8/1/2020 . CONT. E ILHAS: €3,70 .

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. 2/1AA29/9/2021

FORA DA CAIXA
1490
Nº Nº . 23/9
1400

INVESTIGAÇÃO

POR DENTRO DAS MILÍCIAS

NEGACIONISTAS E ANTISSISTEMA
OS GRUPOS QUE PROMOVEM A “DESOBEDIÊNCIA CIVIL” À VACINAÇÃO E À ORDEM ESTABELECIDA
UNIRAM-SE NUMA FRENTE DE LUTA PARA ENDURECER AS SUAS AÇÕES. QUAIS SÃO AS FIGURAS,
AS MANOBRAS E AS LIGAÇÕES DE UM MOVIMENTO QUE SE TRANSFORMOU NUMA POTENCIAL AMEAÇA
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A ESCOLHA DE JAMES BOND

Na perseguição de um vilão misterioso, James

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 VISÃO
23 SETEMBRO 2021 / Nº 1490

14 Entrevista:
Joana Lobo Antunes

RADAR
19 Raio X
20 A semana em 7 pontos
GETTY

22 Holofote
23 Inbox
24 Almanaque
25 Transições
26 Próximos capítulos
62 Traidora ou inocente?
Juntamente com o marido, Ethel Rosenberg foi executada por
28 Imagens do mundo espionagem, por alegadamente ter passado à União Soviética informações
sobre a bomba atómica norte-americana. Agora, um novo livro vem revelar
a sua inocência
FOCAR
72 Eletricidade, preços
sempre a subir 32 Quem são as milícias da raiva
76 Irrevogável: João Soares Os movimentos negacionistas e nacionalistas passaram os últimos três
em entrevista meses a preparar uma frente unida para endurecer as próximas ações
de luta. Os nomes, as iniciativas, as ligações e as redes de um submundo
78 Covid, a libertação
do Reino Unido
80 CNews, a Fox francesa 44 Os candidatos do País real e as câmaras fundamentais
Cinco casos de figuras pitorescas ou de desconhecidos inspiradores,
e os combates mais empolgantes. Dossier especial Autárquicas 2021
VAGAR
82 Gus Van Sant recorda Andy
Warhol 56 Aprender com o estoicismo
Fundada na Grécia no ano III a.C., a Filosofia tem sido adaptada
88 Pessoas à Psicologia. O que, ainda hoje, ela nos pode ensinar

VISÃO SETE
91 Quando elas
68 O clã Alvarinho
Em Melgaço, berço da célebre casta de vinho verde, da soma de
mandam na cozinha uma imensidão de parcelas, exploradas por pequenos viticultores,
fez-se a força da marca Soalheiro
OPINIÃO
10 Dulce Maria Cardoso
12 Mafalda Anjos Online W W W.V I S A O . P T
18 Pedro Marques Lopes Últimos artigos no site da VISÃO
75 Pedro Norton
90 Miguel Araújo
114 Ricardo Araújo Pereira

Manuel Delgado Catarina Lucas Manuela Niza Ribeiro

SAÚDE PSICOLOGIA IGUALMENTE DESIGUAIS
Os perigos do As redes sociais Vamos deixar morrer
Interdita a reprodução, mesmo parcial, negacionismo invadiram a vida dos as mulheres afegãs?
de textos, fotografias ou ilustrações sob meus filhos. E agora?
quaisquer meios, e para quaisquer fins,
inclusive comerciais.
Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados

6 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

 LINHA DIRETA Correio do leitor

Um regresso às aulas em grande

E pronto, o verão já lá vai, os miúdos voltaram
à escola e todos desejamos que este ano letivo
seja mais tranquilo do que os anteriores. De
preferência, com professores e alunos juntos,
na escola. Para que este seja um arranque
em grande, na edição de setembro da VISÃO
Júnior, dedicamos 15 páginas ao tema que,
esperamos, vai ajudar a família a organizar- Um bom exemplo de como
se. Por exemplo, já decidiram se é este ano
que os miúdos começam a ir sozinhos para é possível conciliar
a escola? Estarão preparados? A discussão
está aberta no artigo “Já posso ir sozinho para
a linguagem jornalística
a escola?”, que aconselhamos pais e filhos a com o rigor científico
ler. E se o pior dos pesadelos acontecer e as Maria do Carmo Machado, Lisboa
aulas voltarem a fazer-se à distância? Nós
pensámos nisso e damos dicas sobre como
JORGE SAMPAIO
organizar a casa, para que tudo corra o mais O senhor Presidente Jorge Sampaio
tranquilamente possível. Damos também sugestões de lanches saudáveis foi um humaníssimo Homem de Estado
(agora que a oferta nos bares é diferente) e oferecemos um calendário de testes e uma figura humana delicada
destacável, para pendurar na parede e garantir que nada falha. Há ainda um como cristal.
Joaquim e Irene Ferrão, Lisboa
artigo sobre animais que percorrem o planeta à procura de comida e calor, e
passatempos em que podem ganhar conjuntos de mochila, lancheira e estojo, e INVESTIMENTO NA EDUCAÇÃO
o novo livro de Ana Markl, Onde Moram os Teus Macaquinhos?. Bom regresso. Seis mil e duzentos euros foi o custo,
por ano e por aluno, badalado durante
a semana. Caído assim, friamente,
demoniza a gestão da educação e o
senhor ministro justificou-o com subidas

Exposição World Press Photo, em Oeiras

A exposição que junta as melhores fotografias de 2021 do World Press Photo está
de escalões, aliás merecidas e até
com muito atraso. A principal razão
deve antes direcionar-se para o grande
investimento que se vem fazendo na
escola inclusiva, apanágio incontornável
patente, até 15 de outubro, no Parque dos Poetas, em Oeiras (entrada Templo da escola pública. O envelhecimento
da Poesia). Com organização da VISÃO, em parceria com a Câmara Municipal da classe docente e algumas falhas
de Oeiras, a mostra reúne o que de melhor se produziu, no ano que passou, no de eficiência na gestão de recursos
fotojornalismo mundial, naquela que é a 64ª edição do concurso anual. A entrada também são fatores a considerar.
no recinto é grátis, sendo as imagens exibidas, pela primeira vez, num espaço ao José M. Carvalho, Chaves
ar livre. Até 30 de setembro, estará em vigor o horário de verão: de segunda a MARCELO REBELO DE SOUSA
domingo, das 9h às 23 horas. Torna-se “bizarro” ler a série de críticas
Paralelamente à exposição, a VISÃO também organiza um conjunto de workshops que em catadupa estão a surgir ao
com profissionais especializados em diversos estilos de fotografia. As sessões Presidente Marcelo. De pessoas que o
decorrem aos sábados, das 15h30 às 17h30, sendo a lotação limitada a 25 pessoas conhecem há imensos anos, e através
(inscrições devem ser feitas, no Templo da Poesia, no próprio dia). No próximo sába- de livros de memórias ou autobiografias,
artigos aqui e ali, vão aos seus – deles
do, 25, o tema do workshop será Lifestyle, com orientação de Gonçalo F. Santos. – baús desenterrar eventos do passado,
“puxando-os” para a atualidade, logo
descontextualizando-os, mas tendo
Já nas bancas como único fito “dizer mal”, atacar.
A. Küttner

Contactos
visao@visao.pt
As cartas devem ter um máximo
de 60 palavras e conter nome, morada
e telefone. A revista reserva-se
o direito de selecionar os trechos
que considerar mais importantes.

NOVA MORADA
FUTEBOL PURIFICADORES MANUEL CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima
As origens do desporto- Teste aos aparelhos ANTÓNIO PINA – Quinta da Fonte,
rei em Portugal Nova biografia do Edifício Fernão Magalhães, 8,
escritor 2770-190 Paço de Arcos

8 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

 AUTOBIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA

Azar
de principiante
POR DULCE MARIA CARDOSO
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

10 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

A
li estava eu. Orgulhosa do meu vestido azul
de cetim decotado nas costas. E de o meu
romance Campo de Sangue ter recebido o
prémio Acontece. Foi o primeiro romance
que escrevi até ao fim, o primeiro que não
deitei fora.
O que é o fim de um romance? Como
é que se acaba um romance? Envelheço e
regresso às dúvidas que tinha na juventude
sem saber que as tinha.
Era um belo e espaçoso recinto com várias mesas e
cadeiras elegantemente dispostas. Alguém me condu-
ziu a uma das mesas centrais, advertindo-me de que a
cerimónia de entrega do prémio seria transmitida em
direto pela televisão. Os que já se haviam sentado, caras
conhecidas dos jornais e da televisão, continuaram a
falar entre si. Invejei-lhes a pose e o à-vontade de quem
está entre os seus, todos conheciam fulano e sicrano,
todos tinham estado ali e acolá, todos se riam de piadas
cifradas, todos comentavam aquele
café de Paris e aquela galeria de Ber-
lim, todos falavam de um modo de Passei a adolescência
vida a que eu nunca tivera acesso.
Aos 11 anos, despojada de tudo o
a requisitar livros
que havia conhecido, de repente sem da biblioteca
pais e irmã, amigos, escola, a milhares
de quilómetros da terra onde cresce-
e a copiar à mão
ra, pouca mais serventia encontrava os romances de
na realidade do que fazer-me chorar. que mais gostava,
Comecei, então, a desligar-me dela, a
inventar histórias que me amaciassem
conheço-os
a tristeza. Quando decidi que queria intimamente
ser escritora, não sabia nada do que
era ser escritora.
O que sei agora do que é ser escritora?
Uma decisão ingénua, no início da adolescência. Em
Luanda, eu quisera ser bailarina, passava tardes a imitar
as posições do livro Anita no Ballet, as pontas dos meus
pés em selvagens croisé devant e croisé derrière. Tam-
bém quis ser astronauta e levei a peito o sorriso desde-
nhoso da Ricardina, minha colega da quarta classe, que
estava determinada a ser freira. Indiferente às minhas
extravagâncias vocacionais, o meu pai decidira que eu
seria advogada e a minha irmã, médica, tiraríamos o
curso na Metrópole, para onde nos mandaria aquan-
do da faculdade. Planeava comprar-nos um pequeno
apartamento na capital do Império, lembro-me de ver
brochuras de prédios do J. Pimenta em cima da mesa de
jantar, duas folhas dobradas de papel grosso, lá dentro,
envolto num forte cheiro a tinta, o meu futuro de prós-
pera advogada. Contudo, eu continuava com a cisma de
ser escritora, passei a adolescência a requisitar livros
da biblioteca e a copiar à mão os romances de que mais
gostava, conheço-os intimamente, as palavras rasgavam
linhas na página branca, como um arado que me revol-
vesse, revelando-me segredos do amor e da morte.
Raramente aprendemos pelos livros o que não im-
porta. Ou o que importando, não devia importar. Se
nunca pedi bênção nem prefácio a um escritor consa-
grado, nem frase de recomendação na cinta do livro, se
não me juntei a tertúlias, se não me fiz conhecida deste
e daquele, se só ao Luís dei o manuscrito a ler antes
de enviá-lo para o concurso, se não fiz o que devia ter
feito, não foi por arrogância, tão-pouco por vontade de
desconsiderar alguém, foi só porque não sabia como se
faziam as coisas.
Não se diz coisas. Por várias vezes me explicaram que
coisa é uma palavra pobre. Ou terá sido uma palavra
de pobre? Já não me lembro. Gosto de arroz de feijão,
de andar de chinelos, do cheiro dos lençóis lavados e da
palavra coisa. Não gosto da palavra algo.
No meio literário as coisas não funcionam assim, dis-
se-me um dos primeiros jornalistas que me entrevistou.
Antes disso, nunca ouvira a expressão meio literário, ou
nunca tinha dado conta dela. Bem ou mal, voluntaria-
mente ou não, escritores, editores, críticos, académicos,
jornalistas culturais criam essa imprecisa entidade.
No sábado, a equipa das mudanças trouxe as estan-
tes do apartamento de Lisboa aonde não mais voltarei.
Fui feliz lá. Agora preparo a mi-
nha felicidade aqui. Passei o dia a
desencaixotar livros, estou cansada,
devia arrumá-los nas prateleiras,
mas folheio aquele e mais aquele
e aqueloutro. Num livro aberto ao
acaso, dou com um texto daquele
vago território entre a sociologia
e a autoajuda, Grosso modo, para
se fortalecer, um grupo dota-se
de regras de funcionamento que o
mantêm coeso e de um sistema de
defesa que condiciona ou impede
a entrada de outros membros. Os
candidatos a membros que recusem
as regras e os rituais do grupo serão rejeitados ou ve-
rão, pelo menos, as suas ações vigiadas. (…) Um infrator
é uma grave ameaça à continuidade do grupo e será
exemplarmente punido para que os membros temam
a desobediência. Não podendo livrar-se do infrator,
o grupo colocá-lo-á num limbo. O infrator não terá
acesso às benesses do grupo e será castigado até atuar
como o grupo. Regressará, então, a membro de pleno
direito, condicionará ou impedirá a entrada de outros
membros, vigiará os infratores. A provação por que
passou dar-lhe-á entusiasmo redobrado. (…) Um in-
frator também pode lutar até subjugar o grupo às suas
regras e aos seus procedimentos, mas as revoluções são
raras. Pode, no entanto, dar-se o caso de o infrator ser
tão estranho ao grupo que (…).
Ali estava eu. Cada vez mais invisível, mais estranha,
o meu vestido acetinado empardecido pela mundivi-
dência dos outros. Um deles, um dos mais famosos,
desceu do seu Olimpo, oferecendo-me uns segundos
do seu inestimável tempo, Os escritores que têm talento
apresentam-se a uma editora, não concorrem a prémios
anónimos, isso são jogos florais, esclareceu-me agas-
tado. Depois, voltou à comida que tinha no prato, Em
Portugal ninguém sabe cozinhar carne, declarou, Em
Nova Iorque um medium rare é um medium rare.
E assim acontece. Ou não acontece. visao@visao.pt
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 11
 OPINIÃO
Idade das Trevas 2.0 e a
ameaça dos antissistema
P O R M A F A L D A A N J O S / Diretora
H
á uma espécie de tempestade perfeita
para as teorias da conspiração. Por
um lado, há uma pandemia, amea-
ça global desestruturante, que exige
medidas dolorosas que interferem
com as sociedades, com as econo-
mias e com o dia a dia das pessoas.
Por outro, há ao dispor de todos
ferramentas tecnológicas que permitem a dis-
seminação veloz e em larga escala de desin-
formação, realidades alternativas e mentiras. E
há ainda uma crise de saúde mental agravada
pela pandemia que faz disparar a apetência
para aderir a teorias da conspiração – há pelo
menos quatro grandes estudos científicos,
antes e depois da pandemia, que comparam
a relação entre a saúde mental e a propensão
para estas teses alternativas.
Está composto o cenário perfeito para uma
Idade das Trevas 2.0: junta-se a agonia e a ma-
téria de sobra com interesse para ser esmiu-
çada em processos mentais alheios à razão e
à Ciência, com a amplificação por algoritmos
poderosos e efeitos de bolha que se autoali-
mentam e expandem. Sempre existiram estes
fenómenos mentais e sociológicos tipo seitas,
que se colocam à margem do mainstream e
carburam à custa de conjeturas mirabolan-
tes alternativas – o que as distingue agora é o
seu alcance incomparável. E, quanto maior o
potencial de disseminação, maior o risco asso-
ciado ou a ameaça.
Não é de estranhar que, por todo o mundo,
os antissistema – sejam eles anarquistas, an-
tivacinas, negacionistas, radicais de extremos
políticos ou de grupos de interesses (condi-
ções que podem ser, ou não, cumulativas) –,
vejam o que está a acontecer como uma rarís-
sima oportunidade a não desperdiçar. À seme-
lhança de Joshua Coleman, um dos principais
antivacinas norte-americanos que veio para as
redes logo em março de 2020 congratular-se
com a magnífica oportunidade de marketing
que finalmente a História lhe dava para “edu-
car” o povo, por todo o mundo há quem veja
na tragédia da pandemia uma ocasião para
desestabilizar, lucrar, seja financeira ou poli-
ticamente, ou simplesmente aproveitar para
sobressair e dar-se a conhecer.
O que escapa às almas, muitas delas inocen-
tes, que aderem e fazem eco destes movimen-
tos é precisamente os interesses escondidos dos
que as instrumentalizam. Há um caso paradig-
mático: um dos grandes financiadores do mo-
vimento antivacinas nos EUA, Joseph Mercola,
12 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
HISTÓRIAS
DA CAPA
é um osteopata que ganhou milhões a vender
produtos “naturais” contra maleitas variadas,
incluindo as que as vacinas impedem. O mo-
vimento QAnon, que defendia a existência de
1
uma rede de adoradores satânicos e pedófilos
e que teve o seu “auge” no assalto ao Capitólio,
serviu os interesses republicanos até à saída de
Trump da Casa Branca, e continua a servir-lhe.
O Querdenken, o maior grupo de negacionistas
e antivacinas alemão, está infiltrado da extre-
ma-direita radical e serve bem o propósito de
destabilizar o statu quo, beneficiando quem faz
caminho político e o põe em causa. Os negacio-
nistas não têm necessariamente ideologia, mas Uma capa sobre
há ideologias que ganham muito mais do que os movimentos
outras com os negacionismos. antissistema pode
Os EUA e a Alemanha são bons exemplos ser ilustrada com
sobre porque devem ser levados muito a sério um manifestante.
este tipo de movimentos: a velocidade de es-
calada e propagação é enorme e os prejuízos,
até simbólicos, muito elevados. Em última
análise, é o sistema democrático e o Estado de
direito que estão em causa. E, por isso, os dois
países colocaram os seus serviços secretos e as
2
forças de segurança a monitorizá-los de perto.
Portugal, claro está, não será a bonita ex-
ceção. Não estamos apenas perante cidadãos
que no seu legítimo direito, não querem tomar
vacinas. Como revela a VISÃO esta semana,
depois de uma investigação de meses, o que
começou por ser um conjunto de movimen-
tos antissistema inorgânicos dispersos nas
redes sociais tem hoje cada vez mais expressão
e maior organização. Há uma agenda clara e Uma fotografia de
alvos bem identificados. Todos estes movi- uma das últimas
mentos nacionalistas estão a unificar-se de- manifestações
baixo de um chapéu comum, a Aliança Lusa, pode resultar.
liderada por Alfredo Rodrigues, o fundador
do extinto grupo Médicos pela Verdade (que
agora se chama Aliança pela Saúde), com o
3
propósito de se apoiarem na “luta”. Há ainda
um ponta de lança, Luís Freire Filipe, que
oferece a todos estes movimentos, bem como
ao grupo Habeas Corpus do juiz suspenso Rui
Fonseca e Castro e ao Movimento Zero dos
polícias, apoio logístico nas ações de rua, com
vista a provocar a maior perturbação social e
política possível. E que está há meses a fazer
ações de formação, ao género de milícias,
criando grupos de pessoas, nas suas palavras,
prontos para o que der e vier (é ver as fotos
que publicamos na edição). Por coincidência
(ou talvez não), um já elogiou o programa do Mas algo que
Chega, o outro vê em André Ventura potencial passe ideia de rede
para liderar o País. manjos@visao.pt funciona melhor.
Joana Lobo Antunes Comunicadora de Ciência

A evidência a favor das

vacinas é tão avassaladora que
a comunidade científica achou
que os antivacinas acabariam
por se calar. O que não se previu
é que a verdade não interessa
nada, o que importa é o que
tem melhor marketing
VÂ N I A M A I A LUÍS BARRA

14 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

 Q
Quase no final da conversa, Joana Lobo
Antunes haveria de confessar que o seu
primeiro instinto foi recusar dar esta
entrevista. No entanto, tinha acaba-
do de dizer a várias cientistas do sexo
feminino que, mesmo se estivessem
assoberbadas, deviam aceitar falar com
jornalistas. Afinal, ainda são precisas
mais investigadoras na esfera pública,
até para motivar as jovens aspirantes.
Além de dar aulas de Comunicação
de Ciência na Universidade Nova de
Lisboa, Joana Lobo Antunes é também
coordenadora da área de Comunica-
ção, Imagem e Marketing do Instituto
Superior Técnico. O programa radio-
fónico 90 Segundos de Ciência (Antena
1), do qual é cocriadora, conquistou o
Prémio Gulbenkian de Conhecimento
de 2019. Filha do escritor António Lobo
Antunes, revela que a influência do avô
paterno, João Alfredo Lobo Antunes,
foi determinante na sua paixão pela
Ciência, que a levou a doutorar-se em
Química. Aos 47 anos, a ainda fundado-
ra da Rede de Comunicação de Ciência
e Tecnologia de Portugal explica como
se pode combater a desinformação,
admite as dificuldades de dialogar com
quem nega evidências científicas e
aponta os principais erros de comuni-
cação cometidos durante a pandemia.
Sempre sem o jargão científico, do qual
ajuda os cientistas a libertar-se.
A pandemia aproximou os cidadãos
da Ciência?
Adorava poder dizer que sim, mas a
verdade é que não tenho a certeza de
que isso tenha acontecido. Com a pan-
demia, as pessoas passaram a assistir
ao processo científico em direto e isso,
em vez de as ter ajudado a compreender
como funciona a Ciência, trouxe-lhes
uma instabilidade tremenda. Toda a
gente queria respostas mas, quando está
a ser feita, a Ciência muitas vezes não
tem respostas, sobretudo quando surge
uma questão nova, como aconteceu
com a Covid-19. Não sei se fomos bem-
-sucedidos a explicar às pessoas que a
investigação se faz por tentativa e erro.
Como se deve comunicar a incerteza
inerente à Ciência sem causar dema-
siada ansiedade nas pessoas?
Quando comunicamos a incerteza ao
nível da saúde é impossível não cau-
sarmos alguma ansiedade. As pessoas
têm de aprender a viver com uma certa
dúvida, um certo risco, também é isso
que nós vivemos na investigação cien-
tífica. E é exatamente essa adrenalina
de entrar num terreno inexplorado que
é entusiasmante na Ciência. Consigo
perceber que, para as outras pessoas,
essa ansiedade seja má, mas a única
maneira de ajudá-las a lidar com isso é
repetindo, muitas vezes, que enfrentar
o desconhecido para procurar respostas
faz parte do processo científico.
A pandemia parece ter exacerbado
o discurso contra a Ciência. Qual a
origem desse fenómeno?
O discurso anticiência já existia, e vai
continuar a existir, não tenho a veleida-
de de achar que vamos acabar com ele.
O que aconteceu foi que, de repente,
teve mais espaço. O movimento antiva-
cinas não apareceu com a Covid-19. O
seu grande impulsionador foi um artigo
falso, hoje completamente desacredi-
tado, que tentou provar uma relação
de causa e efeito entre as vacinas e o
aparecimento de autismo nalgumas
crianças. Isso era tão absurdo que os
cientistas nem se deram ao trabalho
de desmentir. A evidência científica a
favor das vacinas é tão avassaladora que
a maior parte da comunidade científi-
ca achou que, mesmo que não fizesse
nada, os antivacinas acabariam por se
calar. O que não se previu é que a ver-
dade não interessa nada, o que importa
é o que tem melhor marketing e vai ao
encontro das ansiedades das pessoas.
Que ansiedades são essas?
Os cientistas dizem: “a ansiedade não
vai deixar de existir e temos de aprender
a viver com ela”; enquanto os anticiên-
cia afirmam: “nós podemos tirar-vos a
ansiedade”. Além disso, usam palavras
e conceitos que as pessoas conhecem e
que estão de acordo com o seu sistema
de crenças e de valores. Por isso, emo-
cionalmente, é muito mais fácil acreditar
neles, sem perceber que se está a cair
num logro. A única maneira de ajudar-
mos as pessoas a lidar com a ansiedade
é fazendo muita divulgação de Ciência
e obrigando a comunidade científica a
ajudar a desmontar a desinformação.
Como devemos dialogar com alguém
que nega factos científicos?
É preciso muita paciência. Alguém que
nega a evidência científica, obviamente,
não vai lá por os factos falarem por si. É
preciso conhecer o contexto emocional,
social e cultural dessas pessoas para
perceber onde está o problema. Por que
razão alguém tem um filtro que não lhe
permite acreditar numa coisa óbvia?
Temos de andar à volta para entender
qual o conjunto de valores e de crenças
que leva aquela pessoa a acreditar em
coisas que não fazem sentido.
O risco de não conseguir dialogar
com essas pessoas é grande?
Na comunicação de Ciência, usamos a
expressão “pregar aos convertidos”, ou
seja, o público das nossas iniciativas,
habitualmente, já está interessado. Mas
é fundamental irmos além dos conver-
tidos. Temos de ser atraentes o suficien-
te para que mais gente queira dialogar
connosco. Os cientistas não devem ser
vistos apenas como pessoas que dão
aulas mas também como bons ouvintes.
Não conseguimos mudar a mentalidade
das pessoas se não as ouvirmos. E essa
parte ainda é difícil de se fazer.
É recorrente o argumento da censu-
ra, quando não se dá voz a quem nega
a Ciência. Como responde a isso?
É preciso distinguir opiniões funda-
mentadas de opiniões pessoais. Durante
a pandemia, houve pessoas que fizeram
serviço público ao explicarem o melhor
conhecimento científico até à data, mas
outras limitaram-se a dar a sua opinião,
um achismo que não era baseado na
melhor evidência disponível. Os órgãos
de comunicação social têm de ser capa-
zes de avaliar se alguém está só a dizer
asneiras. Dar palco só porque no dia
seguinte vai dar que falar... Não pode
valer tudo.
Mas é fundamental manter o espíri-
to crítico. A Ciência já errou. Como
se mantém esse equilíbrio entre
confiança e ceticismo?
A Ciência, de facto, não é perfeita. E,
sim, já errou, mas uma das grandes
qualidades da Ciência é admitir corre-
ção. Se fosse escrita na pedra, nós nun-
ca evoluiríamos, e a evolução da Ciência
é o que a torna maravilhosa. Quando as
pessoas se queixam de que num dia os
cientistas dizem uma coisa e no seguin-
te dizem outra, a minha única resposta
é: ainda bem que assim é, senão éramos
fundamentalistas. Claro que depois há
aquelas coisas parvas, às vezes a cafeína
faz bem, outras faz mal, mas isso são
fait-divers científicos. Às vezes, dá-se
voz a artigos que não têm impacto na
comunidade científica apenas porque
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 15
são engraçados. Quem me dera que
o chocolate emagrecesse, essas são as
minhas notícias preferidas.
Como podem as pessoas proteger-se
da desinformação que circula na
internet?
Primeiro, é preciso saber de onde veio
a informação, se uma fonte fidedig-
na verificou a sua veracidade ou se é
uma coisa que uma pessoa qualquer
pôs na internet. As fontes devem estar
identificadas; se é alguém com nome,
instituição, credibilidade, posso estar
mais tranquila. Um dos fenómenos da
pandemia foram mensagens a dizer “a
minha tia trabalha num hospital e...”,
que eram reencaminhadas por não sei
quantas pessoas, sabia-se lá quem era
a tia que, provavelmente, nem sequer
existia. Contudo, como era um boato
que ia ao encontro dos medos e das an-
siedades das pessoas, ele era partilhado.
É inevitável perder a batalha contra
a desinformação?
Não, mas temos de ser mais rápidos
a pôr informação de qualidade e em
massa cá fora, numa linguagem que as
pessoas entendam. As autoridades de
saúde foram muito cautelosas até deci-
direm dar informações fidedignas [sobre
a pandemia], e isso deu imenso espaço
para que houvesse milhares de informa-
ções paralelas não verdadeiras a circular.
Não há uma segunda oportunidade para
causar uma primeira boa impressão.
E dá muito mais trabalho desmentir.
Quando Graça Freitas vem dizer que, se
calhar, se acaba com os boletins diários
porque criam muita ansiedade, esse é
o primeiro passo para começar a haver
pseudoinformação sobre os números
reais. Não acabem com a informa-
ção; não é ela que causa ansiedade às
pessoas, é a ausência de informação
fidedigna, verdadeira e transparente.
Os raros efeitos secundários das
vacinas deviam ter sido esclarecidos
mais rapidamente?
Acho que as autoridades de saúde não
se chegaram à frente porque, para elas,
essa questão era muito óbvia, mas
a população esquece-se de que até
um medicamento tão básico quanto
o paracetamol tem efeitos adversos.
As pessoas sabem, mas apagam essa
informação da sua memória, porque é
uma chatice viver com essa ansiedade.
Ninguém tomava medicamentos se
estivesse sempre a pensar em todos os
efeitos secundários que podem aconte-
cer. Na verdade, os efeitos secundários
esperados com estas vacinas são muito
mais improváveis do que os de outros
16 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
As autoridades
de saúde foram
muito cautelosas até
darem informações
fidedignas [sobre
a pandemia],
e isso deu imenso
espaço para que
houvesse milhares
de informações
paralelas não
verdadeiras
a circular
medicamentos, como a pílula. Os be-
nefícios de tomar a vacina são larga-
mente superiores aos eventuais efeitos
secundários que elas possam ter numa
percentagem ínfima de pessoas.
Quais foram os principais erros de
comunicação da Direção-Geral da
Saúde (DGS)?
Não quero dizer mal porque tenho a
certeza de que a DGS fez o melhor que
conseguia. Um organismo do Estado
tem muita dificuldade em criar rapi-
damente equipas; o problema não é
apenas da DGS. É preciso perceber que
condições podem ser criadas para ter-
mos estruturas mais ágeis, que possam
lidar com estas situações de forma mais
célere e com mais qualidade. A grande
lição que tiramos daqui é a necessidade
de a comunicação ser mais ágil e mais
transparente para não dar espaço à
desinformação.
Os cientistas estão mais conscientes
da importância de comunicarem
com a população?
Já temos muitos cientistas disponíveis
para falar, mas temos de continuar a
trabalhar a sua capacidade de ouvir.
É absolutamente fundamental haver
diálogo. A comunidade científica tem
de perceber quais são as dúvidas e as
inquietações das pessoas porque, se
calhar, está a dar-lhes respostas que não
são aquelas que elas precisam de ouvir.
Temos de ouvir, senão vamos falhar.
A falta de financiamento é o princi-
pal problema da Ciência nacional?
Sim, sem dúvida. A percentagem do PIB
atribuído à Ciência tem vindo a crescer,
mas precisa de crescer mais. É ainda
necessário que as carreiras científicas
sejam valorizadas. Estamos a formar
pessoas com doutoramentos, e nem
todas vão ficar a trabalhar na academia.
São profissionais com competências
que devem ser valorizadas no mer-
cado de trabalho. Os privados têm de
perceber que existe uma mais-valia ao
investir em parcerias com a Ciência. A
vantagem de pôr os cientistas a dialogar
não é apenas ensinar às crianças o que
é a Ciência; é também influenciar deci-
sores políticos, as empresas e todos os
outros setores da sociedade.
Ainda é um desafio trazer as mulhe-
res para a Ciência?
Portugal é o país da OCDE com mais
mulheres na Ciência, mas os lugares de
topo são maioritariamente ocupados
por homens. Estamos a falhar às rapa-
rigas de alguma forma, porque a partir
de certa altura passamos a mensagem
de que há determinadas coisas a que só
os rapazes podem aceder e de que há
determinadas capacidades cognitivas
que elas não têm. Isto é transmitido de
um modo muito subtil, mas muito efi-
caz, e faz com que, em muitas áreas do
conhecimento, as raparigas se excluam,
enquanto os rapazes nunca consideram
que determinada coisa não é para eles.
Também está relacionado com os mo-
delos de representatividade. Temos de
criar um ambiente propício para termos
mais exemplos femininos.
Tem uma grande paixão pelo teatro.
É uma herança de família esta conju-
gação entre a Ciência e as Artes? O
seu pai, António Lobo Antunes, é
médico e escritor...
O teatro apareceu mais ou menos por
acaso, mas foi um casamento que resul-
tou muito bem, e também cantei num
coro. Além de me dar prazer, passei a
incorporar as ferramentas do teatro
nas minhas formações para ajudar os
cientistas a comunicar melhor. Cientifi-
camente, a pessoa que mais me marcou
foi o meu avô [paterno]; era médico,
investigador, professor e um amante
de tudo o que é belo, seja arte, pintura,
escultura, música... Foi a pessoa a quem
dediquei a minha tese de doutoramento
e que deu nome ao meu primeiro filho
[João]. O meu avô conseguia conjugar
a paixão e o interesse pela Ciência com
toda esta vertente humanista. Na nossa
casa, não era possível alguém ser só téc-
nico; esta vontade de olhar para o belo
era muito natural para nós. Uma coisa
muito curiosa é que ninguém fala de
trabalho em família, falamos do resto.
De literatura?
Por acaso, sim. vfmaia@visao.pt
 RA no grupo!
ENT
cAFÉ DA MANHÃ
7h ÀS 10h

