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Arte na América Latina

Dawn Ades
Arte na América Latina

A Era Moderna, 1820-1980

Dawn Ades, com a colaboração de Guy Brett,


Stanton Loomis Catlin e Rosemary Q'Neill

Esta publicação autorizada e de grande fôlego,


que apresenta pela primeira vez em língua inglesa
(e agora em português) um amplo panorama da
arte latino-americana, vai do período marcado
pelos movimentos de independência, em. torno
de 1820, aos dias de hoje.

Estudando tanto as raízes indígenas como a


experiência colonial e pós-colonial dos vários
países, esta é uma obra que não só investiga os
aspectos fascinantes, embora pouco conhecidos,
da arte dos séculos XIX e XX, como também
fornece um apanhado geral da arte
contemporânea do continente latino-americano.
Entre os temas abordados citam-se: os primeiros
viajantes europeus, as representações visuais dos
heróis dos movimentos de independência, os
grandes pintores paisagísticos dos séculos XIX e
XX, a tradição gráfica popular, os muralistas
mexicanos politicamente engajados e suas
associações, o importante e complexo
movimento surrealista e, por fim, a arte óptica e
cinética das décadas de 1950 e 1960, além de
uma lista onde encontramos os nomes dos
principais artistas contemporâneos.

Este livro profusamente ilustrado - com


reproduções em cores e em preto e branco -,
além de ser 'uma original e duradoura
contribuição para o estudo da arte latino-
americana, serviu também como catálogo da
grande exposição realizada na Hayward Gallery
de Londres, em maio de 1989, que seria,
posteriormente, também apresentada em
Estocolmo e Madri.

Dawn Ades é professora catedrática de História


e Teoria da Arte na University of Essex.

Guy Brett é escritor e crítico.

Stanton Loomis Catlin é Professor Emeritus


em Museologia e História da Arte na Syracuse
U niversity.

Rosemary O'Neill é mestre em História da


Arte pela City University ofNewYork.
Título original: Art in Latina América: Tlie Modern Era, 1820-1980
Publicado por acordo com Yale University Press na ocasião da exposição
Art in Latiu America: The Modern Era, 1820-1980 na Hayward Gallery,
Londres, de 18 de maio a 6 de agosto de 1989
Copyright ©Yale University Press e South Bank Centre, Londres, 1989
Copyright © Cosa c & Naify Edições Ltda., São Paulo, 1997
Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer
meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

1 edição
0
para o português: 1997

Tradução: Maria Thereza de Rezende Costa


1 revisão:
0
Roberto Lacerda
20
revisão: Onézio Paiva
Produção gráfica: Bracher & Malta

Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro


(Fundação Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)

Ades, Dawn
A232a [Art in Latin America. Português]
Arte na América Latina: a era moderna, 1820-
1980 / Dawn Ades; com a contribuição de Guy Brett,
Stanton Loomis Catlin e Rosemary O'Neill; [tradução
Maria Thereza de Rezende Costa]. São Paulo: Cosac
& aify Edições, 1997.
380 p.

ISBN 85-86374-01-6

Tradução de: Art in Latin America:The Modern Era,


1820-1980.

1. Arte latino-americana. 2. Arte moderna - Séc. XIX


- América Latina. 3. Arte moderna - Séc. XX - América
Latina. !. Brett, Guy. Il. Catlin, Stanton Loom.is. li!. O'NeilJ,
Rosemary. IV. Título.

CDD 709.8

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à


Cosac & Naify Edições Ltda.
Rua Minerva, 110 CEP 05007-030 São Paulo - SP Brasil
Tel. (5511) 864-4134 Fax (5511) 864-8341

Ilustração da capa:
Sérgio Camargo, No. 291, 1970 (detalhe), madeira pintada, 39x40 cm;
coleção particular. Fotografia de Romulo Fialdini, cortesia do Gabinete
de Arte Raquel Arnaud, São Paulo.

Nota editorial:
Na nomenclatura de instituições, topônimos, título de obras de arte e
citação de fontes bibliográficas, esta tradução respeitou as opções adotadas
na edição original, referindo sempre em português os nomes que a autora
verteu para o inglês, e deixando em sua forma nacional aqueles que por
ela assim foram mantidos.
Sumário

Apresentação VI
Agradecimentos Xl
Introdução 1
1. A independência e seus heróis 7
2. As academias e a história da pintura 27
3.i O artista-cronista viajante e a tradição empírica
na América Latina pós-independência
por Stanton Loomis Catlin 41
3.ii Natureza, ciência e pitoresco 63
4. José MaríaVelasco 101
5. Posada e a tradição gráfica popular 111
6. O modernismo e a busca de raízes 125
7. O movimento muralista mexicano 151
8. O Taller de Gráfica Popular 181
9. Nativismo e realismo social 195
10. Universos particulares e mitos manifestos 215
11. Arte Madíl Arte Concreto-Inventiva 241
12. Um salto radical por Guy Brett 253
13. História e identidade 285
Notas 301
Manifestos 306
Biografias por Rosemary O' Neíll 338
Bibliografia selecionada 360
Créditos fotográficos 361
Índice remissivo 362
Apresentação

1992 é não somente o ano em que o mercado comum europeu


foi criado como também aquele que marca os 500 anos da pri-
meira fase de uma expansão européia: a chegada de Colombo à
América. Alguns anos atrás, embarcamos na jornada da descober-
ta da arte latino-americana e trouxemos para ser mostrado na Eu-
ropa o tesouro artístico das culturas que sucederam àquelas encon-
tradas pelos europeus. Nossa exposição explora o período subse-
qüente à independência alcança da pelos países latino-americanos,
até então colonos da Espanha e de Portugal, por volta de 1820.
Pretender dar um panorama de 160 anos da arte da América
Latina dentro das limitações inerentes a qualquer exposição não é
uma tarefa modesta. Isso nunca foi tentado antes, e como as obras
desse período estão praticamente ausentes das coleções públicas
inglesas, as únicas oportunidades que tivemos para travar conhe-
cimen to com a arte do continente latino-americano não passaram
de algumas poucas e pequenas mostras. A obra do muralista me-
xicano Siqueiros, por exemplo, não era mostrada aqui desde a gran-
de exposição mexicana na Tate Gallery em 1953, embora, nos anos
de 1980, é verdade, houvéssemos tido retrospectivas de Orozco e
Rivera, Torres-García, Frida Kahlo e Manuel Alvarez Bravo.
A exposição explora temática e historicamente a emergência da-
quilo que pode ser chamado uma estética latino-americana bem
como os problemas de identidade cultural e nacional que lhe es-
tão associados. Sentimo-nos orgulhosos de poder mostrar ao públi-
co uma parcela dessa arte inconfundível, diferente e vibrante, e
felizes porque ela poderá também ser apreciada por um maior
contingente de europeus, em Estocolmo e Madri, graças à cola-
boração dos Museus de Arte Nacional Sueco e do Ministério da
Cultura da Espanha. Somos especialmente gratos a nossos colegas
suecos Olle Granath, diretor do Moderna Museet e Gorel Cavalli-
Bjorkrnan, chefe do Departamento de Pintura e Escultura no Na-
tionalmuseum; e na Espanha, queremos agradecer a Carmen Gi-
ménez, diretora do Centro Nacional de Exposiciones e a Rosa
Garcia Brage, coordenadora geral da exposição em Madri, o apoio
dado e o interesse demonstrado por arribas, além da gentileza de
terem deixado a nosso cargo boa parte do trabalho de selecionar
e administrar a montagem da exposição.
Foi-nos de enorme valia a assistência prestada pelos ilustres mem-
bros da Consultoria: Sir William Harding KCMG, CVO, Sra. Patri-
cia Phelps de Cisneros, Sir KennethJames KCMG, Sr. Leopold de
Rothschild e Sr. David Thomas CMG, e também a que nos foi dada
pelo visconde Montgomery of Alamein, CBE, convidado pelo Sr.
Ronald Grierson, presidente do corpo executivo do South Bank,
que muito colaborou para o êxito deste projeto. O interesse de-
monstrado por todas essas pessoas foi sempre para nós uma parti-
cular fonte de estímulo.
A realização de uma exposição de tal ordem e magnitude jamais

VI
APRESENTAÇÃO

seria possível se não contasse com substancial apoio financeiro. O


South Bank Centre gostaria, por esse motivo, de agradecer espe-
cialmente a Christie's Fine Art Auctioneers, a Dos Equis Mexican
Beer/Maison Caurette, ao Banco Consolidado e ao casal Gustavo
Cisneros seus generosos patrocínios. Corn relação a Christies, nos-
sos agradecimentos são dirigidos sobretudo a Lord Carrington, ao
Sr. Charles Allsopp e a Sra. Robin Hambro e, no que tange a Dos
Equis Mexican Beer, ao Sr. Ernest Corret, diretor administrativo,
e ao Sr. John Humphries.
O planejamento da mostra e a seleção dos quadros coube a Dawn
Ades, Senior Lecturer na University ofEssex. Foi, para nós, um pra-
zer ter trabalhado com ela. Somos-lhe gratos por ter-nos ensina-
do uma nova maneira de abordar o assunto, por sua devoção, em
todos os sentidos, ao projeto e pelo entusiasmo e energia demons-
trados durante os anos de preparação. Também somos gratos a Guy
Brett - que na década de 1960 promoveu neste país a obra, den-
tre outros, de Lygia Clark e Hélio Oiticica, - pelo trabalho de se-
lecionar as obras para o setor da exposição (capítulo 12, neste li-
vro) dedicada ao desenvolvimento do construtivismo e da arte
cinética e óptica. Ele o fez com rara sensibilidade e esmero.
Gostaríamos de estender os nossos mais calorosos agradecimentos
aos membros da Comissão Organizadora pelas sugestões e ajuda
dadas durante todo o tempo de nossos trabalhos, mais especialmente
a Stanton Loomis Catlin, Professor Emeritus do Museum Studies
and Art History na Syracuse University, que cooperou na organi-
zação da exposição" Art of Latin America Since Independence",
na Galeria de Arte da Vale University em 1966; a Helen Escobedo
no México; a Angel Kalenberg, diretor do Museo Nacional de Artes
Plásticas em Montevidéu; a Waldo Rasmussen, diretor do progra-
ma internacional do Museum of Modern Art de Nova York; e a
nossos colegas Carmen Giménez e Olle Granath. Devemos tam-
bém mencionar John Golding e Edward Wright, este já falecido,
pelo incentivo que deram na ocasião em que surgiram as primei-
ras idéias sobre a montagem desta exposição. Somos gratos tam-
bém a Anthony Shelton do Museum of Mankind, de Londres, por
seus conselhos na área de arte popular.
Esta exposição não poderia naturalmente ter sido realizada sem
a cooperação dos países latino-americanos nela representados e so-
bretudo sem o empréstimo de determinadas obras, algumas das
quais pertencentes ao patrimônio nacional de cada país e muitas
outras que, até então,jamais haviam saído de seus países de origem.
Somos, por isso, especialmente gratos a nossos mutuadores. A boa
vontade por eles demonstrada, ao nos confiar suas obras para ficar
por largo tempo expostas em diferentes países, muito nos comoveu.
As intricadas negociações para o empréstimo das obras conta-
ram com o inestimável apoio e assistência de suas excelências o
embaixador do Brasil Sr. Celso de Souza e Silva; o embaixador do
Uruguai Dr. Luis Alberto Solé-Romeo; o embaixador da Venezuela
Dr. Francisco Kerdel- Vegas CBE; o embaixador da Colômbia Dr.
Fernando Cepeda; o embaixador do Equador Sr. José Correa; o
embaixador do México Sr. Bernardo Sepúlveda GCMG (Grand

