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Porto Alegre
2022

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Copyright ©, 2022 do autor

Coordenação Editorial
Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Revisão
Adriana Prestes do Nascimento Palú
Artur Palú Filho
Cátia Cilene da Silva
Laís Marx Umpierre
Luana de Menezes Paim
Mario Ricardo Guadagnin
Paulina dos Santos Gonçalves
Rosa Maris Rosado
Victória Mello Fernandes

Diagramação e Capa
Osmair Pereira

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Cardoso, Alexsandro
O eu catador: reciclando humanidades / Alexandro Cardoso. – Porto Alegre :
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UFRGS, 2022.
166 p.: il.

Requisitos do sistema: Adobe Reader.


Modo de acesso: World Wide Web

ISBN on-line: 978-65-5973-182-4

1. Ciências Sociais . 2. Cooperativismo. 3. Reciclagem. I. Cardoso, Alexandro.


II Título.
CDD 334

Catalogação na publicação: Juliani Menezes dos Reis – CRB10/2268

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DEDICATÓRIA
As pequenas e pequenos do mundo,
para que caminhem sem pisar em ninguém.

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SUMÁRIO

9 TURBILHÕES DE EMOÇÕES, COMO NÃO SE EMOCIONAR COM TUDO ISSO

13 O FIM DO MUNDO CHEGA MAIS CEDO PARA NÓS

17 AGRADECIMENTOS

21 APRESENTAÇÃO DO AUTOR

25 INTRODUÇÃO E OBJETIVOS

31 POR QUE ESCREVER?

35 EDUCADOR EDUCANDO - POTÊNCIA DA EDUCAÇÃO

43 VAI TER CATADOR DOUTOR

55 CATADOR DE VALORIZAÇÃO E RECONHECIMENTO

67 POTÊNCIA DE DENTRO, CATAR E PESQUISAR

85 EMPATIA E SOLIDARIEDADE, O TRABALHO SUJO

99 A RESSIGNIFICAÇÃO DOS RESÍDUOS

113 CULTURA SOCIAL DA RECICLAGEM

119 CONTEXTO HISTÓRICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS DE RECICLAGEM,


GERAÇÃO DE TRABALHO E RENDA EM PORTO ALEGRE

127 PORTO ALEGRE É TRISTE: RECICLA OU NÃO RECICLA?

135 RECICLANDO HUMANIDADES: A EXPERIÊNCIA DA COOPERATIVA ASCAT


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149 CONSIDERAÇÕES FINAIS

159 REFERÊNCIAS

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TURBILHÕES DE EMOÇÕES, COMO NÃO SE EMOCIONAR COM TUDO ISSO

Quando o Alex me convidou para escrever o prefácio, me senti


emocionado e agradecido. No meio de tanta admiração e carinho que
nutro por ele, cheguei a me sentir travado e incapaz de contribuir com
as palavras necessárias e adequadas para mais essa lindeza que nasce,
o seu segundo livro. Com isso, se ele demorou para sair, a responsa-
bilidade também é minha por atrasar sistematicamente a escrita deste
prefácio ou demorar para conseguir me sentir capaz de preencher com
palavras os meus votos de admiração e carinho.
Tive a oportunidade de ser colega do Alex desde o primeiro se-
mestre da graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Onde tive o privilégio de poder acompanhar os
caminhos do Alex durante os anos do curso, tanto nos trabalhos das
disciplinas, na conclusão do curso – que resultou neste livro – bem
como nos momentos de lutas diárias pela categoria das catadoras e cata-
dores de materiais recicláveis. Eu considero uma honra poder fazer essa
pequena contribuição ao seu livro e agradeço repetidamente à amizade
e o quanto o Alex ensina a mim, minhas e meus colegas, às professoras
e professores que tivemos e à universidade como um todo.
Tentando resgatar os momentos dessa trajetória, lembro do Alex
sorridente e com os olhos brilhantes que entrou na sala, no nosso pri-
meiro dia de aula. Eu também estava com os meus olhos brilhando
de emoção por acessar a universidade e, acredito, que permanecemos
assim. O Alex chegou cumprimentando todo mundo, com o chimar-
rão nas mãos e foi construindo coletivamente um ambiente para que a
universidade se tornasse um espaço solidariedade, empatia e amor. Para
além dos conhecimentos que os textos lidos e das discussões feitas em
aula, ele sempre trazia contribuições práticas, principalmente, com os
olhares e vozes que foram caladas e limitadas o seu acesso à universida-
de. Acredito que mais respondas para a complexa pergunta “para que/
quem serve o teu conhecimento?” foram dadas nas discussões coletivas

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com a presença do Alex. Além disso, mais respostas foram dadas para
essa pergunta com o ingresso de tantas e tantos Alex que ingressaram
nas universidades brasileiras via políticas de ações afirmativas. Acho que
o livro é mais um esforço de demonstrar para que serve o nosso conhe-
cimento.
O Alex é, acima de tudo, um sonhador e um lutador. Com sua
luta, vai rompendo com garra e afeto as barreiras construídas para a
perpetuação das desigualdades sociais abissais de um dos países mais
desiguais e violentos do mundo. E, com seu sonho, busca construir
coletivamente um caminho de emancipação e valorização das catadoras
e catadores de materiais recicláveis e demais pessoas excluídas e invisibi-
lizadas pelas lógicas nefastas da sociedade. O Alex sempre compreendeu
o papel político do seu acesso à universidade e a responsabilidade que
carrega como negro, cotista, como sujeito excluído e marginalizado em
uma sociedade injusta. Tanto é que fez de sua luta uma fonte de estu-
dos, amplificação de vozes antes abafadas pelos muros da universidade
e espaço de acolhida e estímulo para quem está por perto.
É necessário destacar que o acesso do Alex à universidade é uma
exceção. Milhões de Alex sucumbem às violências destinadas a quem
nasce pobre e negro no Brasil. Por isso, sua trajetória jamais deve ser
usada para validar a hipocrisia meritocrática das nossas elites, que diz
que “basta se esforçar, que se vence na vida”. A caminhada do Alex é a
combinação de esforço individual e luta coletiva. Neste momento, me
emociono ao lembrar da trajetória do Alex e sua disposição e capaci-
dade de fazer com que a esperança coletiva de um mundo mais justo
permaneça vida e operante. Gostaria de apresentar duas lembranças que
parecem marcar essa luta coletiva.
A primeira deles é um relato do Alex sobre a apreensão anterior à
divulgação do listão de aprovadas e aprovados no vestibular da UFRGS,
de 2018. O Alex estava no estado Tocantins encontrando catadoras e
catadores do estado, na sua atuação incessante de mobilização da cate-
goria. Ao ter conhecimento da aprovação, todas as pessoas vibraram,
choraram e comemoraram a sua aprovação, o momento em que o cata-
dor passa a ter acesso à universidade. A retomada do Alex aos estudos e
sua atuação na universidade é a expressão de toda uma categoria de tra-

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balhadoras e trabalhadoras fundamentais, que desempenham um papel
essencial na manutenção do planeta.
Outra lembrança que vem à memória é o momento da defesa do
trabalho de conclusão de curso do Alex. Durante a sua trajetória na gra-
duação, o Alex se desdobrou entre militância e os estudos, tendo con-
cluído com excelência e de uma forma muito emocionante e cheia de
significados. O seu trabalho foi apresentado na Cooperativa dos Cata-
dores de Materiais Recicláveis da Cavalhada (ASCAT), que estava toda
decorada para receber o evento. Foi, sem dúvida, um dos momentos
mais emocionantes que já presenciei. No evento, havia aproximada-
mente 80 pessoas, entre as catadoras e catadores da ASCAT, amizades e
familiares do Alex, professoras e professores que passaram pela sua tra-
jetória no Ensino Fundamental, Ensino Médio e colegas da graduação.
Além disso, mais de 3500 pessoas acompanharam online a transmissão
da defesa.
Isso demonstra a solidariedade em alternativa à meritocracia, onde
a trajetória do Alex se deu de maneira coletiva, não sendo à toa a quanti-
dade de pessoas assistindo sua defesa de conclusão. A gravação da defesa
pode ser facilmente encontrada no YouTube, no canal do Movimento
Nacional das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR)
e vale cada segundo, pois é de uma riqueza e simbolismo capaz de ar-
repiar, inspirar e recarregar as energias para a luta por uma sociedade
mais justa. No final, todo mundo se abraçou e vibrou à conquista e a
realização de mais um passo na trajetória de inspiração, reflexão e lutas
do Alex.
Preciso dizer que devo boa parte do percurso da graduação à pre-
sença do Alex nos meus dias. Sem dúvidas, a minha trajetória e a de
tantas e tantos colegas oriundas e oriundos das ações afirmativas da
universidade seria mais complicada. Além de um grande amigo, o Alex
é um pesquisador competentíssimo, um escritor excelente, um intelec-
tual brilhante, um lutador por natureza e uma inspiração para encarar e
se engajar nas lutas por uma universidade mais acolhedora e humana e
por uma sociedade mais justa.
Mais um livro do Alex é motivo para transbordar de alegria. Se tem
uma coisa certa é que não tem como passar pelo convívio ou leitura de

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textos do Alex sem ser afetado e repensar práticas diárias e ações para a
construção de um mundo mais justo. Desejo uma ótima leitura a você
que adquiriu o livro e deixo os meus votos de que as esperanças se tor-
nem ações. Vai ter catador doutor!

Cristiano Nicola Ferreira


Cientista Social - UFRGS

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O FIM DO MUNDO CHEGA MAIS CEDO PARA NÓS

Lembro-me vividamente de uma aula de Políticas Ambientais so-


bre uma recente - e disputada - noção que tem catalisado os debates
sobre o futuro da vida neste planeta: o Antropoceno. Começamos tra-
tando de como a ideia geral que forma o debate sobre o Antropoce-
no é a de que uma nova época geológica tem sido definida pela ação
humana, alterando a biodiversidade, os climas, os ambientes ou mais
amplamente, o próprio curso da vida na Terra e de como neste cenário
multiplicam-se “paisagens em ruínas”, que incluem extinções em massa,
desmatamento, derretimento de geleiras polares, acidificação dos ocea-
nos e secas arrasadoras com profundas implicações sanitárias e sociais3.
O que ganhava forma na nossa discussão era a ideia de que o conceito
de Antropoceno produz um ponto de bifurcação que anula a cisão entre
natureza e cultura, entre história humana e história da vida da Terra,
alterando a na nossa apreensão da história, a nossa concepção de liber-
dade e as nossas práticas de democracia.
Além disso, no contexto de uma aula online em razão das medi-
das sanitárias em virtude da Covid-19, pontuamos que aumento na
frequência de fenômenos climáticos extremos, a degradação ambien-
tal, a pandemia e a fome são desafios que convocam a comunidade
acadêmica a construir possibilidades de enfrentamento, pois catástrofes
sanitárias, sociais e ambientais não são fenômenos que se encontram
isolados uns dos outros e independentes da ação humana. Ao contrário,
tratam-se de eventos antrópicos, sobremaneira, acelerados pelo impacto
da civilização industrial nas dinâmicas da Terra.
“Mas o fim do mundo chega mais cedo para nós”. Foi com essa
frase que Alex tensionou o debate que até então se desenvolvia. E ele
tinha toda razão, em sua crítica, pois se de um lado, o conceito de An-
tropoceno avançava na produção ampla de alianças entre ciências natu-
3 Em discussão, um conjunto de críticas e análises amplamente desenvolvidas por autores e autoras como Christophe
Bonneuil, Jean-Baptiste Fressoz, Dipesh Chakrabarty, Anna Tsing, Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Cas-
tro, Bruno Latour, Pierre Charbonnier, entre outros e outras.

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rais e humanas no reconhecimento de uma profunda crise ecológica de
natureza antrópica, de outro, ele ainda se desconectava das realidades
sociais, marcadas por históricas e violentas estruturas e processos de
desigualdade que colocam determinadas populações sob graus despro-
porcionais de seus impactos. Em outros termos, o que a experiência
concreta que Alex trazia para o debate expunha os limites analíticos do
conceito de Antropoceno, que não incluía as injustiças sociais. Afinal,
quem é o antropos do Antropoceno? Para quem o fim do mundo chega
antes? É possível (e justo) tratar a humanidade como uma e dividir por
igual as responsabilidades pela destruição do planeta?
Mais do que um evento geológico-biológico, o Antropoceno é so-
cial e político e impele a analisar em conjunto catástrofes ecológicas,
eventos extremos, cidadania e riscos socioambientais. Em meio a uma
profunda crise ecológica que põe em risco a vida do planeta, quem são
os mais afetados e como pesquisas como a que Alexandro Cardoso nos
apresenta neste livro podem responder às situações de vulnerabilidade
destas populações?
O trabalho de pesquisa com catadores de materiais reclicáveis ex-
põe a emergência dos problemas resultantes da convivência com o lixo
e tangibiliza questões constituem a agenda cidadã do Antropoceno a
partir de uma situação cotidiana de meios urbanos, quase sempre invisi-
bilizada e estigmatizada. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econô-
mica Aplicada (IPEA), aproximadamente 160 mil toneladas de resíduos
sólidos urbanos são geradas por dia no Brasil, das quais, não mais do
que 4% é reciclado. Mesmo assim, os dados organizados pelo Movimen-
to Nacional dos Catadores de Materiais Reciclados, mostra que a categoria
é responsável pela coleta de 90% de tudo que é reciclado atualmente
no Brasil. Trata-se de um contingente de trabalho fundamental para a
salvaguarda sanitária e ambiental, cujo número ultrapassa os 800 mil
no Brasil, sendo as mulheres cerca de 70% de quem realiza a catação, a
separação e o processamento do reciclável4. Adicionalmente, cabe en-
fatizar que se trata de uma população que vive sob inúmeras formas de
4 Ver “Resíduos sólidos urbanos no Brasil”, disponível em: <https://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-de-conteudo/ar-
tigos/artigos/217-residuos-solidos-urbanos-no-brasil-desafios-tecnologicos-politicos-e-economicos>. Ver também
o Portal do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclados, disponível em: <https://www.mncr.org.
br>. Acesso em novembro de 2022.

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vulnerabilidade social e risco, como baixa escolarização, falta de garan-
tias trabalhistas, insalubridade ante a exposição física a intempéries e
eventos climáticos extremos (sol forte, chuvas e o frio das madrugadas),
substâncias potencialmente contaminantes e objetivos cortantes. Em
alguns casos, a catação também é realizada por população que vive em
situação de rua.
Além disso, o amplo conjunto de trabalhos desenvolvidos por Ale-
xandro Cardoso no âmbito da Rede Covid-19 Humanidades MCTI tam-
bém apontou para um incremento na precariedade social da situação
de catadores e catadores. Evidências disso foram os níveis de exposição
a contaminações aumentados pela falta de equipamentos de proteção
individual, a exposição de crianças a ambientes de trabalho face ao fe-
chamento de creches e escolas, a manipulação de materiais domésticos
potencialmente contaminados inadequadamente descartados, como as
máscaras de proteção facial e, sobremaneira, a fome, agravada pela si-
tuação político-econômica durante a pandemia de Covid-19 no Brasil.
Mesmo assim, diante de cenários tão difíceis e ecoando trabalhos
como o da antropóloga Anna Tsing, a pesquisa de Alex nos mostra que
há vida (luta e resistência) em meio às “ruínas”. Para ele, pistas impor-
tantes para vencer tanta falta de futuro para a vida no planeta e para as
injustiças implicadas nela começam pela empatia e pela solidariedade
- peças-chave da noção de cultura social da reciclagem”, que ele desen-
volve neste livro. Nas suas palavras:
A cultura social da reciclagem é a conexão entre catadoras/es de
materiais recicláveis e geradoras/es de resíduos, mediados pelos
materiais recicláveis, conectados pela empatia e a solidarieda-
de, gerando reciclagem dos resíduos e seus imensos benefícios
sociais, econômicos, ambientais, culturais e políticos (p. XX,
neste volume).

Voltar a se conectar - essa é, para mim, a mensagem que Alex nos


traz neste livro. Por isso, a cultura social da reciclagem não se resume a
pensar o destino dos resíduos, mas das nossas relações para além dos hu-
manos entre si, mas com a vida de animais, das plantas, dos solos, dos
minerais, da atmosfera. Os resíduos têm biografias legíveis, medeiam
relações, estabelecem políticas e vínculos. Alex nos ensina a aprender

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com eles e com os catadores e as catadoras sobre solidariedade, empatia
e que não há futuro da vida do planeta sem justiça social.
Jean Segata
Universidade Federal do Rio Grande do Su

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AGRADECIMENTOS

A quem acreditou e nunca desistiu.


Quando decidi, depois de 20 anos postergando tornar-me mais
uma vez, estudante institucionalizado vinculado à alguma escola, decidi
assim no mais, como na expressão gaúcha “de vereda”, adentrar pelos
portões abertos da Escola Municipal Neusa Goulart, já na altura dos
meus 34 anos de idade.
De fato eu tinha um sonho, um desejo latente que me provocava
incessantemente a voltar aos estudos, a buscar ocupar um lugar de trocas
de saberes que pudesse alcançar mais trocas, para além das minhas redes
sociais de catadoras/es e suas reverberações, mas de fato não imaginava o
quanto eu poderia crescer intelectualmente ou me encontrar num lugar
de andanças, desejando crescer, quanto mais sabendo, mais questionan-
do, aprendendo, ampliando minhas redes associativas, fortalecendo mi-
nha empatia, meu amor pela vida e tudo o que ela representa.
Quatro anos mais tarde, estava recebendo os diplomas de conclu-
são do ensino fundamental e médio, os quais, aliás, tu não sabes o que
significam e tão pouco posso traduzir aqui em palavras, mas solicito que
possas imaginar o tamanho da minha alegria em ter estes diplomas, pois
o que pode ser normal, despercebido para a maioria das pessoas, fruto
de uma conquista na juventude, conquistada durante um período em
que a tarefa é apenas estudar, para mim foi uma gigante, linda e precio-
sa batalha, um grande divisor de águas, tornando-se uma das grandes
conquistas da minha vida.
Imediatamente após a conclusão do ensino médio, não relaxei,
não deixei a peteca cair, busquei jogar ela mais alto, eu tinha forças,
objetivos, desejos e não ia desistir. Eu queria ingressar na universidade,
queria ingressar na UFRGS e sabia que a batalha seria muito maior,
justamente porque iria colocar a prova, a teste, todos os conhecimen-
tos que havia adquirido nestes três anos e meio de formação, os quais
deveria sem realizados em oito anos, a contar da educação formal, com

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colegas jovens que estudaram estes oito anos, e muitos advindos das
escolas privadas.
Logo, corri atrás de um cursinho popular - o EMANCIPA - e
mais alguns passos desta sonhada e realizada caminhada, estava entran-
do pela primeira vez como estudante na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) não como convidado palestrante, mas como
estudante universitário, sonho de quase todas/os as/os pretas/os da peri-
feria. Triunfal, uma entrada pela porta da frente, como direito a notícias
na imprensa e olhares de lado, apontado: “é ele” o primeiro catador de
materiais recicláveis ingresso na UFRGS.
Também pudera, infelizmente é normal a/o catadora/r puxar car-
rinho, revirar lixeiras, mergulhar em contêineres em busca de materiais
recicláveis, dormir na rua e mendigar em sinaleiras, até mesmo ser cha-
mado para dar depoimentos aos estudantes em eventos universitários,
onde recebem o título de estudante da “faculdade da vida” (CARDO-
SO, 2021), mas é completamente estranho - anormal - entrar numa
universidade para estudar, para a faculdade da vida real, ainda mais uma
universidade federal e gratuita – o que torna controvérsia está anorma-
lidade – e uma das melhores do Brasil. O máximo que faríamos numa
universidade seria ser um objeto/caso de estudos ou ainda para coletar
os resíduos recicláveis, mas jamais para sentar nos bancos acadêmicos,
ser estudante.
Não posso jamais romantizar este avanço, nem tampouco con-
cordar como merecimento causado unicamente pelos meus esforços,
justamente porque todos os dias, milhares de Alex se esforçam tanto e
mesmo assim acabam sucumbindo nas escolas periféricas deste Brasil,
atrás deste tipo de concordância, que olha apenas para um, enquanto
invisibiliza milhares, se esconde a sociedade da meritocracia, esta mes-
ma que soterra milhares de sonhos todos os dias.
Somente consegui avançar até aqui, porque sou ancorado em mi-
lhares de pessoas, as quais me acolhem, me apoiam. Estas, jamais serão
um trampolim para que eu salte solo, mas sim, são asas para voarem
juntas/os. Cheguei porque sou conectado em várias redes e camadas
sociais, por ser um dos representantes de minha categoria. Esta mesma
situação não se repete – não da mesma forma – com outras/os com-
pas catadoras/es que estão nas ruas puxando carroças, mergulhando em
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montanhas de resíduos misturados nos lixões ou ainda, invisibilizados
em galpões invisíveis nas periferias deste nosso Brasil.
A importância tomou dimensões as quais não pude me contentar
em manter apenas para mim está rica história de resistência e resiliência,
baseada principalmente na solidariedade, empatia e amor, que acabei
escrevendo um livro - Do Lixo a Bixo: A Cultura dos Estudos e o Tripé
de Sustentação da Vida - como um caminho a ser seguido por outras
pessoas excluídas como eu, para gritar a fortes pulmões que é possível
sabendo – concretamente sabendo – que esta história somente se tor-
nou realidade, por um mar de braços que me acolheram, apontaram
caminhos e me apoiaram em todos os momentos, até mesmo nestes
de solidão da escrita ou no desespero da pesquisa, das avaliações – para
todos os lados que eu olhava, olhos me olhavam solidariamente.
Sou tão feliz e grato por ter uma história a qual orgulho meus
filhos, compas, a quem deseja conhecer um pouco mais desta história,
a qual faço questão de contar, justamente para que ela seja repetida até
que seja normal, um catador e tudo que representamos, ocupar espaços
de produção do saber.
Agradeço imensamente a Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, ao Programa
de Pós Graduação em Antropologia Social, em especial ao Professor
Jean Segata e Professoras Ceres Víctora e Fabiene Gama, a Biblioteca
de Ciências Sociais e Humanidades e sua equipe, a Rede Covid-19
Humanidades MCTI equipe e colegas pesquisadoras/es, aos progra-
mas e projetos de educação, principalmente suas equipes, as/os fun-
cionárias/os público e o povo que resistiram ao governo Bolsonaro,
pulsando, lutando e mantendo-se firme promovendo obras como
essa sejam produzidas, gerando conhecimento para todas/os.
Agradeço à companheirada.

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APRESENTAÇÃO DO AUTOR

Afinal, o que de bom pode ter na vida de um catador?


E quem diria hein, olha eu aqui mais uma vez, com mais um livro,
com novas histórias, novas estradas e caminhos, os quais ilumino com
muito carinho para que possamos caminhar melhor. Sigamos sem desis-
tir. E como eu disse na capa do meu primeiro livro, para fixar e jamais
esquecer, lembre-se: Experimentar, testar e sentir, estar sempre aberto a
novos conhecimentos e quando estiver cansado, parar e descansar, mas
jamais desistir de caminhar.
Sou Alex Cardoso, catador de materiais recicláveis desde a infân-
cia, sendo a terceira geração na família, pai de duas filhas e dois filhos,
avó de duas netinhas maravilhosas. Sou cooperado na Cooperativa dos
Catadores de Materiais Recicláveis da Cavalhada (ASCAT). Sou mem-
bro do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis,
cientista social, antropólogo, formado pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e escritor.
Sou membro fundador do MNCR, presente no congresso de fun-
dação em Brasília (2021), por ter uma estrutura, atualmente tão co-
mum, na época era considerada um item de luxo, principalmente nas
mãos de pobres, um telefone celular. Por ter este aparelho e por ter
realizado algumas tarefas de articulação das/os catadoras/es do estado
do Rio Grande do Sul, bem como ter feito algumas tarefas em Brasília,
fui escolhido pela delegação presente no congresso, como coordenação
do MNCR, um motivo de muito orgulho, pois sei e reafirmo quantas
vezes forem necessárias, que ali sim, se deu a mudança na minha vida,
ali ocorreu este deslocamento de um ser que passou a pensar e agir co-
letivamente, mediado pelo tripé de sustentação da vida.
Com a coordenação do MNCR, inicialmente passei a viajar e co-
nhecer as organizações das/os catadoras/es no estado e no Brasil, logo
estava viajando para o exterior. Por ter uma paixão inexplicável – não
normal infelizmente – pela leitura, por aprender, acabei me tornando

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um estudante sem estudos formais, levando essa pauta tão importante
quanto precarizada, tanto no sentido de compreensão – secretários de
meio ambiente não sabem nem separar seus resíduos.
Infelizmente estamos vivendo etapas de jogar o problema para ou-
tras/os, acreditando que “ensinar as crianças” para que quando ficam
adultas pratiquem ações em defesa do meio ambiente, sendo que a cole-
ta seletiva e a educação ambiental em Porto Alegre, começou a 30 anos
atrás e aquelas crianças são adultos da atualidade.
O sociólogo Simmel (1973), diz que pessoas estão tomadas pela
apatia, indiferença umas às outras, aquilo que ele denomina como blasé,
ou seja, quando as pessoas são incapazes de reagirem “a novos estímulos
com as energias adequadas” (SIMMEL. 1973). Na prática, estes seres não
percebem o quanto ajudaria as/os catadoras/es, a economia e o meio am-
biente com a simples atitude de não misturar os resíduos sólidos.
Sou autor do livro do livro Do lixo a Bixo: A cultura dos estudos e
o tripé de sustentação da vida, lançado pela editora Dialética em 2021.
Neste momento em que escrevo este livro, já passam de 1000 tiragens.
Descrevendo uma autoetnografia, a qual retrata a pobreza, entretanto
profundamente marcada pela forte presença de solidariedade, empatia e
amor, o qual chamo de tripé de sustentação da vida, bem como discorro
sobre o mundo do trabalho na juventude, numa comparação do abando-
no dos bancos escolares, principalmente por jovens negros da periferia,
traçando um caminho de valorização da educação pública e de qualidade.
A importância de compartilhar conhecimentos, os quais residem
em todos os lugares, mas que apenas alguns são valorizados, tecendo
uma forte crítica sobre a chamada Faculdade da Vida, a qual para ter
basta apenas estar vivo – essa, destinada majoritariamente aos pobres –
servindo como consolo e reconhecimento pela nossa/sua inteligência,
enquanto aos ricos, lhes garantem a Faculdade Real, esta que confere
diploma, reconhecimento e principalmente a valorização.
Do lixo a Bixo conta a história verídica de um catador de materiais
recicláveis semianalfabeto, negro, morador de barracos em periferias
e áreas de risco, trabalhador desde a infância, tornando-se pai aos 16
anos, sendo obrigado a abandonar os estudos para sustentar sua famí-
lia, mas que depois de 20 anos, num deslocamento total de sua vida,

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retorna aos bancos escolares, conclui os estudos e conquista uma vaga
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Livro do Lixo a Bixo em mãos do presidente Lula, amigo dos catadores. São Paulo.
2022 (arquivo pessoal)

Uma história marcada pela precariedade, pela exploração do traba-


lho, exclusão social, mas também de muita luta, resistência e conquistas,
onde este catador tornar-se uma referência em organização social, repre-
sentando a categoria em organismos como ONU e OIT, coletivamente
organizando encontros nacionais e internacionais, propondo políticas
públicas palestrando em várias universidades do Brasil e do mundo.
Escrita de maneira crítica ao sistema político e econômico vigen-
te, propondo educação emancipadora como uma maneira de buscar e
principalmente compartilhar conhecimentos, pavimentando e ilumi-
nando um caminho para que estudantes e a comunidade escolar pos-
sam caminhar, propondo uma cultura de estudos e o tripé de sustenta-

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ção da vida como forma concreta de revolução no mundo, baseada na
solidariedade, empatia e amor.
Pelo meu passado, presente e meu desejo de futuro neste campo
de pesquisa, para muito antes de ser pesquisador, descrevo a impor-
tância de fortalecer pesquisas realizadas pela/o pesquisadora/r que vem
de dentro, sem perder o rigor científico, aproveitando a oportunidade
que temos em ampliar os conhecimentos para dentro e para fora da
universidade, deslocando estes para pesquisadoras/es e campos onde a
necessidade é grande, sem querer que este pesquisador passe a ser dife-
rente por ter ampliado seus conhecimentos, mas contribuindo para que
este possa permanecer e trabalhar, levando conhecimentos para o meio
em que ele vive, desconstruindo esse muro (in)visível que (r)existe em
permanecer em volta de nossas universidades.
Estas discussões e a grande aceitação do primeiro livro, credencia-
ram-me a escrever esta segunda obra, a qual vai retratar a organização
e lutas das/os catadoras/es de materiais recicláveis. Trarei discussões em
torno da luta contra a incineração dos resíduos, discussões sobre resíduo
zero, a cultura social da reciclagem, a ressignificação dos resíduos e ou-
tros temas os quais considero que sejam importantes estarem presentes
nesta discussão, ampliando conhecimentos e principalmente a luta pela
defesa da natureza.
Alguns dos textos aqui já foram publicados em partes em algumas
redes sociais, sites, revistas e outros meios de comunicação, mas pela sua
importância, faço a agregação para que possam compor o debate com
quem nunca teve acesso a estas literaturas, buscando fortalecer ainda
mais as lutas pela defesa da natureza, construção de uma outra econo-
mia – justa, solidária – e num outro mundo, que reconheça e valorize
cada ser humano e não humano que vive neste planeta.
Como sempre, ficarei à disposição para discutir estas ideias, bem
como agregar novas com vossas contribuições. Sou um caminhante
aprendente, vivo a caminhar e aprender, e a cada retorno que vocês
derem, responderei e guardarei com bastante carinho. Venham todas
e todos para esta leitura a qual espero que seja prazerosa a quem ousar
passar os olhos e aprofundar a leitura.

Alexandro Cardoso

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INTRODUÇÃO E OBJETIVOS
Quanto mais ando, mais aprendo, quanto mais planejo, melhor
ando. Andar é a vida, as alegrias, devemos valorizar nossa cami-
nhada, mirar no futuro e planejar como chegar lá, assim teremos
mais chances de conquistar nossos sonhos.

Este livro tem como base alguns de meus estudos, pesquisas e pu-
blicações que fiz ao longo dos meus quatro anos de graduação em ba-
charel em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Logo, os principais objetivos são: a) trazer e ampliar a
discussão sobre a importância das/os catadoras/es de materiais reciclá-
veis, discorrendo sobre algumas de suas principais dificuldades e dilemas
enfrentados para garantir sua sobrevivência; (b) contribuir para ampliar
os conhecimentos compartilhados ao longo destes oito semestres como
estudante e pesquisador; e c) animar nossas lutas em torno da construção
de um mundo melhor, que preserve todas as vidas, ampliando nosso tripé
de sustentação da vida, a solidariedade, empatia e o amor.
Inicialmente começarei trazendo uma rápida discussão em torno
da importância de escrever, buscando animar outras pessoas que como
eu, possam também compartilhar seus conhecimentos trilhando o ca-
minho da escrita e da leitura, após, discorro sobre uma linda matéria
publicada no jornal on-line Sul21, a qual destaca um relato sobre meu
histórico de vida, bem como trazendo as boas novas do catador iletra-
do que acabará de ingressar na universidade. Passo depois as primeiras
impressões sobre a universidade bem como os dilemas vividos durante
o período inicial da formação, quando eu ainda estava como estudante
com o vínculo chamado de vaga precária.
Vou aos poucos relatando sobre o ingresso na UFRGS, um pouco
dos problemas, desafios e grandes alegrias as quais marcaram esta curta
trajetória em torno da busca do diploma de bacharelado em ciências
sociais. Claro, buscarei ser o máximo fidedigno destas percepções que
fui tendo ao longo do curso, sendo que de forma alguma, desejo ofen-

25
der ou dizer que isso que estou trazendo é a verdade absoluta, mas é a
minha verdade.
Trarei uma discussão sobre uma metodologia de pesquisa a qual
julguei mais necessária, discorrendo sobre problemas os quais olhava
quando estava em aula, discutindo sobre metodologias de pesquisas,
algumas as quais julgo que são arcaicas e que estavam ainda dentro da
construção de um mundo belo, sem problemas, desde que os europeus
brancos possam estar no controle, usando como força escrava nossos
corpos, enriquecendo sobre nossas riquezas naturais, e dando-nos como
recompensa seus crucifixos e a colonização.
Me refiro as discussões em que o pesquisador, neste meu caso, o
antropólogo, era o sujeito que vinha do além mar, de outra cultura, de
outros saberes, sendo que o mundo e as verdades se construíam majori-
tariamente a partir do seu ponto de vista, em que o nativo – nós – éra-
mos apenas objetos de pesquisa, quando muito, o interlocutor, os quais
o pesquisador sempre mantinha dentro desta relação, como alguém
que pudesse servir como objeto para que ele pudesse compreender este
mundo novo, a partir de suas técnicas, suas ferramentas, seus conceitos
e por isso, devia manter-se afastado.
Os séculos passaram, a globalização e o sistema capitalista ainda
mantém a colonialidade do saber, o domínio sobre as consideradas
principais técnicas de pesquisas, são quem impõem sua língua e fazem
circular os textos, informações e saberes pelo mundo. Apresentar um
texto em português, espanhol, marata, dificilmente estes textos serão
lidos nas universidades ou ocupando seminários a aulas no hemisfério
norte, ao contrário dos textos em inglês, francês, alemão.
As cotas sociais fortaleceram e ampliaram a participação de “nati-
vas/os” na universidade, sendo que pesquisadoras/es indígenas pesqui-
sam sobre seus saberes, problemas, histórias, seus conhecimentos, en-
tretanto ainda há na formação acadêmica uma certa obrigatoriedade em
“se afastar” do objeto de pesquisa, o qual tinha uma facilidade quando o
pesquisador era de fora, mas e quando ele é de dentro.
Buscando contribuir e ampliar este debate, apresento a proposta
metodológica a qual denomino como a/o pesquisadora/r que vem de
dentro, ampliando e fortalecendo, aproveitando as oportunidades que

26
temos em aprofundar as relações entre academia e sociedade, para além
dos projetos de extensão, ampliando conhecimentos para ambos, aca-
demia e comunidade/campo de pesquisa, sem retirar suas identidades
já estabelecidas, concretas e coletivas, mas ampliando com a graduação
de suas/eus pesquisadoras/es.
Imediatamente após a aplicação da Lei de Cotas - Lei Federal nº
12.711/2012 - (BRASIL, 2012b), há a introdução de pesquisadoras/es
que vem do campo de pesquisa para as universidades - e não da acade-
mia para o campo, num movimento contrário - já que estas/es vêm da
vivência, ampliando seus conhecimentos com a ciência e suas técnicas
de pesquisas, para muito além da pesquisa-ação3, por muitas vezes não
existindo a possibilidade sair ou se afastar do campo, mesclando vida,
trabalho e pesquisa, sendo praticamente impossível o afastamento.
Algo comum à outras/os pesquisadoras/es, que vêm da universida-
de para o campo, logo, vem de fora, passando certo tempo no campo
de pesquisa, concluindo suas graduações e iniciando suas vidas profis-
sionais e na maioria dos casos, nunca mais voltam ao campo em que
conquistaram seus conhecimentos, nem para apresentar e entregar o
trabalho e as discussões realizadas. Ainda, em alguns casos, quando en-
tregam o trabalho concluído à comunidade, este vem em termos técni-
cos propriamente acadêmicos, não gerando interesse de leitura nos seus
interlocutores.
Apresento motivos sobre minha escolha pela antropologia na con-
clusão deste curso, a qual compreendi que é motivada mais pelas per-
guntas do que pelas respostas além de ter uma ligação mais direta com
os sujeitos, interlocutores, povos a serem estudados, numa ação que
olha com grande atenção para cultura, religião, política, além de orga-
nizações sociais e instituições.
Discutirei sobre a solidariedade e a empatia - uma forma orgânica
de ligação entre os seres humanos, os quais, sem esta ligação, perdem
sua humanidade - dando luz ao trabalho das/os catadoras/es de ma-
teriais recicláveis, sua organização e lutas pelo direito de ter direitos,
3 “Pesquisa-ação é uma forma de investigação baseada em uma autorreflexão coletiva empreendida pelos parti-
cipantes de um grupo social de maneira a melhorar a racionalidade e a justiça de suas próprias práticas sociais e
educacionais, como também o seu entendimento dessas práticas e de situações onde essas práticas acontecem. A
abordagem é de uma pesquisa-ação apenas quando ela é colaborativa...” (KEMMIS; MCTAGGART, 1988, apud
ELIA; SAMPAIO, 2001, p. 248).