Quando o Pedro Fernandes, a Mariana Alvim, o Duarte Pita Negrão, o Salvador Martinha
e o Luís Franco-Bastos se juntam, o lugar da boa disposição fica sempre livre para
mais um. Das notícias extraordinárias, à informação selecionada, das imitações perfeitas
às entrevistas bem feitas, tudo é servido com muito humor e no melhor espírito de grupo.
E um Café da Manhã assim, faz efeito o dia todo. Café da Manhã na RFM, Entra no Grupo!
 POLITICAMENTE CORRETO
As consequências das
eleições da pandemia
P O R P E D R O M A R Q U E S L O P E S / Colunista
N
ão foi por qualquer espécie de vontade de pro-
longar o estertor da sua liderança do PSD que
Rui Rio pediu o adiamento destas autárquicas:
estas eleições vão ser disputadas numa altura
que beneficia muito quem atualmente detém o
poder em cada um dos municípios e freguesias.
Sendo verdade que quem está no cargo parte
sempre em vantagem para qualquer eleição, a
pandemia veio desequilibrar ainda mais o que é
por si mesmo desequilibrado.
A curtíssima duração da pré-campanha criou um pro-
blema adicional para quem desafia, mas juntando o apoio
direto às populações durante as fases críticas da pandemia
e o processo de vacinação (cujo sucesso se deve em boa me-
dida também às autarquias) ligado à sensação de segurança
que o poder em alturas de crise traz sempre faz com que
os incumbentes só em condições muito especiais percam o
embate eleitoral.
São as eleições da pandemia.
Estão assim reunidas as condições para que a catástrofe
que foram os resultados eleitorais de há quatro anos para o
PSD e o PCP se repita e agrave ainda mais a posição destes
partidos no nosso quadro político-partidário.
A crise do PCP é estrutural. Tem que ver com o quase
desaparecimento dos grupos sociais que representava, com
a dificuldade de ir ao encontro dos anseios dos que ainda
representa e com uma grande modificação nas formas de
luta.
A influência dos comunistas tem duas pernas: a CGTP e
as autarquias.
A diminuição da força das centrais sindicais (por va-
riadas razões) e o crescimento de reivindicações laborais
desenquadradas do resto do mundo do trabalho diminuiu
consideravelmente o peso da CGTP na comunidade e nos
processos de decisão.
Os movimentos inorgânicos que estão a substituir o PCP
e a central sindical no protesto não trarão nada de bom para
a saúde da democracia.
No entanto, este lento fim do PCP não afeta diretamente
outro aspeto essencial para as democracias liberais: a alter-
nância no poder.
Não tenho dúvidas de que os resultados eleitorais de dia
26 serão decisivos para o futuro do PSD. Eleições provocam
sempre mudanças, mas estas definirão em larga medida o
futuro xadrez político-partidário nacional.
Não é que existam grandes dúvidas sobre o que aconte-
cerá: o PSD perderá, e perderá mesmo que ganhe mais meia
dúzia de câmaras e aumente o número de votos.
Manterá as duas que tem nas 15 mais populosas e no
18 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
Porto e em Lisboa terá uma derrota pesada – a estranha
direitização de Moedas deitou a perder a possibilidade de
um bom resultado.
A grande questão é se os votantes tradicionais do PSD
e, sobretudo, os militantes cimentarão a perceção de que o
partido não conseguirá atingir o poder com este trajeto. E
faço uma pausa para repetir o que já aqui escrevi mais de
uma vez: Rui Rio ziguezagueou e falhou como presidente
do PSD, mas é só o mais recente responsável pela degrada-
ção do partido.
Como acredito que Rui Rio sabe que a sua continuação
como líder do PSD não será benéfica nem para o partido
nem para o País, na noite eleitoral ou umas semanas mais
tarde sairá e não se recandidatará.
O seu afastamento não significa necessariamente uma
derrota para a linha moderada – a que ele pertence, os
acordos dos Açores foram só um tremendo erro político.
Já se percebeu que o advento de Paulo Rangel, com o
alto patrocínio de Passos Coelho e Miguel Relvas, na se-
quência, aliás, do consulado destes, quer encostar o PSD
muito à direita.
Rangel, com as suas teses conspirativas, radicalizaria o
discurso e permitiria assimilar parte do Chega. A derrota
inevitável – com esta estratégia – nas legislativas e o tempo
que permitisse debelar a recordação do consulado Passos
Coelho/Relvas faria com que estes pudessem regressar
como uma espécie de salvadores. Rangel seria apenas ins-
trumental.
É o que os aprendizes de Bannon chamam reconfigura-
ção da direita, o termo utilizado para designar a radicaliza-
ção do PSD e a sua transformação em algo de novo ou, pelo
menos, em algo que ele nunca foi.
Esse suicídio como partido de poder tem de ter alterna-
tivas dentro do partido – e tem.
O PSD entregará o poder ao PS por muito tempo se não
tiver um discurso moderado e próximo da realidade socio-
lógica do País. Há pessoas com curriculum e experiência
política no partido para essa estratégia.
Rui Rio tem, no entanto, um papel determinante neste
momento crucial da vida do PSD. Sabendo ele que o seu
consulado acabou, tem duas alternativas: ou com o seu
afastamento voluntário cria as condições necessárias para
o aparecimento de um candidato moderado que permita
ao PSD reconquistar o seu eleitorado e entrar no centro, ou
tenta forçar a continuação do seu mandato (que o eleitorado
tradicional não quer e que grande parte da máquina rejeita)
e abre alas para uma solução muito à direita para o partido.
Não há dúvida: estas eleições vão muito para além das
escolhas para as autarquias. visao@visao.pt
RAIO X

Era uma vez um vulcão A erupção do Cumbre Vieja, em La Palma, obrigou já

à retirada de milhares de pessoas. A última erupção
na ilha tinha sido há 50 anos

L U Í S R I B E I R O lribeiro@visao.pt

LA PALMA ILHAS CANÁRIAS Lanzarote

Tenerife
SENTE-SE, MAS NÃO SE VÊ Fuerteventura
A erupção, que começou pelas 15h
de domingo, 19, é efusiva, não explosiva,
La Gomera
e não acontece numa cratera no topo de uma Grã-Canária
montanha, a imagem que associamos El Hierro
a um vulcão. Em vez disso, os gases
e a lava soltam-se de várias fendas no solo, LA PALMA
na zona sul da ilha

50 ANOS DE SOSSEGO
A última erupção na ilha, e também a última terrestre
em território espanhol, ocorrera há meio século
(quase) exatamente: outubro de 1971.
Na altura, foi um evento relativamente curto, que
durou apenas três semanas. Na ilha de Lanzarote,
na outra ponta do arquipélago das Canárias, uma Vulcão
erupção no século XVIII esteve ativa durante seis anos Cumbre
Oceano Vieja
Atlântico
0,7 KM/H 10 km
A lava desce do Cumbre Vieja (Cume Velho) em
direção ao mar a uma velocidade de 700 metros
por hora, ou seja: demora quase dez minutos
a percorrer 100 metros. Apesar de lenta, esta
marcha de 17 a 20 milhões de metros cúbicos
de lava é virtualmente imparável

MAIS DE 1 000 °C
Segundo o Instituto de Vulcanologia
das ilhas Canárias, a temperatura da lava
atingiu cerca de 1 000 °C, com uma medição
a apontar mesmo para os 1 075 °C

RISCO PARA PORTUGAL?

Não se prevê qualquer tipo de problema
que possa afetar o território português.
Mesmo a Madeira, que fica a menos
de 500 quilómetros de distância, deverá
estar a salvo das cinzas vulcânicas e do
dióxido de enxofre, pelo menos para já, diz
em comunicado o Instituto Português do Mar
e da Atmosfera (IPMA), uma vez que os ventos
dominantes para estes dias sopram de norte

As maiores erupções da História recente

1815 Monte Tambora,
Indonésia: a maior explosão das
últimas centenas de anos matou
dez mil pessoas, diretamente, e
dezenas de milhares,
indiretamente, devido à fome
provocada pela cinza que cobriu
uma área de meio milhão de
quilómetros quadrados; o
vulcão expeliu 50 quilómetros
cúbicos de magma (mais do
que o suficiente para cobrir
toda a cidade do Porto com um
quilómetro de lava)
1883 Krakatoa, Indonésia:
a erupção, tão forte que foi ouvida
na Austrália, causou um tsunâmi
que matou 36 mil pessoas
1902 Monte Pelée, Martinica
(Caraíbas): uma nuvem
piroclástica, semelhante
à que matou os habitantes
de Pompeia, no ano 62,
desceu uma encosta do
vulcão e matou os 29 mil
habitantes de Saint Pierre,
uma cidade próxima

INFOGRAFIA MT/VISÃO

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 19

 7
PONTOS DA SEMANA
POR
RUI TAVARES GUEDES*
GETTY IMAGES / SAUL LOEB
O TELEFONE DA EUROPA
AINDA TOCA?
Durante anos, a grande dúvida norte-
-americana nas relações transatlânticas
resumia-se a algo tão simples como isto:
saber a quem telefonar em caso de crise.
Isso ficou bem ilustrado, segundo a len-
da, num momento particularmente con-
turbado da Guerra Fria, quando Henry
Kissinger terá perguntado: “Se quiser
falar com a Europa, ligo para quem?”
(Mais tarde, confessou que nunca o tinha
dito, mas também reconheceu que não
se importava nada de ficar como autor
de uma frase tão esclarecedora e, por
isso, tantas vezes repetida.)
Se quisermos ter uma noção exata de
como o mundo entretanto mudou, não
precisamos de sair muito deste registo.
Basta perceber que, embora vivamos no
tempo da comunicação fácil e perma-
nente, na era do imediatismo e em que
até o bloco europeu conseguiu evoluir
para a criação de estruturas e mecanis-
mos que pudessem resolver o antigo
dilema de Kissinger (ou de quem quer
que fosse...), o problema já não reside no
número de telefone. Para quem está no
gabinete principal de Washington, pelo
menos, quer seja ele um republicano
lunático ou um democrata veterano e
experimentado, a Europa passou a ser
irrelevante, à qual nem vale a pena tele-
fonar. Não por desprezo mas, simples-
mente, porque deixou de contar, com a
importância de outros tempos, para a
estratégia global e para o equilíbrio entre
superpotências.
As últimas semanas foram eloquentes
neste campo. Embora Joe Biden tenha
afirmado que queria restabelecer os laços
e o diálogo com os seus aliados, pugnan-
do novamente pelo retorno ao multila-
*Diretor-executivo
rguedes@visao.pt
20 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
teralismo, depressa se percebeu que a
retórica raramente acompanha a prática.
Viu-se isto na forma como os EUA saí-
ram do Afeganistão, sem se importarem
com o que lá deixavam e muito menos
como os seus aliados se iriam desenven-
cilhar numa retirada caótica. E voltou a
ver-se, nos últimos dias, na forma como
Joe Biden fez mudar todo o seu campo
de ação geoestratégico para a região do
Indo-Pacífico, numa aliança negociada
secretamente com a Austrália e o Reino
Unido, sem se importar minimamente
em informar, com antecedência, os alia-
dos da NATO ou com os danos que isso
pudesse causar aos interesses comerciais
e militares de França e, por consequên-
cia, da União Europeia. Por estes dias,
em Nova Iorque, Joe Biden vai aproveitar
também o regresso às reuniões presen-
ciais, durante a assembleia geral das Na-
ções Unidas, para conversar diretamente
com os outros atores principais do Indo-
-Pacífico (Japão, Nova Zelândia, Austrália
e Índia), deixando para os europeus, mais
uma vez, as margens da sua agenda.
Nesta realidade, não é arriscado prever
que a União Europeia possa estar a viver
um dos seus momentos mais críticos, se
quiser manter a sua influência interna-
cional. Até porque isto ocorre no mo-
mento em que a líder “natural” Angela
Merkel se prepara para sair de cena e em
que não se vislumbra, no horizonte, nin-
guém com o seu “peso” e “estatura” para
a substituir tranquilamente na grande
orquestra da nova ordem mundial que
começa a ser gizada. Se calhar, só há
uma solução: mudar de número de te-
lefone, mas nunca ceder nos valores que
defende – é essa a força da Europa.
125
NÚMERO FRASE

“Nenhuma economia terá futuro

se assentar o seu modelo de
desenvolvimento em salários baixos”
s”
António Saraiva, presidente da CIP – Confederação
Empresarial de Portugal. Na próxima discussão sobre o
milhares de aumento do salário mínimo, muitos irão, de certeza, recordar
ar
refugiados que os estas palavras durante as negociações em concertação social
cial
EUA vão receber
em 2022
Criticado, em abril, por CANADÁ
se recusar aumentar
o limite de 15 mil A aposta perdida
refugiados definido
por Donald Trump, seu
de Trudeau
antecessor, Joe Biden Pode uma vitória nas
acabou por ceder à eleições ser considerada
GETTY IMAGES / KELD NAVNTOFT

pressão e aceitou que os um fracasso? A resposta

EUA recebessem, este – afirmativa – à pergunta
ano, um total de 62 500 foi dada, esta semana,
pessoas. Agora, alargou pelo primeiro-ministro
esse número para o canadiano, Justin Trudeau,
dobro, em relação a 2022 que venceu as eleições
– por força da pressão que ele próprio tinha
dos muitos afegãos decidido antecipar, mas
que ele está obrigado a DESPORTO que agora é visto como
acolher, depois da saída um dos derrotados da
caótica de Cabul. O exemplo da canoagem votação, por quase não ter
conseguido aumentar o
Pela primeira vez, uma seleção portuguesa ganhou seu número de deputados,
cinco medalhas num campeonato do mundo de uma ficando, por isso, longe
ECONOMIA modalidade olímpica. Ninguém pode ficar admirado por da maioria absoluta que
ter sido a canoagem a consegui-lo, já que desde 2009 desejava. Ou seja, aquela
Um outro vírus que os seus atletas entram sempre nas competições
internacionais a lutar por finais e por medalhas. Portugal
que pretendia ser uma
chinês? tem, aliás, todas as condições para ser uma potência
manobra para lhe dar mais
força e poder negocial
neste desporto, até porque já é o país mais procurado acabou por contribuir para
O colapso da Evergrande,
pelos melhores atletas para treinar e possui o maior o fragilizar. Justin Trudeau
a gigante chinesa do
fabricante de caiaques do planeta. E o futuro mostra-se inicia, assim, o seu
imobiliário, está a
risonho: antes destas cinco medalhas, em Copenhaga, terceiro mandato à frente
assustar os mercados de
Portugal tinha ganho, em setembro, outras duas no do governo canadiano
todo o mundo, com receio
Mundial de juniores – organizado em Montemor-o-Velho. fortemente penalizado
de que se repita o “efeito”
Lehman Brothers, que por uma jogada que, pelos
desencadeou a grande AMBIENTE vistos, não caiu bem entre
crise financeira de 2008. os eleitores. E vai ter de
As ações da empresa Incêndios e alterações climáticas continuar a governar em
minoria.
estão em queda abrupta,
desde maio, e teme-se Contas feitas, os incêndios de observação da Terra
que a empresa entre registados, em julho revela, assim, como os
em incumprimento das e agosto, na bacia do incêndios – que estão a
dívidas que, atualmente, Mediterrâneo, na América tornar-se cada vez maiores
equivalem a cerca de do Norte e na Sibéria e mais frequentes, devido
2% do PIB chinês. A provocaram o maior nível às alterações climáticas –
dúvida está em saber de emissões de carbono também estão a contribuir
o que fará Pequim: alguma vez registado por para o aquecimento global.
deixa a Evergrande cair essa causa, durante o verão, Agora, inicia-se a época de
ou injetará o dinheiro no Hemisfério Norte. incêndios no Hemisfério Sul...
GETTY IMAGES

necessário para evitar Um relatório da agência e os resultados podem ser

um desastre global? europeia Copernicus semelhantes ou até piores.

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 21

 HOLOFOTE

Kate Winslet Uma por todas

FARTA-SE DE
Noite delas Prémios no WC
A dedicatória de Para Kate Winslet
Winslet foi ainda
mais marcante GANHAR PRÉMIOS este é apenas
mais um prémio.
numa noite em
que, pela primeira
A DESEMPENHAR A atriz, prestes a
completar 46 anos
vez, duas mulheres
foram galardoadas
PAPÉIS DE MULHERES (nasceu a 5 de
outubro em 1975,
Década delas com o Emmy para MARCANTES E Festa britânica em Reading), ficou
“Esta década
tem de ser das
Melhor Realização.
Jessica Hobbs COMPLICADAS, SEM Kate Winslet
podia também ter
mundialmente
conhecida pelo
mulheres a venceu na
categoria de QUE PARA TAL PRECISE dedicado o Emmy desempenho, ao
lado de Leonardo
DE TER AS SUAS RUGAS
apoiarem-se umas ao seu país, que viu
Melhor Realização a série The Crown DiCaprio, em
às outras.” Foi
em Série Titanic, mas cedo
assim que Kate
Winslet agradeceu, Dramática, o mais OU O SEU CORPO sair como a grande
vencedora. Ganhou optou por uma

RETOCADOS
importante dos 11 prémios em 24 carreira longe
no domingo,
prémios, pelo nomeações e, nas dos grandes
20, o Emmy de
episódio final da nove principais blockbusters de
Melhor Atriz em
quarta temporada MANUEL BARROS MOURA categorias de Hollywood, mas
Minissérie, Série
da série The Série Dramática, a sempre em papéis
de Antologia ou
Crown, da Netflix, série que conta a muito aclamados
Filme pelo seu
intitulado War. história da família pela crítica. E
desempenho em
Lucia Aniello, por real britânica que lhe valeram
Mare of Easttown.
seu lado, venceu venceu oito. Além inúmeros prémios.
E não podia ser
na categoria de de Série do Ano e Ao todo, conta já
de outra maneira,
Comédia, pelo Melhor Atriz (Olivia um Oscar, dois
tal a força da
episódio-piloto da Colman), deu a Emmy, quatro
personagem
série Hacks, da Josh O’Connor Globos de Ouro,
representada
HBO, intitulado o Emmy de três SAG Awards,
pela britânica na
There is no Line. Melhor Ator, pelo quatro BAFTA e
minissérie da HBO.
A última vez que papel de príncipe um Grammy. Resta
Como a própria
uma mulher tinha Carlos, distinguiu apenas saber se
Kate a descreveu,
ganho um Emmy Tobias Menzies a diva inglesa
em maio, em
por realização como Melhor não guardará
entrevista, ao
foi em 2017, Ator Secundário este Emmy no
New York Times,
quando pelo papel de mesmo local onde,
“uma mulher
Reed príncipe Filipe contou também ao
extremamente
Morano de Edinburgo e New York Times,
imperfeita,
saiu coroou Gillian chegou guardar
confusa, destruída,
vencedora Anderson o único Oscar
fragmentada e
pelo como que conquistou
difícil”. Mas de
episódio- Melhor Atriz na carreira:
quem ela “amava
piloto de The Secundária, “Possivelmente,
as marcas, as
Handmaid’s Tale. por interpretar agora, está no
cicatrizes e os
Porém, nunca Margaret quarto do meu
defeitos”. E por
tinha acontecido Thatcher. filho. Mas ficou
quem a atriz
duas realizadoras muito tempo atrás
recusou de forma
ganharem no da sanita.”
veemente ver a sua
imagem e o seu mesmo ano.
corpo retocados
digitalmente em
pós-produção.

22 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

INBOX
M O D É S T I A À PA R T E
Rui Costa não
precisa de
eleições para eu o
apoiar
JORGE JESUS
Treinador do Benfica lembra
que trabalha com Rui Costa
há oito anos, mas garante
que se manterá no cargo
“independentemente de quem
seja o presidente”
Culpo Larry Nassar
e culpo também
todo o sistema que
permitiu o seu abuso
SIMONE BILES
No Comité Judicial do Senado,
a ginasta olímpica dos EUA
testemunhou contra o antigo
médico da equipa nacional
que, durante 20 anos, abusou
sexualmente dela e de centenas
de outras ginastas
O abuso de crianças
é absolutamente
inaceitável e não
deve haver lugar para
complacência
MARIO VARGAS LLOSA
O Prémio Nobel da Literatura
recordou o seu próprio passado e
o momento em que um sacerdote
tentou abusar de si
Michael Schumacher
está vivo. Está
diferente, mas
está cá
CORINNA SCHUMACHER
Depoimento da mulher do antigo
piloto de F1 no documentário já
disponível na Netflix
Estamos
ainda longe
de consumar
a aprendiza-
gem da
igualdade,
que não se
baseia numa
hierarquia
de sexo e não
depende dele
LEONOR BELEZA
A Presidente da Fundação Champalimaud
recebeu o grau de doutor honoris causa pela
Universidade de Lisboa
FRASE DA SEMANA
C H O Q U E F R O N TA L
Nós já ganhámos
a este vírus. Pelo
menos, a primeira
batalha está ganha
HENRIQUE GOUVEIA E MELO
O coordenador da task force da vacinação
contra a Covid-19 alerta, porém, para os
desafios da gripe sazonal e da administração
de uma eventual terceira dose da vacina
Houve mentira, Deixámos
duplicidade, muito claro que
quebrou-se a tomaríamos uma
confiança e houve decisão com base
desdém no nosso interesse
JEAN-YVES LE DRIAN nacional estratégico
O ministro francês dos SCOTT MORRISON
Negócios Estrangeiros
O primeiro-ministro
denunciou a rutura do australiano garante
contrato com a Austrália
que a França sabia
para a construção que a Austrália queria
de 12 submarinos submarinos nucleares
convencionais
Fontes: Lusa, Jornal de Notícias, Record, Euronews, El País, CNN
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 23
 ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

14
Pelo menos, duas mulheres
foram assassinadas por
mês no primeiro semestre
deste ano, segundo a União
de Mulheres Alternativa e
Resposta, que contabilizou
14 mortes, seis das quais em
contexto de intimidade.

470 milhões
A Organização Mundial da
Saúde alertou, na última
quinta-feira, 16, para o facto de
o continente africano precisar
Um buraco maior do que a Antártida
de mais quase 470 milhões A camada de ozono, que protege a Terra da radiação ultravioleta
de vacinas para combater a nociva, regista uma das maiores degradações desde 1979
pandemia da Covid-19.
A dimensão do buraco na camada de ano, o buraco da camada de ozono
ozono no hemisfério sul ultrapassou, desenvolveu-se da forma esperada no

178
Portugal recebeu no domingo,
19, mais 80 afegãos, na maioria
atletas da equipa de futebol
feminino e seus agregados
familiares, subindo assim
para 178 o total de cidadãos
daquele país acolhidos após a
emergência humanitária.
na semana passada, o tamanho da
Antártida, continente com cerca de 14
milhões de quilómetros quadrados. “O
buraco da camada de ozono cresceu
consideravelmente na última semana e
agora é maior do que 75% dos buracos
de ozono nesta época do ano, desde
1979”, anunciaram os cientistas do
programa Copernicus, o programa de
observação da Terra, da União Europeia,
que acompanha a evolução da camada
atmosférica que protege o planeta
início da estação, mas depois tornou-se
um dos maiores nos nossos registos
para o final da época”, revelou o diretor
do Copernicus, Vincent-Henri Peuch.
De acordo com as estimativas dos
cientistas, o buraco evoluirá este ano de
forma diferente da habitual. “O vórtice
é bastante estável e as temperaturas
estratosféricas são ainda mais baixas do
que no ano passado. Estamos diante de
um buraco de ozono bastante grande e
potencialmente profundo”, acrescentou

792 GW
O Organismo Internacional de
de radiação ultravioleta nociva. “Este

AMESTERDÃO
o investigador.

Energia Atómica divulgou, na

quinta-feira, 16, um cenário
em que a produção de energia
nuclear duplicará até 792
gigawatts até 2050, mais 10%
do que o inicialmente previsto
para aquele ano, no último
cálculo de 2020.
Inédito de Van Gogh revelado ao público 139 anos depois
O Museu Van Gogh, de Amesterdão, mostrou, na semana
passada, pela primeira vez em público, um quadro até
agora desconhecido do artista holandês. Trata-se de
Study for Worn Out, um pequeno estudo feito a lápis
em novembro de 1882, período menos conhecido do
trabalho do pintor, mas que desperta uma atenção
crescente. O desenho representa um velho camponês

21
A Amnistia Internacional
exigiu, na sexta-feira, 17,
às autoridades da Eritreia
a libertação “imediata e
incondicional” de 21 jornalistas
e políticos detidos há 20 anos
durante a repressão contra a
dissidência.
curvado numa cadeira de madeira a segurar a cabeça
com as mãos. O Museu de Amesterdão já tinha outra
obra semelhante no seu acervo, com o título Worn Out
(traduzido como “Camponês Desgastado”). Os donos do
quadro, uma família que o adquiriu em 1910, pediram ao
museu para autenticá-lo. Os especialistas confirmaram
que se tratava mesmo de uma nova obra a ser registada
no vasto património de Vincent van Gogh. O quadro
ficará exposto no museu até 2 de janeiro de 2022,
sendo depois devolvido à família que o emprestou e que
preferiu manter o anonimato.

24 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

TRANSIÇÕES

PRÉMIOS SOPHIA 2021

As longas-metragens Listen,
realizada por Ana Rocha
de Sousa, e Mosquito,
do realizador João Nuno
Pinto, foram as grandes
vencedoras da décima
edição dos Prémios Sophia,
que decorreu no domingo,
19, no Casino do Estoril.
Listen venceu em cinco
categorias: Melhor Filme,
Melhor Realização (Ana
Rocha de Sousa), Melhor
Argumento Original, Melhor
Atriz Principal (Lúcia Moniz)
e Melhor Atriz Secundária
(Maisie Sly). Por seu lado,
Mosquito arrebatou prémios
em seis categorias: Melhor
Ator Principal (João
Nunes Monteiro), Melhor
Ator Secundário (Filipe
Duarte), Melhor Montagem,
Melhor Som, Melhor
Caracterização/Efeitos JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA 1922-2021
Especiais e Melhor Guarda-

Viver para pensar

Roupa. Nas restantes
categorias, destaque
também para Amor Fati, de
Cláudia Varejão, vencedor
de Melhor Documentário
em Longa-Metragem, e
para a série Terra Nova, de
Artur Ribeiro e Nuno Duarte,
vencedora na categoria de
Melhor Série/Telefilme.
Foram ainda entregues o
prémio Sophia Estudante a
Abraham Escobedo-Salas,
com a curta-metragem
No Fim do Mundo, e dois
prémios Sophia Carreira à
atriz Maria do Céu Guerra e
ao ator Sinde Filipe.
MORTES
O chef de cozinha José
Besteiros, ou Joe Best,
como era conhecido, morreu
na sexta-feira,17, em Beja,
aos 55 anos. A causa da
morte foi uma pneumonia
por aspiração.
O conhecido ator brasileiro
Luis Gustavo, morreu
no domingo, 20, aos 87
anos, com um cancro nos
intestinos.
Académico brilhante, ensaísta, romancista, professor e crítico
de arte que formou gerações, olissipógrafo e historiador, a sua vida
foi a de um homem empenhado
Por detrás do sorriso tímido estava
um homem de convicções, capacidade
intelectual superior, um amigo de fino
humor, um dito estrangeirado que
marcou gerações de artistas e de alunos
portugueses, e que refletiu e interveio
nas artes nacionais com invulgar vigor.
José-Augusto França desapareceu no
passado sábado, dia 18, aos 98 anos,
confortavelmente instalado no pódio
de uma figura de referência da cultura
portuguesa e na certeza de uma vida
vivida ao serviço do dever intelectual,
amparada nos hábitos preferidos – os
livros, os filmes, a arte, a causa do
pensamento. Os últimos três anos de
vida, pós-AVC, tinham-lhe alterado a
rotina passada entre a biblioteca e os
campos da propriedade da família da
mulher, a historiadora Marie-Thérèse
Mandroux, levando-o para uma casa
de repouso em Jarzé, perto de Angers.
Mas chegaria para várias vidas a obra
feita deste ribatejano de Tomar, filho
de um contabilista, que equilibraria o
seu percurso entre Lisboa e Paris – a
que chegou em 1959 como bolseiro
do Estado francês, tendo estudado na
Universidade da Sorbonne, trabalhado
com o historiador Pierre Francastel,
privado com exilados como António
José Saraiva e cometas como André
Breton ou Roland Barthes, e onde
confessaria ter sentido um terramoto
ao contemplar a liberdade aí vivida e as
obras de Picasso.
Historiador, sociólogo, crítico de arte,
professor catedrático e instigador do
primeiro mestrado de História da Arte
de Portugal, romancista, argumentista,
galerista, editor de revistas, figura
proeminente do Grupo Surrealista de
Lisboa, autor de centenas de artigos
e de estudos pioneiros dedicados à
Lisboa pombalina e à História da Arte
portuguesa, nos séculos XIX e XX, e
ainda de monografias sobre figuras
como Amadeo de Souza-Cardoso,
Almada Negreiros, Bordalo Pinheiro,
Columbano, Malhoa ou Maria Helena
Vieira da Silva, José-Augusto França
não foi o intelectual de bancada: criou,
revolucionou, e continuará a ser uma
referência. Sílvia Souto Cunha

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 25

 Olaf Scholz,
do SPD, e
PRÓXIMOS CAPÍTULOS
Annalena
Baerbock,
d’Os Verdes

PERISCÓPIO

LÉXICO Isto depois de o Governo

Pumba, tumba não só nada ter feito
e pimba para impedir ou mitigar
Primeiro foi Rui Rio, os efeitos desse encer-
em entrevista à Rádio ramento, nem ter rece-
Renascença: “Vai haver bido os trabalhadores
câmaras onde se pode afetados, como até se
dizer ‘o PSD ali não tem ter congratulado com
grandes hipóteses’ e o fecho de uma central
pumba!, ganhou.” No dia tão poluente. É que
seguinte, na Madeira, Matosinhos foi sempre
referindo-se ao Governo uma câmara socialista,
Regional e à sua relação mas, desta vez, Costa
com o Governo central, está com receio de que
foi António Costa: “Pela o eleitorado “dê uma
frente, é só sorrisos lição”… ao PS.
e palmadinhas nas
costas. Por trás, tumba, PAVLOV
ELEIÇÕES NA ALEMANHA
lá vem a facada!”. E que não viesse
A conclusão que se a Venezuela...

Quem sucede a Angela?

Com cerca de 40% de eleitores ainda indecisos,
pode tirar é a de que o
léxico político está cada
vez mais... pimba.
Reagindo à “lição” que
António Costa quer
dar à Galp, o líder da
IL, João Cotrim de
AMEAÇAS Figueiredo, disse que a
o único dado certo é que a era de Merkel vai acabar atitude do primeiro-mi-
Lição nº 1
e lição nº 2 nistro é própria de um
A Alemanha vê aproximar-se o dia das eleições gerais, regime “chavista”. Se a
A campanha eleitoral
no próximo domingo, 26, com algumas certezas e muita Venezuela não viesse à
foi abalada pelas
indefinição. Certo é que este será um ato eleitoral histórico, declarações de An- baila, nesta campanha,
por colocar um ponto final a 16 anos de Angela Merkel no tónio Costa, que, em a propósito de qualquer
papel de chanceler. Certo parece ser também, pelo menos a Matosinhos, prometeu coisa, as teses de Pavlov
avaliar por todas as sondagens, que o seu sucessor na chefia do dar à Galp “uma lição”, seriam desmentidas...
governo será Olaf Scholz, líder do SPD. Tudo o mais que venha pela forma como geriu Mas como, neste caso,
a acontecer a partir da próxima segunda-feira, nesta altura, o encerramento da o tema mete petróleo,
são apenas suposições. A vitória do partido social-democrata, refinaria de Matosinhos. percebe-se melhor.
embora pareça certa – conta com uma vantagem a rondar os
4% face à CDU/CSU, mas há ainda 40% de eleitores indecisos CONDECORAÇÃO
–, não isentará Scholz da necessidade de negociar com outras
Portas agraciado pelo Chile
forças políticas para formar governo. O mais provável é que
Paulo Portas foi condecorado pelo Presidente do
um dos parceiros de coligação venha a ser o partido Os Verdes,
Chile, em atenção ao seu papel nas relações entre
liderados por Annalena Baerbock, com quem o líder do SPD Portugal e aquele país. A Ordem Bernardo O’Higgins
tem vindo a demonstrar grande convergência. No entanto, os foi-lhe entregue pelo embaixador chileno e, na
mandatos destes dois partidos não deverão ser suficientes para cerimónia, estiveram presentes ex-ministros do CDS
garantir uma maioria no Bundestag. Para que tal aconteça, será como Pires de Lima (na foto, com Portas e Eduardo
preciso juntar o apoio ou da esquerda Espinar, da GBS Finance), Assunção Cristas e Pedro
radical do Die Linke ou do Partido Mota Soares. Em Portugal, esta ordem só tinha sido
Liberal, parceiro histórico dos governos atribuída a dois Presidentes da República, Soares e
A MAIORIA de Merkel. Outra hipótese, conhecendo- Marcelo. Será prenúncio de qualquer coisa?… F.L.
-se a história recente da Alemanha, é a
DOS ALEMÃES repetição da última solução governativa,
CONSIDERA que juntou SPD e CDU/CSU numa
GroKo (grande coligação), desta vez,
QUE CHEGOU com os sociais-democratas na liderança.
A HORA DE A Porém, depois de, esta semana, o partido
de Merkel, agora liderado por Armin
CDU/CSU PASSAR Laschet, ter permitido que Olaf Scholz
À OPOSIÇÃO fosse obrigado a depor numa comissão
OLAF SCHOLZ de inquérito sobre suspeitas de que o
No último debate, Ministério das Finanças, que dirigiu nos
o candidato do SPD últimos anos, pouco fez para combater a
rejeitou a hipótese
de uma nova lavagem de dinheiro no país, essa GroKo
“grande coligação” ficou ainda mais improvável. M.B.M.