VIl
r

APRESENTAÇÃO

Cross of the Order of Saint Michael and Saint George); a encar-


regada dos negócios cu banos professora Maria Luisa Fernández; o
encarregado dos negócios peruanos Sr. Gilbert Chauny; e ainda
com a dos antigos embaixadores: do Equador, Sr. Rafael Pérez y
Reyna; do México, Sr. Jorge Eduardo Navarrete, e do Peru, Sr.
Carlos Raffo. Esta exposição somente pôde ser realizada graças aos
préstimos dessas pessoas.
Também somos gratos aos embaixadores da Grã-Bretanhajunto
aos países da América Latina e a todos os que atuaram sob suas
ordens: no México, ao embaixador Sr. John Morgan CMG; na
Venezuela, ao embaixador Sr. Giles Fitz Herbert CMG; em Cuba,
ao embaixador Sr. David Brighty CMG CVO; e ainda ao antigo
embaixador Sr. Andrew Palmer CMG CVO e ao Sr. Andrew Ja-
ckson, vice-cônsul. Gostaríamos igualmente de agradecer ao Sr.
Richard Cowley, adido cultural honorário da Grã-Bretanha no
Uruguai, sua preciosa assistência. Além destes, não podemos dei-
xar de assinalar a calorosa acolhida dispensada pelo Foreign and
Commonwealth Office, em especial a do Sr. Nick Elam, chefe do
Departamento de Relações Culturais, e a do Sr. Charles Chassiron,
chefe do Departamento da América do Sul.
Com relação às embaixadas latino-americanas junto à Grã-Bre-
tanha, somos também gratos às seguintes pessoas por sua atenção,
conselhos e assistência: Sr. Marcos Camacho de Vincenzi, conse-
lheiro (assuntos culturais e de imprensa), Brasil; Dr. Ricardo Samper,
ministro-conselheiro, e Sra. Marcella Montes, Colômbia; Sr. profes-
sor Jorge Valés Martinez, primeiro-secretário (assuntos culturais),
Cuba; Sra. Ximena MartÍnez de Pérez, ministra, e Sr.Juan Larrea,
primeiro-secretário (assuntos culturais), Equador; Dra. Margo Glan-
tz, ex-ministra (assuntos culturais), e Dra. Elena Uribe de Wood,
diretora de imprensa, México; Dr. Carlos Zavaleta, ministro (assun-
tos culturais), Peru; Dra. Miriam Blanco-Fombona de Hood, con-
selheira (assuntos culturais), e Sr. Carlos Diaz-Sosa, adido cultural
e de imprensa,Venezuela.
Pelo fato de não ser muito freqüente o intercâmbio de obras de
arte entre os países da América Latina e o nosso, mostraram-se ex-
tremamente complexas as providências tanto de caráter adminis-
trativo como de ordem prática para esta exposição. Além do gene-
roso apoio que recebemos dos ministérios e departamentos gover-
namentais, contamos com a ajuda no local de nossos colegas do
British Council. Somos muito gratos a Claus Henning, diretor,
Visiting Arts Department e a Henry Meyric Hughes, diretor, bem
como a Muriel Wilson, diretora assistente,Visual Arts Department,
British Council, Londres, por terem tão prontamente oferecido seus
préstimos e demonstrado permanente interesse. Gostaríamos tam-
bém de expressar nossos mais calorosos agradecimentos a Michael
Potter, nosso diretor regional no Rio de Janeiro, e a nossos represen-
tantes John Coope, na Colômbia;]. T. W right, no Equador; Richard
Watkins, no México; Andrew Moore, no Peru; V. A. Atkinson, na
Venezuela e ainda a nosso antigo representante John England, no
Peru, bem como a nosso antigo diretor regional Patrick Jackson,
em São Paulo, por terem tido a maior boa vontade em conceder

V11l
APRESENTAÇÃO

parte do seu tempo - e também do de seus respectivos staJfs - para


a consecução deste projeto que, de certo modo, escapava a suas reais
atribuições.
Somos também especialmente gratos a certos membros do staJf
do British Council, notadamente a Marcela Ramírez, funcionária
do departamento cultural, no México; a Justin Gilbert, represen-
tante coadjutor, no Peru; a Martin Fryer, auxiliar do diretor regional,
e a Rozane M. C. de Leite, assistente nas áreas de educação e arte,
São Paulo; a Diana Pinto, coordenadora nas áreas de educação e
cultura, no Rio de Janeiro, e a Martha Malo, bibliotecária, no Equa-
dor, por terem praticamente, pode-se assim dizer, organizado esta
exposição em. seus países; sem o empenho de todas essas pessoas e
seus infatigáveis esforços, ela não se teria concretizado.
Igualmente estamos em dívida para com Rosa Amelia Sosa, na
Venezuela, e Luciano Figueiredo, do "Projeto Hélio Oiticica ", no
Rio de Janeiro.
O livro desta mostra é a publicação mais completa e substancial
já produzida em inglês sobre a arte latino-americana nos últimos
160 anos. Somos sobretudo gratos a Dawn Ades, a principal au-
tora, não só por seus ensaios, mas por todos os demais aspectos per-
tinentes à publicação, e a Guy Brett e Stanton Loomis Catlin por
suas contribuições. Angel Kalenberg auxiliou-nos com sugestões
e ajudou a dar forma aos manifestos que compõem o apêndice deste
livro - muitos dos quais publicados pela primeira vez em inglês e,
agora, em português. Agradecemos-lhe a competência e as in-
formações prestadas. Queremos também agradecer a Rosemary
O'Neill, que bravamente pesquisou e escreveu as biografias. Com
relação aos manifestos elaborados em diferentes línguas, somos mui-
to gratos a Anne W right e a Arnanda Hopkinson por suas traduções
do espanhol e a Chris Whitehouse pelas traduções do português.
O livro foi conjuntamente publicado com aYale University Press.
Somos imensamente gratos a John Nicoll, Gillian Malpass, Ca-
tharine Carver e Juliet Thorp por sua colaboração, bom humor e
pela atenção dada aos detalhes, sobretudo, considerando o fato de
terem trabalhado pressionados pelo tempo exíguo para a produ-
ção de uma publicação deste porte.
Queremos também expressar nossa gratidão a Liliana Domin-
guez, a Matthew Gale e a Keith Robison pelas pesquisas empre-
endidas tanto no que toca à seleção das obras para a exposição,
como no que se refere ao material para este livro.
Havíamos pensado, inicialmente, em pedir ao grande paisagista
brasileiro, o arquiteto Roberto Burle Marx (morto em 1994), que
criasse um jardim num dos terraços externos da Hayward Gallery.
Infelizmente não foi possível, mas gostaríamos, assim mesmo, de
expressar nossos mais profundos agradecimentos a Roberto Burle
Marx pela entusiástica acolhida que deu ao projeto em nossos pri-
meiros contatos, e também a John Miller, Su Rogers, Tim Rees e
Georgie Walton pela assistência prestada durante e após a visita de
Roberto Burle Marx a Londres, bem como à embaixada brasileira
por ter generosamente providenciado a passagem de avião para sua
visita.

IX
APRESENTAÇÃO

Arte na América Latina constituiu a peça central de uma série de


acontecimentos culturais latino-arner icanos dos quais fizeram parte
audições de música clássica e popular, programações literárias e
exposições de artesanato, tudo coordenado pelo South Bank Centre
e levado em suas salas de concerto e no Jubilee Garden.Além disso,
foi realizada uma temporada de filmes - produzidos por cineastas
mulheres da Arnér ica Latina no National Film Theatre e, em coo-
peração com o Institute ofLatin Studies da University ofLondon
-, bem como programada uma série de conferências sobre a história
da arte latino-americana. O South Bank Centre também levou a
diversas cidades da Inglaterra, começando pelo Museum of Modern
Art, Oxford, a exposição "Posada: Messenger of Mortality".
Uma obra de tal magnitude envolve enorme número de pes-
soas, e gostaríamos de estender nossa mais profunda gratidão a to-
dos aqueles com quem mantivemos relações de trabalho na Amé-
rica Latina, e cuja entusiástica acolhida tem sido um dos aspectos
mais gratifi-cantes deste empreendimento. O South Bank Centre
e os organiza dores da exposição gostariam de agradecer os conse-
lhos, o apoio e a hospitalidade das pessoas abaixo mencionadas.
Também gostaríamos de deixar registrado o nosso apreço pela difícil
tarefa realizada pelos nossos colegas do Departamento de Exposi-
ções e dos demais departamentos do South Bank Centre.

joanna Drew
Diretora, Hayward Gallery
South Bank Centre

Susan Ferleger Brades


Organizadora chefe da exposição
South Bank Centre

x
Introdução
A EXPOSiÇÃO que este livro acompanha foi concebida com o intuito de
apresentar ao público europeu a arte latino-americana da era moderna, até
certo ponto desconhecida, vale dizer, a partir do período dos movimen-
tos de independência, no início do século XIX.
Embora seja uma exposição montada em grande escala, ela não foi ela-
borada no sentido de um estudo aprofundado e certamente não pretende
ser exaustiva. A idéia foi, de certo modo, a de criar um museu temporário
da arte latino-americana que proporcionasse não uma visão de totalida-
de, mas uma visão que, mesmo parcial, fosse necessariamente seletiva. No
entanto, a amplidão da perspectiva, tanto do ponto de vista histórico como
do geográfico, permitiu a descoberta de temas e preocupações que se v.in-
culam e são comuns a todos; por exemplo: a tortuosa e fascinante relação
com a arte européia, ao tempo da independência, quando a liberdade po-
lítica se fazia acompanhar de uma dependência oficial ao modelo acadê-
mico neoclássico europeu, através de uma ambígua interação com o mo-
dernismo; as discussões entre aqueles que se punham a favor de uma arte
tendenciosa e política e aqueles que afirmavam a autonomia da arte; o
nativismo, o nacionalismo e a arte popular; o papel das artes visuais na
construção da história; e principalmente os conflitos e tensões inerentes
à busca de uma identidade cultural.
Esses temas são passados em revista dentro de uma estrutura de grande
amplitude cronológica. Cada seção ou espaço na exposição corresponde
a um capítulo no livro e se refere a um movimento, tema ou momento
específico -" Mundos particulares e mitos manifestos", por exemplo, têm
como ponto de partida a Exposição Internacional de Surrealistas, realiza-
da na Cidade do México, em 1940.
Há, é claro, muitas ausências - boa parte da pintura e da escultura do
pós-guerra, por exemplo, não foi incluída e, pelo fato de ser esta uma ex-
posição histórica, não houve a preocupação de fazer-se um apanhado mi-
nucioso da arte contemporânea na América Latina. Isso seria matéria para
outro livro e outra exposição. Os poucos artistas incluídos na parte final
- o que deixa entrever uma série de exclusões particularmente difíceis -
estão entre aqueles cuja obra se tem mostrado mais claramente compro-
metida com os problemas - políticos, históricos e culturais - que vêm
manifestando-se através dos tempos pós-independência.

o ano de 1992 marca o qüincentésimo aniversário daquilo que, sob a pers-


pectiva de um europeu, é chamado "Descobrimento da América".A im-
propriedade desta expressão do ponto de vista de um americano é paten-
te, e a designação agora geralmente adotada na América Latina e na Espa-
nha é el encuentro de dos mundos, o encontro de dois mundos. Foijustamente
com o pensamento nesse primeiro encontro que se planejou, inicialmen-
te, a montagem da exposição.
"América Latina" é claramente uma designação de sentido político e
cultural e opõe-se à de cunho geográfico, que tem caráter neutro. Origi-