27
bem como pelo fortalecimento de suas organizações e da reciclagem,
trazendo a importância da reciclagem diante de um mundo que quanto
mais resíduos produz, menos recicla, numa assimetria de produção de
resíduos, riqueza, miséria e exploração do trabalho.
Apresento e aprofundo a discussão em torno da ressignificação dos
resíduos, com um olhar diferenciado que os atores, principalmente as/
os catadoras/es de materiais recicláveis tem sobre os resíduos, bem como
as disputas e conflitos que se geram na busca de seus objetivos, tendo
o cuidado das limitações que um trabalho de conclusão de curso tem,
vistas que este debate é inicial e deverá ser aprofundado futuramente,
quem sabe num mestrado ou doutorado, fortalecendo ainda mais estas
discussões que podem resolver grandes dilemas sociais, ambientais e
econômicos.
Discutindo sobre os males que os resíduos fazem ao meio ambien-
te, os custos onerosos aos cofres públicos e o deslocamento que estes
percorrem quando passam pelas mãos das/os catadoras/es de materiais
recicláveis, partindo de uma coisa ruim, para uma coisa boa, marcada
pela cultura social da reciclagem, dando luz às conexões que as/os cata-
doras/es de materiais recicláveis tem com as/os geradoras/es de resíduos,
mediadas pelos materiais recicláveis, fortalecendo o tripé de sustentação
da vida: a solidariedade, a empatia e o amor (CARDOSO, 2021c).
Como pesquisador da Rede Covid Humanidades, coordenado
pela UFRGS, discuto sobre Porto Alegre e as políticas municipais de
reciclagem, as quais ampliam ou diminuem os índices de reciclagem
na cidade, o que de fato incide diretamente na organização, geração de
postos de trabalho e renda das/os catadoras/es de materiais recicláveis,
demonstrando a partir de dados a precarização do trabalho da categoria,
bem como a luta e a importância deste trabalho.
Por fim, discuto sobre a importância da organização coletiva das/
os catadoras/es de materiais recicláveis a partir da cooperativa, apresen-
tando o caso da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da
Cavalhada (ASCAT), local de onde vem minhas inspirações, principais
vivências e olhares que deram luz a este trabalho.
Nas considerações finais, além da finalização deste trabalho, faço
contribuições acerca do papel que cada agente - empresas de produção e

28
reciclagem de resíduos, governos, geradoras/es de resíduos e catadoras/
es de materiais recicláveis - e tarefas que cada um poderia fazer, com
objetivos que buscam a reciclagem, geração de postos de trabalho, pre-
servação da natureza, da construção de outra economia, algo que é ex-
tremamente difícil, justamente porque vai contra o sistema capitalista
de produção e distribuição de riquezas, entretanto não impossível, já
que estas são funções importantes que podem garantir a continuidade
da vida no planeta.
A principal metodologia utilizada é minha própria vivência, nestes
longos 20 anos de representação do MNCR, bem como nas quase duas
décadas anterior em que atuava como catador de materiais recicláveis no
seio do meu núcleo familiar, entretanto utilizo pesquisa documental em
sites - principalmente – e bibliografias que discutem a organização da
categoria, além de questionário semiestruturado, aplicado e respondido
por todas as coordenações de associações e cooperativas de catadoras/es
de materiais, gestores das unidades de triagem (UTs) de Porto Alegre.

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30
POR QUE ESCREVER?
A escrita e a leitura são bases pedagógicas da educação, não são
únicas, é importante frisar isso, mas a escrita tende a atravessar
gerações, por isso é uma das mais importantes, sendo base de trans-
formação social. Para a transformação social, a revolução, é preci-
so muito mais que desejo, do que sonhos, é preciso planejamento,
seguir firme na estrada da vida, é preciso ter tesão para além de
desejos, para transformar a caminhada em prazer.

Nossa vida muda para muito melhor com a escrita e a leitura, aliás,
ela se revoluciona. É preciso saber como tu escreves, para quem e com
quais objetivos, pois o mundo já tem moléstias demasiadas. O que e
para quem tu escreves importa, e importa muito, talvez se tivéssemos
sempre este cuidado, a leitura e a escrita seriam muito mais presentes
em nossas vidas, logo, temos que ter compromisso, principalmente
com o que escrevemos, quanto a leitura, extravasa.
Nossos conhecimentos passam de geração em geração embalados
nas páginas dos livros, não morrendo quando nossos corpos padecem,
os livros não morrem como suas autoras e autores, eles permanecem
vivos, animam debates, criam e recriam ideias, desde o fortalecimento
dos conhecimentos de quem os lê, lhes embalando para suas escritas.
Ler um livro é receber e retribuir o presente de quem o escreveu.
Não há nada mais glorioso para um autor do que ver um leitor com
seu livro em mãos, lendo, folheando, discutindo, criticando. É indes-
critível o mar de emoções que nos invadem e irradiam-nos, movimen-
tando rostos, olhares e sorrisos, a felicidade. Aqui vejo que a felicidade
é simples, próxima e acessível, ela é democrática. Vivi fortes emoções
ao ver meu livro circulando mundo afora, ao receber cada mensagem,
ver cada foto em redes sociais. Fiquei tão feliz em cada lançamento, em
cada exposição, feira literária, palestra que participei. Cada dedicatória
que fiz, foi exclusiva, emotiva, especial.

31
Cada leitora/r tornou-se uma amiga/o, uma pessoa especial, afinal,
compartilhei minha vida em páginas em preto e branco que eram colo-
ridas a cada folheada. O círculo de amizade na verdade são dois que se
entrelaçam, tornando-se o símbolo do infinito, a amizade conquistada
pela leitura de seus escritos são crescentes e infinitas, aqui vejo também
concretamente a importância da escrita.
Reunir estudantes, professoras/es, autoras/es, leitoras/es em tor-
no de um livro é tão maravilhoso que acaba compensando todo o teu
tempo de escrita. Escrever um livro é ganhar tempo para a vida, ganhar
a eternidade. As crianças são fantásticas, mais ainda quando compreen-
dem o momento, articulam as ideias a partir das suas, acabam explo-
dindo em felicidades, elas compreendem em outro sentido e isso pode
marcar suas vidas para sempre. Esta é uma dos objetivos da minha vida.
Qual seria o objetivo de meus estudos se eu não os transformasse
em conhecimento? Conhecimento só é conhecimento quando é com-
partilhado, concentrado ele simplesmente não tem razão, ainda mais no
meu caso, de um ser que deseja ardentemente que haja justiça baseada
no tripé de sustentação da vida. Escrever é uma obrigação para quem
tem estes desejos, pois é uma das formas mais concretas de pavimentar
caminhos para estes objetivos.
Também não sou expert em escrever, tenho dificuldades, a ques-
tão maior mesmo é levar ao pé da letra o ato de quando estiver cansado,
descansar, mas jamais desistir. Assim eu volto novamente, e volto até
que eu consiga alcançar aquilo que desejo. Se é difícil, já vivi por muitos
anos puxando carrinho de recicláveis pelas ruas de Porto Alegre com
mais de 200 quilos em cima, com um calor de 40 graus e com a barriga
vazia, isso sim é o que posso chamar de difícil.
Por variadas vezes liguei meu computador, as ideias iam e viam, mas
não se transformavam em palavras, parágrafos, textos... escrever não é
fácil, ainda mais para quem passou a vida inteira trabalhando, para quem
pensava que não teria nada a compartilhar. Parece que é isso que aprende-
mos, que não somos importantes e logo, não temos o que compartilhar.
Entretanto mesmo sem escrever eu continuo com meu objetivo,
algo que preciso fazer, pois compreendo que quando eu leio um livro,
alguém de alguma maneira, forma, passou por essa fase e mandou-me

32
suas escritas através de um livro, com muito carinho, como um impor-
tante e valioso presente o qual eu devo retribuir com leitura.
Assim compreendo os livros, como presentes de pessoas tão soli-
dárias que venceram suas barreiras, escreveram e mandaram-me com
muito carinho para que eu pudesse ler. Os livros, para além dos valo-
res comerciais, têm como valor principal, a mudança das nossas vidas,
como importantes passos nas nossas caminhadas do viver, como um
peso a menos tirado de nossas costas e ideias novas em nossas cabeças,
trazendo leveza para nosso viver.
Assim escrevo as primeiras palavras, leio-as com atenção, imagino
as sensações que tu estará sentindo quando ler estas mesmas palavras,
penso que tu estará se alegrando, pois se está lendo, é que por fim, con-
segui meu objetivo de escrever e principalmente, de te animar a ler e a
escrever também. Veja, o mundo fica melhor com livros, com partilhas
do saber.
Compreendo então, depois de algumas palavras, que devo colocar
um ponto final, quem sabe continuar na mesma linha ou escrever um
outro parágrafo, na verdade eu nunca sei, pois volto a leitura e vejo de-
pois se ficou compreensível e confortável a leitura. Se para mim ficou,
pode ser que possivelmente para você também fique, pois veja bem,
escrevo para compartilhar conhecimentos e claro, que escrevo para que
fique bem para você.
Passados alguns parágrafos, meu primeiro texto deste livro se fez
importante, primeiro para mostrar que também temos dificuldades na
escrita, que mesmo os melhores escritores tem dificuldades, não que eu
seja um dos melhores escritores, mas que sei muito bem que a escrita é
um processo, mas ela é, acima de tudo, algo importante que queremos
compartilhar e se é importante para você, pode ser também importante
para mim, portanto, palavra por palavra, parágrafo por parágrafo, escre-
va, pois vai sempre ter alguém encantado com suas escritas.
A escrita e a leitura são bases pedagógicas da educação, não são
únicas, é importante frisar isso, mas a escrita tende a atravessar gerações,
por isso é uma das mais importantes, sendo base de transformação so-
cial. Para a transformação social, a revolução, é preciso muito mais que
desejo, do que sonhos, é preciso planejamento, seguir firme na estrada

33
da vida, é preciso ter tesão para além de desejos, para transformar a
caminhada em prazer..
Se quisermos encontrar o porque escrever, devemos olhar para
onde queremos ir, para nossos desejos. A importância da escrita está
nos olhos de quem vai ler, nas emoções que serão articuladas, nos co-
nhecimentos novos que serão gerados. Escrever é um ato de amar tão
maravilhoso quanto a retribuição de quem nos lê. Escreva com carinho,
supere-se e seja uma nova mulher, um novo homem.
Eu poderia escrever com raiva, com tristeza, com as infelicidades
que insistem em acometer meu povo, mas definitivamente não cabe a
mim fazer isso, não neste livro, nesta história. Reclamo sim, crítico tam-
bém, me posiciono sempre, é importante, pois claro que tenho lado,
pois sei quem sou, de onde vim, minha identidade e para onde quero
ir. Creio que a minha/nossa raiva é tudo que eles querem para legitimar
nossa destruição.
Escrevo então para compartilhar, para mostrar caminhos e possibi-
lidades de vivermos melhor, para contribuir com o que temos de mais
precioso, com a vida. Escrevo porque tenho algo a compartilhar, porque
acho importante e necessário. Escrevo porque me alegro, te alegra, es-
crevo porque compartilho felicidade além de conhecimentos. Escrevo
para te animar a escrever.

34
EDUCADOR EDUCANDO - POTÊNCIA DA EDUCAÇÃO

Hoje vivo uma realidade que já foi um sonho, ser catador e tor-
nar-se estudante universitário. Quem diria que ao invés de estar
revirando as lixeiras da universidade eu estaria ocupando uma
cadeira como estudante? Claro que não como as outras, os outros
estudantes, pois cada um carrega sua história consigo, cada um tem
seu tempo e sua própria pressa e desejo de chegar. Encontre o seu.

Jamais deixarei de revirar lixeiras separando materiais enquanto o


mundo não aprender a separar, bem como jamais deixarei de ser catador
de materiais recicláveis, pois compreendo a potência e a importância do
nosso trabalho, tenho muita honra, uma força coletiva de orgulho que
me mantém nesta linda caminhada de reciclar resíduos e consciências.
Talvez pelo meu passado, a minha pressa seja maior que das mi-
nhas e meus colegas, por isso quando ingressei na universidade, sabia
da responsabilidade que comigo carregava, como negro, cotista, como
sujeito excluído e marginalizado, alguém das margens que ocupa o cen-
tro, tens que ocupar com responsabilidade, para que outras e outros
possam também ocupar.
Eu não poderia defender e discursar em favor da educação pública,
de qualidade, de haver mais presenças de estudantes que tenham histó-
rias parecidas com a minha, se eu ficasse ocupando espaço que poderia
ser a chance de mudança de vidas, assim como tem sido na minha. Meu
curso tem 8 semestres e mais um semestre para a apresentação do traba-
lho de conclusão do curso (TCC), entretanto pode ser concluído em 4
anos, e foi o que fiz, pois quanto mais cedo eu concluísse, abriria uma
vaga a mais para outra, outro estudante ingressar.
Não poderia e posso defender a educação pública, as cotas sociais,
a entrada, garantia de permanência e apoio à estudantes como eu, se eu
não desse tudo de mim, respeitando meus limites, para aprender e com-
partilhar conhecimentos, estando presente em todas as aulas possíveis,
buscando não participando de festas e outras atividades que às vezes

35
podem nos tirar de sala de aula pois apesar de maravilhosas e às vezes
indispensáveis, estas não eram o meu foco.
Entrei com foco no presente para garantir meu futuro, sentin-
do-me também como foco de outras pessoas, colegas, professoras/es
e compas, sendo que depositavam forte apoio na minha caminhada, o
que de certa forma fazia com que eu me sentisse muito mais compro-
metido. Outras pessoas poderiam dizer “visado”, pois sinto que não
têm/tinha sala ou evento nenhum na universidade o qual as pessoas pre-
sentes não sabiam quem eu era. Meu corpo e trajetória são marcadores
sociais do estudante e intelectual que tenho me tornado.
Nas discussões com colegas, discutia sobre o olhar que eu recebia
delas/es de das/os professoras/es, uma atenção que estava dispensada
para outras/os, não simplesmente por ser “querido”, coisa que, por va-
riadas vezes não sou, mas por ser de alguma forma diferente, seja por
ser mais velho em relação às/aos outras/os colegas e até professoras/es,
mas principalmente pela história viva que meu corpo carrega, algo infe-
lizmente anormal, mas que deveria ser parte da universidade e da vida
acadêmica. Algo que de certa forma já vem se transformando nestes
anos de cotas sociais.
Se tenho algum às/aos minhas/eus colegas, lhes digo com todas as
letras, os nossos discursos devem estar associados às nossas ações coti-
dianas, práticas e histórias, as nossas vivências. Não podemos de forma
nenhuma tornarmos apenas falantes, que não praticantes. Nossa his-
tória pulsa aos olhos atenciosos de pessoas que nos cercam, que tem
carinho conosco, mas também por quem de alguma forma prefere ver
nossas falhas. Não podemos falhar no nosso processo de formação do
conhecimento, na educação, pois falhar com a educação é falhar com
a revolução. Nossos desejos futuros devem estar associados ao nosso
presente.
Como eu disse, cada um tem sua velocidade, seu planejamento
e tempo para fazer as coisas, de forma nenhuma estou abrindo uma
crítica dura às/aos colegas que estão a mais tempo na universidade, mas
de forma nenhuma também poderia não falar sobre este sentimento,
este olhar, pois compreendo que possamos ser pessoas melhores quando
sabemos que podemos ter condições e fazer melhor.

36
A questão essencial tem haver com minha história de superação, a
qual dela faço uma potência e uso como uma força para que eu possa
de fato compreender e mais do que isso, avançar nos conhecimentos,
não poderia usar, apesar de poder se assim quisesse, como uma forma
de aliviar-me das pressões, pois se assim fosse, a história em si só, se
justificaria.
Ao contrário disso, acredito que tenho que superar-me a cada pas-
so, não porque seja necessário, mas porque acho extremamente impor-
tante e isso de alguma forma me deixa feliz. A cada trabalho concluído,
a cada prazo respeitado, cada texto lido, cada exposição em sala de aula
e fora dela, me deixa feliz. Cada vez mais dou um passo para onde que-
ro chegar, para a utopia de Galeano, a cada passo que dou, um passo a
mais ela se distancia, fazendo-me caminhar mais.
Nunca foi simplesmente conquistar uma nota A, ser aprovado nos
trabalhos, na disciplina e jamais seria para “se aparecer”, mas sim com-
preender e aprender com aquilo tudo que mobilizo, pois o conhecimento
só é conhecimento quando conseguimos passar ele adiante e para isso é
preciso ter o saber, logo, a aprovação é mais importante para o caminho
acadêmico, para a burocracia do conhecimento reconhecido.
Entretanto o conhecimento é infinitamente maior que isso, ele não
se reduz a burocracia educacional e infelizmente às vezes esquecemos dis-
so na academia, o que torna os trabalhos mais dolorosos, penosos e difi-
cultosos, pois acabam por perder sua principal essência e objetivos. Nun-
ca serão apenas trabalhos, provas, artigos, são conhecimentos articulados.
Estive atento o máximo que pude, sem perder a ternura, sem ser o
chato, aquele que mais fala, que se mete em tudo. Muitas vezes guardei
meus comentários para que outras e outros colegas pudessem ocupar
estes espaços, pudessem falar, discutir sobre suas dúvidas, pois dúvidas
discutidas, pode-se buscar/haver solução, tornar-se um conhecimento.
Aquelas dúvidas escondidas, para sempre serão apenas dúvidas,
aquelas perguntas não feitas, serão apenas problemas, jamais passarão
ao status do saber, do conhecimento. Logo, perguntar, falar sobre suas
dúvidas e problemas é tão importante quanto seu saber, pois é a partir
do não saber que aprendemos. É impossível aprender aquilo que já sa-
bemos.

37
Estamos sempre partindo, caminhando e escolhendo caminhos e
estes definem onde estaremos no futuro. Não adianta em nada meus
desejos em um futuro melhor se não trabalho eles no presente, se não
ando no caminho onde quero chegar. O futuro passa pelo nosso pre-
sente e por vezes o desperdiçamos com coisas que não agregam, com
futilidades que nos fazem perder ao invés de ganhar tempo.
Imaginem, se quero ser um bom cientista, devo ser um bom estu-
dante de ciências, se quero ingressar na universidade, tenho que fazer
um bom ensino médio, se quero ingressar no ensino médio, tenho que
ir bem no fundamental. Se quero ser um sábio, tenho que estar aberto
ao saber, aos conhecimentos.
A vida nos ensina de forma bruta se sermos brutos, podemos
aprender se estivermos atentos e abertos para aprender, como diz Paulo
Freire, se quisermos aprender, aprenderemos, mas se não quisermos,
podemos estar com as/os melhores professoras/es, nas melhores escolas,
com a melhor estrutura e técnicas, se estivermos fechados para o saber,
de forma nenhuma aprenderemos.
É aqui que compreendo que educação é amor, é preciso ter cone-
xão entre educadora/e e educanda/o, é preciso querer aprender e ensi-
nar, compartilhar. É preciso felicidade para tornar o processo um prazer,
é preciso empatia e solidariedade para que ninguém fique para trás, é
preciso respeito às velocidades e tempos para que todas/os possam se-
guir. Sem amor não tem educação.
A vida é tão pequena que se não estivermos atentos, não vamos con-
seguir viver aquilo que realmente desejamos viver. É preciso atenção, pla-
nejamento, escolhas e ações. A ação nos transforma mais que os nossos
discursos e estas ações servem como caminho para que outras e outros
também possam agir, se desviamos do caminho, um esforço maior de-
vemos empregar para retornar, um tempo maior investir para recuperar.
Por isso educar educando faz parte da nossa vida, vivemos do
aprender e ensinar, desde crianças somos educantes, e sempre estamos
indo e vindo da/o educadora/r à/ao educanda/o, este processo é a vida,
como uma grande escola e isso não é nenhuma novidade, mas as vezes é
preciso estar atenta/o para aproveitar as oportunidades, para caminhar
no caminho da utopia, para viver no presente aquilo que deseja no fu-
turo, pois ele é logo ali, é um instante.
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A educação não pode ser tratada com um fardo, como uma tarefa
difícil em nossa vida, não deve ser tratada como uma pia de louças
sujas, mas sim como o alimento que nutre nossas vidas e torna nosso
caminhar mais prazeroso e feliz, pois se a educação não faz a revolu-
ção, sem ela, realmente não podemos fazer. A revolução não é e nunca
foi fictícia, invisível e inexistente, a questão é ver a revolução onde ela
acontece diariamente, ou seja, em nós mesmas/os.
Somos o exemplo daquilo que falamos, daquilo que fazemos, fazer
bem ou mal feito por variadas vezes, fruto de nossas escolhas. Nem
sempre fazemos aquilo que desejamos, na perfeição que queremos, mas
é importante para nós, para as e os outros, que saibam que fizemos o
nosso melhor. Vivemos, aprendemos e compartilhamos com aquilo que
estamos fazendo. Não estamos fazendo apenas peso na terra, estamos
agindo, reagindo, e quando não fizemos nada, também é uma ação,
não aquela que por vezes queremos e por isso é importante estar atento.
Para chegar até aqui, algo que parece muito comum a determina-
das esferas sociais, para pessoas com minha história, isso definitivamen-
te não é, não é simples, não é comum, não é fácil e nem por causa disso
eu sou super, pelo contrário, tenho minhas dificuldades, limitações,
anseios e desejos, as vezes tenho que adaptar, subverter, enfrentar, fazer
diferente, e somente consigo, porque de fato, não desisto e tenho foco
no meu caminhar.
Quando estou sentado numa cadeira na universidade, dificilmente
passo despercebido entre as/os outras/os colegas, sou invariavelmente
um corpo marcado, distinto, lembrado, simplesmente por ser especial
pelo não normal, por ter uma história especial, algo que torna a coisa
ainda mais especial, com mais atenção, pois o vacilo é visto e mais do
que isso, lembrado.
(Re)comecei aos 34 anos na quinta série do ensino fundamental,
eu sabia que para chegar na universidade, precisava passar pela quinta
série, depois passar a sexta e concluir o ensino fundamental, depois o
médio e haver muita concentração, trabalho e estudos para conseguir
passar no vestibular. Pois este momento é um momento que carrego
vivo comigo, tanto os esforços para estudar, estas decisões, estes cami-
nhos me trouxeram onde estou hoje.

39
Olho para trás como se fosse hoje, carrego comigo estes momentos
para que eu possa me manter focado. Não posso de forma nenhuma,
passar pelo que eu passei e desviar deste caminho, não focar. Para além
do compromisso público, tenho um compromisso comigo mesmo, eu
preciso estar bem, para que eu possa de fato fazer o bem. Para contar
esta história, primeiro me permiti viver ela, ter esta experiência e isso
é o que torna a potência. Não escrevo o que acho que deva ser, escrevo
aquilo que já vivi. Sei que é possível dentro das possibilidades.
A chegada do doutorado está cada vez mais próxima, diferente de
8 anos atrás quando tinha apenas a quinta série do ensino fundamen-
tal, algo que compartilho não para ser uma referência em si, mas para
mostrar um caminho do possível. É importante que possamos passar
da faculdade da vida para a faculdade da vida real, não para ter apenas
mais dinheiro, mas para ampliar e compartilhar conhecimentos. Os co-
nhecimentos servem para melhorar e salvar vidas, logo é algo completa-
mente coletivo, se este for individual e tiver por objetivo o seu próprio
crescimento, então não é conhecimento, é mercadoria, destas que se
compram nas esquinas para fortalecer egos.
O mundo precisa dos conhecimentos da periferia, de quem so-
brevive com pouco, mas vive com aquilo que é vital, com o tripé de
sustentação da vida. É na periferia que as mães têm mais filhos, e é de
lá também que encontramos os reais sentidos da palavra mãe, pois é ali
o tudo ou nada o tempo todo, ali precisa-se de esforços para viver, para
cuidar e proteger, para ensinar um caminho em meio a tantos outros
que parecem ser bem mais fáceis, é ali que a palavra mãe é referência.
É da periferia que se vive com pouco, mas também é bem verdade
que da periferia brota a solidariedade que irradia e transforma o mun-
do, que desmonta e monta outros sentidos, que ressignificam as coisas e
o todo. É na periferia que se constitui fortemente a liderança pelo ser e
não apenas pelo poder, é aqui que aprendemos a viver em solidariedade,
a compartilhar e ser humilde. Se a fome ensina, como diz Maria Caro-
lina de Jesus, é na periferia que se aprende a viver de saberes.
. Logo, nossas filhas e filhos precisam ocupar as escolas, os insti-
tutos de educação, as universidades, está na mão delas e deles a trans-
formação deste mundo que vivemos, está na mão dos pobres a salvação

40
do planeta, pois são dos ricos as principais causas dos problemas e logo,
não são eles que vão resolver. É preciso construir outra dialética, um
choque de saber que sobressaia para além da economia, que se justifique
com a natureza humana, com uma outra sociedade.
Acredito que somos a revolução, que ela passa por nós mesmos,
pelo fortalecimento de nossos corpos e saberes, pelo compartilhamento
de conhecimentos, pela mudança da realidade com a partir da mudança
daquilo que somos, baseados em uma educação libertadora, que ensina
o pobre a pensar e não somente a trabalhar, que a prioridade seja viver
e deixar viver e não apenas o mercado de trabalho.
É muito triste se pensarmos que a periferia está condenada a viver
apenas para trabalhar e passar dificuldades, a sofrer. A periferia é e sem-
pre será mais do que isso, é o próprio saber, é cultura pura de viver, é
um ensaio do diferente social, por isso é tão atacada, por isso a educação
como política pública é deixada de lado pelo estado, porque eles, mais
do que a própria periferia sabem, que a revolução só poderá acontecer,
por seres diferentes, que pensam, agem e vivem diferente.
Por isso temos que apontar caminhos, ser animadores de futuros,
mostrar a potência que (r)existe nos corpos perseguidos, nas identida-
des que tentam apagar, no festival de ataques que diferem sobre nossas
cabeças. A luta será ganha, vitoriosa não quando estivermos armados,
mas quando estivermos conscientes, por isso a luta se ganha nas ideias,
nos saberes. Precisamos ensinar nossas crianças a pensar e não a traba-
lhar. Precisamos formar revolucionários para que tenhamos revolução.
Eu sei disso, por isso trilhei este caminho, por isso escrevo. Eu
acredito e te convido a acreditar, mas mais do que isso, a lutar para que
isso seja real. Sou um catador que trabalhou desde criança, arrastando
carrinho, enchendo sacos de materiais, separando papéis, plásticos, me-
tais e vidros. Mas minha potência não se resume ao meu trabalho, mas
sim ao meu compartilhar, assim penso quanto às outras profissões, se
estiverem reduzidas a elas mesmas, servirão apenas para o acúmulo do
patrão.

41
42
VAI TER CATADOR DOUTOR
Eu acredito em você, na sua potência, nas suas conquistas. Eu torço
por você, para que vença e mostre um caminho de como vencer. Eu
sou feliz porque você é feliz, sou vitorioso porque fico feliz com a
vitória dos outros.

Escrevo este capítulo, articulando vivências como catador e estu-


dante universitário, ancorando em pequenos textos publicados no Fa-
cebook, os quais escrevi antes mesmo de ter conquistado o acesso à
universidade. Algo que escrevia fortalecendo o presente e trilhando o
futuro, pois em nenhum momento deixei de acreditar que conseguiria
conquistar. É preciso acreditar na gente, naquilo que queremos, pois
uma parte significante da conquista, depende de nós mesmo.
Após receber a notícia que revolucionaria minha vida, naquela tar-
de do dia 18 de janeiro de 2018, alguns dias após a virada do ano e em
proximidade do meu aniversário a ser comemorado alguns dias depois,
no dia 23 de janeiro, um grande presente não? Eu estava no listão de
aprovados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Estava em Palmas, no estado do Tocantins, neste momento fazendo
uma formação com as/os catadoras/es, momento em que tornamos nos-
sos galpões de reciclagem numa grande sala de aula, ampliando para
além dos braços que recicla, as mentes que pensam e estrategeiam sobre
como ampliar a reciclagem e todos os benefícios que ela traz.
Esta história eu conto com mais detalhes no meu primeiro livro,
do Lixo a Bixo, a qual conto em detalhes a emoção que dominou tanto
a mim quanto as/os catadoras/es que estavam comigo na formação e até
mesmo as pessoas que passavam na rua, tamanha era nossas comemo-
rações e euforias. Um momento que guardarei para sempre como uma
parte muito especial da minha vida, algo que realmente se tornou eterno.
Quando em retorno para Porto Alegre, no estado do Rio Grande do
Sul, onde resido, de imediato escrevi um texto, o qual foi publicado na
minha página do Facebook, contando as boas novas e principalmente ser-

43
vindo como uma ferramenta que pudesse animar a caminhada de estudar
de outras/os colegas estudantes que quisessem voltar a estudar, como no
meu caso, ou ainda, fortalecer a caminhada de quem já estava estudando.

Foto Catador Bixo, UFRGS, 2018 (Arquivo pessoal)

Ainda no ano de 2017, fiz uma publicação falando da importância


em ter me inscrito no vestibular da UFRGS, tamanha representativida-
de e importância que isso dava na minha vida, e não é para pouco, pois
reafirmo, isso que parece algo banal, normal para a classe média, média
alta e as altas classes, para nós não, não é normal e tampouco é algo fácil
e de conquista de “quem quiser”.
Enormes barreiras são erguidas a nossa volta, ela vem travestida de
escolas precárias, com formação insuficiente, com problemas em torno
da sobrevivência, que envolve desde a alimentação até mesmo a nossa
segurança, pois é praticamente impossível estudar com a barriga va-
zia ou com perigo de vida. Além do mais, não tem vagas suficientes
para quem apenas deseja ingressar numa universidade federal, tem uma
grande e desleal concorrência, quando a prova é igual para todas e to-

44
dos, desconsiderando os caminhos e calçados que cada estudante usou
na caminhada de estudar.
O listão de aprovados é de grande alegria e emoção para os apro-
vados, parece momento de uma grande emoção, eu vivi isso, mas ao
mesmo tempo ele esconde as histórias que foram apagadas, de milha-
res de Alex, que como eu tentaram e infelizmente sucumbiram diante
da prova, para os melhores, aquelas/es mais havidos, que tiverem uma
melhor preparação para este embate, esta batalha pela vida, justamente
porque a universidade, para além dos conhecimentos compartilhados,
é uma das definidoras em relação a trabalho, reconhecimento social e
valorização econômica nas nossas sociedades de representações, onde tu
vale mais o que tem daquilo que verdadeiramente tu és.

Final do 1º semestre, turma da sociologia 1, 2018 (arquivo pessoal)

Escrevi este texto, datado em 8 de fevereiro de 2018, já depois de


saber que estava aprovado como bixo na universidade, sobre os sen-
timentos de alegria e de tristeza que me mobilizavam em torno desta
conquista, afinal, enquanto alguns colegas estavam comemorando sua
aprovação, uma maioria estava chorando a reprovação. Tornei isso uma
potência para que eu pudesse concluir o mais rápido possível a gradu-

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ação, para dar espaço a outra, outro que como eu, pudesse ter sua vida
revolucionada pelo acesso a formação acadêmica.

“Um misto feliz e triste4.


Feliz em passar na universidade federal, triste porque muitos fo-
ram excluídos. Feliz em poder estudar numa Universidade pública e de
qualidade, completamente gratuita, triste em saber que a maioria dos
“colegas” poderiam pagar Universidade privada, deixando mais vagas
para quem não pode. Feliz em saber que tem transporte público que
me levará a Universidade em apenas 60 minutos, triste em saber que
muitos dos carros que na Universidade estarão estacionados, serão de
luxo. Feliz por ter comemoração popular com muita emoção pelo meu
acesso a Universidade, triste pelo “acesso” não ser normal a catadora e
catador. Um misto de alegrias e tristezas me tomam, com muito brilho
e grande escuridão, misturando sentimentos alegres em ler comentários
de burguesinhos nos posts ensinado que ainda não serei doutor, bacha-
rel, mestre e doutor, sendo o único blábláblá que poderiam falar, mos-
trando tamanha ignorância quando claramente não têm compreensão
de texto ou tampouco conjugam o verbo “ir”, “vai” ter doutor... triste
quando compas perguntam se passei somente em ciências sociais, pre-
ocupados se eu havia também passado em matemática, física, história e
outras matérias, demonstrando a distância abísmica que há entre nossa
gente e a Universidade. Muitas outras tristezas e alegrias tenho, terei, as
quais prometo contar. Por hora, vou viver este misto sem me martirizar.

Vai ter doutor catador sim senhor!”


Alguns meses antes de fazer a prova do vestibular e conquistar a
vaga na universidade, buscando resgatar os sentimentos que vivi duran-
te este período de comemorações ainda da conquista da formação no
ensino médio, lhes trago desta forma íntegra um pequeno texto datado
no dia 18 de agosto de 2017, o qual publiquei no facebook no dia da
minha da cerimônia de formatura do ensino médio, onde fui orador
da turma, para que possam compreender e quem sabe sentir um pouco
disso que me dediquei nestes últimos anos, o qual consegui dar um sal-
4 https://www.facebook.com/profile/100003222582246/search/?q=o%20caminhada%20de%20estudar%20

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to da quinta série do ensino fundamental para o mestrado o qual estou
cursando neste momento.
“Canudo na mão... Formatura chegou!5 20 anos depois, 4 anos
de estudos e enfim, acabou com esta linda homenagem de diplomação
conduzida pela professora Katiana Pinto Dos Santos. Muito orgulho,
fui orador da turma juntamente com a colega Priscila Luciane que nos
emocionou com seu discurso. Parabéns colegas, vocês eternamente esta-
rão aqui no meu coração. Demorou, mas chegou... Que venha a facul-
dade agora... Logo vai ter catador doutor!”
Pelo meu histórico, não sei se haveria de ser diferente, apesar de
sermos fruto de uma sociedade de competição, onde quem ganha os
louros, o reconhecimento e é lembrado apenas se chega no primeiro
lugar, uma lógica que visibiliza um e invisibiliza a maioria, os quais ga-
nham o título de perdedores, apagados da história. Minha memória não
é dissociada da solidariedade, empatia e o amor, isso que eu denomino
como tripé de sustentação da vida. É por este tripé que sobrevivi e sigo
ancorando minha vida.
Este próximo texto, A caminhada de estudar é datado no dia 18 de
outubro de 2017, ainda sem estar sabendo que seria aprovado na univer-
sidade, mas com toda convicção e desejo por esta importante conquista.
É justamente para comprovar meu entendimento e a importância da edu-
cação em nossas vidas. Eu de fato sei para onde quero ir, esforçando-me
para chegar onde quero, sem esquecer quem sou e porque caminho.

