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CcCAPiITULOUM Linguistica aplicada como espaco de “desaprendizagem” REDESCRICOES EM CURSO Branca Falabella Fabricio MONDO: EM MOVIMENTO m mundo em crise, que vé abalada a crenga no dogma, na 6gica formal abstrata e no predominio da razio na filosofia, na ciéncia, na moral e na arte, Uma época de mudanga geral de perspectivas e de inovasbes sociais, econdmicas ¢ tecnolé- sgicas, época na qual convivem idéias paradoxais: racionalisme ¢ irracionalismo, ientificismo ¢ misticismo, humanismo ¢ barbéric, intelectualismo e antiinte- lectualismo. Panorama responsivel pela perda de referéncias explicitas e gerador de individuos em choque, em conflito ¢ desorientados, devido ao colapso de seu sistema de crengas ¢ valores. Mundo contemporineo? Poderia ser, se a descrigdo do contexto histérico acima nao fizesse refe- réncia 4 mancira pela qual o historiador ¢ teérico da arte, Arnold Hauser ((196511976), contextualizou 0 século XVI, vendo-o como um periodo de abismagao inquietante, utilizando a lenda da queda de fear como metéfora da perplexidade do homem maneirista diante da perda de posigées centrais qu encontra sua sintese na revolugio copernicana, De mancira andloga, a trajetéria dos individuos contemporincos também vem sendo descrita em 46 Beawca FaLaneLia Fannicio termos de desestabilizagio, descontrole, destradicionalizagzo ¢ vertigens pe- rante as transformagées céleres em todos os Ambitos da vida social, cultural, politica ¢ econdmica (cf, Giddens, 2000; Hall, [1992]1998; Bauman, 2001; Fabricio & Moita Lopes, 2004; Freire Costa, 2004). Podemos dizer — tendo, entretanto, 0 cuidado de nao criar um clo identitério radical entre os séculos XVI ¢ XX/XXI ou incorrer em analogias apressadas — que as imagens de deslocamento ¢ desconcerto sto. compartilha- das pelos dois momentos histéricos, Tal aproximacéo ajuda-nos a vislumbrar as idgias de que um mundo operando transigées paradigmiticas ¢ re- hierarquizando valores (segundo Freire Costa, 2004) talvez nao scja privilé- gio contemporineo ¢ de que momentos de transicdo parecem ser a regra, € nio uma situagio peculiar de determinadas épocas. ” seria_existir sempre em_mi a 135, Essa nogdo de fluxo continuo, embora presente desde a filosofia antiga, ven se tornando cada vex mais expressiva na atualidade, talvez cm razio da compressio espago-tempo. Como pesquisadora atuante no campo da lin- gitistica aplicada (La), busco responder a uma pergunta instigada por esse conceito de mobilidade: como a idéiate teinsito permanente esté afetando as tcorizagGes contemporineas acerca de nossas priticas discursivas? © propésito do presente artigo é por conseguinte, refletir sobre a rea de 1a em face das metamorfoses que testemunhamos cotidianamente nos mais variados contextos. Como ponto de partida, cumpre discutir alguns tragos distintivos de nossa ¢poca, estabelecendo um didlogo necessério com a tradigéo, no para encontrar correspondéncias, mas para entender de onde viemos e de qual patamar movimentamos saberes ¢ articulamos novo, O MOMENTO CONTEMPORANEO Varios autores (por exemplo, Bauman, 2001, 1999; Bucci & Kehl, 2004; Bezerra Jr., 2002, 2001; Chouliaraki & Fairclough, 1999; Freire Costa, 2004; Fabricio, 2004; Friedman, 2000; Rolnik, 1997; Senet, 1999, 1988; « Thompson, 1995) descrevem uma multiplicidade de fendmenos — freqiientemente agrupados sob a denominacao geral de “globalizacio” — e sublinham algumas de suas caracteristicas mais eloqiientes, dentre as quais: "Hid uma diversidade conceitual, buscando caracterizar @ momento contemporinco, que pode ser ‘etificada nas tentativasdiferenciadas de construgio de conhecimento sobre processor ¢ reconfigurages em. ILancotenca srucana como snicn De pemencE mE AT 1) a transmaciolizagio das dimensdes politica ¢ econémica ¢ a exacetbacso dos aspectos constitutivos do tripé da modemnidade — mercado, tée- nica ¢ individualismo — como fatores marcantes de uma sociedade de excessos (mercadologizacio de quase toda a vida social ¢ cultural, sobrecarga de informagies, onipresenca da midia ¢ hiperindividualismo); 2) a compressio espago-tempo possibilitada pela velocidade da circulagso de discursos ¢ imagens disponibilizados em tempo real pela TV ou pela internet, que, 20 produzirem uma megaestimulagio visual ¢ cognitiva, vém tornando os regimes de atencio, concentracao ¢ percepgao cada vex mais ripidos, instantineos, multifocais ¢ fragmentétios, fabricando no- vos espacos de visualidade, de experimentacéo ¢ de construgio de sen- tido (como, por exemplo, espagos e simuladores virtuais e hologrificos); 3) a mestigagem de discursos ¢ priticas tradicionalmente pertinentes a dominios discretos (presente nos processos de hibridagio de piiblico © privado, metcado ¢ educagiolsaide, politica ¢ marketing, midia ¢ vida, tecnologia ¢ corpo, entre outros); 4) os novos roteiros de subjetivagio decorrentes da estruturagio das rela- gGes sociais como consumo; do imperativo social ¢ moral da imediatici- dade do prazet e da satisfagio; do culto 4 aparéncia ¢ a0 corpo pro- dutivo, saudivel, emafosma, visivel ¢ tecnolagizado; da tendéncia 20 declinio da interioridade ¢ da reflexividade como valores; ¢ do incre- mento da fisicalizagio da nogio de “eu”; a desvalorizagio de compromissos comunais ¢ a conseqiiente privatizagao das agdes na busca de solugdes individuais para proble- mas produzidos socioculturalmente; e, como corolitio, 6) © crescente declinio © despolitizagio do espago publico, decorrente do esvaziamento do sentido moral dessa arena. a. 0 fica claro por este breve esbago, est em o} um campo de forgas plurais que entrelaca uma séfic de novos significados, modos de pro- _dugio de sentido, priticas, téenicas, instituigbes, procedimentos de subjetiva- ‘gio_¢ telagSes discursivas, tornando_problemdtica__adagio_de_pontos de_ vista ¢ cx} Listas iro_dos fenémenos sociais. O- tapas ens ann 15) ‘modemidade recente (Chouliarai & Faielough. 