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Arte Na América Latina 1
Arte Na América Latina 1
Dawn Ades
Arte na América Latina
1 edição
0
para o português: 1997
Ades, Dawn
A232a [Art in Latin America. Português]
Arte na América Latina: a era moderna, 1820-
1980 / Dawn Ades; com a contribuição de Guy Brett,
Stanton Loomis Catlin e Rosemary O'Neill; [tradução
Maria Thereza de Rezende Costa]. São Paulo: Cosac
& aify Edições, 1997.
380 p.
ISBN 85-86374-01-6
CDD 709.8
Ilustração da capa:
Sérgio Camargo, No. 291, 1970 (detalhe), madeira pintada, 39x40 cm;
coleção particular. Fotografia de Romulo Fialdini, cortesia do Gabinete
de Arte Raquel Arnaud, São Paulo.
Nota editorial:
Na nomenclatura de instituições, topônimos, título de obras de arte e
citação de fontes bibliográficas, esta tradução respeitou as opções adotadas
na edição original, referindo sempre em português os nomes que a autora
verteu para o inglês, e deixando em sua forma nacional aqueles que por
ela assim foram mantidos.
Sumário
Apresentação VI
Agradecimentos Xl
Introdução 1
1. A independência e seus heróis 7
2. As academias e a história da pintura 27
3.i O artista-cronista viajante e a tradição empírica
na América Latina pós-independência
por Stanton Loomis Catlin 41
3.ii Natureza, ciência e pitoresco 63
4. José MaríaVelasco 101
5. Posada e a tradição gráfica popular 111
6. O modernismo e a busca de raízes 125
7. O movimento muralista mexicano 151
8. O Taller de Gráfica Popular 181
9. Nativismo e realismo social 195
10. Universos particulares e mitos manifestos 215
11. Arte Madíl Arte Concreto-Inventiva 241
12. Um salto radical por Guy Brett 253
13. História e identidade 285
Notas 301
Manifestos 306
Biografias por Rosemary O' Neíll 338
Bibliografia selecionada 360
Créditos fotográficos 361
Índice remissivo 362
Apresentação
VI
APRESENTAÇÃO
VIl
r
APRESENTAÇÃO
V11l
APRESENTAÇÃO
IX
APRESENTAÇÃO
joanna Drew
Diretora, Hayward Gallery
South Bank Centre
x
Introdução
A EXPOSiÇÃO que este livro acompanha foi concebida com o intuito de
apresentar ao público europeu a arte latino-americana da era moderna, até
certo ponto desconhecida, vale dizer, a partir do período dos movimen-
tos de independência, no início do século XIX.
Embora seja uma exposição montada em grande escala, ela não foi ela-
borada no sentido de um estudo aprofundado e certamente não pretende
ser exaustiva. A idéia foi, de certo modo, a de criar um museu temporário
da arte latino-americana que proporcionasse não uma visão de totalida-
de, mas uma visão que, mesmo parcial, fosse necessariamente seletiva. No
entanto, a amplidão da perspectiva, tanto do ponto de vista histórico como
do geográfico, permitiu a descoberta de temas e preocupações que se v.in-
culam e são comuns a todos; por exemplo: a tortuosa e fascinante relação
com a arte européia, ao tempo da independência, quando a liberdade po-
lítica se fazia acompanhar de uma dependência oficial ao modelo acadê-
mico neoclássico europeu, através de uma ambígua interação com o mo-
dernismo; as discussões entre aqueles que se punham a favor de uma arte
tendenciosa e política e aqueles que afirmavam a autonomia da arte; o
nativismo, o nacionalismo e a arte popular; o papel das artes visuais na
construção da história; e principalmente os conflitos e tensões inerentes
à busca de uma identidade cultural.
Esses temas são passados em revista dentro de uma estrutura de grande
amplitude cronológica. Cada seção ou espaço na exposição corresponde
a um capítulo no livro e se refere a um movimento, tema ou momento
específico -" Mundos particulares e mitos manifestos", por exemplo, têm
como ponto de partida a Exposição Internacional de Surrealistas, realiza-
da na Cidade do México, em 1940.