“A caminhada de estudar! 6
Desde criança, a reciclagem como vida. Ela superou a escola, veio a
família e o trabalho já era realidade sem opção... 1994 parei de estudar,
logo virei pai. O tempo passa... logo completei anos sem estudar, uma
vida inteira aprendendo tudo, os mais variáveis e complexos conheci-
mentos, aqueles dos quais eu era o professor, em tantos outros, mera-
mente objeto de estudos...
Muitos acadêmicos passaram por mim, com suas teses às quais al-
gumas contribuí. Tanto, que dedicatórias recebi... Universidades estava
5 https://www.facebook.com/ALEX.MNCR/posts/pfbid0LGiVDRPQbfkzoCGUftTPFheFLFmDGrrKS7m7qNPT-
G6HYXZuw7aqbnNM38xeCZDsVl
6 https://www.facebook.com/profile/100003222582246/search/?q=a%20caminhada%20de%20estudar

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ali e eu ministrando palestras, até na Universidade da Califórnia fui,
Índia, França enfim...
Mas aquele olhar julgador quando respondia que tinha apenas o en-
sino fundamental incompleto... 5° série apenas... E nos currículos... sen-
tado ao lado de doutores do mundo, pessoas que muitas vezes acumulam
“latifúndios” de diplomas e eu ali... fundamental incompleto! Tristeza
ao qual me referia com orgulho, externo, pois internamente me enver-
gonhava, não da história, trajetória ou vivência, mas sim por não ser um
exemplo a ser seguido pela companheirada que vive assim, sem estudos...
“O Alex Cardoso catador é inteligente, não estudou, tão logo não
preciso estudar”. Enquanto nós não estudamos, outros o fazem e assim,
os lugares reservados a quem estuda, são acima, em cima de quem não
estudou, não importa seus motivos, sua história, para muitos, principal-
mente homem, branco e de gravata, o que importa é que somos, mais um
analfabeto, objeto de estudo, apenas mais um número nas estatísticas.
A quatro anos, reuni minhas forças e voltei estudar, tinha que me
superar! Precisava fazer isso, por mim, meus filhos e companheirada.
Tenho que provar a mim que posso. Me esforcei, aguentei a barra de
estar longe e estar estudando... segui a militância no MNCR, não de-
sisti. Veio a formação do ensino fundamental... que alegria, já não era
incompleto e aquela vergonha já não estava mais, veio o médio... di-
ficuldade maior... Mas as forças de novas amigas e amigos, colegas e a
vida doadas a mim pelas professoras e professores, formei. Discurso e
oratória de alegria, formei no ensino médio.
A turma do Emancipa, curso popular gratuito de qualidade, com
profes que lecionam com amor a causa vê se em seus olhares a cada aula
sua alegria em contribuir na construção deste Brasil novo, através da edu-
cação! Agradeço! Agora vem vestibular, Enem e claro... vou vencer, su-
perar. São passos desta grande caminhada de avançar. Espero que minha
história te motive companheira e companheiro, para que voltes a estudar.
Vai ter catador doutor sim senhor!”
Este texto pode ser um resumo do que foi meu primeiro livro do
Lixo a Bixo, algo que consigo compreender melhor neste momento,
quando leio o que escrevi como fragmento daquilo que consegui con-
quistar, isso me diz com letras garrafais que jamais desisti e sabia muito

48
bem o que eu queria, o desejo latente que me movia em torno dos
objetivos. Algo importante acontece, começa a se desenhar a hastag
#vaitercatadordoutro, algo ainda ser conquistado. Olhem, já estou no
mestrado neste momento de escrita do livro. Um passo de cada vez
nesta caminhada de estudar.
Mudando um pouco os rumos de nossa leitura, vamos de poesia,
pois a vida fica melhor quando está ritmada. Lhes apresento uma pe-
quena poesia de combate, datada sua publicação no dia 24 de maio de
2019, quando estávamos sendo abalados pelo poder destrutivo da edu-
cação no governo Bolsonaro, o qual seu ex-ministro Weintraub, falava
aos quatro cantos que as ciências humanas não produziam ciência e sim
balburdia.

“Balbúrdia - do vagabundo ao lutador


Do vagabundo, negrinho com carrinho
Estudar não, trabalhar é o caminho
de mais um jovem sofredor
desde criança, torna-se catador
Livros, cadernos hei de ter
quem sabe, para ler e escrever?
não, com certeza para trabalhar
virando papel, para apenas reciclar
Mas a alegria de aprender a ler
lhe desperta para o mundo do saber
entre o trabalho, letras e palavras escritas
estão sempre aguçando a sua vista
Impossível não amar, com a leitura viajar
esquecer a realidade de somente trabalhar
sonhar, pensar que este mundo pode mudar
passando pelos livros, por voltar a estudar
Pode ser o que ninguém deseja
Fazendo o cursinho do Eja
Estudar a noite, cansado de trabalhar
mas entendendo que a universidade, também é seu lar
Para aqueles que pensam em acabar com a educação

49
saibam que nunca nos calaremos sem nenhuma reação
somos milhares de histórias que juntas marcharão
entendendo que esta luta, é a defesa da nação
Daquele jovem, pobre, negrinho e catador
é mais uma voz, neste mundo sim senhor
de quem jamais vai se calar,
porque deseja que todo mundo, tenha direito de estudar.
Junto com povo que junto marcharão
defendendo a educação,
lutando contra a reforma da previdência
a saída do ministro e a troca da presidência
Alex Cardoso
#vaitercatadordoutor”

O próximo texto é uma publicação no site on-line Sul21, onde


o entrevistador Luiz Eduardo Gomes dá vida a um texto que eu havia
escrito sobre a minha aprovação na universidade, colocando emoção
na escrita, onde as palavras praticamente pulam aos olhos dos leitores.
O título é sugestivo em torno disso que eu estava e estou construindo
nesta caminhada de estudar, “Vai ter catador doutor, sim senhor’: como
Alex chegou à UFRGS depois de 20 anos sem estudar”. O texto foi
re-publicado em muitos outros sites e teve milhares de compartilha-
mentos nas redes sociais.

“‘Vai ter catador doutor, sim senhor’: como Alex chegou à


UFRGS depois de 20 anos sem estudar7.
Tem uma história que Alex Cardoso conta para exemplificar o papel
que a reciclagem teve em sua vida, uma relação que, sendo filho de pais
catadores, começa antes mesmo de nascer. Nessa história, ele tinha apenas
dois meses. O pai, seu Alceu Cardoso, e a mãe, Tânia Maria, subiam a Av.
Borges de Medeiros, no Centro de Porto Alegre, puxando o carrinho que
levava o material coletado no dia. De repente, uma caixa de papelão se
desprende e cai no chão. Tânia alerta ao marido, que responde. “Estamos
7 https://sul21.com.br/ultimas-noticias-geral-areazero-2/2018/02/vai-ter-catador-doutor-sim-senhor-como-alex-che-
gou-ufrgs-depois-de-20-anos-sem-estudar/

50
com o carrinho cheio, deixa para lá, vamos embora”. Mas ela bate o pé e
de teimosa vai atrás da caixa, afinal, cada uma delas é resultado de traba-
lho e faz falta, sim senhor. Foi a sorte de Alex. Como não podiam parar de
trabalhar, Tânia e o seu Cardoso o levavam junto desde muito pequeno
no carrinho, sempre dentro de uma das caixas. Naquele dia, dentro da-
quela que caiu, enrolado em um cobertor, ele dormia.
A realidade de um catador é o trabalho nas ruas, sem trégua, faça
chuva ou sol. Para um filho de catadores, a lógica era que o destino tam-
bém fosse puxar o seu próprio carrinho. E assim foi com Alex. Perma-
neceu na escola apenas até a 6ª série. “Na minha vida, o trabalho supe-
rou a escola. Apesar de meus pais sempre me incentivarem a estudar – às
vezes, com o chinelo -, aos poucos, trabalhar virou a prioridade”, diz.
Alex tinha 15 anos quando largou a escola em definitivo. Aos 16,
teve a primeira filha. Com mais uma boca a alimentar, aí sim que não
teria como voltar a estudar. Ficaria 20 anos longe dos bancos escolares.
Mas aprendeu muito com a vida.
O trabalho com a reciclagem o colocou no caminho dos movimen-
tos sociais. Da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis do
Loteamento Cavalhada (ASCAT), passando pela coordenação do Fórum
de Catadores de Porto Alegre (FCPOA) e pelo Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), o lixo levou Alex longe. Em
2016, participou com textos de sua autoria em dois livros, “Crônicas da
Resistência” e “A Luta Continua”, entregues em mãos à presidenta Dilma
Rousseff e ao ex-presidente Lula. O trabalho na militância social e pela
reciclagem de resíduos fez com que fosse convidado para dar palestras em
diversas universidades, inclusive fora do País.
“Olha, fui em várias, quantas vezes na UFRGS, na PUC, na UFSM,
Ufpel, UPF, UFF, e tantas outras do Brasil. Fui em outras mais longe,
na Argentina, a Universidade Nacional de Lujan. Fui até nos EUA, na
Universidade da Califórnia, em Berkeley, pertinho de São Francisco,
da Golden Gate, que leva à famosa ilha de Alcatraz. Visitei, na Índia, a
Universidade dos Pés Descalços, França, muitos lugares”, diz.
Foi muito ouvido por doutores e outras pessoas com “latifúndios”
de títulos. “Mas sempre via aquele olhar julgador quando respondia que
tinha apenas o ensino fundamental incompleto”, conta. Era uma angús-
tia que sentia com frequência, até em atos mais singelos, como preencher

51
um currículo ou uma ficha cadastral. “Em muitos deles eu abria um ‘qua-
dradinho’ para escrever: 6ª série. Sempre fui realista e isso me dava medo.
Eu sabia que não era bom, me sentia mal, mas estava sem reação”.
Chegou um momento em que a faculdade da vida já não era mais
suficiente para Alex. Cansado de ouvir que era inteligente, que não pre-
cisava estudar, enquanto sentia que faltava alguma coisa. Como poderia
cobrar dos filhos assiduidade na escola se não fizera mais do que a 6ª série?
Há quatro anos, reuniu forças e voltou aos bancos escolares. “Precisava
fazer isso, por mim, pelos meus filhos e pela companheirada”.
Sem deixar o trabalho e o movimento social de lado — já integrava
o MNCR, tendo uma agenda de organização do movimento pelo País –,
se matriculou na escola Neusa Goulart Brizola, localizada no loteamento
Cavalhada, a menos de 100 m de sua casa, na zona sul de Porto Alegre.
O objetivo inicial era concluir o Fundamental pelo Ensino de Jovens e
Adultos (EJA). Concluiu o 6º, o 7º, o 8º e o 9º ano em 2015.
Ao final do ano, fez sua primeira colação de grau. Não sem antes se
envolver em um movimento de luta para que a comunidade não perdesse
as turmas do EJA por uma decisão da Secretaria Municipal de Educação.
Alex deu entrevista para o Sul21 sobre o tema na época. Estava revoltado
com o fechamento da turma. Para ele, não faria diferença, precisaria pro-
curar outra escola para fazer o Ensino Médio. Mas e o resto da comuni-
dade, que precisaria se deslocar para outra região da cidade para continuar
os estudos?
“As pessoas que já têm dificuldade de acompanhar as aulas não con-
seguirão mais ir para outra escola.Vão ter que gastar com passagem, com
deslocamento, então preferem desistir. A escola estando perto de casa traz
algum conforto, como no meu caso, que passados 20 anos consegui re-
tornar à escola”, disse à época.
A batalha foi perdida e as turmas do EJA fechadas. Alex seguiu adian-
te. Em 2016, fez o 1º e o 2º anos no Colégio Estadual Cônego Paulo de
Nadal. Os conteúdos começaram a ficar mais complicados para quem
tinha ficado tanto tempo sem estudar. “O que são aqueles problemas de
Matemática, o que aconteceu com as maçãs do Joãozinho?”, brinca.
Em contrapartida, se apaixonou pelas aulas de História, Geografia
e Sociologia. Ainda comemora o fato de ter tido aulas de Ética e Ar-
tes. “O Cônego Paulo de Nadal é um luxo em formação”, diz. Além do
52
aprendizado, também teve luta. Por 36 dias, participou da ocupação na
escola, que fez parte da onda estudantil que tomou centenas de escolas no
Estado em protesto aos projetos da chamada “Escola Sem Partido” e con-
tra a intenção do governo Sartori de autorizar a cessão da administração
das escolas para a iniciativa privada. Dessa vez, os estudantes venceram.
Em 2017, concluiu o 3º ano do Ensino Médio, também na Cône-
go. Já não precisava mais “inventar um quadradinho”, mas também já
não era o bastante. Queria chegar à UFRGS. Mas não estava preparado.
Precisava de um cursinho. Pela sua atuação no movimento social, Alex
conheceu muitas figuras políticas. Uma delas, a vereadora Fernanda Mel-
chionna (PSOL), foi quem o ajudou. “Liguei e falei: ‘Fê, eu nunca te pedi
nada para mim, mas vou pedir. Preciso de um cursinho pré-vestibular’”.
Assim, ele chegou ao Emancipa, cursinho gratuito criado por ini-
ciativa do PSOL. Pela primeira vez na vida, Alex teria aulas exclusivas
de Redação, além de todas as disciplinas que o ajudaram a preencher
lacunas que não conseguira ao cursar sete séries em três anos.
“Foram noites muito duras, tinha que manter-me trabalhando du-
rante o dia e estudar à noite, além de manter a articulação do movimento.
Em muitas ocasiões, tenho que viajar. Então, conversei com cada profes-
sora e professor, expliquei meu trabalho, meu desejo e sonho de estudar e
pedi a eles apoio. Para compensar as minhas faltas, eu realizava trabalhos,
pesquisas ou escrevia textos, sendo que alguns apresentei a todos os cole-
gas”, conta, destacando um trabalho do 2º ano que fez sobre a Reforma
da Previdência, apresentado para todas as turmas do Cônego.
No último dia 19 de janeiro, veio a notícia: Bixo Ciências Sociais.
Um dos 26 aprovados na UFRGS que haviam cursado o Emancipa.
“Vai ter catador doutor, sim senhor!”, diz Alex.”
Espero que eu tenha conseguido trazer e aprofundar as questões
em torno da caminhada de estudar, deste importante caminho percor-
rido no presente, levando a um futuro de realizações. Nem todas as
pessoas tem o sonho de estudar, é preciso também respeitar isso ao mes-
mo nível em que quem deseja, deverá ter seu acesso garantido. É uma
questão de direitos, os quais deveriam ser universais.

53
54
CATADOR DE VALORIZAÇÃO E RECONHECIMENTO
A catadora e o catador não são pobres por falta de trabalho, ocupa-
ção ou porque seu trabalho não é importante, são pobres porque são
extremamente explorados, às vezes, inclusive de quem é parceira/o.

Algumas palavras, vinda de um companheiro catador individual,


como chamamos a maioria das/os catadoras/es de rua, estes que trabalham
com carrinhos e carroças, sendo um grande erro chamá-las/os de desorgani-
zadas/os, pois são extremamente organizadas/os, ainda mais para suportar
este pesado e precário trabalho sozinha/o. O ano era 2008, estávamos lutan-
do contra a política higienista e preconceituosa da prefeitura e da câmara
de vereadores da capital de Porto Alegre, as quais haviam aprovados a lei
de proibição da circulação de carrinhos e carroças das/os catadoras/es, as/os
quais não teriam como trabalhar sem esta ferramenta importante de traba-
lho. Depois de 5 anos de discussões com a câmara de vereadores, entrevistas
na mídia, a lei foi aprovada, e com nossa articulação, mobilizamos a cate-
goria para defender o direito ao trabalho. Estávamos em frente à prefeitura
de Porto Alegre, com mais de 500 catadoras/es, centenas de carrinhos e car-
roças, eu, em cima de um carro de som, gritando pelo direito ao trabalho.
Um catador, o qual chamarei de Alex, estava visivelmente embriagado,
gritando muito e gesticulando para que eu falasse com ele. A energia dele
era tanta, que percebi que era comigo que ele queria falar e mais do que
isso, era importante, pois Alex insistia muito. Fiz um sinal, movimentando
meus braços e mãos, buscando lhe informar que eu havia lhe visto e que
desceria do caminhão para falar com ele, ele não parou, continuou a gritar
para que eu escutasse. Em cima do caminhão eu gritava alto em defesa do
trabalho, pedindo revogação da lei de proibição, animando a categoria com
palavras de ordem, a qual respondia movimentando seus cartazes e bandei-
ras. A tarde estava animada, imprensa e muitas pessoas da cidade, entre elas
organizações de trabalhadoras/es estavam achando a lei um grande absurdo,
incidindo em nosso apoio, requerendo também a revogação da lei. Logo

55
que terminei de falar, de gritar palavras de ordem, passei a palavra para
outra liderança do movimento, e desci do caminhão. Mal abri a porta de
acesso a rua, Alex me aguardava, ansioso. Pude perceber que conhecia Alex,
o mesmo já havia participado de algumas de nossas formações, mas que
nunca havia falado nada, entrava calado, balançava a cabeça concordan-
do, mas nenhuma vez falava em nossas reuniões. Tratava-se de um catador
histórico, destes que vivem a muitos anos da catação, o qual tem roteiros
de coleta, horários a seguir, parceiros e compromissos a honrar. Alex estava
embriagado e completamente emocionado, podia ver nos olhos dele que ele
estava com o grito preso na garganta, apesar de estar gritando o tempo todo.
Ele tinha algo a me falar, algo muito importante que fez ele romper o silên-
cio e chamar minha atenção até que eu o atendesse. Ele aparentava uns 50
anos, corpo surrado, mãos cansadas, olhos castanhos esverdeados, cabelos e
barba por fazer, as mão calejadas e unhas compridas, com terra em baixo,
demonstrando ser um catador que não usava luvas, mas que tinha muita
experiência no trabalho da catação. Alex aguardou eu descer, chegou perto
do meu ouvido, disse-me mais ou menos com estas palavras: “Seu Alex, eu
gosto do que o senhor está falando, eu concordo e por isso estou aqui, mas
tem como o senhor mudar uma coisa?”, olhei atentamente a ele, e ele conti-
nuou: “Quero sim continuar o meu trabalho, quero continuar a sustentar a
minha família e fazer minha parte na sociedade, trabalhando e ajudando
a natureza” eu apenas balançava a cabeça concordando e informando a ele
que estava entendendo, pois estávamos sob o alto som saindo do caminhão
de som e eu precisava demonstrar e ele que estava compreendendo e concor-
dando com o que ele dizia e ele finalizou: “Seu Alex, tem como o senhor
parar de dizer que a gente quer trabalho? Porque a gente já trabalha de
mais, tem como o senhor pedir para que a gente ganhe dinheiro, pois é de
dinheiro que precisamos”. Aquele pedido entrou em meus ouvidos, como
chaves abrindo portas que há muito tempo eu tentava sem sucesso abrir, pois
de fato, apesar de estar lutando pelo direito ao trabalho, diante de uma imi-
nente proibição e retirada de de direitos pelo viés imoral mas legal do estado,
percebi que a gente precisa mesmo de dinheiro, ou seja, da valorização do
nosso trabalho. Agradeci ao Alex, mudei o foco do discurso e passei a falar
sobre dinheiro, valorização, dívida histórica que a prefeitura tem com nossa
categoria e, a junção da luta, com os discursos e a pressão popular, resultou

56
na ampliação do prazo de proibição da circulação de carroças e carrinhos.
Alex tinha razão, em poucas palavras, ensinou-me muito, uma lição para
minha vida. Obrigado Alex.

A/o catadora/r precisa de dinheiro, reconhecimento, valorização,


pagamento pelo seu importante trabalho, estejamos atentas/os. O diá-
logo com Alex é uma das forças articuladas neste capítulo.
Se houvesse justiça econômica, as/os catadoras/es viveriam sem ne-
nhuma falta, inclusive poderiam contribuir financeiramente com ou-
tros movimentos de trabalhadoras/es. Se houvesse justiça econômica,
a/o catadora/r teriam no mínimo três entradas na sua renda:
1- Renda pela prestação de serviços: Educação ambiental, coleta seleti-
va solidária, triagem, destinação dos resíduos.
2- Renda pelos serviços ambientais: Cada tonelada de papel reciclada
economiza 24 árvores adultas, cada tonelada de plástico reciclado
economiza milhares de litros de petróleo, cada tonelada de metal
reciclado economiza milhares de hectares de terras, florestas, rios,
etc…
3- Renda pela venda dos materiais recicláveis: Este é o único pagamen-
to que a/o catador recebe, aliás, recebe apenas 10% do valor da ca-
deia, ficando os outros 90% nas mãos dos empresários recicladores,
os quais fazem apenas 10% do trabalho utilizando tecnologias com
pouquíssima geração de postos de trabalho.

Diante deste exposto, gostaria de conversar com vocês em torno


da valorização do trabalho das/os catadoras/es, sobre como podemos, a
partir da empatia e da solidariedade, olhar, acolher e fortalecer estas/es
importantes trabalhadoras/es, bem garantindo e ampliando a participa-
ção da categoria em espaços de decisão, sensibilização e de conhecimen-
tos, espaços aos quais muitas vezes são tão íntimos quanto marginais
nestas atividade.
O mundo que nos rodeia nos forma e nós formamos o mundo,
nossa voz, presença, nossos corpos falam, eles são carregados de signi-
ficados. Ao olhar uma catadora, um catador de materiais recicláveis,
podemos ver diversos marcadores sociais e presumir diversas referências

57
de como aquela pessoa acabou tornando-se catadora/r, incluindo renda
aproximada, condições de moradia, escolaridade e outras.
O mesmo vale para quando olhamos para uma mulher jovem, um
homem qualquer, dependendo do local, da sua forma de falar (lingua-
gem), caminhar, roupas, se estiver dirigindo um carro.. Enfim, essas
pré-definições são a base daquilo que chamamos também de preconcei-
to, mas cuidado, pois o preconceito é marcado principalmente pela di-
minuição da/o outra/o, subordinação, inferioridade, menosprezo, não
reconhecimento ao ser humano.
Logo, podemos nem falar e já estamos dizendo coisas, assim sen-
do, precisamos estar sempre olhando com o cuidado à/ao próxima/o,
para que possamos sempre valorizar e potencializar quem nos rodeia, a
quem nos estão próximos, a todas e todos, e principalmente quem mais
precisa. Enquanto seres humanos pensantes, nossa força se potencializa
quando contribuímos com alguém, quando lhe trocamos a tristeza pe-
las alegrias da vida.
Retomando, muitas vezes sou chamado, ou melhor, nós catadoras/
es somos chamadas/os para dar palestras, sensibilizar as pessoas, con-
vencê-las a separar, ou melhor, não misturar seu próprio “lixo”, algo que
deveria ser tão comum, normal a vida, pois se nos alimentamos e vive-
mos da natureza, nada mais justo do que cuidá-la, preservá-la e quan-
do isso não acontece, estamos cometendo um crime contra a natureza,
contra nós mesmas/os, pois não somos apenas parte, somos natureza.
Às vezes entramos em universidades, outras em grandes empresas,
nas escolas públicas e privadas. Somos chamados para eventos, con-
selhos e outras atividades, geralmente por pessoas de bom coração, as
quais conseguem enxergar a potência dos nossos discursos alinhados
com nossas práticas de defesa da natureza. Aqui reside uma das princi-
pais diferenças destas pessoas em relação a nossa categoria, pois agimos
com discurso mas também e principalmente em ação.
Logo, a presença de catadoras/es em espaços de diálogos é extrema-
mente importante, quem mais sabe como resolver os problemas, são as
trabalhadoras e trabalhadores, claro, com equipamentos, tecnologias e
conhecimentos para isso. Já vi engenheiras/os construindo galpões que
simplesmente não funcionam para a reciclagem, pois desde o layout,

58
altura, posição de equipamentos e setores, alteram e muita a produção,
desta forma, é importante que sejamos escutados.

Quadro de recados, Cooperativa Unicca, Cruz Alta/RS, 2022 (arquivo pessoal)

Importante ensinar tanto quanto sensibilizar para que os conhe-


cimentos sejam aplicados, ou seja, nossa categoria não precisa de mais
trabalho, mas sim de reconhecimento e valorização, não precisamos de
uma cesta básica, precisamos de dinheiro para ter a dignidade de es-
colher e comprar nossos próprios alimentos. Para isso é preciso que
reconheçam, valorizem e principalmente paguem pelo nosso trabalho.
Nossas cooperativas, por terem uma renda pré definida e geral-
mente apenas uma das entradas de renda, ou seja, a venda dos materiais
recicláveis - atuamos com um ganho médio, de acordo com nossa pro-
dução, chegada de materiais, quantidade de trabalhadoras/es separando
os materiais recicláveis, equipamentos, tecnologias e parcerias.
Ou seja, não vamos ter picos de renda alta e baixa, mas sim a
manutenção de uma média mensal, por exemplo: no mês de março a
renda de um mil reais, em abril se eleva para um mil e duzentos reais ou
para oitocentos reais, mas jamais para quatro mil reais, logo nossa renda
média vai estar variando entre 20% para mais ou para menos, a não ser
que algum sinistro aconteça.

59
Logo, nossas posições no trabalho são planejadas, não podemos
falhar, pois uma falha pode resultar numa renda baixa e não poderíamos
manter-nos durante o mês, até receber o próximo pagamento. Nosso
tempo de trabalho, posição de equipamentos são sempre pensadas com
propósitos de eficiência de produção, quanto mais materiais recicláveis
preparados para a reciclagem, melhor é a renda da cooperativa.
Assim sendo, é extremamente importante que os resíduos sejam
separados na origem, minimamente entre recicláveis e rejeitos, pois di-
minui nosso trabalho de coleta e triagem na cooperativa, elevando nos-
sa produção e os índices de reciclagem e reaproveitamento de resíduos,
gerando benefícios para dentro e principalmente para fora da coopera-
tiva, para o planeta. Logo, a educação ambiental e a sensibilização são
importantíssimas para o sucesso da reciclagem.
Ou seja, a cada saída de uma/m catador/a de seu posto, para uma
atividade externa da cooperativa, um evento, palestra ou reunião com
empresários ou governos, além dos custos de transporte, alimentação,
hospedagem e estruturas para a atividade, são custos retirados da venda
dos materiais, da renda da/o cooperado.
O posto de trabalho deve ser compensado por aquelas/es que fi-
caram trabalhando na cooperativa, a produção, definidora da renda no
final do mês, deve ser ampliada, logo, quando um sai do grupo para
uma palestra, outros assumem seu trabalho, entretanto a renda é distri-
buída com aquele que está na atividade externa e definitivamente não
é justo que os custos sejam pagos pelas/os trabalhadoras/es quando os
benefícios são distribuídos para o coletivo.
Hora, se estou numa reunião com prefeito, secretários e assesso-
res, cada um deles está ali como parte do seu trabalho, da sua tarefa,
faz parte da tarefa que lhe gera renda. Se estou dando uma palestra
numa empresa privada, cada um presente está sendo “pago” por es-
tar ali, não terão descontos em seus pagamentos, aliás, alguns ganham
muito bem. Quando estou numa agenda fora da cidade, do estado, do
País, ou numa agenda com alguma incubadora de universidade, numa
organização não governamental, numa atividade qualquer fora da coo-
perativa, a mesma coisa se repete.
Todos estão realizando a tarefa, parte do seu trabalho que confi-
gura a sua renda, o seu pagamento, de certa forma para mim também,
60
pois poderá agir diretamente na sensibilização para que as pessoas sepa-
rem adequadamente seus recicláveis e destinem para nossas cooperati-
vas, entretanto o pagamento, a minha renda, sairá das mãos daquelas/es
catadoras/es que estão na cooperativa trabalhando. De forma nenhuma
isso é justo, pensem.
Somos tratados muitas vezes como ser uma obrigação estar em
determinados locais, mesmo aqueles que realmente queremos também
estar, mas é preciso empatia, solidariedade para conosco, que olhem
para nossa situação e de fato possam garantir nossa participação sem
ampliar a exploração da cooperativa.
Não podemos sair das cooperativas e deixar de produzir e receber
de quem está produzindo em nosso lugar, ao mesmo tempo que a co-
operativa não pode pagar pelos custos de transporte, alimentação, às
vezes hospedagem para que possamos estar presentes. Mesmo querendo
e às vezes lutando para que possamos estar presentes, a discussão que
quero fazer não é essa, mas sim sobre a empatia e a solidariedade em
reconhecimento a importância da participação da/o catadora/r.
Nosso trabalho é tão importante quanto invisível, logo, a visibi-
lidade é uma questão vital para que possamos continuar a trabalhar,
mais do que isso, continuar a preservar nossos recursos naturais, gerar
trabalho e renda e construir um outro mundo baseado nas experiências
econômicas e sociais que temos em nossas cooperativas. Nas nossas co-
operativas distribuímos além do trabalho, as riquezas geradas por ele,
incluímos pessoas que foram excluídas do sistema formal de trabalho,
logo, incluímos os excluídos.
Vamos imaginar que tu recebas um convite para palestrar na Har-
vard University, uma universidade privada, uma das melhores univer-
sidades do mundo, a qual é situada na cidade de Cambridge, estado de
Massachusetts, nos Estados Unidos. Logo, é uma dádiva um convite
deste porte, imagino que tu gostaria de estar presente, pois é um espaço
de muito significado e portas se abrirão para sua vida.
Entretanto, para estar presente, algumas questões devem ser con-
sideradas, entre elas estão: passaporte, visto, passagens aéreas, hospe-
dagem, transporte local, alimentação e mais do que isso, recursos para
necessidades que possa haver, além de organizar sua agenda local, se tu

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for professora/r, tens uma agenda local com estudantes, imagino que a
universidade ao qual seja professora/r poderia pagar os custos sem alte-
rar a renda de outras/os professoras/es, mas e se alterasse, será que iria
receber estes recursos?
E se tu trabalhasse de forma autônoma, começaria a me perguntar,
quem iria pagar seus custos de viagem, seus custos e compromissos coti-
dianos? Logo, é tão importante estes convites chegarem com a estrutura
de apoio que viabilize sua participação, assim entendo que deva ser com
as/os catadoras/es convidados para estarem nos eventos. E se porventu-
ra não tiver condições de apoio por questões burocráticas, se apela para
o bom senso, para a empatia e a solidariedade, ou seja, coloque-se na
vida da/o outra/o.
De forma nenhuma tu gostarias de não participar de um impor-
tante espaço como este, que faria das tripas coração para estar presente,
pois sabe que isso poderia mudar sua vida. É assim que vemos uma reu-
nião com governos, um encontro com empresários, com representantes
de ONGS e Institutos que podem nos financiar projetos, é assim que
vemos a oportunidade de nos fortalecer coletivamente, sensibilizando
e mudando a vida das pessoas e consequentemente, a nossa também.
Pode por exemplo organizar contribuições espontâneas, cotização
de quem for participar, dar de forma solidária recursos que possam cus-
tear a presença com qualidade, de uma/m catadora/r no espaço solici-
tado. Reconhecer que a/o outro é tão importante quanto você e que
vivemos num sistema injusto social e economicamente e que para supe-
rá-lo, precisamos de pequenas ações diárias, concretas e revolucionárias,
para assim, fazer e mostrar um caminho de justiça.
Estes últimos anos, mais precisamente desde o ano 2015, eu não
recebo nenhum dinheiro da cooperativa, pois não achava justo que eu
estivesse na rua - como falamos - realizando agendas pelo coletivo das/
os catadoras/es, em defesa da natureza e de nossos direitos sociais, mas
que o pagamento e o custeio fossem pagos apenas pelas/os catadoras/es
cooperados na cooperativa ao qual faço parte.
Não era justo com elas/es, as/os cooperadas/os, tampouco era justo
comigo, pois de certa forma, numa sociedade capitalista onde o reco-
nhecimento e a valorização vem pelo capital, pelo dinheiro investido,

62
logo, meu trabalho era desvalorizado. Não era justo que eu estivesse re-
alizando um trabalho importante coletivamente mas os custos estarem
relegados a apenas algumas pessoas.
Não estou falando de forma nenhuma que parem de nos convidar
para estarmos presentes, mas que tomem cuidado com nossa partici-
pação, que possam de fato garantir nossa presença. Não nos ofereçam
dinheiro por dinheiro ou por esmola, mas sim como reconhecimen-
to de um importante trabalho, os quais, vocês, enquanto boas pessoas
compreendem a importância de nossas presenças.
Pensem, imaginem a renda que a/o catadora/r convidada/o tenha,
lhe dê o dobro, mandem prioritariamente estes recursos para a coope-
rativa, valorize a coletividade, combinem com a cooperativa, havendo
recursos, não como pagamento em si só, mas como reconhecimento e
valorização dos conhecimentos articulados pelas catadoras/es.
Por fim, quero abordar uma questão extremamente importante
para nossa categoria, a coleta seletiva e a coleta seletiva solidária. Para
começar, chamamos a coleta seletiva quando uma empresa privada faz a
coleta seletiva e quando a coleta é feita por catadoras/es, chamamos de
coleta seletiva solidária, estarei abordando melhor estas definições mais
adiante no livro.
A certeza que temos é que quando uma empresa realiza a coleta
seletiva, é através de contrato que paga todo o custeio do serviço, mais
os equipamentos, reposição e manutenção, mais o salário de equipes e
uma sobra de recursos que é o lucro. Já quando são as/os catadoras/es
que realizam a coleta, a maioria esmagadoramente não tem contrato,
nem recebe para fazer o serviços, realiza pela necessidade de sobrevivên-
cia. O estado usa desta necessidade para não contratar a categria, pois
sabe que o serviço será realizado com ou sem pagamento, que para a/o
catadora/r, não tem outra saída.
Isso torna este caso completamente emblemático, o qual a justiça
a partir de seus órgãos, Ministério Público (MP), Ministério Público do
Trabalho (MPT), Defensoria Pública Estadual e da União (DP e DPU),
Organização dos Advogados do Brasil (OAB) entre outras instituições,
não enxergam ou simplesmente não atuam com vigor que a lei exige,
muito contrário quando é em relação a garantir o lucros dos empresários.

63
Claro, existem excessões, e tem defensoras/es, promotoras/es, pro-
curadoras/es, advogadas/os que lutam internamente nas instituições,
que lutam para mudar a realidade, o problema está no racismo ambien-
tal e econômico, quanto há tratamento diferente para o mesmo caso,
variando apenas a solução de acordo com a posição social e econômica
dos envolvidos.
Infelizmente os dados são vergonhosos, isto é clássico. Catadoras/
es quando contratados são explorados ao máximo, um exemplo con-
creto é o contrato que temos (cooperativa ASCAT) com a prefeitura
municipal de Porto Alegre (PMPA), o valor pago é cerca de 5 mil reais
mensais, este valor mal paga um administrador da cooperativa, me re-
firo a isso porque a burocracia da relação ASCAT x PMPA é a mesma
que a PMPA com empresas privadas que têm contratos milionários e
que podem pagar por equipes.
Além do mais, este contrato específico, coloca as obrigações para
a cooperativa, como na maioria dos casos, retirando a obrigação da pre-
feitura, tornando quase um contrato inviável de ser executado, para
imediatamente a prefeitura dizer: “os catadores não têm condições de
executar o serviço”, finalizar o contrato e repassar para uma empresa
privada com 5 vezes o valor que pagaria a cooperativa.
Diante deste exposto, gostaria de dialogar com vocês acerca da co-
leta seletiva solidária entre a/o geradora/r e a/o catadora/r, sem nenhum
contrato, mas marcado pela empatia e solidariedade, algo que trabalho
dentro do conceito de cultura social da reciclagem, onde é preciso to-
mar alguns cuidados e o melhor caminho é dialogando com a/o catado-
ra/r que estiver fazendo a coleta sem sua residência, empresa.
As/os catadoras/es de materiais recicláveis ficam com apenas 10%
do valor do resíduos, ficando os restantes 90% concentrado nas mãos
dos empresários, logo, se o vidro vale cinquenta centavos o quilo, a/o
catadora/r que fizer a coleta, a separação, a venda do vidro, ficará apenas
com cinco centavos. Este é o valor real do vidro.
Vamos para a latinha de alumínio, um dos materiais que mais tem
valor econômico, atualmente com valor de três reais e sessenta centavos,
o volume para um quilo é aproximadamente 64 latinhas. Imaginamos
que haja a oportunidade de coleta em um restaurante onde tem 10 sa-

64
cos de 100 litros (mil litros de resíduos) para ser coletado, suponho que
10% do volume seja latinha, ou seja um saco, o qual deve comportar
entre 200 a 400 latinhas semi amassadas, de 3 a 6 quilos de latinha, em
reais dariam entre dez a quinze reais; metade seja vidro, dez a quinze
quilos por saco, dando cinquenta a setenta e cinco quilos, gerando uma
renda menor que cinco reais.
O que quero dizer com isso, é que os valores dos resíduos recebidos
pelas/os catadoras/es não pagam as contas e o serviço só acontece por
causa da necessidade vital da categoria na luta pela sobrevivência que
acarreta na precariedade do trabalho. É visível a precariedade da vida
da categoria, onde residem, seus equipamentos e condições de coleta, a
necessidades às vezes até de alimentos.
Assim sendo, é importante que se pague pelo serviço das/os cata-
doras/es por você geradora/r de resíduos, o problema da prefeitura não
pagar pelo serviço, optar pela empresa privada, dos órgãos de justiça
cegarem-se diante da injustiça só se amplia quando você, geradora/r de
resíduos, não paga por este trabalho. Estou falando de pagar o custeio,
o serviço, de valorizar a/o catadora/r.
Imaginem se a/o catadora/r realiza este serviço através da coope-
rativa, com o uso de equipe de coleta e caminhão. Atualmente, com o
custo do diesel à seis reais e cinquenta, a renda da/o motorista de um
mil e oitocentos reais e a das/os coletoras/es a um mil e duzentos reais
mensais, cada hora da equipe teriam um custo superior a 30 reais por
hora e o custo de manutenção, depreciação e combustível do caminhão
é superior a 6 reais o km rodado. Logo, sem financiamento da coleta
seletiva solidária, ela praticamente inviabiliza.
Descrevo isso para que possamos coletivamente compreender um
pouco do contexto de exploração e precarização do trabalho da/o ca-
tadora/r de materiais recicláveis, do quanto podemos compreender um
pouco deste universo e agir para que possamos mudar esta realidade.
Havendo condições de custear o serviços, faça. Se tiver como levar seus
resíduos numa cooperativa, leve. Visite uma cooperativa, vai realmente
mudar sua vida.
Por fim, todas/os somos geradoras/es de resíduos, temos uma dívi-
da histórica para com as/os catadoras/es e suas organizações, para com

65
a natureza que nos fornece tudo sem cobrar nada em troca, como uma
mãe. Logo, compreender, dar espaços, reconhecer e valorizar esta pro-
fissão é uma forma concreta de fazer justiça. Ter empatia e praticar a
solidariedade é uma forma de valorização. Pratique.