26 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

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IMAGENS

O DESPERTAR
DO VULCÃO
Após meio século de inatividade, o Cumbre Vieja despertou
em fúria, provocando o caos em La Palma, nas Canárias.
Milhares de pessoas tiveram de deixar as suas casas,
enquanto se assiste ao lento e destruidor deslizamento
da lava incandescente rumo ao mar

FOTOS: GETTY IMAGES

LA PALMA, ILHAS CANÁRIAS

Fez-se anunciar, durante
mais de uma semana, por
cerca de 25 mil pequenos
eventos sísmicos de baixa
intensidade. Até que, às
15 horas e 12 minutos do
último domingo, 19, o vulcão
Cumbre Vieja, em La Palma,
uma das Ilhas Canárias,
entrou em erupção, após
meio século de inatividade.
A última erupção acontecera
em 1971, depois de uma
primeira registada em 1949.
As autoridades espanholas
não conseguem prever
quanto tempo vai durar
o fenómeno, mas, até ao
momento, mais de cinco mil
pessoas foram obrigadas a
abandonar as suas casas.
Até terça-feira, 21, não havia
vítimas mortais a lamentar,
mas o lento deslizamento
da lava em direção ao mar
foi deixando um rasto de
destruição.

28 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

IMAGENS

RIO DO GRANDE
DESESPERO
A fronteira entre o México e o Sul do Texas, nos EUA, voltou
a ser palco de uma grave crise humanitária, com milhares
de migrantes, provenientes sobretudo do Haiti mas também
de Cuba, Venezuela ou Nicarágua, a serem barrados quando
tentavam entrar nos Estados Unidos da América

FOTOS: GETTY IMAGES

 CIUDAD ACUÑA, MÉXICO
Em pouco menos de uma
semana, perto de dez mil
pessoas, na sua grande
maioria cidadãos haitianos,
aglomeraram-se por baixo da
ponte internacional em Del
Rio, no Sul do Texas, vindos
do México, para onde tinham
fugido, empurradas pela
pobreza, pela instabilidade
política e pelas catástrofes
que martirizam o seu país.
Perante a falta de condições
em terras mexicanas,
estes milhares de homens,
mulheres e crianças
tentaram a sorte nos
Estados Unidos da América,
atravessando o Rio Grande.
Porém, as autoridades
norte-americanas não só
bloquearam a entrada como
iniciaram operações de
deportação. Para evitar o
regresso forçado ao Haiti, a
maioria foi obrigada a voltar
atrás, rumo à Ciudad Acuña,
no México.

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 31

POR DENTRO
DAS REDES
ANTISSISTEMA
Os movimentos negacionistas
e nacionalistas passaram os últimos
três meses a preparar uma frente unida
para endurecer as próximas ações
de luta. Acreditam que o ataque
a Ferro Rodrigues pode ser só “o início”.
E até já foi criado um grupo dedicado
a promover a “desobediência civil”.
Os nomes, as iniciativas e as ligações
de um submundo que se transformou
numa potencial ameaça
JOÃO AMARAL SANTOS
LUSA
 B
“Basta de passividade!” O apelo à
união e à ação soou há três meses nos
bastidores dos movimentos antissis-
tema. No dia 25 de junho, o ex-mi-
litar Luís Freire Filipe, fundador do
movimento nacionalista, identitário
e negacionista da Covid-19 Defender
Portugal (com quase 20 mil seguido-
res nas redes sociais), anunciava, num
grupo privado do Facebook, a inten-
ção de dar músculo às manifestações
de rua que, desde 2017, tem vindo a
O SUCESSO
DO PROCESSO
DE VACINAÇÃO
EM PORTUGAL
COLOCOU EM RISCO
A SOBREVIVÊNCIA
DOS MOVIMENTOS
ANTISSISTEMA,
11. O publicitário Alfredo Rodrigues,
gestor da página online Quero Emi-
grar (com mais de 74 mil seguidores
nas redes sociais), antigo responsável
pelas plataformas digitais dos Médicos
pela Verdade, e com conhecida simpa-
tia pela extrema-direita portuguesa,
foi o escolhido para porta-voz deste
projeto, que se apresenta com apelos à
ação: “O tempo é agora, o local é aqui!
Este é o nosso momento!”
Durante os últimos meses, a VISÃO
acompanhou estas movimentações
por dentro. A estratégia (não escrita)
que foi desenhada prevê que cada
movimento continue a organizar,
como até aqui, as suas manifestações
de rua. Os restantes grupos passam a
marcar presença nessas ações, engros-
sando fileiras, procurando formar,
junto da opinião pública, a ideia de
que a adesão e a contestação popular
continuam a crescer. A Resistência
Portuguesa terá estatuto de “braço
armado”, fica dispensada de organizar
manifestações em nome próprio, mas
mantém-se omnipresente no palco
das operações: os seus membros vão
trajar de camisolas pretas, nas quais
organizar e nas quais participa, pas-
sando a recrutar e a utilizar mulhe- QUE REAGIRAM E SE se poderá ler a palavra “Resistência”
escrita a vermelho-forte – o grupo
res e homens que, até à data, apenas
demonstravam a insatisfação que REORGANIZARAM fica com o papel de “agitar as águas”
no epicentro dos protestos, tentan-
sentiam sentados no sofá, por men-
sagens escritas ao teclado. Em meados NUMA NOVA do, sempre que possível, promover
situações de tensão e “desobediência
de agosto, Luís Freire Filipe elegeu a
militante Vânia Sousa, residente em COLIGAÇÃO civil” que permitam fazer disparar os
níveis de adrenalina e agressividade da
Vila Nova de Gaia, para o substituir
como líder do Defender Portugal,
passando a dedicar-se em exclusivo
ao movimento Resistência Portuguesa,
um novo grupo pensado e concebido
como “braço armado”, ao género de
milícia, com o objetivo de “passar
à ação” – e que, neste momento, já
conta com cerca de duas centenas de
membros, profundamente doutrina-
dos e “preparados para a luta”.
Ao mesmo tempo, Luís Freire Fi-
lipe e os líderes de outros oito mo-
vimentos acertavam termos e con-
certavam esforços. Foi então criada,
a 16 de agosto, a coligação negacio-
nista Aliança Lusa: da qual também
fazem parte, entre outros, o grupo
Aliança pela Saúde (ex-Médicos pela
Verdade), Verdade Inconveniente e
Santo António de Lisboa, este últi-
mo chefiado pela dupla Ana Desirat
e Sónia Pritham, ambas na mira do
LUSA

Ministério Público (MP), na sequência

das ameaças e dos insultos dirigidos Vice-almirante Gouveia e Melo enfrentou pela porta da frente
a Ferro Rodrigues, no passado dia os protestos que o aguardavam em Odivelas

34 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

 Movimentos antissistema nacionalistas, antivacinas e negacionistas
ALIANÇA LUSA
O sucesso do processo de vacinação em Portugal, a que a
esmagadora maioria da população aderiu, fez soar os alarmes
nos movimentos antissistema – antivacinas e negacionistas
da Covid-19. Ameaçados pelo risco de extinção, os líderes dos
grupos mais ativos uniram-se numa nova estratégia, surgindo
agora coligados na denominada Aliança Lusa. Embora de fora,
Movimento Zero e Habeas Corpus também estão informados
DEFENDER PORTUGAL de que podem contar com o seu apoio. Numa corrida pela
12k
sobrevivência, a coligação pretende que a dinâmica e a
agressividade aumentem: das redes sociais para as ruas.
MOVIMENTO ZERO
80k
Fundado por Luís Freire
Filipe, este movimento Grupo inorgânico que
chamou a atenção a une polícias da PSP
partir de 2020, após e da GNR e outros
montar acampamento elementos ligados a
frente ao Parlamento forças de segurança
(que ainda hoje se e autoridade – como
mantém), em protesto guardas prisionais ou
contra as medidas do seguranças privados.
Criado para exigir
Governo para o con-
trolo da pandemia. De QUERO EMIGRAR ALIANÇA PELA SAÚDE SANTO ANTÓNIO melhores condições
retórica nacionalista, 74k 3,5k
DE LISBOA de salário para os
polícias, é hoje apon-
identitária e negacionis- Alfredo Rodrigues Sucessor dos extintos 750
ta, é liderado por Vânia tornou-se um autên- Médicos pela Verdade, tado como estando
O grupo Santo António sob a influência
Sousa, residente em tico influencer dos reúne profissionais
de Lisboa deve o seu da extrema-direita
Vila Nova de Gaia. movimentos antissis- ligados à saúde, que
nome ao cancelamento portuguesa. As suas
tema. No Facebook, vão dos médicos e en-
dos Santos Populares, páginas nas redes
a sua página conta fermeiros aos homeo-
na capital, decretado sociais dedicam-se a
com mais de 74 mil patas e praticantes de
pelo presidente da listar incidentes que
seguidores. A partir medicina tradicional
câmara de Lisboa, constroem a noção de
de Bruxelas, este chinesa. Margarida
Fernando Medina (por que o País é inseguro
publicitário produz Oliveira, médica anes-
causa da pandemia). para polícias e popula-
todo o tipo de conteú- tesista, já punida pela
Sem “peso” nas redes ção civil.
dos – como opinião, Ordem dos Médicos
sociais, o movimento
entrevistas ou apoio com seis meses de
tem-se destacado nas
holístico e financeiro. suspensão pelas suas
RESISTÊNCIA Fortemente crítico do declarações negacio-
manifestações de rua,
por ação de Ana Desirat
PORTUGUESA Governo, é conotado
com a extrema-direita
nistas, continua a ser
o rosto principal do
(“nome de guerra” da
negacionista Anabela
Foi criado no passado portuguesa. É tam- grupo, que conta com
Seabra) – a mulher do
mês de junho por bém o responsável in- o apoio de Fernando
megafone que chamou
Luís Freire Filipe,
para ser o “braço
formático e porta-voz
da Aliança Lusa.
Nobre.
“assassino” e “pedófilo” HABEAS CORPUS
armado” ao serviço
a Ferro Rodrigues. 28k
dos grupos que O cancelamento da
compõem a Aliança página Juristas pela
Lusa – e também Verdade levou Rui Fon-
nas manifestações seca e Castro a mudar
do Movimento Zero WWM4LOVE VERDADE PORTUGUESES ACORDA de morada, criando
e do juiz Rui Fonseca 1 500 INCONVENIENTE LIVRES PORTUGAL esta nova plataforma.
e Castro. Recruta 12,5k 3 200 1 400 É agora aqui que o juiz
e treina os seus negacionista publica
membros, desde regularmente os seus
há três meses, em Os outros movimentos que integram a Aliança Lusa apresentam-se com vídeos, através dos
ações de formação carimbo popular e apartidário. Não fazem, porém, mais nada a não ser quais já atacou tudo e
realizadas em política – criticando todas e quaisquer medidas do Governo para controlar todos: políticos, Gover-
secretismo, que a pandemia. A maioria dos grupos limita-se a usar as suas páginas no no, polícias e autorida-
cobrem todo o Facebook para fazer eco de notícias publicadas na comunicação social ou des de saúde. Continua
território nacional. nas redes sociais, capazes de reforçar a ideia de que o vírus não existe ou, a fornecer aconselha-
Pretende promover a pelo menos, de que não é assim tão grave. O Verdade Inconveniente des- mento jurídico a quem
“desobediência civil”. taca-se pelo número de seguidores; o World Wide Demonstration (WWM 4 se recusa a respeitar
Love) pelos rally for freedom que, frequentemente, realiza em Lisboa, sob as regras no âmbito da
batuta da negacionista Vicky Ketion. pandemia.
 ÓDIOS DE ESTIMAÇÃO
Os movimentos
antissistema
partilham uma
p ç
postura de oposição
à ordem vigente.
gente.
Os políticoss no
am-se,
poder tornam-se,
por isso, oss
principais alvos a
abater. No contexto
pandémico, nas
redes sociais, cada
negacionista é juiz
e algoz – mas pode
o ódio ganhar
vida real?
tribunal (normalmente
multidão. Os alvos principais também
estão definidos: e incluem os nomes
de Marcelo Rebelo de Sousa, Ferro
Rodrigues, António Costa, Eduardo
Cabrita ou o vice-almirante Gouveia
e Melo, entre outros.
REPLICAR O CAPITÓLIO?
Esta reorganização dos movimentos
antissistema portugueses copia, na
forma e no conteúdo, a alteração (e o
extremar) da narrativa que antecedeu
a invasão do Capitólio, em Washing-
ton, nos Estados Unidos da América,
em janeiro deste ano, quando apoian-
tes de Donald Trump passaram ao
ataque, numa derradeira tentativa de
tomar o poder, após a derrota elei-
toral do ex-Presidente republicano,
que provocou cinco mortos. No caso
português, o sucesso do processo de
vacinação – que coloca Portugal como
o país com maior taxa de população
vacinada em todo o mundo –, pró-
ximo de estar concluído, fez soar os
alarmes no seio dos movimentos ne-
gacionistas, levando ao precipitar do
passo seguinte. Perante o cenário de
extinção, os líderes reagiram, exigindo
maior compromisso aos seus segui-
dores. A mudança de estratégia está a
36 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
MARCELO
REBELO DE SOUSA
O Presidente é
SA
considerado o
principal cúmplice
e Responsabilizado pela
do Governo. E umaa
grande desilusão
ANTÓNIO COSTA
Apontado como líder de um grande
projeto genocida. As origens goesas
p
servem a ataques racistas
e xenófobos
GOUVEIA E MELO
Caricaturado como
o diabo na Terra.
Ao vice-almirante,
apontam-lhe futura
condenação em
em Nuremberga)
ser levada a sério pelas autoridades: o
Serviço de Informações de Segurança
e a Unidade Nacional Contraterroris-
mo da Polícia Judiciária já estão no
terreno e, nas últimas semanas, co-
meçaram a monitorizar as atividades
de pessoas e grupos que representam
uma eventual ameaça.
Ouvido pela VISÃO, José Manuel
Anes, fundador e antigo presidente
do Observatório de Segurança, Cri-
minalidade Organizada e Terrorismo
(OSCOT), alerta para o facto de “estes
grupos, que aparentemente parecem
algo folclóricos, serem, na verdade,
um problema real para a segurança”.
O criminalista e professor universi-
tário recorda que “o que aconteceu
no Capitólio, foi concretizado por or
movimentos deste tipo”. “O risco é
este: sabemos sempre como é que ue
estas coisas começam, mas depois ois
nunca conseguimos saber como é que ue
acabam. Acredito, sinceramente, que ue
estes grupos que existem em Portugal,al,
se tivessem oportunidade de conquis- s-
tar a mesma dimensão e força que têm m
os dos Estados Unidos da América, ca,
também seriam capazes de realizar, ar,
ue
no nosso país, uma ação idêntica à que
ocorreu em Washington. E isso é, de
EDUARDO
CABRITA
É o ministro mais
citado (e detestado).
c
Re
morte do trabalhador
m
atropelado
ropelado naa A6
FERRO
RODRIGUES
Com recurso a fake
news, difamam-no
diariamente. Já
sentiu na pele até
onde pode ir o ódio
facto, muito preocupante e assusta-
dor, uma coisa com que precisamos de
lidar com muito cuidado”, diz.
A solução, porém, não parece fácil.
“Eles lutam contra aquilo a que cha-
mam de ‘sistema’. Portanto, qualquer
argumento, por mais delirante que seja,
permite-lhes desestabilizar esse ‘siste-
ma’. No fundo, é isso precisamente que
pretendem. Antigamente, estes grupos
eram chamados de anarquistas, mui-
to ligados à extrema-esquerda. Hoje,
este fenómeno está muito mais ligado
aos movimentos de extrema-direita”,
afirma José Manuel Anes.
A natureza “fora da lei” da Aliança
Lusa afastou da linha da frente da
coligação
g ç dois dos movimentos inor-
gânicos que mais pessoas mobilizam
no País: o Movimento Zero, consti-
tuído por polícias da PSP e GNR, e o
Habeas Corpus, personificado no juiz
Rui Fonseca e Castro. A ligação destes
grupos à Resistência Portuguesa – e,
por associação, aos seus integrantes
– é, no entanto, inegável. Luís Freire
Filipe foi, aliás, quem deu a cara pela
manifestação do Movimento Zero,
realizada no dia 21 de junho, que es-
tava prevista para o Parlamento, mas
que acabou por derivar para uma
visita não autorizada ao Ministério
da Administração Interna, no Ter-
reiro do Paço, provocando o caos em
várias artérias da cidade. A situação
motivou a abertura de um inquérito
pelo MP, ainda sem conclusões. Já o
juiz Rui Fonseca e Castro também
enfrenta um inquérito do MP, pelo
alegado crime de difamação contra
Ferro Rodrigues, depois de ter cha-
mado “pedófilo” ao presidente da AR.
Contra o magistrado corre também
um processo disciplinar no Conselho
Superior da Magistratura – a decisão
será conhecida no dia 8 de outubro.
Apesar do posicionamento nestes
casos, neste momento, aconselhar a
mais cautelas, a VISÃO sabe que to-
dos os movimentos da Aliança Lusa
se mantêm comprometidos em apoiar
estes grupos no futuro.
FERRO RODRIGUES:
NEGACIONISTAS CANTAM VITÓRIA
O ataque a Ferro Rodrigues, no passa-
do dia 11, não teve nada de planeado,
mas o momento espontâneo está agora
a ser usado como um “cartão de visita”
pelos negacionistas, que têm procura-
do retirar proveitos do incidente. Tudo
O QUE ACONTECEU
NO CAPITÓLIO FOI
CONCRETIZADO
POR MOVIMENTOS
DESTE TIPO (...)
NUNCA SABEMOS
COMO ESTAS
COISAS ACABAM
JOSÉ MANUEL ANES
aconteceu quando alguns manifestan-
tes – reunidos às portas do Parlamen-
to, para uma ação com o mote “Pelas
nossas crianças – Rumo à Liberdade”
(na qual discursou o ex-candidato pre-
sidencial Fernando Nobre), agendada
para aquela tarde – se aperceberam da
presença da segunda figura do Estado,
num restaurante das proximidades.
Ferro Rodrigues almoçava, na compa-
nhia da sua mulher, no âmbito da sua
vida privada, mas tal não impediu que
fosse cercado, insultado e ameaçado,
acabando brindado pelos presentes
com gritos de “assassino”, “bandido”
e “pedófilo”, durante largos minutos,
antes de abandonar o local sob escolta
dos seguranças que o acompanhavam,
debaixo de vaias e insultos – episódio
que levou a PSP a reforçar as medidas
de segurança do presidente da AR,
que passou a ter mais três polícias ao
seu dispor.
Os negacionistas têm aproveitado
para reivindicar a autoria do ataque,
descrevendo-o como “uma gran-
de vitória”. Nos bastidores, os mais
otimistas insistem em ler no ataque
um ponto de viragem – com muito
mais vantagens do que desvantagens
–, que permitiu ver uma versão mais
“determinada” destes movimentos,
até então não revelada, mas que agora
todos anseiam por ver repetida. E nem
sequer a confirmação da instauração
de um inquérito aos incidentes, pela
Procuradoria-Geral da República, com
origem na participação dos factos pela
PSP, nas mãos do Departamento de
Investigação e Ação Penal de Lisboa,
parece ter esmorecido o entusiasmo.
Todos confiam que o processo “não
vai dar em nada”.
Este inesperado trunfo começou
a ser jogado por via da atenção que o
incidente mereceu pela comunicação
social – holofotes sempre desejados
pelos negacionistas, embora nunca
assumidamente. As imagens do mo-
mento,, de uma violência incomum,
tornar-se-iam virais, u
ultrapassando as
fronteiras das redes ssociais – campo
de doutrinação e recrecrutamento por
eleição destes grupos –, chegando a
um conjunto muito m mais vasto da po-
pulação. A curiosidad
curiosidade fez aumentar
o número de visitantes
visitant nas páginas
dos grupos negacionistas
negacion nas redes
sociais, levando os ge
gestores a refor-
çarem a atividade, naquilo
naq que foi um
esforço para credibi
credibilizar a coleção
de teorias da conspir
conspiração em que se
baseia a sua atividade.
atividad Como? Cre-
Luís Freire Filipe, o
ex-militar sedento por ação
De perfil nacionalista e
identitário, o líder da Resistência
Portuguesa não perde a
oportunidade de falar do sangue
templário que lhe corre nas veias
No dia 13 de dezembro de 1985 (uma
sexta-feira 13), os fios do paraquedas
de Luís Freire Filipe, de apenas 20
anos, enredaram-se nos do colega,
fazendo com que caísse no solo,
desamparado. Sobreviveu por pouco,
mas os ferimentos graves colocaram
um ponto final na sua carreira militar.
“Foi o momento mais difícil da minha
vida. Os meus sonhos caíram por terra,
o meu futuro ficou hipotecado. Durante
algum tempo, andei perdido.”
Passou pelos bombeiros e pela
segurança privada, mas sem nunca
encontrar um sentido para a vida. Até
2017, quando tudo se alterou. “Depois
dos incêndios de Pedrógão Grande,
decidi que já chegava, que estava na
hora de fazer mais alguma coisa pelo
meu país. E então… dei o salto.” Nascia
assim o ativista Luís Freire Filipe.
Este ex-militar, de 57 anos, casado,
pai de quatro filhos e avô de cinco
netos, nasceu em Alvide, uma pequena
povoação no concelho de Cascais,
no seio de uma família humilde.
Filho e neto de pastores, cresceu na
tranquilidade do campo, embalado
pelas histórias que o seu avô materno,
de apelido Freire, lhe contava ao serão,
sobre os seus antepassados templários
– despertando-lhe o desejo de, um dia,
também ele poder vir a cumprir a sua
cruzada. Com apenas 9 anos, esbarrou
com um paraquedista, que encimava
orgulhosamente a sua boina verde,
tornando-se obcecado pelo sonho de se
tornar militar.
Órfão de ação, impedido de pôr em
prática um amor patriótico exacerbado,
fiel aos valores ultracatólicos herdados
por antepassados templários, Luís Freire
Filipe radicalizou-se. Encontrou guarida
no ideário nacionalista e identitário –
assumindo-se como o escolhido para o
impor através da “luta” nas ruas.
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 37
 Ana Desirat: Uma história de radicalização
Quando a pandemia chegou a Portugal, Anabela Seabra, 60 anos, utilizava as suas redes sociais para apelar
ao confinamento e ao uso da máscara. Com o passar dos meses, tornou-se militante negacionista.
Quem é a mulher do megafone que atacou Ferro Rodrigues?
“Assassino! Pedófilo! Não são
esses dois capangas que te
protegem, podes ter a certe-
za!” As palavras, dirigidas a
Ferro Rodrigues, presidente
da Assembleia da República
(AR), foram proferidas por
Anabela Seabra, conhecida,
pelos milhares que a se-
guem nas redes sociais, pelo
“nome de guerra” Ana Desirat
(apelido que foi recuperar às
memórias de solteira da sua
mãe). Em março de 2020,
com a chegada da pandemia
a Portugal, utilizava as redes
sociais para apelar a compor-
tamentos responsáveis, como
o confinamento ou o uso da
máscara. Mas com o passar
dos meses, transformar-se-ia
numa militante negacionista
“modelo”, contestando todas
as medidas para a conten-
ção do vírus adotadas pelo
Governo – é antimáscaras e
antivacinas.
No passado dia 11, na
manifestação que decorreu
às portas do Parlamento,
foi ela quem, de megafone
nas mãos, dirigiu insultos e
ameaças a Ferro Rodrigues,
quando este almoçava com
a mulher. Ana Desirat será o
principal rosto do inquérito
aberto pela Procuradoria-
Geral da República (PGR),
na sequência dos incidentes.
Logo no dia seguinte, Ferro
Rodrigues admitiu, em
declarações à VISÃO, esperar
que as autoridades agissem
contra os autores do ataque.
Horas mais tarde, a PSP
participou o episódio à PGR,
que passou o inquérito para
as mãos do Departamento
de Investigação e Ação Penal
(DIAP) de Lisboa.
Ana Desirat já tinha dado nas
vistas quando, no dia 2 de
setembro, integrou o grupo
de negacionistas que recebeu
com assobios e insultos o
vice-almirante Gouveia e Melo,
à porta de um centro de vaci-
38 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
Do avesso Anabela Seabra, 60 anos, bancária
e ex-autarca. A pandemia mudou-lhe a vida
nação em Odivelas, obrigando
o responsável da task force a
recorrer a escolta policial.
QUEM É ESTA MULHER?
Ana Desirat, 60 anos, nasceu
em Lourenço Marques (atual
Maputo), Moçambique.
Chegou a Portugal depois
do 25 de Abril e fixou-se na
região de Lisboa. Frequentou
a Universidade Lusófona, mas
não concluiu curso superior.
Durante vários anos, traba-
lhou como bancária, no banco
Montepio, atividade que man-
tém atualmente suspensa.
Divorciada, mãe, descreve-
se nas redes sociais como
uma “pessoa irreverente”,
militante de causas tão
díspares como a proteção
de cães, do ambiente ou das
vítimas do conflito em Cabo
Delgado, na sua terra natal.
Em 2001, o espírito motivado
valeu-lhe um convite para
integrar a lista do PSD que
concorreu à Assembleia de
Freguesia da Pontinha, no
concelho de Odivelas – foi
eleita e integrou, durante
quatro anos, o executivo
liderado pelo PS.
Em janeiro deste ano, a
sua posição moderada em
relação à pandemia alterou-
MARCOS BORGA
se radicalmente. À VISÃO,
explica que o ponto de
viragem aconteceu quando
um tio de 90 anos e mais
dois primos acusaram
positivo à Covid-19. Ana
Desirat recusou manter as
distâncias, visitou-os todos
os dias, até que os familiares
venceram a doença, sem que
ela tivesse ficado infetada.
Imediatamente, concluiu que
a pandemia não passava de
uma farsa. “Foi aí que me
apercebi de que a doença
não é o que se diz.” Não se
assume como “negacionista”,
mas confessa “que, por
natureza, coloca sempre tudo
em causa”.
A partir daí, passou a
combater abertamente as
medidas para a contenção
da pandemia – e quantos
mais seguidores somava no
Facebook, mais crescia a sua
determinação.
Foi nas redes sociais que
Ana Desirat se radicalizou,
percebendo que mais
pessoas pensavam como
ela, até se tornar uma
referência dos movimentos
antissistema. Decidiu, então,
ter um papel mais ativo, indo
para a rua – hoje, afirma
que a Covid-19 esconde um
plano dos políticos para
controlar a população: “É
uma ditadura sanitária.”
Há três meses, criou com
Sónia Pritham o grupo Santo
António de Lisboa, depois de
Fernando Medina, presidente
da autarquia da capital,
ter cancelado os Santos
Populares – foi em nome do
grupo que participou nos
ataques a Gouveia e Melo e
Ferro Rodrigues.
ATAQUE A FERRO
Desirat não mostra
arrependimentos por ter
chamado “assassino” e
“pedófilo” a Ferro Rodrigues.
Acampada em frente ao
Parlamento, agora faz
campanha pela abstenção
nas autárquicas do próximo
domingo e defende o seu
direito à indignação, ao
mesmo tempo que se diz
“vítima de uma campanha
da comunicação social”,
com o objetivo “de virar o
povo português” contra si.
“Sou apenas uma cidadã
portuguesa. Os exemplos
vêm de cima e Ferro
Rodrigues, que está muito
acima de mim, também já
tinha insultado magistrados
e o segredo de justiça”,
justifica. Ao mesmo tempo,
atribui responsabilidades
à vítima: “Porque é que, no
dia da manifestação, vem
almoçar precisamente a este
restaurante, numa mesa
junto à janela? Foi uma
provocação. E as pessoas,
quando provocadas, reagem”,
afirma.
Do inquérito, ainda ninguém
foi notificado. Ana Desirat
está tranquila. “Não acredito
que [o processo] resulte em
alguma coisa contra mim,
porque, se isso acontecer, vai
ter de resultar contra muitas
mais pessoas. Sinceramente,
não acredito que dê em
alguma coisa”, sentencia.

dibilizando os conteúdos através da
voz de personalidades reconhecidas
pelo grande público, e que, por regra,
têm opiniões que vão ao encontro
do pensamento contracorrente – é
o caso de Fernando Nobre, médico
e fundador da AMI – Assistência
Médica Internacional, que garante
ter-se curado da Covid-19, a si e à
sua família, com recurso a azitromi-
cina, hidroxicloroquina e ivermectina,
medicamentos que Donald Trump e
Jair Bolsonaro também defendem,
mas que não têm eficácia comprova-
da para o tratamento da doença. Ou
ainda das comentadoras Joana Amaral
Dias e Raquel Varela, que têm adotado
posições críticas em relação às me-
didas para a contenção da pandemia
definidas pelo Governo. Verdadeiros
influencers que mobilizam milhares
de pessoas através do ecrã.
Resultado imediato deste plano foi
o aumento do número de candida-
tos interessados em participar nesta
“luta”. Na sequência, o responsável
pela Resistência Portuguesa decidiu
agendar, à pressa, na passada quin-
ta-feira, dia 16, uma ação de forma-
ção extra, marcada para Coimbra (no
próximo sábado, dia 25). Adivinha-se
um novo grupo de “resistentes”. Em
surdina, o próprio Luís Freire Filipe
tem confessado, junto dos colabo-
radores mais próximos, que tem a
expectativa de que o episódio com
D.R.
LUSA
Desobediência O ataque a
Ferro Rodrigues é descrito nos
D.R.
bastidores negacionistas como
“uma grande vitória”
Ferro Rodrigues “tenha mesmo sido
o início” de algo diferente. A priori-
dade, para já, é acelerar o treino do
seu “braço armado”, para, em breve,
voltar ao campo de batalha.
RESISTÊNCIA PORTUGUESA:
O “MODUS OPERANDI”
O NEGACIONISMO “Encontro: Coimbra. Ponto de encon-
tro: Estação Coimbra-B. 25 de setem-
PODE SER VISTO bro. 09h00.” O procedimento é sempre
igual. Os interessados candidatam-se
COMO UMA às ações de formação no grupo privado
da Resistência Portuguesa no Face-
DEFESA FACE À book (já com perto de dois mil mem-
PANDEMIA (...) OS
bros), mas só depois de “analisados
e validados” pelo próprio Luís Freire
NEGACIONISTAS
Filipe é que passam à próxima fase.
O candidato aprovado é contactado,
NÃO SÃO O MAL por mensagem privada, altura em que
lhe são pedidos os dados pessoais e o
ENCARNADO contacto. Resta, depois, aguardar pelos
desenvolvimentos. A informação indi-
GUSTAVO CARDOSO cando data, hora e ponto de encontro
é publicada no grupo. “Neste grupo,
pouco ou nada vamos falar e escrever.
Será somente o ponto de encontro
para marcar ações, quer sejam online
ou presenciais (...) só entra no grupo
quem eu conhecer muito bem. Como
já perceberam, vamos fazer a coisa com
mais assertividade, como tal, somente
podemos contar com poucos. Assim
sendo, mesmo os poucos que sejam
devem ser de confiança e teremos que
contar com todos na hora da verdade.
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 39

