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ELEUAPERURUMU DURES MESES ELEY CAPITULOSEIS Repensar o papel da linguistica aplicada Kanavillil Rajagopalan sn INTRODUGAO: UM _ESCLARECIMENTO tieulo deste capieulo pode induzir alguém a imaginar que estou propondo algo totalmente inédito, jamais pensado até 0 momento. Longe disso, 0 que quero pleitear é que talver tenha chegado a hora de refletir sobre © papel do campo de conhecimento que se convencionou chamar “linglistica aplicada” (ca) de forma independente de sua prépria histéria (Se € que tal procra é de futo, Posstvel). Mesmo que, ao longo dessa empreitada, venhamos a nos convencer, de uma vex por todas, da impossibilidade de nos desvencilhar toralmente das riticas passadas, devemos ao menos tentar, se no decarar guerra contra a meméria dos tempos idos, suspender os resquicios das tentaivas frustradas. Insisto, em que ese © pasado (e como!), na busca de solugées ousadas ¢ inovadoras © fato, por exemplo, de a 14 ter surgido historicamente 4 sombra da lingiistica tedrica ainda pesa ‘na hora de redefinir as prioridades (por mais que se negue que isso ocorra) e, em muitos casos, sadotes se sintam acuados diante das novas possib metas ¢ prioridades. A saida é rom tradicao, faz com que os pesqui- ilidades de definir suas per — na medida do possivel — com a a fim repensar 0 futuro do campo de forma livre e desimpedida, SINAIS POsITIVOs DE MUDANGA © inais curioso € que algumas propostas ousadas nesse sentido jé exis- elas sto veiculadas isoladamente ¢ ainda nio tem. Infelizmente, porém, 150. Kanavun Raincoraans acharam, até onde foi possivel constatar, espago ou destaque suficientes nos livros inttodutérios ¢ didéticos que tracam os rumos de um campo de investigagao (jd que servem de portal de ingresso aqueles que nele desejam atuar). A titulo de exemplo, cis uma afirmacéo bastante estimulante: Desenvolver um arcabouge adcquado para a LA é um grande desafio neste novo milénio. Outro grande desafio, junto com o de manter em ordem a propria casa, é que caberd aos lingtiistas aplicados a tarefa de ressuscitar a lingiistica como disciplina — uma disciplina com um papel mais socialmente responsdvel a desempenhar em um mundo p6s-colonial ¢ pés-moderno (grifo meu) (Martin, 2000: pp. 123-124). Martin acena para algo de importancia vital para 0 desafio que se atravessa no caminho dos lingiiistas aplicados de hoje: 0 de — nada mais, nada menos — ressuscitar, quem ditia, a propria lingiifstica, a disciplina-mée. O fato é que a lingiifstica — dita tedrica ousdescritiva, tal qual vem sendo promovida nos dias de hoje nos circulos apelidados de “mainstream” — estd em lamentivel estado de faléncia miltipla. Ou, como alerta Beaugrande (1997: 279), em fase de “estagnagao de proporgées criticas”. A CRISE NA/DA LINGOISTICA Faléncia, ow estagnacéo — como se queira descrever a situagao critica em que se encontra a lingiiistica ceérica —, nao € nenhum segredo guardado a sete chaves. H4 uma sensagio crescente mundo afora de que a ciéncia da linguagem — a “rainha das ciéncias humanas” de outrora — jd nfo estd na mesma situago de décadas atrés, quando a drea era agraciada, sobretudo nos Estados Unidos da América, por vultosos volumes de verba piblica para projetos de pesquisa bisica, tornando-se até objeto de inveja por parte dos pesquisadores de areas conexas. Jé hd claros sinais de desgaste ¢ desprestigio, refletidos tanto no némero minguante de novos alunos ingressantes nos programas de pés-graduacio nos Estados Unidos, como também de novos postos de trabalho para os que se formam a cada ano, Hi alguns anos, cortia uma noticia nada animadora na internet, segundo a qual os doutores em lingiiistica estariam cada ver mais se sentindo obrigados a aceitar empregos que pouco ou nada teriam a ver com sua formagio!. "Ff favo que a situagio nfo esté tio maim em nosso pais. Isso, porém, no diz respeito & érea da lingtifstca em si, Com a énfase na capacitacso docente, adotada pelo Minisétio da Educasto de uns anos ‘3 graus estio se sentindo pressionados a realizar nximeros significatives de professores de | SUG OU IVA TVA OCOCCO COUT CT UTED DAEUT VESSELS PUVUUVEVES SSS STTTSITITI ITT [REPENSARO PAPEL DALINGOISTICA APLICADA M151 Contudo, devemos admitir que falar em termos da necessidade de “res- suscitar” a lingiistica pode provocar paix6es acaloradas, como tive oportu- nidade de presenciar durante simpésio do II Congreso Internacional da Associacéo Brasileira da Lingtifstica (ABRALIN) em marco de 2003, do qual participaram também alguns dos colegas colaboradores deste livro (cf. Rajagopalan, 2003b). Tal reagéo apenas sinaliza o fato de que realmente existe uma sensagio amplamente compartilhada pela comunidade de pes- quisadores da rea de que hé algo de podre no reino da Dinamarca ¢ de que, quando alguém chama a atengio para o estado de marasmo que se instalou no campo da lingiifstica, efetivamente se poe 0 dedo na ferida. Como se — para trocar de metéfora — ninguém estivesse a fim de lavar em piblico roupas sujas guardadas hé muito tempo. ie A promessa As razbes da situagio em que hoje se encontra a lingiifstica tedrica séo relativamente dbvias. Sabemos que o grande salto dado pela disciplina, sobre- tudo nos Estados Unidos da América, em meados do século XX, deveu-se as expectativas, reais ou imagindrias, criadas em torno da disciplina na época. Além da demanda acentuada de professores de lingua estrangeira para ministra- rem cursos-relampago a milhares de soldados designados para servir em lugares longinquos, os lingitistas foram convocados a se dedicar a projetos