66
POTÊNCIA DE DENTRO, CATAR E PESQUISAR
Cada ser tem seu próprio saber, é nos encontros de saberes que nasce
a educação.

Apresento a discussão sobre a importância da/o pesquisadora/r que


vem de dentro, uma discussão inicial que pode e deve ser ampliada por
outras/os pesquisadoras/es que como eu, se interessam pelo tema, ao
qual contribuo humildemente para este debate e que deve ser amplia-
do e fortalecido, aproveitando as oportunidades que temos em apro-
fundar as relações entre academia e sociedade, para além dos projetos
de extensão, ampliando o conhecimento para ambos, sem retirar suas
identidades consolidadas, mas ampliando com a graduação de suas/eus
pesquisadoras/es.
A/o pesquisadora/r quilombola, indígena, catadora/r não deixa de
ser quilombola, indígena, catadora/r por se tornar cientista, tornando-
-se um/a quilombola, indígena, catadora/r cientista, sem apagamento
de suas histórias e identidades, que acabam se fortalecendo pelas novas
e visíveis identidades que conquistam quando entram para uma univer-
sidade e venham a ser pesquisadoras/es de em seu próprio campo, local
onde vivem, conhecem e têm grande intimidade.
Pelo fato do meu campo de pesquisa ser interligado à minha vida,
além de haver a impossibilidade de afastamento, há também meu forte
desejo de não me afastar deste campo, pois acredito que temos que
avançar, construir e fortalecer, potencializando a/o pesquisadora/r que
vem de dentro, para além de suas pesquisas, mas também para que
depois de formado, continuar em seu campo, fortalecendo suas/seus
iguais, sendo mais um exemplo a ser visto por seus pares: é possível
avançar na conquista de conhecimentos sem se afastar do seio que lhe
alimentou, tratando este debate como algo positivo, importante e extre-
mamente necessário, vencendo as barreiras epistemológicas que apare-
cem dentro da construção destes conhecimentos, evidenciados em suas
pesquisas e trabalhos.

67
Aproveitar a oportunidade de aprender com a/o pesquisadora/r
que vem de dentro, já que esta/e pode oferecer informações e pontos
de vistas que podem fortalecer as ciências sociais, principalmente a an-
tropologia, a qual não necessita do sujeito estranho, exótico, além mar
para pesquisar como vivem, veem, pensam e constroem seu mundo e
suas lutas. Logo, serei o catador antropólogo, sem haver a redução para
apenas antropólogo.
Não precisamos tirar esta/e de seu campo, deslocar para outra re-
alidade, apenas potencializar onde esta/e está, aproveitar as oportu-
nidades de compartilhar conhecimentos que somente estas/es que são
de dentro podem possibilitar, já que são aquelas/es que possuem mais
comprometimento com a epistemologia dos saberes e que interagem
com o campo antes mesmo deste ser campo, e continuarão depois, não
sendo apenas uma pesquisa com começo, meio e fim, mas sim mais
uma etapa, uma parte de sua vida, a qual é contínua e não se limita a
um projeto de pesquisa e muito menos a graduação que deseja conquis-
tar.
Me refiro ao conhecimento retornar de fato para os locais onde
mais precisam, para as pessoas que tem nome e sobrenome, que não são
apenas objetos de pesquisa, sujeitos ou interlocutoras/res. São pessoas
reais, com problemas e dilemas reais, os quais muitas vezes encontram
soluções com as pesquisas, mas invariavelmente este conhecimento fica
apenas para a academia. Como vamos querer compartilhar conheci-
mentos se estes são extraídos dos campos e discutidos/compartilhados
apenas nos campos acadêmicos?
Nas ciências sociais, especialmente na antropologia, normalmente
as/os pesquisadoras/es são “de fora”, precisando se deslocar - às vezes
grandes distâncias - para “entrar” em seu campo de pesquisa, neces-
sitado de forte treinamento e preparação, bem como visitar o campo,
buscar se habituar, consolidar amizades e interlocutoras/es que possam
lhe apoiar nas leituras que serão transcritas sob forma de texto acadê-
mico/científico, ou seja, uma escrita distinta da escrita habitual fora da
academia.
Na formação acadêmica, as metodologias discutidas são majorita-
riamente destas/es pesquisadoras/es estranhos e exóticos ao campo, os

68
quais precisam de interlocutoras/es, pessoas de confiança e de dentro
do campo, para lhe abrirem portas para que a pesquisa possa acontecer.
Entretanto, as pesquisas têm começo, meio e fim, mas a vida no campo
é contínua, ativa e pulsante. Nela ocorrem revoluções necessárias e di-
árias, sendo que muitas delas podem acontecer com os conhecimentos
das/os pesquisadores, as/os quais, sobre foco de teorias sociais.
Uma forma de traduzir aquilo que é real, sob o lócus de metodo-
logias e conceitos, para que ganhem cientificidade e passem a ser aceito
como conhecimentos, uma lógica que ao mesmo tempo desloca os co-
nhecimentos populares para uma ordem de inferioridade, justamente
porque pesquisadoras/es são de fora, as/os quais adentram no campo,
interagem com sujeitos de pesquisa, interlocutoras/es, apoiadoras/es,
depois seguem suas vidas acadêmicas, profissionais, invariavelmente
sem jamais interagir novamente com seus campos de pesquisa.
Por séculos estes pesquisadores eram figuras tão diferentes quanto
os povos a serem pesquisados, logo este é tão exótico para as/os inter-
locutoras/es do campo, quanto das/os interlocutoras/es do campo para
a/o pesquisadora/r. O simples fato da presença de uma/m pesquisadora/r
no campo, já traz mudanças significativas que podem ou não mudar as
relações e realidades deste campo. A/o pesquisadora/r é uma/um sujeito
diferente de suas/eus interlocutoras/es e mesmo com o passar do tempo,
isso sempre será uma das formas pelos quais, alimentarão suas relações.
Para mais além, uma das técnicas mais debatidas nas disciplinas,
principalmente as iniciais, dão-se em torno do “afastamento” do campo
de pesquisa, uma das coisas que não dei tanta bola assim, pois meu
olhar à quem estava falando, de onde possivelmente era o que pesquisa-
va, me diziam coisas as quais elas/es não precisavam sequer falar, como
uma questão para mim, dada como certa, estas/es professoras/es pesqui-
sadoras/es “são de fora” dos campos que pesquisam, assim como suas/es
professoras/es também eram e ainda, quem escreveu as metodologias,
desenvolveu os conceitos e a própria forma de fazer antropologia desta
forma, também eram de fora.
Havia discussões, então, sobre estranhamento ao familiar, aquilo
que poderia gerar alteridade, se reconhecer na/o outra/o como sujeita/o
dotada/o de saberes. O momento era de formação e resolvia me con-

69
centrar muito mais em aprender, apesar de ser sempre um estudante
assíduo, crítico e altamente participativo nos debates, pois queria dei-
xar as discussões para ser provocado neste trabalho, para que possamos
discutir para além da sala de aula, no campo do conhecimento, onde as
coisas acontecem com mais potência.
Imaginava, se por exemplo, as/os professoras/es fossem indígenas,
compartilhando conhecimentos em sala de aula com estudantes indíge-
nas, imaginem ainda se a sala, literalmente fosse uma casa/oca/palafita
numa aldeia, em meio a floresta, rente ao rio e pulsando todas as vidas
que a rodeia. Se assim fosse, será que estas discussões seriam feitas exa-
tamente deste modo?
Questiono se biografias e autores seriam os mesmos que lemos na
sala de aula da universidade, se as técnicas de ensino seriam as mesmas.
A resposta com certeza seria um sonoro não! Visto que textos, autores e
técnicas são diferentes dependendo da professora/r e da turma de alunos.
Enfim, penso num mundo de possibilidades para deslocar aquela
sala, aquelas técnicas, para me familiarizar a compreender a importân-
cia de tudo aquilo. O conhecimento só vale quando se consegue com-
preender, abstrair, dominar os termos e contextos, sem assimilar, com-
preender e dominar, estes passam a ser apenas palavras que escutamos e
que por ventura, não conseguiremos nem explicar.
Claro que a ideia aqui não é mesquinha, de levantar crítica pela
crítica, mas sim para suscitar a imaginação sociológica, mas sim pensar,
testar e transformar em conhecimento, para compartilhar e fazer brotar
novas formas de ensino, pesquisa e valorização de pesquisadoras/es que
vem de dentro, que são do meio, as/os quais não precisam se deslocar
para entrar em campo, por vezes são seu próprio campo.
Aprendi que toda pesquisa tem um universo, um foco, um projeto,
onde conta-se com uma rica bibliografia local e, quanto maior, mais
completo pode ficar o trabalho. A bibliografia serve como base e estru-
tura de pesquisa e escrita, claro que, sem discutir de onde vem a maior
parte destas “bases”, ou seja, são de fora - tão longe que são além mar,
além continente, em outras línguas, sendo importante esta análise, pois
sua obra se dará sobre a égide destes pilares conceituais e metodologias
de pesquisa.

70
Nas universidades, discutimos e aprendemos majoritariamente
metodologias de autoras/es que são de fora, logo, metodologias que
ensinam a pesquisadores de fora para dentro: Como entrar em campo,
organizar interlocutores, fazer as observações, buscando não incidir no
campo, não modificá-lo com sua presença, planejar e executar dentro
de prazo determinado - que consiste no tempo do projeto e pesquisa - e
depois, este sairá do campo.
Desta forma, temos pouco contato com metodologias de autores
que vem de dentro, os quais não precisam entrar em campo para reali-
zar suas pesquisas e projetos, nem mesmo conseguimos aprofundar em
metodologias já consagradas, as quais aproximam pesquisadora/r e in-
terlocutoras/es, a exemplo da pesquisa-ação e observação participante,
e mesmo assim, num lócus de pesquisadoras/es que vem de fora - além
de outras limitações ao seu projeto como: tema, objeto, problema de
pesquisa, tudo isso para limitar a pesquisa, focando naquilo que o pes-
quisador, foi preparado para observar.
Ao longo de minha formação, participei de algumas defesas de
trabalhos de pesquisas, para algumas fui convidado pela/o estudante
que estaria defendendo seu trabalho, seja por eu ter sido interlocutor,
ou um ombro amigo em horas de desespero, ou eu simplesmente pes-
quisava pelo título da defesa e auto convidava-me para participar.
Busquei me familiarizar com este ambiente, com os discursos, e
com as formas em que professoras/es que fazem parte da banca, co-
mentam os trabalhos de quem está apresentando, pelo simples fato
de conhecer como poderia me organizar e estruturar a minha defesa.
Observei professoras/es da banca, cobrando de forma contundente este
“afastamento”, algo que sempre me suscitou um forte desejo de respos-
ta, não para questionar, apenas pelo questionamento, mas para discutir
e ampliar as discussões em torno deste importante aspecto.
Me causava muitas emoções escutar sobre o afastamento do cam-
po, estando este discurso alinhado ao rigor científico, como se somente
o estranho, aquele que vem de fora, tem capacidade de aprender, pes-
quisar, assimilar e descrever o campo de pesquisa, como se a/o nativa/o
fosse uma/m ser humano incapaz de aprender, de obter conhecimentos
a partir de técnicas discutidas e compartilhadas nos campos acadêmicos.

71
Desta forma, enrijecendo e cristalizando ainda mais as espessas
paredes erguidas separando conhecimento e vida, algo que precisamos
urgentemente incentivar para que sejam debatidas e que novas estraté-
gias de trocas de conhecimentos possam ocorrer, evidenciando aquelas/
es pesquisadoras/es que têm a experiência do campo, pois aos olhos
destas/es, o campo jamais se reduzirá a um mero objeto de pesquisa,
mas de fato onde a vida acontece.
Estas/es pesquisadoras/es, como eu, de dentro, têm ampliado suas
técnicas de observação, de estudos e pesquisas, justamente porque são
baseadas em suas vivências, ampliadas pela ciência, ancoradas em con-
ceitos que ampliam estes conhecimentos, os quais existem de fato, mas
que para a academia, passam a existir somente quando há uma tra-
dução, em seus moldes e códigos, recebendo assim o reconhecimento
como conhecimento, tendo o cuidado inclusive com a escrita - pura-
mente a forma de transcrever estes conhecimentos - de uma forma que
gere conhecimentos para ambos os campos - acadêmico e de pesquisa.
Este processo, garantido pela Lei de Cotas8, gera oportunidades
tanto para a academia aprender, quanto para negras/os, indígenas,
advindos de escolas públicas, filhos de povo periférico, tornem-se es-
tudantes universitários, acessando a universidade e mais do que isso,
sendo estas/es, deslocando-se do posto de interlocutores, para postos de
cientistas pesquisadoras/es, considerando seus conhecimentos, aquilo
que utilizando de técnicas, metodologias e energias, com tanto, ou até
mais rigor científico, já que a pesquisa não tem um fim em si mesma,
mas que podem servir para dar luz e voz a problemas estruturais do
campo, para além dos delimitados nos projetos.
Estes trabalhos tornam-se o entrelace entre pesquisadora/r e inter-
locutora/r, as/os quais se conhecem, tendo sua vivência como principal
bibliografia, sendo meios de ligação entre universidade e comunida-
de, uma forma híbrida de conhecimentos, além de ser uma pauta im-
portante e histórica, presente nos objetivos das universidades federais
e principalmente nos trabalhos e discursos de acadêmicos das ciências
sociais.
8 A Lei nº 12.711/2012, sancionada em agosto deste ano, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno
nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integral-
mente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas
permanecem para ampla concorrência (BRASIL, 2012).

72
Sou catador de materiais recicláveis, uma condição de vida sem esco-
lhas, já que cato materiais recicláveis para sobreviver desde minha infân-
cia, sendo a terceira geração de catadores na família, minha avó, minha
mãe e eu, logo isso não foi uma escolha, assim como para a maioria das
pessoas que nasce com seus futuros pré-definidos, dependendo muito de
sua sociabilidade e do “sistema de disposições socialmente constituídas
que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o prin-
cípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias carac-
terísticas de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 2007).
Parto da ideia de que a maioria das pessoas já nascem com um
futuro pré-definido, marcados pela origem, herança econômica
e cultural, pelas raízes do passado que lhes configuram o futu-
ro, o qual marca e define seus espaços de convivência, cresci-
mento e sociabilidade, manifestadas pelos seus familiares, seus
vizinhos e pessoas de sua convivência íntima. Aprendemos com
o conjunto de seres vivos e não vivos que nos rodeiam, tudo
significa alguma coisa, se comunica conosco, e quando não sa-
bemos o que é, seu significado, buscamos saber, somos curiosos
por essência. (CARDOSO, 2021c, p. 37).

Minha ligação com resíduos é imprecisa no tempo, já que não


consigo definir exatamente quando comecei a trabalhar e nem separar
aquilo que era infância, do trabalho, diversão ou compromissos, nem
mesmo eu podia me dar ao luxo de saber onde começava o galpão de
reciclagem e onde terminava a minha casa – sendo tudo uma coisa só.
Estendendo a mesma hipótese a uma/m quilombola que nasceu,
viveu e morou no quilombo, sendo em algum momento estudante e
pesquisadora/r no seu próprio quilombo, bem como uma/m indígena,
ribeirinha/o, ou mesmo favelada/o, onde estes são internos do cam-
po, conhecedores de sua própria cultura e saberes populares, não sendo
tratado como estranha/o, como pesquisadora/r, nem mesmo chamado
pelo seu nome, mas pelo seu apelido ou ainda, quem dera, chamado de
compa, filha/o, comadres/compadres, numa ligação tão íntima quanto
anterior à pesquisa.
O campo nestes casos, acaba ganhando outras significações e ob-
jetivos, os quais passam por uma participação e interesse a serem tra-

73
balhados, construídos com suas/eus interlocutoras/as, as/os quais são
elevados além de interlocutoras/es para a/o pesquisadora/r e este para
seu campo, somente a/o pesquisadora/r que vem de dentro consegue
dar estes sentidos e significados, estas/es são praticamente as/os únicas/
os que podem exercer uma força coletiva para este trabalho.
Minhas experiências enquanto estudante e pesquisador mostraram
que as relações em torno da pesquisa se dão o tempo todo, não preci-
sando “marcar” hora para pesquisar, já que esta é corrente e recorrente
no campo. As/os interlocutoras/es, as/os quais são suas/eus vizinhas/
os, amigas/os, colegas, camaradas, passam a acompanhar seu trabalho,
seus desdobramentos, a importância passa a ser tanto para a academia,
quanto para o campo e suas/eus interlocutoras/es. Estas/es são mais que
um trabalho, são para a vida.
No meu caso, bem como de inúmeras/os pesquisadoras/es, que
vêm do campo de pesquisa e não da academia para o campo, num
movimento contrário, onde estas/es vêm da vivência, ampliando seus
conhecimentos com ciência, técnicas e metodologias de pesquisas, para
muito além da pesquisa-ação e da observação participante.
Invariavelmente não existe nem mesmo a possibilidade de haver
como entrar, sair ou se afastar do campo, o qual é uma mescla de vida,
trabalho e pesquisa, sendo praticamente impossível o afastamento, co-
mum à outras/os pesquisadoras/es, que vêm da universidade para o
campo, logo, vem de fora, passando certo tempo no campo de pesquisa,
concluindo suas graduações e iniciando suas vidas profissionais.
Em alguns casos, pesquisadoras/es ganharam a confiança, passa-
ram a fazer parte do dia a dia no campo, concluíram seus trabalhos e
nunca mais retornaram ao campo em que conquistaram conhecimentos
e graduações, por vezes, nem para entregar o trabalho e as discussões re-
alizadas e, quando entregam, invariavelmente estes vêm em códigos – a
forma de escrita – propriamente acadêmica, que não gera interesse nos
seus interlocutores na leitura.
Imaginem a/o filha/o de um cacique ou curandeira de uma deter-
minada tribo pesquisando sobre seu povo. Este tem sua vida e relações
pautadas pelas relações de sociabilidade que são muito anteriores à pró-
pria pesquisa, não chegou no campo como pesquisadora/r, mas sim

74
como filha/o, uma condição a qual jamais deixará de ser. É inerente à
pesquisa.
Outra relação que podemos perceber é o cordão de apoio que se
cria em torno destas/es pesquisadoras/es que vêm de dentro, estas/es são
um orgulho no campo, são exemplos que servem de base para outras/
os, principalmente as/os pequenas/os estudantes e seus pais. Enquanto
para aquelas e aqueles estudantes - aqui posso provocar e minhas/meus
professoras/es que desejam ampliar seus horizontes - percebem e con-
cordam que nasceram privilegiados (pelo menos a maioria, não sei o
percentual, mas não vem ao caso, servindo apenas como uma reflexão).
Eu me refiro a nascer numa família onde os pais são minimamente
graduadas/os e às vezes mestras/es ou doutoras/es quando não, profes-
soras/es acadêmicos, os quais estudaram uma biografia completamente
euronortecentrista, não necessitando trabalhar desde muito jovem, en-
trando para a universidade com 17/18 anos e com 27/28 anos se tor-
nando professora/r acadêmico ou recebendo cargos de gerência.
Me pergunto se a própria formação de suas/eus alunas/os/estudan-
tes seriam diferentes se estas/es professoras/es fossem pesquisadoras/es
que vem de dentro. Quais seriam as/os autoras/es, conceitos e metodo-
logias aplicadas, qual seria seus discursos e posições durante as aulas.
Quais seriam os interesses de pesquisa de suas/eus alunas/os?
Pergunto porque sei/sabemos, que, como disse Paulo Freire (1987,
p. 84), “a educação não transforma o mundo. Educação muda as pesso-
as. Pessoas transformam o mundo”, sendo que caminhamos em passos
muito curtos para que as mudanças realmente aconteçam e pior, que
este mundo acabe - diariamente ele acaba para milhares de pessoas que
vivem as mazelas da pobreza e da poluição ambiental.
Será que a/o pesquisadora/r que vem de dentro não aceleraria estas
mudanças, já que muitas delas são consenso em sociedades democrá-
ticas como no Brasil? A experiência empírica ampliada pelos conheci-
mentos científicos alcançados ao longo da formação na academia, aqui-
lo que podemos chamar de práxis (ANTUNES, 2014) não se tornaria
uma potente base de sustentação para vencer as desigualdades sociais?
No meu caso, ao longo da minha vida como catador de materiais
recicláveis, mas principalmente como tarefeiro, formador e represen-

75
tante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis
(MNCR), uma condição que precisamos reconhecer, ser distinta da
maioria da categoria que tem como principal tarefa, a catação de mate-
riais recicláveis, construí olhares diferenciados sobre a nossa organização
social, construindo uma bagagem de vivência distinta de outras pessoas
- claro que cada ser aprende, olha e interpreta o mundo a partir de seus
conhecimentos - os quais não bastam, por isso está sempre aprendendo.
De fato, a vivência não é uma metodologia em si, entretanto se
torna uma potência, quando ancorada e ampliada com conhecimentos
científicos conquistados na academia, as quais não deixam de ser me-
ramente pontos de vistas singulares, ganhando cientificidade, garantida
pelos grupos de pesquisa, bem como a orientação e correção de traba-
lhos pelas/os professoras/es e orientadores, que credenciam os trabalhos
com reconhecimento e contribuição para ampliar conhecimentos tanto
para a academia, quanto para a sociedade.
Assim, as escritas não são baseadas apenas na vivência, mas sim em
metodologias que contribuem para que haja o recorte temporal, a de-
limitação de tema, problema, bem como garante a presença de biblio-
grafia, sendo essa fundamental para compor as bases argumentativas dos
trabalhos, os quais podem estar articulados com outras metodologias, a
exemplo do uso de questionário semiestruturado e pesquisa documental.
Sou da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da Ca-
valhada9 (ASCAT) desde o ano de 1998 e sou membro da equipe de ar-
ticulação nacional do MNCR10. Portanto, sou altamente ativo e compro-
metido com meu campo de estudos, sendo quase impossível que outras/
os pesquisadoras/es conheçam este campo de pesquisa como eu conheço,
principalmente pelas vivências e o comprometimento com o campo.
Este olhar recebe ferramentas de observações e análises, conquista-
das pelos meus estudos em ciências sociais, ampliando minhas técnicas
científicas, observada a partir de novos conceitos, os quais funcionam
como ferramentas, que ampliam minha leitura e escrita desta realidade,
potencializando as discussões que passo a fazer como catador e cientista
social, aqui representando o/a pesquisadora/r que vem de dentro.
9 Cooperativa de catadores de materiais recicláveis, organizada desde o ano de 1996, no bairro Cavalhada, Zona Sul
de Porto Alegre. https://www.cooperativaascat.com.br/
10 Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, organizado desde o ano de 2001. http://www.mncr.
org.br/

76
Logo, não há como – bem como não tenho o desejo – distan-
ciar-me/deslocar-me da minha principal identidade - catador de mate-
riais recicláveis - a qual ganha uma potência como cientista social, bem
como deste campo de pesquisa, pois é onde ocorre meu trabalho e mais
que isso, minha própria vida e vivência, é o lugar onde aprendi a pen-
sar, a ser visto e a olhar o mundo, foi neste campo que aprendi as mais
belas lições da vida, foi onde aprendi a reconhecer e valorizar minha
identidade, da qual tenho muito orgulho, que pertenço a uma categoria
e uma organização, que sou um ser político e portanto coletivo, mas
que diferente de outros seres, sou solidário. A solidariedade é uma ação
concreta, base de ligação entre o eu e as/os outras/os catadoras/es,
Ao contrário, esta discussão que aqui venho provocar, mesmo ha-
vendo outras bibliografias as quais não tive contato ainda neste momen-
to da escrita deste trabalho, pois acredito que com o tempo possamos ir
ampliando o debate e aprofundando o conhecimento em cima de novas
bibliografias ainda não lidas, devem ser fortalecidas, ampliando conhe-
cimentos para aquelas/es que mais necessitam, as/os interlocutoras/es,
as/os quais, se deslocam para pesquisadoras/es sem perder sua identi-
dade, trazendo discussões e olhares, daquilo que é possível, somente
quando se é realmente interligado umbilicalmente no campo.
Assim sendo, para mim enquanto pesquisador, uma identidade
mais recente, a qual meu histórico de vida não condiz, sendo que me
tornei uma espécie de exótico e anormal, o catador iletrado que a partir
da solidariedade, criou condições para voltar aos bancos escolares, de-
pois de 20 anos afastado, conseguindo em apenas 8 anos, o êxito de se
graduar em ciências sociais numa das melhores universidades públicas
federais do Brasil, história que deu base ao meu primeiro livro solo, que
levou o título “Do Bixo a Bixo: A Cultura Social dos Estudos e o Tri-
pé de Sustentação da Vida” (CARDOSO, 2021c), o qual retrata uma
etnografia de miséria, ligada a luta pela educação e o deslocamento do
normal – catador iletrado – para o exótico anormal – catador graduado.
Logo, este campo de pesquisa não é - e nunca será - apenas um
campo de pesquisa, pois não existe a possibilidade de “ir a campo”,
nem tampouco sair, nem mesmo se afastar, pois o espaço de estudos e
vivência não se separam deste campo, sendo potencializada através des-

77
te momento de isolamento social, onde estudos e trabalho on-line são
meios mais seguros para a saúde, mediados pelo mesmo computador
em que trabalho.
Todas as aulas durante a pandemia causada pelo vírus covid-19,
bem como boa parte das articulações e discussões da categoria, se deram
através de meios de contato imediatos, on-line, mediados pelos usos de
celulares e computadores conectados na internet, através de aplicativos
como WhatsApp, Facebook, e-mail e outros, entrelaçando trabalho, es-
tudos e a vida.
Também não posso me fantasiar de estudante acadêmico ou pes-
quisador, pois a identidade de catador, bem como as lutas e articulações
com a sociedade estando na liderança e organização das/os catadoras/es
de materiais recicláveis, participando de espaços de decisão, sendo um
dos principais articuladores das lutas da categoria, não me credenciam
apenas como um pesquisador no sentido lato da palavra, mas sim como
catador/pesquisador, diferenciado de outras/os pesquisadoras/es não ca-
tadoras/es, pois sou de dentro, meu trabalho, minhas paixões, minhas
amizades, minhas lutas, meus familiares e, por último, meu campo de
pesquisa são na prática, a mesma coisa.
Logo, assim como outros pesquisadores que vêm de dentro, me dife-
rencio de outros pesquisadores, não por ser o melhor ou pior, não vem ao
caso aqui e, de fato, isso não me interessa, mas sendo o pesquisador que vem
de dentro, aquele que tem vivência e experiência em seu campo, as quais
podem potencializar seu trabalho para muito antes de ser pesquisador.
Um exemplo concreto que posso lhes dar: Imaginem como seria
o recebimento de uma visita em vossa casa, que irá justamente para
compreender as relações que vocês têm entre seus familiares e suas coi-
sas, qual religião e ritos vocês seguem e organizam, quais objetos e seus
significados, administram a casa, distribuem o poder e a riqueza con-
quistados pela família, quem, quando e que forma cozinham, o que co-
zinham, quem lavaria a louça e porque, até mesmo passar uma vassou-
rinha na casa seria praxe, aquela vassourada que possivelmente poderia
esperar para amanhã.
Roupas limpas, dobradas e guardadas, objetos que voltam para
seu lugar, de repente algum que ganhe mais destaque, para agradar ou

78
desagradar a visita, enfim muitos outros exemplos poderiam arguir a
vocês. A questão prática que quero refletir é que não importa quanto
tempo tenham relação, se a visita em si, não for “parte da família” a
rotina, comportamento, organização das pessoas e dos objetos mudam,
imagina então se essa visita em questão, fará uma pesquisa descrevendo
justamente estas coisas?
A visita possivelmente mudaria a rotina de sua casa e família, as
coisas como são, possivelmente algumas coisas apareceriam e outras se-
riam escondidas, a casa, as coisas, os discursos, os comportamentos da
família como um todo poderiam ser preparados para esta presença es-
tranha, possivelmente poderia ter uma conversa coletiva para definirem
estes comportamentos, logo, seria “preparado” uma série de procedi-
mentos os quais podem ser anormais para as/os habitantes da casa, mas
que serão pensados como normais por esta/e ilustre visitante, imaginem
então se esta/e visitante fosse representante de uma forma de mídia, a
qual falaria publicamente daquilo que observaram em vossa casa.
As posições assumidas e a própria biografia são dispostas na cons-
trução do conhecimento empírico, real e existente, podendo a teoria
explicar a partir do prático e não o contrário como outras/os pesquisa-
doras/es. Aqui, por não haver a possibilidade do pesquisador que “vem
de fora”, aquele que muda o cenário ou terá suas informações baseadas
em seus interlocutores, no meu caso, eu mesmo serei interlocutor.
Encontro nele um acréscimo ao conhecimento, algo que possamos
aproveitar e debruçar-nos, visto que na antropologia social, o que mais
desejamos é fortalecer o conhecimento de nossos interlocutores, lhes
devolvendo não apenas um trabalho, mas também o conhecimento ge-
rado, fruto de sua participação.
Para acender uma luz, além de ter a estrutura necessária, é preci-
so saber onde se encontra o interruptor, o qual a/o pesquisadora/r de
fora pode aprender onde este se encontra, entretanto à noite, com a
casa toda escura, somente a/o interlocutora/r consegue andar agilmente
entre os corredores, desviando dos móveis da casa para encontrar exata-
mente a posição do interruptor para acender a luz.
Não que a/o pesquisadora/r que venha de fora não aprenda, mas
é mais difícil e mais lento para que isso aconteça, e como os projetos

79
de pesquisa têm começo meio e fim, a potência se difere em relação
ao que vem de dentro, aqui traduzida pela agilidade e ciência de onde
se encontra o interruptor. Para quem vem de dentro, o ambiente faz
parte dela/e, assim esta/e se move com mais agilidade e conhecimento,
inclusive no escuro e, na necessidade de haver outro problema, sua ca-
pacidade de resolver é maior.
Alguns problemas podem ocorrer no campo, sendo manifestados
de diversas formas. Imaginamos que a/o interlocutor deliberadamente
resolva não colaborar com a/o pesquisadora/r, ou ainda, dificultar seu
trabalho, quando esta/e oferece informações erradas, falha nas entrevis-
tas, inventa desculpas para não atender aos acordos, solicita dinheiro
como pagamento de sua colaboração, exige que as coisas sejam descritas
conforme seu desejo, ou simplesmente quando dá voltas e voltas para
explicar algo que poderia ser simples.
Um dos grandes problemas das/os pesquisadoras/es é transcrever
as intermináveis horas de gravação de suas entrevistas, já para a/o pes-
quisadoras/r que vem de dentro - já conhece e possivelmente pode evi-
tar muitos destes problemas, inclusive a própria pesquisa tem objetivos
mais concretos, os quais podem dar mais referência e ciência para aquilo
que já se sabe.
Naquelas/es acadêmicas/os, professoras/es e pesquisadoras/es que
defendem um afastamento do campo de pesquisa, me desculpem, mas
pensamos muito diferente. Eu, por ignorância ou confirmando Bour-
dieu (1998), por ocupar um distinto campo social, marcado pelos meus
capitais sociais, econômicos e culturais, ou pela formação do meu habi-
tus, compreendo que infelizmente, este distanciamento do campo, está
interligado ao ser diferente, ainda baseado na antropologia antiga, onde
seres humanos brancos, principalmente europeus ou norte-americanos,
viajavam para além mar, terras distantes e desconhecidas, para conhece-
rem e descreverem o exótico, o nativo e sua distinta cultura.
E mais, que apenas estes poderiam ser credenciados e aceitos como
pesquisadoras/es, escrevendo em outra língua, as quais o povo pesquisa-
do nem acesso ao material tinham. Infelizmente essas pesquisas, tinham
muito mais a função de servir ao sistema colonialista do que gerar co-
nhecimentos, uma estrutura que ainda insiste em refletir uma parte da

80
nossa formação em ciências sociais atualmente, quando nossa carga de
leitura e reflexões não se dão majoritariamente em cima das publicações
das/os autores decoloniais.
Entendo que esta forma estrutural de fora e dentro, acaba por le-
vantar e cristalizar a barreira (in)visível acadêmica, a qual separa conhe-
cimento teórico e empírico, onde o discurso é pela igualdade e a neces-
sidade de que os conhecimentos sejam de fato acessíveis e disponíveis
a quem deseja, mas que de fato - sem querer, assim espero - atuam de
maneira a perpetuar que o conhecimento seja e continue sendo com-
partimentado, escrito em códigos e palavras de uma forma que somente
quem esteja ocupando determinada posição no campo acadêmico, con-
seguirá compreender ou ainda, decifrar estes códigos.
Em muitos lugares da academia, durante a minha formação aca-
dêmica, escutei muito o discurso sobre a escrita leve, de fácil compre-
ensão, a qual não deveria tornar-se meramente uma tese, uma pilha de
papéis, para alcançar o diploma da graduação desejada, mas sim, que
deveria ser um conhecimento compartilhado para o povo, para melho-
rar e ampliar seus saberes. É aqui que me agarro, para que sejamos tão
rigorosos na acumulação de saberes, bem como no compartilhamento,
compreendendo que sim, é necessário que tenhamos formas de pesqui-
sas – metodologias, conceitos e teorias – os quais devem ampliar nossa
caixa de ferramentas para aprender e decifrar este mundo social, mas
não para nos encerrar e nos isolar dele.
Não é difícil articular estas posições de discurso e prática, num
controle feito por quem se posiciona de forma distinta, como elite, o
qual discursa uma coisa e pratica outra, mantendo o status social de
fato, exatamente como ele é. Vejo que os mesmos nem sequer convive-
ram com seus “objetos” de pesquisas, e que o onde na maioria dos casos
buscam apenas seus objetivos individuais – o título pelo título - sendo
meramente produtores científicos acadêmicos, os quais serão lidos e
compreendidos apenas pelos seus iguais, criando um grande abismo en-
tre campo de pesquisa e academia, seguindo a lógica colonial, perden-
do a oportunidade fortalecer o conhecimento decolonial (QUIJANO,
2005) e de gerar – na maioria dos casos – conhecimento também para
fora da academia, justamente para quem mais precisa.

81
Os protocolos do discurso anticolonial são exemplificados pelo
argumento de Frantz Fanon [1961] (1979, p. 25, 26) em Os
Condenados da Terra sobre a inevitabilidade da violência para
a descolonização, entendida como um processo necessariamen-
te revolucionário de “[...] substituição de uma espécie de ho-
mens por outras espécie de homens”, uma “substituição total”,
um “programa de desordem absoluta”. É parte desse contexto
a imagem da antropologia como “serva do colonialismo”, sta-
tus similar ao reservado por Fanon às elites nacionalistas refor-
mistas dos países colonizados (entre as quais ele destacou as
da América Latina). Essa alcunha é epitomizada pelo famoso
quadro que enfeitava o escritório de Kwame Nkrumah, líder
da independência e primeiro presidente de Gana, que o repre-
sentava lutando contra os grilhões do colonialismo britânico
sob os olhares plácidos de três homens brancos que simboliza-
vam o regime colonial: um capitalista portando uma mala, um
missionário portando uma Bíblia, e um antropólogo portando
a sua cópia de African Political Systems (Kuper, 1985, p. 94)
(REINHARDT; CESARINO, p. 11-12, 2017).