1
INTRODUÇÃO

nou-se no contexto de uma política externa francesa dos anos de 1850


para referir-se às terras que haviam sido colônias espanholas e portugue-
sas - desde o rio Grande, no sul dos Estados Unidos, até o cabo Horn - e
às de fala francesa e espanhola nas Caraíbas. Apesar de, ou por essa razão
mesma, não ter sido, de início, uma expressão que houvesse brotado de um
sentido interno de unidade, por volta do final do século ela se havia tor-
nado muito útil ao argumento de uma política continental que promovia
a solidariedade econômica e a ajuda mútua para enfrentar nova forma de
exploração colonial. Culturalmente, continua sendo uma designação ex-
tremamente problemática, pois é extensiva a populações das mais distin-
tas e engloba tradições e práticas culturais que se diferenciam muitíssimo.
Esta exposição, de modo geral, evitou apresentar em detalhe a arte dos
países tomados individualmente. Poder-se-ia dizer que há aqui uma con-
tradição, pois, na maioria dos países latino-americanos, uma das maiores pre-
ocupações da arte é querer construir uma identidade cultural "nacional", e
até certo ponto esta incumbência é real. Por outro lado, em certos momentos,
o problema de identidade é abordado detalhadamente no contexto de de-
1 Mestre Vitalirio, Touro (19-l5), barro, 27x12x25 cm;
coleção jacques van de Beuque, Rio de janeiro. terminado país - a revolução mexicana e os muralistas, por exemplo. Mas,
uma abordagem de forma genérica justifica-se em vista da maciça presen-
ça dos temas acima mencionados, onde o problema de identidade é consi-
derado em escala continental, nacional e local. A idéia da América em si
como fonte de identidade, a ambição de englobar todo o continente com
sua geografia e história, foi explorada, em literatura, por Pablo Neruda em
seu grande poem.a épico Canto general. Ambição semelhante vamos encon-
trar, de forma diversa, nos murais de Orozco e Siqueiros e, acima de tudo,
nos de Rivera , que têm como assunto não só a história americana, mas tam-
bém a cultura no Novo Mundo e a relação do homem com a natureza.
A experiência de colonização compartilhada pelo continente afora, que
impôs de forma extremada uma unidade de língua e religião, foi sucedida
por uma luta quase igualmente universal pela independência que se tor-
2 Zé Caboclo, Médico auscultando, barro, 19x14x9 cm;
coleção jacques van de Beuque, Rio de janeiro. naria um mito dominante na busca da identidade política e cultural, por
mais diversa que, no futuro, fosse a história de cada um dos países.
Muito próxima da idéia de uma América, e quase sempre problemática
na relação com a questão de identidade "nacional", é a noção da "Améri-
ca indígena". Aqui, apresentam-se razões diversas para a abordagem "con-
tinental". Os habitantes originais da América, as populações indígenas, con-
tinuam a existir de muitos modos em outras nações, vivendo dentro de
determinado território cujas divisões não necessariamente correspondem
às fronteiras dos novos países criados depois da independência. A adoção
de uma única palavra para designar os habitantes originais (com base num
famoso mal-entendido dos primeiros europeus que chegaram à América,
ou seja, que tinham. eles descoberto o caminho ocidental para as Índias e,
por isso, haviam chamado os habitantes daquelas paragens de índios) im-
pôs-lhes uma unidade irreal, uma unidade que, sem dúvida, não levava em
conta as distâncias sociais e a realidade política. A imposição colonial de
uma só língua e uma só religião a um vasto território, povoado por enor-
me quantidade de diferentes tribos e nações, falando diferentes línguas, com
diferentes sistemas de crenças e diferentes estruturas social, política e eco-
nômica, nem apagou por completo tais diferenças, nem conseguiu que esses
povos assimilassem perfeitamente as culturas espanhola e portuguesa.

2
INTRODUÇÃO

A independência, quando chegou, havia sido muito mais obtida pelos


crioulos (indivíduos de descendência espanhola nascidos no Novo Mun-
do) e em beneficio deles do que dos índios. Em algumas partes, o processo
de colonização estava mais começando do que terminando com a indepen-
dência, como sucedeu nos Estados Unidos. Como escreveria Jorge Luis
Borges, falando da região do rio da Prata: "A conquista e a colonização
dagueles reinados foi uma operação tão efêrnera que um de meus ancestrais,
em 1872, conduziu a última importante batalha contra os índios, achan-
do com isso, depois de já ter passado a metade do século XIX, haver con-
cretizado a obra de conquista começada no século XVI."I Na Guatemala
e na região amazônica do Brasil, o processo de colonização, de uma 1TJ.a-
neira particularmente mortal e destrutiva, ainda continua.
Contudo, não estarnos simplesmente levantando o que poderia ser des-
cartado como "preocupação anacrônica de uns tantos antropólogos"." Ape-
sar de não ser possível apresentar aqui a arte pós-independência da América
3 Zé Caboclo, T"illle de juteboí, barro pintado, 34,5x54x14
indígena para examinarmos, em suas diferentes sociedades, a mudança, a cm; coleção jacques van de Beuque, Rio de janeiro.
tradição, bem como as inegáveis unidades ontológicas que ainda as unem,
nào há como negar-lhes a presença ou o papel crucial que representaram
na formação daquilo que, em muitos países, é visto como a maioridade
mestiça ou uma cultura mista. Tudo isso contribui para fazer do problema
de identidade na América Latina uma questão política e também cultural.
Esse problema de identidade, seja no que toca a considerações de or-
dem interna, seja em termos da relação com a Europa e com os Estados
Unidos, por mais insolúvel que pareça, vem constituindo importante fa-
tor para muitos artistas. Uma persistente sensação de que o centro artísti-
co se encontra em algum outro lugar do mundo tem levado muitos artis-
tas latino-americanos, neste século, a procurar seus modelos nas grandes
capitais do Ocidente, tal como o fizeram os pintores acadêmicos do sé-
culo XIX, da fase pós-independência. Mas ao mesmo tempo, excetuando
artistas como o surrealista Roberto Matta, que abdicaram de suas primei-
ras raizes, a ânsia de revelar a própria independência e diferenças fre-
qüenternente tem conduzido a imaginativas reinvenções e transformações
-J. Anônimo, kero de madeira, com figuras de jaguar
do modelo europeu através do contato com uma realidade americana. O (século XVIII), 18cm de altura; coleção john Stenning.
purisrno da brasileira Tarsila do Amaral, o nativismo e os gaúchos cubistas
de Rafael Barrada, o nacionalismo das paisagens plein air de José María
Velasco ou o forte tratamento intirnista das insólitas cerimônias do can-
domblé africano de Pedro Figari põem o público europeu face a uma lin-
guagem gue tanto lhes é familiar como totalmente desconhecida.
Mas isso, de maneira geral, não passava de floreios idiossincráticos que
pouco fizeram para fomentar o desenvolvimento de tradições independen-
tes. "A América Latina é caracterizada pela falta de fé na tradição artística.
A tradição nasce e morre com a geração seguinte. O artista de uma dada
geração não descobre os artistas da geração precedente.":' Menos verdade
agora do que o foi durante a primeira metade do século, esse padrão dis-
juntivo e convulsivo não tem sido fácil para os historiadores da arte oci-
dental, ainda condicionados por idéias de desenvolvimento estilístico e pelo
fato de a tradição ocidental dominante ser a de uma arte que tem ela mesma
como referência, é autônoma e se autcperpetua.
A crença de que o artista tem uma finalidade social e uma responsabi-
lidade - algo que certamente não causa surpresa em vista dos vasto e me-

3
INTRODUÇÃO

vitáveis" problemas sociais e econômicos da América Latina - tem. sido um


fator predominante gue vem influenciando tanto o remanejamento das tra-
dições européias como o desenvolvimento de uma linguagem artística
acessível e receptiva. Esse sentido de responsabilidade social, gue opera em
vários níveis e não apenas em. term.os de uma arte manifestamente "com-
prometida", é, no entanto, mais evidente na obra dos muralistas mexica-
nos gue se haviam agrupado no princípio dos anos de 1920, depois dos
grandes levantes sociais da revolução mexicana, e continuaram a pintar em
nome desta. Eles, provavelmente, mais do gue gualguer outro grupo ar-
tístico latino-americano, foram os gue conseguiram causar maior impacto
e repercussão. Embora sua obra - ainda gue diversa - costume ser chama-
da de "realista social", esta, de fato, não é a maneira adeguada para descrevê-
la,já gue, além de incorporar a observação social, ela traz em seu bojo uma
complexa alegoria e uma narrativa histórica.
A influência dos muralistas mexicanos também se fez sentir pela afir-
mação de sua fé na arte indígena e popular, indo além do gosto pelo pi-
toresco gue havia inicialmente estimulado interesse artístico nesses cam-
pos, para absorverem elementos cruciais à realização dos ideais políticos
de uma arte para o povo. E aqui voltamos à complexíssima questão da arte
mestiça e popular.
5 Anônimo, tecido com as armas do Peru (século XIX),
lã, 1,54x1 ,61m; coleção John Stenning. A separação convencional entre arte "maior" e arte popular tem sido
continuamente desafiada pelos artistas latino-americanos, tanto na teoria
C0l110 na prática, e a rejeição pela União dos Pintores de Mural da arte
"individualista burguesa" de pintura de cavalete (ver apêndice, 7.1) cons-
tituiu outro aspecto desse desafio. O fato de se ver a arte "popular" como
a verdadeira manifestação da cultura mestiça também não deixou de con-
tribuir para sua valorização neste século, além de ter levado a inúmeras e
inconclusivas tentativas para defini-Ia." Mestiço é UI11 termo elástico, al-
gumas vezes conectado com a população crioula e outras com a indígena
para distinguir esta última da primeira. Pode igualmente ser usado com
referência às populações urbanas de raça misturada por oposição às po-
pulações indígenas rurais. Em certas partes da América Latina, sobretudo
naguelas onde foi maior a importação de escravos para trabalhar na lavoura
ou nas minas - no Brasil e nas Caraíbas, por exemplo - e naguelas onde
escravos fujões acabaram por estabelecer-se, há também enorme influên-
cia africana. "Na América Latina", escreveu o romancista colombiano Ga-
br iel García Márguez,"eles nos ensinam gue somos espanhóis. Isso em parte
é verdade, claro, já gue o ingrediente espanhol representa inegavelmente
uma importante parte de nossa formação cultural, mas", prossegue ele,
"somos também africanos ... Há formas de cultura com raízes africanas nas
Caraíbas, onde eu nasci, muito diferentes daguelas das regiões do planal-
to, onde as culturas nativas são muito fortes ... "6
Outro importante ponto gue precisa ser apreciado neste contexto e tam-
bém relacionado com a barreira gue separa a arte "maior" da arte "popu-
lar", é o fato de tanto as culturas nativas como as africanas não possuírem
6 Anônimo, tampo de mesa com Cristo crucificado a tradição de uma verdadeira pintura de cavalete. Costuma-se, às vezes, ale-
(século XX, Puno), inciso em alabastro, 9,5x8,5 em; gar gue as artes "populares" e artesanatos, como o trançado de cestos, a
coleção Jaime e Vivian Liébana.
tecelagem, a cerâmica, as incrustações e os trabalhos com penas de aves,
7 Anônimo, viga de casa em madeira decorada representam o gue sobrou da arte de uma elite indígena desaparecida de-
(setembro de 1966), 2,33xO,2lxO,05 rn; coleção Jamie e
Vivian Liébana. pois das invasões espanholas (guando esculturas, arguitetura, murais e ilus-

4
INTRODUÇÃO

trações de livros foram varridos, ou para subordinar-se à visão européia


de arte, arquitetura e escrita, ou para, por esta, ser substituídos), mas que
eram, em sua essência, inferiores. Puro engano, principalmente porque tal
pensamento está baseado na noção errônea de uma hierarquia de mate-
riais.? Longe de ser inferiores, ou puramente decorativos, formas de arte-
sanato, como tecelagem ou cerâmica, sempre serviram de base para co-
nhecimentos, crenças e mitos de vital importância.
Embora a arte folclórica e popular e a arte indígena ou étnica sejam
tratadas como idênticas - principalmente no contexto das lojas de artesa-
nato -, esses termos, na realidade, abrangem diversos campos da arte e da
produção, mas pautados por diferentes tradições, funções, status e uma va-
riedade de fontes no que diz respeito às práticas culturais e artísticas, tan-
to americanas como européias. Eles também são reveladores de diferentes
graus de misturas, de "aculturação", ou do desenvolvimento de novas for-
mas. Certos aspectos da arte popular são claramente de origem européia,
como os ex-votos [ilust. 3.94-98], igualmente encontrados em toda a Eu-
ropa católica.
Algumas vezes, existe forte semelhança entre as tradições populares,
como no caso da cerâmica produzida em vilarejos de diferentes países -
por exemplo, os bois de barro cozido encontrados no Peru e no Brasil, cujas
derivações históricas, no entanto, não são as mesmas. Os bois da região de
Puno, no Peru, têm atrás de si uma longuíssima e curiosa história que pode
ser reconstituida através das estatuetas de lharnas do período incaico ou
até mesmo de antes; eles conservam a depressão circular nas costas que ori-
ginalmente existia nas estatuetas incaicas para receber oferendas ritualísticas.
Já os bois de cerâmica brasileiros têm origem relativamente recente e per-
tencem a um tipo de moderno costumbrismo (ver capítulo 3) que pode
incluir, além da figura dele, outras bem diversas: médicos, psicanalistas [ilust.
1,2,3], cenas de rua, de fábricas, etc.
As tradições nativas, contudo, são às vezes referidas como possuidoras
de uma permanência e continuidade que se mostram em surpreendente
contraste com as disjunções (acima descritas) observadas na moderna arte
"latino-americana". Até certo ponto isto é verdade, embora haja, também
aqui, consideráveis mudanças e adaptações durante os períodos colonial e
pós-independência, além dos fatores ocasionados por reações a aconteci-
mentos políticos. Há amostras de keros (vaso de bebida dos incas), por exem-
plo, que têm gravações figurando cenas da independência [ilust. 4]. Os trajes
usados na dança negrerla, no Peru, trazem retratos aplicados não só de he-
róis indígenas e crioulos da independência (Tupac Amaru e Bolivar), como
também de recentes presidentes e ditadores. A grande tradição nativa de
confeccionar máscaras ainda persiste, principalmente na região de Guerrero;
o rico e original sincretismo da imagística - não importa se proveniente
do catolicismo ou de crenças nativas - das máscaras de Guerrero foi ad-
mirado sobretudo pelos surrealistas.
Afirmar o valor e o interesse das tradições visuais indígenas e popula-
res americanas em todo o seu direito não significa subestimar os problemas
que, em virtude disso, poderiam tornar-se ainda mais graves para os artis-
tas latino-americanos em sua busca de uma moderna identidade. Todavia,
é importante reconhecer-lhes a presença, principalmente, pelo papel que
desempenham na formação da rica arte mestiça da América Latina.