de pesquisa relacionados aos esforgos bélicos daquele pais — desde tarefas ultra-secretas, como decifrar mensagens criptografadas inimigas interceptadas pelos servigos secretos, até aperfeigoar técnicas de tradugo auromitica etc. Passado 0 choque das duas Grandes Guerras, os Estados Unidos se viram as voltas com novas ameagas, decotrentes de sua posi¢go como superpoténcia ¢ lider incontestével do mundo nao-comunista. Comerava, assim, o longo e tenebroso periodo da Guerra Fria. Isso explica, em grande parte, a ascensio metedrica da disciplina, que logo se tornaria a menina dos olhos dos érgios governamentais ¢ ndo-governamentais, com grandes quantias de dinhciro investidas em pesquisa. Basta uma consulta ripida as paginas de agradecimentos dos livros publicados na época para conferir © interesse despertado pelas pesquisas lingilisticas — era comum, por exemplo, determinado autor registrar seus agradecimentos & Marinha ou a Forca Aérea casos de pér-graduagfo, Donde o aumento de demanda por estes cursos cspalhados pelo pafsiniciro. Ou sein, a procura cresceae pela lingsica no Brail no se deve ao prestigio da disciplina, mas 3 falta de outras opgdes para eese novo segmento do piblicoimteressado. 152. MKANAVILLIL RAJAGOPALAN dos Estados Unidos (e 0 que vem a ser mais intrigante ainda, ninguém estra- nhava o fato ou fazia a pergunta ébvia: “O que tem a lingiiistica a ver com furileiros navais ou pilotos da forga aérea?”). Uma lingitstica de resultados Por mais que se negue no campo da lingiifstica tedrica que seus pesquisa- dotes tenham quaisquet vinculos com fins priticos, nao resta diivida de que a guinada formalista softida pela disciplina, logo depois da Segunda Grande Guerra, foi diretamente influenciada pelas novas fontes de financiamento. Ou seja, a forma como as pesquisas lingiiisticas foram conduzidas nessa época foi determi- nada pelas expectativas criadas em tomo de suas possiveis aplicagées. Por um lado, as agéncias de fomento comesaram a investir pesadamente em pesquisas Fingilsicas, esperando resultados palpéveis como meétodos sofisticados de que- bra de cédigos secretos, tradugio automtica ¢ instantinea etc. Por outro lado, ‘os proprios pesquisadores foram cada ver mais atrafdos pela possibilidade de agradar as agéncias, cujos interesses especificos demandavam certos tipos de pesquisa em detrimento das demais e, dessa forma, recebiam mais verbas. Nao é de estranhar, portanto, que as pesquisas de cunho sociolégico ou antropolégico tenham sido deixadas de lado, para que todo o esforgo pudes- se ser canalizado para estudos de natureza formal. A ascensio da gramética transformacional-gerativa foi grandemente beneficiada pelo formalismo que © modelo ostentava. Num texto critico a respeito do futuro das pesquisas sobre a inteliggncia artificial (A), Putnam (1988: 272) fez questo de res- saltar 0 seguinte: O conccito da mente como um computador est4 hoje associado & 1A, porém nao é ‘exclusivamente associado a ela (Noam Chomsky nio é, até onde eu saiba, um otimista fem relagéo 4 14, mas compartilha com ela a idéia da mente humana como um computador...) A medida que os trabalhos cm lingiifstica comesaram 2 aparecer — nao s6 para o publico leigo como também para os burocratas € politicos no mando das agéncias financiadoras — como exercicio de matemdtica, nao faltou também entusiasmo em torno da dea, que logo foi saudada como a “coqueluche” do mundo académico da época. Ao mesmo tempo, os novos talentos ¢ prodigios que a disciplina atraia néo precisayam mais se sentir cenvergonhados de estar envolvidos em pesquisas “moles” das “ciéncias huma- nas”, mas sim em projetos do quilate da matemdtica, 0 supra-sumo da WA lawn SUVA TTT, ry syyyyyyy REPENSAR O PAPEL DA LINGUISTICA APLICADA M153 robustez cientifica. A lingiiistica se transformara em uma ciéncia natural, nao devendo nada a nenhuma outra ciéncia. Tamanho foi o encanto do novo furor cientifico que seu efeito se fer sentir na longinqua Franga, onde até mesmo alguns autores, com orientagio tedrica completamente dispar ¢ de forte conotagéo humanistica, optaram por intitular suas obras com titulos como Analyse automatique du discours (Pécheux, 1969). Uma ciéncia para ninguém “borar defeito” O entusiasmo gerado pelo enorme sucesso da disciplina, sobretudo junto tis agéncias de financiamento, fez com que os livros introdutérios alardeassem em voz cada vez mais estridente o caréter cientifico da disciplina. Cabe res- saltar aqui que © cardter ciemeifico que a lingiifstica passou a reivindicar, sobretudo a partir da revolugao chomskiana, fazia com que os lingiistas da geragdo anterior — os seguidores da lingiiistica cstrutural — parecessem meros amadores brincando de fazer ciéncia, Se os antecessores de Chomsky, contra 0s quais cle mobilizaria todo 0 seu fervor revoluciondrio, contentavam- se com a tao decantada objetividade da lingiifstica descritiva, em oposigio as préticas ditas prescritivas dos gramAticos tradicionais, para o proprio Chomsky. a lingufstica s6 podia reivindicar o status de verdadeira ciéncia se conseguisse avingir, além da adequagao observacional e descritiva, uma adequacao explanatéria (Chomsky, 1965). E a adequagéo explanatéria significava, para ele, fincar a comperéncia lingiifstica em principios ainda mais abstratos. Para muitos adep- tos da nova orientagio, o cariter abstrato da teoria (leia-se: aspecto da teoria que a transformava cm algo total ¢ hermeticamente incompreenstvel a0 pui- blico) passou a ser sindnimo de sua cientificidade. A légica subjacente era “Pouco importa se um 2é-ninguém nao consegue entender