Este processo de proximidade tem que ser visto como uma forma
de potencializar um sentido de trocas, em que o campo fornece e recebe,
gerando um real conhecimento – no meu e em crescentes casos, umbilical
– de forma híbrida, pesquisador e principal interlocutor deste trabalho,
unindo potência e necessidade de dar luz a estes campos que por muitas
vezes foram apenas objetos de estudos, os quais atualmente no Brasil,
através de políticas públicas como a Lei de Cotas (BRASIL, 2012b).
Estas políticas têm promovido sujeitos como eu, os quais antes
objetos, possam se tornar pesquisadores/as, num vórtex de crescimento
e empoderamento popular e comunitário que rompe as espessas e (in)
visíveis paredes universitárias, acolhendo quilombos, aldeias periferias e
até galpões de reciclagem.
Foi este encontro de coração com mente – aquilo que sei da vi-
vência, com aquilo que aprendi com a ciência, que me fez alegremen-
te escolher – ou ser escolhido – pela antropologia, uma ciência que
não parte de respostas prontas, mas sim de perguntas antropológicas,
as quais buscam mais o saber, mesmo aquilo que parece ser como fato.

82
Pode-se de fato afirmar que a antropologia contemporânea é
a mais reflexiva das ciências sociais, tendo transitado de forma
tensa, mas produtiva, de uma disposição defensiva com relação
à sua autoridade científica e fronteiras disciplinares para um en-
gajamento com a autocrítica enquanto recurso epistemológico
e político intrínseco à sua tradição disciplinar. Essa transforma-
ção paradigmática na percepção e a percepção antropológica
parece indicar uma quebra derradeira com o “sono dogmático”
de décadas anteriores (REINHARDT; CESARINO, 2017, p.
11-12, 2017).

Cada vez mais – sociedade e principalmente academia - compre-


endemos e aceitamos pesquisas e trabalhos acadêmicos de pesquisadores
interligados aos seus campos, como grandes contribuições ao conheci-
mento, utilizando igualmente um alto rigor científico e assim sendo,
com a academia ganhando muito conosco – cotistas, povo preto, de
baixa renda e periférico – tanto em oportunidades de ampliar conheci-
mentos, como em ampliar-se e enraizar-se em lugares que eram apenas
campo, mas que passam a ser campus, ou seja, seu próprio território.
Aquilo que o artista Gilberto Gil divulgou em seu twitter “Gosto
de pensar a política de cotas como uma oportunidade que esse povo
preto, periférico e de baixa renda está dando ao mundo acadêmico con-
vencional, eurocêntrico e embranquecido de conhecer os nossos sabe-
res”, ampliando conhecimentos importantes para academia e principal-
mente para estas/es pesquisadores/as de dentro que buscam para além
de suas graduações, soluções para os problemas e mazelas pesquisadas
(GIL, 2019).
Assim sendo, não escrevo este trabalho apenas para receber diplo-
ma de cientista social, nem tampouco que fique consumindo dados em
alguns sites acadêmicos, mas para que possa servir de argumento e for-
mação para pesquisadoras/es que vem de dentro, para as/os catadoras/
es, quilombolas, indígenas e outras/os, bem como a academia e a socie-
dade interessada em aprender e compartilhar saberes e experiências com
estes povos, os quais têm muito a nos ensinar e compartilhar se tivermos
as metodologias certas.
Escrevo para compartilhar estes conhecimentos, estas vivências co-
letivas, as quais não são somente minhas, refletidas nestes breves capí-

83
tulos e em outros trabalhos acadêmicos, os quais passam a ser nossos,
numa devolutiva que posso dar para a sociedade que investiu nos meus
estudos, dando-me a oportunidade de me incluir como estudante aca-
dêmico nesta brilhante universidade federal – gratuita e de qualidade, a
qual tenho muito orgulho de fazer parte.

84
EMPATIA E SOLIDARIEDADE, O TRABALHO SUJO

A beleza da reciclagem está em seus olhos, com amor e atenção,


enxergará mais do que resíduos, enxergará um mundo de (re)significa-
ções gerador de vida e tudo que ela representa.
Neste capítulo, o qual faz parte do trabalho de conclusão de curso
(TCC) em antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), buscarei discorrer sobre visível e invisível, o feio e o belo,
sujo e limpo, desde um olhar de dentro, de um catador de materiais
recicláveis que escreve sobre seu próprio trabalho, sobre luz das teorias
sociais amplamente discutidas no longo de oito semestre da graduação.
Olhar um ser humano maltrapilho, arrastando carroça pelas ruas
da cidade, dormindo rente às calçadas, ao relento, enfrentando frio,
calor, vento, pedindo alimentos e dinheiro, por vezes necessitando de
banho, pois invariavelmente não tem acesso à água nem para beber,
quem dera para tomar banho. Infelizmente é rotineiro, faz parte do
cenário na maioria das grandes e pequenas cidades, não importa qual
a sua renda per capita, estrutura e recursos, essa acaba sendo uma das
mais concretas e incontestáveis imagens da falha da sociedade e suas
instituições, principalmente o Estado.
Este claramente está precisando de atenção, assistência de todo
tipo, entretanto, infelizmente esse olhar já não causa mais estranhamen-
tos, não geram protestos e estão longe dos grandes discursos políticos,
longe da maioria dos programas de governo, não estão na pauta princi-
pal do direito, dos juízes e seus tribunais, do Estado e seus governos. Es-
tão longe da maioria das pessoas, tanto as que decidem quanto aqueles
que aguardam as decisões, são de fato um limbo social, (r)existem, mas
são invisíveis, são seres humanos, mas valem menos que um pet, tem
direitos, mas lutam pelo simples direito de ter direitos, são um meio
que não tem alcance a nenhum lado.
Sujeitos sem redes sociais, sem internet, telefone e computador,
desconectados da sociedade 4.0, vivem offline perante as instituições

85
sociais e, principalmente, diante do poderoso Estado, o qual se torna
apenas uma fantasia que garante que estes possam sobreviver a mais um
dia, até que alguém com direitos e dinheiro, resolva à sua vontade, dar
fim para estas descartadas vidas, com uso letal de violência, simplesmen-
te porque podem, foi assim com os catadores de materiais recicláveis
Ricardo Nascimento (MNCR, 2017), Luciano Macedo (GRINBERG,
2021), ambos em São Paulo, dentre tantos outros casos, onde o simples
ato de viver, incomoda a tal ponto que acabam sendo assassinados.
Excluídos socialmente de nós mesmos, a tal ponto que normaliza-
mos, parecendo que não podemos fazer nada, que não é nossa culpa, que
isso acontece, afinal, faz parte do atual cenário, é normal, é um pensa-
mento abissal (SANTOS, 2007) num misto com a atitude blasé, quando
a pessoa é “incapaz de reagir a novos estímulos com as energias adequa-
das” (SIMMEL, 1973). Aqui reside uma parte significativa da nossa per-
da de humanidade, de sermos iguais uns aos outros e logo, querer que a/o
outra/o tenha os mesmos direitos e oportunidades que nós.
Se tu és assim, infelizmente aceitou que não somos iguais, que
há sujeitos superiores - humanos especiais - e sujeitos inferiores - sub-
-humanos - com direitos relegados e pior, uma aceitação de que isso é
normal. Ver que temos pessoas aos nossos olhos que vivem em situação
de extrema miséria, não entender que isso ocorre somente quando os
direitos estão sendo relegados já é um problema, o qual amplia quando
pensamos que a culpa da situação em que estas pessoas se encontram é
delas mesmas.
A desumanização num misto de preconceito e medo, se teme o
pobre porque ele ainda pode reivindicar. A reivindicação do pobre é
pela sua vida, dignidade, respeito à sua cultura, sua forma de viver, ver
e construir seu mundo. A culpa da miséria pode recair em vários po-
derosos ombros, mas com toda certeza, não é do pobre, pois este, luta
diariamente para sua subsistência, para manter-se minimamente em pé.
Pergunto-me, como estes vão reivindicar direitos, sua cidadania,
se o próprio Estado não lhe garante direitos, se a organização social
é estruturada justamente para que pessoas sejam excluídas? Como ele
vai reivindicar se já lhe tiraram tudo, em muitos casos até a capacidade
de pensar, se organizar e lutar, não lhe dando nem mesmo a chance de
nascer num mundo melhor, numa sociedade mais justa, mais solidária?
86
Estes seres humanos teriam muitos argumentos para desistirem de
viver, ou ainda de viverem fora das leis do Estado, praticando violência,
o que seria uma forma de devolução a esta sociedade excludente e vio-
lenta, mas responde trabalhando, aquilo que os capitalistas gritam aos
quatro cantos do mundo, que o trabalho dignifica o homem, mas não
é de fato o que acontece com a maioria das/os catadoras/es de materiais
recicláveis que sobrevivem nas ruas e lixões do nosso planeta.
Carrinhos de supermercado sem alimentos dentro, amassados e
sujos, emaranhado arames e ganchos para segurar sacos de lixo ao seu
redor, abarrotados de papéis, papelão e plásticos recicláveis, latinha de
alumínio é mais difícil. O morador do condomínio prefere guardar
porque sabe que ela tem valor, prefere incrementar sua renda para se
dar de presente parte de uma viagem ou o churrasco no final do ano, do
que destinar a/o catadora/r para matar sua fome. Descarta seus resíduos
como se fosse um favor e acredita que a poluição não é culpa sua.
É injusto, é triste, pois justamente estes sujeitos são dotados de
poder nesta sociedade de aparências, tem cargos e recursos, podem de-
cidir pela garantia de vidas melhores aos seus iguais, entretanto entram
no abismo do pensamento individualista, onde pensa que a culpa dos
problemas é do outro, é do Estado e das empresas que não fazem a parte
deles, são insensíveis, não pensam no próximo, pavimentando e deixan-
do um caminho livre para que este morador pense exatamente assim e
por fim, também não faça a parte dele.

87
Foto 1 - Índio, catador de materiais recicláveis de Porto Alegre, é um ser humano mui-
to feliz com seu trabalho. “Eu tiro os materiais do contêiner, assim eu ajudo a cidade
e a cidade me ajuda”. (Arquivo pessoal)

A apatia e a falta de empatia são fatores centrais da exclusão eco-


nômica e social, da invisibilidade e da violência. A apatia é por não
fazer nada e quando muito, apenas fazer a sua parte, que é justamente
a base deste mundo onde se produz e não se questiona o que fazer com
a produção. O problema da fome é um problema de empatia, de hu-
manidade e não apenas do Estado, da política e da economia, seres hu-
manos que não compreenderem isso, não são tão humanos assim, pois
esquecem-se de colocarem-se no lugar do outro, acabam por golpear
fatalmente a empatia, aquilo que nos unifica.
Quando se perde a capacidade de ter empatia, perdemos o elo que
nos liga, o campo sensorial que nos torna humanos, destoando a políti-
ca, a qual, ao invés de ajudar, serve apenas para competir e, desta forma,
pergunto: Como então seremos iguais se a apatia e a falta de empatia
forem um combustível para nossas reações diante de um mundo tão
desigual, complexo e excludente? Como resolver problemas de fome,
quando não falta comida? Da miséria, quando não falta dinheiro?
88
Não é à toa que a solidariedade, empatia e alegria residem muito
mais nas/os mais pobres, estas/es mantêm suas vidas em torno desse
tripé e não do dinheiro e das propriedades. Às vezes, nem objetos, nem
comida têm, e o pouco que conseguem, ainda dividem. Os pobres são
seres humanos coletivos, políticos e agenciam-se a partir de sua huma-
nidade, já os ricos, pelos seus produtos, pelas suas pertenças, pelo seu
status e poder - sem isso – reduzem-se a quase nada.
Na avaliação deste catador, ricos são apenas seres humanos sem hu-
manidade, disputando trânsito, exigindo passagem com seus carros luxu-
osos, guiados por gente com tanta casa, mesmo havendo tanta casa sem
gente nenhuma. É normal e parece que foi sempre assim, alguns ainda
dizem que em tempos idos, as coisas eram piores. Mesmo tendo direitos,
liberdade de se associar, de falar, de ir e vir, o pobre não se dá conta que o
direito em si, não é uma garantia de direito, numa assimetria entre ser e
ter, que reflete o visível e o invisível.
Por mais incrível que pareça, o invisível é nada mais, nada menos,
que um reflexo do direito, daquilo que se quer ou não se quer ver,
discutir, resolver. É um ato concreto de procrastinação, daquilo que de-
veria ser prioritário de ser resolvido se a base das ideias e soluções fosse
a empatia - colocar-se no lugar do outro - para assim resolver. Se fosse
meu filho a passar fome, se fosse meu pai desempregado, se fosse minha
irmã a sofrer preconceitos, se fosse minha esposa a sofrer abuso sexual,
será que ainda estaríamos nesta sociedade abissal?
Tudo isso numa sociedade de alta tecnologia, grandes conheci-
mentos, super rica em dinheiro e ainda em recursos, onde a escassez
não é o principal problema da economia, mas sim a alta concentração,
mesmo diante de um estado de direito institucionalizado, atravessando
e vencendo décadas, ano a ano afirmando-se e agarrando-se a governos
que focam ou desfocam essas realidades, disputadas pelas novas tecno-
logias de comunicação, via redes sociais, as quais poderiam servir como
um espaço de denúncia popular, mas que normalmente servem apenas
como afirmação de status e poder, mesmo sem ter nem um nem o ou-
tro.
A sociedade da superprodução, onde quem produz, muitas vezes
não tem acesso ao seu produto, aquilo que Marx (2004) afirmava: “O

89
trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,
quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O traba-
lhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercado-
rias cria”, num contexto de perda de humanidade onde quanto mais se
aumenta a população, a produção de riquezas, aumenta-se também a
exclusão e a miséria social.
Sociedades erguidas sobre a égide da violência letal do escravismo
e colonialismo, com imposição de cultura, religião, saberes, arraigadas
pelo Império Brasileiro. Brasil Império, seus arranjos de Brasis que atra-
vessaram os séculos até a chegada deste Brasil democracia, onde violên-
cias legais e ilegais dependem primeiramente de quem pratica, baseados
ainda em sua cor e conta bancária, espaço que ocupa na sociedade.
Nestes últimos anos, temos vivenciado uma polaridade exacerbada
entre esquerda e direita, com a diferença residindo no matar ou deixar
morrer, onde são admiráveis e belos, detentores da moral e do desen-
volvimento os carros luxuosos que custam mais de 200 mil reais e, feio
e imoral, como o próprio atraso, o carrinho de supermercado e sua/eu
condutora/r, a/o catadora/r de materiais recicláveis que mesmo sendo
empurrada para a morte, sem direitos perante o carro luxuoso, tendo
que lutar para manter a condição de trabalhadora/r explorada/o.
Entre o feio e o belo, o carro luxuoso é o belo, tanto quanto polui-
dor, (Trocar por ponto e vírgula.) seu condutor, um gerador de resíduos
e impactos ambientais, já que a produção de resíduos está altamente
associada à concentração de riquezas, quanto mais dinheiro tem, maior
é a quantidade de resíduos produzidos. Os ricos do mundo são os maio-
res poluidores, são de fato os destruidores do planeta. Possivelmente
esse condutor é uma grande referência neste arranjo social e econômico
de sociedade, com status que lhe permite sequer ser questionado de
onde vem tudo aquilo que ele tem.
Já o carrinho de supermercado é considerado o feio, entretanto é
uma ferramenta que potencializa o agente de proteção ambiental. A/o
catadora/r de materiais recicláveis por ter poucos recursos financeiros,
é um dos agentes que menos resíduos gera, apesar de trabalhar com
resíduos. O real de tudo isso é que ambos nasceram de heranças, de
suas próprias culturas e saberes, os quais, mesmo disputando o mesmo

90
espaço, a rua, são invisíveis um para o outro, principalmente por não
se verem naquela situação. Ambos não são rostos, não são corpos, não
são seres humanos de carne, osso e sentimentos, são meramente carro e
carrinho, e isso reflete quem são, a materialidade da sociedade de apa-
rências, confirmando aquele dito popular: “Tu vales o que tens e não o
que és”.
Num mundo capitalista, os seres humanos perdem a identidade de
cidadãs/ãos tornando-se meramente consumidores, onde a produção
de resíduos é ligada ao consumismo e este à riqueza. A riqueza é disso-
ciada do trabalho e associada principalmente à herança ou a exploração
de trabalhadoras/es. Assim sendo, a riqueza não é uma conquista pelo
trabalho e, por isso, trabalhadoras/es têm, quando muito, sua própria
força de trabalho para vender ao preço que o patrão quiser pagar.
Catadoras/es de materiais recicláveis são parte dos seres huma-
nos que menos produzem resíduos, ao mesmo tempo, são quem mais
trabalha com eles, executando a maior parte do trabalho empregado
na cadeia produtiva, produzindo aquilo que não servia mais, sendo os
principais atores da reciclagem, ao mesmo tempo em que são as/os mais
explorados, recebendo valores tão ínfimos que lhes condenam a viver
suas vidas, arrastando resíduos pelas cidades, muitas vezes, sem nenhum
equipamento.
As/os catadoras/es de materiais são seres excluídos, invisíveis ou
não aceitos nesta sociedade, a qual reclama daquela/e que “rasga sacoli-
nhas”, mas que não se dá conta que não sabe, e nem quer aprender, a se-
parar adequadamente seus resíduos, os quais poderiam ser melhor apro-
veitados e reciclados, gerando trabalho e renda, principalmente para as
mulheres e povos das periferias, por vezes gritando a altos pulmões pela
salvação da Amazônia, adorando o símbolo da reciclagem, sendo estas,
fortes evidências do racismo e analfabetismo ambiental, tornando-se
grandes contradições deste arranjo social, que caminha cada vez mais
rapidamente para seu previsível fim.
Milhares de trabalhadoras/es no planeta sobrevivem da coleta,
triagem e destinação de materiais recicláveis para a reciclagem, trans-
formando um dos maiores problemas ambientais da atualidade, em so-
lução para que possam sobreviver, “entretanto vivem em sua maioria no

91
limite de suas necessidades básicas e contam apenas com a renda de seu
trabalho para conseguir manter a si e suas famílias” (SILVA; NASCI-
MENTO, 2017, p. 44) imersas numa profunda precariedade (ANTU-
NES, 2006).
O Banco Mundial aponta que “em todo o mundo cerca de 15
milhões de pessoas ganham a vida recuperando material reciclável no
lixo. Destes, 4 milhões estão na América Latina, onde pelo menos 75%
trabalham de forma insalubre” (BANCO MUNDIAL…, 2014). No
Brasil, conforme o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR), este número pode ser muito maior que 800 mil
catadoras/es (MNCR, 2019). Entretanto, o governo federal aponta 400
mil, sendo 24 mil apenas no Rio Grande do Sul, metade da estimativa
do MNCR.
Sem direitos, a precariedade acaba por se tornar a norma vigente
de seu trabalho, na palavra do catador de materiais recicláveis Severino
Lima Júnior, no filme Essa Gente Vai Longe, o qual fala do “direito
de ter direitos”, numa clara analogia do distanciamento que há entre
o trabalho da catação e o direito da categoria enquanto profissional,
mesmo aqueles que são garantidos – seja pela Constituição ou pelas leis
conquistadas pela categoria (ESSA GENTE…, 2008).
Nesses termos, a precariedade do trabalho pode ser identifica-
da tanto pela aferição de critérios objetivos que asseguram e
garantem os direitos sociais e trabalhistas – através da forma-
lidade do trabalho, por exemplo, ou pela natureza e tipo de
vínculo empregatício do trabalhador – como pela experiência
subjetiva que os trabalhadores têm desses mecanismos sociais
e institucionais de proteção, reconhecimento e sociabilidade.
Se a ausência de proteção previdenciária, por exemplo, pode
provocar, em certos indivíduos, uma sensação de insegurança
no trabalho, isto é, uma situação subjetiva de precariedade, isso
não é necessariamente o caso para todos os trabalhadores. Um
trabalho exercido sem nenhum tipo de proteção social e pre-
videnciária pode não provocar no indivíduo uma sensação de
insegurança e, portanto, de precariedade. Tal fato irá depender
de seus padrões sociais de referência e do peso de outras formas
de solidariedade, familiares, comunitárias ou de proximidade
nas quais ele está inserido (VARGAS, 2016, p. 316).

92
Catadoras/es são seres os humanos que figuram entre os mais ex-
cluídos e marginalizados: são os sem-teto, sem-terra, sem direitos, sem
educação, sem saúde, sem transporte, as/os analfabetas/os, aquelas/es
que não têm sucesso escolar, os quais a maioria nem sequer concorrem
à empregos formais, sendo uma figura para além do chamado exército
de reserva.
A categoria é o reflexo da parceria estabelecida com as instituições
da sociedade, principalmente prefeituras, as quais, conforme a Política
Nacional de Resíduos Sólidos (BRASIL, 2010) e Política Nacional de
Saneamento Básico (BRASIL, 2007), devem contratar a categoria para
a prestação de serviços, de educação ambiental, coleta seletiva, triagem
e encaminhamento dos resíduos para a reciclagem, logo, catadoras/es de
materiais recicláveis são uma categoria fundamental na gestão integrada
de resíduos sólidos brasileira.
Não são apartados dessa sociedade, são sim, excluídos e margina-
lizados. São a parte mais concreta da exclusão social dentro do sistema
capitalista, mesmo sendo trabalhadoras/es, não são valorizadas/os, mes-
mo seu trabalho ser extremamente relevante, são invisibilizadas/os e por
muitas vezes são perseguidos e criminalizados.
Estas/es trabalhadoras/es são formalmente reconhecidas/os desde
o ano de 2002 pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), são
as pessoas que “catam, selecionam e vendem materiais recicláveis como
papel, papelão e vidro, bem como materiais ferrosos e não ferrosos e ou-
tros materiais reaproveitáveis”, sendo um trabalho de acesso “livre sem
exigência de escolaridade ou formação profissional” ficando a cargo das
organizações de catadoras/es realizar a formação e treinamento de seus
catadores cooperados (CBO, 2002).
O trabalho é exercido por profissionais que se organizam de
forma autônoma ou em cooperativas. trabalham para venda de
materiais a empresas ou cooperativas de reciclagem. o trabalho
é exercido a céu aberto, em horários variados. o trabalhador é
exposto a variações climáticas, a riscos de acidente na mani-
pulação do material, acidentes de trânsito e, muitas vezes, à
violência urbana. nas cooperativas surgem especializações do
trabalho que tendem a aumentar o número de postos, como
os de separador, triador e enfardador de sucatas. (CBO, 2002).

93
Contudo, a categoria lamentavelmente está muito longe de ser va-
lorizada, mesmo diante da relevância e importância do seu trabalho
nesta sociedade de consumo onde a produção de resíduos e poluição
aumenta exponencialmente a cada ano. O último Anuário da Recicla-
gem apontou que houve “aumento da geração de RSU entre 2010 e
2018, de 30%, em muito supera o crescimento da população brasileira
(cerca de 7% no mesmo período), o que levou ao aumento per capita
de geração de RSU” (ASCAT; PRAGMA, p.10 2021).
As/os catadores são responsáveis por 90% de todos os resíduos re-
ciclados no Brasil, um trabalho que conserva os recursos naturais pre-
servando recursos naturais, diminuindo a destruição da natureza, prin-
cipalmente dos oceanos – local que mais recebe plásticos de uso único
do mundo -, em contrapartida por este trabalho realizado, fica com
apenas 10% dos valores investidos na cadeia produtiva dos reciclados,
tornando esta, uma das cadeias produtivas mais injustas e exploradoras
de mão de obra trabalhadora.

Catador de Materiais Recicláveis e a bandeira do MNCR (Arquivo pessoal)

94
Os seres humanos são geradores de resíduos desde o seu nascimen-
to até sua morte, os resíduos são um dos maiores problemas ambientais
do planeta. Altos investimentos em dinheiro, tecnologias empregadas e
sistemas complexos de gerenciamento de resíduos, não dão certo se não
tiverem participação popular. Mesmo havendo uma lei nacional desde
o ano de 1981 (BRASIL, 1981), que torna os lixões locais inadequados
para destino final de resíduos sólidos no Brasil, segundo o Observatório
dos Lixões (2021), 2518 municípios declararam que encaminham seus
resíduos a lixões a céu aberto ou aterros controlados, 2257 declararam
que encaminham para aterros sanitários e 795 municípios nem sequer
declararam onde depositam seus resíduos.
Conforme a PNRS, o tratamento de resíduos deve obedecer a hie-
rarquia estabelecida no artigo 9º que diz: “Na gestão e gerenciamento
de resíduos sólidos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade:
não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos
sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos” (BRA-
SIL, 2010), logo, destinar resíduos a aterros sanitários, não obedecem
a lei, já que a mesma deixa bem clara que apenas rejeitos devem ser
encaminhados.
Os aterros sanitários “estão relacionados principalmente às emis-
sões atmosféricas do aterro (CO, CO2, CH4, H2S, HC, NH3, etc.),
emissão de material particulado e consequente alteração da qualidade
do ar, geração de lixiviado” os quais causam “contaminação da água e
do solo, geração de odor, danos à propriedade (uso e ocupação de solo),
proliferação de vetores transmissores de doenças, redução da disponi-
bilidade de recursos naturais, dentre outros” (GAIO; MARASCHIN;
CARDOSO, 2017, p. [6]).
Os resíduos podem ser um bem, mas somente se estiverem no lu-
gar certo, se forem destinados corretamente, perdendo seu aspecto ne-
gativo e por vezes repugnante, tornando-se matéria prima, as quais não
precisam ser extraídas da natureza novamente, economizando recursos
naturais, matéria prima virgem como petróleo, árvores e minério.
Se forem destinados e tratados adequadamente, podem gerar bene-
fícios sociais, econômicos e principalmente ambientais, entretanto não
é o que ocorre no Brasil, mesmo estando sobre uma das mais impor-

95
tantes e avançadas leis de resíduos sólidos do mundo, a Política Nacio-
nal de Resíduos Sólidos (PNRS), Lei nº 12.305/2010 a qual estabelece
normas, disposições objetivos e responsabilidades de todos os geradores
de resíduos, desde os fabricantes, distribuidores, consumidores e pre-
feituras. Essa discussão está mais detalhada no capítulo denominado: A
ressignificação dos resíduos e a cultura social da reciclagem.
Há todo um discurso pactuado no Brasil em torno da falta de
recursos públicos nos municípios para o tratamento adequado de re-
síduos, principalmente a reciclagem, pois precisa-se de grandes inves-
timentos, o que de fato é uma grande falácia, articulada e garantida
pelas empresas privadas de limpeza urbana, além de ser sustentada pelas
administrações municipais.
Os municípios falam que não tem recursos para realizar os serviços
de encerramento dos lixões, educação ambiental, compostagem, recicla-
gem e nem mesmo coleta seletiva e apoio às/aos catadoras/res, entretanto
investem cifras milionárias em serviço de coleta e transporte de resíduos,
os quais são levados majoritariamente para lixões e aterros controlados,
locais ilegais e inadequados para disposição final (BRASIL, 2010).
Slogans de prefeituras, pactuados com seus cidadãos, são em tor-
no do objetivo de cidade limpa, e desta forma as empresas privadas,
as quais têm como objetivo, o lucro pelo lucro em primeiro lugar, se
especializaram na prestação de serviços principalmente de coleta, alme-
jando receber os altos investimentos que as prefeituras dispõem para
este serviço, e assim sendo, atualmente no Brasil, 100% dos municípios
brasileiros – não me refiro a 100% dos brasileiros - coletam resíduos.
Esta coleta é praticamente um deslocamento de resíduos, de um
ponto da cidade, das regiões centrais, bairros nobres e suas ruas, para ou-
tros mais afastados, isolados e invisíveis, mas dentro da própria cidade,
para os chamados lixões, atualmente 2528 municípios, depositam seus
resíduos nestes locais inadequados. Este tipo de procedimento envolve
muito dinheiro, entretanto sem retorno nenhum, diferente daquilo que
seria a reciclagem e o problema só não é maior, porque as/os catadoras/
es realizam a coleta dos materiais recicláveis pelas ruas e lixões do Brasil.
Logo, os resíduos são um grande problema, principalmente para
as administrações municipais, as quais precisam resolver este problema

96
urgentemente, sob pena de descumprir leis nacionais de saneamento e
resíduos sólidos, acabando por responder por crimes de responsabilida-
de administrativa, ou não recebendo recursos do governo federal, já que
normalmente os critérios estabelecidos nos editais de financiamento de
municípios pelo estado brasileiro, principalmente para a gestão de resí-
duos, são baseados no cumprimento das leis.
Os resíduos sólidos são matérias primas – a natureza propriamente
dita – transformada em produtos e embalagens descartáveis, uma parte
dos resíduos, principalmente plásticos, são chamadas de uso único11, ne-
cessitando de gerenciamento integrado, garantido a partir de participação
popular, já que o sucesso da gestão adequada de resíduos, a qual é consi-
derada quando se implantam sistemas de educação ambiental continuada
e transversal, desde a escola, o trabalho, espaços comunitários e imprensa,
envolvendo todos os geradores de resíduos para participarem da coleta sele-
tiva de recicláveis secos, principalmente papéis, plásticos, metais e vidros, de
resíduos orgânicos, principalmente sobras daquilo que é alimento.
Uma lei sem participação popular perde sua essencialidade, passa
a ser desnecessária, já que ninguém cumpre e neste caso, sem geren-
ciamento adequado de resíduos ambientais, por terem um poder al-
tamente poluidor e destrutivo da natureza. Os resíduos sólidos são a
própria natureza transformada, entretanto, sem cuidado e tratamento,
estes resíduos geram poluição e destruição natural, logo a reciclagem se
faz importante para que a natureza seja preservada.
O trabalho das/os catadoras/es é um dos reflexos mais concreto
deste sistema econômico e político, marcado pelo domínio do homem
branco, logo é patriarcal, machista, preconceituoso e altamente exclu-
dente, onde os trabalhos mais precários, invisibilizados, do cuidado, são
exercidos pelas/os negras/os.
A catação tem estes princípios, ela ocorre uma parte na rua – a
coleta – entretanto a triagem ocorre nos lixões, galpões localizados nas
periferias e zonas rurais – locais invisibilizados, onde cada 3 pessoas na
catação, duas são mulheres e mulheres negras/os, moradoras de peri-
11 “[...] plásticos de uso único são aqueles que possuem uma vida útil muito curta. Esses produtos são uma grande
preocupação para os ambientalistas por serem descartados imediatamente após sua utilização. Entre eles estão co-
pos, sacolas, canudos, embalagens, hastes flexíveis, talheres, entre outros produtos. Atualmente, entre 35% e 40%
da produção é composta por esse tipo de material. No entanto, diversos países, estados e municípios já começam
a se movimentar para coibir o uso e mudar a cultura de consumo de plástico da população” (USEAHIMS. 2021).

97
feria, num país onde a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua, mais recente, de 2019, a população brasileira é composta por
48,2% de homens e 51,8% de mulheres (IBGE. 2019).
Assim como no total da população brasileira, as pessoas de cor
ou raça preta ou parda constituem, também, a maior parte da
força de trabalho no País. Em 2018, tal contingente correspon-
deu a 57,7 milhões de pessoas, ou seja, 25,2% a mais do que
a população de cor ou raça branca na força de trabalho, que
totalizava 46,1 milhões. Entretanto, em relação à população
desocupada e à população subutilizada, que inclui, além dos
desocupados, os subocupados e a força de trabalho potencial,
as pessoas pretas ou pardas são substancialmente mais repre-
sentadas – apesar de serem pouco mais da metade da força de
trabalho (54,9%), elas formavam cerca de ⅔ dos desocupados
(64,2%) e dos subutilizados (66,1%) na força de trabalho em
2018 (IBGE, 2019),

Unidades de triagem (UTs) são chamadas popularmente de gal-


pões de reciclagem em Porto Alegre, as quais possuem estruturas ade-
quadas para recebimento, triagem, prensagem e armazenamento de
resíduos sólidos coletados pelo próprio grupo ou recebidos da coleta
seletiva municipal, equipamentos para a realização do trabalho como
prensas, balanças, banheiros, vestiários, escritório de administração e al-
gumas possuem cozinha, biblioteca, sala de cinema e espaços culturais,
carros, caminhões e outros veículos além de possuírem licenças de ope-
ração, planos de prevenção de incêndio, licenças ambientais e contrato
de prestação de serviços com a PMPA.
As UTs são os locais onde as/os catadoras/es organizados coletiva-
mente em associações ou cooperativas, fazem de forma autogestionária,
a administração e a execução da parte mais importante do gerenciamen-
to de resíduos, a triagem e preparação dos materiais recicláveis para a
reciclagem. As/os catadoras/es, para além da triagem dos resíduos, atu-
am principalmente com o deslocamento da compreensão e do sentido
daquilo que compreendemos como resíduos, os quais perdem sua carga
negativa – do feio, dos prejuízos econômico e ambiental - para materiais
recicláveis– os quais passam ser positivo – belo, gerador de trabalho,
renda e preservação ambiental.

98
A RESSIGNIFICAÇÃO DOS RESÍDUOS

Atualmente estou com 41 anos, minhas inquietações, bem como


grande parte das minhas energias e mesmo estes estudos que tenho re-
alizado, neste campo de pesquisa envolvendo catadoras/es de materiais
recicláveis e resíduos sólidos, me indago: Como e onde estaremos daqui
meio século? Como serão/estarão as coisas? Será que o planeta estará
ainda habitável? Teremos animais vivos ou estes apenas empalhados em
museus? E o clima, tranquilo? Outras perguntas me inquietam, entre-
tanto não buscarei aqui respondê-las, apenas indaguei como uma preo-
cupação a qual compartilho com quem ousar ler este trabalho.
Neste capítulo do trabalho de conclusão de curso em Antropolo-
gia, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), apresen-
to a discussão sobre pontos de vista ressignificados, os diferentes lócus
dos principais atores envolvidos e interessados nos resíduos sólidos e
em sua gestão, buscando discorrer sobre significados que cada ator tem,
baseado na vivência ao longo destes vinte anos de discussão sobre re-
síduos que tenho dedicado nas discussões com governos, empresários,
geradoras/es de resíduos e catadoras/es de materiais recicláveis.
Essa contribuição está incipiente e estará em constante construção,
necessitará de atualizações, inclusive de maior aprofundamento usando
metodologias de pesquisas que possam colher mais informações sobre
a ressignificação dos resíduos, entretanto neste capítulo faço as discus-
sões iniciais, baseados na vivência e no olhar do catador e antropólogo,
buscando compreender que os resíduos geram interesses e significados
diferentes para cada ator.
Antes de mais nada, resíduos são natureza transformada - aquilo
que outrora era natural, transformada pela ação humana, numa mistura
de trabalho, técnicas e tecnologias - é aquilo que sobra da transformação
e aquilo que se transforma depois de ter sua vida útil - seu objetivo - al-
cançado. Uma parte da natureza é descartada e considerada resíduos de
forma cada vez mais acelerada, deslocando aquilo que era natural para
rejeitos, gerando oportunidades para uns atores e prejuízos para outros.
99
Em quantidade considerada, os resíduos são tratados como proble-
mas, envolvendo grandes investimentos para gestão, consistindo prin-
cipalmente em coleta e destinação, deixando de fora a discussão sobre
design, vida útil, necessidade, reciclabilidade12 e reaproveitamento. A
ótica dominante em torno dos resíduos é tratá-los como sujeira, como
algo que precisa ser limpo, tirado dos olhos dos geradores, desconside-
rando que o planeta é uno e que não há como sumir com os resíduos,
apenas os deslocar de um lugar a outro, sendo que a reciclagem é uma
das melhores forma de reuso dos resíduos.
Os investimentos na gestão de resíduos partem principalmente dos
governos, pois estes são os atores responsáveis legalmente pela gestão
dos resíduos e estes optam por fazer gestão privadas, contratando em-
presas privadas, as quais visam mais o lucro do que a gestão de resíduos.
A maior parte dos resíduos são considerados um problema, desta forma
boa parte são depositados em lixões e aterros sanitários sem nenhum
tratamento ou separação e infelizmente, boa parte têm como destino
os oceanos, principalmente materiais plásticos, gerando grandes pro-
blemas ambientais.
Os resíduos quando não tratados adequadamente, planejados des-
de a sua produção até seu destino final, são um grande problema eco-
nômico, do desperdício e ambiental, tornando-se um grande poluidor
ambiental, principalmente dos rios e oceanos, os quais estão profunda-
mente poluídos, marcados pela presença massiva de microplásticos13 e
nanoplásticos14.
O desperdício é a perda de matéria prima que poderia ser reutilizada,
se bem planejada, mas que acaba por se tornar rejeito, um prejuízo econô-
mico imenso, já que tudo tem custo, vistas que se perde valores investidos
no planejamento, tecnologia e transformação da natureza em resíduos.
12 Reciclabilidade é a viabilidade da reciclagem. O vidro por exemplo tem uma baixíssima reciclabilidade, pois o
valor de mercado pago vai de R$ 0,05 até R$ 0,07 centavos de reais o quilo. Este valor não paga o tempo emprega-
do na coleta, separação, armazenamento, comercialização, logo, em vários lugares do Brasil, a exemplo de toda a
região Norte, o vidro não tem reciclagem.
13 “O microplástico, como o próprio nome diz, é uma pequena partícula de plástico. Esse tipo de material é um dos
principais poluentes dos oceanos. Alguns pesquisadores consideram que o tamanho máximo do microplástico é
de 1 milímetro, enquanto outros adotam a medida de 5 milímetros”. Disponível em https://www.ecycle.com.br/
microplastico/
14 “Um nano plástico é uma partícula de plástico com tamanho entre 1 e 1000 nanômetros, produzida involuntaria-
mente a partir da fabricação e degradação de objetos de plástico. Os plásticos podem ser degradados por processos
físicos e químicos ou por comunidades vivas, sendo a radiação ultravioleta, a ação mecânica e a hidrólise, de
fundamental importância na quebra e disponibilização dos mesmos aos micro-organismos”. disponível em: https://
www.ecycle.com.br/nanoplasticos/

100
Entretanto os altos investimentos perdidos nos resíduos estão liga-
dos a sua gestão e gerenciamento, este serviço e domínio concentram-se
principalmente nas empresas privadas, as quais recebem grandes quan-
tias de recursos públicos e privados para a realização da coleta dos resí-
duos, sem se preocupar com a destinação, já que a maioria dos municí-
pios brasileiros destinam seus resíduos aos aterros controlados e lixões
a céu aberto do país. Aterros controlados e lixões a céu aberto são tec-
nicamente a mesma coisa. Na tabela 1 vemos o quadro elaborado pela
Confederação Nacional dos Municípios no Observatórios dos Lixões
(2021) com os dados da disposição final de resíduos sólidos no Brasil.