5
1
A Independência e
seus Heróis
o SUCESSO dos movimentos de independência nas colônias espanho- 1.1 Deralhedailust.1.7.
las da América deu origem a novos países, a novas ordens políticas e a
intermináveis discussões sobre identidade nacional, mas não a um flo-
rescimento imediato das artes. A existência material, durante e após as
guerras contra o poder colonizador espanhol, demasiado precária e o es-
tado geral dos negócios extremamente instável não propiciavam a for-
mação de comunidades artísticas. Nenhuma exigência foi feita no senti-
do de favorecer um "movimento" nas artes que pudesse incorporar os
ideais de independência, tal como acontecera com o rieoclassicismo que,
pelas mãos de David , pôs-se a serviço da Revolução Francesa. Apesar de
o neoclassicismo, cuja influência se fazia sentir na Academia mexicana,
por volta do fim do século XVIII, estar associado com correntes refor-
mistas do pensamento nos círculos intelectuais, havia pouca oportunidade
para seu desenvolvimento. "Vinte anos de guerra civil e insurreição"-
escreveu o viajante inglês e colecionador Willianl Bullock em 1823 -
"produziram uma deplorável mudança nas artes ... atualmente, não há um
só aluno na Academia ( ... )."1 1.2 Atribuído a Antonio Salas, Retrato de Símôu Bolívar
(1829), óleo sobre tela, 59x-P cm; coleção Oswaldo
"Mais ou menos em 1830, quase todas as partes do subcontinente apre-
Viteri.
sentavam um cenário de guerra civil, violência ou ditadura; os poucos es-
critores e intelectuais ou eram obrigados a tomar partido ou forçados a
entrar em luta."? A situação, no entanto, mostrava-se um pouco menos fu-
nesta para as artes visuais, pois a demanda tanto oficial como não oficial
por retratos assegurava algum meio de vida aos pintores. Se não houve
florescimento, houve, pelo menos, certa reação nas artes visuais às emo-
ções e à dramaticidade e turbulência da vida política na América Latina,
durante a primeira metade do século XIX.
De fato, a arte visual produzida à época da independência, mais tarde,
adquiriu uma importância quase desproporcional, não só como documen-
to histórico "autêntico", que é a maneira como, hoje em dia, ela costu-
ma ser apresentada, mas também como testemunha e colaboradora do pro-
cesso da construção de uma identidade nacional. Pois a independência -
não importa o que tenha sucedido em termos de desavenças e lutas e por
mais que seus ideais se tenham distanciado da realidade política - ficou
sendo, de longe, o momento mais importante para as novas nações eruer-
gentes; as representações de seus heróis e mártires tornaram-se talisrnâs
ou ícones denotativos das crenças daqueles tempos, e reinterpretados com
reverência - ou ironia - pelos artistas no século XX, de modo a fazer
com que a identidade nacional ou latino-americana, em termos políti-
cos e culturais, permanecesse um problema não resolvido e, por isso mes-
1110, de suma importância. A imagística contemporânea da independên-
cia - retratos de heróis, líderes e mártires [ilust. 1.2,3,4,5,6,9,10], qua-

7
1.3 Anônimo, Retrato de Policarpa Salavarrieta - Marcha
para o suplício (século XIX), óleo sobre tela, 76x95 crn ;
Museo Nacional, Colômbia.

1.4 Atribuído a Epifanio Garay Caicedo, Retrato de


Policarpa Salavarrieta (século XIX), óleo sobre tela,
1,38xO,91 m; Museo Nacional, Colômbia.

1.6 Anônimo, Fuzilamento da herolna Rosa Zárate e


Nicolás de Ia Peiia (1812), óleo sobre tela, 1, 13xl,42 m;
Museo de Arte Moderno, Casa de Ia Cultura Ecuator iana,
Quito.

1.5 Anônimo, Retrato do genera! Otaniendi (século XIX),


óleo sobre chapa de estanho, 35,5x25 cm ; Museo Jacinto
Jijón y Caarnano, Quito.
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

dros cujo tema são os recentes acontecimentos históricos e vitórias con- 1.7 Anônimo, Aleyoria à proclamação da República e à
partida da jamllia imperial (fins do séc. XIX), óleo sobre
tra os exércitos espanhóis, cenas alegóricas e personificações da América tela, O,82x1,03 111; Fundação Maria Luisa e Oscar
ou das repúblicas proclamadas [ilust 1.7,8] - foi produzida numa diver- Am.ericano, São Paulo.
sidade de estilos que vai do neoclássico ao primitivismo. Estas obras en- 1.8 ]ean-Baptiste Debret, Estudo para desembarque de D.
Leopoldina 110 Brasil (s/d), óleo sobre tela, 44,5x69,5 em;
volvem tanto uma continuação como uma rejeição das tradições es- Museu Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro.
tabelecidas durante a época colonial.
Por trezentos anos, desde as invasões espanholas, no princípio do sé-
culo XVI, a Espanha (ou, no caso do Brasil, cuja história tomou diferente
rumo no século XIX, Portugal) governou da Europa, através de uma su-
cessão de vice-reis, as diferentes províncias em que se achava dividida a
América espanhola; os altos cargos oficiais eram reservados exclusivamente
aos espanhóis da Espanha, embora a sociedade crioula (os espanhóis nas-
cidos no Novo Mundo) estabeleci da nessas províncias houvesse enrique-
cido. Foram os indivíduos pertencentes a esta classe que contribuíram enor-
memente para a formação de um instrumental que acabaria por alcançar

9
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

1.9 Francisco de Paulo Alvarez, Passando pela savaua em a independência. A maioria das populações, pelo menos nos países andinos,
direção a Bogotá (século XIX), óleo sobre tela, O,65xl ,16
111; Museo Nacional, Colombia. no México e na América Central, era formada por "índios" - um termo
gue somos forçados a usar, pois não existe outro para descrever os habi-
tantes primitivos do continente, em.bora ele imponha urna unidade irreal
exigida apenas pelo próprio processo de colo nizaçáo.:' Com exceção da-
1.11 (página ao lado), Círculo do Mestre de Calamarca, guelas pessoas gue permaneceram fisica e geograficamente fora de alcance,
Escola do Lago Titicaca, Arcanjo comfu ril (fins do século as populações se tornaram católicas, apesar de serem as crenças guase sempre
XVIl), óleo sobre tecido, 47x31 cm; New Orleans
M useu m of Art. sincréticas, misturando elementos das velhas religiões com os da nova, além
de algumas significativas variações locais. Em meio a esta cultura mestiça,
desenvolveu-se uma esplendorosa arte popular nos campos da pintura (sobre
1.10 José María Espinosa, Batallta do castelo Maracaibo pano, madeira, lata, pele, papel e telas) e da escultura (em madeira e cera,
(1878), óleo sobre tela, O,90x1 ,27 m.; Museo Nacional
alabastro e pedra). Tanto no âmbito da arte popular como no da arte ofi-
Colômbia.
cial, a igreja pôs-se como fator dominante e, com exceção dos retratos de
campanha ou de figuras da sociedade, gue tiveram grande voga no século
XVIII, as artes visuais estavam guase gue exclusivamente a serviço da re-
ligião católica. Eventualmente, surgia um talento de excepcional origina-
lidade, como Diego Quispe na Cuzco do século XVII, ou algumas esplên-
didas interpretações da iconografia cristã, como o motivo do anjo com es-
pingarda, também da escola cusguenha. Em geral anônimas, essas pinturas
mostram figuras divinas, como os arcanjos Miguel ou Uriel, vestidas com
as flamejantes roupagens dos dignitários do século XVII - ou talvez dos
próprios vice-reis -, carregando de maneira proeminente um mosguete e
fazendo poses copiadas dos manuais militares da época [ilust. 1.11J.Já outras
pinturas da escola cusguenha reproduzem os santos ou os anjos num gar-
bo militar mais para o barroco."

10
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

As pinturas da Virgem no Peru e na Bolívia, que quase sempre incluem


o retrato do doador da obra, tal como as mencionadas acima, têm a mes-
ma esplêndida elaboração do detalhe decorativo, especialmente com rela-
ção às roupagens bordadas com maravilhosos dourados. É um ornato que
pouco tem a ver com o sinuoso rococó da Europa do século XVIII, pois
estava mais voltado para uma rigidez hierática e simétrica. É possível que
o lavor despendido na pintura das roupas traga consigo algo da dignidade
vista nos tecidos das culturas incaica e pré-incaica (Paracas e Nazca, por
exemplo), por meio da qual a nova religião se vê contemplada com alguns
dos valores das culturas precedentes. Uma das mais significativas imagens
é a da Virgem da Montanha, em Potosí, na Bolívia, cujas saias, ao se espar-
ramarem, são transformadas na montanha das minas de prata, desta forma
assumindo a identidade de Pacharnama, a deusa da terra andina e da cria-
ção [ilustr. 1.12].
Com a independência, o papel da Igreja como protetora das artes vi-
suais diminuiu, embora, instigada pela independência, prosseguisse a guerra
entre as autoridades civis e eclesiásticas. Mas, os retratos dos líderes e he-
róis da independência começam, algumas vezes, a tomar o aspecto de uma
imagem votiva, agora a serviço de um idealismo secular.
A ideologia da independência era, fundamentalmente, a do lluminis-
mo. Nas palavras de José Martí, escritor e revolucionário cubano morto
em ação às vésperas da independência de Cuba, em 1895, "A mensagem
revolucionária veio da França e da América do Norte sob a batina do padre
1.12 Anônimo, Vilgenl da Montanlia (antes de 1720), óleo
sobre tela, Casa acional de Ia Moneda, Potosí.
e nas mentes dos estadistas cosmopolitas para aguçar a insatisfação dos
crioulos bem-nascidos e educados, governados de longe através dos ma-
res pela lei do tributo e da forca'".
Simón Bolívar, de rica família crioula há muito estabeleci da em Ca-
racas, passou parte de sua juventude na Europa onde assistiu à coroação
de Napoleão. De formação intelectual inteiramente moldada pelo pensa-
mento dos iluministas - leitor de Rousseau, Mirabeau e Voltaire, este o
seu favorito -, tinha muita coisa em comum com outros pensadores revo-
lucionários americanos da época, inclusive com Hidalgo, cuja insurreição
de 1810 é tida, apesar de abortada, como o ponto de partida da luta me-
xicana pela independência. Bolívar, por sua vez, era imensamente admirado
pela Europa liberal. Byron deu a sua escuna o nome de Bolívar e chegou
a hesitar se deveria juntar-se àqueles que estavam lutando pela indepen-
dência na Am.érica do Sul ou aos que travavam uma guerra na Grécia.
Objeto de inúmeras caricaturas que lhe eram simpáticas, Bolívar via-se fre-
qüenternente comparado com Napoleão. Tais comparações tiveram lugar
certo em sua iconografia, como o retrato de 1857 feito pelo artista chile-
no Arayo Gómez, que coloca Bolívar em cima de um cavalo branco em-
pinando-se contra um fundo que tinha mais a ver com os Alpes do que
com os Andes, numa referência direta ao quadro de David, Napoleão cru-
zando os Alpes. A primeira vez que se usou o espetacular retrato eqüestre
de David foi provavelmente em 1824, numa gravura de S.W. Reynolds,
que acrescenta os nomes "Bolivar" e "O'Higgins" ao de "Bonaparte ", ins-
crito no rochedo alpino. Mas, Bolívar rejeitava tais comparações: "Eu não
sou Napoleão, não quero ser ele, nem quero imitar César (... ) o título de
libertador é superior a todos os que já recebi.:" (Ele fora agraciado com o
título de "libertador", na cidade venezuelana de Mérida em junho de 1813.)