o que o lingiiista lia; afinal, ninguém reclama quando um fisico ou um bidlogo expGem. suas recentes descobertas em linguagem inacessivel as pessoas comuns”. Em suma, a lingiifstica precisava ser vista como parte de algo ainda maior € mais abstraro. Estudar a linguagem humana passou a set mera desculpa, pois © verdadeiro motivo era compreender os mistétios da mente humana. Afinal, as linguas humanas nao cram, por si s6s, objecos tio fascinantes, no entender da nova geragio dos cientistas da linguagem. Como chegou a confessar, em certa ocasiéo, 0 préprio Chomsky: “... a lingua € um conceito derivado ¢ algo néo tio interessante” (Chomsky, 1980: 90). Neil Smith, chomskiano de carteirinha, foi ainda mais longe quando decretou: “A lingiifstica nfo lida com a lingua, ou 154 KAMAL Raiaconaian com as Iinguas; a0 menos néo € isso 0 que esté sua mira. Ela tem a ver com as graméticas” (Smith, 1983: 4, apud Widdowson, 1989: 129). Nas mos de Chomsky, a lingiifstica se transformou em, por exemplo, um ramo da psicologia cognitiva. Mesmo aqueles que divergiram dessa proposta optaram por outras posigdes igualmente cientificamente “respeité- veis”. Por exemplo, Jerrold Karz, ex-discfpulo de Chomsky, que, com o passar do tempo, se distanciou do mestre e de seu naturalismo, trocou a concepeao da linguagem por outra ainda mais abstrata ¢ passou a defender a idéia de que a lingiifstica devia ser vista como um ramo, quem diria, da matematica (Rajagopalan, 2005a). Para defender uma de suas idéias mais controversas — a saber, a idéia de que a seméntica deve se preocupar com sentengas totalmente desprovidas de qualquer contexto —, Katz chegou a promover o conceito de “contexto nulo”, justificando-o como sendo da mesma ordem das idealizages como “vacuo perfeito” ¢ “plano sem fricsao” em fisica. Ou seja, se 0 fisico pode, por que nao o lingiista? Decepgao [As promessas ¢ as expectativas por elas geradas logo se revelaram exagera- das ou, como em alguns casos, escancaradamente falsas. Mais ou menos por volta do comego da década de 1990, jé nao havia mais quem acreditasse que a lingiistica pudesse auxiliar os EUA a ganhar as guerras que ainda estariam por vir ou a solucionar os problemas sociais que afligiam milhées de excluidos no mundo. Na verdade, a propria lingiistica deixou de se preocupar com coisas mundanas, tais como problemas sociais ou mesmo a prépria sociedade. Conforme vimos, nem mesmo as linguas — as que os mortais falam no seu dia-a-dia — Despertavam mais o interesse dos lingiiistas. fato & que os lingiiistas ditos “tedricos” pouco se preocuparam com problemas concretos relativos 4 linguagem. Em nome da cientificidade, suas teorias passaram a ser cada vez mais abstratas, formais e distantes das realidades vividas por cidadios comuns. Com cfeito, os lingilistas se tornaram cada ver mais ausentes das discusses acerca de assuntos de grande relevancia para os leigos. E 0 caso, por exemplo, da importante questio do planejamento lingiiis- tico. Aqui entre nds, no Brasil, isso ficou evidenciado no episédio da polémica que se instaurou no rastro do projeto de lei n® 1676, apresentado em 1999, pelo deputado Aldo Rebelo. Como argumentei em outros trabalhos, 0 que polémica trouxe a tona foi nfo s6 0 total desprestigio da lingifstica junto & JUUUUUUUVV ET TEER CCC CCUCCOCRRRLECLEC EE EI EERE REN VII CCC [REPENSAK. PAPEL_DA LINGUISTICA APLICADA BS 155 sociedade ampla, como também a inabilidade gritante dos lingitistas.profissio- nais cm intervir nos debates sobre questoes como o que fazer diante da enxur- rada de estrangcirismos (Rajagopalan 2002a; 2004b, 2005b). A LINGUISTICA TEORICA E A FALTA DE COMPROMISSO COM QUESTOES DE ORDEM PRATICA A lingiifstica e a neutralidade cientifica O desinteresse, da parte dos lingitistas, por assuntos rclativos a politica lingiiistica € a outros tantos temas de interesse prético pode ser creditado a um principio fundador da propria disciplina — a saber, 0 da neutralidade do ientista em relagéo a quest6e¥"de ordem ética, ¢ por tanto, a fortiori, politica. Erica envolve, como se sabe, valores. Ji a ciéncia, de acordo com certa tradicéo fortemente arraigada entre nés, lida com fatos. E, segundo essa mesma cartilha, 98 fatos ¢ os valores no se misturam. Ou seja, € com base em certa visio do que vera ser uma ciéncia — visio que, em ditima anilise, remonta ao positivismo légico ¢ a alguns estudiosos do século XIX, como o socidlogo alemio Max Weber (para quem a ciéncia precisava, sob pena de perder sua esséncia, ser conduzida sempre respeitando 0 principio de Wersfreiheit, isto é, isencao total de valores) — que o lingiiista se afastou das quest6es priticas relativas a linguagem, sobretudo daquelas que envolviam jutzos de valor, como € 0 caso da politica lingiifstica. Em outras palavras, enquanto estiverem comprometidos com um dos prineipios fundadores da disciplina, os lingilistas teéricos nao tém como intervir ativamente em questes como planejamento lingiistico — e por tabcla, na vasta gama de assuntos que interessam ao lingiiista aplicado. A lingiiistica e 0 descaso com a opinido leiga ‘Mas bh outros fatores que impedem 0 envolvimento dos lingiiistas teéri- 0s cm questées de ordem prética, Novamente, alguns desses fatores estfo ligados a decis6es inaugurais que se configuram no préprio nascimento da disciplina enquanto ciéncia. Est4 entre elas © principio de que, enquanto cientista da linguagem, o lingitista deve manter-se distante da opiniao leiga a respeito da linguagem. A opiniao Iciga foi, ao longo da histéria da discipli- na, tratada como totalmente desinteressante ¢ capaz