Há, é claro, muitas ausências - boa parte da pintura e da escultura do
pós-guerra, por exemplo, não foi incluída e, pelo fato de ser esta uma ex-
posição histórica, não houve a preocupação de fazer-se um apanhado mi-
nucioso da arte contemporânea na América Latina. Isso seria matéria para
outro livro e outra exposição. Os poucos artistas incluídos na parte final
- o que deixa entrever uma série de exclusões particularmente difíceis -
estão entre aqueles cuja obra se tem mostrado mais claramente compro-
metida com os problemas - políticos, históricos e culturais - que vêm
manifestando-se através dos tempos pós-independência.
1
INTRODUÇÃO
2
INTRODUÇÃO
3
INTRODUÇÃO
4
INTRODUÇÃO
5
1
A Independência e
seus Heróis
o SUCESSO dos movimentos de independência nas colônias espanho- 1.1 Deralhedailust.1.7.
las da América deu origem a novos países, a novas ordens políticas e a
intermináveis discussões sobre identidade nacional, mas não a um flo-
rescimento imediato das artes. A existência material, durante e após as
guerras contra o poder colonizador espanhol, demasiado precária e o es-
tado geral dos negócios extremamente instável não propiciavam a for-
mação de comunidades artísticas. Nenhuma exigência foi feita no senti-
do de favorecer um "movimento" nas artes que pudesse incorporar os
ideais de independência, tal como acontecera com o rieoclassicismo que,
pelas mãos de David , pôs-se a serviço da Revolução Francesa. Apesar de
o neoclassicismo, cuja influência se fazia sentir na Academia mexicana,
por volta do fim do século XVIII, estar associado com correntes refor-
mistas do pensamento nos círculos intelectuais, havia pouca oportunidade
para seu desenvolvimento. "Vinte anos de guerra civil e insurreição"-
escreveu o viajante inglês e colecionador Willianl Bullock em 1823 -
"produziram uma deplorável mudança nas artes ... atualmente, não há um
só aluno na Academia ( ... )."1 1.2 Atribuído a Antonio Salas, Retrato de Símôu Bolívar
(1829), óleo sobre tela, 59x-P cm; coleção Oswaldo
"Mais ou menos em 1830, quase todas as partes do subcontinente apre-
Viteri.
sentavam um cenário de guerra civil, violência ou ditadura; os poucos es-
critores e intelectuais ou eram obrigados a tomar partido ou forçados a
entrar em luta."? A situação, no entanto, mostrava-se um pouco menos fu-
nesta para as artes visuais, pois a demanda tanto oficial como não oficial
por retratos assegurava algum meio de vida aos pintores. Se não houve
florescimento, houve, pelo menos, certa reação nas artes visuais às emo-
ções e à dramaticidade e turbulência da vida política na América Latina,
durante a primeira metade do século XIX.
De fato, a arte visual produzida à época da independência, mais tarde,
adquiriu uma importância quase desproporcional, não só como documen-
to histórico "autêntico", que é a maneira como, hoje em dia, ela costu-
ma ser apresentada, mas também como testemunha e colaboradora do pro-
cesso da construção de uma identidade nacional. Pois a independência -
não importa o que tenha sucedido em termos de desavenças e lutas e por
mais que seus ideais se tenham distanciado da realidade política - ficou
sendo, de longe, o momento mais importante para as novas nações eruer-
gentes; as representações de seus heróis e mártires tornaram-se talisrnâs
ou ícones denotativos das crenças daqueles tempos, e reinterpretados com
reverência - ou ironia - pelos artistas no século XX, de modo a fazer
com que a identidade nacional ou latino-americana, em termos políti-
cos e culturais, permanecesse um problema não resolvido e, por isso mes-
1110, de suma importância. A imagística contemporânea da independên-
cia - retratos de heróis, líderes e mártires [ilust. 1.2,3,4,5,6,9,10], qua-
7
1.3 Anônimo, Retrato de Policarpa Salavarrieta - Marcha
para o suplício (século XIX), óleo sobre tela, 76x95 crn ;
Museo Nacional, Colômbia.
dros cujo tema são os recentes acontecimentos históricos e vitórias con- 1.7 Anônimo, Aleyoria à proclamação da República e à
partida da jamllia imperial (fins do séc. XIX), óleo sobre
tra os exércitos espanhóis, cenas alegóricas e personificações da América tela, O,82x1,03 111; Fundação Maria Luisa e Oscar
ou das repúblicas proclamadas [ilust 1.7,8] - foi produzida numa diver- Am.ericano, São Paulo.
sidade de estilos que vai do neoclássico ao primitivismo. Estas obras en- 1.8 ]ean-Baptiste Debret, Estudo para desembarque de D.