Glossário
de nacionalistas
e negacionistas
Os movimentos antissistema
utilizam a mesma cartilha. Os
termos mais utilizados são
partilhados em grupos do
Facebook e do Telegram por
nacionalistas, identitários e
negacionistas
ELITES
Defendem que a pandemia nasceu
para exercer poder e controlo,
com motivações económicas e
políticas, por uma elite mundial.
O grupo de Bilderberg, Bill Gates
e George Soros são normalmente
citados.
CORRUPÇÃO
Encontram na corrupção a causa
para todos os problemas do
Estado. Os partidos da direita
radical usam o mesmo expediente
para atacar o poder e captar a
atenção dos mais revoltados.
DITADURA SANITÁRIA
É o termo utilizado para descrever
o conjunto de medidas levadas
a cabo pelos governos para o
controlo da pandemia.
PEDOFILIA
O caráter ignominioso da pedofilia
serve para despertar reações
viscerais. Nos Estados Unidos da
América, o grupo QAnon alega que
Donald Trump está a travar uma
guerra secreta contra uma rede
global de pedófilos, liderada pelos
democratas.
SÁ CARNEIRO
O nome de Sá Carneiro é
requisitado pelos grupos
portugueses. Falecido em 1980,
o fundador do PSD e antigo
primeiro-ministro conquistou aura
de D. Sebastião e de contraditório
ao atual Governo.
VACINAS
As vacinas são classificadas como
veneno ou apenas experimentais.
A sua distribuição massiva é
vista como um meio para as
farmacêuticas enriquecerem com
o beneplácito dos governos.
40 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
Até lá cuidem-se e procurem pelo
menos um [elemento] que entendam
convidar para este lugar”, lê-se numa
mensagem de 26 de junho. Em nota de
rodapé, deixam-se os restantes con-
selhos: “Tragam roupa prática e ténis,
água e alimentação e evitem usar anéis,
brincos ou relógios.”
O ponto de encontro escolhido
é, normalmente, uma zona central e
de fácil acesso. Chegados ao local, os
participantes recebem, pontualmente,
uma SMS que vai, finalmente, indicar o
local exato onde vai decorrer a ação. Só
nessa morada os participantes sabem
o que vão encontrar – nos últimos três
meses, já houve encontros em salas de
condomínio, anfiteatros, pavilhões e
até num armazém abandonado. Tudo
depende do que os colaboradores
locais conseguem arranjar. Para lá da
porta, pouco ou nada se sabe. Quem
entra no grupo faz um pacto de si-
lêncio sobre o que aconteceu (ou o
que vai acontecer) – o secretismo faz
D.R.
parte de todo o processo e é respei-
tado religiosamente. Foi assim que a
Resistência Portuguesa foi crescendo. Treinos As ações de formação
Neste momento, conta com cerca de têm vertente teórica e prática,
200 membros. O grupo, fundado a 25 realizam-se à porta fechada e
de junho, organizou, seis dias depois, duram oito horas. O pacto de
uma primeira reunião online. Segui- silêncio é cumprido à risca
ram-se ações de formação presenciais
que cobriram todo o território na-
cional, de norte a sul, e passaram por
Póvoa de Varzim, Gondomar, Cucujães
(Aveiro), Viseu, Seia, Fátima, Lisboa e
Loulé. A próxima reunião, marcada
para Coimbra, surge de surpresa, e é
a última antes do anunciado encontro
nacional, agendado para o fim de se-
O GRUPO
RESISTÊNCIA
mana de 2 e 3 de outubro, em Oeiras.
Após semanas de insistência, que
PORTUGUESA
incluíram contactos com várias pes-
soas, Luís Freire Filipe aceitou conver-
sar com a VISÃO sobre o movimento.
Cauteloso, começou por explicar que TEM PERCORRIDO
“os encontros são reuniões presen-
ciais, que incluem ações formativas, O PAÍS EM BUSCA
desenvolvidas por mim, direcionadas
para a sociedade civil, com uma ver- DE MILITANTES.
tente teórica e prática”. “Durante oito
horas, através de uma carga intensiva, PARA 2 E 3
física e psicológica, é possível capacitar
qualquer pessoa para a luta”, garantiu. DE OUTUBRO
Mas, afinal, que luta é essa? “Existe
muita energia acumulada. A pressão ESTÁ AGENDADO
UM ENCONTRO
que tem surgido nas ruas já é sinal
do nosso trabalho. No fundo, isto é o
culminar de um ciclo, onde passamos
a ações mais concretas, mais assertivas, NACIONAL,
EM OEIRAS
que vão caracterizar-se, sobretudo,
pela desobediência civil. Estamos a

preparar as pessoas para isso. O que
vamos fazer... isso é o segredo”, diz, de
sorriso no rosto.
O ex-militar, de 57 anos, não es-
conde a raiva que o domina pelo rumo
que o País tem tomado nas últimas
décadas. E atira a vários alvos, num
discurso que enfia no mesmo saco
Presidente da República, Governo e
responsáveis pelo combate à pan-
demia: “Eu sou isento, não acredito
em partidos e políticos. Mas o que
hoje está a acontecer é que não pode
ser... Não sou negacionista, mas cedo
percebi que alguma coisa não estava
a soar bem... Os atuais governantes
estão a destruir o País, a colocar em
causa o futuro da nação, das famílias,
das crianças... E, neste momento,
acredito que é preciso um regime
diferente, porque não acredito na
democracia tal como ela existe. Para
mim, isto não é uma democracia. A
revolução do 25 de Abril foi uma gran-
de manobra militar, mas, depois, os
militares falharam quando decidiram
entregar a nação a inimigos. É por isso
que estamos aqui. Tentamos chamar
a atenção para o que se está a passar
no País, acreditamos ter a solução, e
vamos lutar por isso. Estamos dispos-
tos a ir até ao fim, mas tudo depende
do Governo. Se nos ouvirem, muito
bem; mas se não quiserem fazê-lo, te-
remos de nos fazer ouvir. E essa parte,
como tudo vai acontecer, para já, só
SIS e PJ atentos
às movimentações
O apelo à ação nos bastidores dos
movimentos antissistema mereceu
resposta imediata
LEI E ORDEM
A mudança de estratégia dos
movimentos antissistema está a ser
levada muito a sério pelas forças
de polícia e segurança: a Unidade
Nacional Contraterrorismo (UNCT)
da Polícia Judiciária e o Serviço de
Informações de Segurança (SIS) já
estão no terreno. Nas últimas duas
semanas, as autoridades tiveram
a oportunidade de monitorizar e
classificar as atividades de pessoas
e grupos identificados como uma
eventual ameaça à ordem pública,
sinalizando os principais líderes.
O ataque contra Ferro Rodrigues
fez soar os alarmes. As próximas
manifestações vão servir para sentir o
pulso aos reais níveis de agressividade
– a gerar maior preocupação,
até pelo histórico recente, está a
possibilidade de o Conselho Superior
da Magistratura poder decidir pela
expulsão da magistratura do juiz Rui
Fonseca e Castro, na primeira semana
de outubro, situação com potencial
para gerar forte perturbação da ordem
pública.
sabe quem faz parte do nosso grupo.
Este é o último aviso, não queremos
violência... Mas existe um limite. E,
se for preciso, fazemos mesmo uma
revolução. Por mim, estou disposto
a ir até ao fim. E, para mim, ir até ao
fim é ir até à morte.”
O fundamentalismo torna-se cada
vez mais palpável, à medida que a
conversa prossegue. Perante o aler-
ta, tentamos compreender melhor
as posições políticas de um homem
que se diz admirador de Francisco Sá
Carneiro, mas que identifica a trilogia
Deus, Pátria e Família – utilizada pela
ditadura do Estado Novo – como so-
lução para o presente. “Acredito que
permitiria mitigar muitos dos proble-
mas que vivemos”, completa.
Desfiamos o novelo, questionando
se, atualmente, existe algum político
português em que se revê ou que
apoiaria. “É difícil. Precisamos de um
líder que nos comande, isento, que
não esteja lá só para agradar. Um líder
que, em primeira instância, deve ser
nomeado, e não eleito. Quem? Neste
momento, há pessoas com poten-
cial, margem de crescimento, para se
tornarem bons líderes. Pedro Passos
Coelho esteve perto, mas faltou-lhe
fibra, vacilou em algumas ocasiões,
perdeu assertividade. O André Ventu-
ra tem potencial. Tem uma chama de
querer mudar, mas precisa de alinhar-
-se, de sair do sistema, de se descolar
do sistema político e apresentar-se
para liderar um projeto de forma pura,
com os princípios e valores que tem. É
preciso ousar, focar, fazer! Dar tudo!
Demora-se mais tempo para chegar
à liderança, mas é preciso dar esse
passo”, conclui.
Luís Freire Filipe está convicto de
que deu precisamente “esse passo”.
A sua aposta teve, de facto, conse-
quências – um ponto sem retorno
que varreu, de cima a baixo, a sua
vida pessoal: “Já não tenho nada. Perdi
tudo o que tinha pela causa. O carro, a
casa... e agora até a família”, confessa.
Acampando à porta da AR, acom-
panhado pelo grupo Santo António
de Lisboa, de Ana Desirat e Sónia
Pritham – pelo menos até ao próximo
domingo, dia das eleições autárquicas,
para quando está prevista nova ma-
nifestação que vai apelar à abstenção
–, o líder da Resistência Portuguesa
relata que “alguns seguidores têm
contribuído com donativos para o
grupo”, mas que os mesmos são, para
já, “insuficientes”. O grupo adquiriu
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 41
 um gerador, rádios de comunicação
e até um pequeno palco. Comprar
uma carrinha é a próxima meta – ao
volante estará este homem. O destino
final ainda ninguém o conhece.

REDES SOCIAIS: CAMPO MINADO

O advento dos movimentos antissis-
tema teve origem nas redes sociais,
que, ainda hoje, são terreno fértil para
recrutar novos militantes. O problema
parece não ter solução à vista. O Re-

GETTY
latório Anual de Segurança Interna

Obscurantismo pela Europa

(RASI), referente a 2020, publicado
em março deste ano, já alertava para o
fenómeno, e para um aproveitamento
da situação pela extrema-direita (em
ascensão): “Em relação aos movimentos
Os movimentos antissistema na Europa continuam a usar a pandemia que atuam na órbita do extremismo
para mobilizarem ações que visam criar perturbação social e política. político (...) o confinamento social im-
A extrema-direita na Alemanha e em França aproveita para recrutar e crescer
posto pela crise pandémica aumentou
o tempo da exposição da sociedade
em geral, e dos jovens em particular,
À boleia da pandemia, 150 contas e páginas pelas forças policiais. ao meio online e abriu um leque de
os movimentos ligadas a ativistas Em França, o cenário não oportunidades para que os movimentos
antissistema têm negacionistas, ao abrigo é muito diferente. Num tradicionais de extrema-direita disse-
conquistado terreno em de uma nova política país em que os protestos minassem conteúdos de propaganda e
países como Alemanha, que visa prevenir a de rua fazem escola, de desinformação digital, com vista a
França ou Países Baixos. “perturbação social as manifestações dos aumentar as suas bases sociais de apoio,
Os protestos e apelos coordenada”. Sob a mira movimentos antissistema a galvanizar os sentimentos antissiste-
à ação têm aumentado das autoridades está têm apontado ao ma e a reforçar a radicalização de base
de volume nos canais o movimento radical certificado de vacinação xenófoba, recorrendo a um discurso
dedicados à produção e Querdenken 711, nascido exigido pelo governo. apelativo da violência e do ódio, num
à divulgação de teorias em Estugarda (711 é No passado dia 16, o momento em que a sociedade portu-
da conspiração, que o prefixo telefónico da executivo de Emmanuel guesa é, também, confrontada com
ganharam vida – e braços região), mas que, ao Macron enfrentou o fenómenos de polarização ideológica
longos – em redes longo dos últimos meses, embaraço de, pela voz do (...) também se aproximaram de mo-
sociais como Facebook, conseguiu espalhar seu ministro da Saúde, vimentos sociais inorgânicos, nomea-
Instagram ou Telegram. a sua mensagem por Olivier Véran, anunciar
damente dos grupos negacionistas da
A crescente adesão a todo o país. O grupo a suspensão, sem
pandemia.”
estes grupos tem-se inorgânico começou vencimento, de cerca de
feito sentir nas mais por reunir ativistas três mil profissionais de
À VISÃO, Gustavo Cardoso, profes-
recentes manifestações. anticonfinamento, saúde que continuam a sor catedrático no Instituto Superior
Convocadas por antimáscaras, recusar tomar a vacina de Ciências do Trabalho e da Empre-
movimentos antivacinas e adeptos contra a Covid-19. Numa sa – Instituto Universitário de Lisboa
antissistema, com das teorias da altura em que as forças (ISCTE-IUL), diretor do Observatório
ligações à extrema- conspiração, mas da extrema-direita da Comunicação (OberCom) e coorde-
direita, as ações que radicalizou-se, e através francesa, liderada por nador do MediaLab do ISCTE, recorda
contestam as medidas de um discurso de ódio e Marine Le Pen, procuram que “as redes sociais sempre tiveram
de contenção da incitamento à violência reencontrar o seu uma dupla função de comunicação e
pandemia e os processos passou a atrair militantes espaço político, depois organização, que permite conciliar a
de vacinação têm de extrema-direita. O dos últimos desaires nossa vida pessoal e profissional, en-
conseguido encher, com episódio mais tenso eleitorais nas regionais quanto nos aproximamos de pessoas
dezenas de milhares de (e grave) ocorreu num de junho passado, mais parecidas connosco – sejam elas
pessoas, as ruas das protesto realizado a apontando agora às familiares, amigos ou colegas de tra-
principais cidades destes 30 de agosto, quando presidenciais de 2022, o balho”. “É um espaço que assegura
países. uma turba de radicais, discurso contracorrente condições para a criação de grupos
Na Alemanha, os níveis alguns com bandeiras torna-se, neste com interesses comuns, constituídos
de alerta estão no do Terceiro Reich – momento, o principal por pessoas que não se conhecem pes-
máximo. Em vésperas nome dado à Alemanha aliado do extremismo,
soalmente, mas que pensam da mesma
das eleições legislativas, nazi – tentou invadir o representando um
maneira. E isso pode ter utilizações
marcadas para o próximo Bundestag, o parlamento verdadeiro teste às
alemão, tendo sido estruturas democráticas
positivas e negativas. É este o ponto de
domingo, o Facebook
decidiu remover quase repelidos com violência europeias. partida do problema de que estamos a
falar”, afirma.

42 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

LUSA
Mas quem são, afinal, estas pessoas
que usam a internet para defenderem,
com unhas e dentes, as mais extraordi-
nárias teorias da conspiração, rejeitan-
do as evidências científicas? “Há uma
regra não escrita, aplicada à comunica-
ção na internet, que nos indica que, no
universo da desinformação e das notí-
cias falsas, 1% das pessoas são respon-
sáveis pela criação dos movimentos, 9%
pela transmissão de conteúdos e 90%
por os divulgarem através de partilhas”,
afirma Gustavo Cardoso. Embora cada
pensamento contracorrente tenha as
suas próprias motivações, o académico
conclui que “estas pessoas não aceitam
a existência da pandemia ou a sua gra-
vidade, porque aceitar a realidade, tal
como ela é, colocaria em causa alguma
coisa que lhes é importante, da vida
pessoal ou profissional de cada um”.
“Isso significa coisas diferentes, para
pessoas diferentes. O negacionismo,
no fundo, pode ser visto como uma
defesa face à pandemia. Importante
é compreender isto: os negacionistas
não são o mal encarnado, mas pessoas
como as outras, que, sobre esta questão,
têm uma posição diferente da maioria.
Se violarem a lei, têm de ser tratadas
como todas as outras pessoas que
violem a lei, mas, para ‘combatê-las’,
basta tentar que elas vejam a realidade
Alvos Os negacionistas já de uma forma mais saudável, para elas
escolheram os “inimigos”. e para o todo da sociedade”, acrescenta.
Secretas e polícias estão atentos Um relatório publicado no início
às últimas movimentações deste ano, pela revista médica britânica
The Lancet, concluía que, atualmen-
te, 31 milhões de pessoas em todo o
mundo seguem grupos antivacina no
Facebook e que há 17 milhões de pes-
soas que subscrevem canais no You-
Tube com a mesma temática. O artigo
acrescentava ainda que os conteúdos
das pessoas e dos grupos de notícias
falsas valiam algo, à época, como mil
milhões de dólares de receita anual para
as empresas que detêm as principais
A COLIGAÇÃO redes sociais. Face aos lucros, Facebook
e outras plataformas têm sido brandas
ALIANÇA LUSA – o que também constitui um problema
de difícil resolução.
QUER DINAMIZAR Gustavo Cardoso admite que “não
há uma solução única para este pro-
OS MOVIMENTOS blema”, mas que nos resta “enfrentar
os desafios que se nos colocam, pro-
ANTISSISTEMA, curando, a seu tempo resolver cada um
deles”. “Estas coisas não se vão resol-
TRAZENDO MAIS ver pelo exercício da proibição ou da
violência pelo Estado. Não podemos
ATIVISTAS DE desesperar e, sobretudo, não podemos
ser ingénuos. Os problemas nas redes
TECLADO PARA sociais não se esgotam no negacio-
nismo. Já houve outros e, certamente,
AS RUAS DO PAÍS
quando este passar, outro novo vai
surgir”, conclui. visao@visao.pt
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 43
 Q
Não abrem telejornais nem farão
mossa nas contas finais – mas
não faltam candidatos ilustres
desconhecidos que se destacam
pelo insólito. Cinco casos de
norte a sul
J O Ã O A M A R A L S A N T O S , M I G U E L C A R VA L H O
E R I TA R AT O N U N E S

Quem são os ilustres desconhecidos

que, de quatro em quatro anos, des-
pontam em pitorescos cartazes por
todo o País? A VISÃO traça o retrato
(quase…) aleatório de cinco candidatos
autárquicos que, por um ou por outro
motivo, se têm revelado fora da caixa.
Conheça as histórias do “Chalana”
do Porto, um trunfo na campanha de
Ilda Figueiredo, da CDU. Ou, numa
freguesia da capital, o jovem inde-
pendente de 20 anos que já é motivo
de todas as conversas, nas esplanadas
locais. Observemos, em Braga, o de-
sempenho da já famosa “Jenny”, que,
no Chega, antes de ser já o era. Mais
a sul, em Óbidos, terra do festival do
chocolate, visitemos o candidato que
adoça o paladar do eleitorado identifi-
cando-se, em outdoors, como marido
de fulana ou professor de sicrana. E,
no extremo sul, em Portimão, tes-
temunhemos como o político que,
apertado pela PJ, mastigou, um dia,
um papel comprometedor, tenta re-
lançar-se, agora, com o apoio de ou-
tras forças partidárias. Apresentamos
os nossos tesourinhos.

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 45

A U TÁ R Q U I C A S 2 0 2 1
PORTO
“CHALANA”,
O TODO-O-TERRENO DA CDU
Bairro de Francos. Estamos longe de
Campanhã, território de “Chalana”,
nome de guerra do popular assis-
tente social do Porto, José António
Pinto. Para o número dois da CDU à
câmara, 56 anos, a cidade é líquida, e
ele habituou-se a navegá-la sem olhar
a obstáculos e fronteiras. Em todo o
lado, encontra um rosto conhecido,
almas renascidas. Sabe de cor o nome
de filhos, as doenças e agruras vividas
na sua geografia de intervenção, “mi-
nha querida” para lá, “meu querido”
para cá. “O padre Mário, da Lixa, en-
sinou-me que não é preciso acreditar
em Deus. Basta ser o embaixador dele
por cá.” Tal como o Casimiro, imor-
talizado por Sérgio Godinho, é fino
de ouvido e tem as orelhas equipadas
com radar. “Sou candidato à câmara”,
apresenta-se, descontraído, calças de
ganga e camisa azul, sempre com uma
piada de algibeira. “A cabeça de lista
é a minha camarada Ilda Figueiredo,
que tem muita pedalada, mas eu sou
muito mais bonito.”
O grupo com as bandeirinhas da
CDU avança no contacto com mora-
dores. Ele fica para trás, a saudar gente
debruçada à janela: “Aí dentro está
melhor? Agradeça à Ilda. Mas agora é
preciso eleger-me vereador”, diz, para
a seguir se meter com a pequenada
que joga à bola na rua. “Se querem ir
para o Dragon Force, têm de votar na
CDU”, brinca. Na verdade, “Chalana”
nem sabe como a bola pincha: a ironia
e a alcunha colaram-se-lhe precisa-
mente por ser uma irrelevância fute-
bolística, mesmo a jogar matraquilhos.
Dele se diz que não encaixa na mol-
dura dos candidatos comunistas. Vai-
doso da lealdade ao partido e afinado
ideologicamente, assume um lado
indomável, “fora da caixa”, razões pe-
las quais gera admiração, respeito e
paixões assolapadas. O BE namora-o.
“Muitíssimo”, palavras dele. Mas quem
o conhece sabe que não trai o “rancho
folclórico”, nome pelo qual se refere ao
PCP. Gasta dias e noites a esgravatar os
buracos do sistema para salvar gente
das traseiras da cidade e, por vezes, de
si própria. Trata prostitutas, drogados
e sem-abrigo como parentes pobres
do mesmo sistema que, em tempos,
idolatrou um Ricardo Salgado. “O meu
capital é outro.” Palhaço em contexto
46 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
LUCÍLIA MONTEIRO
CDU
O HOMEM DOS CASOS
PERDIDOS
José António Pinto
“Chalana”, o comunista
indomável que o BE
namora… “muitíssimo”
hospitalar, é ainda vocalista da banda
de música Troika de Atães. O Dicio-
nário da Invisibilidade (SOS Racismo)
inclui-o entre aqueles que se levan-
tam, lutam e morrem pelos outros,
em todas as épocas, mesmo quando
silenciados ou esquecidos. “Os casos
perdidos, quero-os para mim”, assu-
me. “É um trabalho de recauchutagem
e à peça, mas como não há políticas
públicas sérias para os excluídos, é o
que temos.” Se a frustração se instala,
a guitarra Alhambra 6P ou as curvas a
160 numa Suzuki 500 ajudam a rela-
tivizar. “O poder não me dá felicidade.
Se for eleito vereador, o mais impor-
tante será a legitimidade.” Quer usá-la
para bater o pé, sacudir os instalados,
sobressaltar a cidade. Ilda Figueiredo
graceja: “Já lhe passei as credenciais de
vice-presidente.”
ÓBIDOS
O MARIDO DA LARA
– Sabe quem é a Lara?
– A Lara, sei. A si é que não o co-
nheço de lado nenhum.
Quase escapou o voto do minimer-
cado da Odília, na freguesia de Olho
Marinho, ao candidato do PS à câmara
de Óbidos – Paulo Gonçalves, 55 anos,
ou, como é mais conhecido, “o marido
da Lara”. Lara é socióloga, assistente
social, mas mais importante: é filha da
terra. No entanto, desta feita, o casa-
mento – que lhe vinha abençoando a
campanha desde o coreto, onde co-
meçou a arruada pela freguesia, com
pouco mais de mil habitantes – não o
salvou. No minimercado, valeram ao
leiriense os 15 anos que já leva a dar
aulas de Educação Física na Escola
Josefa de Óbidos. E ficou assim por
testar o slogan que completa a tri-
logia dos cartazes da sua campanha.
Pois, nos outdoors do concelho, Paulo
Gonçalves “é o marido da Lara”, “é o
professor da Mariana” e “é o treinador
dos Félix e dos Malaquias [equipa de
badminton]”.
“Podia ter feito um cartaz a dizer
que sou o vereador Paulo Gonçalves”,
explica à VISÃO. “Mas ninguém me
conhece assim. Quis apresentar-me
com as características pelas quais as
pessoas me conhecem. Podia ter es-
crito que seria um presidente capaz,
rigoroso, dinâmico, mas as pessoas é
que têm de avaliar se tenho sido bom
ou mau professor, treinador e marido.
Pareceu-me eficaz para me apresentar,
antes da divulgação do programa.”
Chegou a vez de o independente
que encabeça a lista socialista a Óbi-
dos falar sobre os apoios que tenciona
dar às escolas; os programas para a
juventude; o transporte para levar os
idosos a consultas e ao centro his-
tórico, onde, para Paulo Gonçalves,
também “é preciso apostar num tu-
rismo mais sustentável” em vez das
“excursões de turistas que passam
uma hora dentro do castelo”. Mas, ao
contrário do que o candidato previa,
a estrela da campanha continua a ser
a sua mulher, que o secretário-geral
adjunto do PS, José Luís Carneiro,
fez questão de conhecer, quando foi a
Óbidos mostrar o apoio do partido. E
até telefonou a António Costa só para
dizer que estava a conhecer “a Lara”.
Será este o segredo para o PS con-
quistar o bastião social-democrata?
Há duas décadas à frente da autar-
quia, o PSD escolheu Filipe Daniel, o
presidente da concelhia laranja, para
dar continuidade ao legado. E Paulo
Gonçalves vê na mudança de candi-
dato uma oportunidade para tornar
o concelho cor-de-rosa. “Não se es-

queça de ir votar no domingo”, pede,
porta a porta, pelas ruas do concelho.
“Isso paga-se?”, perguntam-lhe. “Não,
é só aparecer.”
BRAGA
“JENNY” CHEGA
ANTES DO CHEGA
Durante dias, Eugénia Santos, conhe-
cida por “Jenny”, ignorou as investidas
da VISÃO. “O André Ventura disse-me
para não vos dar entrevista, pois vo-
cês têm feito muito mal ao partido”,
justificou, quando, por fim, atendeu o
telemóvel, na manhã de sexta, 17. Dez
minutos pelas ruas de Braga com a
sua comitiva de campanha bastaram
para que a candidata à presidência da
A IRONIA E A ALCUNHA COLARAM-SE
A “CHALANA”, PRECISAMENTE POR SER
UMA IRRELEVÂNCIA FUTEBOLÍSTICA –
MESMO A JOGAR MATRAQUILHOS
câmara baixasse a guarda. “Se o Chega
fosse extremista, eu não estava aqui. É
preciso desmistificar isso. Será que a
sociedade andou, estes anos todos, a
conviver com fascistas e não sabia?!”,
ironiza a personal trainer, 46 anos,
após posar com duas ciganas. “Não é
só para a fotografia”, adverte. “Tenho
apoio de amigos ciganos, e até pro-
meteram dedicar-me uma música.
Sou de direita, mas não sou racista
nem xenófoba. E já era Chega antes
do Chega.”
Crucifixo na orelha, blusa às flores,
bolsa da Bimba Y Lola a tiracolo, pan-
fletos nas mãos, “Jenny” revelou-se
tímida no contacto com o comércio
local. Não é a sua praia, admite. Mas
guarda outras facetas. “Cresci entre
homens, mas nunca me intimidei,
ANA BRIGIDA
PS
ANTÓNIO COSTA QUER
CONHECER A LARA
Paulo Gonçalves
quis apresentar-se
pelas características
“por que
é conhecido”
sempre mostrei o que valia”, reage a
ex-preparadora física da equipa de fu-
tebol sénior do Merelinense. Dona de
um ginásio, filha do angolano, médico
e ex-comando Fernando “Valongo”,
antigo jogador de FC Porto, Boavista
e Salernitana (Itália), “Jenny”, formada
em Humanidades, vê-se vereadora
do Desporto e Ação Social. “Mas luto
por mais.” Outrora independente em
listas do PS, votou no atual presiden-
te, Ricardo Rio (PSD), em 2017. “Uma
desilusão.”
A sua candidatura é, em parte,
consequência do triunfo católico na
luta de fações religiosas que agitou o
Chega em Braga. “Setores evangélicos
quiseram tomar conta do partido”,
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 47
A U TÁ R Q U I C A S 2 0 2 1
O MAIS JOVEM DOS CANDIDATOS
A FREGUESIAS ANDA POR ONDE
A CAMPANHA NÃO ENTRA. E AS SUAS
DENÚNCIAS, NAS REDES SOCIAIS,
JÁ OBRIGARAM A CÂMARA A INTERVIR...
justifica. Num ato simbólico, oposito-
res internos invadiram a apresentação
das listas e devolveram os cartões de
militante, acusando a distrital de “xe-
nofobia” por causa de ataques a uma
ex-dirigente de nacionalidade brasi-
leira. Seguiu-se outro desconforto:
o ex-companheiro e o cunhado de
“Jenny” foram detidos por alegadas
ligações a uma rede de tráfico de ar-
mas de guerra. Nada a abateu e “nada
a liga aos factos”, garante fonte da PJ.
“Separei-me há seis anos e a minha
linha vermelha são os meus filhos.” A
confirmar-se o crime, ela não olha a
laços de família: pede uma sentença
“pesada e sem clemência”, à boa ma-
neira da retórica penal do Chega.
LUCÍLIA MONTEIRO
CHEGA
VENHAM A MIM
OS CIGANOS?...
Eugénia Santos,
“Jenny”, foi avisada
para desconfiar da
VISÃO...
48 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
Crismada pelo cónego Melo, con-
troversa figura da contrarrevolução
no “Verão Quente” de 1975, a can-
didata já garantiu, entretanto, uma
bênção inesperada: a noite eleitoral
de Ventura será em Braga, no Sameiro.
“Sentiu-se bem tratado aqui e quis
descentralizar.” Quanto a resultados,
nem “Jenny” lhe promete o céu.
BEATO, LISBOA
O CANDIDATO QUE TAMBÉM
PRECISA DE UMA CASA
Isabel tomava café com a mãe, e os
filhos comiam cada um o seu pastel
de nata, numa esplanada do bairro
Madre de Deus, no Beato, Lisboa,
quando a campanha de Hugo Varan-
da, 20 anos, passa a ser o assunto em
todas as mesas. A mãe, também Isabel,
apressa-se a chamar o candidato in-
dependente à junta de freguesia pelo
movimento “Novo Beato” e fala-lhe da
situação da filha, desempregada, com
dois filhos, sem casa própria e sem
conseguir uma resposta da Gebalis
(empresa que gere a habitação social
em Lisboa). Ato reflexo, Hugo Varan-
da entrega o seu telemóvel a Isabel e
pede-lhe que coloque ali o contacto
da família. “Eu não me vou esquecer
disso. Vou ajudá-la.”
Já a virar para a rua seguinte, con-
frontamo-lo com o realismo das pro-
messas que fez à volta da mesa, mas
Hugo Varanda mostra-se irredutível.
“Toda a gente tem de ter uma casa. A
atual junta não faz o suficiente, não
faz a ponte entre as pessoas que pre-
cisam e a Gebalis. Nós vamos fazer.
Vamos mesmo, porque eu sei o que
ela está a passar.” E, a seguir, desfaz
o mistério: há cinco anos, Hugo e a
mãe pediram ajuda à Gebalis e não a
receberam. Vivem no bairro social da
Quinta dos Ourives, com 430 euros,
em casa do avô (que chegou a ser mo-
torista de Manuela Ramalho Eanes). A
mãe dorme no sofá; ele e o avô num
MOVIMENTO
“PORTIMÃO MAIS FELIZ”
O PAPEL? QUAL PAPEL?
Luís Carito,
ex-autarca socialista,
tenta libertar-se do
episódio do papel:
“Passei-me da cabeça,
mas é falso que o tenha
engolido. Consta do
processo”
quarto. Move-o quebrar um ciclo de
pobreza: é por isso que se candidata e
que recebe, na rua, o incentivo de to-
dos quantos se cruzam com ele e não
parecem notar a idade do candidato
mais novo por movimentos indepen-
dentes, nestas autárquicas.
Apesar de ainda estar no segundo
ano de Arqueologia na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa,
experiência na política até tem: foi
militante do Partido Socialista duran-
te três anos e, depois, presidente da
Juventude Popular Monárquica, par-
tido pelo qual foi eleito deputado na
Assembleia de Freguesia de Paderne
(Melgaço), terra dos avós, nas eleições
anteriores.
De blazer preto e gravata vermelha
– só para a ocasião, para não passar
por menos do que é –, Hugo Varanda
palmilha a freguesia de uma ponta a
outra, acompanhado pela mãe, por
 BRUNO FILIPE PIRES
um amigo e pelo seu número dois,
Lourenço Gomes, 35 anos, professor
de Inglês. Provocam estranheza em
sítios onde as campanhas não vão. Na
Picheleira, nem rasto há de cartazes
dos candidatos à câmara Fernando
Medina ou Carlos Moedas. Só o “Novo
Beato” entra aqui. Hugo Varanda con-
forta um idoso surdo; promete hortas;
diz boa-tarde a quem lhe vira a cara,
à entrada das garagens, no bairro
conhecido pela droga; aponta para as
seringas no chão e pede a Lourenço
para tirar uma fotografia. Foi assim
que “obrigaram”, dizem, a autarquia
a vir tapar um buraco na estrada, de-
pois de terem divulgado imagens nas
redes sociais. “Isto também é Lisboa”,
lembra Hugo Varanda.
PORTIMÃO
LUÍS CARITO: EX-PS TENTA
DIGERIR O EPISÓDIO DO PAPEL
“Bonito, bonito, é votar no Carito!”
O refrão da música de campanha,
cantado a uma só voz, vindo de
um mar de bandeiras rosa suave,
às voltas pela Praça 1º de Maio, a
distribuir panfletos por quem passa
regressando do trabalho, fica no
ouvido logo à primeira. Luís Carito
puxa pelo volume no meio da ar-
ruada da coligação “Portimão Mais
Feliz”, decidido a abafar nas me-
mórias dos munícipes as polémicas
que, nos últimos oito anos, não lhe
deram descanso – destacando-se o
MOVIMENTO
“NOVO BEATO”
JÁ FEZ A CML TAPAR
UM BURACO
Hugo Varanda
mora num bairro social,
estuda Arqueologia
e é o candidato
independente mais
jovem nestas eleições
célebre episódio do papel. Em 2013,
o ex-deputado e autarca socialista
“comeu” metade de uma folha A4,
que tirou das mãos de um inspetor
da PJ, quando decorriam buscas em
sua casa. “Estou farto de contar essa
história, mas posso voltar a fazê-lo”,
diz à VISÃO. Sim, por favor. “A bri-
gada da PJ bateu-me à porta às 7h.
Foi sempre agressiva e provocatória
e, passadas quatro horas de buscas,
‘passei-me da cabeça’ e respondi
daquela forma. Mas atenção: não
cheguei a comer o papel, apenas fin-
gi fazê-lo. Amarrotei-o e guardei-o
na mão. Aliás, o papel está fotogra-
fado e faz parte do processo.”
Luís Carito seria absolvido pelo
tribunal de todas as acusações, no
início do ano passado, mas o momen-
to colou-se-lhe à pele. Hoje, diz-se
“constantemente confrontado com
situações de insulto e difamação”
LUÍS BARRA
por parte dos seus adversários. “Na
política, não vale tudo! Na política,
não pode valer tudo. Os assassinatos
de caráter também são um ato cri-
minoso, que devem ser devidamente
penalizados em qualquer Estado de
direito”, afirma.
Porém, o “seu” PS virou-lhe as
costas – recandidatando a atual pre-
sidente, Isilda Gomes. E teve ainda
de enfrentar o veto ao seu nome dos
órgãos nacionais de PSD e Iniciativa
Liberal, já depois de ter acordado e
anunciado publicamente o apoio das
concelhias e distritais daqueles par-
tidos à sua candidatura.
Este socialista de coração e convic-
ção, ex-militante do PS (com ligação
de 40 anos ao partido), passou a con-
tar com o apoio de CDS-PP, Aliança e
Nós, Cidadãos. Mas, ao mesmo tempo,
pede que não se confundam as coisas:
“Esta não é uma candidatura de di-
reita, até porque 87% das pessoas são
independentes. Basta, aliás, olhar para
o nosso programa para logo se per-
ceber que não somos de direita, mas
muito mais de esquerda. É algo que
faz parte da minha estrutura mental.”
É desta forma que Luís Carito es-
pera regressar à câmara de Portimão,
em que foi vice-presidente na equipa
de Manuel Luz. “Estava tranquilo na
minha vida pessoal e profissional,
mas fui-me apercebendo do descon-
tentamento das pessoas. Resolvi dar
mais um contributo à cidade e estou
convicto de que vou ganhar estas elei-
ções”, remata. visao@visao.pt
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 49
A U TÁ R Q U I C A S 2 0 2 1