de despistar 0 cientista da linguagem. Um dos classicos da lingiifstica moderna, 0 texto Secondary and ————— 156 lm Kaxavicit RAINGORALAN de Leonard Bloomfield (1944), versa precisa- Tal, No teferido texto, Bloomfield distingue ‘dos nativos/informantes a0 serem abordados pelo lingdista. As respostas primdrias sso aquelas que, segundo Bloomfield, Prelimense inveressam aoiniestigador. J6 as secuncditias refletem crengas popu- lhses a respeito do proprio fenémeno da linguagem, Por exemplo, a origem des linguas, crengas comuins ¢ correntes em todas as comunidades. Acontece, svisa Bloomfield, que tais crencas no tém valor para ¢ lingiista, uma vez. que tam como fonte superstig6es ¢ folclore ¢ seriam, por definicio, desprovidas de qualquer fandamentagio cjenvifica. Para finalizar, as respostas do tipo tercidrio seriam respostas, nem sempre amigiveis, que OS rnativos costumam dar quando ® pesquisador se entrega 2 tentagio de convences © 45% de que suas crencas 3 cientifico. Para Bloomfield, o lingiste nao deve perder discutix com 0 nativo. Tertiary Responses to Language, mente sobre tal decisio inaugu trés tipos de reagdes por parte nio tém 0 menor valor seu precioso tempo em Em outras palavras, 0 nativo sé vale enquanto fornecedor de dados. A andlise desses dados deve ficar exclusivamente por conta do lingiiista. Isto %, ao lingiiista interessa tudo 0 que o native diz em sua lingua. Se, porventura, ‘o mesmo nativo comega a falar sobre sua lingua, 2 melhor opgao para 0 ‘iista € néo dar ouvidos 2 seu entrevistado, pois 0 que 0 native tem a ling pode atrapalhar o rumo da pesquisa. dizer sobre sua propria lingua s Em formulag6es mais sofisticadas, 0 conselho de Bloomfield € justificado mediante a disting’o “linguagem-objeto” (falar em) versus “metalinguager” dizer que a ciéncia da linguagem (falar sobre). Nao hd nenhum exagero em foi erguida sobre a premissa de que nao pode haver nenhum intercimbio enuze a linguagem-objeto, aquela na qual 0 leigo, em sua condigio de falante nativo, é autoridade consagrada, ¢ a metalinguagem da lingiiistica, que ost4 fora do alcance do leigo. A lingitstica e 0 descaso com 0 social fem tleima instincia, 0 desciso para com a opiniso leiga que, conforme a da lingistica moderna, tem a ver com © odo como a disciplina, com raras excesoes, tem idado com o social. Nao & suk de cifncia que encama o expirito do século SAX, que presenciou o surgimenco do in vidualismo de forma exacerbada. Como magistralmente documenta Taylor (1992: 256s.), em algum momento 20 (bang db sbauka VAIy ia ih lo tna SREP set socialmente inscrito vimos, tornou-se marca registrad: toa a lingiifstica tem sido tach: VV EEUU UU | SSIIIIIPIFIIIIIIVIIIIIIITIIT REPENSAR O PAPEL DALINGUITICA APLICADA BL 157 € substirufdo por um novo conceito de individuo constituido com base em autoconhecimento ¢ reflexio. Nasce, a partir desse momento, a idéia de um individuo que existe por conta propria, para quem a sociedade, isto & a exis- téncia de outros individuos como cle, se tora um fato meramente contingente. E esse individuo que se encontra imortalizado na estétua do escultor francés Auguste Rodin — o pensador que curte a privacidade de sua solidao ¢ dela deriva todo 0 scu sustento filosdfico. No entanto, a estitua de Rodin apenas representa de forma concreta 0 sonho da filosofia desde seus primérdios, relatado em histérias como aquela contada sobre Sécrates, 0 pai da disciplina, que, num dia como outro qualquer, estaria como de praxe sentado & porta de sua casa em meditasio profunda até ser rudemente “acordado” por sua mulher com uma ducha de 4gua fria. Ou ainda, 0 cpisddio igualmente famoso, registrado pelos historiadores, sobke.a figura de Descartes meditando proble- mas filos6ficos em um quarto com larcita em Ulm no ano de 1616. © que se realga nese conceito de individuo solitério que dispensa a sociedade a seu redor ¢ um ser auto-suficiente ¢ capaz de tomar conta do proprio destino. Nao por acaso tal individuo chega, a partir do século XIX, a representar 0 préprio espirito aventurciro das nagdes curopéias © suas conquistas de terras alheias. Esté ai como prova o personagem de Robinson Crusoé, do romancista inglés Daniel Defoe (personagem baseado na vida real de um marinheiro inglés chamado Alexander Selkirk). Apés sofrer um naufrdgio, Crusoé nao s6 dé a volta por cima, como consegue recrutar em beneficio préprio um fiel escravo chamado Sexta-Feira Quando dizemos que a lingiifstica carrega ainda hoje vestigios claros de suas origens no século XIX, aludimos ao fato (entre outros) de que a linguagem é — com raras excegdes — pensada, tendo como fulcro um individuo auto- suficiente ¢ completo em si. E 0 caso, por exemplo, do falante-ouvinte ideal da concepgio chomskiana. Na figura do falante-ouvinte ideal, Chomsky cofsegue a proeza de fundir num s6 personagem as duas “cabecas falantes” de Saussure. Nio the falta nada. O fato de pertencer a uma sociedade, a uma comunidade de fala, ¢ tratado como simplesmente um detalhe, um faro contingente Fato € que © pensamento mainstream em lingiiistica relegou © social a segundo plano. Mesmo quando a questéo social ¢ invocada, é como se 0 social entrasse como acréscimo a consideragoes jé feitas sobi concebido “associalmente”. A simples existéncia de subéreas a sécio"-"lingitistica denuncia tal atitude. 