1999), Heed efi (Gilden, Deck Lash 197), deride gi ese 000) fordismo (Kalantzis & Cope, 2000), capitalisma acelerado (Gee, 2000), Império (Hardt & Negri. 22001), hipermodernidade (cf a materia sobre filésof Gilles Lipovetshy, publica no cadern “Mass” da Fotha de S Paulo cen 14 de margo de 2004) ete. 468 Branca FaLaneiia Fassico, reconhecimento da complexidade dessa “uaa movente” que caractetiza os nnossos dias vem afetando parte da producio de conhecimento na érea de LA (por exemplo, Fairclough, 2002; Chouliaraki & Fairclough, 1999; Moita : Lopes, 2001; Ostermann, 2003), Esses_estudos m_a_linguagem conectada_a_um_conjunto de + relagies em pe permanente fluruacio, por_enten- der que ela ¢ inseparivel das préticas sociais ¢ discursivas que constroem, “cognitivas ¢ desejantes de muitos estudos contemporineos. em LA € focalizar a linguagem como pritica social ¢ observa-la em uso, imbricada em ampla amalgamacio de fatores.comtextwais... EPISTEMOLOGIAS CONCORRENTES EM LINGU{STICA APLICADA: MUTAGOES EM CURSO tipo de compreensio apontado acima vem provocando nos estudos que se debrugam sobre as priticas lingiifsticas um interesse_explicito em analisar a fines de ame pepe nero waneisilinas (Sorin & Icanti, 1998), com vistas ao estabelecimento de seu vinculo com as epistemologias ¢ os questionamentos suscitados pela vida social contempori- nea. Esse ponto de vista ¢ fruto do entendimento de que os fendmenos sociais s6 existem inseridos em um campo de problematizagbes, o_que.torna mais ifs sauna lngsseem como objeto sudnoro, ‘existe em si mesmo e dentro de um domfnio claramente delimit — linha de investigacao tradicional que ainda norteia significativa parcela da produgio de conheci- mento no campo de estudos lingiisticos, tanto no chamado “niicleo duro” da lingistica (cf. Rajagopalan, 2003) quanto_na lingilstica aplicada. E por tal razio que a LA se encontia em momento de revisio de suas bases epistemoldgicas, a reboque da compreensio 1) de que, se a linguagem é uma pritica social, a0 estudarmos a lingua- gem estamos estudando a sociedade ¢ a cultura das quais ela ¢ parte constituinte ¢ constitutiva; 2) de que nossas priticas discursivas no sio neutras, ¢ envolvem esco- thas (intencionais ou nao) idcolégicas ¢ politicas, atravessadas por re- lagbes de poder, que provocam diferentes efeitos no mundo social; 3) de que hé na contemporancidade uma multiplicidade de sistemas semidticos em jogo no processo de construcio de sentidos. [LavcotsTica arcana COMO EsPAgo DE DearS HE AF Tais fendmenos so freqiientemente aludidos pelos termos “virada lin- gilstica e cultural”, “virada critica’, © “virada icdnica’. Desa forma, vem ganhando vulto na Area, desde os primeiros estudos em anilise critica do discurso (Fairclough, 1989, 1992; van Dijk, 1985; Kress & Hodge, 1979, entre outros) — com sua preocupagio em. situar sScio-historice mente as priticas discursivas ¢ associé-la 3s suas condig6es de produsio, circulado ¢ interpretagio —, 0 desenvolvimento de uma orientagio critico-rflesiva que trabalha na investigaglo de como a linguagem opera no mundo social ¢ no exame das questdes que afetam diretamente a sociedade contemporines ‘A reconfiguragio da 1A como pritica interrogadora é, entio, inseparivel da ‘enorme reorganizagio do pensamento c das priticas sociais correntes na contemporancidade. Encretanto, como jé apontado, toda idéia de reconstruc Go de conhecimentos consagrados implica persisténcias © descontinuidades, pois, a0 longo da nossa histiria, quebras de moldes ¢ derretimento de grilhoes tendem a coexistir com cinones, as vezes revestidos de outras roupagens, configurando um territério multifacctado no qual convivem miltiplas vores. Nessa perspectiva, creio que podemos di junto de tragos en- do nova postura na, campo das esmudos-lingileicas. Enrte cles, destaco ofientagao explicita para 0 desenvolvimento de uma agenda politica, de uma agenda sransformadora/intereencionsta © de uma agenda érica, decorrente da id@ia de que nossas préticas discursivas_envolvem escolhas que tém it diferenciados no mundo social ¢ nele interferem de formas variadas._ Nio obstante, esse novo horizonte de trabalho, comprometide politica fe eticamente com a transformagio social, comporta também os “ecos’, por ‘assim dizer, de procedimentos histéricos, em que propostas de. : freqiientemente resultam na substituiggo da tradicio por outros regimes jgualmence encapsuladores de condiges © perspectivas,, Muitos estudos ‘@iticos, apesar de seu potencial questionador © cee incorreram nesse gesto aptisionador, A critica contundente & tradicao levada a cabo por marcistas, neomartistas, frankfurtianos ¢ por muitos lingiistas filiados 2 linha da andlise critica do discurso parece ter sucumbido a essa “tentagio" Por cxemplo,a cides catesiana A radigio ciemtfica dx antigos no séeulo XVM scompanbada ds fea de una racionalidide radical como solucio de todos os equivocos dos periodos anecesentes, figura toss neméria como ilustrago da ritca frequentc de substituigio de conhecimentos cosagados por outros Cinones,gerundo acomodacio c submissio a nova gras, preeitos,postuldose modos de condara. 