AS CÂMARAS ONDE
TUDO SE JOGA
50 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

O cálculo às
vitórias e às derrotas
no domingo não se fará somente
quanto ao número de autarquias ganhas,
mas também ao peso político
e ao simbolismo do mapa conquistado por
cada partido. O produto dessa conta pode
ditar a continuidade ou a saída de cena de
atores políticos. Há cerca de 50 municípios
que irão revelar se as estratégias adotadas
foram as mais acertadas
NUNO MIGUEL ROPIO
H
Há anos que todas as forças políticas
fazem questão de salientar o quanto as
votações nas autárquicas são o resul-
tado de dinâmicas locais e da aposta
certa nos candidatos de proximidade,
dissociando qualquer desaire nas ur-
nas do que possa ser o percurso dos
respetivos líderes partidários. Porém,
um primeiro-ministro, de seu nome
António Guterres, já atirou a toalha
ao chão, perante um revés do PS nas
eleições para o poder local há 20 anos;
e um presidente do PSD, Pedro Passos
Coelho, demitiu-se na senda do pior
resultado de sempre do partido, há
quatro anos. A verdade é que muito
está em jogo no xadrez das autárqui-
cas do próximo domingo – desde as
sobrevivências políticas de determina-
dos dirigentes partidários, para quem
este sufrágio pode servir de último fô-
lego para abafar a contestação interna,
até à necessidade de algumas forças
provarem que conseguem transpor
para as autárquicas os resultados obti-
dos em eleições legislativas. E a prova
disso foi a agenda dos líderes parti-
dários, que percorreram dezenas de
ações de campanha nas últimas duas
semanas, com o secretário-geral so-
cialista, António Costa, a destacar-se
pela forte presença no terreno.
São cerca de meia centena de mu-
nicípios, dos 308 existentes, que di-
tarão as expressões e as reações nos
locais onde os partidos irão montar os
seus quartéis-generais na noite elei-
toral, mas também o futuro político
de muitos; além do eventual reforço
dos movimentos de cidadãos. Por um
lado, há mais de três dezenas de câ-
maras onde os atuais autarcas termi-
nam o seu terceiro e último mandato,
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 51
A U TÁ R Q U I C A S 2 0 2 1
abrindo-se a incógnita de se quem os
sucederá venha a ser da mesma cor
política – e esse dado é importante na
contagem final de quem ganhou mais
autarquias. Nesse lote, terão sobre
elas os holofotes no domingo à noite
câmaras como a de Viana do Castelo,
atualmente do PS, a de Espinho, nas
mãos do PSD, a de Setúbal, que fica
sem uma emblemática autarca do PCP,
e a de Ponte de Lima, onde há atuais
e ex-centristas a lutarem pelo legado
de um presidente do CDS.
Por outro lado, em quase uma de-
zena de câmaras, com enorme peso
e simbolismo no mapa autárquico,
o prognóstico sobre os resultados é
um exercício difícil de fechar, tendo
em conta o tipo de cenários que estão
em disputa. Tratam-se maioritaria-
mente de autarquias socialistas, que
o PS precisa de manter pelo prestígio
que lhes está associado. É o caso de
Coimbra, cujo atual presidente e re-
candidato, Manuel Machado, é o líder
da Associação Nacional de Municípios,
ou do Funchal, a antiga capital “jardi-
nista” que o PSD e o CDS querem re-
cuperar. Mas porque também servirão
de teste à governação socialista dos
últimos quatro anos, após boa parte
delas ter sido gerida durante anos
por uma CDU que agora quer res-
gatá-las através de antigos autarcas,
principalmente em Almada, Barreiro e
Alcochete. Já em Moura, a dúvida não
é se o PS consegue manter na mão o
antigo município comunista, mas se
o Chega – que teve ali o seu melhor
resultado nas legislativas e candidata o
seu líder, André Ventura, à Assembleia
Municipal – estraga os planos à CDU.
Um cenário que não atemoriza o
PS, tendo em conta alegados estudos
sobre as intenções de voto em alguns
daqueles concelhos. “Os nossos obje-
tivos eleitorais são claros: ter a maioria
das câmaras e das juntas de freguesia.
E, como tal, a presidência da Associa-
ção Nacional de Municípios Portu-
gueses e da Associação Nacional de
Freguesias”, disse, à VISÃO, José Luís
Carneiro, secretário-geral adjunto do
PS, que assegura que, quanto a câma-
ras como as de Almada ou do Barrei-
ro, há “indicadores objetivos que dão
uma vitória, relativamente folgada”
aos socialistas. Até porque, realça, “a
campanha tem corrido muitíssimo
bem e, mesmo com as limitações
pandémicas, temos tido uma forte
mobilização para as nossas iniciativas
e há um sentimento generalizado de
52 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
PS
METAS
Repetir feito de 2017, quando
conquistou o maior número de
sempre de câmaras, capitalizando a
“bazuca” e o combate à pandemia.
Segurar vários dos municípios
ganhos à CDU, entre os quais
Almada, Alcochete, Barreiro e
Moura.
RISCOS
Cenário de perda de Coimbra,
Figueira da Foz e Funchal, além de
uma vitória relativa em Lisboa.
PSD
METAS
A linha vermelha está no resultado
do PSD em 2017, que ditou a saída
de Passos. Reconquistar concelhos
na Madeira. Evitar que Moedas
tenha menos votos do que os do
CDS e PSD separados, há quatro
anos, em Lisboa.
RISCOS
Resultado abaixo de 98 câmaras
pode acabar com liderança de
Rio. Perda de votos para o Chega,
a norte, e para o PS, nas grandes
cidades.
PS DETÉM MAIOR NÚMERO DE
CÂMARAS EM QUE OS PRESIDENTES
CHEGARAM AO FIM DE MANDATO
E É O MAIS ACOSSADO PELA CDU,
PRINCIPALMENTE NA MARGEM SUL
reconhecimento pelo trabalho feito
pelo PS e por António Costa”.
É necessário ainda incluir os efeitos
dos grupos de cidadãos na equação,
principalmente depois de uma alte-
ração legislativa há alguns meses que
quase chegou a colocar em causa a
sobrevivência dos projetos políti-
cos independentes. Na Figueira da
Foz, o agora desvinculado do partido
Aliança, Pedro Santana Lopes, pode
arrancar a autarquia ao PS, dando
força a quem opta por não estar asso-
ciado a nenhum partido político. “As
expectativas são elevadas: os grupos
de cidadãos estão muito fortes, ao
contrário do que se esperava com a
alteração da lei. A própria Comissão
Nacional de Eleições sinaliza que não
houve diminuição dos movimen-
tos independentes”, defende Aurélio
Ferreira, presidente da Associação
Nacional dos Movimentos Autárqui-
cos Independentes e candidato pela
Marinha Grande, onde poderá tirar a
câmara ao PS, graças à união de dois
grupos de cidadãos que obtiveram
bons resultados em 2017.
CONTAS À DIREITA E À ESQUERDA
Neste teste às lideranças partidárias, é
nos núcleos duros de Rui Rio e Fran-
cisco Rodrigues dos Santos que se terá
de fazer mais contas. Para o presidente
do PSD, este sufrágio nacional – após
as derrotas nas europeias e nas legis-
lativas, e sem contar com as regionais
dos Açores, que levaram à constituição
de uma coligação de direita – é o ter-
ceiro exame à sua direção. E o próprio
admitiu, já esta semana, não se recan-
didatar em janeiro se os resultados
forem semelhantes aos de 2017 e que
levaram à demissão de Passos Coe-
lho. “O objetivo mantém-se: ganhar.
E ganhar não é ficar igual a 2017 ou
ser por poucochinho, como sinalizou
Rui Rio. Posso garantir que iremos
ter boas surpresas e há expectativas
de fazer melhor do que tínhamos
A “GUERRA DOS TRONOS” RESULTADOS EM 2017 (308 CÂMARAS)
PS 161*
PSD 98*
INDEPENDENTES 17
JPP 1
Há, pelo menos, dez autarquias onde os números serão alvo de forte escrutínio CDU 24 NÓS, CIDADÃOS 1
CDS 6 Abstenção 45,03%
na noite de domingo, tendo em conta a incógnita quanto aos resultados eleitorais,
* Sozinho e em coligações
motivada pela corrida de candidaturas independentes, disputas internas em partidos
e até o fator Chega. Além disso, em mais de três dezenas de municípios, os atuais presidentes IND
estão de saída, podendo abrir caminho a mudanças de cor no mapa autárquico PONTE DE LIMA
Vasco Ferraz (CDS) VS. Abel Baptista (Ind.)
PONTE
EMBATE ELEITORAL ACESO DE LIMA

Almada (PS) Funchal (PS) VIANA

Amadora (PS) Lisboa (PS) DO CASTELO VILA VERDE
Coimbra (PS) Moura (PS) BARCELOS
Évora (CDU) Ponte de Lima (CDS) CELORICO
DE BASTO
Figueira da Foz (PS) Vila Real de Santo António (PSD)
MESÃO FRIO
FUNCHAL CASTELO VILA NOVA
DE PAIVA DE FOZ CÔA
Miguel Silva Gouveia
(PS, BE, PAN, MPT, PDR e Nós, Cidadãos) ESPINHO MOIMENTA
DA BEIRA
VS. Pedro Calado (PSD)
PENEDONO
FUNCHAL
IND
FIGUEIRA DA FOZ
OLIVEIRA
Carlos Monteiro (PS) DO HOSPITAL
SANTA CRUZ
DA GRACIOSA VS. Santana Lopes (Ind.) PENACOVA
SEIA SABUGAL

FIGUEIRA GÓIS
DA FOZ
COIMBRA
MIRANDA PAMPILHOSA
DO CORVO DA SERRA
LAJES DO PICO COIMBRA
Manuel Machado (PS) VS. SERTÃ

VILA José Manuel Silva FERREIRA

DO PORTO (PSD, CDS, Nós Cidadãos, DO ZÊZERE
PPM, Aliança, RIR e Volt) ÉVORA
ALCANENA Carlos Pinto de Sá (CDU)
ALCOBAÇA VS. José Calixto (PS)
CÂMARAS EM QUE AUTARCAS ALPIARÇA
NÃO SE RECANDIDATAM ARRONCHES
POR LIMITE DE MANDATOS AMADORA
Carla Tavares (PS) VS.
PS PSD Suzana Garcia MORA
Alcanena Alcobaça (PSD, CDS-PP, AMADORA
Aliança, MPT, PDR) LISBOA
Aljustrel Arronches REGUENGOS
Barcelos Celorico de Basto ALMADA DE MONSARAZ
Castelo de Paiva Espinho SETÚBAL
ÉVORA
Góis Ferreira do Zêzere
Lajes do Pico Monchique MOURA
VIANA DO ALENTEJO
Mértola Pampilhosa da Serra Álvaro Azedo (PS)
ALMADA
Mesão Frio Penedono MOURA
VS. André Linhas
Inês de Medeiros (PS) VS.
Miranda do Corvo Sabugal Roxas (CDU)
Maria das Dores Meira (CDU)
Moimenta da Beira Sertã ALJUSTREL VS. Cidália Figueira
Odemira Vila do Porto (Chega)
Oliveira do Hospital Vila Nova de Foz Côa
Penacova Vila Verde MÉRTOLA
ODEMIRA
Reguengos de Monsaraz LISBOA
Santa Cruz da Graciosa CDU Fernando Medina
Seia Alpiarça (PS, Livre, Cidadãos Por Lisboa) VS. VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO
Viana do Alentejo Mora Carlos Moedas´ MONCHIQUE
Luís Gomes (PSD)
Viana do Castelo Setúbal (PSD, CDS, PPM, MPT e Aliança) VS. Álvaro Araújo (PS, Livre)
VILA REAL
AR/VISÃO DE SANTO ANTÓNIO
A U TÁ R Q U I C A S 2 0 2 1
PCP
METAS
Reconquistar velhos bastiões
comunistas, como Almada, de
modo que se evite igual desaire
de há quatro anos.
RISCOS
Efeito do Chega, no Alentejo,
e do PAN, nos centros urbanos.
CDS
METAS
Rodrigues dos Santos precisa de
melhorar os números de Assunção
Cristas, além de manter as seis
câmaras conquistadas em 2017.
RISCOS
Perda de Ponte de Lima, devido à
disputa interna. Ficar com menos
vereadores em Lisboa, onde está
coligado com o PSD.
BE
METAS
Aumentar peso em executivos
municipais em que o PS possa
ser poder, como em Lisboa, para
assumir pelouros. Evitar outra
descida em Salvaterra de Magos.
RISCOS
Manter-se residual no mapa
autárquico. Perda de votos na
Madeira e nos Açores. Subsistir
como afronta ao poder local
da CDU.
54 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
inicialmente pensado”, aponta José
Silvano, secretário-geral do PSD e
responsável pela estratégia autárquica,
que prevê resgatar para o partido três
capitais de distrito – Coimbra e Fun-
chal, presididas pelo PS, e Portalegre,
governada pela independente Adelaide PAN
Teixeira, que chegou a ser presidente
daquela câmara pelos sociais-demo- METAS
cratas quando o marido foi líder local Reforçar presença em assembleias
do partido. municipais e almejar a conquista
Já quanto ao presidente do CDS, de vereadores em coligações com o
as guerras no partido não se ficaram PS, como em Aveiro e em Cascais.
entre portas e saltaram para as autár-
quicas, ao ponto de em Ponte de Lima RISCOS
se dar o insólito de o partido ter um Falha na estratégia de nova líder
candidato a correr contra o prejuí- pode ditar querela interna. Fraca
zo causado por dois outros antigos votação fora dos centros urbanos.
dirigentes centristas, entre os quais
o ex-deputado Abel Baptista. Assim
como não lhe perdoarão os críticos
internos pela fórmula que delineou
para Lisboa e que deixou de fora quer
Assunção Cristas, que obteve um des-
tacado resultado na capital há quatro
anos, quer o líder da distrital, João
Gonçalves Pereira, considerado um
dos melhores ativos centristas. Fer-
CHEGA
nando Barbosa, que tem o dossiê das METAS
autárquicas nas mãos, contrapõe com Repetir valores semelhantes
a tese de que “o CDS vai crescer em às legislativas em alguns
número de autarcas e manterá Ponte concelhos, para conquistar
de Lima”. “Até digo mais: existe a forte vereações e a representação em
possibilidade de ganhar mais uma ou assembleias municipais.
duas câmaras além das que já temos.
As guerras internas são irrelevantes RISCOS
neste momento”, acrescenta. Porto e Lisboa serem um
À esquerda, o BE – que teve até desaire, apesar das apostas.
hoje uma única câmara, de 2001 a Resultado: provar que o partido é
só Ventura.
2013, à mercê de uma dissidência de
Ana Cristina Ribeiro, da CDU, em
Salvaterra de Magos – faz por ir além
dos mínimos para integrar o mapa
das autarquias e reforçar o peso em
alguns executivos municipais, como o
de Lisboa e o de Almada. No caso de
Salvaterra, a meta é não descer ainda
mais, já que em 2017 o regresso da-
quela que ficou conhecida por “Anita”
não conseguiu voltar a colocar nas INICIATIVA
mãos do Bloco a câmara ribatejana,
entretanto conquistada pelo PS. LIBERAL
Já para a CDU, que se bate taco a
taco no campeonato dos grandes par-
METAS
Mostrar que avançar sozinho
tidos do poder local, as metas passam em quase todos os municípios
por reverter os maus resultados de há e ficar de fora de coligações de
quatro anos, que levaram à perda de direita, como em Lisboa, é uma
bastiões comunistas. Mas também as- boa estratégia.
segurar a presidência dos municípios
onde o limite de mandatos ditou a es- RISCOS
colha de novos rostos – como é o caso Os resultados refletirem que o
de Setúbal, onde a coligação do PCP partido pode não passar de um
e do PEV apostou em André Martins, epifenómeno urbano.
antigo deputado de Os Verdes, para
substituir Maria das Dores Meira,
que rumou a Almada com o objetivo
de tirar a câmara à socialista Inês de
Medeiros. Já em Alcochete e no Bar-
reiro, o plano comunista consistiu em
apostar nos antigos presidentes que
saíram em 2017, por limite de manda-
tos, o que resultou numa vitória do PS.
Por Moura, o Chega pode estragar a
investida da CDU para voltar ao poder.
PS SEM MEDO DE ATAQUE
Segundo o politólogo José Filipe Pinto,
“se o PS perder essas câmaras para a
CDU, é um capital que o PCP adquire
nas negociações do Orçamento do
Estado”. “António Costa sofrerá um
desaire se não conseguir manter Al-
mada, até porque se envolveu muito
nesta campanha. A fasquia está tre-
mendamente alta, já que o valor de câ-
maras conquistadas pelo PS, em 2017,
é irrepetível. Uma derrota do PS não
é medida pelo que perde – se são três
ou dez municípios – mas o peso do
que perde, como é o caso de Coimbra
ou do Funchal, que já foi um bastião
de Alberto João Jardim. As atenções
estarão muito mais sobre o PSD, e se
aquilo que fará de melhor é suficiente
para legitimar o seu líder, porque fazer
pior do que em 2017 é difícil”, salienta.
Apesar de a carga da CDU contra o
PS ser essencialmente na Margem Sul,
António Mendonça Mendes, respon-
sável da distrital socialista de Setúbal,
desvaloriza o risco de os socialistas
perderem a presidência da Área Me-
tropolitana de Lisboa (AML), que é
ocupada por Fernando Medina. “Não
temos dúvidas de que as eleições só
se ganham nas urnas, e foi isso que
o PS provou em 2017 contra todas as
previsões. Quando do outro lado está
um projeto esgotado para a penín-
sula de Setúbal, demonstrando uma
enorme incapacidade em renovar os
protagonistas, ao ponto de terem de ir
buscar antigos presidentes de câmara,
JOSÉ SILVANO, ESTRATEGA DO PSD PARA
AS AUTÁRQUICAS, PROMETE “BOAS
SURPRESAS” NA NOITE ELEITORAL, QUE
PODEM INCLUIR VITÓRIA EM COIMBRA,
FUNCHAL E PORTALEGRE
A ter em conta
MAIS MULHERES CANDIDATAS
Há 251 mulheres como cabeças
de lista na corrida às câmaras
municipais. Em 2017, tinham sido 237.
A maior aposta parte do PCP, com 80
candidatas. O PS surge em segundo,
com apenas 40, e o PSD em terceiro,
com 31.
VOTOS DE PRISÕES E HOSPITAIS
Os reclusos e os doentes
hospitalizados já votaram, tendo
os boletins sido recolhidos há
precisamente uma semana pelos
municípios – onde estão depositados
os votos, desde então. Os alunos
deslocados também puderam recorrer
ao voto antecipado.
VITÓRIA ANTES DE IR ÀS URNAS
Das 3 092 freguesias, há 160 em que
os candidatos já se podem considerar
vitoriosos, tendo em conta que se
trata de listas únicas sem qualquer
concorrência.
Desaire Passos abandonou
presidência do PSD em 2017,
após pior resultado do partido
numas autárquicas
não há nada a recear”, assegura o líder
da distrital do PS.
Pelo campeonato dos mais peque-
nos, cada força política tem diferentes
metas, confluindo apenas no objetivo
de ganhar peso nos órgãos locais. A
prestação do Chega, que concorre
em 220 concelhos, e a capacidade que
terá em deixar de ter a imagem de um
partido unipessoal, centrado em An-
dré Ventura, geram enormes dúvidas.
“Até agora, este partido, além de não
ter qualquer doutrina, existe apenas
como personalização do poder do
seu líder. Acredito que, se conseguir
eleger deputados municipais e, even-
tualmente, vereadores, essa doutrina
surgirá. Tendo em conta a qualidade
dos poucos candidatos que temos
conhecido e o facto de o seu líder ter
a necessidade de aparecer na cam-
panha mais vezes do que aqueles que
concorrem aos órgãos locais, é difícil
traçar qualquer previsão”, admite o
politólogo Adelino Maltez.
Na caça ao voto, num universo de
9,3 milhões de inscritos nos cadernos
eleitorais, é de realçar que há ainda
dois pequenos partidos: o Juntos pelo
Povo (JPP) e o Nós, Cidadãos (NC), que
lutam por permanecer no poder, em
Santa Cruz (Madeira) e em Oliveira de
Frades, respetivamente. nropio@visao.pt
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 55
 A ESCOLA DOS
RESISTENTES Poderá uma filosofia com mais de dois mil anos
ajudar-nos a ultrapassar os tempos difíceis que
vivemos? Não é fácil imaginar, no século XXI, uma
sociedade guiada pelo lema “sustine et abstine”
(suporta e abstém-te). Mas a verdade é que o
estoicismo está cada vez mais popular
J. PLÁCIDO JÚNIOR*

56 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 57
 S
Sabemos o que se passou no último
Natal. O Governo permitiu as con-
soadas familiares, mas ao mesmo
tempo alertou para os enormes riscos
de infeção pelo SARS-CoV-2 em tais
ajuntamentos. Para o filósofo e teólogo
José Rui Teixeira, o Executivo, “de cer-
to modo, delegou, ou quase imputou,
um estoicismo à generalidade da po-
pulação”, que “só alguns conseguiram
consciencializar”. Resultado: os casos
de Covid-19 dispararam, o confina-
mento rígido voltou e, em janeiro
seguinte, a doença causava mais de
pode controlar. Lá iremos.
Reza a História que o estoicismo foi
criado por Zenão, um rico mercador
da cidade de Cítio, no Chipre. Após
sobreviver a um naufrágio em que
perdeu tudo o que tinha, radicou-se
200 mortes diárias. em Atenas, onde conheceu as filoso-
Tivemos naquela altura um episó- fias de Sócrates, Platão e Aristóteles.
dio da pandemia com “uma densidade Aprendeu, então, que havia um mundo
ética muito grande”, e “os estoicos não material mais previsível e contro-
foram aqueles que abdicaram de es- lável do que aquele em que vivia, como
tar com os seus, de ter esse momento mercador. Adotou uma vida simples e
tão bonito que é o convívio familiar fundou a sua própria escola filosófica,

numa época como o Natal, pensando
num bem maior” – a proteção contra
o SARS-CoV-2, acrescenta o também
especialista do Centro de Investigação
em Teologia e Estudos de Religião, da
Universidade Católica.
Talvez sem o saberem, aqueles “es-
toicos”, que tiveram o “discernimento
ético” pessoal de “fazer o que estava
correto”, como diz José Rui Teixeira,
apesar da permissão oficial de con-
soadas natalícias, transpuseram para
a atualidade um princípio fulcral do
OS PENSAMENTOS
que ensinava o estoicismo, designação
que deriva de Stoa Poikile, ou Pórtico
ESTOICOS ESTÃO Pintado, uma colunata situada no lado
norte da ágora de Atenas, onde Zenão
NA MODA ENTRE e os seus seguidores se reuniam para
discussão de ideias.
OS CEO. AOS Para os estoicos iniciais, o universo
era governado pela razão, ou logos, um
EXECUTIVOS princípio divino que tudo peneirava,
e os colocava em harmonia com a
ENSINA-SE Natureza e a Humanidade. Também
propunham uma vida de virtude, que
A RESILIÊNCIA associavam de forma estreita à razão.

ATRAVÉS
estoicismo, filosofia de vida fundada No essencial, o estoicismo prometia
no século III a.C., há mais de dois mil a “felicidade”, face a um mundo impre-

DA “APATHEIA”
anos. Tal princípio é o do foco pessoal, visível, com um guia prático de foco
intenso e exclusivo naquilo que se no que se podia controlar, através de

58 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

 Zenão de Cítio
334-262 a.C.
Rico mercador da cidade de Cítio, no
Chipre, perdeu tudo o que tinha num
naufrágio. Radicou-se, depois, em
Atenas, onde estudou Sócrates, Platão
e Aristóteles, adotou uma vida simples
e fundou, no século III a.C., a sua própria
escola filosófica, a do estoicismo –
que viria a influenciar a civilização
greco-romana e, por consequência, o
pensamento ocidental.
um intenso acerto de juízos de valor,
do autocontrolo das emoções (paixões
incluídas) e do usufruto moderado
dos prazeres. Era a maneira de os
seus seguidores se manterem fortes
e resolutos.
À MÍNGUA DE VIDA
“Embora possa não parecer à partida,
o grau de exigência que o estoicismo
coloca na conduta existencial de cada
pessoa é muito grande”, comenta o
filósofo e teólogo José Rui Teixeira.
Ainda assim (ou por isso mesmo),
o estoicismo influenciaria o cris-
tianismo, o budismo e até filósofos
modernos como o alemão Immanuel
Kant. Na filosofia de vida fundada por
Zenão, nota aquele especialista, “há
sobretudo a exaltação das virtudes
pessoais, isto é, a capacidade que o
indivíduo tem de possuir uma éti-
ca deontológica ou intrínseca, e de
fazer prevalecer uma ética que não
seja extrínseca, que não se reduza,
por exemplo, a um comportamento
mediado pelos constrangimentos das
autoridades”.
Muito a propósito, veja-se o que
Séneca – filósofo estoico (entre várias
Lúcio Séneca
4 a.C.-65
Talvez o filósofo estoico hoje mais
apreciado, foi também político e jurista
no Império Romano. Era já célebre
quando caiu em desgraça junto da
imperatriz Messalina, primeira mulher
de Cláudio. Após um exílio de oito anos,
seria chamado à corte de Cláudio pela
segunda esposa deste, Agripina, que
lhe confiou a educação do seu filho
Nero. E seria Nero, depois de o implicar
numa conspiração, a ordenar-lhe que
se suicidasse – o que Séneca cumpriu,
cortando os pulsos.
outras coisas) do Império Romano,
que ainda encanta os seus pares do
século XXI, de diferentes correntes,
pela qualidade da prosa e a excelência
do pensamento – advogou numa das
124 missivas que escreveu a um amigo,
e que resultaram num dos seus livros
mais conhecidos – Cartas a Lucílio. “A
maioria dos homens mingua e flui em
miséria entre o medo da morte e as
dificuldades da vida”, lê-se. “Eles não
estão dispostos a viver, e ainda não
sabem como morrer”, ironiza Séneca,
que a seguir aconselha: “Torne a vida
um todo agradável para si mesmo,
banindo todas as preocupações com
ela. Nenhuma coisa torna o seu dono
feliz, a menos que a mente esteja
harmonizada com a possibilidade da
perda; nada, contudo, se perde com
menos desconforto do que aquilo de
que, quando perdido, não se sente a
falta. Portanto, encoraje e endureça o
seu espírito contra os percalços que
afligem até os mais poderosos.”
Qual pioneiro budista, já o impe-
rador romano Marco Aurélio, que
governou de 161 até à sua morte, aos
58 anos, em 180, tinha um diário filo-
sófico de meditações. Leem-se ali re-
Marco Aurélio
121-180
Foi um peculiar Imperador romano –
entre batalhas, buscava as virtudes
pregadas pelo estoicismo. Se a
aristocracia que o rodeava mantinha
os hábitos éticos de virtudes públicas
e de vícios privados, ele, Marco Aurélio,
debitava para um diário filosófico as
suas meditações. Há ali reflexões sobre
o bom ou mau exercício do poder e, até,
notas acerca de pessoas desagradáveis,
que se esforçava por tratar com calma
e autocontrolo.
flexões sobre o bom ou mau exercício
do poder, face às múltiplas decisões
que tinha de tomar como imperador, e
também se observa, por exemplo, que
Marco Aurélio se esforçava por lidar
com o lado desagradável das outras
pessoas com a calma e o autocontrolo
reivindicados pelos estoicos, para não
“incorrer no que é reprovável”. O es-
toicismo fê-lo um imperador peculiar,
tendo em conta os hábitos éticos da
aristocracia romana que o rodeava, de
virtudes públicas e de vícios privados.
LIÇÕES PARA AGORA
As Meditações de Marco Aurélio são
como um “livro de autoajuda com
conselhos para ter uma vida boa,
sem sofrimento”, nota David Neto.
“Isso passa pela ideia de que todo o
sofrimento advém dos nossos dese-
jos (de ser rico, de ser bonito, de ser
reconhecido…) e que o seu controlo
nos permite ser mais livres”, refere o
docente do ISPA – Instituto Univer-
sitário, na área da Psicologia Clínica.
Mas se, entre os políticos, pode-
rá haver quem leia mais a A Arte da
Guerra, de Sun Tzu, ou O Príncipe,
de Maquiavel, na classe empresarial
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 59