Leopoldina 110 Brasil (s/d), óleo sobre tela, 44,5x69,5 em;
volvem tanto uma continuação como uma rejeição das tradições es- Museu Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro.
tabelecidas durante a época colonial.
Por trezentos anos, desde as invasões espanholas, no princípio do sé-
culo XVI, a Espanha (ou, no caso do Brasil, cuja história tomou diferente
rumo no século XIX, Portugal) governou da Europa, através de uma su-
cessão de vice-reis, as diferentes províncias em que se achava dividida a
América espanhola; os altos cargos oficiais eram reservados exclusivamente
aos espanhóis da Espanha, embora a sociedade crioula (os espanhóis nas-
cidos no Novo Mundo) estabeleci da nessas províncias houvesse enrique-
cido. Foram os indivíduos pertencentes a esta classe que contribuíram enor-
memente para a formação de um instrumental que acabaria por alcançar
9
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS
1.9 Francisco de Paulo Alvarez, Passando pela savaua em a independência. A maioria das populações, pelo menos nos países andinos,
direção a Bogotá (século XIX), óleo sobre tela, O,65xl ,16
111; Museo Nacional, Colombia. no México e na América Central, era formada por "índios" - um termo
gue somos forçados a usar, pois não existe outro para descrever os habi-
tantes primitivos do continente, em.bora ele imponha urna unidade irreal
exigida apenas pelo próprio processo de colo nizaçáo.:' Com exceção da-
1.11 (página ao lado), Círculo do Mestre de Calamarca, guelas pessoas gue permaneceram fisica e geograficamente fora de alcance,
Escola do Lago Titicaca, Arcanjo comfu ril (fins do século as populações se tornaram católicas, apesar de serem as crenças guase sempre
XVIl), óleo sobre tecido, 47x31 cm; New Orleans
M useu m of Art. sincréticas, misturando elementos das velhas religiões com os da nova, além
de algumas significativas variações locais. Em meio a esta cultura mestiça,
desenvolveu-se uma esplendorosa arte popular nos campos da pintura (sobre
1.10 José María Espinosa, Batallta do castelo Maracaibo pano, madeira, lata, pele, papel e telas) e da escultura (em madeira e cera,
(1878), óleo sobre tela, O,90x1 ,27 m.; Museo Nacional
alabastro e pedra). Tanto no âmbito da arte popular como no da arte ofi-
Colômbia.
cial, a igreja pôs-se como fator dominante e, com exceção dos retratos de
campanha ou de figuras da sociedade, gue tiveram grande voga no século
XVIII, as artes visuais estavam guase gue exclusivamente a serviço da re-
ligião católica. Eventualmente, surgia um talento de excepcional origina-
lidade, como Diego Quispe na Cuzco do século XVII, ou algumas esplên-
didas interpretações da iconografia cristã, como o motivo do anjo com es-
pingarda, também da escola cusguenha. Em geral anônimas, essas pinturas
mostram figuras divinas, como os arcanjos Miguel ou Uriel, vestidas com
as flamejantes roupagens dos dignitários do século XVII - ou talvez dos
próprios vice-reis -, carregando de maneira proeminente um mosguete e
fazendo poses copiadas dos manuais militares da época [ilust. 1.11J.Já outras
pinturas da escola cusguenha reproduzem os santos ou os anjos num gar-
bo militar mais para o barroco."
10
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS
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A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS
MartÍ culpava Bolívar por tentar impor idéias estrangeiras a uma realida-
de de natureza totalmente diversa:
A América começou a sofrer e ainda sofre por causa de sua luta para
encontrar um equilíbrio entre os incompatíveis e hostis elementos herda-
dos de um colonizador despótico e perverso, e as idéias e formas impor-
tadas que têm retardado um governo racional por faltar-lhes compre-
ensão da realidade local. O continente, desconjuntado por três séculos
de um regime que negava aos homens o direito ao uso da razão, em-
barcou numa forma de governo baseada na razão, sem pensar ou refle-
tir nas hordas iletradas que haviam contribuído para sua redenção. (... ) 10
13
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS
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1.13 Anônimo, Escudo alegórico em honra de Bolivar (1825), 1 ,08x1 ,02 m; Instituto Nacional de Cultura-Cusco; Museo Histórico Regional.