12
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

Os termos de referência de Bolívar, surpreendente e obstinadamente eu-


ropeus, foram tomados principalmente do Iluminismo, a linguagem dos
clássicos ideais repu blicanos. Ele próprio se descrevia como sendo obri-
gado a representar o papel de Bruto para salvar seu país, mas, a contragos-
to, forçado a desempenhar o de Sila.
A insatisfação com a forma que estavam tomando os novos governos e
os graves conflitos que haviam. sido, ao mesmo tempo, mascarados e de-
sencadeados pela independência, levava a um constante clima de violên-
cia."É mais fácil para os homens morrerem com honra do que pensarem
com correção. Descobriu-se que é mais simples governar quando os sen-
timentos estão exaltados e unidos do que durante a vigília de uma bata-
lha, quando emergem arrogantes, exóticas e ambiciosas idéias,"? escreveu
MartÍ. Posteriormente, durante a metade do século seguinte, "Uma fan-
tástica sucessão de déspotas excêntricos, tiranos loucos e 'homens a cava-
lo' semicivilizados tornaram conta da cena histór ica"."
Bolívar viu-se obrigado a presenciar o colapso de seu sonho de uma
pacífica e unida federação da Grã-Colômbia; a república que conseguiu
criar nos antigos vice-reinos de Nova Granada e numa parte do vice-rei-
no do Peru (correspondente, hoje, aos países Colômbia,Venezuela, Equa-
dor e Panamá) foi desintegrando-se em meio a conspirações, rebeliões e
campanhas para desacreditá-lo. Renunciou como presidente em 1830, mor-
rendo algum tempo depois nesse mesmo ano em Santa Marta, a caminho
de seu exílio voluntário, com a idade de 47 anos. Escrevendo para seu mais
próximo companheiro de armas, o general Sucre, disse: "No futuro, dirão
que libertei o Novo Mundo, mas não que consegui dar estabilidade e fe-
licidade às nações que o circundarn.?"

MartÍ culpava Bolívar por tentar impor idéias estrangeiras a uma realida-
de de natureza totalmente diversa:

A América começou a sofrer e ainda sofre por causa de sua luta para
encontrar um equilíbrio entre os incompatíveis e hostis elementos herda-
dos de um colonizador despótico e perverso, e as idéias e formas impor-
tadas que têm retardado um governo racional por faltar-lhes compre-
ensão da realidade local. O continente, desconjuntado por três séculos
de um regime que negava aos homens o direito ao uso da razão, em-
barcou numa forma de governo baseada na razão, sem pensar ou refle-
tir nas hordas iletradas que haviam contribuído para sua redenção. (... ) 10

De fato, como sugere a última passagem, o problema que diz respeito ao


tipo de governo a ser adotado esconde outro mais sério: o da escolha fun-
damental entre a indianização ou a ocidentalização da América. A própria
expressão "Novo Mundo" está irrevogavelmente ligada à primeira alter-
nativa, enquanto a expressão América Espanhola, conceito admitido por
Bolívar e outros pensadores revolucionários, alerta-nos de imediato para
a presença de um discurso ocidental.
Se,das inúmeras brochuras impressas durante as lutas pela independência,
somente umas poucas foram dirigidas aos habitantes indígenas, o que di-
zer então das escritas em alguma língua nativa? Uma das raras exceções,
significativamente, estava endereçada às populações indígenas de um país
vizinho por evidentes razões políticas: Bernardo O'Higgins, o "Supremo

13
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

Dirigente do Estado do Chile", como ele próprio se intitulava, dirigiu-se


aos "Nativos do Peru", em quichua, conclamando-os a convidarem-no, a
ele e ao seu exército de libertação, para ajudá-Ias na luta pela indepen-
dência.!'
Normalmente, foi nesses países habitados por indígenas possuidores de
uma civilização reconhecidamente avançada segundo os padrões europeus
- com escrita, pintura, escultura e arquitetura de pedra, além de um ela-
borado sistema de taxas e tributos e de bem definidas hierarquias social e
ritualística - que se manteve uma continuada resistência ao governo colo-
nialista espanhol. As lutas de ação rápida pela independência na América
colonial não podem., automaticamente, ser inseridas no contexto do bem-
sucedido movimento contra a Espanha no início do século XIX, nus lhe
forneceram. importantes precursores. A mais célebre das insurreições in-
dígenas que precederam a independência foi a de Tupac Amaru. Descen-
dente dos incas, Tupac Amaru tinha grande visão política tanto quanto à
forma de governar dos índios, como no que dizia respeito à restituição de
suas terras. Sua campanha de 1781, que contou com grande apoio popular,
terminou com sua captura e morte. Dele, somente sobraram dois retratos:
um é o que foi pintado pelo índio Sirnóri Oblitas, de Cuzco. Provavelmente,
foram pintados quando ele vivia com o intuito, como no caso de muitos
retratos de líderes revolucionários, de difundir entre as populações a ima-
gem de Tupac Amaru e manter acesa sua memória. Não é de estranhar que
só estes dois tenham chegado até nós, afinal os retratos "eram considera-
dos como passíveis de pena e como prova de atividade subversiva". 12
Havia, entretanto, idéias e interesses conflitantes entre os movimentos
indígenas de restauração. Pumacahua, também de sangue índio, foi um
acérrimo inimigo de Tupac Amaru, cuja derrota, na batalha de Tinta, contou
com sua ajuda. De ideologia conservadora, a despeito de dizer-se inca, era
suficientemente valorizado pelas autoridades espanholas para ser chama-
do pelo vice-rei, em. 1807, de "Presidente Interno de Ia Real Audiencia
de Cuzco ", a mais alta posição a que poderia aspirar um índio nos tem-
pos dos vice-reinados. Em 1814, Purnacahua juntou-se àquele que foi o
maior de todos os levantes já tentados, até a chegada de San Martín, con-
tra os espanhóis no Peru, mas ele acabou sendo derrotado pelo general
Ramírez nos picos de Umachiri.
Entre 1781 e 1814, ainda estavam muito vivas as idéias sobre o estabeleci-
mento de uma monarquia inca; houve, por exemplo, em 1805, um plano
para a restauração da estrutura político-social, o Tahuantinsuyu, e a coro-
ação de um rei inca.A influência destas idéias ainda podia ser sentida quando,
mais tarde, durante as discussões sobre formas de governo, se levantou a
possibilidade de uma monarquia. No Congresso de Tucumán em Buenos
Aires, em 1816, Belgrano defendeu a tese de que um novo governo deve-
ria inspirar-se no império inca, tese que foi duramente combatida por aqueles
que troçavam de ia monarquia de Ias ojotas (a monarquia das sandálias).':'
Teresa Gisbert, ao examinar a iconografia associada corn as idéias de
restauração da dinastia inca no contexto da independência, revela a curiosa
legitimação emprestada aos heróis da independência que acabam imersos
em nostalgia [ilust. 1.131. San Martin, que, segundo parece, não era avesso
à idéia de ver-se coroado, está retratado, num biombo, no fim de uma fila
de reis incas;já Bolívar, avesso à mesma idéia, está também mostrado num

14
1.13 Anônimo, Escudo alegórico em honra de Bolivar (1825), 1 ,08x1 ,02 m; Instituto Nacional de Cultura-Cusco; Museo Histórico Regional.
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

Iienzo (numa tela), com a cabeça pintada por cima da de Carlos IlI, numa
seqüência de monarcas que começa com os governantes incas e líderes
companheiros de lutas pela independência, entre os quais Paez e Sucre, que
se sobrepõem às figuras dos reis espanhóis, Os Recuerdos de ia Monarquia
Peruana o Bosquejo de Ia Historia de 105 lnca de Sahuaraura (1836-38, pu-
blicado em Paris, 1850) retratam a genealogia dos incas numa tradição que
remonta à Nueva corônica y buen gobiemo de Guaman Perna de AyaIa, no
princípio do século XVII, para demonstrar o sangue real do autor. Mas,
tal como as cópias de gravuras da dinastia inca feitas por viajantes europeus
no século XIX, falta às imagens de Sahuaraura aquela importância polê-
mica e revolucionária que elas deveriam possuir na época de Tupac Amaru,
e que, em certo sentido, podemos dizer, sem medo de errar, se tornaram
até pitorescas. Como escreve Gisbert:
1.14 Anônimo, Te/1/a alegórico: Homenagem a Bolívar; 'Viva
Bolivar; Viva Bollvar' (século XIX), gravura; Fundación As características de arte autóctone da era colonial atestam a existência
John Boulton, Caracas.
de uma nação indígena dentro da estrutura dos vice-rei nados, lutando
para manter sua identidade e permanecer em evidência. No século XVIII,
os nativos canalizaram suas aspirações para a política somente para vê-
Ias arruinadas pelo colapso da rebelião de 1781; a partir desta data, o
que fora uma arte cornbativa e comprometida (pintura, fachadas arqui-
tetônicas, etc.) passa a ser nostálgica reminiscência, mesmo que não ti-
vessem os patriotas crioulos se identificado com a ideologia indígena e
houvessem utilizado seus valores - que conheciam mais pela leitura dos
enciclopedistas do que por experiência própr ia - num ceriár io com
alguma coisa de Iirico.!"

Até a época da expulsão dos espanhóis pelos patriotas crioulos ainda


era possível evocar a figura do inca como parte de um sistema simbólico
ou alegórico indicativo de unidade nacional. Um candelabro de prata cu-
nhado na Inglaterra para comemorar o apoio britânico à independência
une as três figuras de Bolívar, da Britânia e de um inca. Numa gravura per-
tencente à Boulton Foundation, em Caracas, vê-se uma roda de figuras
formada por índios, mestiços e crioulos dançando em torno de um busto
de Bolívar [ilust. 1.14], Outras gravuras mostram os índios, significativa-
mente, como pano de fundo, Uma de Dubois, feita para ter larga distri-
buição na América, retrata possivelmente um pai mulato segurando uma
gravura emoldurada de Bolívar para que seja admirada por sua família,
enquanto, a distância, um grupo de índios em fila única, trazendo nas ca-
,~U[(())N beças os característicos toucados de penas eretas e enfileiradas com que
('':/;<r' ' • -.,.....::. ~/ t";'Y,,4-,ú, •... eram em geral representados na época, saem de detrás de uma igreja car-
{;'" ,,,t';;ç . • ~. '*'7''',.:4--
,/. /. .: . ,,-t'
regando uma bandeira presumivelmente simbólica da unidade nacional.
,//-,c"m;,,/2'
ç",.,,,/. Embaixo, a inscrição: "Aquí está su Libertador" [ilust. 1.16], A figura de
Bolívar baseou-se decerto nas primeiras e muito difundidas gravuras fei-
22"":' /r /'-/'4" "7"""'"' tas por Bate ou Leclerc [ilust. 1.15], onde ele aparece de bigode e cabelos
~;; .:.t(.;, '"N!1
}/"": 'ty;'uJ;;''',/
,1;('';'''- k-/)", ,;~,}.. anelados caindo sobre a testa.P
As representações da América do período colonial têm a forma de uma
.15 A. Leclerc, Sillló/l Boltvar (1819), litografia, Bogotá. mulher índia 16 Interessante interpretação deste motivo foi dada por Pedro
José Figueroa, artista de Bogotá, na tela Simôu Bolioar, libertador e pai da nação
[ilust. 1.17] para celebrar a independência definitiva de Nova Granada que
se seguiu à batalha de Boyacá em 7 de agosto de 1819. O quadro foi pre-
senteado a Bolívar na principal praça de Bogotá, durante a festa da vitória

16
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

em 18 de setembro.Ajovem república é mostrada como uma mulher índia


usando o já mencionado toucado de penas eretas, carregando arcos e fle-
chase sentada em cima da cabeça de um mítico jacaré. Ela se posta em relação
a Bolívar como uma filha (ele é chamado de Pai da Pátria);'? No entanto
- diferentemente de mui tas ou tras personificações da América -, está usando
vestido,pérolas e jóias de uma européia, porém suas feições são mais as de
uma moça mestiça; o gesto é claramente tirado da iconografia cristã e seu
aspecto tem qualquer coisa de uma virgem ou santa.