Vantagens
e desvantagens
do estoicismo
A FAVOR
Ensina a obter uma capacidade
ética pessoal, baseada na razão
e na virtude. E, ao pregar tais
valores, o estoicismo propõe
também que as emoções
destrutivas resultam de erros
na forma de ver o mundo. “Se
pudermos viver com sabedoria,
guiados pela razão, vamos
realizar o nosso potencial como
seres humanos”, diz o filósofo e
psicoterapeuta escocês Donald
Robertson. “Deus ofereceu-nos
essa capacidade, cabe-nos usá-la
de maneira apropriada”.
Os estoicos agem de forma
informada e ponderada – mas
recusam um comportamento
impelido por terceiros. A propósito,
Epíteto (55-135), filósofo grego
estoico e ex-escravo, escreveu:
“Você não é aquilo que finge ser.
Então, reflita e esteja pronto para
dizer: para mim, isso é nada. E
deixe o assunto de lado.”
A “calma no caos” é um princípio
tipicamente estoico. Outra frase de
Epíteto ilustra-o: “Se devo morrer,
morrerei quando chegar a hora.
Como, ao que me parece, ainda
não é a hora, vou comer porque
estou com fome.”
CONTRA
Os estoicos respondem com apatia
ou indiferença ao que não podem
controlar. “Frios e conformistas”,
chamam-lhes os críticos. O
estoicismo “não propõe que se seja
passivo em relação à vida, mas
que se aceitem as coisas que estão
além do nosso controlo e que já
aconteceram”, contradiz o filósofo
Donald Robertson.
É-lhes atribuído um “sentimento
de superioridade moral” e um
“distanciamento higiénico” que
os afasta dos outros. Epíteto faz
o contraditório: “Não espere que
o mundo seja como deseja, mas,
sim, como realmente é. Só assim
terá uma vida tranquila.”
60 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
o estoicismo dá cartas como filosofia
de gestão.
“Os pensamentos estoicos estão na
moda entre os CEO”, afirma a psicote-
rapeuta Gabriela Alonso. Aos executi-
vos ensina-se a resiliência através da
“apatheia”. “Tem que ver com o facto
de uma pessoa deixar de se preocupar
com aquilo que lhe escapa ao controlo,
reprimir as suas emoções em relação
ao que não pode mudar. No entanto,
há aqui um lado perigoso, pois isso
pode levar a uma indiferença em re-
lação às emoções.” E de empresários
“frios” está o mundo cheio.
Esse extremismo está presente
noutras filosofias, como o budismo,
nota David Neto, mas não no estoi-
cismo antigo. “No budismo, o con-
trolo do desejo procura suprimi-lo,
atingir o que chamam de apatia ‘boa’.
Os estoicos não são tão radicais e até
veem a supressão como algo nega-
tivo”, explica. “A terapia cognitiva é
muito influenciada pela ideia estoica
de controlar a reação emocional dan-
do um sentido às coisas negativas. É
a ideia de Epíteto, de que não somos
perturbados pelos acontecimentos,
mas pelo significado que lhes damos.”
O ensinamento estoico de encon-
trar a felicidade aceitando a ordem
natural das coisas e adaptar os desejos
à realidade envolvente é, para Gabrie-
la Alonso, de grande utilidade para
pessoas extremamente ansiosas. Mas
uma das consequências nefastas pode
ser o conformismo, sublinha. “Para contrário, Séneca recomendava uma
os estoicos, a virtude é a felicidade reflexão tranquila e diária sobre tudo
e o virtuoso é aquele que consegue o que pode dar errado”, nota num dos
não se ver inundado por problemas seus programas de televisão.
que não consegue resolver. Já o ím- A verdade é que, no que à Covid-19
pio será o escravo das suas emoções. diz respeito, muita coisa correu mal.
Mas o controle emocional à força Desde logo, a situação catastrófica
pode ser bastante frustrante. A saúde que se verificou em Itália, logo no
mental está algures entre o virtuoso e início de 2020, quando ainda sabía-
o ímpio”, refere, dando um exemplo: mos tão pouco sobre o coronavírus,
“O sonho dos estoicos é estar no mar espalhou um rastro de medo como há
a levar com as ondas e a aguentá-las, muito não se via na Europa, levando
não andando nem para a frente nem as pessoas a fecharem-se em casa
para trás. Qualquer pessoa que vá ao ainda antes das orientações dos go-
mar sabe que isso não é possível. Claro vernos. “Séneca dizia que o que mais
que as ondas nos afetam.” nos desperta a ira (ou a frustração ou
o stresse) são os problemas que nos
MÉRITO PERVERSO apanham de surpresa. Assim, devemos
“Vai correr tudo bem.” Se Séneca sempre admitir que algo vai correr
ouvisse esta frase tão batida destes mal”, continua Alain de Botton.
tempos epidémicos! “Para Séneca Será esta a filosofia do pessimismo?
são palavras cruéis”, explica Alain Nada disso. A forma como podemos
de Botton, escritor e divulgador de enfrentar a meritocracia que tanto
filosofias. “Deixam as pessoas despre- mal nos faz é apenas um exemplo de
paradas para situações adversas. Pelo “estoicismo” dado, numa Ted Talk,

por este filósofo suíço radicado em
Londres. “Existem expectativas mui-
to altas sobre o que um ser humano é
capaz de alcançar na vida. Dizem-nos
que qualquer pessoa pode alcançar
qualquer coisa. A ideia da igualdade é
muito bonita, mas tem problemas. Um
deles é a baixa autoestima. Porque na
verdade não podemos alcançar qual-
quer coisa, existem diferenças abissais
entre os indivíduos, de nascimento, de
educação, de doença, fatores acidentais
que tornam a ideia de meritocracia
completamente insana, um sonho
impossível. Não basta ter eletricidade
e uma garagem”, ironiza. E acrescenta:
“Antigamente, um pobre era chamado
‘desafortunado’; agora é chamado de
‘falhado’. Isso quer dizer que a res-
ponsabilidade do fracasso passou a ser
nossa, como se o merecêssemos.” Uma
ideia que pode levar-nos ao fundo do
poço, quando simplesmente “temos
de aceitar que não podemos ter tudo e
que há sempre elementos de falhanço”.
SÓ PARA ELITES?
Há um problema bicudo que percorre
o estoicismo – os seus seguidores res-
pondem ao que não podem controlar
com apatia ou indiferença. Dizem os
críticos que aquela atitude os torna
“frios e conformistas”, e que incorpo-
ram aqui o “cinismo também como
filosofia de vida”.
De forma benigna, a apatia ou a
indiferença dos estoicos pode ser vista
como um distanciamento higiénico ou
catártico em relação a uma realidade de
violência, de brutalidade, de corrupção,
e por aí adiante. “É aquela ideia de que
não me envolvo ou não me comprome-
to com determinados modelos sociais,
porque à partida prevejo que me tra-
zem dissabores”, interpreta o filósofo
e teólogo José Rui Teixeira. “Há um
arrefecimento das relações sociais ou
do modo de estar no mundo, o que traz
consequências estranhas”, acrescenta.
O especialista deteta nos estoicos
um “sentimento de superioridade
moral” – mas também o observa na
hierarquia da Igreja ou no budismo,
todos unidos pela “ideia de abstinência
e de penitência”. No entanto, ressalva,
“essa superioridade moral pode não
ter um sentido depreciativo”. E dá um
exemplo elucidativo: “Quer vivamos ou
não estoicamente, por opção pessoal,
nós olhamos com grande consideração
para aqueles que tomaram decisões
estoicas na vida. Muitas vezes, quan-
do alguém morre, as virtudes que se
ressaltam no elogio fúnebre são as
estoicas – a capacidade que o indiví-
duo teve de se apartar de certas coisas,
de colocar a sua ética acima dos seus
interesses.”
José Rui Teixeira, porém, não acre-
dita que os estoicos se sedimentem
AOS OLHOS DE
entre nós. “O grande drama do es-
toicismo é que continua a ser uma
SÉNECA, NADA
filosofia de vida de elites – não so-
cioeconómicas, mas intelectuais e es-
MAIS ERRADO DO pirituais”, argumenta. E invoca um se-
gundo motivo: “A felicidade existencial
QUE DIZER “VAI que o estoicismo promete pressupõe
que abdiquemos de uma dimensão
CORRER TUDO mais emocional, mais passional, mais
hedonista, mais materialista, de que
BEM”. A FRASE dificilmente podemos abdicar. Vive-
mos numa realidade que não apela de
DEIXA AS PESSOAS maneira profunda a um compromisso
com o necessário conjunto de virtudes.”
DESPREPARADAS É verdade que não estamos em
FACE A SITUAÇÕES
tempos propícios à virtude. Mas talvez
o estoicismo nos ajude a lidar com os
ADVERSAS
mais ímpios. jjunior@visao.pt
*com Alexandra Correia
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 61
 Na prisão “Recordem-se sempre
de que éramos inocentes e de que
não podíamos ir contra a nossa
consciência”, escreveram os
Rosenberg aos filhos
62 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
A TRÁGICA
HISTÓRIA
DE ETHEL
ROSENBERG
Quase 70 anos depois do caso que
apaixonou o mundo durante a Guerra
Fria, uma biografia traz uma nova luz
sobre o que de facto se passou com
o casal de espiões americanos.
A Miramax Films já comprou os direitos
ROSA RUELA

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 63

 E
Ethel media apenas 1 metro e 52, e não era robusta, embora
tivesse ganho alguns quilos na prisão. Quando se sentou
na mesma cadeira elétrica em que o marido, Julius, aca-
bara de ser executado, todos os que estavam na sala viram
como as correias pareciam demasiado largas para o seu
corpo. Talvez por isso ela não morreu logo ao primeiro
choque de dois mil volts. Nem ao segundo ou ao terceiro
ou ao quarto, aliás.
Seriam necessárias cinco descargas para o coração da
pequena mulher parar de bater. Só então os guardas foram
dizer ao rabino Irving Koslowe, durante décadas capelão
judeu da prisão de Sing Sing, no estado de Nova Iorque,
que podia parar de entoar salmos. Os comunistas Julius
e Ethel Rosenberg, acusados de terem revelado segredos
nucleares americanos à União Soviética, em plena Guerra
Fria, já não pertenciam ao mundo dos vivos.
Passavam uns minutos das oito da noite de 19 de ju-
nho de 1953. O Sol pusera-se pouco antes, dando por
finda aquela longa sexta-feira. Até ao último momento,
GETTYIMAGES

os Rosenberg haviam acreditado que ainda poderiam vir

a ser poupados e que voltariam a viver em liberdade, na
companhia dos dois filhos.
Michael e Robert estavam, então, com 10 e 6 anos.
Naquele mesmo dia, tinham recebido uma carta em que
os pais lhes pediam: “Recordem-se sempre de que éra- Reações
mos inocentes e de que não podíamos ir contra a nossa Dentro e fora dos
Estados Unidos
consciência.”
da América, foi
Também escassas horas antes, o advogado do casal,
grande a pressão
Emanuel Bloch, levara à Casa Branca um derradeiro pe- da opinião pública
dido de clemência, dessa vez escrito por Ethel na sua cela. para salvar os
“A dúvida é grande”, acrescentara Bloch, na esperança de Rosenberg. Ficara
que o Presidente Eisenhower cedesse às vigílias que se claro que eram
haviam multiplicado dentro e fora do país, contestando a vítimas da histeria
condenação à morte dos Rosenberg. da Guerra Fria
Tal como fizera Truman, seu antecessor no cargo, Ei-
senhower já escolhera não intervir, apesar dos apelos de
pessoas influentes como o Papa Pio XII, feroz anticomu-
nista, Albert Einstein ou Pablo Picasso. Mas se ele chegou a
afirmar publicamente que as ações do casal tinham traído
os milhares de americanos que combatiam na Coreia, a sua
correspondência privada revela que não queria, sobretudo,
passar a ideia de que os Estados Unidos da América eram EISENHOWER SABIA QUE A
“fracos e temerosos” face à ameaça soviética.
O Presidente sabia que a acusação contra Ethel era ACUSAÇÃO CONTRA ETHEL ERA
FRÁGIL. PIOR: QUE ELA FORA
frágil. Pior: que ela fora forjada pelos procuradores. Além
de não existir qualquer documento a provar uma ligação

FORJADA PELOS PROCURADORES

ao KGB, a sua detenção acontecera apenas para forçar o
marido a avançar com nomes de outros espiões. E o FBI

64 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

 O CASO NA CULTURA POPULAR
Se é verdade que são sobretudo os maus da fita que
perduram na História, o irmão de Ethel não é exceção

No seu filme Crimes e (e que a Assírio & Alvim edita

Escapadelas (1989), Woody
Allen usa o nome do irmão
de Ethel Rosenberg como
punchline: “Gosto dele como
de um irmão”, diz a sua
personagem ao cunhado,
acrescentando, impassível:
“David Greenglass”.
“Foi num verão estranho
e sufocante, aquele em que
eletrocutaram os Rosenberg.”
Esta é a primeira frase do
único romance de Sylvia
Plath, A Campânula de Vidro,
publicado em 1963, sob o
pseudónimo de Victoria Lucas
em Portugal, em 1988). Dez
anos depois da morte de
Ethel e de Julius, a escritora
recordava: “Os jornais não
falavam de outra coisa.”
No seu Livro de Daniel,
publicado em 1971, E.L.
Doctorow ficciona o caso
e imagina a vida dolorosa
de Michael, o filho mais
velho dos Rosenberg, a
quem chama Daniel. “A
traição daquele homem irá
assombrá-lo enquanto ele
viver”, escreve ainda sobre
David Greenglass.

ABC, a propósito do seu novo livro Ethel Rosenberg: A

só pedira a cadeira elétrica para ambos na esperança de
que, finalmente, falassem (a Lei de Espionagem de 1917
prevê a morte em tempo de guerra; em tempo de paz, a
pena máxima é de 20 anos de prisão). Mesmo assim, o
inquilino da Casa Branca não cedeu.
PATINHO FEIO
Eisenhower alinhava com a maioria do seu povo. Se a acu-
sação contra Ethel era frágil, a sua imagem era a de uma
mulher forte. Quase três anos mais velha do que o marido
(ela morreu com 37 e ele com 35), passava por determina-
da e fria. Não ajudava o facto de não ser particularmente
atraente e de se vestir de maneira pouco cuidada. Os jor-
nalistas notavam que os seus lábios, muito finos, quase
nunca se abriam num sorriso. E a acusação apresentou-a
como a figura dominante do casal.
“Foi muito mais difícil ela morrer”, relatou Bob Con-
sidine, um dos repórteres que pôde testemunhar as duas
execuções e ver Julius, “o mais fraco”, sucumbir ao terceiro
choque elétrico. “[Foi] como se fosse mais difícil matá-la
por ser dura de roer”, ainda se espanta a jornalista e es-
critora Anne Sebba, quase 70 anos depois. “É uma visão
extraordinária da maneira como ela estava a ser perce-
cionada”, comentou numa entrevista à radio americana
Cold War Tragedy, que traz novas luzes sobre o que real-
mente se passou.
Para a antiga correspondente da Reuters, é evidente que
a visão distorcida da opinião pública americana terá con-
corrido para ditar o fim trágico da biografada, a começar
pela ideia de que desistira dos filhos a favor do comunismo.
“Uma ideia completamente errada”, escreve.
É verdade que Ethel se remeteu ao silêncio quando foi
detida e que no julgamento invocou a Quinta Emenda, mas
não podia ter agido doutro modo, acredita Sebba. “Ela não
podia imaginar uma vida em que tinha traído o marido e
depois continuado a viver com os filhos. Eles nunca a te-
riam respeitado, porque ela teria tido de fazer algum tipo
de confissão e dar nomes.”
A sua vida girava à volta de Michael e de Robert. Antes
de ser detida, consultava com regularidade uma especialista
em terapia infantil para que a ajudasse a ser uma melhor
mãe. E, durante os três anos em que esteve presa, man-
teve a assinatura da revista Parents (Pais) e expôs as suas
preocupações quanto ao futuro dos filhos nas cartas que
trocava com o advogado. “Uma pessoa não pode compor-
tar-se de forma incoerente com as crianças”, lembrava-lhe.
Ethel queria dar-lhes uma educação mais moderna e
mais próxima do que aquela que a mãe, Tessie, lhe dera.
Parecia que adivinhava. Esta era uma mulher distante e
não os acolheu bem em sua casa. Dali a pouco tempo, os
miúdos já andavam em bolandas – primeiro estiveram num
orfanato, mais tarde em casa da avó paterna (demasiado
frágil para tomar conta de dois rapazinhos pequenos),
por fim em várias famílias de acolhimento. Quando os
pais morreram, foram adotados e foi como se lhes saísse
a sorte grande (ver caixa).
Nas visitas que faziam à mãe, na prisão, ela fingia-se
feliz. “Cantávamos, ríamos, falávamos, divertíamo-nos”,
recordou Michael neste verão, ao The Guardian. Ethel

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 65

 anos, tornava-se membro da Liga Jovem Comunista, na
qual já militava Julius Rosenberg.

ATRAIÇOADA PELO IRMÃO

Julius pertencia igualmente a uma família de emigrantes
judeus e, tal como Ethel, tinha-se interessado pelo co-
munismo como meio para lutar contra o fascismo. “Hoje
é fácil criticá-los, mas eram pessoas que cresceram na
pobreza durante a Depressão e viveram a ascensão do
fascismo”, nota Sebba. “Pensavam que estavam a fazer do
mundo um lugar melhor.”
O ano era 1936. Acontecera o primeiro voo do caça inglês
Spitfire, e Franklin Roosevelt dera início ao New Deal, o
plano de recuperação económica após a queda da bolsa de

O QUE ACONTECEU AOS SEUS FILHOS

Nova Iorque. Dançava-se o swing e começara a guerra civil
espanhola. Na noite da passagem do ano, uma amiga apre-
sentou-os formalmente e eles tornaram-se inseparáveis.
Terem sido adotados pelo casal Meeropol foi a sorte Nessa noite, Ethel fora convidada a cantar numa gala de
grande e a terminação para Michael e Robert beneficência e estava tão nervosa antes de entrar em palco
que Julius lhe sugeriu que fizesse um curto ensaio, numa
Michael tem 78 anos e é pro- Antes ainda da adoção legal antessala. Já de madrugada, acompanhou-a a casa e nunca
fessor de Economia jubilado. já os Meeropol conviviam mais se largaram. “Amo-a desde aquela noite”, haveria ele
Mais novo quatro anos, Ro- com os miúdos sempre que de dizer mais tarde. “E, sempre que a ouço cantar, é como
bert também já se reformou podiam. Eram judeus, comu- da primeira vez.”
da advocacia. Os dois irmãos nistas e grandes amigos do Os dois casaram-se em 1939, numa sinagoga ortodoxa,
cresceram tão unidos que advogado dos Rosenberg. embora não ligassem muito à religião, e foram pais em
se falam ao telefone, todos Não descansaram, por isso, março de 1943. Por essa altura, Julius, que trabalhava como
os dias. enquanto não conseguiram
engenheiro num departamento do Exército desde 1940, já
Em 1957, quatro anos depois obter a custódia das crianças
partilhava documentos secretos com a União Soviética e
de os pais serem executados, que haviam sido rejeitadas
foram legalmente adotados pela avó materna e tinham
estava encarregado de recrutar outros espiões. Formava
por Abel e Anne Meeropol, estado institucionalizadas. com Ethel um casal tão unido que dificilmente ela desco-
um casal de judeus um pou- Foi a sorte dos dois irmãos nheceria as suas atividades de espionagem.
co mais velho do que Julius que viveram anónimos até O princípio do fim da vida dos dois começou a ser es-
e Ethel. Nessa altura, Abel já 1973, ano em que a comu- boçado em agosto de 1944, quando David Greenglass foi
era um escritor e compositor nicação social descobriu enviado para Los Alamos, para trabalhar no ultrassecreto
conhecido, autor de várias o seu paradeiro. Desde Projeto Manhattan (desenvolvido pelos Estados Unidos da
canções de Billie Holiday então, Michael e Robert têm América com a finalidade de construir as primeiras bom-
e de Frank Sinatra, entre encabeçado uma campanha bas atómicas da História). Julius viu ali uma oportunida-
outros. O seu maior êxito foi para limpar o nome dos pais de. Embora o cunhado fosse um mero maquinista, podia
Strange Fruit, que fala de ra- biológicos – que acreditam facilmente obter informação classificada que interessaria
cismo e cujos direitos ainda terem sido acusados de aos soviéticos. Como também ele era comunista, não terá
hoje rendem bom dinheiro muitos crimes que nunca sido difícil recrutá-lo.
aos filhos. cometeram. Ainda hoje não há a certeza da importância dos segredos
nucleares passados por Greenglass. Certo é que foi preciso
outro espião ser intercetado para ele acabar preso na mesma
rede, arrastando, então, o cunhado. Só depois de o cientista
alemão Klaus Fuchs, que também trabalhava em Los Alamos,
ser apanhado em Londres e ter confessado é que os serviços
gostava de crianças e fora sempre muito maternal. Desde secretos americanos ficaram na cola de toda a operação.
pequena que tomava conta do irmão mais novo, a quem A detenção de Fuchs aconteceu em fevereiro de 1950.
em adulta continuou sempre a tratar por “Doovey”, o di- Em junho, apenas quatro meses depois, o FBI já estava
minutivo iídiche para David. à porta de David Greenglass, em Nova Iorque. Ter-se-á
Naquela família de judeus emigrantes, eram todos apai- Julius apercebido imediatamente do perigo que corria?
xonados pelo benjamim, e Tessie também não escondia a Terá presumido que o cunhado não iria dar com a língua
sua preferência. Já os feitos de Ethel não a impressiona- nos dentes? Não sabemos. O que sabemos é que não apro-
vam particularmente, nem sequer a sua belíssima voz de veitou para fugir, acabando por ser detido um mês mais
soprano ou o facto de ter sido admitida num conhecido tarde. Como ele não cooperou porque não queria delatar
coro amador de Nova Iorque, cidade onde moravam. Ethel companheiros, alguns deles seus grandes amigos, o FBI
era o patinho feio dos Greenglass. decidiu deter a mulher “para alavancar a sua confissão”. É
Apesar de adorar cantar e de ter participado em todas isso mesmo que está escrito em documentos oficiais, en-
as peças teatrais do liceu, mal terminou os estudos Ethel tretanto desclassificados. Mas nem ele nem ela iriam falar.
começou a trabalhar como secretária numa empresa de A verdade é que o FBI não tinha provas físicas contra Ethel.
transportes. Em pouco tempo, sindicalizava-se e, aos 21 E, em 1995, quando foram desclassificados os chamados “pa-

66 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

FOTOS: GETTYIMAGES
Inseparáveis Ethel e Julius conheceram-se tinha ela 21 anos e ele 18. Casaram-se três anos depois e morreram juntos
péis de Venona” (com as mensagens trocadas entre a União
Soviética e os seus espiões nos Estados Unidos da América
que tinham sido descodificadas pelos serviços secretos ame-
ricanos), ficou claro que essas provas nunca tinham existido.
Segundo esses documentos, Julius usava o cognome de
“Antena” e, mais tarde, de “Liberal”. David era o “Calibre”
e a sua mulher, Ruth, era a “Vespa”. Quanto a Ethel, nem
sequer tinha “nome de guerra”. Existe apenas um telegra-
ma em que se fala dela como “uma pessoa dedicada”, ou
seja uma comunista, acrescentando que “‘Liberal’ e a sua
mulher recomendam [o recrutamento da cunhada] como
uma rapariga inteligente e astuta”.
Durante o julgamento, que durou apenas três semanas,
o governo garantiu que bastava ela ou Julius darem outros
nomes para lhes ser poupada a vida. O casal respondeu
numa declaração pública: “Não seremos coagidos, nem
ETHEL NEM SEQUER TINHA “NOME
DE GUERRA”. EXISTE APENAS UM
TELEGRAMA EM QUE SE FALA DELA
COMO “UMA PESSOA DEDICADA”,
OU SEJA UMA COMUNISTA
sequer sob a ameaça de pena de morte, a dar falsos tes-
temunhos.”
“Ethel não era nenhuma santa, mas foi executada sim-
plesmente por ser a mulher”, disse Sebba ao The Guardian.
“Foi considerada culpada só por apoiar o marido.”
A biógrafa crê que Ethel e Julius viveram demasiado
tempo na ilusão de que o desfecho iria ser outro. Não con-
taram com a histeria da Guerra Fria nem com a hipótese de
se tornarem bodes expiatórios do regime. Em junho, tinha
começado o conflito na Coreia que os EUA viam como uma
luta para impedir o avanço do comunismo. Por essa altura,
já o senador Joseph McCarthy iniciara a sua tristemente fa-
mosa caça aos comunistas, e não nos esqueçamos de que a
Rússia fizera explodir a sua bomba atómica no ano anterior.
Ethel e Julius também não contaram com a traição de
um David feito Caim. Em 2001, numa entrevista a um ca-
nal de televisão em que apareceu muito disfarçado, o mais
novo dos Greenglass (que morreria em 2014, aos 92 anos)
confessou ter sido o grande responsável pela detenção da
irmã. Manipulado pela acusação, que lhe acenou, em tro-
ca, com apenas alguns anos de prisão e a liberdade para a
mulher, inventou que vira Ethel datilografar informações
secretas passadas por ele a Julius.
Por causa da sua mentira, os Rosenberg acabaram
executados na cadeira elétrica e foram enterrados em
Long Island, num dos poucos cemitérios judeus onde
disseram aceitar os seus corpos. Nem sequer Tessie as-
sistiu ao funeral. rruela@visao.pt
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 67
A FAMÍLIA ALVA

Em Melgaço, berço da
célebre casta de vinho
verde, da soma de uma
imensidão de parcelas,
exploradas por pequenos
viticultores, fez-se a
força da Soalheiro.
Nesta empresa familiar,
acredita-se que a terra
deve continuar a pertencer
a quem a trabalha
JOANA LOUREIRO LUCÍLIA MONTEIRO

68 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

RINHO
O ritmo acelerado das vindimas durante a ma-
nhã é imposto pelas ameaças de chuva. Ainda
assim, as videiras molhadas do dia anterior
encharcam braços e troncos. Focados no corte
das uvas, entre as mais de 30 cabeças ali reuni-
das, voluntariamente, não se ouvem queixas do
trabalho. Hoje, dedicam-se aos terrenos de Alice
Pires e Manuel Castro, 53 e 51 anos, em Melgaço.
Amanhã, será a vez de outros. A entreajuda de
famílias, amigos e vizinhos é a norma na região
do Alvarinho, encravada no vale do rio Minho.
“Já fui a seis vindimas, sou um Cristo!”, brinca
Manuel. “Mas essa malta depois vem toda para
as minhas terras, não tenho de pagar a nin-
guém”, explica. No dia anterior, a mulher esteve
incansável nos preparativos do almoço servido
aos trabalhadores, no salão renovado para estas
ocasiões. “Preferia andar pelo campo, mas agora
tenho de ficar em casa a fazer a ‘pandulha’”, diz
Alice. Rancho, carne estufada com ervilhas e
meia dúzia de sobremesas, feitas pelo filho do
casal, compõem o banquete. “Combinamos as
refeições uns com os outros para não ser tudo
igual: cozido, feijoada, frango estufado… nin-
guém quer ficar mal! Durante o dia há muito
trabalho, mas quando se sentam à mesa, é só
reis”, descreve. O nervoso miudinho da dona
da casa só é ultrapassado quando todos estão
servidos e pelas duas mesas corridas só se veem
caras de satisfação… e alguns brindes. Repete-se
o lugar-comum: a vindima é uma festa. “Esta
altura é boa por tudo, porque é o resultado de
um ano inteiro de trabalho e cai o dinheirinho
ao fim”, aponta Alice.
A maioria dos viticultores da sub-região de
Monção e Melgaço é proprietária de pequenas
parcelas de vinhas, não contínuas, que trata em
part-time e que constituem um bom reforço do
orçamento familiar. Pessoas com todo o tipo
de ocupação profissional, maioritariamente de

O “clã” Soalheiro Palmira

Cerdeira, a fundadora da
empresa (ao centro), com os
dois filhos, Luís e Maria João,
responsáveis pela gestão,
a enologia e a viticultura

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 69

 700
classe média. Manuel, funcionário do municí-
pio, ajuda Alice, doméstica, a cuidar das cinco
parcelas, donde retiram cerca de 11 500 kg de

MIL
uvas, que sempre venderam à Soalheiro, a pri-
meira marca de Alvarinho em Melgaço, lançada
em 1982. Desde então, a paisagem do território
mudou profundamente. “Dantes havia mais mi-
lho, agora é sobretudo vinha, porque é a única PRODUÇÃO
coisa que dá”, diz Alice. Conhecida como a uva D E G A R R A FA S
mais cara do País (paga a €1 por quilo), constitui DA SOALHEIRO
um rendimento suplementar considerável para em 2020

4,1
estas famílias.
A política da Soalheiro – através da associação
sem fins lucrativos a que chamaram Clube de
Produtores de Monovarietais de Vinho Verde,
onde reúnem mais de 150 viticultores – tem
sido a de apoiar a sustentabilidade económica
e social deste território. “Quando tiramos a ter-
ra às pessoas, tiramos as pessoas de trabalhar
na terra. Foi o que aconteceu no Douro. Estão
dependentes dos rendeiros e essa mão de obra M I L H Õ ES D E
nunca vai ser tão cuidadosa como a nossa, que EUROS
está a cuidar de algo que é deles”, considera Luís Faturação
Cerdeira, 49 anos, responsável pela enologia e atingida em 2020
(queda de 13% em
pela gestão desta empresa familiar, fundada pe-
relação a 2019;
los pais. Fala da Soalheiro como “uma família de
comparativamente,
famílias”, cujas histórias se confundem. “Estamos em 2021, estão a
a ser egoístas: ao fixarmos as pessoas na terra, crescer 30%)
mantemos o nosso negócio e a sustentabilidade

45
de todos. Mas fazemos negócios justos. Tem de
haver uma linha o menos inclinada possível,
desde o produtor à distribuição. Isso significa
deixar dinheiro na base”, acrescenta. Já com-

MIL
praram também terras, contando atualmente
com 14 hectares, exclusivamente em produção
biológica. “Há a ilusão de que podemos conti-
nuar a fazê-lo. Mas nós podemos comprar tudo
menos o tempo das pessoas, que muitas vezes H E C TA R E S
não é quantificável. Estamos a pagar a uva pelo Área total da
trabalho que as pessoas tiveram.” sub-região em 2006, sob a condição de avançarem com a
de Monção e certificação biológica das vinhas próprias, iné-
“NÃO HÁ UVAS DE SEGUNDA” Melgaço dita no Alto Minho.