0 individuo “hifenadas” como 158. Kasamuun Ryscorasan A LINGUISTICA NA TORRE DE MARFIM E SUA RELEVANCIA PARA A VIDA NA TERRA E desnecessério apontar que uma lingiifstica concebida dentro de uma torre de marfim, isto é sem se preocupar com o que ocorre no mundo real, tem pouca relevincia ou utilidade no dia-a-dia para a vida das pessoas co- muns. No entanto, nao é essa a atitude assumida por aqueles que insistem em fazer clucubragGes te6ricas i margem da vida real. Num gesto que soa mais como patético do que qualquer outra coisa, Newmeyer (1982, 1987) tenta nos convencer de que a lingiiistica tedrica tem muito a contribuir no campo da pritica. Trata-se do mesmo autor que alhures defenderd sua op¢fo pelo que denomina “lingifstica aurOnoma’, cuja marca registrada consiste em privile- giar “as propriedades que cxistem a despeito das crengas ¢ valores dos falantes individuais ou da natureza da sociedade em que a lingua é falada” (Newmeyer 1986: 5-6). Em iiltima anélise, Newmeyer nos exorta a bascar nossas priticas numa teoria que tem como principio norteador a tese segundo a qual 0 que 6 povo pensa sobre a lingua nao tem nenhum valor teérico. Ou seja, por um lado, ele faz apologia de uma forma de teorizar que repudia 0 pensamento popular e as miilriplas priticas acerca da linguagem; ©, por outro, 0 préprio teérico quer que sua tcoria — concebida a revelia da opiniao leiga ¢ das priticas lingifsticas — seja convocada para instruir todas as. priticas. ‘Ao insistir em que a teoria lingilfstica nao deve levar em conta aquilo em que os falantes créem a respeito do fendmeno da linguagem, teéricos como Newmeyer mostram-se fiéis a0 princfpio fundador da propria disciplina, cal qual preconizado no texto de Bloomfield (anteriormente discutido). Ademais, tais tedricos também esto demonstrando apego incondicional a certa concep- cio do fazer cientifico, segundo a qual o cientista deve manter-se distante dos sujeitos de sua pesquisa. Foi nessa visio de ciéncia como emprecndimento distante das preocupacées do dia-a-dia que nasceu 0 campo de pesquisa hoje denominado “aquisigéo de segunda lingua” (asi). Originalmente concebido como campo de pesquisa de cardter pritico, essa subarea foi, com 0 passar do tempo, sendo incorporada & esfera da teoria pura, deixando para ws qualquer preocupacio com as condigées reais em que as segundas Iinguas so adquiri- das. Tal aticude € entusiasticamente justificada por pesquisadores como Newmeyer & Weinberger (1988), que partem do argumento de que “as ciéncias de grande impacto se desvinculam das preocupagdes com suas apli- cages imediatas”. Para Gregg (1996: 74-75), outro apologista convicto da VU PUVA aa [REPENSAR PAPEL DA LINGOISTICA AMLACADA IEE 159) tese da primazia da teoria, o importante ¢ se concentrar na parte explanatéria € no se deixar distrair pelas possiveis aplicagdes da teoria. Para esse pesqui- sador, foi um grande engano abordar a problemética da Asi. como uma questio pritica, pois, segundo ele, nao havia nada a refletir sobre as pessoas de carne © 0ss0 que aprendem outras linguas, nem tampouco sobre as condigSes em que elas as aprendem. Fica a pergunta: é possivel — ou, ¢ recomendével, no caso de a resposta a essa pergunta ser um “sim” — nao nos aproximar de nnossos sujeitos de pesquisa, sobretudo quando nossa meta é atuar no campo da(s) prépria(s) prética(s) que envolve(m) 0 uso da linguagem? UMA LINGUISTICA VOLTADA PARA QUESTOES PRATICAS ‘A resposta & pergunta fete pardgrafo anterior s6 pode ser um sonoro ‘A experiéncia nos mostra com dlareza que uma teoria capaz de instruir a pritica € teoria feita levando-se em conta as condigGes priticas das situagGes concretas em que se espera a teoria seja aproveitada. Uma teotia que considera © social como questio secundéria jamais terd éxito num campo de pritica que seja, antes de qualquer outra coisa, social. Como bem diz Mey (1985: 11): Nao se pode descrever a lingua ¢ seu uso fora do contexto daquele uso, isto é da sociedade na qual ela é usada, Comegar por uma definigéo da lingua (qual), posteriormente definir a sociedade (de que tipo?), ou proceder em diregio oposta, apenas vai resultar em tentativas (tio desesperadoras quando precérias) de juntar 0 que nunca deveria ter sido separado. Em outras palavras, é preciso nos conscientizar de que, para ser de alguma utilidade pratica, a teoria deveria ter sido concebida levando-se em conta possiveis fins préticos. Uma teoria concebida 2 revelia das preocupagées pri- ticas, claborada apenas para satisfazer a criatividade de um genio solitétio, ndo tem valia alguma no campo da pritica. Comentando a posi¢ao assumida por pesquisadores como Gregg (1989: 15), segundo a qual “o propésito final de pesquisas em rorno da Ast é a elaborago de uma teoria sobre Ast” (grifo meu), van Lier (1991; 78) observa — com toda a raz4o — que uma atitude como essa autorizaria concluses do tipo “o propésito final das pesquisas sobre Aids € a claboracdo de uma teoria sobre a Aids, ¢ nao a busca de uma melhor *. Noutro texto, van compreensio da doenga ¢ de formas ideais de combat Lier chega a lamentar que a 1A tenha se voltado exclusivamente para a teoria (c, dessa forma, deixando de fazer parte da 14), deixando tudo 0 que diz respeito a pritica aos cuidados da pedagogia (van Lier 1994). Neen 160 Kanavinun Raincoraian Bons VENTOS Feliamente, bons ventos comegaram a soprar, ajudando dissipar certo marasmo que se instalou no campo. A supremacia da teoria — a tes6 segundo a qual pritica 96 teria @xito se obedecesse aos ditames da teoria — jd est sendo questionada de diversos Angulos. Passaremos, a segults 2 discutir detalhadamente algumas das tendéncias recentes que vio ao enconero dessa tese. Lingiitstica de corpus 'A chamada “ingiifstica de corpus” € a maior prova de que j4 na no campo dos estudos da linguagem tanto entusiasmo pela crensa, no fundo de origem