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS
Iienzo (numa tela), com a cabeça pintada por cima da de Carlos IlI, numa
seqüência de monarcas que começa com os governantes incas e líderes
companheiros de lutas pela independência, entre os quais Paez e Sucre, que
se sobrepõem às figuras dos reis espanhóis, Os Recuerdos de ia Monarquia
Peruana o Bosquejo de Ia Historia de 105 lnca de Sahuaraura (1836-38, pu-
blicado em Paris, 1850) retratam a genealogia dos incas numa tradição que
remonta à Nueva corônica y buen gobiemo de Guaman Perna de AyaIa, no
princípio do século XVII, para demonstrar o sangue real do autor. Mas,
tal como as cópias de gravuras da dinastia inca feitas por viajantes europeus
no século XIX, falta às imagens de Sahuaraura aquela importância polê-
mica e revolucionária que elas deveriam possuir na época de Tupac Amaru,
e que, em certo sentido, podemos dizer, sem medo de errar, se tornaram
até pitorescas. Como escreve Gisbert:
1.14 Anônimo, Te/1/a alegórico: Homenagem a Bolívar; 'Viva
Bolivar; Viva Bollvar' (século XIX), gravura; Fundación As características de arte autóctone da era colonial atestam a existência
John Boulton, Caracas.
de uma nação indígena dentro da estrutura dos vice-rei nados, lutando
para manter sua identidade e permanecer em evidência. No século XVIII,
os nativos canalizaram suas aspirações para a política somente para vê-
Ias arruinadas pelo colapso da rebelião de 1781; a partir desta data, o
que fora uma arte cornbativa e comprometida (pintura, fachadas arqui-
tetônicas, etc.) passa a ser nostálgica reminiscência, mesmo que não ti-
vessem os patriotas crioulos se identificado com a ideologia indígena e
houvessem utilizado seus valores - que conheciam mais pela leitura dos
enciclopedistas do que por experiência própr ia - num ceriár io com
alguma coisa de Iirico.!"
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A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS
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HidalQo.
(1"'é·de.l~vo/l'.~.f)tUM""Jr/ cw·l.wru: d</."ltU'I'iJ-, ),,·tJel<l//tlutl /'z1U(~ú"lItlfIT/â du.,Vú·rr4lí.lSill/ú7'.qo,u/./~L/)
a'''I',.J.lIIttaÓÚUll IJnglJ/al.
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS
1.27 Anônimo, Par de vasos retratando Hidalgo e a e usado como modelo para a primeira de suas imagens. Esta foi uma gra-
Virgem de Guadalupe (s/d), cerâmica vitrificada, 40x27 vura do artista italiano Claudio Linati. Em sua visita ao México depois da
em e 37,5x27 em, coleção particular.
queda de lturbide, Linati inseriu, em sua obra Costumes civils, tnilitaires et
réligieux du Mexique (1828) [ilust. 1.26], uma série de retratos dos primei-
ros heróis da independência e, significativamente, também o do imperador
asteca Moctezuma.
Linati mostra Hidalgo como um homem de meia-idade, vigoroso e de
faces coradas, um padre-guerreiro com a cruz numa das mãos, um bordão
na outra, espada na cinta, faixa vermelha, capa preta, lenço amarrado ao re-
dor do pescoço e um jovial chapéu com uma pluma. Bem diferente desta
imagem de mestiço fanfarrão é a que foi produzida, tempos depois nesse
mesmo século, por Santiago Rebull, o infeliz pintor da corte do imperador
Maximiliano. Ao contrário de Iturbide, Maximiliano era simpático ao li-
beralismo e admirava Hidalgo, mas mandou que o pintassem como um meigo
e venerável padre, de cabelos brancos e vestes pretas, e será justamente esta
imagem que passará a ser uma constante nos retratos que viriam depois, in-
clusive no mais famoso de todos,o do muralistaJosé Clemente Orozco [ilust.