Disposição final de resíduos no Brasil.

No mundo, milhares de toneladas de natureza são transformadas


em produtos, os quais, depois de cumprirem seus cada vez mais rápidos
objetivos, transformam-se em rejeitos, chamados conforme a Política
Nacional de Resíduos Sólidos (BRASIL, 2010) de resíduos sólidos e
não como “lixo”, uma vez que resíduos tem aproveitamento se destina-
do corretamente.
No próprio processo industrial de produção, uma parte significa-
tiva da natureza nem chega a ser transformada em produtos, mas ime-
diatamente tornam-se rejeitos de produção. Para ter ideia do que estou
falando, somente nos países da América do Norte, 99% de tudo que é
produzido, acaba transformando-se em rejeito em menos de seis meses,
numa situação de superprodução de resíduos que dobrou nos últimos
trinta anos, chegando a produção de dois quilos de resíduos por habi-
tante dia, um universo de milhares de toneladas de resíduos produzidos
diariamente (A HISTÓRIA…, 2007).
Para piorar a situação, a cada tonelada de resíduos sólidos geradas
e descartadas pelos geradores, outras setenta são produzidas pela indús-
tria para produzirem o produto (A HISTÓRIA…, 2007), aliás, este

101
passou a ser nossa principal identidade desde a virada do século, passando
a ser mais importante aquilo que temos (capital e coisas, consumidores) e
não mais o que verdadeiramente somos (seres humanos em igualdade, ci-
dadãos), uma conquista expropriada pelo sistema capitalista, tirando-nos
a identidade de cidadãs/ãos, iguais umas/uns às/aos outras/os perante a
sociedade, tornando-nos meros consumidores, logo, desiguais, já que so-
mos vistos pelo poder de compra que temos, tornando-nos poluidores do
planeta.
Todos os resíduos são a própria natureza transformada, sendo que
do petróleo derivam os plásticos, principalmente de árvores de acácia,
pinus e eucaliptos derivam as aparas para fabricação de papéis, da areia de
quartzo os vidros, dos minérios os metais. Quando os produtos feitos pelo
uso destas matérias primas - os resíduos - não são reciclados, são necessá-
rios novamente mais extração de matéria virgem da natureza, causando
impactos diretos de destruição do meio natural ou futuros - previsíveis ou
imprevisíveis - como o caso dos crimes/desastres ambientais como o va-
zamento de óleo nas praias do nordeste e o rompimento de barragens na
região sudeste do Brasil, no estado de Minas Gerais (CARDOSO, 2019).
A gravimetria dos resíduos no Brasil, apontada pelo Instituto de Pes-
quisa Econômica Aplicada (IPEA, 2017) do Governo Federal, afirma que
34,06% dos resíduos são recicláveis, destes 16,49% são materiais plásti-
cos, 13,16% papéis, 2,34% vidros, 1,56% de materiais ferrosos e 0,51%
material alumínio, 57,41% de matéria orgânica – os quais podem gerar
energia a partir de biodigestores, bem como, composto orgânico, os quais
podem adubar a terra, cerca de 30% são recicláveis secos – sendo estes os
resíduos mais perversos poluidores da natureza, principalmente os plásti-
cos, sobrando apenas 8,56% dos resíduos sem nenhum aproveitamento,
os quais não deveriam nem mesmo serem gerados.
Em 2010, o Ministério do Meio Ambiente, apontava que o Brasil
perdia oito bilhões de reais anualmente por não reciclar seus resíduos,
entretanto não apontava por exemplo, quanto investe em tecnologias
de coletas e tratamento privados dos resíduos, onde estes são encami-
nhados para aterros controlados e lixões a céu aberto, os quais, tecnica-
mente são a mesma coisa (BRASIL, 2021).
Segundo André França, atual secretário de Qualidade Ambiental do
Ministério do Meio Ambiente (MMA), “lixão e o aterro controlado são
102
muito parecidos e ambos não têm a ver com o aterro sanitário. O lixão
não tem controle nenhum e o aterro controlado, como diz o nome, tem
até um certo controle, mas sem garantia de adequação ambiental”, cha-
mando atenção “para não confundir, colocamos de um lado o lixão e o
aterro controlado, que é a destinação irregular, e do outro o aterro sanitá-
rio, que é uma obra de engenharia preparada para isso”. (BRASIL, 2021).
Segundo o Observatórios dos Lixões (2021), atualmente 2518
municípios depositam seus resíduos sólidos em lixões e aterros con-
trolados – tecnicamente lixões e aterros controlados são mesma coisa
- vistas que o aterro controlado leva este nome apenas porque usa de
processos de aterramento de resíduos com argila, terra e brita por cima,
mas por baixo, o chorume – líquido advindo da decomposição de resí-
duos orgânicos contaminado, polui solo e mananciais de água.
O mesmo Ministério aponta que apenas 3% dos resíduos são reci-
cláveis, dado que não se sustenta justamente porque a Associação Bra-
sileira de Fabricantes de Lata de Alumínio apontou que no ano 2020,
o “índice de reciclagem alcançou 97,4%, mantendo o Brasil entre os
líderes mundiais em reciclagem de latinhas”.
Em números, isso significa que foram recicladas “391,5 mil tone-
ladas, ou, aproximadamente trinta e um bilhões de unidades” (2020…,
2021), sendo que conforme o site Recicla Sampa, a Associação Brasilei-
ra da Indústria do PET (ABIPET) divulgou em seu relatório anual que
foram recicladas cerca de 311 mil toneladas de embalagens PET no ano
de 2019: “Isso significa que 55% dos produtos descartados pela popu-
lação seguiram para a reciclagem” (PANDEMIA…, 2020).
O volume do ano passado foi 12% maior do que o registrado em
2018 e gerou um faturamento de mais de 3,6 bilhões de reais para a
economia brasileira” (PANDEMIA…, 2020). Logo, o índice de 3%
de reciclagem de resíduos no Brasil não se sustenta, justamente porque
desconsidera o importante trabalho das/os catadoras/es de materiais re-
cicláveis do Brasil, um exército de quase um milhão de trabalhadoras/
es, conforme dados do Movimento Nacional dos Catadores de Mate-
riais Recicláveis (MNCR).
Os resíduos são um problema ambiental, seus impactos negativos
na natureza são fortemente investigados pelos organismos internacio-
nais, sendo atualmente uma das principais pautas presente na agenda da
103
Organização das Nações Unidas (ONU). O principal interlocutor da
ONU, o secretário-geral António Guterres, lembrou no dia mundial do
meio ambiente de 2018, que as partículas de micro plástico presentes
no oceano “superam as estrelas de nossa galáxia” (MUNDO…, 2018).
Para superar este grande problema ambiental, Guterres convida
as/os cidadãs/ãos do mundo, seus governos e instituições para “vencer
a poluição por plástico”, argumentando que “nosso mundo está sendo
inundado por resíduos plásticos prejudiciais”, e concluindo que “todos os
anos, mais de 8 milhões de toneladas acabam nos oceanos”, o que torna
uma evidência clara da importância do trabalho das/os catadoras/es de
materiais recicláveis na ressignificação os resíduos (MUNDO…, 2018).
As/os catadoras/es de materiais recicláveis tem um olhar que ressig-
nifica os resíduos, para elas/es, os resíduos são bons, geradores de renda e
promotores de cidadania (BRASIL. 2010) os deslocando completamente
daquilo que é um grande mal ambiental e econômico, para um bem eco-
nômico, social e ambiental, aquilo que sustenta suas vidas e famílias, aquilo
que lhe reinsere na sociedade enquanto trabalhadora/r, transformando o
feio em belo, o sujo em limpo, o desperdício em geração de renda e susten-
to de suas famílias e tudo mais que garante sua subsistência.
O olhar da/o geradora/r aos resíduos é um olhar completamente dife-
rente do olhar da/o catadora/r de materiais recicláveis. A/o geradora/r olha
os resíduos como sujeira, algo feio, uma coisa que anteriormente poderia
estar embalando alimentos que ela/ele ingeriu e imediatamente após seu
uso, se transformou em coisa ruim, num grande problema. É um olhar que
se desloca rapidamente, visto que alguns alimentos, por exemplo, têm suas
escolhas pelos consumidores justamente por causa de suas embalagens.
Já para as/os catadoras/es de materiais recicláveis, os resíduos são
a única saída para não deixarem de subsistir, sobreviver, pode significar
aquilo que chamo em algumas palestras e rodas de conversas, de UTI,
que significa, Última Tentativa do Indivíduo para sobreviver. Sem este
olhar que ressignifica os resíduos, meio ambiente, as/os catadores/as e
os/geradores, caminham mais rapidamente rumo a sua destruição, a sua
morte, sem este trabalho, a morte antecipada, é o único caminho que
todas/os seguem.

104
Charge Direnne. Fonte DIRENE, A. S/D. Disponível em: https://arteemanhasdalin-
gua.blogspot.com/2019/09/atividade-sobre-charge-desigualdade.html

Nas ruas, terrenos baldios e outros lugares das grandes metrópoles,


bem como nas pequenas cidades, uma quantidade considerada cada
vez maior de resíduos, geram milhares de focos de lixões, consumindo
uma grande quantidade de recursos públicos para seu gerenciamento e
controle, a capital do estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, nos
informa a partir da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (Smurb),
em matéria para o jornal Zero Hora (BECKER, 2021), que foram iden-
tificados mais de 400 focos de descarte irregular de resíduos, os quais
“muitos são pontos históricos onde há grande acúmulo de resíduos a
cada semana”, ou seja, são limpos e imediatamente tornam-se pequenos
lixões, local irregular de descarte de resíduos.
Ainda de acordo com o secretário da Smurb, “apenas 4% dos por-
to-alegrenses fazem a separação correta dos resíduos” e que os custos
mensais para o gerenciamento destes focos e pela baixa separação de
recicláveis de rejeitos, chegam mensalmente a R$ 1,5 milhão, sendo que
quase a metade, “setecentos mil reais são somente para transporte de
resíduos, que poderiam ser reciclados, para os aterros sanitários” (BE-
CKER, 2021). Para efeito de comparação, os valores pagos à coopera-
tiva Ascat para a triagem e destinação dos resíduos para a coleta seletiva

105
é R$5.158,84 reais, um valor absurdo para a política que deveria ser
fortemente apoiada.

Charge A luta das/os catadoras pela coleta seletiva solidária em Porto Alegre - RS
(LATUFF. 2017)
Apresento o quadro abaixo com parte dos valores investidos na
gestão de resíduos na cidade, onde poderemos perceber principalmente
a desvalorização da política de reciclagem, onde o investimento é nas as-
sociações e cooperativas de catadoras/es da cidade, em comparação com
os valores investidos na iniciativa privada, minimamente configurando
um projeto político de anti-reciclagem em Porto Alegre, cidade que já
foi referência internacional nesta modalidade. Estes altos investimentos
nestes serviços de coleta, transporte e aterramento de resíduos, confi-
guram também um retrocesso em relação ao antes e depois da Política
Nacional de Resíduos Sólidos (BRASIL, 2010) a qual estabelece e obri-
ga a reciclagem, em comparação com os investimentos na reciclagem
anteriores ao ano 2002, apresentado na primeira parte deste capítulo.

106
Valores investidos na gestão de resíduos em Porto Alegre. Elaborado pelo autor. 2021

Assim sendo, uma parte considerada dos resíduos reciclados é re-


cuperada pela ação das/os catadoras/es de materiais recicláveis, os quais
são responsáveis diretos por 90% de todos os resíduos que são reciclados,
ficando com apenas 10% dos valores empregados na cadeia produtiva,
uma das maiores injustiças econômicas e sociais, a qual tem um alto grau
de invisibilidade, pois é executada por mulheres, homens e crianças, as
quais vivem em extrema vulnerabilidade social e econômica, sem a devida
valorização e reconhecimento pelo seu importante trabalho.
A sociedade e suas principais instituições – econômicas, políticas,
jurídicas e até de educação – infelizmente ainda muito longe de cum-
prirem suas próprias leis, como a Política Nacional de Resíduos Sólidos
(BRASIL, 2010) e a Política Nacional de Saneamento Básico (BRASIL,
2007), as quais impõem a obrigatoriedade de haver coleta seletiva, final
de lixões, contratação de forma direta e sem licitação de associações e
cooperativas de catadoras/es de materiais recicláveis para a coleta se-
letiva, além de uma agenda de prioridades para a gestão de resíduos,
sendo a primeira delas a não geração, o reaproveitamento, reciclagem,
destinação adequada de rejeitos (BRASIL, 2010).
Longe de cumprirem as leis, a instituições governamentais, princi-
palmente as prefeituras, responsáveis pela gestão dos resíduos, aplicam
uma agenda de prestação de serviços beneficiando principalmente em-
presas privadas – com altos investimentos – e estas usando tecnologias

107
cada vez mais caras, como coleta mecanizada conteinerizada, caminhões
prensa, sendo encaminhado para aterros e lixões, enquanto que quan-
do em contrato com cooperativas de catadoras/es – as quais utilizam
de alta ocupação de trabalho/mão de obra/postos de trabalho – ficam
apenas com a responsabilidade do serviço, porém sem investimentos
em dinheiro, perpetuando assim a lógica sistêmica de exploração, rele-
gando direitos já conquistados pela categoria, trazendo em seus discur-
sos, que os resíduos tem valor e estes são a forma de pagamento pelos
trabalhos das catadoras/es.
Os resíduos sólidos são um grande problema, causando grandes
prejuízos ambientais e econômicos a toda sociedade, ameaçando futu-
ras vidas no planeta. Os lixões são grandes emissores de gases de efeito
estufa. Os lixões existentes no Brasil “lançam cerca de vinte e sete mi-
lhões de toneladas de CO2 equivalentes por ano” (VIEIRA; ARAÚJO,
2021).
Os resíduos só passam a ter valor depois de passar pelas mãos das/
os catadoras/es, os quais às custas de muito trabalho – um trabalho
pesado e degradante na maioria dos casos - operam dentro de uma das
maiores injustiças econômicas do mundo - deslocando um problema
para uma solução, transformando em belo o feio, em proteção ambien-
tal aquilo que era um de seus maiores poluidores, realizando 90% do
trabalho da reciclagem e ficando com apenas 10% dos recursos empre-
gados na cadeia, usando como principal força motriz para este trabalho,
seus corpos e saberes.
Há uma enorme engenharia do saber neste processo de reciclagem
feita pelas/os catadoras/es de materiais recicláveis. Para a realização do
serviço é necessário saber onde estão os resíduos, quais roteiros seguir,
quanto tempo, a qualidade dos materiais. è necessário conhecer cada
tipo, cada polímero plástico, tipos de metais, textura e ondulações do
papel, separando os resíduos em mais de setenta classificações diferen-
tes.
É necessário saber sobre a contabilidade - valores, compradores,
forma de pagamento. Uma cooperativa de catadoras/es de materiais
recicláveis, estas precisam estar documentadas num nível burocrático
maior que para as empresas privadas, necessitam prestar contas as/aos

108
suas/eus cooperadas/os e sociedade. Quanto mais organizada for a co-
operativa, maior serão seus custos e os benefícios as/aos cooperadas/os.
Entretanto a maioria absoluta não estão em organizações cole-
tivas e solidárias, trabalham na individualidade nos lixões do Brasil,
recolhendo materiais enormes sacos nas costas, arrastando pesados car-
rinhos e carroças, mergulhando em contêineres, lixeiras, rios e igarapés,
catando em lixões, coletando nas ruas e armazenando em suas casas e
galpões de reciclagem.
As imagens abaixo são representativas da ressignificação dos resí-
duos pelos olhos das/os catadoras/es, os quais enxergam a oportunidade
do trabalho, a dignidade da vida. Estas imagens foram vencedoras do
Concurso Internacional de Fotografia Etnográfica – UrbanAct, rece-
bendo menção honrosa.

A ressignificação dos resíduos - prejuízos econômicos, ambientais e sociais, ressignifi-


cado em renda, proteção ambiental e inclusão social. (Arquivo pessoal)

Mesmo diante de perseguições, como no caso de Porto Alegre


onde há uma lei puramente higienista, elaborada pelo ex-vereador e
atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, chamada pelas/os cata-
doras/es de materiais recicláveis da Lei da Fome.
A Lei Melo se apresenta como uma lei higienista, preconceituosa,
altamente excludente e de requintes de ampliação da marginalidade,
justamente porque a categoria tem a proibição do seu trabalho, com a
proibição da circulação dos veículos de tração animal (VTAs), as carro-
ças e os veículos de tração humana (VTHs), os carrinhos.

109
Figura 4 - Charge Iotti. (Iotti/Agencia RBS. 2017).

A Câmara dos Vereadores de Porto Alegre recebeu um projeto de


lei de proibição da circulação de carroças no ano de 2003, apresentado
pelo então vereador Sebastião Melo. Após muitas discussões, mobiliza-
ções e manifestações contrárias realizadas pela nossa categoria, foi criada
a Comissão de Proteção dos Animais.
O ponto principal da justificativa da lei era o direito dos animais
– nesse caso, o cavalo. Colocamos diversos argumentos e propostas para
a inclusão social e a mudança gradual de veículos de tração animal para
motorizados, com a organização da categoria em cooperativas e os con-
tratos de prestação de coleta seletiva solidária. Nenhuma das propostas
foi aceita.
Mesmo diante de perseguições, proibições, falta de apoio, estru-
tura, usando carrinhos, carroças ou arrastando sacos, as/os catadoras/es
de materiais recicláveis coletam muito mais do que os caminhões cada
vez mais tecnológicos a serviço das empresas privadas, mesmo que estes
tenham contratos milionários de prestação de serviços, recebam apoio
da prefeitura e tenham toda a liberdade para imporem seu negócio.
Os índices de reciclagem oficiais não refletem verdadeiramente a
reciclagem no país, justamente porque governos e empresários desconsi-
deram as/os catadoras/es de materiais recicláveis, um exército de pessoas

110
que possuem identidade, um olhar que ressignifica os materiais e lutam
pelos seus direitos em relação ao trabalho com reconhecimento e valo-
rização. Esta vantagem de reciclagem pela categoria em relação às em-
presas privadas é a cultura social da reciclagem (CARDOSO, 2021a).

111
112
CULTURA SOCIAL DA RECICLAGEM
A coleta seletiva não é só a separação de materiais recicláveis, senão
o próprio cuidar de si, do outro e do planeta.

Ao longo deste capítulo, presente no trabalho de conclusão de cur-


so (TCC) em antropologia na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), buscarei responder o porquê as/os catadoras/es de
materiais recicláveis são as/os principais personagens da cadeia produ-
tiva da reciclagem, realizando educação ambiental, coleta, triagem dos
resíduos, preparação e comercialização dos recicláveis, sendo as/os pro-
tagonistas deste importante trabalho, mesmo diante da precariedade de
seu trabalho e da falta de parcerias com o poder público municipal e seu
órgão executor da gestão de resíduos, discorrendo sobre a cultura social
da reciclagem (CARDOSO. 2021a)
A cultura social da reciclagem é a conexão entre catadoras/es de
materiais recicláveis e geradoras/es de resíduos, mediados pelos mate-
riais recicláveis, conectados pela empatia e a solidariedade, gerando re-
ciclagem dos resíduos e seus imensos benefícios sociais, econômicos,
ambientais, culturais e políticos. Geradoras/es que separam seus resídu-
os e destinam para a reciclagem a partir da ação das/os catadoras/es de
materiais recicláveis, acrescem a separação em seu cotidiano, criticam
quem não faz e majoritariamente são pessoas dotadas de solidariedade,
empatia, cuidados com a/o outra/o, com seu meio ambiente e a natu-
reza como um todo.
Geradoras/es que não misturam seus resíduos (recicláveis e rejei-
tos) e entregam os recicláveis para as/os catadoras/es de materiais re-
cicláveis, conseguem enxergar as outras dimensões dos resíduos – não
apenas como rejeitos altamente poluentes quando no lugar errado, mas
como matéria prima, as quais ganham ressignificação quando passam a
ser recicladas, geradora de trabalho e renda nas mãos das/os catadoras/
es de materiais recicláveis. Aqui podemos ver a materialidade da solida-
riedade e da empatia. Solidário, porque o/a gerador/a sabe o bem que

113
está realizando com suas ações e empático, porque as/os geradoras/es
colocam-se na situação da/o outra/o.
Por ser uma ação de conexão entre geradoras/es e catadoras/es de
materiais recicláveis, estes acabam se conhecendo, principalmente discu-
tindo sobre a precariedade do trabalho na reciclagem, algo infelizmente
que não necessita de tanta atenção para perceber, apenas um olhar já é
suficiente. Desta forma, geradoras/es acabam por se tornar apoiadoras/
es da categoria, conhecendo mais de perto os dilemas, dificuldades e
agindo para com suas ações amenizar as grandes dificuldades.
Quem tem este cuidado de não misturar, separando e destinando
para a reciclagem, deseja um final feliz para seus resíduos, passando por
uma ação positiva, que beneficia pessoas que em tese, não podem lhe
beneficiar em troca, pois são sujeitas/os por vezes sem recursos nenhum,
sem estrutura, às vezes, nem casa para morar, uma cama para dormir.
São pessoas que não podem favorecer economicamente, devolvendo
algo em troca pelo recebimento dos resíduos recicláveis e desta forma,
acabam rompendo a lógica do sistema capitalista que difere os seres
humanos e os coloca em eterna competição.
Com a destinação dos resíduos para a reciclagem através das/os
catadoras/es de materiais recicláveis, as/os geradores percebem-se rea-
lizando uma ação importantíssima para a vida, conectada a proteção e
preservação ambiental, gerando trabalho e renda para famílias, as quais
são tratadas como rejeitos sociais pelo mercado formal de trabalho.
Fortalecendo a inclusão social destas famílias e quando organizadas em
associações e cooperativas, fortalece também uma outra organização de
trabalho, baseada na solidariedade, participação, distribuição de rique-
zas, a qual chamamos de economia solidária.
São ações concretas para além da reciclagem, as quais não deman-
dam muito tempo e investimento. Para além, as/os geradoras/es conse-
guem compreender melhor a política ambiental de gestão de resíduos,
e com o passar do tempo, passam a realizar cobranças pela qualidade e
ampliação de serviços como a coleta seletiva, junto aos governos e em
apoio às/aos catadoras de materiais recicláveis. Desta forma, vimos nas-
cer e fortalecer uma cultura social da reciclagem, pois pessoas passam
a acolher, praticar e compartilhar cotidianamente em suas vidas, por
vezes impondo para que outras pessoas façam o mesmo.
114
Estas/es geradoras/es conseguem ver, mesmo num ângulo diferente
das/os catadoras/es de materiais recicláveis, a beleza e os benefícios gera-
dos pelos resíduos, já logo ao não misturar e destinar adequadamente.
Esse ato é gerador de felicidade para ambos, geradora/r e catadora/r,
mostrando o lado da beleza e da importância da reciclagem, a qual está
longe de ser meramente o reaproveitamento dos resíduos. Os resíduos
ganham ressignificação de sentidos, deslocando-se do feio, sujo, desper-
diçado e poluidor para belo, limpo, gerador de trabalho, renda, vida e
proteção ambiental.
A/o catadora/r de materiais recicláveis têm consigo a importância
e o saber da separação adequada dos resíduos, os quais quando passam
pelas suas mãos, deslocam-se de resíduos e passam a ser considerados
como matéria prima, ou seja, os materiais recicláveis que alimentam a
indústria bilionária da reciclagem, mantida por pessoas que foram ex-
cluídas dos empregos formais das próprias indústrias, como um exército
rejeitado, longe de ser apenas de reserva.
As/os catadoras/es de materiais recicláveis precisam de resíduos
bem separados, para assim transformarem em matéria prima e con-
seguirem comercializar por melhores preços de mercado. A coleta e a
triagem15 são trabalhos extremamente pesados, exigem muita técnica e
esforço físico, quanto mais misturados os resíduos, maior será o peso, o
esforço físico, a quantidade de tempo para coletar e triar e ainda serão
menores os rendimentos, justamente porque há um trabalho de coletar
e triar os rejeitos e apenas os materiais recicláveis tem comercialização.
Quanto menos misturados os resíduos - recicláveis e rejeitos - na
origem, maior é o reaproveitamento, pois este depende principalmente
da qualidade dos materiais, tanto os recicláveis secos, quanto os reapro-
veitáveis orgânicos. O peso e volume diferem bastante, ficando os reci-
cláveis secos com maior volume e menor peso, enquanto os orgânicos
com menor volume e maior peso.
Não misturar os resíduos, ou separar secos e molhados, são a base
da coleta seletiva. Menos rejeitos é também menor quantidade de força
necessária no trabalho de coletar e triar, bem como há uma facilidade
maior de separação de resíduos apenas recicláveis, ganhando mais agi-
15 Triagem é a separação dos resíduos por tipo, cor, modelo, polímero, ondulação, sendo as principais separações os
papéis, plásticos, vidros e metais e cada um destes grupos, várias outras separações.

115
lidade e produção, aumentando os índices de reaproveitamento e reci-
clagem de resíduos, bem como a renda das/os catadoras/es de materiais
recicláveis envolvidos.
As/os catadoras/es de materiais recicláveis são as/os melhores edu-
cadoras/es ambientais, tornando-se agenciadoras/es de geradoras/es
para que possam compreender e separar mais e melhor seus resíduos ge-
rados, direto na fonte e, portanto, sem contaminação. O sucesso da re-
ciclagem depende da separação dos recicláveis - secos e molhados - dos
rejeitos, bem como da destinação de forma solidária para a categoria.
Quando isso não ocorre, as/os catadoras/es de materiais recicláveis tem
que empregar mais energia, trabalham mais e ganham menos. Logo, a
categoria se torna educadora ambiental nata, pois, além de preservar o
meio ambiente, também sobrevive da reciclagem.
A reciclagem acontece pelas mãos das/os catadoras/es de materiais
recicláveis, mesmo diante de grandes dificuldades e mazelas que gerado-
ras/es, governantes e empresários criam em função da reciclagem. Reci-
clar com a participação desta categoria é abrir mão do processo privado
e nem todos os governos progressistas para apoiar estes processos.
Para a categoria não resta outra alternativa do que seguir traba-
lhando e se organizando, rompendo as grossas e espessas barreiras da
exclusão social, atravessando as margens da sociedade e nos reinserindo
nos nichos de ligação social, fortalecendo a cultura social da reciclagem,
realizando na prática este serviço, usando seus corpos como força mo-
triz e, principalmente, vossa capacidade do saber, seus conhecimentos.
Cada catadora/r de materiais recicláveis, trabalhando nas ruas, lixões
ou cooperativas, significa valores a menos que uma empresa coletora ga-
nhará e que cada tonelada encaminhada à reciclagem é uma tonelada a
menos enterrada no aterro sanitário, o que a empresa que opera o aterro
sente como prejuízo. Lembremo-nos, mesmo que isso não pareça nada
sapiens, a destruição planetária da natureza gera acúmulo de riquezas para
alguns – o sistema coloca o lucro acima da vida, inclusive do próprio ca-
pitalista - e a miséria e poluição ambiental para todas/os.
As/os catadoras/es são conectadas aos materiais recicláveis: enquan-
to o poder público e os empresários os veem como problema e buscam
implantar a privatização como solução, a categoria busca ampliar e for-
talecer sua capacidade de reciclar, dialogando diretamente com as/os
116
geradoras/es, com a comunidade, buscando ampliar a separação de reci-
cláveis e rejeitos, melhorando índices de reaproveitamento e reciclagem,
proteção ambiental e sua própria renda.
A cultura social da reciclagem é rompida quando a coleta seletiva é
privatizada, a/o gari é mais parecido com um corredor maratonista, com
seu trabalho altamente físico, do que com uma/m educadora/r ambien-
tal, como são as/os catadoras/es de materiais recicláveis. O serviço ganha
velocidade em relação a coleta seletiva solidária, a qual passa a ganhar este
termo, quando este serviço é realizado por associações e cooperativas.
Os principais objetivos da coleta seletiva privatizada são os lucros
da empresa e a limpeza da cidade, algo completamente diferente da
coleta seletiva solidária, que visa os materiais recicláveis, o aumento de
renda das/os catadoras/es de materiais recicláveis e, por isso, a estratégia
é a educação ambiental, o diálogo com a comunidade para que apren-
dam e consigam olhar os resíduos de forma ressignificada.
As empresas que coletam não visam a reciclagem, mas sim o lucro
que ela gera, pois normalmente seus contratos são apenas para coletar e
não triar, assim, não se importam com os índices de rejeitos e a qualida-
de dos resíduos coletados. Quanto mais resíduos e maiores as distâncias
de deslocamento de resíduos, maiores serão os valores dos contratos,
quanto mais rápido ela executar - com tecnologias ou explorando garis,
maiores serão seus lucros.
De uma cultura social de reciclagem mediada pelos resíduos, pela
solidariedade e empatia, que conectam catadoras/es de materiais reci-
cláveis e geradoras, com as empresas privadas, passa a ser apenas a cul-
tura do capital, insensível e desumana. Vale mais o caminhão do que o
motorista e os garis juntos. Implanta-se a lógica de quanto mais resídu-
os e misturados, melhor, pois a empresa ganha geralmente por volume,
quilômetros rodados e peso dos resíduos.
Com a coleta seletiva privatizada, quem realiza esse serviço não é o
empresário, e sim as/os trabalhadoras/es desvalorizados, as/os garis, os
quais correm exaustivamente atrás do caminhão, que ficam fisicamente
exauridos. Cada vez mais rápido e com equipe menor, faça chuva ou
faça sol, domingos e feriados. O empresário adora se vangloriar que
cumpre o contrato, que trabalha dia e noite para manter o serviço, o
qual é mantido por uma das categorias de trabalhadoras/es formais mais
117
explorados - seja pelo salário extremamente baixo, seja pelo gasto de
energia para a realização deste serviço.
A lógica também vem acompanhada da desumanização das/os ca-
tadoras/es de materiais recicláveis, principalmente aquelas/es que traba-
lham nas ruas, justamente porque estas tiram os materiais das ruas de
forma gratuita, ligados pela cultura social da reciclagem com a comuni-
dade. A coleta seletiva privada rompe a cultura social da reciclagem. A
privatização, além de piorar o serviço e concentrar a riqueza apenas no
empresário, substitui uma categoria por outra, entretanto mantém na
mesma situação de trabalho precarizado, só que as/os garis trabalham
com uniforme da empresa, do patrão.
O Estado, que tem a força legal da lei, os recursos e a competência
para fazer a gestão dos resíduos, deveria prioritariamente contratar as
organizações de catadoras/es de materiais recicláveis para a realização
deste serviço (BRASIL, 2010). “Desta forma, a categoria seria incluída,
diminuindo o sofrimento e as mazelas do trabalho. Entretanto, encaste-
lado, longe das origens, afastado da sociedade como se fosse superior e
assim desumanizado, não o (Estado) faz”. (CARDOSO, 2021c).
No contexto aqui apresentado, as/os catadoras/es de materiais reci-
cláveis são as/os principais atores da reciclagem, garantido pela cultura
social da reciclagem, entretanto são ameaçados e perseguidos pelo Esta-
do e pelas empresas privadas, tendo suas vidas marcadas pela profunda
precarização do seu trabalho, desvalorização de sua cidadania, explora-
ção de seus corpos e da sua condição de ser humano, por muitas vezes
sem ter sequer a condição de renda mínima, um salário mínimo.
Os municípios deveriam, através do contrato de prestação de
serviços, cumprir as políticas públicas, ancoradas pelas leis nacionais,
principalmente as leis de saneamento básico (BRASIL, 2007) e política
de resíduos (BRASIL, 2010), reconhecendo a categoria como trabalha-
doras/es profissionais, deixando a lógica de que a categoria serve para
o trabalho gratuito e não para receber pagamentos. As condições, con-
forme apresentadas neste trabalho, evidenciam a importância da cate-
goria, bem como da cultura social da reciclagem, as quais são a base da
reciclagem no Brasil.

118
CONTEXTO HISTÓRICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS DE RECICLAGEM,
GERAÇÃO DE TRABALHO E RENDA EM PORTO ALEGRE
Enquanto detestamos política, eles amam, enquanto não sabemos
como governar, eles nos governam, enquanto estivermos só traba-
lhando com os braços, eles usam a cabeça para nos dominar. En-
tender política, o que é direita e esquerda é tão importante quanto
nosso respirar, pois isso é definidor de nossas vidas.

A Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA) na década de


1960, através do Departamento de Limpeza Pública (DLP), seguin-
do a tendência de outras capitais brasileiras, implantou o sistema de
coleta de resíduos das ruas. Na época, “a prática adotada nessa época
era a venda dos serviços de aterramento de pequenas áreas privadas,
elevação de cotas com disposição e compactação de resíduos sólidos e,
posteriormente, cobertura da área com solo (aterro)” (PMGIRS, 2013),
sendo destinado os resíduos em muitos lugares espalhados pela cidade,
durante mais de duas décadas.
A partir de 1975, o Departamento Municipal de Limpeza Urba-
na (DMLU) “recebia ou recolhia determinados valores para efetuar o
aterramento de determinadas áreas com resíduos sólidos” (PMGIRS,
2013). Assim sendo o aterramento de espaços públicos e privados era
uma forma de destinação de resíduos, a qual ainda acabava por gerar
receitas ao município.
Em 1970, a PMPA, seguindo a tendência de outras cidades brasi-
leiras, adota o sistema de destinação de resíduos para grandes lixões, os
quais se localizavam-se em lugares afastados do centro e bairros nobres
da cidade, locais com baixo valor imobiliário, áreas vistas como inúteis
para a capital, principalmente áreas de banhado. “Nesta perspectiva,
foram abertas três grandes frentes de trabalho: Ilha do Pavão em 1973,
Aterro Benópolis em 1977, e Aterro da Olaria Brasília em 1978” (PM-
GIRS, 2013), havendo ainda outros locais menores, de destinação de
resíduos.

119
No ano 1985, a PMPA começa a depositar os resíduos sólidos no
chamado Aterro da Zona Norte, situado nas proximidades da Avenida
Sertório, uma das mais importantes da capital gaúcha, entretanto este
local só tinha o nome de aterro, pois na verdade tratava-se de um lixão a
céu aberto, e sem fugir da regra, era situado num local de banhado, sem
controle nenhum da poluição causada pela deposição dos resíduos. Co-
munidades de catadoras/es formaram-se ao redor do lixão e inclusive mo-
rando em cima do lixão, em busca de sustento na catação dos recicláveis.
A partir de 1985, os RSU do município foram dispostos sem
controle ou tratamento no Lixão da Zona Norte, provocando
impactos ambientais no solo, no ar e nos aquíferos da região,
além de intensa degradação humana, oriunda das relações entre
resíduos, máquinas e indivíduos que passaram a morar no local
e sobreviver a partir da triagem de resíduos. Essa situação, aliada
à ausência de gerenciamento e controle operacional que solucio-
nasse o problema da destinação final dos RSU, e à questão social,
justificou a intervenção da Prefeitura Municipal de Porto Alegre
em junho de 1990, através do DMLU, na recuperação da área
degradada pelo Lixão da Zona Norte. (PMGIRS, 2013).