50M Brawca Faianraia Fannicro de construgéo de novas certezas no pi Embate de idéias. Invacando, miuitas vezes, uma visio determinista € ligagao entre ideologia ¢ discurso, idcologia ¢ poder, discurso « estrutura social e educagio/discur- sos empoderadores e mudanga social, formularam explicagdes correspon- dentistas © causais definitivas que parecem acenar com certezas ¢ com 0 privilégio de uma “visio clara ¢ tansparente” dos fendmenos sociais (a esse respeito, cf. discusses presentes em Pennycook, 2001; Rajagopalan, 2003; Lopes da Silva & Rajagopalan, 2004). olhar mais claro, direto ¢ verdadeiro sobre o “real”, vi idéia de linguagem ¢ teoria como represenages_de_ uma realidade, existente wwibutirla de uma nogao de pesquisa que acredita na posibilidade de um a fe independentemense 36. pi Essa potigio, identificada na filosofia e na sociologia como uma postura realista ¢ que traz consigo um trago metafisico de vontade de verdade, vem sendo criticada pela manutengio da separacdo entre (inguagem ¢ realidad" por seu determinism explicativo, que parece ignorar os aspectos inescapavelmente ideolégicos e politicos envalvidas em sua prépria forma de teorizar 0 discur- $0, 0 conhecimento e 0 mundo social (Pennycook, 2001; Rajagopalan, 2003; Moita Lopes, neste volume). “Todavia, a continuidade de uma visio representacional e determinista da linguagem vem favorecendo 0 surgimento de um espaco pari a afirmacio © 0 desenvolvimento de perspectivas contrérias; identificadas com um paradigma socioconstrucionista, elas assumem mais explicitamente a inseparabilidade de priticas discursivas, teorias e realidade social, entendendo que qualquer crivé- rio de atribuigdo de sentido & existéncia de coisas, eventos ¢ experiéncias ocorre ecessariamente no Ambito lingiistico-semintico. Seguindo essa linha, auto- res como Pennycook (2001), Moita Lopes (neste volume) ¢ Cavalcanti (2004) vim advogando uma 1A como pritica problemarizadora, que, assumindo aber- tamente suas escolhas ideolégicas, politicas ¢ éticas, submete a reexame € a A questio da representagso © suas implicagées para a dtea de estudos linglistieos € trarada em Rajagopalan, 2003; Fabricio, 2002; Martins, 2000. LLaNGoISTICA APACADA COMO ESPACO'DE DESAMENECZACES MST estranhamento continuos ndo s6 suas construgSes, como também os “vestigi- of” de priticas modemas, iluministas ou coloniais nelas presentes. Esse tipo de exercicio permanente, implicado na “pés-lingiistica” de Pennycook (2001) ou na posic’o “pés-colonialista’, implicita cm Moita Lopes (neste volume ¢ 2004) ¢ Cavaleanti (2004), torna-se refratirio & produgio de calcificagdes, engessamentos ou certezas. O que parece distin- tivo no pensamento desses autores — a partir da compreensao da dificul- dade, cada ver maior, de tracar limites sélidos entre “norma” e “desvio” — € a defesa de um hibridismo tedrico-metodolégico, do fim do ideal de neutralidade ¢ objetividade na producio do conhecimento, do questio- namento ético de todas as priticas sociais, inclusive as da prépria pesquisa, ¢ da relevincia ¢ responsabilidade sociais dos conhecimentos produzidos (cf. Moita Lopes, 2004)*. Para cles, circunscrever uma drea ¢ uma construcio que envolve escolhas politicas determinantes das formas de produgio de conhecimento, posigio que torna mais claro 0 processo de sclegio embutido em nossas teorizagdes, afiliagées e insergoes em determinados regimes de verdade legisladores de possibilidades de ser existir, de referéncias de autoridade ¢ de padrdes de “normalidade”. Tal posigio, sem desprezas:conhecimentos consagrados, nos fore a con- tinuos deslocamentos, movimentanda o angulo de observagio do centro (ie, dos paises desenvolvides ¢ dos discursos e epistemes ocidentalistas rieles produzidos’) para as franjas do sistema globalizado, para as organiza- G6es invisiveis, para as periferias, para as formas de ser consideradas subal- temas ou inferiores (quanto a sexualidade, & raga, a classe social ete-), para fo chamado terceiro mundo ¢ para os excluidos dos beneficios do desenvol- vimento, A “mudanga de rumo”, longe de se comprometer com a “salvagio” TDuramea Vil Congresso Brasileiro de Lingiities Aplicada, realizado na PUC-SP em outubro de 12004, véros lings respaldaram essa diretrizes em plendrias, conferéncias « meras-redondas — entre signiicados de evar 0 progress aos tertiios' ‘Gantor nos mostra que © processo de ocidentalizagio ‘do mundo gerou uma série de narrativasalteritiria seculares que decretaram a inferioridade do. “outro ‘colonizado ¢ deficiente, cm contraste com 0 ideal de superioridade da identidade europeia: moderna, “ewemvolvida e tluminada pelas luzes da rani. Moica Lopes 8 Fabricio (2005) angumentam, 2 partie de Venn, que a Idgiea ocidentalista ests longe de ser uma forga desgastada, jd que vextos lis sobre identidade e diferenca ainda se fazem presentes em wm periodo pér-colonial que faz 3 erties aos ideais do iluminisme. ' 52M Braves Faraetta Fasnioo de destituidos ou menos desenvolvidos, vé nesses espagos “exoedentes” a possibilidade de surgimento de novas formas de percepgio « de organizacio da experitncia néo comprometidas com ldgicas ¢ sentidos historicos vicia- dos. Trabalhos recentes em 1A sobre os significados de raga, géncro ¢ sexua- lidade consteuidos por rappers cariocas (Oliveira, 2004); sobre 0 entrclaga- mento de identidades, sentidos de masculinidade ¢ manifestagbes de violén- cia entre