1.29]. Orozco, que recusou a versão da história mexicana em contrastes
absolutos, branco/pretro, bem/mal, apoiada por Rivera, representa Hidalgo
como um padre dinâmico, mas atormentado, lutando contra a opressão do
povo e, ao mesmo tempo, tragicamente contribuindo para ela.
1.28 Anônimo, DOIII José Maria Mareias (s/d), estatueta
A introdução à Historia Documental de Mexico 11 (1964) comenta o oti-
em cera, Museo Nacional de Historia, Cidade do México
(lNAH). mismo dos crioulos contrastando-o com o pessimismo dos índios, po-
24
A INDEPENDÊNCIA E SEUS HERÓiS
bres e oprimidos, com sua cultura destruída pela conquista e ainda sem
ter assimilado a do "México". A linguagem radical de reformadores do
tipo de Morelos e outros, com sua recusa de diferenças raciais, que iria
repercutir pelo século afora, no final das contas em nada ajudou os ín-
dios."Na metade do século XIX, a diminuição territorial do país pro-
duzida pela derrota de 47 e o caos político foram acompanhados por
manifestações de extrema violência resultantes da coexistência de duas
nações ocupando um só território: o mestiço e o crioulo de um lado e
o mosaico indígena do outro"!". As tentativas dos indígenas para voltar a
ter algum grau de controle foram feitas através de três movimentos que
abalaram o país durante a ditadura de Santa Anna: a rebelião dos ma ias
da casta war em Yucatán, começada em 1847, a revolta de Sierra Gorda e
as invasões dos chamados "índios bárbaros" no norte. Os rnaias quase
conseguiram recuperar o controle do Yucatán. A extensão territorial em
que eles conservaram uma estrutura de organização paralela à colonial e,
mais tarde, paralela à dos governos centralizados do México, está descri-
ta com muita clareza no Livro de Tizlmin, que relata a história do ltzá,
sem nenhuma interrupção, do século VII d.e. ao século XIX. Tanto cul-
tural como economicamente, a independência foi feita para os crioulos
e não para os Índios.
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2
As Academias e a
História da Pintura
A ACADEMIA REAL de San Carlos na Cidade do México, fundada em 1785,
foi a primeira academia de arte na América e a única estabelecida duran-
te o regime colonial. Foi um grande, se não desconcertante, sucesso, pois
a independência por ela adquirida da instituição que a gerou, a Academia
San Fernando em Madri, foi considerada na Espanha como um "erro po-
litico";' De fato, a descrição que faz Humboldt da vigorosa e produtiva
democracia que reinava na Academia mexicana sugere que ela teve sua im-
portância, principalmente quando sabemos que as idéias que favorecia aca-
baram resultando na independência política do México.
O relato de Humboldt foi lembrado, em tristes e diferentes circunstâncias
nos anos de 1830, por Frances Calderón de Ia Barca:
Ele nos conta que todas as noites, naqueles espaçosos salões bem ilumi-
nados por lâmpadas de Argand, centenas de jovens encontravam-se reuni-
dos,alguns fazendo esboços de moldes de gesso, outros de modelos vivos
e ainda outros que copiavam. desenhos de mobiliários (... ) e ali, todas
as classes, cores e raças se misturavam; o índio ao lado do rapaz branco
e o filho de um paupérrimo mecânico ao lado de um riquissimo senhor.
O ensino era gratuito e não se limitava a paisagens e figuras, um dos
principais objetivos era difundir entre os artistas o gosto geral pela
elegância e pela beleza da forma, bem como incentivar a indústria na-
cional. Os moldes de gesso, ao preço de quarenta mil dólares, foram des-
pachados pelo rei da Espanha, e como existem na academia várias estátuas
colossais de basalto e pórfiro, seria interessante, como observa o nosso
culto viajante, reunir esses monumentos no pátio da academia e corn-
parar o que sobrou da escultura mexicana, dos monumentos de um povo
sernibárbaro, com as graciosas criações da Gré cia e de Roma.
Que o gosto simples e nobre que distingue as edificações mexicanas,
que a sua perfeição no corte e no trabalho de pedras (... ) seja devido
ao progresso feito nesta mesma academia, disso não há menor dúvida.