racionalista — e que,gm dima andlise, remonea & insisténcla socritica fm que qualquer explicagio part dado fendmeno deve comegar por ums defi- no confronto entre a teoria ¢ a pritica, € niggo daquele fendmeno — de que, a primeira que tem de se sobresiir € no a segunda (Rajagopalan, no prelo). jo ha mais ca da lingiifstica de corpus particularmente interes- antes de qualquer outra coisa, ela questiona um ‘nal (te6rica), com base em uma pers- pectiva de ordem eminentemente pritica. Tomemos como exemplo a con- Pribuigao que a lingistica de corpus trouxe para o campo da lexicografia — terreno indiscutivelmente pertencente 4 pritica. Antes do advento da lin- gilstica de corpus, a tendéncia predominante nesse campo de atividade era einar que a lexicologia — compreendida, com fieqléncia, como. um, 5 ctie de semantics intensional (sto 4, uma semdntica concebida b revelis do sre jo real) forecesse todos os subsidios para a lexicografia. Para a semis sevintensional, a palavra solteiro quer dizer “homem adulto nao casado” € onto final. Qualquer outra acepgio que a palavia possa porventars 12 é fimplesmente tratada ou como extensio ou corto desvio daquele significado, si ida cone easel « imucivel; Ou soja, dentro do arcabouyo| di smi seeeriavewsional, nfo hé espago para acomodar a dimensio dincrOnics de trolugio do sentido das palavras, nem variagio dialetal, geogriica is Tam- them no ha como acomodar novas acepgbes que surgem a cada hora em todas as Minguas vivas (0 que caracteriza uma lingua viva € a sua capacidade de absorver inovagées ctiativas, freqlicntemente oriundas, por exemplo, de gfrias). Contratiamente & prética lexicogrifica tradicional inspirada na lexicologia (entendida como campo teérico), a lexicografia, com, base na inglistica de © que torna a propos sante neste sentido € que, dos postulados da lingiistica tradicio VAAL Nv | , MUVELERELESLIDATAAAAAA DADE AA AAAI A TEST REFENSAR O PAPEL DA LINGUISTICA APLCADA Il 161 corpus, se propée registrar os miiltiplos usos dos itens que servem de verbe- tes. Trata-se, portanto, de um registro, de uma fotografia, de algo em cons- tante evolugio. Qualquer generalizagio, qualquer teorizagio se fazem a posteriori. E, em outras palavras, um empreendimento empirico por excelén- 0 que norteia a lexicologia intensional. cia, em oposic#o a0 racionalis Embora seja no’ campo da lexicografia que a lingiiistica de corpus tem demonstrado seus melhores resultados, nfo resta divida de que o seu modus operandi est& mostrando igual eficdcia ao lidar com dados sintaticos — precisamente, 0 nticleo duro da lingua natural, segundo a perspectiva gerativista (Halliday 1993: 1). Ou seja, o surgimento da lingiiistica de corpus € evidéncia de que © progresso nesse campo de atuagio relativa linguagem dé-se em oposi¢fo 4 postura de promover a teoria sempre em primeiro lugat. Nas palavrasde Owen (1993: 168), a linguistica de corpus se apresenta como “uma nova abordagem da descricio gramatical, que penetra nas partes da‘linguagem inacessiveis a outras gramiticas”. Em relagio as restrig6es a essa abordagem feita por Owen, Francis & Sinclair (1994: 190-1) lembram que ‘A razao pela qual alguns lingitistas desprezam amostras de dados reais, diferentemente dos fisicos, psicdlogos fsiologistas, talver seja a de que eles se apéiam em suas préprias intuig6es sobre a linguagem, considerando-as como uma espécie de linha direta para a parte do eérebro que trata da construgio ¢ interpretagio dos enunciados. Metacognigito Pelo termo “metacognicao” se entende “o reconhecimento crescente da necessidade de auxiliar os aprendizes de Mnguas a refletir acerca de suas crengas ¢ do entendimento do proceso de aprendizagem” (Wenden 1988: 515). Outros termos, mais ou menos equivalentes que se encontram na literatura, incluem “crengas dos aprendizes” (Horowitz, 1987), “psicologia popular da aprendizagem” (Wenden, 1987) ¢ “representagées dos aprendi- zes” (Holec, 1987). De uma forma ou de outra, est4 ganhando cada vez mais adeptos a idéia de que, na hora de planejar 0 curriculo ¢ de elaborar a metodologia de ensino de linguas, é preciso valorizar € levar em conta 0 conhecimento que os préprios aprendizes j4 possuem ¢ empregam como um dos fatores importantes na tarefa de aprender. E essa idéia que move ten- déncias recentes como: educagao com fins emancipatérios (empowerment education), ensino refletivo (reflective reaching) etc. (Crookes, 1993). 162 KaNAvIELIL RAINGOPALAN ‘A atitude de respeitar o ponto de vista do discente contrasta de forma gritante com a orientagio da lingistica te6rica, segundo a qual o leigo nada teria a ensinar ao perito. A esse respeito, Davies & Kaplan (1988: 187), apés registrar que, em meados da década de 1970, testes de jutzos de gramaticalidade comegaram a ser usados em larga escala em pesquisas no campo de Asi, comentam © seguinte: Isso se deve, em parte, 4 aplicacéo direta da teoria gramatical chomskiana... sendo a idéia subjacente a de que juizos de gramaticalidade podem fornecer dados sobre « representacio acurada da competéncia lingiistica do falante nativo. Ou seja, os autores deixam claro que as pesquisas sobre ast foram de- cisivamente influenciadas pelo paradigma em ascenséo na lingiifstica da Gpoca. Nao resta davida de que, de ld para ci, houve uma mudanga radical, com a percepcéo de que a pritica pedagégica dentro da sala de aula nao pode ser considerada como mero Epéndice da reflexio ceérica feita sobre a aquisiggo da lingua. Mesmo entre os pesquisadores que ainda encaram 0 campo de ASL como eminentemente teérico, hé uma preocupacso (ou me- Ihor, frustragdo