adolescentes infratores (Espindola, 2004); sobre a construc3o do conceite de latino-americanidade na sala de aula de espanhol como lingua estrangeira (Lessa, 2004); sobre a formagao de professores indigenas (Caval- canti, 2004) ou sobre a construgio de identidades homossexuais na midia brasileira (Moita Lopes, no prelo) sio exemplos de pesquisas cuja temdtica ¢ cuja abordagem teérica “navegam” por novos “mares”. (Os espagos marginais, bem como 0 modo de focalizd-los, seriam um Ioeus-de ocorténcia do novo, © com « derfamos aprender a “ver com outros olhos”. As pollticas envolvidas nessa Stiea para-a const fo presente-e-de futuros socials ~ aprisionadores_ ¢ mais“comprometidos imagio de situagdes de “exclusio- iversas_dreas, nto humano. E em razao dessas possibilidades que as se justificam, ¢ nio em rario de uma superioridade epistemolégica. Haveria nesses “ter- ritétios subestimados” ¢ nas priticas sociais neles desenvolvidas, bem como na mancira hibrida de constru(-las teoricamente, um campo eriativo fértil, porque mais liberto de modos de vida consagrados « de sentidos consensuais, pata a experimentagio do ainda nao-aventado ¢ do ainda nio-concebido pelos discursos que circulam no “primeira” mundo europeu ¢ anglo-sixio. Dessa forma, a La, dtea de forte tradigio anglo-saxdnica, encontra-se em processo de reconstrusio, reinventando-se, em termos de regime de “nio- verdade”, its, wma forma de vida que, em lugar de investir na delimitagio de um peril disciplinar claramence contornado, passa a apostar no didloge transfronteiras (envolvendo diversas dreas ¢ diferentes modos de produgio de conhecimento) ¢ a assimilar a metéfora da trama como modo de conhecer — entendendo que 0 conhecimento produrido ¢ as “verdades" a cle atribui- das sio deste mundo, fabricados pela prépria sociedade que neles se apéia. Para defender essa idéia © posicionar-me frente a ela de um Angulo especi- fico, busco apoio na articulagio de parte do pensamento de Nietzsche, Foucault e Wittgenstein. LinscOtsrick ARLICADA COMO FSDAGO DE DESAMRENDIZAGEN. 53 © TERRITORIO MOVENTE DA LINGUAGEM: UM OLHAR CONTEMPORANEO A idéia de que a realidade esté sempre em movimento nio & nova. Ja na filosofia antiga, os chamados mobilista: valorizavam a experiéncia sensivel ¢ sublinhavam © aspecto transitério da realidade, problematizando, assim, qual- quer idéia de permanéncia ou estabilidade; por essa razio, foram interpretados como relativistas, que concebiam a impossibilidade de um conhecimento universal (Marcondes, 1997). Assim, desde Herdclito e de seus seguidores — a partir da famosa proposigfo de que é impossivel banhar-nas nas 4guas do mesmo rio duas vezes, porque 0 rio, ¢ também nds, jd no somos os mesmos —, a idéia de que a realidade natural se caracteriza pelo movimento, pelo fluxo ¢ pela pluralidade figura no panorama filoséfico como possivel prinelpio norteador da construcio de sentidos para a experiéncia. Ao longo de nossa historia, diferentes fildsofos ¢ pensadores vém se apoiando no conceito do “sempre movente” em sew processo de construgio de conhecimento; entre cles, Nietzsche, Foucault ¢ Wit Embora ligados a tradigbes diversas otetie se es eee a0 contribuirem para a desestabilizacio de certa metafisica que nos ronda, permitem-nos uma forma mais refletida dé-wscolha © discernimento teéricos. Nietzsche, no final do século XIX, problematiza a crenga na solider ¢ na esséncia das construgées conccituais edificadas pelos sistemas filosdficos da civilizagao ocidental, referindo-se a elas metaforicamente como um tipo de conhecimento semethante a construgées mumificadas, habitantes de ar- quiteturas piramidais, em sua pretensio A imutabilidade, & eternidade © universalidade. A cssa imagem de “torre” sélida da cigncia moderna, ele con- trapde a metifora de delicada teia de aranha sobre a correnteza de um rio, firme cm sua fragilidade, apesar de assentada sobre um solo movente. Figura emblemética de um modo de pensamento ¢ de producio de conhecimento plural ¢ dindmico — que assume seu aspecto de fabricago ¢ de trabalho meticuloso em perpétuo movimento imaginative —, a metéfora nietaschiana critica os sentidos metafisicos de verdade ¢ de certeza racional presentes nos sistemas tradicionais de nomeagio ¢ de fundamentagdo estabilizante (Nietzsche [1873]1999; Franco Ferraz, 2002). Para o filésofo, qualquer ilusio ou vontade de verdade carrega em si uma busca metaflsica platdnica advinda do desconhecimento do processo de invengio implicado nas “teias’ de sentido que compéem o fragile flextvel territério dos saberes. A 54 ME Branca Paramus Famnicro metaforizagio ¢ vital em Nietesche, que a ela adere radicalmente, em detri- mento dos conceitos cristalizados — considerados invengées, esquecidas de sua origem ficticia, Nesse sentido, podemos dizer que 0 movimento nictzschiano de adesio & metifora argumenta em favor de outta concepsio de linguagem, nao-representacional ¢ nao-essencialista, attibuindo-lhe um potencial demitirgico: o di sobre_as_coi ue coisas em si (cE, Nietesche, [1882}2601J, © convite a ver a linguagem de tal forma ‘Rao 86 a nosio de pré-configurada como também o conceito de sujeito cartesiano pré-lingiiistico, capaz de perceber a csstncia das coisas pelas faculdades autonomas do pensamento e da introspeccio. A partir dessa compreensio de que idéias, conceitos e a prépria nogao de realidade ¢ de subjetividade sio construidas © se assentam sob uma base fluids e inconstante, Nietzsche propde, como método de trabalho, a genealogia — forma estratégica de pensamento que, consistindo em uma historicizagio sem telcologia, nfo tem como meta erguer alicerces fundacionais. E ela que possibilita a0 filésofo, no dislogo direto com a tradigio filoséfico-platdnica ¢ sua busca de verdade ¢ de conhecimento,*prdteder a uma critica radical da modernidade, no para substituf-la por outro paradigma mais verdadei- fo, mas para apontar-lhe inconsisténcias ¢ incoeréncias internas. Poderiamos dizer que Niewsche, a0 historicizar a moral e apontar a fragilidade de seus fundamentos necessariamente fabricados (Nietzsche, [1887]2002), deixa como legado uma metodologia de produgio de conhecimento cada vez mais uti- lizada por pensadores contemporineos — entre eles, Foucault. Foucault (1979a), assim como Nietzsche, nio concebe a abordagem historicista como pesquisa pela origem ou come procura pela csséncia exata das coisas, objetivando desvendar causas primeiras. Pelo contririo, em_sua abordagem, historicizar ¢ um_modo de conhecer que implica o-cxescicio de _sscutar_ahistéria, demorada_¢ mericulosamente, para compreender © pro- cesso de consirugio de nossas idéts ¢ conceitos “eseenclizdos” ao Tongo “dos iniimeros acasos © contingéncias de_nossa_experiéncia; ¢ de buscar na trucio de-utfia formagao-histérica em movimento a teia epistemolégica “na qual estamos entrelagados. (Foucault, 1979). ce Foucault sublinha a idéia de construgio ¢ produgio do mundo social presente em Nietzsche, mas também discute coma isso se dé, dentro de determinadas ordens do discurso. A genealogia por ele implementada nos mostra como nossos discursos configuram ambientes, produzem espagos ¢ Lincotsrics arLcADA.COMO ESPAGO DE DESAFUENDIZAGEM I 55 stiam nog6es de coeréncia ¢ estabilidade. A realidade, por conseguinte, nao € um dado; é um efeito, uma operago de priticas discursivas “ordenadoras” do mundo social, denominada légica cfeito-instrumento. Segundo 0 pensa- dor francés, produzimos dominios de saber (instrumentos) que incitam a produgao de discursos e a manifestagio de comportamentos. Dentro desses dominios, toda uma trama spistemoldgica se articula, dando vida a concei- tos, objetos de conhecimento, téenicas, formas de conduta e padrées de normalidade/desvio (efeitos). Na criagio ¢ na manutengao desse cfeito-rea- lidade, priticas como direcionar a atengio, estudar, controlar ¢ produzir diferenciagdes co-ocorrem, formando conjunturas de relagées de forga. Tais campos, os regime: de verdade foucaultianos, produzem a idéia de poder, pois normatizam ¢ normalizam a vida social, legitimando conceitos, crencas, valores © possibilidades de ser, agir ¢ desejar. Nessa abordagem, os sentidos seriam interessados, pois sio produzidos por uma trama de forcas © condi- gGes sécio-historicamente determinadas. Vistas pelas lentes foucaultianas, as instituigdes ¢ as diferentes dreas de conhecimento exercem poder na medida em. que sio construtoras e divulgadoras de discursos ¢ “verdades", criando faros ¢ instaurando tealidades € possibili- dades de existir ¢ agir. Contribuem, assim, ativamente para a constituigao da vida social ¢ para a geragfitvede sistemas de redes de forgas interdependentes. Essas redes, encontrando-se em relagio de co-pertinéncia, produzem um do- minio instdvel, flexivel ¢ reconfigurivel, de acordo com contextos ¢ momentos historicos especificos (cf. Foucault, 1988). Dessa forma, 0 ¢fcito-realidade seria um sistema aberto, urdido por nossas priticas discursivas, “tsa g¢man- tica_ movente. sol em proceso, Quando esses efei- Re ee Oe ee a ee, os ae de superficie (as chamadas superestruturas sociais), nao devemos, segundo o ee ee ee ‘ou de grupos especificos — visio sim ‘Na perspectiva foucaultiana, ao contririo, qu do efeito de estabilidade Eien ke oe ee ee mas na microfisica que sustenta todas as telagdes de poder, uma rede complexa ¢ intrincada de conexées dentro de um solo histérico, econémico, politica ¢ sociocultural (cf. Machado, 1979). © modo de produgio de conhecimento de Foucault apresenta implica- 6ecs epistemoldgicas pertinentes para a pesquisa contemporinea, Ele nos ensina que: 56M Branca Faianeiis Faamicn 1) nao hé campos auténomos do conhecimento desligados da cultura, da sécio-histéria ¢ do conjunto de ctengas, ages, normas € priticas propiciadoras de certos regimes de percepgio, de cognigio « de vontade; 2) sujeitos © objetos nio si0 a-histéricos; por conseguinte, 0 estudo do objeto produz o objeto; 3) as idéias de “mundo real” ¢ de “sujeito” so efeitos atrelados aos cixos. im- bricados de poder/saber/subjetividade, provocados por relagSes de forgas constituintes de arranjos scmpre provisérios, mutdveis © moduliveis. Essa perspectiva esti na base do que poderfamos chamar de orientagio gencaldgica® ¢ socioconstrucionista’ norteadoras de virios trabalhos contemporineos em ciéncias sociais. Ela pode ser complementada de forma proficua pela filosofia da eee! de Wittgenstein ({1953] 1996). A filosofia da li de Wit i eee im- fo sobre a Fella a-respeito’ da m, pois the co i a ee co ee tte leurs. O ee tae ae re © fizeram Nietzsche © Foucault) ao essencialismo, critica que serd a thnica do pensamento lingiifstico nna contemporancidade, periodo que exacerba os questionamentos, jf presentes em Nietzsche, acerca de nogies clissicas de verdade, razao, identidade, obje- tividade ¢ dos fundamentos definitivos da explicagao. O trabalho de ‘Wittgenstein, que tem como tema principal a natureza da linguagem ¢ do significado, debruga-se sobre as priticas humanas