O problema da destinação inadequada dos resíduos em lixões, foi


resolvido apenas na década de 1990, quando a PMPA obtém licença
para a instalação do primeiro aterro sanitário no Estado do Rio Gran-
de do Sul, o qual “durante a sua vida útil, o Aterro Sanitário da
Extrema recebeu o total de 824.124,419 toneladas de resíduos
sólidos urbanos” (PMGIRS, 2013), sendo encerrado no ano de 1998
quando a PMPA através da formação de um consórcio público com as
prefeituras de Gravataí, Cachoeirinha e Esteio, transformando o aterro
controlado de Gravataí, situado no Bairro Santa Tecla, em aterro sanitá-
rio. A PMPA, encaminhou ao longo de seis anos, de janeiro de 1999 até
setembro de 2005, 1.147.624,662 toneladas de resíduos para o Aterro
da Santa Tecla (PMGIRS, 2013).

O Aterro Sanitário da Extrema foi o primeiro aterro sa-


nitário a obter licenciamento ambiental seguindo todos os
procedimentos previstos na legislação ambiental, os quais
incluíram Licença Prévia (LP 0357/95), Licença de Instala-

120
ção - LI 0637/95 -, emitida em 16 de novembro de 1995,
complementada pela LI 0212/97 emitida em 05 de maio
de 1997 e Licença de Operação (LO 1869/97), emitida
em 26 de maio de 1997, através da qual a FEPAM autori-
zou o início da disposição de resíduos sólidos domiciliares
na área do empreendimento. Em 18 de janeiro de 2001 foi
expedida pela FEPAM a LO 0167/2001-DL, última licença do
Aterro Sanitário da Extrema (PMGIRS, 2013).

A catação de rua em Porto Alegre se dava num trabalho exercido


por catadoras/es individuais ou núcleos familiares, os quais realizavam a
triagem dos materiais recicláveis nas praças e o transporte com veículos
de tração humana (VTH) – carrinhos – e veículos de tração animal
(VTA) – carroças, para as comunidades onde viviam, para suas casas,
localizadas principalmente nas proximidades da região central de Porto
Alegre, a exemplo da extinta Vila Cai Cai, onde eu e minha família
residíamos e trabalhávamos. Esta vila situava-se nas proximidades do
Estádio Beira Rio, estádio de futebol do Sport Club Internacional.
Nas ruas de Porto Alegre, as/os catadoras/es realizavam a coleta,
as/os geradoras/es separavam os materiais recicláveis dos resíduos orgâ-
nicos, destinando solidariamente os recicláveis para as/os catadoras/es,
antes mesmo de ter a coleta seletiva municipal, que somente iniciou no
ano de 1990.
Catadoras/es estabeleciam acordos e executavam este serviço me-
diante acordo de reciprocidade – de boca a boca – com geradoras/es,
onde estas/es se comprometiam em separar e destinar os materiais reci-
cláveis e as/os catadoras/es em realizar a coleta, separação e destinação
dos recicláveis para a reciclagem.
Estes serviços sucediam em horários pré-definidos, as quais po-
deriam ocorrer em algumas vezes e em variados dias, dependendo dos
acordos estabelecidos, os quais eram baseados principalmente na urgên-
cia da/o geradora/r, como por exemplo: Uma loja com pouco espaço
para armazenamento de resíduos sólidos, havendo então a necessidade
de coleta em vários momentos do dia, bem como a quantidade de resí-
duos gerados, numa conexão a qual chamo de cultura social da recicla-
gem (CARDOSO, 2021a).

121
A cultura social da reciclagem é a ligação entre as/os geradoras/es e
catadoras/es de materiais recicláveis, mediados pelos resíduos, os quais
geram primeiramente solidariedade e empatia. Esta ligação é tão forte,
tornando-se a principal responsável pela reciclagem ocorrer pelas mãos
das/os catadoras/es de materiais recicláveis no Brasil, mesmo diante
da desvalorização, invisibilidade, precariedade em que a categoria está
imersa, não importando quais os valores, tecnologias empregadas em
sistemas de coleta seletiva privados.
A cultura social da reciclagem é o elo invisível de solidariedade
e empatia, ligando geradoras/es à categoria, possibilitando que te-
nham acesso aos resíduos e principalmente, tornando as/os catadoras/
es de materiais recicláveis nos principais agentes da reciclagem. Assim
se explica o índice de 97,4%, de reciclagem de latinhas de alumínio
(2020…, 2021) e 55% das garrafas plásticas de poliestireno tereftalato,
conhecidas como garrafas PET (PANDEMIA…, 2020).
Através da cultura social da reciclagem, geradoras/es recebem a
graça das/os catadoras/es, a qual lhe gera satisfação e alegria, além de
serem sabedores que seus resíduos serão reciclados, gerando trabalho e
renda para catadoras/es e suas famílias, alimentando toda a cadeia pro-
dutiva da reciclagem.
A/o catadora/r por outro lado, tem olhar diferente para estes resídu-
os - ressignificado - os deslocando destes os problemas presentes no olhar
do gerador, de uma coisa ruim, para uma coisa boa, geradora de sua renda
e seu trabalho, gerando a proteção da natureza, sendo essa, uma ligação
direta – ser humano a ser humano, um trabalho completamente diferente
do que vem a ser a coleta seletiva mecanizada realizada pela prefeitura nos
dias atuais, a qual se dá de forma mecânica, sem ligação entre gerador de
resíduos e o gari coletor, sendo meramente num caminhão passando em
dias específicos em frente às casas dos geradores com dois garis correndo
jogando tudo que encontram na rua para dentro do caminhão.
A cidade de Porto Alegre vivia ainda num forte movimento de
êxodo rural com o qual a densidade populacional aumentava e muito
rapidamente nas cidades ao mesmo tempo que diminuía no campo.
Milhares de famílias vindas do interior buscando uma vida melhor na
cidade grande, na expectativa de melhores empregos, renda e moradia.

122
Entretanto, sem estas conquistas, muitas famílias passaram a se dedi-
car, profissionalmente, com a catação de materiais recicláveis como forma
de geração de trabalho e renda e a ocupar terrenos baldios nas proximi-
dades do centro de Porto Alegre para moradia, em parte, fazendo nascer
algumas das favelas, comunidades e vilas de malocas (OUTTES, 2019).
No contexto político eleitoral, no final da década de 1980 foi elei-
to como prefeito municipal o sindicalista e trabalhador bancário Olívio
Dutra, o qual “encontrou os dois principais lixões de Porto Alegre com
a capacidade praticamente esgotada e a população neles inserida viven-
do em condições subumanas” (SILVA; NASCIMENTO, 2017, p. 28).
Olívio fez uma gestão marcada por melhorias que colocaram a cidade
no mapa mundial da participação popular, sobretudo, através do pro-
grama que ficou conhecido como Orçamento Participativo.
Até o ano de 1990, a cidade de Porto Alegre depositava seus rejei-
tos no antigo lixão da Zona Norte (atualmente desativado, situado atrás
do que hoje é o Hipermercado Big Sertório), onde mais de trezentas
famílias sobreviviam da catação, triagem e reciclagem dos materiais re-
cicláveis. Locais como este são insalubres, com a presença de roedores e
insetos vetores de doenças, além de ser um local inadequado de deposi-
ção de resíduos, sem nenhum tratamento e cuidado, sendo depositado
direto no solo a céu aberto, tornando-se um dos grandes emissores de
CO2 e CH4 na atmosfera e contaminação dos lençóis freáticos de água
pela lixiviação do chorume.
Quando são chamados de aterros controlados, o que difere estes
espaços em relação de um lixão é que seus rejeitos são compactados por
uma máquina e geralmente cobertos com terra, ainda que meramen-
te no discurso. Lixões e aterros controlados já eram proibidos desde
a Política Nacional de Meio Ambiente, Lei nº 6.938/1981 (BRASIL,
1981), que ratificada pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei
nº 12.305/2010 (BRASIL, 2010), a qual previa o encerramento dos
mesmos até o ano de 2014. Atualmente foi ampliado o prazo para dia
31 de junho de 2021.
O governo Olívio Dutra foi marcado positivamente pela implan-
tação da coleta seletiva de Porto Alegre, datada no ano de 1990, inician-
do pelo bairro Bom Fim, solicitado pelos próprios moradores e amplia-

123
do para o bairro Cidade Baixa e paulatinamente ampliado para todos
os bairros de Porto Alegre. A coleta seletiva era executada de forma
estatizada, ou seja, 100% com equipamentos e funcionários públicos.
Depois de coletados, os materiais segregados das casas e dos grandes
geradores, eram levados para as unidades de triagem (UTs), as quais os
separavam e comercializavam, gerando trabalho para as catadoras(es) de
materiais recicláveis.
Até o ano de 2002, não havia contrato de prestação de serviços
entre prefeitura e as associações e cooperativas de catadoras(es), entre-
tanto o município pagava todo o custeio operacional das unidades de
triagem, principalmente água, luz, conserto de máquinas, equipamen-
tos, melhorias tecnológicas, além de reformas nas instalações prediais.
Conforme Rosado (2002), a coleta seletiva gerava cerca de 700 postos
de trabalho, distribuídos em 14 cooperativas e associações de catadoras
e catadores os quais ganhavam uma renda de R$ 400,00 a R$ 600,00
reais mensais (cerca de 2 a 3 salários mínimos, considerando que o salá-
rio mínimo era R$ 200,00 reais em 2002).
Estas informações do contexto histórico, fazem referência há um
período onde a situação econômica das cidades não estavam tão bem,
num contexto ainda de inexistência de coleta seletiva nem unidades de
triagem construídas e equipadas com dinheiro público para serem en-
tregues às(aos) catadoras(es), uma pauta que foi ampliada para o Brasil,
servindo como referência, dentro da novidade que era, há 31 anos atrás,
a coleta seletiva e a inclusão social das(os) catadoras(es).
Os dados comparativos são do ano de 2002, sendo então 12 anos
da implantação da coleta seletiva, a qual entendia-se que já fazia parte
da cultura da cidade - separação e destinação dos recicláveis para a cole-
ta seletiva e 19 anos dos tempos atuais - 31 anos depois da coleta seleti-
va, o que torna os problemas evidenciados como urgência em resolver.
Atualmente, a coleta seletiva mecanizada transporta os resíduos
coletados para uma das 19 unidades de triagem, as quais são geridas
por associações ou cooperativas de catadoras/es de materiais recicláveis
contratadas ou conveniadas pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Esta forma mecânica de coleta, sem conexão entre gerador e gari
coletor, sendo tratada meramente como mais uma coleta de resíduos,

124
o qual infelizmente não é mediada pela empatia e solidariedade, gera
descomprometimento por parte dos geradores, os quais pouco separam
os recicláveis dos rejeitos, os quais atualmente chegam a 30%, 40% do
total da coleta seletiva municipal, configurando uma falta participação
dos geradores na gestão dos resíduos. Falarei deste ponto mais adiante,
fixando-me aqui no contexto mais histórico, na linha do tempo da po-
lítica de gerenciamento de resíduos.
Conforme a comparação entre os anos 2002 e 2021, a coleta sele-
tiva, geração de trabalho e renda para as/os catadoras/es está em deca-
dência, agravadas com o advento do contrato de prestação de serviços,
firmado entre as unidades de triagem e o Departamento de Limpeza
Urbana, o qual deveria de trazer benefícios, reconhecimento e valoriza-
ção com o pagamento pelos serviços realizados pela categoria.
Entretanto, o contrato prevê pagamentos parciais de alguns custos
operacionais das UTs, sendo um dos causadores destes dados negativos
da coleta seletiva, configurando uma situação de flexibilização, mudan-
do as relações de trabalho, precarizando ainda mais as vidas desta ca-
tegoria, que atualmente 52,6% recebem menos de um salário mínimo
mensal. Tudo isso em meio à crise sanitária causada pela pandemia de
covid-19.

125
126
PORTO ALEGRE É TRISTE: RECICLA OU NÃO RECICLA?
Precisamos de emoções, elas compõem e fortalecem nossa felicidade
e é ela que lhes desejo. Busque a felicidade, não nas coisas, no di-
nheiro, mas na vida, naquilo que realmente te deixa feliz, aprovei-
te a vida, contemplar a natureza, visite parques, a mata, converse
com os animais, os proteja por favor, se programe e viaje, lembre-se
que cada viagem é um livro novo que você escreve com carinho
para você mesma/o, viva os encantos da vida, namore muito, beije e
faça amor. Visite familiares, tente não ignorar as/os chatas/os, elas/
es também merecem ser felizes, às vezes uma pessoa se torna chata
só porque quer te agradar. Reúna amigas/os, faça novas amizades,
pratique solidariedade, empatia e amor. Seja ubuntu.

Neste capítulo, que faz parte do trabalho de curso (TCC) em Ci-


ências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
discutirei sobre a cidade de Porto Alegre e suas relações com a resíduos
recicláveis, trazendo aspectos importantes da construção e aplicação da
política municipal de reciclagem e a participação das/os catadoras/es de
materiais recicláveis.
A partir de questionário semiestruturado, apresentado no âmbito
da Rede Covid-19 Humanidades MCTI, com a participação da totali-
dade das organizações de catadoras/es de materiais recicláveis de Porto
Alegre, apontou dados alarmantes em relação ao gerenciamento de resí-
duos, coleta seletiva, geração de trabalho e renda.
Os dados informam um processo de deterioramento e precarização
do trabalho da categoria, os quais atualmente exercem uma nova moda-
lidade de parceria com a prefeitura municipal, mediados por contratos
de prestação de serviços ou termos de parceria – os chamados convênios
- para a realização da triagem dos resíduos sólidos recicláveis advindos
da coleta seletiva municipal.
A educação ambiental, a coleta seletiva e as/os catadoras/es de ma-
teriais recicláveis são o coração pulsante e vigoroso da reciclagem, mas
somente quando estão operando juntos, logo separados, a reciclagem

127
entra em processo de asfixia, não alcançando índices planejados ou exigi-
dos por lei, nem mesmo sequer aqueles desejáveis para abastecer as uni-
dades de triagem, como tem ocorrido nos últimos anos em Porto Alegre.
Atualmente, mesmo diante de grandes gastos em dinheiro e tec-
nologia, os investimentos são nas empresas privadas de coleta seleti-
va, realizando um trabalho mecanizado ou ainda, conteinerizado, sem
a participação das/os catadoras/es e sem o desenvolvimento de ações
em educação ambiental, não gerando nenhum compromisso com os
geradores de resíduos, os quais tornaram os contêineres mini-lixões16,
descartando os resíduos quando querem, na hora que quiserem e da
forma que desejam, sem nenhuma educação ambiental, reclamação da
empresa coletora ou fiscalização pela prefeitura, tornando este serviço
um desastre em relação aos dados comparativos com o ano de 2002.
Conforme o Portal de Transparência de Porto Alegre, o custo
anual da coleta seletiva é de R$ 10.790.536,53, configurando um valor
mensal de R$ 899.211,37 mensais, já a triagem dos resíduos o valor in-
vestido é R$ 700 mil reais mensais para as 19 organizações contratadas,
sendo uma média de R$ 5.200,00 reais mensais para cada organização
(PMPA, 2021a), conforme as/es catadoras/es, este valor apenas paga
parte da manutenção do prédio, não havendo sobras para investimento
em novas tecnologias, ampliação de estrutura, educação ambiental ou
programas de coleta seletiva solidária17.
Atualmente, a “Prefeitura de Porto Alegre fornece toda a infra-
estrutura para as UTs conveniadas e garante o custeio de manutenção
com cerca de R$ R$ 5.200,00 por mês” (PMPA, 2021b), valor conside-
rado insuficiente pelo Fórum Municipal dos Catadores de Porto Alegre,
um dos motivos da baixa geração de postos de trabalho, a qual acarreta
diretamente nos índices de reciclagem da cidade. Os números diferem
muito em comparação com os dados de 2002 para 2021. Anteriormen-
te eram 14 e atualmente são 19 UTs, entretanto, a geração de postos de
trabalho na reciclagem na capital do Rio Grande do Sul caiu 34%, de
700 para 492 catadoras(es) trabalhando.
16 https://sul21.com.br/opiniao/2018/11/os-mini-lixoes-por-alex-cardoso/
17 A coleta seletiva solidária é a modalidade de coleta exercida pelas catadoras e catadores, através de seus veículos,
podendo ou não estarem contratados pela prefeitura. A diferença entre a coleta seletiva e a coleta seletiva solidária
é que esta última é realizada pela própria categoria, a qual enxerga os resíduos como um bem, gerador de renda, e
não visa apenas os recursos pela prestação de serviços.

128
Em relação a renda, a situação encontrou-se ainda mais complica-
da, já que em 2002 a renda era superior a dois salários mínimos men-
sais, atualmente caiu cerca de 200%, chegando a menos de um salário
para 52,6%, um salário para 36,8% das(os) catadoras(es) sendo que
apenas 10,5% destas(es) trabalhadores recebendo acima de um salário
mínimo mensal, problema acentuado, considerando a pandemia.
A reciclagem ocorre pelas mãos das(os) catadoras(es), logo, menor
renda, significa menos postos de trabalho, os quais incidem diretamen-
te na baixa dos índices de reciclagem, gerando um prejuízo que ultra-
passam a vida das(os) catadoras(es), ampliando um prejuízo ambiental,
logo, externando para toda a sociedade.
Passados 31 anos desde a circulação do primeiro caminhão de co-
leta seletiva no Bairro Bom Fim, em Porto Alegre, num momento ao
qual tudo era novidade e carecia de ampla informação, a implantação
foi estruturada e garantida pela ampla e constante ação de educação am-
biental. Não existia coleta seletiva em lugar nenhum no Brasil, havendo
muitas dúvidas a serem sanadas, tanto pela prefeitura: como fazer? e,
quais técnicas usar? – bem como por parte dos geradores: O que separar
do quê? e, como disponibilizar para esta coleta diferenciada, seletiva?
Atualmente, depois de 31 anos de coleta seletiva, podemos consi-
derar que este serviço não é mais nenhuma novidade, já que as crianças
de outrora são adultos atualmente. Podemos ainda considerar a vida on-
-line, onde informações estão disponíveis a um clic das/dos cidadãs/os
que têm acesso à internet ou ainda, agora em meio a pandemia, quando
o celular, o computador e a internet ditam o tempo e a vida.
Considerando ainda o valor altíssimo de investimento na presta-
ção de serviços de coleta seletiva e a discrepância nos valores dos contra-
tos com as UTs, percebemos que a reciclagem, a geração de trabalho e
renda não foi prioridade para os últimos governos municipais.
As UTs estão mais distribuídas na cidade, com um aumento de
10% em relação a 2002, mas ambas estão gerando menos postos de tra-
balho e ainda a falta de materiais recicláveis, o que contradiz a geração
de resíduos que ampliou em 40% nestes últimos 30 anos, passando de
1 para 1,4 quilos de resíduos por habitante/dia.

129
O contrato de prestação de serviços de triagem de resíduos entre
as unidades de triagem e a prefeitura, não está configurando como um
avanço no reconhecimento e valorização do trabalho da categoria. Esta
que é responsável por 90% do trabalho envolvido na cadeia produtiva
da reciclagem. O contrato de prestação de serviços ao contrário, está
tornando-se meramente um mecanismo de flexibilização e precarização
do trabalho.
Este contrato estabelece cobranças em contrapartida que a catego-
ria realize as atividades previstas, tornando-se uma forma perversa de
exploração de excluídos, visto que estes têm que trabalhar, pelo menos
mais da metade deles, mesmo em condições insalubres, ampliada ainda
com a o risco e a exposição ao vírus da covid-19, o qual pode estar pre-
sente nos resíduos encaminhados à coleta seletiva.
Os dados sobre o índice de reciclagem, conforme dados de
2019, fornecidos pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana
(DMLU), órgão municipal responsável pelo gerenciamento de resíduos
na cidade, informam que atualmente a cidade gera 1.750 toneladas/dia
de resíduos e apenas 56 toneladas de resíduos considerados recicláveis
são coletadas, e na média, 40% dessa quantidade são rejeitos, cerca de
22,4 toneladas. Os rejeitos são materiais sem reciclabilidade ou ainda
materiais orgânicos.
Desta forma, das 1.750 toneladas/dia geradas, apenas 33,4 tonela-
das/dia são recicladas, com cerca de 40% de rejeitos, o que corresponde
a 1,92% reciclados do total geral de resíduos gerados na cidade, um
dado muito longe de 2002, onde se gerava 1.200 toneladas/dia e se co-
letava pela coleta seletiva, cerca de 80 toneladas/dia, com apenas 20%
de rejeito. Importante destacar que no Brasil, o potencial de resíduos
passíveis de reciclagem é de 91,4%, sendo 57,4% compostáveis e 34%
resíduos recicláveis, sobrando apenas 8,6% que deveriam ser destinados
ao aterro sanitário (IPEA, 2017).
O Fórum Municipal de Catadores de Porto Alegre (2021) aponta
que “o contrato (com DMLU) é bem abaixo do necessário, pois ele não
contempla o pagamento pelos nossos serviços, entretanto só foi viabili-
zado somente depois de muita luta”, referindo-se à organização e várias
atividades das(os) catadoras(es), as quais envolviam ações na Câmara

130
de Vereadores de Porto Alegre, prefeitura, Ministério Público Estadu-
al (MP), Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensoria Pública
(DP), além de diversas outras entidades sociais e ambientais da capital.
O contrato somente foi viabilizado com a intervenção e mediação do
dessas e de outras instituições.
Anteriormente ao contrato, a forma de parceria entre o DMLU e
as UTs era através de convênio, o qual durou por muitos anos e quan-
do finalmente migrou para contrato, o valor não se diferenciou muito.
“Tínhamos a expectativa de finalmente haver reconhecimento e valo-
rização pelo nosso importante trabalho que prestamos à nossa cidade”
(MEDEIROS, 2021).
A situação sofreu agravamento com a pandemia de covid-19, sen-
tida e refletida profundamente nas relações de trabalho e na renda da
categoria, havendo diminuição de resíduos, renda, postos de trabalho
em todas as unidades de triagem. Os medos das/os catadoras/es se so-
mavam: o medo de se contaminarem com o vírus Sars-COV 2 através
dos resíduos, pois boa parte dos resíduos são úmidos, o que pode am-
pliar o poder de contaminação e também devido ao trabalho de triagem
ocorrer dentro de galpões fechados, com proximidade entre as equipes
de triagem, limpeza, administrativa, além do medo de, em caso de con-
taminação, transmitirem o vírus para suas famílias.
Principalmente por se tratarem de pessoas em grande vulnera-
bilidade, 52% recebem menos de um salário mensal, suas habitações
são pequenas e com quantidades expressivas de pessoas por famílias, as
quais majoritariamente compartilham o mesmo banheiro e convivem
dentro dos mesmos cômodos da residência.
As/os catadoras/es da Cooperativa dos Catadores de Materiais Re-
cicláveis da Cavalhada (Ascat), uma das 19 unidades de triagem da ci-
dade, optaram por trabalhar alternadamente, em regime de quarentena
de pessoas e de resíduos, sendo que numa semana trabalham na triagem
e na outra semana, apenas recebem os resíduos sólidos da coleta seletiva,
os quais ficam em quarentena, para na semana seguinte serem triados e
encaminhados para a reciclagem.
Outros grupos trabalham apenas um turno e no outro recebem os
materiais. No início da pandemia, todos os grupos tiveram catadoras/es

131
afastadas/os por estes fazerem parte do grupo de risco. Entretanto, com
o passar do tempo e pela falta de assistência da prefeitura, esses e essas
tiveram que retornar aos seus postos de trabalho, entregues então aos
novos cuidados, como uso de máscaras, distanciamento social e o uso
constante de álcool gel, além “do uso da sorte”, fala que rotineiramente
se escuta nas unidades de triagem quando precisam responder em rela-
ção a contaminação pelo vírus.
Esta situação ampliou a vulnerabilidade e a precariedade das vi-
das da categoria, levando os grupos – numa ação de sobrevivência - a
realizarem campanhas solidárias, as quais algumas ainda se encontram
ativas, onde buscam cestas básicas e recursos em dinheiro, para a com-
pra de alimentos e complemento da renda, sendo uma alternativa viá-
vel – apelando para a solidariedade da sociedade – para garantirem sua
sobrevivência.
Buscando compreender mais a situação, por mim também viven-
ciada, apliquei um questionário o qual teve a participação de todos os
grupos, onde busquei respostas sobre as principais dificuldades enfren-
tadas. Uma das perguntas da pesquisa foi: O Grupo necessita de apoio
financeiro? com três opções de respostas:
1 - Apoio financeiro na renda (dinheiro)
2 - Cestas básicas de alimentos
3 - Não necessita
A situação se mostrou muito mais terrível daquilo que eu visualiza-
va, as respostas traduzem o momento de extrema dificuldade vivenciada
e enfrentada pela categoria, com a totalidade respondendo que neces-
sita de apoio, sendo que 63,2% responderam solicitando alimentos e
36,8% solicitando dinheiro.
Em resposta livre sobre o que poderia a prefeitura realizar para
trazer melhorias, a categoria levou muito em consideração o momento
de pandemia em que as vidas estão em risco eminente, principalmente
trabalhadoras/es das UTs, os quais recebem os materiais recicláveis que
são considerados como objetos compartilhados, que podem infectar no
momento de manuseio e separação dos resíduos para a reciclagem.
As respostas imperavam sobre a importância da vacina, com prio-
rização para a categoria, pagamento pelos serviços prestados, a mudança

132
de modalidade da coleta seletiva privatizada para a coleta seletiva soli-
dária - neste caso, a coleta seria realizada pelas próprias organizações
de catadoras/es de materiais recicláveis. A coordenação do fórum da
categoria se mobilizou, após um diálogo com o DMLU sobre a priori-
zação de vacinação, entretanto a prefeitura de Porto Alegre não atendeu
a demanda.

133
134
RECICLANDO HUMANIDADES: A EXPERIÊNCIA DA COOPERATIVA ASCAT
Há uma infinidade de aprendizados dentro de uma cooperativa
de catadoras/es, um outro mundo se (re)desenha a cada dia, visitar
uma cooperativa é uma aula para a vida.

A Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da Cavalha-


da (Ascat) é uma organização social e econômica de reciclagem de re-
síduos sólidos recicláveis, organizada e gerida de forma autogestionária
por catadoras/es de materiais recicláveis, as/os são de origem do traba-
lho da catação de rua. Situada no bairro Cavalhada, zona Sul de Porto
Alegre, fundada sobre a base de princípios solidários do cooperativismo
e do associativismo no ano de 1994.
A cooperativa trabalha com coleta seletiva solidária (CSS)18, uti-
lizando caminhão uma moto elétrica, adaptada para a realização deste
serviço de CSS. A Cooperativa Ascat realiza a triagem e destinação de
aproximadamente 70 toneladas de materiais recicláveis por mês, geran-
do trabalho e renda para 25 famílias catadoras, além de ser uma das
referências de organização coletiva social no Loteamento Cavalhada
(MENEZES, 2021).
A cooperativa ocupa um imóvel público, havendo dois galpões de
diferentes tamanhos para a realização da triagem e armazenamento de
materiais recicláveis, o maior com 2 mil metros quadrados e o menor
com 600 metros quadrados. O uso deste espaço público iniciou no ano
de 1996, na fundação da Associação dos Catadores da Cavalhada, or-
ganização base que antecedeu a cooperativa, fundada no ano de 2008.
A cedência deste espaço é pactuada através de contrato de prestação
de serviços com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA), fir-
mado com o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU),
onde a cooperativa é obrigada pelo contrato a cumprir rigorosamente
todos os preceitos burocráticos do Estado, igualmente as outras empre-
18 CSS é a coleta realizada pelas/os próprias/os catadoras/es de materiais recicláveis, sem o intermédio das empresas
privadas. Este serviço garante qualidade dos resíduos com baixo índice de rejeitos, pois no processo de coleta,
catadoras/es e geradoras/es realizam educação ambiental - o que é reciclável ou não - mediados pela solidariedade.

135
sas de limpeza, as quais recebem contratos milionários e contam com
equipes técnicas, estrutura e pagamento pelos serviços prestados, entre-
tanto recebe apenas R$ 5.158,94 mensais, recursos que mal pagam o
custeio operacional da triagem.

Triagem dos resíduos, no centro da imagem, a catadora Solange Garcia, 20 anos coo-
perada - Cooperativa ASCAT. Porto Alegre. 2016 (Arquivo pessoal)

Desta forma, todo o trabalho técnico, incluindo a gestão e o admi-


nistrativo, é realizado e pago pela própria cooperativa, retirando os in-
vestimentos nestas equipes, da comercialização dos materiais recicláveis,
o que se configura, conforme a coordenadora geral da Ascat, Pamela
Simone Menezes (2021), um processo de “pagar para trabalhar”. Me-
nezes indaga algumas inquietações e dúvidas sobre o porquê recebe este
tratamento tão diferenciado em relação às empresas privadas, sendo que
o rigor, a prestação de contas e de serviços é o mesmo, entretanto existe
esta gritante diferença de valorização, como um abismo econômico.
Pamela Menezes indaga: “Eles recebem milhões, tem altos salários,
crescem investindo em novos equipamentos e tecnologias, se estrutu-
ram para manterem-se neste mercado, enquanto nós temos que nos
virar para sobreviver dentro deste sistema altamente injusto” e conclui:
“quem recicla não ganha nada, e quem transporta e enterra os resíduos,
136
fica com todo o dinheiro e o reconhecimento” afirmando que tem uma
luta pela valorização da categoria.
Basta poucos minutos de conversa com as/os catadoras/es de ma-
teriais recicláveis para perceber a perversidade que desponta na gestão
pública de resíduos em relação à categoria. Diferente das empresas
privadas, que crescem e se mantém no mercado, especializando-se em
prestação de serviços de coleta, transporte e aterramento de resíduos - a
parte dos serviços que tem dinheiro e altos investimentos - a triagem
é deixada para que as/os catadoras/es fazerem de forma cada vez mais
precarizada. Para estas/es, não resta muitas vezes outra alternativa para
sobreviverem, já que foram descartadas pelo mercado formal de empre-
gos, recorrendo à reciclagem como forma de sobrevivência.
O governo, olhando para este cenário, sabendo que as/os catado-
ras/es não podem nem sequer tomarem a decisão de parar a produção,
de realizarem greves em busca de seus direitos, ou simplesmente se ne-
garem a trabalhar, pois a falta de um dia de trabalho é invariavelmente
a falta de um dia de alimentos, o que torna a situação ainda mais em-
blemática. Aqui vale muito bem a expressão popular, a qual não tenho
fonte, “trabalhar de dia para comer de noite”. Ou seja, mesmo com alto
nível de exploração, com altas jornadas de trabalho, obrigações contra-
tuais, recebendo menos de um salário mínimo, não podem se dar ao
luxo de parar de trabalhar no “lixo”.
Mesmo com relações econômicas tão complexas, chegando ao fi-
nal de cada mês tendo que escolher qual conta pagar ou ainda, ou pior,
se paga contas ou compra alimentos, as relações sociais no grupo são al-
tamente solidárias, desde a organização do trabalho, a produção de for-
ma coletiva, bem como a administração e decisões de como continuar a
resistência, a reciclagem e a defesa da natureza. A gestão, distribuição de
tarefas, decisões e, principalmente, os recursos obtidos através desta or-
ganização produtiva são distribuídos de forma igualitária a todas/os as/
os cooperadas/os, num modelo de organização que prioriza, valoriza e
reconhece as pessoas, lhes dotando de poder para que possam participar
da vida política, econômica e social da organização, logo, as capacidades
políticas das/os cooperados, bem como a solidariedade e a empatia, são
tão ampliadas e centrais na cooperativa.

137
Não há ser humano que não transforme seus ideais depois de al-
gumas horas na cooperativa. O simples fato de entrar dentro do galpão
e encontrar-se de frente com algumas toneladas de resíduos, causa um
efeito imediato nos visitantes, os quais repensam sua produção de re-
síduos, de onde vem e para onde vão. Imaginem então para quem for
tornar-se cooperada/o da cooperativa? Claro que requer constante for-
mação e informação, um processo contínuo de discussões que fomen-
tem a democracia direta - de catadora/r para catadora/r - uma rede de
relações reunidas através da solidariedade e do trabalho.
Claro que há crises e desacordos entre as/os cooperadas/os, às vezes
desentendimentos difíceis de serem entendidos e resolvidos, acordos
que são quebrados, lados que se opõem. Afinal são relações humanas e
estas podem mudar, acordar e desacordar, logo, aqui reside a potência
da solidariedade e do trabalho cooperado, na prática, uma/m precisa
da/o outra/o e por isso, precisam minimamente se entender, resolverem
seus problemas e continuar a trabalhar, pois apenas pela produção de
seus braços, vem o sustento de suas famílias.
Cada cooperada/o transforma seus ideais sobre vida e natureza, sobre
trabalho, cooperação e organização social em menos de um mês conviven-
do os dilemas e a vida da cooperativa, sendo uma grande sala de aula que
produz e reproduz conhecimentos de grande importância e qualidade.
Em torno do convívio coletivo, mediado pela solidariedade e apoio
mútuo, há os processos de distribuição de tarefas, bem como se formam
pessoas para agirem em nossa sociedade, as quais vivem na prática um pro-
cesso produtivo sem a figura do patrão, o que lhe obriga a aprender sobre
o sistema como um todo. A distribuição em partes iguais dos frutos con-
quistados pela cooperativa, sem nenhuma figura que centraliza e concentra
as riquezas, e que distribui apenas o trabalho, é um grande aprendizado.
Conviver numa cooperativa solidária é viver práticas de reconstru-
ção do ser humano, vivenciando uma outra forma de organização social
e econômica, colocando em xeque estas organizações fora da coopera-
tiva, tornando-se materialmente um agente de contestação sobre este
modelo de sociedade baseada na concentração de riquezas, destruição
da natureza e compartilhamento de misérias e poluição, no qual com
passar de anos, segue caminhando a passos largos para a sua própria
destruição.
138
Formação e capacitação técnica de Catadoras/es - Cooperativa ASCAT 2022 (arquivo
pessoal)

O lócus do desenvolvimento social, a cooperativa é um grande


exemplo, entretanto se a ótica avaliasse apenas sua estrutura e recursos,
esta então, não teria nem mesmo sido inaugurada e a catação de mate-
riais recicláveis não mais existiria, justamente porque este trabalho não
se dá sobre as normas econômicas, mas sim sociais, é de pessoas que
falamos quando falamos de reciclagem.
O universo de avaliações sobre desenvolvimento econômico, nem
sempre se considera o bem estar das/os trabalhadoras/es, estes são con-
siderados apenas como força de trabalho, medidos a partir de sua pro-
dução, forma de resolver conflitos, técnicas e salários, os quais são vistos
como custo, e nesta ótica, quanto menor o salário, maior a produção,
maior será o lucro e a concentração de riquezas, se avalia então a produ-
ção, a tecnologia, a industrialização, aquilo que forma o Produto Inter-
no Bruto (PIB) de um país.
Se assim for a avaliação de uma cooperativa como a Ascat, mera-
mente a análise da estrutura, principalmente suas coisas, ou seja, bens
materiais de valores medidos em dinheiro propriamente dito, suas fi-
nanças, quanto têm, qual sua produção, estaríamos tendo como produ-
to desta análise, o desenho do fracasso.
Logo cairia para uma métrica de produção individual, onde se en-
contraria quem mais produz e logo, quem menos produz, descartando

139
obviamente trabalhadoras/es mais velhas/os, com deficiências e outros
problemas vinculados a força e energia de produção - justamente como
se fazem nas empresas capitalistas, uma análise fria e mecânica, de cima
para baixo, desconsiderando assim a vida que pulsa e insiste em sobre-
viver, mesmo diante de tantas dificuldades.
A começar pelas/os próprios cooperadas/os, as/os quais não con-
correm às vagas formais de emprego, são descartados justamente por-
que seus saberes, energias e corpos, já não servem mais nem para limpar
o chão da fábrica, quem dera operar uma máquina de alta tecnologia ou
fazer gerenciamento de pessoas (recursos humanos).
Se esta for a forma de analisar o desenvolvimento de uma coopera-
tiva de catadoras/es, com certeza posso afirmar: a cooperativa Ascat seria
desconsiderada, descartada, declarada como falida, inviável, justamente
porque sua riqueza não se concentra nas coisas e nas finanças, mas por
mais incrível que pareça, sua riqueza se concentra nas pessoas e em suas
potências as quais são relegadas pelo mercado formal de trabalho.
A cooperativa também busca conquistar mais dinheiro, tecnolo-
gia, elevar os índices de produção, como qualquer empresa privada,
entretanto este desejo não se reflete de forma nenhuma num processo
de acumulação de riquezas, nem mesmo coletiva, logo ele é distribuído
em partes semelhantes, conforme acordos estabelecidos pelo estatuto
social da cooperativa, onde se garante, distribuição em partes iguais a
todas/os as/os cooperadas/os.
Minhas considerações são em torno de algumas perguntas basea-
das neste enunciado. Considerando que as/os catadoras/es de materiais
recicláveis são pessoas com baixo nível de escolaridade, sendo que algu-
mas/ns apresentam doenças crônicas, problemas psicológicos, são aque-
las/es trabalhadoras/es que não competem mais por empregos formais,
logo, rejeitadas pelo Estado e pelo capital, sem chances de contratos.
Se fossem contar com as empresas privadas e o Estado, já teria sua
subsistência chegado ao fim. É preciso compreender que cada catado-
ra/r de materiais recicláveis é uma/m trabalhadora/r descartado pelo
mercado capitalista e por mais fragilizado que possa parecer, é tão forte
e guerreira/o quanto qualquer outra/o trabalhadora/r, pois luta diaria-
mente para sobreviver.