O acompanhamento dos produtores é perma-
nente. Obrigados a respeitar um caderno de
encargos, que especifica desde o tratamento
dos solos à aplicação de produtos fitossanitários
(fungicidas, herbicidas…), recebem apoio da Soa-
lheiro, por exemplo, nas candidaturas conjuntas
à reestruturação das vinhas e aquando das novas
plantações. “Falo quase todos os dias com o
Miguel [Alves, responsável pela viticultura], para
fazer perguntas sobre as videiras, os adubos…”,
conta Manuel Castro. Responsabilidade e liber-
dade são, contudo, as palavras de ordem. Não
há uvas de segunda: ou servem ou não servem.
“Não é preciso fazer pressão, os produtores sa-
bem que, para terem um bom rendimento, têm
de manter a vinha sã… Nós damos o exemplo
e fazemos com que eles tenham acesso a esse
conhecimento”, sublinha Maria João Cerdeira,
irmã de Luís, 46 anos, igualmente ligada à gestão
e à frente da viticultura da Soalheiro. Formada
em Medicina Veterinária, entrou para a empresa
1 730
A valorização do papel dos pequenos produ-
tores é essencial. São eles que estão na base da
aposta na diversidade das pequenas parcelas,
desde as mais tradicionais do vale às localizadas
a mais de 1 100 metros de altitude, na Branda da
Aveleira, às portas do Parque Nacional da Pene-
da-Gerês. Uma forma de explorar o território e
a elasticidade do Alvarinho (e de outras castas
autóctones). “O conhecimento é a base da evo-
H E C TA R E S lução e do valor. Se fizermos sempre o mesmo
Área de vinha estilo de vinhos, sem evoluirmos nos conceitos,
na sub-região não mostramos diferenciação… e inovar não é só
de Monção e enologia, nem viticultura, também é comunica-
Melgaço ção”, defende Luís. Em 2020 distribuíram pelos
agrupamentos escolares de Monção e Melgaço
o livro Alvarinho – A história de uma uva que
queria ser território, e este ano avançaram com
uma versão em jogo virtual. Uma forma de
envolver e de cativar as novas gerações para a
cultura do vinho.
Noutra ponta do concelho, com a torre do

70 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

 Nos últimos anos o crescimento do Clube
dos Produtores acompanhou o crescimento da
marca no mercado internacional – com o au-
mento de 20% das exportações em 2020 (para
40 países), tem 50% do volume das vendas.
Segundo Luís Cerdeira, “as pessoas estavam
habituadas ao espírito cooperativo e a coope-
rativa parecia que não era deles, iam lá deixar
as uvas. No nosso caso, sentem prazer em
serem reconhecidos pelo clube”. É a sua mãe,
Palmira, quem acrescenta: “Eles dizem ‘o vinho
é bom, mas tem lá as minhas uvas!’ E eu digo o
contrário: é bom, porque tem lá as suas uvas.”
Para o quadro familiar ficar completo, faltava
apresentar a matriarca, que ainda participa ati-
vamente no quotidiano da empresa. Visitamos
a propriedade onde tudo começou e onde foi
plantada, em 1974, a primeira vinha contínua
monocasta do concelho, a Soalheiro – o nome
da empresa está explicado –, que mantém as
clássicas ramadas, em respeito da História, e de
cujas videiras antigas saem as uvas com que é
produzido um dos seus vinhos emblemáticos,
o Primeiras Vinhas. “Os vizinhos diziam que
O domínio das parecia um cemitério, por causa das cruzetas
vinhas Todas as que sustentavam as videiras”, recorda Palmira
pequenas parcelas que, tal como o marido, João, funcionário das
do território são Finanças, conciliava o magistério primário com
aproveitadas para a coordenação da adega.
produzir Alvarinho,
com os vinhedos a O MELHOR DOS DOIS MUNDOS
rodear, inclusive, o A pouca distância está a antiga casa da família
castelo de Melgaço. Cerdeira, onde fixaram as instalações da Soa-
Nas vindimas, lheiro. Estão na terceira fase de ampliação, a criar
amigos, familiares
um enoturismo com dez quartos (a acrescer à já
e vizinhos dos
existente Casa das Infusões), após obras na adega
viticultores apoiam-se
mutuamente
e na sala de provas. O interesse crescente pela
região do Alvarinho é inegável. A evolução nas
últimas décadas, além da qualidade do produto,
tem uma explicação simples, para Luís Cerdeira:
“No Velho Mundo, os vinhos distinguem-se pela
origem geográfica. No Novo Mundo, organizam-
-se por castas. Esta região jovem cresce muito
rápido porque tem o melhor dos dois mundos
e é muito fácil comunicá-la.”
Está também muito relacionada com o
espírito raiano, que não vira a cara ao trabalho.
Na casa de Fernanda Castro, 51 anos, enquanto
castelo de Melgaço e o rio Minho à espreita, o marido, José António, camionista, passava
José Lourenço, 72 anos, parece que nos ouve. longas temporadas na estrada, era ela quem
Orgulhoso, faz questão de mostrar os soberbos tratava das terras. Nas vésperas das vindimas, é
cachos de Alvarelhão (casta tinta da região), a vê-la na cozinha a escolher o feijão catarino e a
Maria João Cerdeira, de visita às suas vindi- tratar das carnes para o almoço. “Não há melhor
mas, que logo envia uma imagem ao irmão feijoada do que esta”, diz Tatiana, a filha de 18
enólogo. Em conjunto com o filho, Micael, de anos. Maria João Cerdeira entra sem cerimónias
35 anos, José Lourenço já produz 30 mil qui- e espreita para dentro dos tachos. “Aqui falo a
los de uva por ano. “É tudo para a Soalheiro, já minha língua, sou a Jo… não há vassalagem nem
trabalhamos com eles há muitos anos, fomos senhores, porque não somos melhores do que
aumentando as parcelas e, atualmente, parte ninguém. Às vezes, vejo alguém a olhar para
significativa do nosso rendimento vem daqui”, uma garrafa de Soalheiro e penso: que pena ela
conta Micael. Para Maria João, são casos como não saber a nossa história! Se ela soubesse, tinha
este que fazem ultrapassar os preconceitos dos muito mais prazer.” E brindaria, certamente, à
jovens em relação à agricultura. autenticidade. jloureiro@visao.pt

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 71

 FOCAR

“Qualquer coisa
que não se vá
vender, eu não
quero inventar”
Thomas Edison
Empresário e inventor
(1847-1931)

ELETRICIDADE

Preços sobem a todo

o gás. Mas há almofadas
para proteger a fatura
Subida das cotações do gás e licenças de CO2 mais caras
têm causado sucessivos recordes dos preços da eletricidade
nos mercados grossistas. O Governo garante que há formas
de amortecer o impacto e promete que a conta da luz não
subirá em 2022
RUI BARROSO

72 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

 Subidas Os preços
da eletricidade no mercado
regulado mais do que
duplicaram este ano

economia europeia en-

A
frenta mais um risco de
choque que pode compli-
car a recuperação da crise
pandémica. Os custos da
energia estão imparáveis,
e isso já se reflete na ati-
vidade de algumas em-
presas e nos bolsos dos
consumidores. No Reino
Unido, houve fábricas a
suspender a atividade e, na
Alemanha, algumas indústrias reduziram
a produção devido a esta crise energética.
Os preços grossistas no mercado ibérico
de eletricidade (MIBEL) não escaparam a
esta onda de alta de preços. Em agosto,
o valor médio foi de 105,96 euros por
megawatt-hora – mais do dobro do ve-
rificado no início do ano e quase o triplo
do que se registava no verão de 2020.
Essa evolução já fez subir os custos em
algumas indústrias e levou a Entidade Re-
guladora dos Serviços Energéticos (ERSE)
a aumentar por duas vezes, nos últimos
meses, as tarifas no mercado doméstico
regulado, que abrange 933 mil clientes.
Apesar da subida a pique do preço da
energia, o Governo garante que a fatura
dos consumidores domésticos não vai su-
bir no próximo ano. “Não haverá aumento
do preço em 2022”, afirmou o ministro do
Ambiente numa conferência de imprensa,
na passada terça-feira. Matos Fernandes
garantiu ainda que “haverá uma redução
de, pelo menos, 30% na tarifa de acesso
à rede para industriais”, o que poderá
permitir conter as subidas da eletricidade
para o tecido empresarial. O governante
decidiu antecipar o anúncio das medidas
Preço da eletricidade dispara AGO 21
para amortecer o impacto dos aumentos
nos preços grossistas, depois das preocu-
Valores do preço médio mensal da eletricidade no mercado
grossista ibérico, em euros por megawatt-hora 105,96 pações expressas por empresários e pelo
Presidente da República. Marcelo Rebe-
lo de Sousa alertou, no final da semana
100 passada, que estas subidas podem ser
um “travão na recuperação económica”.
80 Também o presidente da Confederação
JAN 21
Empresarial de Portugal (CIP), António
60,43 Saraiva, expressou, citado pela Lusa,
60 AGO 19 preocupações sobre “o efeito catastrófico”
44,96 desta “tempestade perfeita” nos preços.
40 ABR 20
Alguns consumidores domésticos
também já começam a sentir os efeitos.
17,71 A ERSE decidiu uma subida de 3% nas
20 tarifas para o mercado regulado no início
de julho e, mais recentemente, anunciou
0 novo acréscimo de 3%, que entrará em
AGO SET OUT NOV DEZ JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO vigor a partir de 1 de outubro. O regula-
2019 2020 2021 2021 dor justificou essa decisão com a “subida
FONTE OMIE AR/VISÃO continuada dos preços da energia elétrica

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 73

 ELETRICIDADE
Garantia O ministro do Ambiente, Matos
Fernandes, garantiu que, no mercado
regulado de eletricidade, “não haverá um
aumento do preço em 2022”

no MIBEL, fruto do preço muito elevado

do gás natural para as centrais a ciclo
combinado a gás natural e da elevada co-
tação das licenças de dióxido de carbono”.
Nos cenários traçados pela ERSE, para
um casal sem filhos e com uma potência
contratada de 3,45 kVA, há uma subida
de 2,10 euros na fatura mensal. Já para
famílias com dois filhos, um maior con-
sumo e potência contratada de 6,9 kVA,
o acréscimo pode chegar aos 5,72 euros.
A 15 de outubro, o regulador do setor
energético fará a proposta para as tari-
fas a vigorar em 2022, o que, além do
mercado regulado, terá influência nas
estratégias de preços dos operadores
do mercado livre, que abrange 5,4 mi-
lhões de consumidores. Matos Fernandes
acredita que, neste segmento, os preços
possam continuar mais baixos do que no
regulado e que, caso isso não aconteça,
os consumidores podem transitar de um
para outro mercado.

O QUE SE PAGA NA FATURA

O ministro do Ambiente quantificou
o valor das almofadas que permitirão
mitigar o impacto dos preços altos da
eletricidade. Segundo as contas de Ma-
tos Fernandes, esse amortecedor tem
uma dimensão de 430 milhões de eu-
ros, conseguidos com a eliminação do
sobrecusto com o contrato de aquisição
de energia da central do Pego (poupança
de 100 milhões de euros), a revogação dos
mecanismos de ininterruptibilidade (mais
100 milhões de poupança), receitas extra
do fundo ambiental com licenças e preços
de CO2 (mais 120 milhões face ao que era
estimado) e a consignação de 110 milhões
de euros da Contribuição Extraordinária
sobre o Setor Energético (CESE). A estes
valores acrescem 250 milhões de euros
obtidos através da eliminação de sobre-
custos de produção a partir de renováveis.
Em Espanha, onde, contrariamente ao
mercado nacional, as oscilações nos pre-
ços do MIBEL se refletem rapidamente
nas faturas dos consumidores domésti-
cos, o governo anunciou um pacote de
medidas que vão desde a baixa tempo-
rária de impostos na energia até ao corte
da remuneração de alguns produtores.
Já o executivo português tem excluído
uma nova descida nos impostos, apesar
de, esta semana, Matos Fernandes ter
remetido essa questão para a negociação
do próximo Orçamento do Estado. No
final de 2020, o IVA para uma parte dos
consumos baixou de 23% para 13%, o que
terá permitido uma descida de entre 1,54
e 2,31 euros nas faturas mensais.
PREÇOS ALTOS ESTÃO PARA FICAR?
O verão quente nos mercados grossistas
de energia é explicado principalmente por
dois fatores. Ricardo Nunes, presidente
da Associação dos Comercializadores
de Energia no Mercado Liberalizado
(ACEMEL), salienta à VISÃO que “há
uma razão conjuntural, que tem que
ver com o nível de preços de gás natural
completamente fora do comum, e uma
DA ELETRICIDADE
Portugal é o terceiro mercado
da UE com maior peso das taxas
e impostos.
ENERGIA E REDES
A principal componente da fatura
da luz está relacionada com o
custo da eletricidade e das redes.
Segundo os últimos dados do
regulador, relativos ao segundo
semestre do ano passado, tinham
um peso de 53% no preço final, no
mercado doméstico.
CUSTOS DE INTERESSE
ECONÓMICO GERAL
Os consumidores pagam ainda,
nas faturas, os custos com a
política energética do País. Os
custos de interesse económico
geral (CIEG) pesavam 28%

OS ANALISTAS outra mais estrutural e relacionada com

a transição energética, num momento
no preço final. Mas alguns
sobrecustos vão desaparecer,
DA S&P PREVEEM em que ainda não temos uma penetração
ajudando a aliviar a fatura em
2022.
QUE OS PREÇOS
de renovável suficiente para fazer face à
procura de energia”.
DA ELETRICIDADE A escalada dos preços do gás deve-se
ao aumento da procura e a problemas
TAXAS E IMPOSTOS
Impostos como o IVA e taxas
CONTINUEM ALTOS NA na oferta. A Rússia, o grande fornecedor
da Europa, está a fechar a torneira de-
como a contribuição audiovisual
pesam um total de 19% na fatura.
EUROPA, NOS PRÓXIMOS vido ao maior consumo doméstico e a
constrangimentos na produção, notam
Incluindo os CIEG, a componente
fiscal na conta da luz é de 47%, a
TRÊS ANOS Simone Tagliapietra e Georg Zachmann terceira mais elevada da UE.

74 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

 OPINIÃO

Das fragilidades da
num relatório. Os investigadores do cen-
tro de estudos Bruegel admitem também
democracia local
a hipótese de a limitação da oferta russa
POR PEDRO NORTON
ser uma forma de pressão para a apro-

vação do novo gasoduto Nord Stream 2,
uma infraestrutura que liga diretamente
a Rússia à Alemanha pelo mar Báltico
sem necessidade de fazer passar o gás
pela Ucrânia. Este menor fluxo de oferta
acontece numa altura em que os sto-
cks europeus estão baixos e em que há
uma corrida para os reabastecer antes
da chegada do inverno, época em que o
consumo aumenta bastante. O resulta-
do foi uma subida de mais de 100% do
preço de referência do gás na Europa, o
que tem pesado bem mais nos preços
da eletricidade do que as licenças mais
caras de CO2.
Para piorar a situação, os mercados
LUÍS BARRA
F
ixe este número: 15. De eufemismo) torna particularmente
acordo com um estudo de relevante a discussão sobre a utiliza-
Mariana Lopes da Fonse- ção do PRR como arma de combate
ca divulgado, na semana político nestas autárquicas. O que
passada, pelo jornal Público, o primeiro-ministro está a fazer (e
um candidato incumbente não é por acaso que escrevo primei-
nas eleições autárquicas em ro-ministro e não secretário-geral
Portugal parte para a corrida do PS), ao sugerir, mais ou menos
eleitoral, em média, com 15 pontos subliminarmente, que os fundos
percentuais de vantagem sobre europeus serão prioritariamente
qualquer dos seus adversários. aplicados em autarquias dominadas
O estudo só quantifica um fenó- pelo PS, é contribuir para criar mais
meno que qualquer um de nós já um bloqueio na nossa democracia.
intuía que existisse. E que se tem, Se seria sempre difícil desalojar um

de energia europeus, incluindo o ibérico, aliás, traduzido em estatísticas como presidente da câmara em funções
são marginalistas. Isto é, explica Ricardo esta: em 2013, 83% dos candidatos (e este ano recandidatam-se mais
Nunes, “a última tecnologia que entra é a presidente de câmara que se re- de 80% dos atuais presidentes de
que marca o preço”. O gás é responsável candidataram foram reeleitos (não câmara), apear um autarca do PS
apenas pela geração de um quinto da encontrei estatísticas para 2017), passa a ser, para todos os efeitos,
energia produzida na Europa, mas tem sendo que foi esse mesmo fenómeno uma tarefa absolutamente hercúlea.
sido a fonte de energia a ditar o preço fi- que esteve (felizmente) na origem Entendam-me bem. Estou longe
nal. E isso está, segundo os investigadores da lei da limitação dos de achar que o PS tem
do Bruegel, a “colocar uma pressão des- mandatos autárqui- o monopólio deste
proporcional nos preços da eletricidade”. cos, sem a qual esta- tipo de práticas. Não
A expectativa é a de que os preços do ríamos efetivamente
Os autarcas é essa a minha guerra.
gás natural continuem em alta até, pelo condenados a aceitar incumbentes O que quero sublinhar
menos, ao início do próximo ano. No autarcas vitalícios em beneficiam é que estamos muito
entanto, mesmo que a cotação amaine boa parte do País. do acesso que longe de ter, ao nível
nos próximos meses, a perspetiva é que Há, como é óbvio, autárquico, o modelo
os custos elevados na energia estejam uma explicação tão têm a recursos de uma democracia
para ficar. Os analistas da S&P referem, benigna quanto cân- públicos para perfeita. Não que te-
num relatório, que os preços deverão dida para este tipo de fazer destes nha qualquer dúvida
continuar altos devido à “aceleração do resultados: os candi- sobre a contabiliza-
fecho de centrais convencionais (a nu- datos incumbentes, importantes ção dos votos. Muito
clear e a carvão) nos próximos três anos, além de beneficiarem armas menos porque duvide
como parte das políticas de descarbo- de um natural efeito eleitorais da importância cru-
nização na Europa”. E preveem que “o de notoriedade, es- cial de umas eleições
ritmo da entrada em funcionamento de tariam, em muitos com uma proximi-
novos projetos de energia renovável e de casos, a ser premiados pelos seus dade e uma tangibilidade únicas.
interconexões não será suficiente para bons desempenhos à frente das Mas porque tenho bem claro que o
compensar a perda de capacidade con- suas autarquias. Muito bem. Suce- condicionamento efetivo do acesso
vencional, e isso irá apertar o equilíbrio de que consigo também pensar em aos cargos eletivos é uma forma de
entre a oferta e a procura nos próximos explicações mais perversas. Uma desvirtuação democrática tão lesiva
três anos”. delas é esta: os autarcas incumben- como qualquer outra.
A subida dos custos mostra que o tes beneficiam do acesso que têm a Os números falam por si. A me-
caminho da descarbonização não é um recursos públicos para fazer destes nos que acreditemos que em cada
processo fácil e indolor. Num debate importantes armas eleitorais. O que, um dos autarcas reeleitos há um
no Parlamento Europeu, realizado este a ser verdade, faz desta prática an- autarca modelo, temos toda a razão
mês, Frans Timmermans reconheceu cestral do caciquismo um fator de para estar preocupados. E temos
que o desafio é “muito difícil”. Mas o bloqueio efetivo ao que devia ser o toda a obrigação de nos indignar
vice-presidente da Comissão Europeia livre acesso a cargos eletivos. com práticas que, ao invés de com-
avisou que se deve evitar a “armadilha” Pois bem. A enunciação desta bater tiques de caciquismo ances-
de estar sempre a falar do custo da tran- simples possibilidade (e possibilida- trais, os solidificam e perpetuam.
sição sem mencionar o custo, económico de é aqui, convenhamos, um mero visao@visao.pt
e humano, de não a fazer. rbarroso@exame.pt

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 75

 João Soares
“Não vejo uma ameaça fascista no Chega”
O antigo presidente da CML e ex-ministro da Cultura
diz que “não se deve falar do lobo antes de ele aparecer”.
E que “André Ventura não é o lobo”
FILIPE LUÍS
O
senhor esteve no 1º
governo da Geringonça,
como ministro da
Cultura. Mas saiu,
depois de ter prometido
umas “bofetadas” a um
articulista. Foi vítima do
politicamente correto?
O que eu não quis foi ceder
ao politicamente correto.
A demissão foi uma decisão minha,
quando percebi a onda que se estava
a criar de uma forma disparatada. Eu
tinha-me limitado a reproduzir parte
de um texto que já tinha publicado 15
anos antes, quando fora presidente
da câmara e em que tinha sido alvo
de um ataque similar por parte do
mesmo articulista. Há coisas que não
admito que me façam, e uma delas
tem que ver com a seriedade pessoal
e o desinteresse material. Quando
morrer, que espero que seja daqui a
30 anos, ou mais, quero que se diga de
mim: “Este era um homem decente.”
Mas sempre aplicou as tais
bofetadas?
Nem é preciso invocar a tradição
queirosiana da “bengalada”.
Evidentemente que se tratava de
um recurso estilístico, simbólico.
Então alguma vez eu bati em
alguém? Naquele dia, o Centeno
ia ao Parlamento, o Mário Draghi
estava convidado pelo PR para ir ao
Conselho de Estado – e só se falou nas
“bofetadas do João Soares”.
O senhor saiu de um governo
apoiado numa solução que já tinha
sido ensaiada, por si e por Jorge
Sampaio, na CML, em 1989: um
acordo à esquerda.
76 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
Nisso, tenho pergaminhos. A seguir
às eleições de 2015, fui o primeiro a
falar, na comissão política do PS, da
possibilidade de fazer esse acordo. E
já em 1989 tinha sido. Ainda era líder
o [Vítor] Constâncio – um erro de
casting monumental, apesar de ele
ter tendência para culpar outros pelos
seus fracassos… Ora, em 2015, em vez
de estar a dizer que a vitória tinha sido
por poucochinho – nem sequer tinha
havido uma vitória… –, o que estava
à vista era a possibilidade de um
entendimento à esquerda.
A verdade é que nunca mais
o PS repetiu a fórmula em Lisboa,
e continua a não repetir, este ano.
O PCP já não é necessário?
Tenho uma profundíssima confiança
no Fernando Medina. Ele não fez
isso, ele saberá porquê – mas penso
que também não haverá nenhuma
recusa de entendimentos. Talvez
o entendimento ao nível nacional
também tenha inibido o PCP, não sei.
E se Medina não tiver maioria?
Isso logo se verá. Espero que tenha
e apoio-o firmemente. Fernando
Medina tem uma obra feita que fala
por si. Embora eu me atreva a dizer
que, em 2001, também tinha obra feita
e, às vezes, as pessoas, entre a formiga
e a cigarra, preferem a cigarra…
Está a referir-se a Santana Lopes,
que lhe ganhou essas eleições. E ele
está de volta à Figueira da Foz, onde
lidera sondagens…
É um caso espantoso. E eu tiro-lhe
o chapéu. Ele tem uma capacidade
de resistência… tem sete fôlegos. E já
disse isto antes: o Santana parece que
tem mel. Não sei se o mel já estará um
bocadinho estragado, mas tem…
Como acompanhoupa ou o Processo
rocesso
Marquês?
Eu nunca apoiei
oiei o Sócrates,
internamente, e, no PS, e até concorri
contra ele, numas
umas eleições internas. Eu
e o Manuel Alegre, e ambos levámos
uma cabazada da gigantesca. Mas
considero que,
ue, no essencial, foi um
bom primeiro-ministro,
ro-ministro, e há muitas
áreas em quee fez um muito bom
trabalho. Porque
rque ele é um homem
que gosta de fazer... E foi muito
maltratado, quando foi acusado. Se foi
bom para o PS… não foi. Mas também
não concordo o com o facto de ele,
depois, se terr desfiliado do partido.
Já lho disse. Quem já foi líder não
abandona o partido.
Mas põe as mãos no fogo por ele?
Está a empurrar-me
rrar-me para dizer o que
eu não quero. o. Ele está a defender-
se. Vamos verer o que decidem os
tribunais. Quando
uando uma pessoa
está em baixo…
xo… Enfim, eu
não bato noss “bombos
da festa”. Issoo é uma
prática que não tem que
ver com o PS. S. Mas ele
tem uma combatividade
mbatividade
incomum. E acho que
muita gente,, que esteve
muito próximo mo dele,
portou-se muito mal
com ele! Não o é o meu
caso: fiz sempre
mpre parte
das listas, a convite dele,
mas nunca me convidou
para nenhum m cargo nem
me deu qualquerquer missão
especial. E ele
le lá sabe
porquê.

Até que ponto o populismo é uma
ameaça, em Portugal?
Vamos ver o que acontece, nestas
eleições. Normalmente, estes
fenómenos não têm dimensão no
plano autárquico. Se calhar, estou a ser
otimista, mas não vejo ali nenhuma
espécie de ameaça de tipo fascista, no
Chega. Irrita-me muito aquela velha
tendência de se chamar fascista àquilo
com que não se está de acordo, ou
porque está mais à direita e aparece
com esse tom populista. O fascismo
foi uma coisa muito séria. As pessoas
que têm idade para ter conhecido a
ditadura sabem disso. Não podemos
estar sempre a falar do lobo, antes de
o lobo aparecer. E o André Ventura,
e editada da conversa. Veja a entrevista
completa em vídeo no site da VISÃO
mais toda aquela tropa-fandanga –
com todo o respeito pelos eleitos –,
está muito longe de ser o lobo. Até
registei com satisfação o elogio que
ele fez a Jorge Sampaio, depois da sua
morte.
A verdade é que o Chega está a
penetrar em faixas da população
que costumam votar à esquerda, em
zonas suburbanas ou no Alentejo.
Vimos isso em vários pontos da
Europa, em que esses eleitorados
transitaram diretamente para
os populistas. Felizmente, nós
continuamos a ter um PCP forte,
que tem resistido, que continua a
desempenhar o seu papel, que ainda
fixa o seu eleitorado e que presta, com
isso, um grande serviço à democracia.
E o próprio Presidente da República
também:
ta bé o seu est o, as suas selfies,
estilo,
fazem mais por afastar o populismo,
como ameaça, do que chamar
“fascista” ao Chega…
“MUITA GENTE,
QUE ESTEVE MUITO
PRÓXIMO
Ó DE JOSÉÉ
SÓCRATES,
Ó PORTOU-SE
MUITO MAL COM ELE...”
Esta é uma versão resumida
em www.visão.pt/irrevogavel
Como viu o ataque de negacionistas
a Ferro Rodrigues?
É inaceitável. Mas são cenas que
sempre existiram. Num 1º de
Dezembro, depois de um discurso,
nos Restauradores, também sofri um
ataque semelhante: “Comunista, aliado
dos comunistas, o teu pai vendeu
o Ultramar, traficante de marfim…”
Aquelas coisas habituais. Essa do
traficante de marfim colou-se e prova
que uma calúnia inventada por uma
máquina de propaganda pode tornar-
se uma verdade adquirida. Há sempre
pessoas que acreditam. Quando me
perguntam como vai o tráfico de
marfim, respondo que vai muito bem,
e tal... Nem sei se alguma vez toquei
nalgum pente de marfim, se é que há
pentes de marfim… Bem, essa cena
decorreu em 1997 e acabou por me ser
muito favorável, nas autárquicas desse
ano...
O senhor é um frequentador de
touradas, que se gaba disso mesmo.
E também é muito atacado por isso...
Entendo a minha presença ocasional
em corridas de touros, sobretudo,
no Campo Pequeno, como prova da
coragem – que não se compara à
dos toureiros – de defender a nossa
liberdade. Não podemos transigir
com atitudes fundamentalistas que
vão na lógica dos fundamentalismos
religiosos! Não condescendo com esse
antitaurino “desembolado”!
A sua sucessora na pasta da Cultura
parece ser uma figura antitourada
militante…
Não deve confundir-se a política
cultural com os gostos da minha
amiga Graça Fonseca. E aprecio
a sua política. Mas prefiro não
comentar as atuações de pessoas
que desempenham cargos que eu já
desempenhei.
Há, nas nossas sociedades, uma
excessiva complacência perante o
politicamente correto?
Sim, às vezes há… Mas isto é tudo
muito empolado pelos novos meios e
pelas redes sociais. As pessoas sempre
deram a sua opinião, mas faziam-no
à mesa do café. Hoje, podem escrever
o que lhes apetece onde lhes apetece.
Mas já no virar do século XIX para
o século XX existiam as famosas
“folhas de couve”. Por esse País fora,
patrocinavam-se pequenos jornais
para dizer mal de adversários, rivais
ou inimigos... fluis@visao.pt
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 77
 PA N D E M I A

Os perigos da “libertação” inglesa

Boris Johnson traçou um plano para uma vida livre das
restrições anti-Covid, e voltar atrás não é uma prioridade. Mas
os conselheiros alertam para o facto de que, assim, pode haver
entre duas e sete mil pessoas internadas já no próximo mês

A
D A N I E L A C O S TA T E I X E I R A

19 de julho, os britânicos
celebraram em massa o Dia
da Liberdade, e os cerca de
40 mil casos diários não
serviram de travão para o
levantamento de algumas
das medidas mais restriti-
vas. A verdade é que a re-
dução do número de novas
infeções nas duas semanas
seguintes parecia ser um indicador po-
sitivo da decisão tomada, mas o cenário
mudou em agosto e poderá agravar-se
muito em breve.
O alerta foi dado pelo Grupo Con-
sultivo Científico para as Emergências
(Sage, na sigla inglesa), que revelou que o
outono e o inverno poderão ser catastró-
ficos em Inglaterra. Segundo os conse-
lheiros científicos do governo britânico,
a média de novos casos diários – que
ronda os 30 mil – poderá sobrecarregar
os hospitais já em outubro, prevendo os
especialistas um cenário de duas mil a
sete mil hospitalizações por dia, só em
Inglaterra, números acima dos 4 500
internamentos em todo o Reino Unido,
no mesmo período do ano passado.
Segundo o Sage, há a possibilidade
de o Rt (número de indivíduos que uma
pessoa pode infetar) chegar a 1,5, se nada
for feito entretanto. Os conselheiros
científicos alertam ainda para que o
relaxamento das medidas de mitigação
contra a Covid-19 possa ser um gatilho
para o aumento de casos de infeções
respiratórias, incluindo a gripe.
O PLANO BRITÂNICO CONTRA
A COVID-19
O governo britânico apresentou, no dia
14 de setembro, o plano outono-inverno

78 VISÃO 23 SETEMBRO 2021


GETTY IMAGES
para fazer frente à Covid-19, tendo-o se-
parado em dois: o plano A, que começou
já nesta semana e se centra na vacinação,
prevendo a administração de uma dose
da vacina a jovens entre os 12 e os 15
anos (são cerca de três milhões) e ainda
um reforço vacinal a mais de 30 milhões
de pessoas, incluindo-se maiores de
50 anos, pessoas com comorbilidades
e profissionais de saúde; e o plano B,
que foi desenhado caso a situação epi-
demiológica se agrave e comprometa o
Serviço Nacional de Saúde, tal como os
peritos preveem.
Apesar de o governo britânico apelar
ao bom senso e à proteção individual
(como o uso de máscaras sempre que
se está com pessoas novas), e mesmo
após os peritos terem pedido medidas
urgentes antes do agravamento das
hospitalizações, só num cenário mais
catastrófico é que está previsto que as
máscaras, o teletrabalho e o certificado
digital possam voltar a ser obrigatórios.
Atualmente, 81% dos maiores de 16
anos têm já a vacinação completa, mas
o governo quer chegar a todos aqueles
que ainda não foram inoculados (só em
Inglaterra são 5,5 milhões), sendo este
À vontade Máscara na rua
só se o Serviço Nacional de Saúde
estiver a rebentar pelas costuras
Responsáveis, nós?
Na reunião do Conselho de Ministros,
agendada para esta quinta-feira, 23, o
Governo irá discutir a próxima fase de
desconfinamento, e poderão estar em
cima da mesa a abertura de discotecas
com a apresentação do certificado
digital e o fim do limite de pessoas em
casamentos, eventos culturais, lojas
e por grupos em restaurantes. Para
Miguel Castanho, faria sentido esperar
“um tempo para ver se conseguiríamos
manter a incidência [mais baixa] em
condições de outono-inverno e, aí, sim,
dar por terminada a fase pandémica
com uma libertação mais generalizada
de medidas”. Até porque, no “outono-
inverno, pode haver, de facto, um
retrocesso em termos de situação
epidemiológica”. Após a última reunião
do Infarmed, a palavra responsabilização
fez eco, mas os dois especialistas
consultados pela VISÃO defendem que
não basta a população ser responsável,
é preciso manter medidas de controlo.
“O Governo não pode tentar libertar-se
dessa responsabilidade”, diz Miguel
Castanho, antes de dar como exemplo
o “pacto de responsabilidade” ensaiado
do Natal passado, e que “não resultou”,
e o facto de termos assistido “a um
incumprimento generalizado” no uso
de máscara, quando esta ainda era
obrigatória. Também para a virologista
Laura Brum, “temos de ter sempre
alguma medida a acompanhar” a
responsabilização. Isto, além da máscara
que, para a médica, “tem de ser um
objeto nosso de uso quotidiano”.
OS NÚMEROS DA COVID-19
EM INGLATERRA NÃO SÃO
ANIMADORES
CONTÁGIOS
1 207 879
(média de 40 mil por dia)
HOSPITALIZAÇÕES
23 069
(média de 747 por dia)
ÓBITOS
2 651
(média de 85 por dia)
também um dos objetivos do plano A.
Para Miguel Castanho, investigador do
Instituto de Medicina Molecular, o fac-
to de o Reino Unido ter sido até agora
“muito dependente da vacina da Astra-
Zeneca” – foram compradas 100 milhões
de doses desta marca, no início do ano –
poderá justificar o foco na vacinação. “O
tempo de espera entre a primeira dose
e a segunda é muito grande, por isso é
que eles começaram com uma vacinação
muito acelerada e o ritmo em direção à
vacinação completa desacelerou”, refere
o especialista. Além disso, diz, a vacina
da AstraZeneca “é também mais limitada
em termos de eficácia contra a variante
Delta”, podendo este ser um dos motivos
por que os britânicos apostam agora na
Pfizer, que será administrada tanto nos
adolescentes como nas doses de refor-
ço, independentemente da marca da
última vacina.
Nos planos do Reino Unido está ainda
a maior testagem e isolamento de casos
positivos, com especial atenção para as
escolas, sendo que as crianças e os jo-
vens até ao Ensino Secundário irão ser
vacinados contra a gripe.
VIAGENS COM NOVAS REGRAS
Após um verão com um sistema de
semáforos, o governo britânico apre-
sentou um novo modelo para viagens
internacionais, mais simples e que in-
clui apenas uma lista vermelha, em que
se encontram os países de maior risco.
Neste novo sistema, que entra em
vigor a 4 de outubro, os viajantes com
a vacinação completa e oriundos de
países considerados seguros (fora da
lista vermelha) não necessitam de fazer
teste PCR ou de ficar em quarentena.
No entanto, o governo britânico mos-
tra-se apreensivo face à possibilidade de
surgirem novas variantes. Para a virolo-
gista Laura Brum, a questão das novas
variantes pode mesmo ser o calcanhar
de Aquiles nos próximos meses, pois
“os países de África e da América do Sul,
onde há muita infeção e baixas taxas de
vacinação, são locais onde facilmente
vão surgir variantes novas”.
“Temos de fazer um controlo de fron-
teiras rigoroso, ou então estas variantes,
que vão surgir e viajar com toda a faci-
lidade, têm de ser impedidas através da
testagem e da quarentena das pessoas
positivas; é a única forma de evitar a en-
trada de uma estirpe agressiva, com alta
transmissibilidade nos países”, continua
a especialista. visao@visao.pt
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 79
 FRANÇA
CNews, o tal canal radical
Muitas vezes classificada como a Fox News francesa, a polémica
estação de TV tem sido decisiva para a candidatura presidencial de Eric
Zemmour, o enfant terrible da direita nacional-populista
U
ma das grandes figuras da co-
municação social portuguesa,
Emídio Rangel – falecido há sete
anos –, sabia muito bem qual
o poder da caixa que mudou
o mundo: “Uma estação que
tem 50% de share vende tudo,
até o Presidente da República!
Vende aos bocados: um bocado
de um Presidente da República
para aqui, outro bocado para acoli, outro
bocado para acolá, vende tudo! Vende
sabonetes!” Estas polémicas declarações,
proferidas em 1997, quando ele era então
o todo-poderoso diretor de informação da
SIC, continuam bem atuais. Que o digam
os franceses e sobretudo Eric Zemmour,
antigo jornalista do diário Figaro que se
tornou uma vedeta mediática e está pres-
tes a entrar na corrida presidencial que, na
primavera do próximo ano, poderá ditar
o afastamento – ou a permanência – de
Emmanuel Macron na chefia do Estado.
80 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
FILIPE FIALHO
Para já, e enquanto não entra formal-
mente na corrida ao Eliseu, Zemmour
anda em digressão pelo Hexágono, a
promover o seu mais recente livro A
França - Ainda não disse a sua última
palavra. E, claro, multiplica as suas apa-
rições públicas em todas as plataformas:
afinal, é um profissional da comunicação.
AINDA NÃO
FORMALIZOU
A CANDIDATURA, MAS
ZEMMOUR JÁ TEM 11%
DE INTENÇÕES DE VOTO.
MELHOR SÓ MACRON
E MARINE LE PEN
No entanto, o palco preferido deste filho
de argelinos judeus, nascido há 63 anos
num subúrbio de Paris e que se define a
si próprio como um “francês de origem
berbere”, é a CNews, a mais polémica
estação televisiva francesa.
É graças a este canal por cabo, suposta-
mente noticioso, que Zemmour conquis-
tou notoriedade e influência para lançar
a sua carreira política e dispor agora de
11% nas intenções de voto, de acordo com
a sondagem divulgada esta semana pelo
Institut Harris. Um valor surpreendente
para um putativo candidato que se mostra
disposto a seduzir todo o tipo de desen-
cantados com a governação e as elites
tradicionais, e indicia uma imprevisível
disputa pelo eleitorado de direita, do mais
liberal ao mais radical e xenófobo.
Só assim se compreende que ele apare-
ça já em terceiro lugar na pré-campanha
presidencial, atrás apenas de Macron e de
Marine Le Pen (a chefe de fila da extre-