As imagens mais conhecidas de Bolívar e as que mais se aproximam das


muitas descrições que se tem dele, como a fornecida por Martí("aquele
homem de fronte alta e um rosto devorado por olhos indiferentes a baio-
1.16 Dubois, Aqui está seu libertador (século XIX),
netas e tempestades ..."), são aquelas pintadas por Gil de Castro e por José gravura colorida; coleção Bosque García, Caracas.
Maria Espinosa. Desde 1928 que Espinosa começou a pintar Bolívar, quando
estavaem Bogotá, e dele fez muitos esboços a lápis tomados ao vivo, inclu-
siveum que foi desenhado pouco antes de sua morte, mostrando-o abati-
do e prematuramente envelhecido [ilust. 1.22]. Ainda pintou vários retra-
tos de Bolívar depois de morto, tanto a pedido de estrangeiros como de
conterrâneos seus. O mais importante é o de 1864 (Bolívar: retrato do liber-
tador) [ilust.1 .18], onde certos componentes napoleônicos estão claramen-
te expressos: os braços cruzados e um rebuscado sofá ao fundo. Esse enor-
me quadro acha-se, agora, pendurado solitariamente no lugar de honra da
salaministerial do Palácio do Governo, em Caracas.
Em contraste com este, os retratos pintados por Gil de Castro, tanto o
de Bolívar como o de Olaya, o mártir da independência peruana [ilust.
1.20], levam-nos de volta à tradição colonial, com uma longa e laboriosa
inscrição sobre uma placa emoldurada, apesar de, ao mesmo tempo, a faixa
vermelha acima da cabeça do retratado identificá-Io como um moderno
revolucionário. Os detalhes em ambos estão cuidadosamente planejados:
o globo e os utensílios para escrever sobre a mesa, no retrato de Bolívar
[ilust. 1.19], referem-se à extraordinária extensão geográfica de seus fei-
tos e, por ter com seu exército cruzado a cavalo um continente, também
à extraordinária energia com que escrevia panfletos e expedia decretos aos
paíseslibertados. Gil de Castro, um mulato que já pintara retratos de pes-
soas da sociedade, antes dos movimentos de independência, juntou-se à
luta entusiasticamente e entrou em Santiago com o exército de liberta-
ção.De lá, veio com o exército de San Martín para Lima, onde se tornou
"Primer Pintor dei Gobierno dei Perú " e foi quem desenhou os uniformes
para a armada. Pintou a maior parte dos heróis da independência, reservan-
do a estes e aos chefes de estado o retrato de corpo inteiro que, em seu 1.17 Pedro José Figueroa, Simán Bolivar, libertador e pai da
pincel, adquirem qualquer coisa de uma imagem votiva. O neoclassicismo /laca"
(1819), óleo sobre tela; Quinta de Bolívar,
Colômbia.
vagamente primitivo e cinzelado dos retratos de Bolívar conserva um de-
licado e oportuno equilíbrio entre os elementos locais e os de inspiração
européia: trata-se de uma "versão provinciana e festiva do neoclassicismo "."
Seu Retrato de Simon Bolivar em Lima, de 1825, enviado à irmã de Bolívar
em Caracas, encantou o herói por sua relativa simplicidade e ausência de
ambigüidades [ilust. 1.21].
As imagens relacionadas com a independência jamais poderiam ser neu-
tras ou receber tratamento objetivo, sobretudo no clima de violência e dis-
córdias que se seguiu:

17
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

1.18 José María Espinosa, Bolívar: retrato do libertador


(186~), Palácio de Miraflores, Caracas.

1.19 José Gil de Castro, Retrato de Bolivar em Bogotá


(1830), óleo sobre tela.

(... ) a interpretação da história recente foi repetidamente "um espelho


de discórdias". Confrontados com cada versão dos fatos no momento
mesmo em que era ela criada (... ) os artistas eram chamados para ilus-
trar o pensamento de algum grupo de políticos ou de historiadores a
que tinham aderido. Dessa forma, é a precedência de um fato em rela-
ção a outro que nos serve de base para entender as circunstâncias e
conjecturas que fizeram dos retratos das lideranças e obras comemora-
tivas testemunhas dos vários projetos de nacionalidade. Unidas pela
emergência de propostas políticas conf1itantes (basicamente entre um
1.20 José Gil de Castro, O mártir Olava (1823), óleo sistema central e um federal), as imagens não só denotam as mudanças
sobre tela, 2,04x1 ,34 m; Museo Nacional de Historia, a curto prazo na cena política ou militar (memória), C01110 também, por
Lima.

18
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

recuperar certas figuras antagônicas (Hidalgo versus lturbide), traçaram


os diferentes cursos ideológicos que os países, mais tarde, iriam seguir
(o sentido da história). Sem dúvida, o peso decisivo do passado, con-
tendo a gênese da idéia de nacionalidade, sancionou os feiros do pre-
sente e instaurou os ideais do futuro.!"

o antagonismo entre diferentes interesses e ideais, entre diferentes mo-


delos da projetada "nova nação" que viria com a independência - repre-
sentado na passagem acima citada pela expressão "Hidalgo Vel'5l·15 Iturbide"
- conduz a algumas das questões já levantadas, mas agora no contexto es-
pecífico do México, e em particular à indagação: de quem era a indepen-
/
dência?
Dom Miguel Hidalgo, padre da paróquia de Dolores, iniciou o levante
contra a Espanha em 16 de setembro de 1810, com o famoso "grito de
Dolores": "Meus filhos, vocês querem ser livres? Vocês serão capazes de
lutar para tirar dos odiados espanhóis as terras roubadas de seus antepas-
sados cem anos atrás?"?" Seu programa revolucionário continha três pon-
tos principais: a abolição da escravatura, a supressão do pago de tributo e a
devolução da terra aos índios. Ele obteve maciço apoio popular entre os
índios e as populações rurais pobres; em. pouco tempo, estava conduzindo
um exército de 100.000 homens, com 95 canhões e tendo sob seu con- ,
,
trole uma das poucas impressoras existentes no México. Expediu dois , .
decretos de Guadalajara, em 5 e 6 de dezembro de 1810: o primeiro or-
denava a devolução das terras às populações indígenas, e o segundo, a aboli-
ção da escravatura, do pagamento de tributo e do papel sclla.!», embaixo,
assinado de próprio punho: "Generalísimo de América" 21 Mas praticamen-
te nenhum crioulo liberal se juntou a ele. Hidalgo foi derrotado, privado
1.22 José Mar ia Espinosa, Retrato de Bollvat, desenho a
formalmente dos poderes eclesiásticos e morto a tiros em 1 de agosto0
de lápis feito ao vivo; coleção Alfredo Boulton, Caracas.
1811, embora seu movimento prosseguisse, levado por partidários como
Morelos.
1.21 José Gil de Castro, Retrato de Simén Bollvor em Lima
Quando chegou a independência, ela tomou uma forma muito dife- (1825), óleo sobre tela, 2, 10x1,30 111; Salón Elíptico dei
rente: nem trouxe a liberdade, nem a igualdade pela qual lutara Hidalgo, Congreso Nacional, Ministerio de Relaciones Interiores,
e deixou o problema da terra para depois, para que ele explodisse cem Venezuela.

anos mais tarde na revolução mexicana de 1910.A independência foi, por


fim, alcançada através de uma pouco promissora aliança entre liberais,
1.23 Anônimo, AJi"stíl ltúrbide proclamado imperador do
maçons e crioulos conservadores, então apavorados com a ameaça das México na manliã de 19 de in aio de 1822; aquarela sobre
reformas introduzidas pelo novo governo espanhol em 1820, depois que seda, 46x60 cm; Museo Nacional de Historia, Cidade do
México (INHA).
o tirânico Ferdinando VII fora forçado a abdicar "para salvar a tradicional
Nova Espanha da Espanha radical". O crioulo Agustín de Iturbide entrou
na Cidade do México, em triunfo, à frente do Exército dos Trigarantes
(fiador da união, religião e independência), em setembro de 1821 [i1ust.
1.23], e, depois de ter apelado a Ferdinando VII para que aceitasse a coroa,
conseguiu ele próprio fazer-se coroar. Apesar do "Plan de Iguala" de Itur-
bide - por sinal, uma das mais importantes declarações da independên-
cia mexicana - proclamar o ideal da igualdade de todos "ciudadanos idó-
neos", ele era, por outro lado, tradicionalista e reacionário, enaltecedor
dos feitos espanhóis na América, além de condenar a desordenada in-
surreição de Hidalgo e ignorar as civilizações indígenas pré-hispânicas
que iriam, posteriormente, constituir importante aspecto da ideologia da
independência.

21
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

1.2-L Juan O'Gorman, Retrato de Migllel Hidalgo, (s/d),


estudo para o mural do castelo de Chapultepec, carvão
sobre papel, 99x73 cm; coleção Kristina e Ernst
Schennen, Bad Hombourg. M H!DALGO -r:

Iturbide (Agustín I) foi exaltado, ao longo de seu reinado, numa série


de obras anônimas, de inspiração mais acadêmica do que popular, e tam-
bém em retratos que igualmente tendiam para o academicismo, pintados
por José María Vázquez e José María Uriarte, os quais enfatizam um certo
esplendor imperial. Uma interessante exceção é o Retrato do libertador Agus-
tin de Iturbide, de autor anônimo, pintado em 1822 [ilust. 1.25], onde ele
aparece como um cidadão-libertador em trajes civis, contrastando com
alguns elementos de conotação imperial, como o sofá de estilo rebuscado
e a coluna meio envolta em panejarnentos, atrás dele. Mas Iturbide, exe-
cutado em 1824, diferente de Hidalgo, não foi agraciado depois de morto
1.25 Anônimo, Retrato do libertador AgllstÍIl Itúrbide com muitas imagens. Do padre Hidalgo, é compreensível que tenham so-
(1822), óleo sobre tela, 1,98x1,25m; Museo Nacional de brevivido somente algumas imagens celebrativas feitas em sua época; dentre
Arte, Cidade do México (INBA).
estas, uma pequena escultura de madeira, de Clemente Terrazas, com ins-
1.26 Claudio Linati, Migue! Hidalgo en costumes ciuils crições em nahuatl, latim e espanhol, mostrando uma benevolente figura
niilitaires et rélioieux du Mexique (Bruxelas, 1828);The
Board ofTrustees of the Victoria and Albert Museum, com um decreto na mão; e o retrato de cera semelhante ao que aqui mos-
Londres. tramos de Mareias [ilust. 1.28], feito em vida, provavelmente por um. índio,

22
HidalQo.
(1"'é·de.l~vo/l'.~.f)tUM""Jr/ cw·l.wru: d</."ltU'I'iJ-, ),,·tJel<l//tlutl /'z1U(~ú"lItlfIT/â du.,Vú·rr4lí.lSill/ú7'.qo,u/./~L/)
a'''I',.J.lIIttaÓÚUll IJnglJ/al.
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