O que sobrou desses belos mas mutilados moldes de gesso, das esplêndi-
das gravuras que ainda existem, fala por si; mas a presente desordem, o
estado de abandono do prédio, o desaparecimento daquelas excelentes
classes de escultura e pintura e, sobretudo, o baixo nível das belas-artes
no México sâo, nos dias de hoje, as tristes provas, se necessárias fossem,
dos melancólicos efeitos produzidos pela guerra civil e um governo
desestruturado.?
AAcademia era, como todas as outras que viriam a ser fundadas no Novo
Mundo, inquestionavelmente européia em seus objetivos estéticos e prá-
ticas, e quanto às observações de Frances Calderón de Ia Barca sobre as
esculturas sernibârbaras dos astecas, elas não passavam de um preconceito 2.1 Detalhe da ilust. 2.14.
27
AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA
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AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA
2.6 (página ao lado) padre Pedra Patino lxtolinque, As condições locais também mostravam-se problemáticas. A pintura do
América (1830), mármore, 2,00xO,90 m; Museo Nacional nu feminino, por exemplo, em muitos lugares era inaceitável. Quando os
de Arte, Cidade do México (lNBA). quadros de Cordero, com seus nus semi-encobertos (A banhista [ilust. 2.3],
A morte de Atala) postos em cenários tropicais, foram mostrados numa ex-
posição especial em 1864, eles chocaram o pudico povo mexicano. Os nus
do argentino Pueyrredon foram executados em segredo e, posteriormen-
te, pintados por cima. Na Venezuela, os desenhos com modelos de mulher
2.4 Felipe Gutiérrez, A caçadora dos Andes (1891), óleo
sobre tela, Museo Nacional de Arte, Cidade do México nua ao vivo eram, até 1904, proibidos na Academia.
(INBA).
Mas, havia um aspecto particular da teoria e da prática acadêmicas que ga-
nhou profundas raizes no Novo Mundo, e estamos nos referindo à pintu-
ra histórica. A força no tratamento dos grandes temas, tanto da antiga
história americana como da contemporânea (e observe-se que a temática
era das mais prolíferas), e a força no uso dos tradicionais temas europeus
acrescidos de significados modernos, combinadas com a crescente mistu-
ra não ortodoxa de classicismo e realismo, irão emprestar à pintura acadê-
mica da segunda metade do século XIX na América Latina excepcional
interesse. [ilust. 2.5,6].
Enquanto muitos pintores acadêmicos continuavam a buscar seus temas
na Europa - Santiago Rebull pintou uma versão da morte de Marat, o
30
AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA
mártir da Revolução Francesa, memoravelmente celebrada por David; mas 2.5 Juan Manuel Blanes, Revista do Rio Negro pelo general
(s/d), óleo sobre tela, 50,5x99,5 em;
Roca e seu exército
temascomo o "juramento de Br utus", com sua clara mensagem republi- Museo Municipal Juan Manuel Blanes, Montevidéu.
cana,e a "Morte de Atala" estavam também entre as preferências dos pin-
tores -, por volta dos anos de 1850 já haviam começado a aparecer te-
mas extraídos da história americana. Em 1850, juan Cordero pintou
Colombo diante dos reis católicos [ilust. 2.7], primeira obra baseada em um
tema americano vista pelo público mexicano e mostrada na exposição
daAcademia de 1851. Cordero observou que ninguém, antes dele, havia
pintado a cena; Colombo está retratado no momento em que apresenta
algumas de suas "descobertas" no Novo Mundo - um grupo de Índios
vestidos de peles estão mergulhados nas sombras, no lado esquerdo do
quadro, sendo um deles o pintor auto-retratado. O cenário de Colombo
diallte dos reis católicos vagamente lembra o pomposo tratamento imperial
que dá Oavid à Coroação de Napoleão ; e o quadro se mostra bem mais vivo
do que o rijo, pesado e frio classicismo da maioria das pinturas mexica-
nas acadêmicas dos anos de 1850. Outros pintores Jogo passaram a se-
guir Cordero na escolha de temas tirados da "descoberta" da América,
Cama Obregón com sua Inspiração de Cristovão Colotnbo [ilust. 2.8]. No
Brasil,nesta mesma época, Vítor Meireles pintava a cena da Primeira Mis-
sa celebrada no Novo Mundo.