crescente) porque ainda ha quest6es nio resolvidas sobre a relagao entre pesquisa em ASL ¢ a sala de aula. Os pesquisadores ¢ os adeptos ainda tém bons motivos para perguntar s¢ ¢ Como Os pesquisadores em ast devem influenciar a parte pedagégica (Lightbrown 2000: 438). Enquanto os adeptos da tese “teoria sempre em primeiro lugar” ainda estio desesperadamente procurando justificar sua opyio metaredrica de fazer suas pesquisas ao largo das preocupagGes priticas, pesquisadores como Pavlenko (2001) ditigem suas atengGes para as histérias de aprendizagem contadas pelos préprios aprendizes. A luz das evidéncias obtidas por meio dessas hd um certo consenso emergente de que as priticas pesquisas empfricas, sear nas aspiragées ¢ motivos dos aprendizes ¢ no, pedagégicas devem se b: tomo foi a prética durante um bom tempo (isto é, 0 tempo em que a tcoria )) nas tomadas de decisses com base em elucubracSes ditava as regras do jogo) tebricas, feitas longe dos aprendizes e de suas crencas (Mitchell, 2000) Lingiitstica critica objetivo intervencionista Quando falo em lingiistica critica (Lc), refiro-me a um conjunto de pro- postas, As vezes com divergéncias entre si (ef Fowler & Kress, 1979: Hodge & Kress, 1979; Mey, 1985; Fairclough, 1989, 1992a, b, 1995a, b; Chouliaraki ough, 1999; Chilton, 1985; Wodak, 1989; Cameron et alii, 1992), 2 AAA EEO OCUUCUUUUUUUUUET ADRUROURMAVAVA NALS [Rerensan 0 PAPEL DA LINGOISTICA APLICADA BE 163 que contudo tem como denominador comum a idéia de que © trabalho do lingitista no pode se dar ao luxo de se considerar encerrado quando atingit um certo grau de adequacio observacional ou descritiva, para lembrar a terminologia chomskiana (Rajagopalan, 2003c, 2004c). Nem mesmo a condigéo de adequa- a0 explanatéria, que Chomsky considera como desejivel para 0 trabalho do lingiiista?. Dentro da proposta de Lc, nao basta se contentar com uma anilise lingilistica, stricto sensu, sem se preocupar com a natureza social do fendmeno lingiifstico. A atividade lingiifstica é uma prética social. Sendo assim, qualquer tentativa de analisar a lingua de forma isolada, desvinculada das condigées sociais dentro das quais ela € usada, cria apenas um objeto irreal. Longe de ser uma opgéo teérica ou até mesmo uma condigio para conduzir a atividade cientifica, como costumam dizer os adeptos dessa tendéncia, tal manobra, sob olhar atento € critico, se revela um gesto imbuido de conoragées ideolégicas — precisamente do tipo que seug_defensores acreditam estar excluindo de suas praticas cientificas (Rajagopalan 1999a, b, ¢, 2002b, 2003c, 2004a). A 1c parte de um pressuposto que a coloca em rota de colisio com a chamada lingiifstica mainstream, ou ortodoxa, erguida sob o principio neopositivista da “neutralidade” do cientista. Em contraste, aC nio sé nega tal neutralidade, como insiste em que a propria crenga na neutralidade nao passa de ingenuidade metatedrica (na melhor das hipéteses) ou numa manobra ideolégica (na pior das hipoteses). Os pesquisadores que trabalham na linha de 1c entendem que suas atividades cientificas tm uma dimensfo politica. Eles percebem que, ao proporem suas anilises, estao tentando influenciar a forma como as coisas se apresentam, isto é, intervir na realidade que af estd. Nese sentido, cém plena consciéncia de que sao ativistas politicos. Nao é de estranhar que venham sendo alvos de criticas mais ferrenhas por parte daqueles que ainda nutrem 2 ilusio da neutralidade cientifica (Widdowson 1998, 1999, 2000). Teorias globais, préticas locais Nos tiltimos anos, tem havido uma percepgao crescente em meio a comu- nidade de pesquisadores de que, com freqiiéncia, as tcorias concebidas em tetmos globais — isto é sem se preocupar com as especificidades locais, pouuco ‘Chomsky (1965) contrapée a esses dois niveis de adequacéo a condicso de adequagao explanatéria, entendendo-se por este tiltimo o critério de que uma andlise proposta para determinado fendmenolingtistico ‘esteja de acordo com uma visio te6rica mais ampla 164 Kannvtiat RWAGOPALAN cou nada contribuem para solucionar problemas encontrados na vida real, Holliday (1998), por exemplo, nos alerta para a necessidade de reconhecer uma distingao Cue dels conceitos de culnura — a saber, a “grande culrara” (lage culture) Spequena cultura” (mall culture), acrescentando que 2 validade de nossas teorias Go postas & prova no contexto das pequenas culturas. Em termos,prfticos, isso significa que nem sempre as propostas tedricas elaboradas in ving im utilidade wea condighes especificas. Em trabalho. anterior, Holliday (1992) compara a aplicagio de tcoris a contextos especticos ao wansplante de Grgios — © sucesso ah cearialdo transplante depende da accitaso pelo corpo hospedeiro. Por exem- plo, de nada adiantam os méritos intrinsecos de uma proposta de renovagio vnienlar se, apés a implancasio, ela “no se transforma em parte fetivamente funcional do sistema” (Hoyle 1970: 2). Por sua vez, Rampton (1999}-argumenta que muitas das distingdes a distingao entre aprendizagem em con- feitas em teoria — por exemplo, pre so cons- texto natural vs. contexto de instrugo explicita — nem sem| tatadas na pritica, apressando-se cm actescentar que, nesses cas05, deve- mos procurar o papel ideolégico das dicotomias ¢ néo simplesmente descarté-las como meras fantasias empiricas. Propostas no mesmo sentido podem ser encontrados em Cameron et alii (1992). O que, no fundo, sses pesquisadores estio sugerindo é que a pritica deve néo s¢ instruir a veoria, mad tambést setvic de palco paca explorar'a base ideoldzica. que sustenta diferentes propostas