140
São em maioria, pessoas que historicamente tiveram direitos rele-
gados, que sobreviveram com poucos recursos, com trabalhos precários,
vidas precárias. Será que a análise do desenvolvimento de uma coope-
rativa de catadoras/es se avalia pelas suas finanças? Será que todas as
avaliações que fazemos devem ser garantidas as análises econômicas em
prioridade? Não seriam as/os trabalhadoras/es a estrutura mais impor-
tante de uma empresa?
A missão da Ascat é tão simples e ao mesmo tempo pode parecer
impossível de se conquistar, “gerar trabalho e renda digna para seus
cooperados” (ASCAT, 2021), num chamado claro a inclusão social e a
dignidade humana, longe de ser uma acumuladora de riquezas, o que
representa uma anomalia se considerar o que se compreende por uma
empresa desenvolvida e justamente esta anomalia, torna-se a maior po-
tência da organização. A cooperativa não gira em torno do dinheiro,
aliás, se fosse este o objetivo, não teria sobrevivido a mais de duas dé-
cadas de atuação, bem como, não deveria se organizar em torno do
cooperativismo solidário.
De certa forma, não haveria de ser diferente, pois a cooperativa é
de catadoras/es de materiais recicláveis, pessoas que são e convivem os
variados problemas e dilemas diários da vida na comunidade periférica,
neste caso no Loteamento Cavalhada, mais conhecido de forma pe-
jorativa, como “Vila Cai Cai”. Problemas e dilemas que estão sempre
em pauta, presente em seus debates. Logo, o lócus de avaliação de uma
cooperativa não deveria ser o mesmo de uma empresa privada, seus
objetivos e preocupações são completamente diferentes.
A própria empresa privada deveria ser analisada de outras formas,
já que esta age de forma capitalista, dentro da lógica dos sujeitos descar-
táveis. Ilusoriamente parecem servir a todas/os, mas serve apenas para
poucos – a figura do patrão - e cada um “incluído/a”- desde as/os dire-
toras/es até as/os assalariadas/os, entram para as empresas para produzir
a todo custo, quando diminuem sua produção, são descartados.
O quadro abaixo exemplifica melhor, numa simples e rápida com-
paração em relação à uma empresa (padrão de empresa capitalista, ou
seja, aquilo que conhecemos como empresa) onde poderemos ver me-
lhor os objetivos distintos de ambas instituições, sendo propriamente

141
dito, a distribuição de riquezas na cooperativa e acumulação de riquezas
nas empresas. O quadro é meramente ilustrativo.

Quadro comparativo entre cooperativa e empresa


Fonte: Elaborado pelo autor.

O quadro comparativo da Tabela 3 não é totalizante, tampouco


se enquadra em todas as cooperativas solidárias e nas variadas gamas
organizativas de empresas capitalistas. Serve apenas para ilustrar aquilo
que poderia enquadrar-se dentro de um mínimo de padrão, sabendo
que não é meu objetivo buscar definir isso por aqui, podendo haver
fortes diferenças e grande variação destas duas formas de organização
produtivas e econômicas.
Para afirmar, teria que despender de uma pesquisa a qual não sou
experto e nem tampouco cabe dentro das delimitações deste trabalho,
logo o objeto que estou trabalhando de fato é outro, desta forma o
quadro serve apenas para ilustrar alguns aspectos analíticos daquilo que
estou evidenciando neste texto.

142
Referindo-me ao desenvolvimento econômico social da coopera-
tiva, onde as categorias de análise poderiam ser aquelas apontadas por
Moretto e Giacchini (2006, p. 2), quais sejam: “a dimensão produtiva,
a dimensão social, a dimensão ambiental e a dimensão sustentável do
desenvolvimento”.
As/os catadoras/es de materiais recicláveis figuram como pessoas
descartáveis, tanto quanto os resíduos com os quais trabalham, uma
assimetria de descartados e rejeitos econômicos e sociais, pois são pro-
fissionais extremamente importantes nesse sistema de destruição da na-
tureza em busca da acumulação, quanto estigmatizados, perseguidos e
criminalizados, como o caso de Porto Alegre onde há leis de proibição19
do seu trabalho, não tendo seu trabalho reconhecido e valorizado.
Mesmo diante disso, se organizam e lutam para fazer esta impor-
tante tarefa, a qual consome boa parte de suas energias, onde estes têm
que investir para trabalhar, estes devem consertar seus equipamentos,
cuidar de sua alimentação e vestimentas, organizar seu roteiro. Tanto
catadoras/es de rua, lixões ou até mesmo cooperativadas/os como na
ASCAT, são organizados, respeitam um conjunto de regras para convi-
ver nesta sociedade, não existe catadora/r desorganizado.
Diante de uma carga de trabalho pesado, muitas vezes a renda não
chega a um salário mínimo mensal, conforme dados presentes em uma
pesquisa que realizei para a apresentação à Comissão de Meio Ambien-
te da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre (CARDOSO, 2021b).
Neste caso, apresentei as informações de uma pesquisa realizada com
todas as associações e cooperativas de catadoras/es de Porto Alegre, na
qual 52% dos grupos organizados declararam que a renda de suas/eus
cooperados é inferior a um salário mínimo mensal.
A renda das/os catadoras/es está associada às parcerias e não so-
mente ao esforço do trabalho, está associada a qualidade mais do que
quantidade de resíduos, por tipo, valor, índices de impurezas e rejeitos,
está associado ao local onde ele é gerado. Se a geração for de uma famí-
lia pobre, terá determinados resíduos, se for de família rica, terá maior
quantidade e valor, não significando que os rejeitos serão menores.

19 No Anexo 1, está disponível parte da ata de audiência pública ocorrida em Porto Alegre sobre o tema da proibição
do trabalho das/os catadoras/es de materiais recicláveis.

143
Quanto mais dinheiro, maior a riqueza, maior é o consumo e a po-
luição ambiental, logo riqueza, consumo e poluição andam juntinhas,
e ainda, de mãos dadas com a exploração, pois dificilmente alguém se
torna rico sem herança ou sem exploração.
A pobreza econômica das/os catadoras/es de materiais recicláveis
não se reflete apenas na exploração de seu trabalho como também di-
retamente na qualidade dos resíduos, os quais deveriam ser separados
e entregues nas cooperativas minimamente separados dos orgânicos,
somente os secos recicláveis. Entretanto vivemos em uma sociedade
de analfabetos ecológicos, os quais carregam latifúndios de diplomas
(CARDOSO, 2021c) e gritam pela salvação da Amazônia, do planeta,
dos animais, mas não mudam seus hábitos e tampouco sabem separar
seus resíduos gerados.
Misturar resíduos recicláveis com orgânicos, os torna rejeitos.
Logo esta é uma forma de exploração do trabalho das/os catadoras/es,
bem como, de poluição e destruição da natureza, pois os resíduos não
reciclados, são agentes de poluição ambiental, e ainda, por não serem
usados na produção de novos produtos, usarão matérias primas virgens,
extraídas da natureza, já tão exaurida.
Se as/os catadoras/es de materiais recicláveis tiverem boas parce-
rias, terão resíduos de melhor qualidade, sem rejeitos, quem sabe já
sendo matéria prima, quando não precisam sequer serem separados
para serem enfardados e comercializadas, como são, por exemplo, os
resíduos de grandes geradores.
Estes são diferentes dos resíduos coletados nas casas dos geradores,
os quais são mais misturados e necessitam de uma triagem mais minu-
ciosa, que demora mais tempo, além de um tempo e equipe maior de
coleta, para conseguir uma certa quantidade, necessita coletar num raio
maior de quilômetros.
Já nos grandes geradores, os resíduos são acumulados num lugar
só, possibilitando a diminuição da equipe, da força de trabalho, do in-
vestimento em logística de coleta, com pouca variedade e grande quan-
tidade de resíduos, os quais revertem em maiores receitas às/aos catado-
ras/es de materiais recicláveis.
Supermercados, lojas, escritórios, empresas, condomínios, festas
populares (tais como shows e carnaval), jogos de futebol em estádios e
144
outras, são considerados como grandes geradores, entretanto a maioria
destes estabelecimentos vendem os materiais recicláveis, não destinando
à categoria.
Nestes locais, invariavelmente, as/os consumidoras/es ao compra-
rem os produtos, pagam também pelas suas embalagens. Na prática a/o
vendedora/r, seja de cultura, arte, alimentos e tantos outros produtos e
serviços, já recebeu os valores pelos resíduos, mas invariavelmente pre-
fere lucrar, do que destinar às cooperativas.
Na maioria dos casos, estes locais de acumulação, triagem e ar-
mazenamento de resíduos funcionam dentro do estabelecimento. No
supermercado, o mesmo espaço dos alimentos também têm triagem e
reciclagem de resíduos, sendo que para a cooperativa se exige uma série
de documentações e adequações para realizar a triagem, como licen-
ça de operação, licenças ambientais, relatórios mensais com pesos dos
materiais recicláveis encaminhados à reciclagem, enquanto estes locais,
simplesmente vendem resíduos.
Logo, o desenvolvimento econômico de uma cooperativa de cata-
doras/es de materiais recicláveis não depende simplesmente de si, mas
de redes, os quais vão desde os geradores de resíduos, empresas priva-
das e governos, sendo multifacetada sua atuação. Entretanto, por ser
cooperativa de excluídas/os, sujeitos descartados socialmente pelo fato
de se reunirem em organizações solidárias e lutarem para serem reco-
nhecidas/os e valorizadas/os através de suas cooperativas, já poderíamos
considerar como uma cooperativa desenvolvida.
Entretanto, um olhar mais atento, sensível, poderá perceber que as/
os catadoras/es, vão além e dão exemplos de uma forma desenvolvimen-
to que não pode ser avaliado pelas finanças, mas sim pela humanização
das relações, caminhando em sentido contrário do desenvolvimento
meramente econômico, indo principalmente na contramão desse de-
senvolvimento de finanças, das coisas, as quais concentram riquezas,
exploram trabalhadoras/es e consomem recursos naturais, destruindo e
poluindo a natureza.
A cooperativa Ascat, por outro lado, objetiva a inclusão social e
econômica de pessoas descartadas pelas empresas capitalistas, distri-
buindo suas riquezas, fruto deste tão importante quanto desvalorizado

145
trabalho de reciclar, dividindo em partes iguais dependendo dos acor-
dos em relação às presenças no trabalho, além de sua atividade mais
conhecida ser a de preservar os recursos naturais.
A Ascat é uma organização social e econômica trabalho de triagem
e reciclagem de resíduos sólidos, organizada e gerida por catadoras/es,
fundada sobre a base de princípios solidários do cooperativismo e do as-
sociativismo no ano de 1994, na zona Sul de Porto Alegre, trabalhando
com coleta, triagem e destinação de 40 toneladas de resíduos por mês,
gerando trabalho e renda para 20 famílias catadoras.
A cooperativa presta serviço a Prefeitura Municipal de Porto Ale-
gre através de contrato, onde cumpre rigorosamente todos os preceitos
burocráticos do Estado, logo tem uma capacidade técnica mais evoluída
do que empresas que apenas realizam a comercialização e a fabricação
de produtos.
Por conseguir se organizar mesmo com todas as dificuldades im-
postas, vencer a burocracia estatal do contrato, estando em dia com
toda sua documentação e articulando busca cumprir a todas, logo, o
problema de falta de recursos que vive, sendo esse um dos seus princi-
pais dilemas e um dos objetivos de sua organização, não é uma questão
interna, mas principalmente externa a cooperativa. Aqui há uma forte
evidência de que a economia gira em torno da riqueza, da produção da
acumulação dela e não das organizações sociais e tampouco das pessoas.
A forma de gestão, distribuição de tarefas, decisões e, principal-
mente, dos recursos obtidos através desta organização produtiva é re-
alizada de forma igualitária a todos os participantes, num modelo de
organização que prioriza, valoriza e reconhece as pessoas, lhes dotando
de poderes para que possam participar da vida política, econômica e
social da organização. Logo, as capacidades políticas das/os cooperadas/
os, bem como algumas desconsideradas pelo capital, como a solidarie-
dade e a empatia, na cooperativa são centrais.
Não há ser humano que não transforme suas ideias e reflexões depois
de passar um mês convivendo os dilemas e a vida da cooperativa, sendo
uma grande sala de aula que produz conhecimento de grande qualidade,
principalmente para esta sociedade que se corrói a si mesma, a cada passar
de anos, caminhando a passos largos para a sua própria destruição.
Sen (1993) destaca que “os seres humanos são os agentes, benefi-
146
ciários e juízes do progresso, mas também são, direta e indiretamente,
os meios primários da toda de produção”, frisando, portanto, que os
seres humanos são centrais nas formas de fazer e produzir. Entretanto,
isso não se reflete na distribuição das riquezas produzidas, tão pouco no
poder decisório, que é altamente concentrada, sendo que apenas “2.153
bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas –
ou cerca de 60% da população mundial” (OXFAM, 2020). Aqui reside
um problema estrutural desta forma de fazer e pensar o desenvolvimen-
to baseado no acúmulo de riquezas, baseado no lucro das empresas e
não no desenvolvimento das pessoas.
As instituições privadas, com o apoio das instituições estatais, preo-
cupam-se prioritariamente em como acumular mais riquezas e conheci-
mentos, junto a isso, estabilidade, status e poder, ao invés preocuparem-se
em como resolver os dilemas sociais associados a miséria, os quais resol-
vem-se justamente com a distribuição de riquezas e conhecimentos.
Não me refiro apenas a aquelas/es que não produzem, de desempre-
gadas/os e desocupadas/os, mas também à maioria das/os trabalhadoras/
es que cercam-se ao redor da produção, destinando mais de 50 horas se-
manais de suas vidas – considerando minimamente o tempo despendido
em função de deslocamento e organização para iniciar o trabalho.
Acabam vendendo sua força de trabalho – vitalidade, saúde, co-
nhecimentos e todo tipo de energia – em troca de salários os quais,
na grande parte dos casos, mal podem sobreviver dentro do parâmetro
estabelecido como dignidade humana: alimentação, moradia, educação
e tantos outros direitos descritos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (ONU, 1948).
Na cooperativa, o trabalho bem como as decisões, são tomadas de
forma coletiva a fim de provocar e produzir ações dos cooperados com
maior incidência na sociedade. Claramente a cooperativa tem objetivos,
sendo alguns descritos em estatutos, como a busca do bem estar social
de seus cooperados e à sociedade, além da defesa da natureza, de seus
recursos naturais, e da conquista de uma outra economia - a economia
solidária, antes mesmo de termos contato com este conceito trabalhado
na academia. Nosso problema de escassez de recursos é coletivo, ou seja,
ninguém figura como rico, acumulador.

147
Um exemplo importante para esta reflexão de não acúmulo: a co-
operativa não perde casos na justiça do trabalho, quando algum coo-
perado tenta buscar seus direitos. Neste caso, utiliza-se o argumento de
que todos os meses, a cooperativa inicia a produção com zero capital
distributivo, nesse sentido, aquilo que os cooperados produzem durante
um mês de trabalho, é distribuído integralmente e igualmente para cada
cooperado, sobrando zero para o próximo mês.
A análise de desenvolvimento de um país pode não condizer com
uma análise de desenvolvimento de bem estar social, a exemplo do que
Sen traz, apresentando um quadro comparativo (SEN, 1993, p. 314),
onde, por exemplo: China tem uma renda per capita em dólares de
$310 (dólares) e expectativa de vida de 69 anos, em comparação com
Oman em que a renda é 20 vezes maior, entretanto a expectativa de vida
é de apenas 54 anos, configurando problemas estruturais relacionados
principalmente à distribuição de riquezas, não somente do trabalho,
sendo um caso de vida e morte. São necessárias outras formas de pro-
duzir, de fazer a gestão e a distribuição da produção e das riquezas,
preservando a vida e os recursos naturais.

148
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desejar a alegria do outro é garantir a sua.

Sou catador e cooperado da cooperativa Ascat desde o ano de


1998, 20 anos antes de conquistar esta nova identidade de estudante e
pesquisador vivenciadas nestes últimos quatro anos de experiências na
universidade. As/os cooperadas/os, bem como o contexto em que vivo
- minha comunidade e o trabalho, são muito íntimos para mim. Desta
forma, por estar inserido dentro deste “campo” de pesquisa, neste caso,
a linha de dentro/fora é praticamente inexistente.
Como não há uma forma simples de me descorporificar - e isso
não desejo de forma nenhuma - a minha identidade de catador neste
campo, ganha apenas uma nova roupagem de estudante e de pesqui-
sador, sendo que essa, nem percebida ou vista pelas minhas colegas de
profissão, as quais me tratam como sempre, como catador, colega e
companheiro de trabalho.
Por estar inserido em um processo de larga exclusão social, mais
um dos sobreviventes com a vida predestinada à precariedade, as cons-
truções e ideias aqui discutidas são reflexos da vida prática, experimen-
tada e vivida. Não haveria outra forma de olhar para o desenvolvimen-
to que não se desse a centralidade nas pessoas, para além das coisas
– produtos - e do dinheiro – concentração de riquezas. Este processo
é rico em práticas diárias pela sobrevivência, uma vez que cada família
na comunidade consegue sobreviver porque agarra-se na solidariedade
e na empatia, na qual um cuida do filho do outro e coletivamente aju-
damo-nos.
A cooperativa é uma forma de organização principalmente social,
entretanto se dá pelo econômico, não hegemônico, mas uma economia
solidária, a qual busca e desenvolve – conforme Sen trabalha em sua
teoria, as capacidades de cada ser operando centralmente para o coleti-
vo. Recordo-me muito bem que em um dos ricos debates, o qual rea-
lizamos em “sala de aula” onde uma das perguntas do professor foi em

149
não saber como poderia se desenvolver o modelo discutido pelo autor
Arturo Escobar, o qual discutia sobre o pós-desenvolvimento.
Minha resposta – automática e carregada de sentidos e práticas, foi
de que realmente não precisamos saber, justamente o povo – neste caso
específico, os movimentos sociais – sabem como fazer, é na prática uma
inversão de saberes e de projetos, ao invés de virem de cima para baixo,
do sistema financeiro global, alinhado aos países ditos desenvolvidos e
da academia, invertendo para o centro de decisão, passando a estar nas
pessoas, em seus movimentos sociais e experiências de vida.
O desenvolvimento como expansão das capacidades, bem como
o pós-desenvolvimento, tem raízes dentro dos movimentos sociais –
nascem destas práticas que vão muito além dos discursos e das teorias
acadêmicas. O próprio desenvolvimento humano encarnado agindo,
ressignificando o Estado, as regras, o trabalho, a política, a economia,
enfim, a vida. Como disse no início deste trabalho, ele é para além dos
rituais de avaliações acadêmicas, uma importante ferramenta de infor-
mações para o exterior da cooperativa e de formação para seu interior.
As/os catadoras/es de Porto Alegre (r)existem a mais de 30 anos
organizados, sendo verdadeiras/os heroínas/óis da nossa cidade, colo-
cando suas vidas a disposição do cuidado do planeta, utilizando suas
mãos, corpos e saberes para realizarem a reciclagem. Vê-se isso, especial-
mente, quando o risco aumenta, por realizarem este trabalho essencial
em meio a pandemia causada pelo covid-19, na qual o trabalho de re-
ciclagem não parou de forma nenhuma, ampliando os cuidados, o que
resultou em não haver nenhuma morte até o momento em que escrevo
este trabalho.
Infelizmente as/os catadoras/es de materiais recicláveis ainda figu-
ram como pessoas descartáveis, tanto quanto os resíduos com os quais
trabalham, uma assimetria de descartados e rejeitos sociais, pois são
profissionais estigmatizados, perseguidos e criminalizados, como o caso
de Porto Alegre onde há leis de proibição do seu trabalho, nesse sentido,
não tendo seu trabalho reconhecido e valorizado.
Mesmo diante disso, se organizam e lutam para fazer esta impor-
tante tarefa, realizado diante de uma carga de trabalho pesado e muitas
vezes a renda dos cooperados não chega a um salário mínimo, dados

150
presente em uma pesquisa que realizei para a apresentação a Comissão
de Meio Ambiente da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre (CAR-
DOSO, 2021b).
Infelizmente não é uma exceção, mas quase uma regra, com histó-
rias semelhantes de muitas(os) brasileiras(os), as(os) quais desde antes
mesmo de nascerem, já são excluídas socialmente e economicamente,
sem chances de avançarem na educação, com grande deficiência às vezes
até de alimentos e de outros recursos.
Pelo fato de se organizarem em organizações solidárias e lutarem
para serem reconhecidas/os e valorizadas/os, já poderíamos considerar
como uma cooperativa desenvolvida. Entretanto, um olhar mais atento
e sensível, poderá perceber que a categoria vai além e dão exemplos
de uma forma desenvolvimento econômico, social e com o cuidado
ambiental, que não pode ser avaliado pelas finanças, mas sim pela hu-
manização das relações.
Estas avaliações caminham no sentido contrário do desenvolvi-
mento meramente econômico, indo principalmente contrários ao sen-
tido desse desenvolvimento de finanças, das coisas, as quais concentram
poder e riqueza, exploram trabalhadoras(es) e destroem a natureza con-
sumindo cada vez mais recursos. A Ascat por outro lado, distribui as
riquezas em partes iguais, além de sua atividade mais conhecida ser a de
preservar os recursos naturais.
Meu histórico, meus gostos e minhas paixões levaram-me a percor-
rer este lindo caminho na academia, compartilhando lições que me for-
taleceram enquanto catador de materiais recicláveis, dando-me certezas
de que este caminho que escolhi ou fui forçado a seguir, estruturou-se
como um grande espetáculo em minha vida.
Neste trajeto fiz questão de compartilhar com companheiras/ros de
profissão, professoras/res, colegas e quem teve interesse em mergulhar
neste mundo da catação, traduzido para a academia em apresentações de
trabalhos em seminários acadêmicos em várias universidades brasileiras e
internacionais, lecionando minicursos, dentro e fora de sala de aula, es-
crevendo artigos e textos para livros, revistas e sites acadêmicos que deram
luz às variadas teorias sociais aqui discutidas, como uma forma de devolu-
ção daquilo que aprendi nesses quatro anos de universidade.

151
Meu mundo acadêmico não se encerra aqui, sendo apenas mais
um ciclo que se fecha, para outros abrirem, iniciando pelo próximo
passo, o mestrado em antropologia 2022/1, na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, o qual fui aprovado pelo regime de cotas, dando
sequência a esta caminhada de catador e pesquisador.
Depois de ler inúmeros livros, textos e artigos, deixado por autores
clássicos e novos, resolvi também contribuir, escrevendo num livro inti-
tulado “Do Lixo a Bixo: A Cultura dos Estudos e o Tripé de Sustentação
da Vida”, o qual neste momento chega a mil exemplares lidos, e com re-
tornos de lindas críticas que aqueceram ainda mais meu olhar e minhas
certezas da escolha de curso, bem como da minha profissão enquanto
catador de materiais recicláveis.
Aqui limitei a escrita conforme as especificidades de um trabalho
de conclusão de curso (TCC), busquei dar foco à algumas evidências
encontradas em experiências de vivência enquanto catador e uma das
referências da categoria no Brasil e no mundo.
Muito ficou para outras oportunidades, podendo, se houver opor-
tunidade, solidariedade e desejos, avançar nas discussões em torno da
cultura da reciclagem, da uberização da coleta seletiva, da coleta sele-
tiva solidária, da reciclagem popular, do cooperativismo solidário e de
outros temas que são extremamente importantes nestas discussões que
estão intimamente ligados a reciclagem e o avanço social da categoria.
Ao aprofundar na pesquisa acadêmica, com o olhar do antropó-
logo, trazendo discussões do arcabouço de teorias sociais estudadas na
UFRGS, durante 8 semestres, não há como não perceber minha adap-
tação na academia, compreendendo cada vez mais desde as funções in-
ternas - o que e para que serve - bem como de como escrever um traba-
lho acadêmico, sem esquecer de que estes não serviram apenas para que
a/o professora/r lesse, mas que de certa forma, gerassem conhecimentos
para toda a categoria.
As notas foram mudando de semestre para semestre, o catador es-
tudante da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), em que
em apenas um semestre se conclui as etapas que demoraria um ano na
modalidade normal - o que na prática se reduz conteúdos e se acelera a
formação e mesmo com estes anos de escritas, ainda não consigo escre-
ver de forma correta, a risca, o português adequado.
152
Por compreender que isso, de fato, não me limitaria as conquistas
acadêmicas, é de grande comemoração cada aula, cada trabalho apre-
sentado. Uma das evidências que apresento são os conceitos obtidos
durante a graduação: 4 C, 5 B e 29 A, conquistados principalmente nos
últimos semestres, em que cursava até 8 cadeiras no semestre.
Diante do apresentado neste TCC, percebe-se que as/os catadoras/es
de materiais recicláveis são os principais atores da reciclagem, bem como
agentes de transformação social, transformando suas vidas, daquilo que
foi rejeitado, resíduos e a ela/e mesmo. Como agente solidário, dotado
de empatia, organizado coletivamente em associações e cooperativas soli-
dárias de trabalho, luta para dentro pela sua própria sobrevivência e para
fora, para a sobrevivência do planeta, implantando uma cultura de traba-
lho e distribuição de riquezas completamente diferente, portanto revolu-
cionária, quando comparada com as empresas capitalistas.
As/os catadoras/es mesmo vivendo marcado pela profunda preca-
rização do trabalho, desvalorização da cidadania, exploração de corpos
e da sua condição de ser humano, e tendo relegadas invariavelmente a
condição de renda mínima para sua subsistência, seguem enfrentando
grandes empresas privatizadoras do serviço público, bem como as pode-
rosas poluidoras do mundo, além das leis de proibição do seu trabalho.
Seguimos orgulhosos de nosso trabalho, da identidade social e profis-
sional, ao ponto do catador que conseguiu acessar a universidade - meu
caso, carregar consigo como sua principal identidade a de catador de
materiais recicláveis.
Apesar da categoria realizar um trabalho de extrema importância,
contribuindo para o chamado tripé de sustentabilidade, trabalho que
potencializa a economia, a inclusão social de seres humanos descartados
pelo sistema capitalista e seu mercado formal de trabalho e principal-
mente a proteção ambiental, encaminhando milhares de toneladas de
resíduos sólidos para a reciclagem sem nenhum ganho, continua sendo
amplamente explorada.
A exploração se dá pela indústria recicladora que fica com 90%
da riqueza da reciclagem e realiza apenas 10% do trabalho (MNCR.
2022), pelas prefeituras que não pagam pela prestação de serviços, pe-
las empresas fabricantes de embalagens e poluidoras que não pagam

153
pela logística reversa ou pelos geradores - consumidores que compram
e descartam embalagens sem nenhum pagamento ou consideração pelo
trabalho da categoria.

Catadores e a bandeira do MNCR, São Paulo, 2022. (Arquivo pessoal)

O trabalho realizado pelas/os catadoras/es de materiais recicláveis


é a base da cadeia produtiva da reciclagem, logo, sem catadoras/es de
materiais recicláveis, sem reciclagem. Compreende-se aqui, que a socieda-
de precisa de educação ambiental para vencer o analfabetismo ecológico,
movimento extremamente importante e vital para o planeta, justamente
porque com o avanço na produção de resíduos e com diminuição da reci-
clagem, os resíduos acabam tendo suas vidas úteis muito curtas.
A exemplo disso, os plásticos de uso único, atrelado a uma longa jor-
nada de poluição que ultrapassa 500 anos, seja em lixões, seja nos terrenos
baldios ou rios e oceanos, torna-se um problema estrutural que pode levar
a destruição desta nossa forma de vida, destruidora do planeta.
É imprescindível parar de pensar na destruição do planeta como
um fato único, justamente porque diariamente vidas se perdem pela
exploração dos recursos naturais e da poluição, por enchentes, por des-
lizamentos ou mesmo pela poluição dos rios. Para muitos, o planeta já
terminou, desta forma podemos planejar e executar ações que possam

154
agir em defesa da vida, a exemplo da aplicação da agenda 2030 e seus
objetivos para o desenvolvimento sustentável.
Mostra-se necessário uma tomada de consciência individual (ci-
dadã) e coletiva (institucional) acerca desses problemas, alguns deles já
debatidos neste trabalho, para que as vidas possam ser preservadas e me-
lhoradas suas condições de sobrevivência, sendo uma parte da respon-
sabilidade nossa, enquanto cidadãos, e outra por parte das instituições,
sejam elas públicas ou privadas.
O Estado deve realizar sua parte implantando e executando leis
de proteção ambiental e reciclagem, como a PNRS, contratando as as-
sociações e cooperativas de catadoras/es de materiais recicláveis, como
prestadores de serviços com devidos pagamentos, reconhecendo e va-
lorizando as/os catadoras/es de materiais recicláveis como importantes
trabalhadoras/es. Nesse sentido, apoiando sua organização e fortalecen-
do seu trabalho, o que pode refletir positivamente em toda a sociedade,
através da geração de trabalho e de renda para pessoas outrora excluídas
pelo mercado capitalista formal de trabalho.
Outra ação possível é a criação de programas de educação ambien-
tal que iniciem desde a casa de cada um dos geradores, acompanhando
os processos de socialização das/os cidadãs/ãos desde a primeira infância
até a velhice, uma vez que somos geradores de resíduos no decorrer da
vida. Ressalta-se que os resíduos se modificam intensamente de acordo
com a tecnologia de produção capitalista neoliberal, o que torna uma
atitude cidadã reciclarmos o que produzimos, agindo diretamente na
proteção da natureza, já que através da reciclagem diminui-se a apro-
priação de matérias primas e os impactos ambientais poluidores.
As empresas privadas, principalmente as grandes corporações, po-
dem comprometer-se a produzir resíduos passíveis de serem usados por
mais tempo, aproveitados e recicláveis. As ações podem partir de uma
reflexividade de suas tecnologias, logísticas e valores e do pagamento
das/os catadoras/es de materiais recicláveis pelos seus serviços de coleta,
triagem e destinação dos resíduos recicláveis para a reciclagem e, prin-
cipalmente, pagando taxas e tributos pela poluição que geram. Nesse
sentido, não é justo as empresas concentrarem as riquezas enquanto a
miséria e a poluição são compartilhadas pela a sociedade.

155
As/os geradoras/es é importante agir olhando para um mundo que
é finito, os quais seus recursos naturais usados hoje, farão falta amanhã,
desta forma, pode-se evitar de usar matérias primas novas, virgens, ao
utilizar apenas o necessário para viver confortavelmente e forçando as
empresas capitalistas a fabricarem produtos que possam ser reciclados.
Urge termos conhecimento sobre nossos próprios impactos am-
bientais, buscar conhecimentos de como evitá-los e, para além disso,
engajar-nos nas lutas sociais pela defesa do planeta e da vida. Não
misturarmos nossos próprios resíduos é o mínimo que podemos fazer
quando pensamos que outras e outros merecem ter a possibilidade de
nascer e de viver tão ou mais felizes do que vivemos.
É necessário desvendar e dar visibilidade ao dilema que a categoria
de catadoras/es de materiais recicláveis vivem, levando em conta que
seu trabalho é explorado e, simultaneamente, retiram-se e negam-se
seus direitos, benefícios, pagamentos e importâncias sociais.
As condições, conforme apresentadas neste trabalho, colocam as/
os catadoras/es de materiais recicláveis como seres reconhecidamente
dispensados da cidadania e dos direitos, como “restos sociais” e “de-
jetos sociais”, que servem para uma coisa tão importante, indispensá-
vel quanto relegada que, ao mesmo tempo, torna-os invisíveis. Há um
misto de descarte com invisibilidade, visto que, mesmo trabalhando, a
categoria não consegue se manter dignamente.
As condições e contradições acentuam-se, dado que o Estado, a
quem prestam serviços, é o principal agente de exploração e exclusão
social, tornando o contrato - nas atuais condições - a formalização da
precariedade e da exploração destas/es trabalhadoras/es. Desta forma,
descumpre-se a Lei das Cooperativas, que no artigo 7º estabelece que
cada cooperativa deve garantir - ainda mais quando em contrato de
prestação de serviços ao Estado - renda “não inferiores ao salário míni-
mo, calculadas de forma proporcional às horas trabalhadas ou às ativi-
dades desenvolvidas” (BRASIL, 2012a) para cada cooperada/o. É um
caso que merece imediata retratação por parte do Estado, bem como
atenção de instituições de justiça, especialmente, do trabalho e dos di-
reitos humanos.
Por fim, tristemente ainda podemos perceber a desvalorização da
política de reciclagem e a supervalorização do consumismo. Infelizmen-
156
te, quem trabalha na defesa da natureza por vezes é criminalizada/o em
virtude de ser uma categoria excluída, que quando visível é perseguida,
ou desvalorizada quando invisível, tratadas como pessoas desorganiza-
das e ignorantes, entretanto desempenham um papel fundamental nes-
ta sociedade altamente destruidora da própria natureza.
Estude para ser diferente, mantenha foco, seja forte. Eu conto
com você e sua capacidade transformadora. Faça parte desta luta! Ser
uma/m lutadora/r em defesa do meio ambiente é ser uma/m lutadora/r
pela vida: a sua e de todos os seres vivos - humanos e não humanos - do
planeta. Revolte-se, revolucione-se, seja vida.
@alexcatador

157
158
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MEMÓRIAS D’AÇÃO

LEMBRO DA MISÉRIA, DA FOME PRESENTE NA MESA


SUJEIRA, CASA COM GOTEIRA, FALTAVA DINHEIRO
MAS NÃO FALTAVA AMOR.

O ESTÔMAGO QUASE SEMPRE VAZIO, A ESPERANÇA ESTAVA


SEMPRE JUNTO. QUANTO PEDIA COMIDA, A RESPOSTA ERA:
“VAI BRINCAR QUE A FOME PASSA”

A BRINCADEIRA ERA NÃO PASSAR FOME, ESQUECER,


QUEM INSISTIA PERMANENTE PRESENÇA. ERA TRISTE A
SITUAÇÃO, A VIDA, MAS NÃO NOS MEU OLHOS.

EU OLHAVA PARA MEUS PAIS, MINHA FAMÍLIA.


O CUIDADO COM MINHAS IRMÃS, O CARINHO DO MEU PAI,
O CUIDADO DA MÃE.

A INFÂNCIA É PASSAGEIRA E COMO ELA A FOME TAM-


BÉM FOI, MAS HOJE VEJO OUTROS, QUE COMO EU,
SE ALIMENTAM DE BRINCADEIRA.

É CRUEL QUANDO A FOME E A MISÉRIA NÃO SENSIBILIZAM


MAIS, POIS A FOME ENSINA MAS SÓ QUEM É SENSÍVEL
APRENDE.

COMPREENDER A IDEOLOGIA DA FOME NÃO É PARA


QUALQUER UM, É PARA QUEM TEVE FOME NO CRESCER
OU LUTA PARA ELA DESAPARECER.

ALEX CARDOSO
@ALEXCATADOR

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