A relevância da pintura histórica em termos de ideologias contem-
porâneas não era incomum na Europa; no México, durante o breve re-
gime de Maximiliano, os temas patrióticos foram usados como meio de
legitimar e consolidar o império: Santiago Rebull fora encarregado de
fazer uma série de retratos dos heróis da independência, inclusive os de
Hidalgo,Morelos e Iturbide. Depois da restauração da república em 1867,
foi pintada uma grande quantidade de imensas telas que reproduziam
cenas do passado pré-colombiano, como o democrático Parlamento de
31
AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA
2.7 Juan Cordero, Co lornbo diante dos reis católicos T1axcala, de Rodrigo Gutiérrez, ou a Descoberta de Pulque, de Obregón
(1850), óleos sobre tela, 1,73x2,44111; Museo Nacional de [ilust. 2.9]. No último quartel do século, porém, passou-se a dar prefe-
Arte, Cidade do México (I NBA).
rência à agressividade contida nas imagens dessa história, aquelas que pu-
nham em evidência os aspectos violentos e perversos da conquista espa-
nhola e os 300 anos de regime colonial que se seguiram; são exemplos o
Frei Bartolomeu de Ias Casas (1875) e os Episódios da conquista (1877) [ilust.
2.10,12], de Félix Par ra. A unidade nacional, a suma preocupação do
momento, cada vez mais era considerada como dependendo do sentido
de identidade, de "rnexicanidad", com fortes raizes históricas. Os anos de
regime colonial passaram a ser vistos como uma selvagem interrupção
da história mexicana, enquanto a continuidade com o passado pré-con-
quista era enaltecida.
Assim, do mesmo modo como os "europeus reviveram a Grécia, os tem-
pos medievais ou os mitos germânicos, os nacionalistas mexicanos evocavam
Netzahualcoyotl, Moctezuma e Cuauhtémoc, neles buscando inspiração
e força em sua luta contra a opressão [estrangeira]"." O medo de futuras
intervenções estrangeiras foi um fator preponderante, sobretudo depois da
2.8 José María Obregón, A inspiração de Cristovão
Colonibo (1856), óleo sobre tela, 1,47x1,06 111;Museo guerra com os Estados Unidos, que resultou, em 1848, na anexação do
Nacional de Arte, Cidade do México (INBA). Texas, e de duas invasões francesas, sendo que a segunda acabaria levando
32
2.9 José Maria Obregón, Descobrimento do pu/que (s/d),
óleo sobre tela, 0,76x1 ,02 111; coleção Luis Felipe deI Vali e
Prieto.
35
AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA
2.14 José Ferraz de Almeida Júnior, O violeiro (1899), Ao mesmo tempo que a pintura da história continuava a dominar a arte
óleo sobre tela, 1,41 xl,72 111; Pinacoteca do Estado de
oficial, pinturas de gênero, influenciadas pelo costumbrismo e riquíssimas
São Paulo.
no campo da arte popular, também passavam a fazer parte do repertório
dos pintores acadêmicos. José Correia de Lima foi o primeiro pintor acadê-
mico no Brasil, se excetuarmos Debret, a pintar a população negra (Re-
trato do intrépido marinheiro Simão [ilust. 2.17]). O violeiro [ilust. 2.14] é como
se intitula uma obra de Almeida Júnior, que, com muita felicidade, trans-
formou seu tema costumbris.ta numa cena realista; já em outros lugares,
no entanto, começava a aparecer outro tipo de indigenismo diferente do
"nacionalismo indigenista" do tema Cuauhtémoc. O velório [ilust. 2.15],
de José María jara, exposto com o título "Enterro de um indígena" na Feira
Internacional de Paris de 1889," correspondeu à expectativa do gosto eu-
2.15 José María Jara, O velório (1889), óleo sobre tela, ropeu por quadros evoca tivos das muito bem guardadas tradições religiosas
1,78x1,34 111; Museo Nacional de Arte, Cidade do
México (INBA). entre os camponeses que seriam, segundo se supunha, imunes às mudan-
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AS ACADEMIAS E A HISTÓRIA DA PINTURA
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