1.27 Anônimo, Par de vasos retratando Hidalgo e a e usado como modelo para a primeira de suas imagens. Esta foi uma gra-
Virgem de Guadalupe (s/d), cerâmica vitrificada, 40x27 vura do artista italiano Claudio Linati. Em sua visita ao México depois da
em e 37,5x27 em, coleção particular.
queda de lturbide, Linati inseriu, em sua obra Costumes civils, tnilitaires et
réligieux du Mexique (1828) [ilust. 1.26], uma série de retratos dos primei-
ros heróis da independência e, significativamente, também o do imperador
asteca Moctezuma.
Linati mostra Hidalgo como um homem de meia-idade, vigoroso e de
faces coradas, um padre-guerreiro com a cruz numa das mãos, um bordão
na outra, espada na cinta, faixa vermelha, capa preta, lenço amarrado ao re-
dor do pescoço e um jovial chapéu com uma pluma. Bem diferente desta
imagem de mestiço fanfarrão é a que foi produzida, tempos depois nesse
mesmo século, por Santiago Rebull, o infeliz pintor da corte do imperador
Maximiliano. Ao contrário de Iturbide, Maximiliano era simpático ao li-
beralismo e admirava Hidalgo, mas mandou que o pintassem como um meigo
e venerável padre, de cabelos brancos e vestes pretas, e será justamente esta
imagem que passará a ser uma constante nos retratos que viriam depois, in-
clusive no mais famoso de todos,o do muralistaJosé Clemente Orozco [ilust.
1.29]. Orozco, que recusou a versão da história mexicana em contrastes
absolutos, branco/pretro, bem/mal, apoiada por Rivera, representa Hidalgo
como um padre dinâmico, mas atormentado, lutando contra a opressão do
povo e, ao mesmo tempo, tragicamente contribuindo para ela.
1.28 Anônimo, DOIII José Maria Mareias (s/d), estatueta
A introdução à Historia Documental de Mexico 11 (1964) comenta o oti-
em cera, Museo Nacional de Historia, Cidade do México
(lNAH). mismo dos crioulos contrastando-o com o pessimismo dos índios, po-

24
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS

bres e oprimidos, com sua cultura destruída pela conquista e ainda sem
ter assimilado a do "México". A linguagem radical de reformadores do
tipo de Morelos e outros, com sua recusa de diferenças raciais, que iria
repercutir pelo século afora, no final das contas em nada ajudou os ín-
dios."Na metade do século XIX, a diminuição territorial do país pro-
duzida pela derrota de 47 e o caos político foram acompanhados por
manifestações de extrema violência resultantes da coexistência de duas
nações ocupando um só território: o mestiço e o crioulo de um lado e
o mosaico indígena do outro"!". As tentativas dos indígenas para voltar a
ter algum grau de controle foram feitas através de três movimentos que
abalaram o país durante a ditadura de Santa Anna: a rebelião dos ma ias
da casta war em Yucatán, começada em 1847, a revolta de Sierra Gorda e
as invasões dos chamados "índios bárbaros" no norte. Os rnaias quase
conseguiram recuperar o controle do Yucatán. A extensão territorial em
que eles conservaram uma estrutura de organização paralela à colonial e,
mais tarde, paralela à dos governos centralizados do México, está descri-
ta com muita clareza no Livro de Tizlmin, que relata a história do ltzá,
sem nenhuma interrupção, do século VII d.e. ao século XIX. Tanto cul-
tural como economicamente, a independência foi feita para os crioulos
e não para os Índios.

1.29 José Clemente Orozco, Miguel Hidalgo (1937),


afresco, Palacio de Gobierno, Guadalajara,Jalisco.

25
2
As Academias e a
História da Pintura
A ACADEMIA REAL de San Carlos na Cidade do México, fundada em 1785,
foi a primeira academia de arte na América e a única estabelecida duran-
te o regime colonial. Foi um grande, se não desconcertante, sucesso, pois
a independência por ela adquirida da instituição que a gerou, a Academia
San Fernando em Madri, foi considerada na Espanha como um "erro po-
litico";' De fato, a descrição que faz Humboldt da vigorosa e produtiva
democracia que reinava na Academia mexicana sugere que ela teve sua im-
portância, principalmente quando sabemos que as idéias que favorecia aca-
baram resultando na independência política do México.
O relato de Humboldt foi lembrado, em tristes e diferentes circunstâncias
nos anos de 1830, por Frances Calderón de Ia Barca:

Ele nos conta que todas as noites, naqueles espaçosos salões bem ilumi-
nados por lâmpadas de Argand, centenas de jovens encontravam-se reuni-
dos,alguns fazendo esboços de moldes de gesso, outros de modelos vivos
e ainda outros que copiavam. desenhos de mobiliários (... ) e ali, todas
as classes, cores e raças se misturavam; o índio ao lado do rapaz branco
e o filho de um paupérrimo mecânico ao lado de um riquissimo senhor.
O ensino era gratuito e não se limitava a paisagens e figuras, um dos
principais objetivos era difundir entre os artistas o gosto geral pela
elegância e pela beleza da forma, bem como incentivar a indústria na-
cional. Os moldes de gesso, ao preço de quarenta mil dólares, foram des-
pachados pelo rei da Espanha, e como existem na academia várias estátuas
colossais de basalto e pórfiro, seria interessante, como observa o nosso
culto viajante, reunir esses monumentos no pátio da academia e corn-
parar o que sobrou da escultura mexicana, dos monumentos de um povo
sernibárbaro, com as graciosas criações da Gré cia e de Roma.
Que o gosto simples e nobre que distingue as edificações mexicanas,
que a sua perfeição no corte e no trabalho de pedras (... ) seja devido
ao progresso feito nesta mesma academia, disso não há menor dúvida.
O que sobrou desses belos mas mutilados moldes de gesso, das esplêndi-
das gravuras que ainda existem, fala por si; mas a presente desordem, o
estado de abandono do prédio, o desaparecimento daquelas excelentes
classes de escultura e pintura e, sobretudo, o baixo nível das belas-artes
no México sâo, nos dias de hoje, as tristes provas, se necessárias fossem,
dos melancólicos efeitos produzidos pela guerra civil e um governo
desestruturado.?

AAcademia era, como todas as outras que viriam a ser fundadas no Novo
Mundo, inquestionavelmente européia em seus objetivos estéticos e prá-
ticas, e quanto às observações de Frances Calderón de Ia Barca sobre as
esculturas sernibârbaras dos astecas, elas não passavam de um preconceito 2.1 Detalhe da ilust. 2.14.

27
AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA

corrente - apesar de que já houvesse discussões sobre o assunto no contexto


da filosofia das luzes. O jesuíta Pedro José Márquez publicou dois estudos
no começo do século nos quais afirmava que as noções de beleza são relati-
vas, e que os grandes monumentos do passado indígena deveriam ser estu-
dados em pé de igualdade com os da Grécia e de Rema." O crítico José
Bernardo Couro, por outro lado, grande defensor de Peregrín Clavé, um
dos mais influentes diretores da Academia de San Carlos depois de ter sido
restaurada por Santa Anna em 1843, rejeitava qualquer reivindicação que
pudesse ser feita a favor das obras do velho mundo indígena, que não eram,
dizia, as deles; os artistas, em vez disso, deveriam olhar para aquelas da
América Espanhola."
Em geral, as academias eram estabelecidas como parte de um progra-
ma de reformas para incentivar a vida artística e intelectual dos novos
países independentes. No Brasil, a Academia Imperial de Belas-Artes foi
fundada no Rio de Janeiro, a capital do novo império, em 1826, com o
pintor francês Jean-Baptiste Debret, que havia trabalhado no ateliê de
David, como diretor. Além desta, a única academia fundada durante essa
primeira fase de verdadeira enxurrada de independências na primeira
metade do século XIX, foi em Caracas, o centro da Grã-Colômbia de
Bolívar. O artigo 17 da Ley Orgánica de Bducaciôn Pública de Colombia Ia
Grande (18 de março de 1826) estabelecia que fossem. criadas escolas es-
peciais com classes de desenho, pintura e escultura, bem como de teoria
e desenho arquitetõnico. Foi finalmente aberta uma Academia de Pintu-
ra e Escultura na metade dos anos de 1830. Mas, muitos países tiveram
de esperar até o final do século, ou mesmo até pelo começo do século
XX; desse modo, a instituição desses estabelecimentos de arte, que cos-
tumam. ser os mais ortodoxos de todos, coincidiu com o advento da arte
moderna. No Peru, a Academia foi fundada em 1919, no mesmo ano em
que José Sabogal voltava da Europa com seu estilo nativista e influenciado
pelo fovismo.
No Paraguai, país devastado pela guerra da Tríplice Aliança (ver ao lado
a imagem de desolação que dá o pintor Juan Manuel Blanes em seu qua-
dro Paraguai ... [ilust. 2.2]) ao longo dos anos de 1860, a população de sua
capital Assunção ficara reduzida a 24.000 habitantes e a atividade artísti-
ca, por décadas, permaneceu praticamente interrompida. Em 1885, foi cria-
do o Instituto Paraguayo, e logo a seguir foi fundada a Academia de Arte
como uma subsidiária do primeiro, sob a direção do artista italiano Héctor
Da Ponte, recentemente lá chegado.
A maioria dos diretores e professores das academias era ainda importa-
da da Europa, mesmo em países que nãà possuíam instituições oficiais desse
tipo; isso fazia com que os novos artistas se aperfeiçoassem nos grandes
ateliês de artistas já estabelecidos e também com que a Europa continuas-
se a ser a Meca das artes; os mais afortunados recebiam bolsas do governo
para prosseguir os estudos na Itália, Espanha ou França.
Os fundadores das academias de arte nos novos países da América, pro-
vavelmente, compartilhavam as idéias do primeiro presidente da Royal
Academy, em Londres, Sir Joshua Reynolds, que via tais instituições como
intimamente ligadas a considerações de ordem prática e comerciais (no
2.2 Juan Manuel Blanes, Paraguai: imaçem de Sf/Q pátria
desolada (c. 1880), óleo sobre tela, 1,00xO,80 111; Museo sentido de que o aprimoramento geral do gosto iria melhorar a qualida-
Nacional de Artes Plásticas, Montevidéu. de dos trabalhos artesanais) e também ao orgulho nacional; elas eram apro-

28
AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA

priadas à dignidade de "urna grande nação comercial, culta e educada"."


Igualmente, deveriam eles compartilhar das idéias de Reynolds sobre a
tradição clássica e, com isso, reforçavam gerações de artistas em sua de-
pendência à Europa. Como instituição de ensino, os objetivos e princí-
pios da Academia foram claramente expostos por Reynolds, de 1769 a 1790,
nos discursos que todos os anos dirigia aos alunos da Academia. Boa for-
mação era aquela que fazia o aluno copiar obras de mestres do passado (es-
culturas de épocas anteriores e quadros de pintores como Rafael) e dese-
nhar à vista de modelos ao natural; Reynolds deveria perseguir um ideal
de beleza baseado mais em características gerais do que particulares e, pro-
vavelmente, também bater-se pelos efeitos de uma "nobre simplicidade e
serena grandeza" (, A pintura de temas históricos, na hierarquia das artes,
estava acima da de paisagens e retratos, e os ternas deveriam ser elevados e
estarem o mais longe possível de qualquer interesse de ordem universal:
"os grandes acontecimentos da história e da fábula greco-romana (... ) os
principais temas da Sagrada Escritura"." Com a ênfase que dava à tradi-
ção e à copia, era provável que tais idéias inibissem reações individuais a
uma realidade am.ericana. Além do mais, elas implicavam a familiaridade
do público com as obras que haviam servido de modelo - saber reconhe-
cer acertadam.ente um. empréstimo de Poussin ou Rafael, uma boa adap-
tação de Hércules ou da Vênus de Milo era façanha comparável à capaci-
dade de reconhecer uma citação de Virgílio ou Horácio. Mas, se até na Eu-
ropa, quando Reynolds estava escrevendo, tais suposições de uma cultura
corriqueira enraizada na antigüidade e no Renascimento já com.eçavam a
2.3 Juan Cordera, A banhista (s/d), óleo sobre tela,
1,50xl, 15 m; coleção Banco Nacional de México S.N.C., desaparecer, como querer então transplantar essa tradição para uma soci-
Cidade do México. edade onde somente poucos tinham alguma familiaridade com as fontes'
Essa im.propriedade básica vinha combinada com o fato de que o artista-
professor importado da Europa para as academias tinha, ele próprio, estu-
dado com artistas neoclássicos, como Raphael Mengs, em cuja obra o "gran-
de estilo" virara rotina e lugar-comum."

