e INSEL, 2013).
Vê-se, desse modo, que a tradição inaugurada pelo DM III en-
frenta hoje pelo menos duas linhas de crítica que tendem a crescer.
De um lado está a estratégia adotada pelo NIMH, que aposta todas as
suas fichas na radicalização projeto reducionista visando a encontrar
substratos biológicos para fundar uma nosologia psiquiátrica plena-
mente científica. De outro estão as perspectivas fenomenológicas,
psicodinâmicas, as propostas de uma psiquiatria baseada na narrativa
que, embora situadas na periferia do campo, insistem em afirmar o
caráter singular do empreendimento psiquiátrico e do seu objeto,
advogando a adoção de métodos de investigação capazes de fazer
avançar o conhecimento dos determinantes biológicos da experiên-
cia e ao mesmo tempo elucidar as dimensões da experiência subjetiva
irredutíveis a eles.
Os artigos que compõem este livro giram em torno de várias
29

das questões aqui levantadas, explorando seus desdobramentos em


temáticas especificas. O conjunto está dividido em quatro capítulos.
O primeiro reúne trabalhos que têm como eixo aspectos históricos
das nosologias psiquiátricas no século XX. O trabalho de Claudio
Banzato e Mario Eduardo Costa Pereira oferece uma discussão por-
menorizada da avaliação diagnóstica como uma apreensão global
da dinâmica presente no encontro inicial com paciente, evidencian-
do os limites de uma concepção que restringe a operação diagnós-
tica à mera inscrição do sujeito em alguma categoria nosográfica
preestabelecida. Rafaela Zorzanelli toma como fio condutor de seu
artigo a compreensão de que os DSM não se limitam à condição
de instrumentos técnicos, devendo ser tomados, para melhor com-
preensão de seu significado e do seu funcionamento na esfera sub-
jetiva, como verdadeiros objetos culturais. Christian Dunker, num
trabalho de longo fôlego, procura examinar a estratégia de consti-
tuição do sistema da nova cientificidade da classificação diagnósti-
ca da psiquiatria a partir do embate em torno do conceito de neurose
para, de maneira contra-intuitiva, demonstrar que, diferentemente
da apreciação comumente aceita, o conceito se encontra nos subter-
râneos das categorias clínicas do DSM 5 e que, “portanto, o sistema
DSM é historicamente muito mais psicanalítico do que psicanalis-
tas e psiquiatras estão dispostos a admitir.”
O segundo capítulo agrupa escritos que se voltam para o exame
de determinados diagnósticos em contextos específicos. O artigo de
Octavio Serpa Jr., Erotildes Leal, Nuria Muñoz e Catarina Dahl
examina como se dá efetivamente o uso do diagnóstico de esqui-
zofrenia em dispositivos típicos do sistema assistencial brasileiro, os
CAPS (Centro de Atenção Psico-Social). Com base em narrativas
recolhidas no campo, os autores demonstram que a prática clínica
nos CAPS, aberta ao mundo dos pacientes, de seus familiares e da
comunidade, em que se entrecruzam diferentes referências clínicas e
teóricas para pensar os casos, faz do processo de elaboração do diag-
nóstico um exercício muito mais rico e flexível. O trabalho de Nel-
30

son Goldenstein toma a mesma categoria diagnóstica para explorar


minuciosamente o alcance e os limites dos procedimentos adotados
na lógica operacional dos DSM, examinando com detalhe o propó-
sito e a falha do DSM 5 em consolidar um modelo de classificação
espectral. O terceiro artigo dessa seção, de Rafaela Zorzanelli e Julio
Vertzman, destacam a categoria ansiedade social presente no DSM 5
para analisar o processo de mudança da categoria fobia social nas três
últimas edições, destrinchando os mecanismos operacionais que pos-
sibilitam que formas de sofrimento relacionais e intersubjetivas sejam
transformadas em comportamentos e afetos sem a marca da subjeti-
vidade. Finalmente, no último artigo, Jurandir Freire Costa parte da
reordenação recente das matrizes conceituais ordenadoras das cate-
gorias psiquiátricas para deter-se num ângulo do problema de fun-
damental importância, o dos fundamentos epistêmicos da distinção
entre anomalia, déficit patológico e diferença de estilos de vida.
No terceiro capítulo, as contribuições de Sandra Fortes e colabo-
radores e Fernando Ramos apontam para outras direções. A primeira
discute as particularidades inerentes ao uso de diagnósticos psiquiátricos
nos programas de saúde mental na atenção primária em contexto muito
diverso daquele presente nos serviços especializados e que impõe desa-
fios próprios a esse nível de atuação. O artigo de Fernando Ramos toca
num tema não abordado pelos outros autores, a articulação dos DSM
com o complexo médico-industrial como um elemento importante na
constituição e consolidação do que denomina psiquiatria de mercado.
O ultimo capítulo traz dois artigos que têm como centro de
gravidade a análise do poder performativo da linguagem. Ana Ro-
cha e Ana Elizabeth Cavalcanti tomam o exemplo do autismo para
discorrer sobre os riscos e limites no uso precoce de diagnósticos
psiquiátricos em crianças. Rossano Cabral Lima, por sua vez, recorre
à ficção literária e a um relato autobiográfico para explorar o tema
da manipulação da linguagem, para em seguida estabelecer pontos de
contato entre os exemplos escolhidos e o vocabulário psiquiátrico
dos manuais do DSM.
31

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