tedricas (que geralmente s¢ apresentam ad ma de consideragées ideolégicas). ‘A inabilidade da teoria em lidar com 2 especificidade de conrextos locais fica evidente nas polémicas, em diferentes partes do mundo, sobre a questo do planejamento lingiifstico. No Brasil, isso veio 4 tona na discussio acalo- ale em torno da questio dos chamados “estrangeirismos”, a partir do pro- jeto de lei n? 1.676, de autoria do deputado federal Aldo Rebelo (Rajagopalan, 2002a, 20040). Da mesma forma, em outras situasics anélo- as polémicas demonstraram a total incapacidade dos lingtistas em lidar fom a opinigo leiga (Rajagopalan, 20022, 2004b, 20058). Os fracassos em tais situagses dever-se nfo s6 a0 tradicional desprezo pela opinizo leiga, um dos principios fundadores da disciplina chamada lingilfstica, ms também se fra enorme entre o global eo local (Rajagopalan, 2004b, 20058). Donde a pertinéncia da idéia langada por Beaugrande (1997) de que a validade de uma teoria estd na sua aplicabilidade a situagoes préticas, gas, —4 PUVA EEE EEC CUCU LEELA =~ 1 = 1 1 => = = = = 1 od REPENSAROPAPELDA LINGUISTICA APLCADA BI 165, CONSIDERAGOES FINAIS Podemos dizer, com seguranga, que j4 se foi o tempo em que se acredi- tava em larga escala que a teoria seja a precondi¢io para qualquer tipo de pritica. Pelo contrério, h4 um consenso emergente de que elucubragées teéricas que nao contemplem sua aplicabilidade na prética nfo valem nada. No campo de LA, 0 que falta é 0 reconhecimento de que é a teoria que precisa ser moldada segundo as especificidades da pritica. Em outras pala- vas, cabe 4 LA — como bem lembra Martin na citagéo feita no comeco deste texto — a tarefa nada facil de “ressuscitar” a disciplina-mae do estado de debilidade aguda no qual se encontra. Convém nao esquecer que as vozes do conservadorismo nao se calario facilmente ¢ sempre enconttasio-ouvidos simpatizantes: vozes como a de Widdowson (2000: 3-4), que insiste em que a 1a deve ser entendida como uma atividade mediadora, de cardter mais etnogréfico, que busca acomodar uma cexplicacao lingtiistica a outras perspectivas parciais sobre a lingua, de mancira a propor reformulagSes relevantes dos problemas do “mundo real”. © problema desse modo de pensar a relagéo entre a lingiifstica ¢ a sociedade esté no fato de que nao passa de vinho velho (a idéia de que ata deve se contentar com 0 papel secundério cm relagio 4 disciplina-mae) em garrafa nova (apclo a etnografia que, & primeira vista, nos leva a pensar que de fato esté havendo uma vontade, por parte do lingtiista teérico, de nego- ciar os sentidos com a sociedade ampla). Porém, 0 vinho j4 passou do tempo, transformou-se em vinagre. Ou seja, o que precisamos € repensar tudo de forma radical — nao procurar pequenos reparos aqui ou acoli. Felizmente, est4 se formando © consenso entre os pesquisadores em 1A de que cabe a ela ndo mais. atuar simplesmente como instincia mediadora entre, de um lado, uma lingiiistica feita 4 margem dos anseios populares e, do outro lado, uma sociedade que clama por solugées praticas (como quer Widdowson), mas intervir de forma conseqiiente nos problemas lingiiisticos constatados, no procurando possfveis solugées numa lingiifstica que munca se preocupou com os problemas mundanos (e nem sequer tem intengao de fazé-lo), mas teorizando a linguagem de forma mais adequada aqueles pro- blemas. Dito de outra forma: a LA precisa repensar 0 préprio lugar da teoria € nfo continuar esperando em vo que scu colega “tedrico” Ihe fornesa algo pronto ¢ acabado, pronto para ser “aplicado”. 166. Kawavitiit RAGOPALAN ‘A tarefa no. caminho que se)tem’a frente no yai ser nada ficil, assim como nao seré facil esquivar-se daqueles que, por um motivo ou outro, va0 Gquerer nos convencer de que a solugio para todos os males do mundo esté ser mos do teérico — aqucle que faz questio de no se envolver com os problemas mundanes, a0 mesmo tempo em que afirma possuir solugdes mnilagrosas com base em suas Feflexdes celestiais. A tendéncia em curso pode até ter reservado destino um tanto irdnico para a lingistica dita te6rica. Pois, diante da revonhecida inabilidade dos Tingtlistas te6ricos em intervir no mundo da pritica © do conssatiente des- gaste que 2 diseiplina vem sofrendo no mundo inteiso (desgaste medido pelo ntimero de alunos cada vez mais minguante nos curses de pés-gradugio, Prerudo no hemisfério norte, assim como a disponibilidade, cada vez srenor, de verbas pablicas), nfo é dificil imaginar um dia, bem préximo, em que a 1a teté “engolido” boa PARE da reflexdo teérica. Afinal, néo seria tio cranho se a (disciplina) mie viesse a se encontrar na dependéncia na filha AGRADECIMENTO Sou grato 20 CNPq pela concessio da bolss de produtivided: cm pesquisa ~ proceso ° 306151/88-0. REFERENCIAS Beavcaanne, Re ve (1997). Theory and Practice in Applied Linguistics: Disconnection, Conflict, ‘or Dialectic’, Applied Linguisticr, 18: 279-313 Biocurnee, 1 (94, Secondary and Tertiary Responses to Language, Language, 20: 45-55 ac al. (1992), Rececbing Language: Inne of Power and Method. London: Rowwes ge er Nowe) 1985. Language end the Nucer Arms Debate: Newlpetk Tada. Londen: raness Pen. Crarwtn N. A. (1965). Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, MA: The MIT’ Press STON(1980), Rules and Representations. Oxford: Basil Blaclorel, mas Be Fancxou, N. (1998). Dee in Lee Modo sina: Edinburgh Unicoi De Groene, (1993), Action Research for Second Language Teacher: Going Beyond Teacher Research, “Applied linguistics. 4 (2): 130-144 Dee. Kann, TT (1998). 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