2.6 (página ao lado) padre Pedra Patino lxtolinque, As condições locais também mostravam-se problemáticas. A pintura do
América (1830), mármore, 2,00xO,90 m; Museo Nacional nu feminino, por exemplo, em muitos lugares era inaceitável. Quando os
de Arte, Cidade do México (lNBA). quadros de Cordero, com seus nus semi-encobertos (A banhista [ilust. 2.3],
A morte de Atala) postos em cenários tropicais, foram mostrados numa ex-
posição especial em 1864, eles chocaram o pudico povo mexicano. Os nus
do argentino Pueyrredon foram executados em segredo e, posteriormen-
te, pintados por cima. Na Venezuela, os desenhos com modelos de mulher
2.4 Felipe Gutiérrez, A caçadora dos Andes (1891), óleo
sobre tela, Museo Nacional de Arte, Cidade do México nua ao vivo eram, até 1904, proibidos na Academia.
(INBA).
Mas, havia um aspecto particular da teoria e da prática acadêmicas que ga-
nhou profundas raizes no Novo Mundo, e estamos nos referindo à pintu-
ra histórica. A força no tratamento dos grandes temas, tanto da antiga
história americana como da contemporânea (e observe-se que a temática
era das mais prolíferas), e a força no uso dos tradicionais temas europeus
acrescidos de significados modernos, combinadas com a crescente mistu-
ra não ortodoxa de classicismo e realismo, irão emprestar à pintura acadê-
mica da segunda metade do século XIX na América Latina excepcional
interesse. [ilust. 2.5,6].
Enquanto muitos pintores acadêmicos continuavam a buscar seus temas
na Europa - Santiago Rebull pintou uma versão da morte de Marat, o

30
AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA

mártir da Revolução Francesa, memoravelmente celebrada por David; mas 2.5 Juan Manuel Blanes, Revista do Rio Negro pelo general
(s/d), óleo sobre tela, 50,5x99,5 em;
Roca e seu exército
temascomo o "juramento de Br utus", com sua clara mensagem republi- Museo Municipal Juan Manuel Blanes, Montevidéu.
cana,e a "Morte de Atala" estavam também entre as preferências dos pin-
tores -, por volta dos anos de 1850 já haviam começado a aparecer te-
mas extraídos da história americana. Em 1850, juan Cordero pintou
Colombo diante dos reis católicos [ilust. 2.7], primeira obra baseada em um
tema americano vista pelo público mexicano e mostrada na exposição
daAcademia de 1851. Cordero observou que ninguém, antes dele, havia
pintado a cena; Colombo está retratado no momento em que apresenta
algumas de suas "descobertas" no Novo Mundo - um grupo de Índios
vestidos de peles estão mergulhados nas sombras, no lado esquerdo do
quadro, sendo um deles o pintor auto-retratado. O cenário de Colombo
diallte dos reis católicos vagamente lembra o pomposo tratamento imperial
que dá Oavid à Coroação de Napoleão ; e o quadro se mostra bem mais vivo
do que o rijo, pesado e frio classicismo da maioria das pinturas mexica-
nas acadêmicas dos anos de 1850. Outros pintores Jogo passaram a se-
guir Cordero na escolha de temas tirados da "descoberta" da América,
Cama Obregón com sua Inspiração de Cristovão Colotnbo [ilust. 2.8]. No
Brasil,nesta mesma época, Vítor Meireles pintava a cena da Primeira Mis-
sa celebrada no Novo Mundo.
A relevância da pintura histórica em termos de ideologias contem-
porâneas não era incomum na Europa; no México, durante o breve re-
gime de Maximiliano, os temas patrióticos foram usados como meio de
legitimar e consolidar o império: Santiago Rebull fora encarregado de
fazer uma série de retratos dos heróis da independência, inclusive os de
Hidalgo,Morelos e Iturbide. Depois da restauração da república em 1867,
foi pintada uma grande quantidade de imensas telas que reproduziam
cenas do passado pré-colombiano, como o democrático Parlamento de

31
AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA

2.7 Juan Cordero, Co lornbo diante dos reis católicos T1axcala, de Rodrigo Gutiérrez, ou a Descoberta de Pulque, de Obregón
(1850), óleos sobre tela, 1,73x2,44111; Museo Nacional de [ilust. 2.9]. No último quartel do século, porém, passou-se a dar prefe-
Arte, Cidade do México (I NBA).
rência à agressividade contida nas imagens dessa história, aquelas que pu-
nham em evidência os aspectos violentos e perversos da conquista espa-
nhola e os 300 anos de regime colonial que se seguiram; são exemplos o
Frei Bartolomeu de Ias Casas (1875) e os Episódios da conquista (1877) [ilust.
2.10,12], de Félix Par ra. A unidade nacional, a suma preocupação do
momento, cada vez mais era considerada como dependendo do sentido
de identidade, de "rnexicanidad", com fortes raizes históricas. Os anos de
regime colonial passaram a ser vistos como uma selvagem interrupção
da história mexicana, enquanto a continuidade com o passado pré-con-
quista era enaltecida.
Assim, do mesmo modo como os "europeus reviveram a Grécia, os tem-
pos medievais ou os mitos germânicos, os nacionalistas mexicanos evocavam
Netzahualcoyotl, Moctezuma e Cuauhtémoc, neles buscando inspiração
e força em sua luta contra a opressão [estrangeira]"." O medo de futuras
intervenções estrangeiras foi um fator preponderante, sobretudo depois da
2.8 José María Obregón, A inspiração de Cristovão
Colonibo (1856), óleo sobre tela, 1,47x1,06 111;Museo guerra com os Estados Unidos, que resultou, em 1848, na anexação do
Nacional de Arte, Cidade do México (INBA). Texas, e de duas invasões francesas, sendo que a segunda acabaria levando

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2.9 José Maria Obregón, Descobrimento do pu/que (s/d),
óleo sobre tela, 0,76x1 ,02 111; coleção Luis Felipe deI Vali e
Prieto.

2.10 Félix Parra, Episódios da Conquista (1877), óleo


sobre tela, 0,68x1,09 m.; Museo Nacional de Arte, Cidade
do México (INBA).

2.11 Leandro Izaguirre, Tortura de Cuaulitémoc (1893),


óleo sobre tela, 2,95x4,56 m; Museo Nacional de Arte,
Cidade do México (INBA).
AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA

ao trono o imperador Maximiliano. Foi iniciado um programa pelo go-


verno de Porfirio Díaz para erigir monumentos dos heróis nacionais na
Cidade do México; dos concluídos, o mais famoso foi o monumento em
honra de Cuauhtérnoc, inaugurado em 1887 e de autoria dos escultores
Miguel Noreria , Gabriel Guerra e Epitacio Calvo, além do engenheiro
Francisco Jiménez. A tortura de Cuauliténioc é o título de uma gigantesca
tela pintada por Leandro Izaguirre [ilust. 2.11] para a Feira Internacional
de Chicago de 1893; a figura heróica do último imperador asteca , com
seu bem acentuado perfil de índio que encara desafiadoramente a figura
cruel do invasor espanhol, era a encarnação da resistência nacional. É pos-
sível que o fato de estar, nessa época, o capital estrangeiro muito ocupado
com a exploração das riquezas naturais mexicanas tenha vindo exacerbar
ainda mais o espírito nacionalista.
Esse "indigenismo histor icista " de sentido altamente político coincidiu
com o sentimento, em especial entre os liberais, de "salvar e preservar o
que ainda restava da cultura pré-hispânica ".!" Nada disso tinha muito a
ver com o lamentável estado dos índios, muitos agora vivendo em piores
condições do que antes II e a quem bem pouco atingira o novo orgulho
mexicano e a rápida modernização do país.
Nos países onde os vestígios das civilizações nativas foram menos evi-
dentes do que no México, os heróis e fatos da independência se tinham
conservado à frente de tudo o mais na consciência do povo e, de certa
forma, igualmente ligados à preocupação com a unidade e identidade da
nação. Na Venezuela, o regime de Guzmán Blanco celebrou o centená-
rio de Bolívar em 1883 com uma avalanche de quadros, esculturas, me-
2.12 Félix Par ra , Frei Bortolomeu de Ias Casas (1875), óleo
dalhas e livros.'? Arturo Michelena, que havia trabalhado em Paris por sobre tela, Museo Nacional de Arte, Cidade do México
volta da metade da década de 1880 e cujo realismo se caracterizava pela (INBA).
leveza de estilo, pintou Miran da em Ia Carraca (1896) [ilust. 2.13] e o As-
sassinato de Sucre; Martín Tova r y Tovar cobriu o teto do Salón Elíptico
do Palacio Federal, em Caracas, com. um mural da batalha de Carabobo,
além de ter vários estudos a óleo sobre o momento da independência.
Em contrapartida , no Peru, temas saídos da história espanhola, da desco-
berta do Novo Mundo e episódios do período colonial eram os que es-
tavam em voga, como as telas de Ignacio Merino A mão de Carlos V, O
Fei pintor e seus críticos ou Colombo diante do z~overno em Salamanca. Vítor
Meireles, no Rio de Janeiro, pintou uma imensa tela da Batalha dos Cuara-
rapes, cujo tema fora tirado das invasões holandesas no Brasil durante o
2.13 Arturo Michelena, Mirando etu La Carmen (1896),
século XVII. óleo sobre tela, Galeria de Arte Nacional, Caracas.
O tratamento alegórico da história, tanto da antiga como da recente,
(como nos quadros Concórdia, de Pedro Am.érico, e Paraouai, de Blanes),
e as idéias filosóficas e sociais achavam-se, na época, tão em voga no Novo
Mundo como na Europa. Magnífico exemplo do segundo caso é o mu-
ral de Juan Cordero pintado em 1874 na escadaria da Escola Preparató-
ria Nacional, na Cidade do México; outro exemplo é O triunfo da ciência
e do trabalho sobre a t~~ttOrância e a preouiça, inspirado na filosofia positivista
do diretor da Escola, Gabino Barreda, discípulo de Cornte, cuja Oração
Cívica de 1867 propunha que a "recuperação do México se fizesse através
de uma rigorosa aplicação do conhecimento científico ... Ele terminou
seu discurso cunhando UlTl. novo lema para o novo México: 'Liberdade,
Ordem e Progresso'''. 13

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AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA

2.14 José Ferraz de Almeida Júnior, O violeiro (1899), Ao mesmo tempo que a pintura da história continuava a dominar a arte
óleo sobre tela, 1,41 xl,72 111; Pinacoteca do Estado de
oficial, pinturas de gênero, influenciadas pelo costumbrismo e riquíssimas
São Paulo.
no campo da arte popular, também passavam a fazer parte do repertório
dos pintores acadêmicos. José Correia de Lima foi o primeiro pintor acadê-
mico no Brasil, se excetuarmos Debret, a pintar a população negra (Re-
trato do intrépido marinheiro Simão [ilust. 2.17]). O violeiro [ilust. 2.14] é como
se intitula uma obra de Almeida Júnior, que, com muita felicidade, trans-
formou seu tema costumbris.ta numa cena realista; já em outros lugares,
no entanto, começava a aparecer outro tipo de indigenismo diferente do
"nacionalismo indigenista" do tema Cuauhtémoc. O velório [ilust. 2.15],
de José María jara, exposto com o título "Enterro de um indígena" na Feira
Internacional de Paris de 1889," correspondeu à expectativa do gosto eu-
2.15 José María Jara, O velório (1889), óleo sobre tela, ropeu por quadros evoca tivos das muito bem guardadas tradições religiosas
1,78x1,34 111; Museo Nacional de Arte, Cidade do
México (INBA). entre os camponeses que seriam, segundo se supunha, imunes às mudan-

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AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA

2.16 Francisco Laso, O lndio alfarero (1855), óleo sobre


tela, 1 ,35xO,86 Municipalidad
111.; de Lima Metropolitana.

2.17 José Correia de Lima, RetraIo rio intrépido marinheiro


Simão, carvoeiro rio vapor Pernambucana (c. 1853), óleo sobre
tela, 92,5x72,3 cm; Museu Nacional de Belas-Artes, Rio
de Janeiro.

çasimpostas pela modernidade". 1-1 Essa interpretação corresponde a ou-


trasimagens, corno a dada pelo pintor peruano Francisco Laso em O ín-
dio a!farero [ilust. 2.16] (ver capítulo 9), retratado como se petrificado e preso
a suasvelhastradições, não apenas intocadas, mas intocáveis pelo "progresso"
e pela vida moderna.

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