seus ttuais de nomeagio © atribuigio de sentido, Sua originalidade consiste em abalar a tradi¢io representacionista em seu proprio territério, sem a preocupagao de apresentar um modelo alternativo — procedimento também adotado por Nietzsche ¢ Foucault. Questiona-lhes as bases, desenvolvendo uma linha argumentativa a partir da problematizagio dos conceites de identidade ¢ de esséncia, Ataca a renga de que 0s significados sio entidades autnomas © de que essas entida- Divers obras indicam a adogso, pot autores contemporineos, de um dngule historicista como smetodologia de trabalho; entre ees podemos citar, além de Foucault, Laqucur (2001): hiswriciaayao do ‘modelo dos dois sexos; Freire Costa (1998); reconstrugio da formagio do ideal de amor romancicos Crary (1990): mapeamento de eventos e forgas no século XIX que, ao produairem um novo tipe de observador, ‘sompem com o regime cléssico de visualidade; Tadeu da Silva (2002): Jevantamento das diversas teorias do curriculo, cujas premissas nortciam a culcura escolar anual; Taylor, ({1989] 2000): hiseoricizagio da ida de"dentidade¢ or coheed Manguel [1996] 2002, sobre hiss daleiura,e Sid (1978) 1996), sobre a conserugio do conceito de Oriente, Na LA, Moita Lopes (2001, 2002) trabalha com uma visio sociaconstrucionista do discurso © dis identidades sociais LLincOIsTICa APICADA COMO ESPAGC DE DESAPHENDRZAGEM BE S7 des tém uma identidade essencial, representivel © verificdvel privadamente em lum “teatro mental” individual, asseverando que nio dispomos de padréo independente ¢ auténomo de aferigio para identificar uma entidade como sendo a mesma, Nossos sentidos sio convencionais, produzides ¢ sancionados Por um proceso pablico, nunca individual. ‘ ; g Por essa razio, a Unga de tet como aia, coms sistema _de agdes_simbs| em is ia in contextos sociais ¢ comunicativos, que produzem efeitos © semAnticas convenci- ieee pg ae que “o significado de uma palavra € 0 uso na linguagem” esté atrelada a_ nogio de que falar uma lingua € uma pritica social ou uma forma de vida, diz respeito 3 compréensio da linguagem Vista como jogos de Tingagem no interior dos quais o significado se constitui por processos intersubjetivos de negociacao, orientados por regras de emprego dos termos ¢ expressoes lingiiisticas. O jogo da verdade, do presente nas dreas de produgio de co- nhecimento cientifico, seria um deles. © sentido, assim, no € algo que acompanha a palavra, pois uma palavea sé se toma significativa no seu uso em determinadas ciscunstincias ¢ contextos de comunicagio. Isso quémdizer que a significacio nio é algo anterior as priticas discursivas vigentes em uma comunidade das. quais aprendemos a participar, Haveria, entio, vinculo indissocidvel entre linguagem, producio de sentidos, con- fexto, comportamento social e atividades humanas, o que aponta para o entrela- amento entre cultura, priticas discursivas, conhecimento ¢ visio de mundo, Essx nogio de linguagem como agio ¢ seu cariter cambiante, fugaz ¢ contingente tem trés implicagdes importantes. Primciramente, mostra-nos que sentidos tém a ver com 0 modo como as pessoas empregam a linguagem em suas priticas cotidianas. Indica-nos ainda que a linguagem pode ter algum grau de estabilidade sem ter de apelar pari a representacio de algo exterior a si mesma. Por iiltimo, desconstrdi a crenga no principio da exis- éncia de um significado nico para as coisas, mostrando que o problema estd em nossa tendéncia em naturalizar regras que teminam por consagrar formas de vida, idéias ¢ crengas, fazendo-nos acreditar em uma entidade que governe — nossa “compulsio” metafisica. E justamente essa idéia que aproxima 0 conceito de formas de vida wittgenstciniano das reias de aranha nietzschianas ¢ dos regimes de verdade foucaultianos: eles dizem respeito aos rerrtérios moventes articulados por noscas ~—_— 58M Branca Fatane.ta Fankicio _Slosiablios lenirgors. mnilltiplo, descentralizado ¢ instavel, presente nos trés filésofos aqui mobilizados de formas distintas, porém complementares, desestabiliza 0 modelo da “mesmi- dade” (termo emprestado a Skliar, 2003) para valorizar a Wégica do movimento, do mutivel, da phuralidade e da criagio, vendo no conceito de intersticio nao um estado de excegio, mas o modo de ser préprio do pensamento ¢ da vida. E esse foco no proceso de invengio e de fabricagio permanente do mundo social que nos acorda para a possibilidade de ¢ responsabilidade por mucancas ¢ construgdo de valores, sentidos futuros sociais possiveis. Por isso, ele ¢ indispensivel a dreas que se véem comprometidas com a investigagio das trans- formagGes sociais contemporincas. ‘A perspectiva da criagio, da multiplicidade do significado e da valori- zag3o dos contextos de uso da linguagem para a compreensio do sentido instigou, na drea da LA, o emprego de metodologias de andlise do discurso que possibilitam a reflexio sobre intersegies cult i jctividades — caso ‘da Eine junicagao, da andlise igilistica interacional e da andlise critica do discurso. Enrretanto, como ja argumentado, essas disciplinas freqiientemente incor- rem em posturas dogméticas ¢ nem sempre mantém distinc: ‘ja com relacao a “verdade”. O que as novas oricntagées cm 1A aqui discutidas propoem nio em absoluto, o abandono da fecunda teotizagio ou do rico ferramental analitico e descritivo produzido por essas areas; a0 contririo, nos convidam & utilizagdo desses construtos em continua experimentacio nos jogos de verdade, desconfiando da formagao de sistemas explicativos