História atribulada A estação
foi criada em 1999 com o nome
de I-Télévision e só em 2017
passou a chamar-se CNews
ma-direita) e à frente de outros ilustres
interessados no Eliseu, casos de Anne
Hidalgo (a socialista que lidera a câmara
de Paris desde 2014), Valérie Précresse (a
conservadora presidente da região mais
povoada do país – Île-de-France –, ex-
-ministra do Orçamento e da Educação)
ou Yannick Jadot (o antigo diretor da
Greenpeace que é eurodeputado há mais
de uma década).
A CNews e Eric Zemmour são cada
vez mais um fenómeno equiparável à Fox
News e a Donald Trump: duas estações
que não hesitam em fazer tábua rasa da
informação para aumentar audiências e
dar aos espectadores o que, aparentemen-
te, não encontram nos média convencio-
nais; duas figuras egocêntricas que sabem
como tirar proveito da política-espetá-
culo e de tudo o que seja politicamente
incorreto. O próprio Zemmour admitiu,
na última semana, ao New York Times,
D.R.
que tais comparações são acertadas: “Ob-
viamente que há pontos em comum (...).
Qualquer pessoa que venha de fora do
mundo partidário sabe que as maiores
preocupações dos trabalhadores têm que
ver com o comércio e a imigração.”
Da mesma maneira que Trump, antes e
depois de chegar à Casa Branca, classificou
os mexicanos e os hispânicos como “tra-
ficantes” e “violadores”, Zemmour recorre
a idênticos adjetivos para se referir aos
estrangeiros oriundos de países pobres.
Quanto aos muçulmanos, ambos fazem
questão de exibir ostensivamente a sua
islamofobia. Zemmour já por diversas ve-
zes foi acusado – e duas vezes condenado
-– de propagar discursos de ódio, e uma
das suas propostas mais emblemáticas,
várias vezes enunciada frente às câmaras
da CNews, passa por proibir “nomes não
franceses” a quem se instale na pátria
dos Direitos Humanos. Isto é, com ele a
mandar, os Mohammed e os Ibrahim têm
os dias contados. O mais importante, no
seu entender, é impedir a chegada de fa-
mílias e de indivíduos não europeus que
comprometam a “identidade nacional” e, a
prazo, ponham em causa a maioria bran-
ca e cristã – uma ameaça teorizada pelo
escritor conspiracionista Renaud Camus
(e conhecida por “Grande Substituição”),
que tem em Zemmour um dos grandes
propagandistas.
É exatamente por este tipo de posições
que ele foi recrutado há três anos pela
CNews, na sequência da agitação criada
pelos Coletes Amarelos, e colocado em
horário nobre quase todos os dias úteis,
a solo ou acompanhado por outros con-
OS ROSTOS DA ESTAÇÃO
VINCENT BOLLORÉ
O dono
Em 2015, o milionário compra a
CNews e, durante quase dois anos,
teve de lidar com greves, demissões
e despedimentos
ERIC ZEMMOUR
A estrela
Contratado em 2019, torna-se o
principal comentador da estação e
também o mais polémico
CHARLOTTE D’ORNELLAS
A herdeira
Esta descendente de aristocratas
portugueses, 34 anos, tem a ingrata
missão de substituir Zemmour como
comentadora
CHRISTINE KELLY
A pivô
Primeira apresentadora negra de TV
na França continental, desde 2019
que ela e Zemmour se entendem às
mil maravilhas
MARION MARÉCHAL
A esperança
A neta de Jean-Marie Le Pen e
sobrinha de Marine Le Pen é já vista
como uma aposta da CNews para as
presidenciais de 2027
vidados em estúdio. A aposta era clara:
explorar temas como a imigração e a
criminalidade, em infindáveis debates e
painéis constituídos por “pessoas nor-
mais” e “não pretensiosas”, como admitiu
ao New York Times uma das eminências
pardas da estação, Pascal Praud, antigo
jornalista e comentador de desporto da
TF1, igualmente conhecido pelas suas ti-
radas ultraconservadoras e negacionistas,
por exemplo, em matéria ambiental.
A receita funcionou em pleno. Em
maio, a CNews bateu a sua principal con-
corrente no cabo, a BFM TV (controlada
pelo grupo Altice). As audiências do canal
criado em 1999, com o nome de I-Télé-
vision, dispararam, e um dos programas
que mais contribuíram para essa proeza
chama-se Face à l’info, apresentado por
Christine Kelly, a primeira pivô negra de
TV na França continental, com Eric Zem-
mour ao seu lado a comentar a atualidade.
Uma dupla que faz as delícias de mais de
800 mil espectadores diariamente e, claro,
do homem que é dono do canal e de uma
das maiores fortunas de França, Vincent
Bolloré, cujos interesses empresariais vão
dos média ao petróleo.
Só que a visibilidade e o sucesso tam-
bém trazem dissabores. No início deste
mês, depois de várias multas e advertên-
cias, o Conselho Superior do Audiovisual
– entidade reguladora das transmissões
televisivas – deu ordem à CNews para
retirar Eric Zemmour da grelha. Motivo:
o comentador já se comportava como
um “ator político” e, como tal, não pode
continuar a dispor de tempo de antena
para promover a sua agenda presiden-
cial. Mesmo assim, é raro o dia em que
ele não aparece em antena, nem que seja
por breves minutos. E já esta noite, quin-
ta-feira, 23, terá o seu primeiro debate
para o Eliseu, num tête-à-tête com o seu
velho amigo Jean-Luc Mélenchon, líder
da França Insubmissa e o mais mediático
candidato da extrema-esquerda. Curio-
samente, o duelo vai decorrer na BFM
TV, mas isso é o que menos interessa.
Zemmour e Mélenchon estão muito bem
um para o outro e são dignos represen-
tantes daquilo que Pierre Bourdieu, um
dos grandes cientistas sociais franceses
(desaparecido em 2002), designava por
“fast-thinkers”. Não apenas por pensarem
depressa mas por serem personagens
que sabem opinar através de jargões
superficiais, descartáveis e facilmente
consumíveis. Como diria Rangel, um
Presidente para aqui, um sabonete para
acolá! ffialho@visao.pt
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 81
 T E AT R O

VAGA R
Andy Warhol como
nunca o (ou)vimos
“No mundo
realmente
invertido, o
verdadeiro é um
momento do
falso”
Guy Debord
Filósofo
(1931-1994)
É EM LISBOA QUE ACONTECE A ESTREIA DO REALIZADOR
NORTE-AMERICANO GUS VAN SANT NA ENCENAÇÃO DE UM
ESPETÁCULO DE PALCO. O MUSICAL ANDY, BEM AO ESTILO
BROADWAY, PARTE DEPOIS PARA UMA DIGRESSÃO EUROPEIA
PEDRO DIAS DE ALMEIDA

BRUNO SIMÃO

23 SETEMBRO 2021 VISÃO 83

E
T E AT R O

Em abril de 1990 foi lançado um disco

que se tornou imediatamente histórico.
Afinal, juntava Lou Reed e John Cale,
músicos desavindos desde os tempos,
na segunda metade da década de 60,
em que perceberam que não havia lugar
para os dois dentro dos Velvet Under-
ground. Em 1968, Cale saiu, e Lou Reed
ficou mais uns tempos. O que os juntou,
mais de duas décadas depois, foi o ál-
bum Songs for Drella, dedicado a Andy
Warhol, que tinha morrido três anos
antes (em fevereiro de 1987, aos 58 anos,
na sequência de uma operação à vesí-
cula). Drella era a contração de Drácula
e Cinderela, um nome criativo por que
Warhol era conhecido em Nova Iorque
(consta que não lhe agradava muito). O
disco tinha 15 faixas e funcionava, ver-
dadeiramente, como uma inspirada e
sentida viagem pela vida do artista para
sempre associado à explosão da Pop Art,
grande mentor do rock cru e sujo dos
Velvet Underground (em contracorrente
numa época dominada pelos sonhos flo-
ridos dos hippies). Começava com Small
Town: “When you’re growing up in a
small town, you say, ‘No one famous
ever came from here’...” – “Quando cres-
ces numa terra pequena, dizes ‘nunca
ninguém famoso veio daqui’”. A “small
town” em que Andy Warhol nasceu, em
1928, filho de emigrantes originários da
atual Eslováquia, era Pittsburgh, na Pen-
silvânia. Depois de se mudar para Nova
Iorque, em 1949, Andy seria famoso,
muito famoso mesmo.
máquina do cinema made in USA.: Gus
O FILME ADORMECIDO Van Sant passou a ser um nome a que
Por altura do lançamento de Songs for
Drella, Gus Van Sant sentia, finalmente, GUS VAN SANT SUBLINHA os grandes estúdios estavam atentos.
Abriam-se várias janelas de possibili-
um grande reconhecimento pelo seu
trabalho como realizador. Em 1989 ti-
QUE REVISITAR WARHOL EM dades. Uma delas, com a marca da po-
derosa Universal, era a de dedicar um
nha-se estreado, com excelentes críticas, 2021 PERMITE VER COMO, filme à figura de Andy Warhol, baseado

EM TANTAS COISAS, ELE

o filme Drugstore Cowboy, com Matt na biografia que Victor Bockris tinha
Dillon (e uma presença especial do autor lançado em 1989. Falava-se mesmo no
de culto da Beat Generation William S.
Burroughs). Antes disso,
so, tinha só assi- FOI VERDADEIRAMENTE jovem ator River Phoenix para o papel
do protagoni
protagonista. O espetáculo de Songs
nado Mala Noche, filme me independente,
a preto-e-branco e de baixo orçamento,
VISIONÁRIO for Drella a que
q Van Sant assistiu teria,
mesmo, um papel importante como
que lhe valeu um culto to crescente nos inspiração desse
de potencial filme. Mas o
meios cinéfilos mais atentos
tentos e na cena projeto nunc
nunca chegou, sequer, a passar
artística gay/queer. Nascido
scido em 1952 na do papel. NNa filmografia de Gus Van
maior cidade do Kentucky,
ucky, Louisville, Sant seguir-
seguir-se-ia, em 1991, o marcan-
também ele sabia o queue era vir de uma te My Own Private
P Idaho, com Keanu
terra pequena, porque os pais mudavam Reeves e, precisamente,
pre River Phoenix
muito de casa e, quando do ele tinha dez (que morreri
morreria em 1993, aos 23 anos) nos
anos, fixaram-se em Darien,
arien, no Connec- principais pa
papéis.
ticut, verdadeira “smallll town”. A ideia dde dedicar um trabalho a
O sucesso de Drugstore
gstore Cowboy Andy Warhol
Warho ficaria suspensa, e mes-
teve o efeito esperado o nas rotinas da mo esquecida,
esquecid na carreira de Gus Van

84 VISÃO 23 SETEMBRO 2021


Sant, que dedicou filmes a figuras reais
célebres: Last Days, sobre Kurt Cobain
(estreado em 2005, 11 anos depois da
morte do cantor dos Nirvana) e Milk,
de 2008, sobre o político e ativista pelos
direitos dos homossexuais Harvey Milk
(filme que valeria a Sean Penn um Oscar
de Melhor Ator).
SIM, É MESMO UM MUSICAL
Até que, em Los Angeles, em pleno
século XXI, John Romão, encenador e
diretor artístico da bienal BoCA, sediada
em Lisboa, focada no cruzamento de
linguagens artísticas contemporâneas,
resolveu contactar Gus Van Sant, sa-
bendo que no passado ele já tinha mos-
trado interesse pelo teatro, escrevendo
algumas peças curtas. Esse telefonema
despertou, então, do adormecimento a
velha ideia do realizador. Andy não seria
um filme, mas, aproveitando essa pro-
posta, um musical. Essa surpreendente
opção prende-se com o entusiasmo com
BRUNO SIMÃO
que Gus Van Sant viu alguns musicais
recentes – especialmente, The Book of
Mormon.
Do autor de alguns filmes artisti-
camente tão desafiantes e pouco con-
vencionais (como Gerry, ou Elephant,
inspirado no massacre da escola de
Columbine, no Colorado), esperava-se,
talvez, uma tentativa de subversão do
género “musical” nesta estreia nas ar-
tes do palco. Mas, aparentemente, não
é bem isso que vai acontecer em Andy,
que hoje, 23, se estreia no Teatro Nacio-
nal D. Maria II, onde vai permanecer em
cena até 3 de outubro.
O realizador, e agora encenador,
organizou o espetáculo de uma forma
bastante linear. Praticamente toda a ação
decorre por ordem cronológica, em ce-
nas que evocam a vida de Andy Warhol,
e a sua entourage, entre 1959 e 1967.
O elenco é totalmente composto por
nove jovens atores e atrizes portugueses
(chegou a ser ponderado um casting na
“Andy” A equipa liderada por
Gus Van Sant é praticamente toda
composta por portugueses. A
cenografia, cheia de elementos
clássicos da pop art, é do arquiteto
e cenógrafo José Capela
Califórnia, mas a ideia foi rapidamente
abandonada). A direção musical é do
músico Paulo Furtado/The Legendary
Tigerman, que trabalhou a partir das
canções previamente escritas e compos-
tas pelo próprio Gus Van Sant (que tem
no currículo a edição de alguns discos
discretos, dois deles em colaboração
com William S. Burroughs e a sua voz
cava). Também aí, a julgar pelos excertos
de um ensaio a que a VISÃO assistiu, o
estilo é muito mais próximo daquilo que
associamos aos palcos da Broadway do
que ao rock e aos blues selvagens de
Tigerman ou às guitarras elétricas dos
Velvet Underground evocando os seus
primeiros tempos na Factory, o grande
estúdio multidisciplinar e revolucionário
de Andy Warhol em Nova Iorque. Sim, é
mesmo um musical: com atores a per-
correrem o palco em passo apressado
e a começarem subitamente a cantar.
Tudo em inglês.
O papel de Andy Warhol é interpre-
tado por Diogo Fernandes. À sua volta
giram várias figuras reconhecíveis do
mundo da arte em Nova Iorque nos anos
60, desdobradas nos restantes oito ato-
res (Carolina Amaral, Francisco Montei-
ro, Helena Caldeira, João Gouveia, Lucas
Dutra, Martim Martins, Miguel Amorim,
Valdemar Brito): o pintor Jasper Johns, a
modelo e atriz Edie Sedgwick, a vocalista
dos Velvet Undergound Nico ou o escri-
tor Truman Capote, entre muitos outros.
AS COISAS ESTAVAM A MUDAR
Ao escolher esta janela temporal da vida
de Warhol, o musical Andy permite
sublinhar vários momentos marcantes
na afirmação deste ícone do século XX.
Em 1959, Andy Warhol já vivia em Nova
Iorque há dez anos, onde trabalhava
em design e publicidade, e começava a
afirmar-se como artista, nem sempre
com grande aceitação, na sequência
dos expressionistas que antecipavam a
Pop Art, como Robert Rauschenberg. A
primeira cena do musical mostra-nos
o desconfiado crítico de arte Clement
Greenberg e uma frase curta que nos
dá o contexto do que aí vem: “Things
are changing!” Sim, as coisas estavam
a mudar.
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 85
 T E AT R O
GUS VAN SANT REALIZADOR
“A história de Andy Warhol era tão
caótica que achei que podia funcionar
bem num musical”
Os ensaios finais para o
musical Andy (que hoje,
23, se estreia no palco do
Teatro Nacional D. Maria II)
aconteceram nos estúdios
da Tobis, no Lumiar. Um
lugar marcado pela história
do cinema português, onde
o realizador Gus Van Sant
vai agora experimentando as
especificidades do trabalho
dramático, dirigindo um
elenco muito jovem. Foi
aí, numa tarde quente e
chuvosa de verão, que o
encontrámos, para uma
entrevista coletiva de meia
hora. Gus Van Sant fala
em voz baixa, pausada,
deixando transparecer uma
timidez natural. Mas não
deixa nenhuma pergunta por
responder. Excertos dessa
conversa a várias vozes.
Como veio parar a Lisboa,
a encenar um musical
sobre Andy Warhol? Parece
bastante inesperado na sua
carreira, talvez até mesmo
para si...
Sim, também para mim...
Estive envolvido na ideia
de um filme sobre Andy
Warhol, em 1990. Chegámos
a trabalhar um guião, mas
o projeto, que envolvia os
estúdios Universal, nunca
chegou a ir a lado nenhum...
A verdade é que conheci
algumas pessoas ligadas ao
Andy e continuei a relacionar-
me com elas. Paige Powell foi
uma delas. E fui absorvendo
informação... Sobretudo
sobre Nova Iorque nos anos
86 VISÃO 23 SETEMBRO 2021
80, não tanto nas décadas
anteriores. Mas, nessa fase,
já não planeava fazer nada
com isso. Nos últimos anos,
quis fazer alguma coisa para
os palcos. Já tinha escrito
algumas peças curtas na
minha vida, mas nunca
tinha encenado nada. Por
coincidência, John Romão, da
bienal Boca, contactou-me
em Los Angeles, perguntando
se eu teria alguma coisa em
BRUNO SIMÃO
que quisesse trabalhar mais
ligada ao teatro, aos palcos.
Respondi-lhe que tinha este
projeto de um musical. A sua
primeira reação foi dizer que
isso não encaixava muito no
estilo do que procuravam na
Boca... Mas, depois,voltou
a ligar-me, dizendo que
podíamos arranjar uma
maneira de trabalhar nisto. E
aqui estou, a aprender a fazer
teatro.
Porque escolheu o formato
de um musical?
Havia a tal ideia de um filme,
que não estava pensado
como um musical. Mas nos
últimos anos pensei que este
género, em palco, era algo
que gostava de experimentar.
E o Andy começou a fazer o
seu caminho... A sua história
era tão caótica que achei que
podia funcionar bem num
musical. Fui inspirado por
alguns musicais recentes, que
eram sérios e divertidos ao
mesmo tempo. Estou a pensar,
por exemplo, no The Book of
Mormon [que se estreou, com
grande sucesso, na Broadway,
em Nova Iorque, em 2011].
Será uma experiência para
continuar noutros projetos?
Não sei. Este ainda nem
está terminado... Mas está
a ser muito interessante.
Trabalhar no palco é
surpreendentemente muito
diferente de fazer um filme.
Está habituado a escolher
várias perspetivas e
ângulos no cinema. Aqui
está muito mais limitado a
um só plano... Como lidou
com isso?
O cinema tem só cerca de
140 anos... É um meio muito
recente, na verdade, comparan-
do com o teatro. Quando lemos
uma peça muito antiga, estão
lá elementos que se relacio-
nam facilmente com o mundo
contemporâneo, escritos de
uma maneira que funciona bem
para contar histórias hoje. Mas a
coisa mais importante, a maior
diferença, claro, é que não há
nenhuma gravação, está tudo a
acontecer realmente ali à nossa
frente. Na verdade, com as
luzes, e o dispositivo cénico, até
podemos criar um registo visual
próximo do cinema... Mas, de-
pois, a performance dos atores
muda de um dia para o outro, e
isso é muito interessante.
Porquê um elenco tão
jovem?
Uma das ideias foi distanciar
ao máximo o que estamos
fazer da realidade de Andy
Warhol, daquele mundo da arte
de Nova Iorque, da Factory...
Assumir, mesmo, que esta
é uma representação desse
mundo e não uma tentativa de o
assimilar em palco. Andy disse
um dia que, no futuro, peças
de teatro, filmes e programas
de televisão só teriam atores
muito jovens. Isso também me
BRUNO SIMÃO
inspirou.
E o trabalho com estes
jovens atores está a correr
bem?
Sim, completamente. Têm
muita experiência, comparando
comigo [risos].
O estilo das canções
aproxima-se mais do
universo clássico da
Broadway do que dos Velvet
Underground...
Sim, é verdade. Não fomos por
esse caminho. Mas há umas
que soam mais rock e pop.
Escrevi as canções e toquei-
as com uma guitarra. Depois,
enviei-as ao Paulo [Furtado] e
ele reinterpretou-as, às vezes
fazendo pequenas mudanças.
Foi mesmo uma parceria.
Conheceu pessoalmente
Andy Warhol?
Nunca o conheci... Fui às
empresas de Warhol quando
Fred Hughes ainda estava lá, e
a Brigid [Berlin] ainda estava na
secretária na receção. Conheci-
os. Lembro-me de ver Andy
Warhol na Madison Avenue, em
1982, com um casaco de ski e
uma mochila, ao lado de um
homem de fato, e dissemos:
“Olha, está ali o Andy Warhol!”
É a única memória direta que
tenho dele... Os meus filmes
só começaram a ganhar
notoriedade em 1989 e, aí, ele
já não estava por cá [Andy
Warhol morreu em fevereiro
de 1987]. Mas Paige Powell
trabalhou com ele, na revista
Interview, durante oito anos e
era muito próxima dele, saíam
todas as noites... E, através
dela, é como se o tivesse
conhecido.
Em cena Todo o elenco deste musical é muito jovem. Diogo Fernandes,
no papel de Andy Warhol (à esquerda), tem um lugar de destaque
Warhol não foi só revolucionário
com a sua produção artística colorida,
dando valor e poder à imagem duma
lata de sopa enlatada ou a uma caixa de
detergentes, e com os seus longuíssimos
filmes experimentais. Foi-o, sobretudo,
no modo como transformou a sua vida,
a sua presença, numa espécie de per-
formance permanente. Foi enigmático
e desconcertante na sua relação com
os outros e com a atenção mediática
(são célebres as suas respostas monos-
silábicas ou com longos mmmmhhs...);
chegou a dizer aos jornalistas que, nas
entrevistas, diria sempre o que eles
queriam ouvir: “O entrevistador só tem
de me dizer as palavras que quer ouvir
e eu repito-as para ele.” Subverteu e
deu novos sentidos à relação entre arte
e dinheiro; tendo consciência do valor
da sua assinatura, da sua marca, repro-
duzia-a abundantemente, por exemplo,
em notas de dólar que subitamente
ficavam supervalorizadas (e que, ainda
hoje, fazem o seu caminho em leilões...).
No musical, pode-se ver, por exemplo,
como o modelo de negócio da Factory
A DIMENSÃO CÉNICA,
QUASE IRREAL, DA
FIGURA DE ANDY
WARHOL É UM DADO
ADQUIRIDO. O PALCO
PARECE SER O SEU
HABITAT
foi, a certa altura, a realização de simples
retratos fotográficos de celebridades (ou
wannabes...) que pagavam bem só por
ser Andy Warhol a disparar a máquina
e, claro, a disponibilizar a assinatura...
Gus Van Sant sublinha que revisitar
Warhol em 2021 permite ver como, em
tantas coisas, ele foi verdadeiramente vi-
sionário. A sua frase mais célebre – “no
futuro todos terão os seus 15 minutos
de fama” – tem óbvios ecos nestes dias
de programas como o Big Brother ou de
redes sociais como o TikTok. Mas Gus
Van Sant recorda, ainda, outra previsão
acertada. Dizia Andy Warhol que, com
os avanços tecnológicos, as pessoas co-
meçariam a deixar de ir ver filmes aos
cinemas, para o fazerem em suas casas
(saindo só para ir ao teatro ou convive-
rem). O sucesso do streaming tende a
dar-lhe razão... Toda a lógica do mundo,
muito americano, das “celebridades”,
com o seu imediatismo, deve muito a
um imaginário alimentado por Warhol,
por exemplo, na sua revista Interview.
Não ficou de fora do musical uma das
cenas mais trágicas na vida “caótica” de
Andy Warhol: o momento em que, em
1968, foi baleado na Factory por Valerie
Solanas, feminista radical que, um ano
antes, tinha publicado o violento SCUM
Manifesto, em que, provocatoriamente,
apelava à eliminação do sexo masculino
e a um mundo totalmente liderado por
mulheres. A dimensão cénica, quase
irreal, da figura de Andy Warhol é um
dado adquirido. O palco parece ser o
seu habitat natural. Acreditamos que
gostaria de se ver, entre jovens atores,
neste musical que, depois de Lisboa, já
tem paragens confirmadas em Itália,
Alemanha, Holanda, França e Grécia.
palmeida@visao.pt
23 SETEMBRO 2021 VISÃO 87
 PESSOAS

Ana Moreira
MÃE-CORAGEM
A atriz portuguesa está de regresso ao cinema com Sombra, de Bruno Gascon, em que veste a pele
de Luísa, uma mulher cuja vida dá uma volta de 180 graus com o desaparecimento súbito do filho de 11 anos.
Uma história de sofrimento e coragem, inspirada em casos reais como o de Rui Pedro

J
á falta pouco para que o
talento de Ana Moreira, dis-
tinguida com os prémios de
Melhor Atriz nos festivais de
cinema de Bastia e de Taor-
mina e vencedora do Globo de Ouro
de Melhor Atriz (2006) pela prestação
em Adriana, de Margarida Gil, volte a
encher as telas das salas nacionais. Som-
bra, segunda longa-metragem realizada
pelo português Bruno Gascon, chega aos
cinemas no próximo dia 14 de outubro,
depois da sua estreia internacional no
Barcelona-Sant Jordi International Film
Festival – onde foi duplamente premia-
da com os galardões de Melhor Obra e
Filme-História – e da passagem pelo
Festival Internacional de Cinema de
Xangai e pelo Festival de Cinema Ischia.
Baseado em factos verídicos, o filme é
fortemente inspirado na história de Rui
Pedro, o menino de 11 anos desaparecido
em março de 1998, em Lousada, e nas
duas décadas de investigações infrutífe-
ras em relação ao seu paradeiro.
Ana Moreira assume a pele da protago-
nista, Luísa, uma mulher que vê arruinada
a felicidade idílica do seu núcleo familiar
quando o filho Pedro se esfuma sem dei-
xar rasto. Apesar da repercussão mediá-
tica em torno do caso e da existência de
um suspeito, escoam-se 15 anos desde o
dia do desaparecimento, e os diminutos
avanços nas investigações policiais nada
apontam sobre o destino da criança.
O filme de Bruno Gascon acompanha
a vida de Luísa ao longo de quatro pe-
ríodos temporais distintos (1998, 2004,
2011 e 2013), registando a luta por ela
travada a partir do momento em que
se apercebe de que é a única pessoa a
acreditar na possibilidade de reencon-
trar o filho.
“As pessoas pensam que eu estou ma-
luca, mas é verdade. Eu sei que ele ainda
está vivo”, afirma a personagem, com
uma carga emocional habilmente inter-
pretada por Ana Moreira. A acompanhar
a atriz, está um eclético elenco que conta
com Vítor Norte, Lúcia Moniz, Joana
Ribeiro, Ana Cristina Oliveira e Tomás
Alves, incluindo ainda uma participação
especial da modelo Sara Sampaio. Um
ensemble que narra “uma história de
amor, força e coragem” e que faz uma
homenagem a todas as mães de crian-
ças desaparecidas – tal como Filomena
Teixeira, mãe de Rui Pedro, com quem
Gascon falou durante a elaboração do
guião. Alexandre Abrantes Neves

88 VISÃO 23 SETEMBRO 2021

Conto à Buarque
Com tantas provas dadas na música e no romance, o artista brasileiro
aventura-se agora num novo género literário. Anos de Chumbo e Outros
Contos chega em novembro a Portugal

Contas feitas, são 17 álbuns gravados em mais

de 50 anos de carreira na música popular brasileira,
e incursões várias e premiadas pela literatura, desde
romances e livros infantis até à poesia e às peças de
teatro. Chico Buarque junta-lhes agora um primeiro
livro de contos: Anos de Chumbo e Outros Contos tem
lançamento previsto para 22 de outubro no Brasil e, em
novembro, chega às livrarias portuguesas com o selo
da Companhia das Letras. De um casal na sua primeira
viagem conjunta a um fanático por Clarice Lispector,
de um lar em guerra a uma desavença familiar, os
temas dos oito contos desta estreia de Buarque
no género da ficção curta conduzem-nos pelos
fantasmas da censura da ditadura militar (1964-1985)
e pela “sordidez e o patético da condição humana”.

GONÇALO ROSA DA SILVA

Abordando temas como “o sexo, a perversidade,
o desalento e o delírio”, reza a informação divulgada,
estes são explorados com o estilo do artista, galardoado
com o Prémio Camões 2019: conciso na forma e hábil
no conteúdo, aliando poesia e comédia. A.A.N.

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 CRÓNICA

(agradeço ao Gonçalo Mendonça e ao Francisco Plácido pela

compilação das palavras, termos e expressões que constam

A
desta crónica)

coisa que mais graça tem na vida são palavras.

P O R M I G U E L A R A Ú J O / Músico
As palavras têm alma própria e só se lhes
acede falando uma língua desde sempre,
a toda a hora, indo a lojas, ouvindo os
professores linguajar sempre que não estão
a tentar ensinar uma língua, ouvindo os
locutores das notícias, ouvindo as pessoas

Palavras da mesma idade a matar a língua anterior e

a inventar uma nova, tendo ido com a avó à costureira, lendo os
livros de Meio Físico e Social carregados de palavras que ninguém

que diz e que só lá é que aparecem. Entender a alma própria que as

palavras têm. Fascinam-me, por exemplo, palavras exclusivas de
uma profissão em concreto. As senhoras das farmácias abusam

existem do verbo fazer, empregam-no onde mais ninguém se lembraria.

O menino fez temperatura? Se a temperatura não baixar tem
que fazer paracetamol intercalado com ibuprofeno de quatro em
mas que quatro. Os homens das lojas de coisas tecnológicas chamam aos
telemóveis “equipamento”. Os senhores dos cafés chamam “infra” à

ninguém tostadeira. Os entendidos em computadores chamam “máquina” aos

computadores. Mas o lote de palavras que me tem fascinado muito
ultimamente é o lote das palavras que existem em abundância mas

diz que ninguém diz, nunca ninguém disse, nunca ninguém ouviu de
ninguém numa conversa normal, mas que existem, estão presentes
com todo o vigor. Aparecem em livros infantis, em manuais de
escola, nas notícias, nos jornais, em frascos e embalagens, em
folhetos de instruções. Não falo de palavras raras, ou antigas, ou que
caíram em desuso, como “temporão” (o contrário de “tardio”), ou
“amplexo”, ou “olvidar”, nem daquelas palavras que só os pais ou os
avós é que dizem, como “periódico” ou “gasoil”.
Falo de palavras que andam por aí cheias de força, mas não no
mundo cá fora, porque ninguém as diz nas conversas do mundo cá
fora. Como “bosque”. Vem nos livros de reis e princesas, mas não
se usa. Ninguém diz “bosque”. Ou “tépido”, “enxaguar” e “enxugar”.
Ou “alperce”. Palavras que se leem, mas não se ouvem. Quer-me
parecer que “blusa” é uma dessas palavras também. Pode vir no
site da Zara, mas será que alguém a diz? “Campo”. Existe “casa de
campo”, “férias no campo”, mas não será uma existência exclusiva
do livro de Meio Físico e Social, naqueles capítulos dedicados aos
setores primário, secundário e terciário? “Dromedário” é outra.
Existe, toda a gente sabe que dromedário é um bicho e camelo é
outro, mas na vida real vai tudo corrido a camelo. Até a própria
marca dos reconhecidos cigarros Camel escolheu essa mais vulgar
e, na realidade, única designação possível para batizar o famoso
dromedário que lhe serve de logótipo. Um dos melhores exemplos
é o famigerado pretérito mais-que-perfeito. De tão perfeito, a
quantidade de vezes que alguém o emprega na vida real é nenhuma,
nunca, por razão alguma. Quisera, fizera, comprara, deixara. Existe,
Existe, toda a ensina-se, ainda aparece em livros escritos hoje em dia. Mas não se
gente sabe que usa. Como a segunda pessoa do plural, exclusiva de uma pequena
dromedário é um franja do clero diocesano. Na realidade, a própria conjugação
dos verbos no futuro apenas existe na gramática teórica, porque
bicho e camelo ninguém diz “em breve tomarei um café”. São múltiplos, os
é outro, mas na exemplos. Distante, Ensino Secundário, colher flores, púrpura,
violeta, orvalho. Todas requerem que se as diga em voz alta, não
vida real vai tudo basta ler. A confirmação exige que se fale sozinho. E isso tem
corrido a camelo bastante graça, também. visao@visao.pt

90 VISÃO 23 SETEMBRO 2021