cocsos, desestabilizando conccitos naturalizados ¢ desprendendo-se de consensos trangiilizadores, Para isso, articulam vozes e agies freqiientemente inaudiveis nna cultura, apoiando-se tanto nas formas de produgio de conhecimento dos que vivem essas priticas como na interface de educagio, lingiiistica, socio- logia, filosofia, psicologia social, estudos culturais — entre outros campos das ciéncias sociais. A conyocagio dessa pluralidade_de discursos tem por ‘objetivo captar, de forma mais ampli, a com| ‘envolvida nos menos ars fiicos. Tem como intuito também promover © encontro de diferengas e outridades ¢, ao fricciond-las, fazer estremecer construg6es piramidais ¢ novas perspectivas. See £ uma LA engajada em. processos de descaminhos, ou, como propSe Signorini (1998), concentrada em pontos de deriva, sem alvo certeiro, que, aderindo a0 LINGOISTICA APLICADA COMO ESPACO DE DESAPRENDIEAGEN BI $9 fluxo, mo sabe onde vai chegar. Tem metas, mas tem, a0 mesmo tempo, a lareza de que no pode predeterminar ou prescrever 0 proprio destino. A. DESAPRENDIZAGEM COMO POSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO ‘Alguns pesquisadores no campo da 14 tém procurado trabalhar com um conceito de complexidade, ao entender que vérios elementos que se atranjam de determinada forma contribuem para a produgéo de certos efeitos de sentido. Para isso, cles procuram apoio na interface de diferentes campos do conhecimento. es oe oes mos abordar, na perspectiva edticas) discursivas.\ que poderia ser compreendido = —= = cor temporiinea? " —— — eee A partir da articulagio do pensamento de Nictesche, Foucault ¢ Wingenstein, podemos pensar em alguns procedimentos metodoligicos que j4 vém inspirando 0 nosso campo: © Interrogar-nos acerca da relevincia social da temética e do objetivo gerais de nossos estudos, tendo em vista os atores sociais que vivenciam as priticas envotvidesno fendmeno a ser focalizado. ®@ Refletir sobre como a temdtica vem sendo tradicionalmente tratada, atentando para consideragées que guardem tracos ¢ pressupostos de uma episteme ocidentalista (sobrecudo a construgio de relagdes de causalidade, articulagbes de obviedade, explicagées definitivas, certe- zas bem alicercadas, provas incontestiveis, idéias consensuais etc.). © Inserir 0 objeto de estudo em amplo campo de problematizagses, contextualizando-o local e globalmente no momento contemporinco. © Mapcar a rede semintica a episteme em jogo, necessariamente sustentadas por uma multiplicidade de vozes, sistemas de valoragio, discursos ¢ regimes de verdade. © Detectar os intertextos que compéem a teia de significados que constroem © abjeto. ® Estranhar sentidos essencializados © dogmas mumificados construfdos nna cultura com relasdo ao objeto, lembrando que toda etiqueta ver- bal agrega de forma pragmatica, porém unificadora, uma mirfade de estados € eventos diferentes que sé ganham sentido quando inscritos em determinado campo semintico, ligado a priticas ¢ valores G0 Branca FALAMeLtA Farnicio socioculturais em contextos especificos (cf. Freire Costa, 2001). Historicizar o objeto, compreendendo como foi produzido, dentro de qual regime de verdade, respondendo a quais conjunturas histé- ricas e socioculturais e com quais pressupostos. Ser cauteloso quanto a generalizagies possveis, circunscrevendo os sen- fidos produzides aos discursos e as priticas dos arores sociais que os fabricam ¢ vivenciam (0 que indui 0 proprio pesquisador). Para isso, ¢ necessirio certificar-se de quais so os jogos de linguagem vigentes. “Ter ciéncia de que nossas descrigSes observagbes de eventos nao sio eutras e nao podem ser feitas de fora de nossa linguagem nem da rede de significagdes que compoem 0 nosso repertério, nao nas sén- do facultada a capacidade de dela nos abstrair para produzir conhe- Cimento sobre algo. Daf ser mister a explicitagao das “regras do jogo” que conduzem o trabalho do pesquisador, apresentadas nao em ter- mos de fundamentagio teérica, mas como parimetros norteadores que nos conduzem por um percurso possivel.. Apresentar nossos trabalhos como fabricagao de“*€dificios” méveis, cujos “alicerces’ Viquidos no permitem a solidificagio do conhecimen- to “erguido", seu esgotamento ou o alcance de um alvo certeiro. A mobilidade permite a proliferacéo, a ampliagio ¢ a multiplicagio de perspectivas. Assim, podemos contemplar © movimento ¢ a continui- dade da pesquisa, indicando possiveis implicagaes ¢ desdobramentos. Pensar, operando em uma dimensio ética, nos possveis efeitos ¢ con- seqiéncias do caminho percortido pelo pesquisador, interogando-nos 4 quem eles podem atingie/beneficiar/prejudicar, ¢ de que forma. Problematizar a compreensio produzida acerca do objeto/fendmeno aque nos intriga, fazendo-o dialogar com outras perspectivas ¢ aborda- gens ¢ veifcando quais sio as regimes de verdade por elas chanceladas. Reexaminar @ trabalho, submetendo-o no x6 a critica de nossos pares, como também a critica daqueles que pensam diferentemente de nds. Engajar-nos no embate de idéias como toca argumentativa ¢ exposiie de razGes, evitando a simples refutagio de pensamentos divergentes. Revisitar posigées ¢ reayaliar nossas escolhas. Ao deparar 0 panorama aqui esbogado, afilorme a uma LA que se cons- titui como pritica problematizadora envolvida em continua questionamento das premissas que nortciam nosso modo de vida; que pereebe questoes de fagem como questées politicas: que no tem pretensbes a respostas | ae LLincotenca APLIcana Como Esnaco De Desarsascoacis ME 61 definitivas ¢ universais, por compreender que las significam a imobilizacio do pensamento; que tem clara postura epistemolégica, entendendo que a produgao de conhecimento nao € neutra, pois se encontra entretecida a um dominio de priticas sécio-historicamente situadas, podendo apenas ser apli- cada ao contexto da situagio sob investigagio; que adora um modelo de teoria critica entendida, segundo Marcondes (1998), como exame de suas proprias pressuposices € condigies de possibilidade ¢ ciente de sua propria relatividade, alcance ¢ limites; que esti aberta a reavaliacGes; ¢, principal- mente, que se preocupa com os desdobramentos éticas do conhecimento produzido. Enfim, uma drea de conhecimento que, suspeitando dos senti- dos usuais, se coloca em movimento continuo ¢ auto-reflexivo de deriva de six sem destino fixo. Aposta, assim, nos descaminhos ¢ na desaprendizagem de qualquer tipo de proposigéo axiomética como um refinamento do pro- cesso de conhecer (idéia presente na primeira epigrafe a este trabalho) — aquele que se realiza no erinsito por diferentes regimes de verdade € dife- rentes areas disciplinares, desfamiliarizando os sentidos neles presentes ¢ modificando a expetigncia da propria rea de conhecimento na qual se insere, Julgo que é dessa perspectiva que os estudos lingiisticos poderiam analisar as formas de ser do sujcito, de construgio de sentido e de produgio de conhecimento cor eas, bem como responder mais fecundamente 4s contingéncias, problematizagbes © urgéncias de nossos tempos: continua- mente questionando-sc, apostando nesse percurso némade como estimulo a0 descjo de curiosidade ¢ criagio, de pensar o impensado ¢ de, apoiando- se no conhecido, tornd-lo outro e estranhé-lo, para ousar ultrapassd-lo. Mas isso io. significa dizer que tudo € vélido em regimes de nio-verdade. A PLURALIDADE DE NOSSOS TEMPOS: ETICA COMO HORIZONTE NORTEADOR (© que ganhamos ao atrbuir privilégio 20 “entre” ¢ a0 estado de intersicio, se em nossa cultura somos educados para procurar ancoragens seguras? En- tendernos como estando sempre em transigio forga-nos ao exercicio de, a0 ‘operar com 0 conceito do frans, nao fixar nossas teorizagbes ¢ idéias em ‘essencialismos, homogeneidades ow cristalizagbes; torna-nos, também, mais livres para, exercitando. permanentemente nossa capacidade criativa, realizar transformagGes quando as julgarmos necessirias. E preciso, contudo, como 62 Bunce Farannis Fansicio nos lembra Freire Costa (2001), nao nos eximir do cuidado com os efeitos de nossas construgies para o mundo social. Nao devemos almejar 0 saber pelo saber, ou a invengao pela invencio, deslocados de compromissos éticos. Néo devemos, tampouco, nos relacionat com 0 conhecimento que produzimos como “captura’ tedrica do “real”, Em- ‘bora tecnicidades analiticas sejam parte necesséria de nossas pesquisas, clas nao deveriam se converter em mera atividade técnico-cognitiva: nossas cons- trugdes devem objetivar uma vida melhor (idéia explicitada no trabalho de virios autores anteriormente mencionados, como, por exemplo, Pennycook, Moita Lopes e Chouliaraki & Fairclough). Questionamentos dessa ordem estio implicados na epigrafe nietzschiana que também enquadra este trabalho. Mas como pensar em écica sem pensar cm universalidade? Os fildsofos € te6ricos aqui discutidos fazem-nos ver que atuar cm uma perspectiva ética ndo significa ter de apelar para conceitos fundacionais, regimes de verdade ou significados universais. Segundo Marcondes (1998), 2 partir da dtica wittgensteiniana, 0 ético se mostra na arti entre discurso ¢ agio. Os juizos éticos expressam as razbes pelas quais agimos ¢ s6 podem ser justifi- cados dentro de um sistema ético que determina seu préprio quadro geral para a agio ¢ para a justificagio, Essa posigio nos impele a hierarquizar os discursos as formas de vida com base na anilise de suas implicages, motivagées ¢ resultados para o mundo social. Podemos orientar nossas ages por valores ¢ julzos éticos, tendo em vista no valores universais, mas sim valores democraticamente definidos na esfera publica ¢ no diflogo aberto. Podemos fazer isso através da expressio das razGes pelas quais agimas, que, por sua ver, s6 podem ser justificadas inseridas em determinado sistema ¢ cm seus préprios padrées de justificagao, ao verificarmos, em interlocugio coletiva, os ganhos epistémicos dos padrées sociais de determinadas agies (cf. Chouliaraki & Fairclough, 1999). Por isso, mio devemos ver a multiplicidade de construtos presentes em uma 1A hibrida inter/transdisciplinar com temor pelo risco de perda das especificidades da 4rea ou de sua esséncia. Aprendemos na cultura a olhar com desconfianga para as misturas, os cruzamentos, as metamorfoses ¢ a diversidade; em razio disso, a pluralidade de referéncias costuma nos des- concertar, “Desaprender” a nogio de negatividade atribuida 4 mestigagem ¢ apostar na fluidez e nos entreespagos como um modo privilegiado de cons- trugio de conhecimento sobre a vida contemporinea é, assim, um grande Lingoisnea Arcana COMO ESRAGO OE DESAMRENDNRAES I G3, desafio. E para esse néo-lugar que a LA parece caminhar. Os autores aqui reunidos sao boa companhia nessa jornada. REFERENCIAS Baus, Z. (2001). Modernidade guide. Rio de Janeiro: Zahar. (1999), Globalieapia: as conegidénciar humanas. Rio de Jancivo: Zahar. Bez Je, B. (2002), O ocato da interioridade © suas repercussBes sobre a clinica, in: Platino, C. A. org). 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