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sobre a intertextualidade, sublinha suas variantes @ E ste livro apresenta a sintese das propostas teéricas reflete sobre a meméria da literatura. Os efeitos de convergéncia e de divergéncia entre uma obra eo conjunto da cultura que a nutre aparece em todas as suas dimensdes, Pensar assim a meméria da literatura é pro- por uma poética dos textos em movimento. Segundo a autora, a intertextualidade retine propriedades ‘opostas que permitem desfazer oposiges estanques de cri- ticos para os quais ou a literatura se refere a si mesma ou ao mundo. Com base na andlise de diferentes fatores, de- monstra que a intertextualidade faz da literatura um campo auténomo ea religa mais diretamente ao mundo. TIPHAINE SAMOYAULT dirige o Departamento de Literatura ‘Comparada,na Universidade de Paris Vill (Vincennes/St.-Denis). E também romancista, critica literaria e tradutora. Como critica, atua na France Culture e na Quinzaine Littérare. Seu diltimo ensaio publicado:La montre cassée, forme et signification d' un motif dans les arts du temps (Verdier, 2004). Sua ultima obra de fie¢o: La main négative (Argol, 2008). j ij coa.7 iil Sw TIDMAINE SAMOUAULT A INTERTENTUALIDAD! a TIPHAINE SAMOVAULT A INTERTEXTUALIDADE EDITORA HUCITEC r Howig ge eremndo clan 03-04-2012 Linguagem e Cul direcio de | Sanda Nite 0 Etienne Samain A INTERTEXTUALIDADE IIPHAINE SAMOYAULT A INTERTEXTUALIDADE Tradugao de Sapna Nitaint Revisto de Mania Leticia Guepes Atcoronapo REGINA SALGADO Campos ADERALDO & ROTHSCHILD Sao Paulo, 2008 fins Nathan/HER, 2001, Paris, Franga ISBN2-09-191125.9 publicago em lingua portuguesa retervador por 10 & Rothchild Eitores Kua Jodo Moura 433 ~05412-001 So Paul, Bal lerereler@hucitee.combr ‘wor huctec com. Depésito Leal efetado, Coordenagzo editorial C1P-Brasl. Catalogasso-na-Fonte Sindicato Nacional dos aitores de Livros, RJ Samoyault, Tiphaing, 1968 2 interextuldade / Tiphaine Samoyaul 5 tadso San- fda Nitin. ~ io Paulo: Aderldo & Rothschle, 200, 160p. ~ (Linguagem e Cultura; 40) ‘raduco de: Vintertextuslié : mémoire de ls Ee Teel bibiografia 1. Interextusidade, 2 Litertura — Histria ect ca. 3. Ltermira compara, I. Titulo I See 08.2551 cop: 609 DU: 62.001 r SUMARIO INTRODUGAO 1, UMANOGAO INSTAVEL . 1, Movimento e dislogo: as concepgSesextensivas L1.Ateoria do texto 1.2, Nascimento da palavra Julia Kristeva 1,3, O diélogo dos textos segundo Mikhail Bakhtin 2.Citagio e referéncia: os efeitos de leitura 2.1. Umexame dos intertextos: Roland Barthes 2.2. Uma estlistica dos textos: Riffaterre 3. Imitazio e Palimpsesto: as concepgbes restritas 3.1 A formalizacio de Gérard Genette 3.1 Intertextualidadeehipertextualidade 4, Colagens ejungGes: os sincretismos flexiveis 4.1.0 trabalho da citago: Antoine Compagnon 42, Poruma flexibilidade da nogao: Laurent Jenny, Michel Schneider Reeapitulacao n- I: O lugar eo momento (fronteiras da intertextualidade) 2.A MEMORIA DALITERATURA 1. Tipologia das priticasintertextuais 11. Da itasao.0 pligio 1.2, Parodia e pastiche 1.3. Integragao/colagem 2. Amemériamelancélica 2.1. Tad esté dito Ph B “4 4 18 18 2B B 25 8 2» 31 38 8 SUMARIO 2.2. Bscrever ére-escrever 3.Ameméria hidica 3.1. A poesia deve ser feita por todos 3.2. Osjogos daerudigio . 4.Apencira doleitor 4.1. Indices varidveis para um levantamento instével 4.2. Diversosleitores . Recapitulagao n* 2: Voltas e desvios (fungoes do intertexto na economia de uma obra) 3. REFERENCIA, REFERENCIALIDADE, RELAGAO. 1.Otexto contra o mundo. LL. Hibridea do texto 1.2. Os signos do recorte 1.3, Para uma teoria da“ 2.0 texto com a historia 2.1. O eterno retorno do mito 2.2. Osestratos da historia 3. Ouniverso é uma biblioteca 3.1, Literatura secundiéiria ou literatura? eferencialidade” 3.2. relacio com o modelo: admiragio, denegagdo, subversio. 3.3. Transmissao ou influéncia? 3.4.0 movimento das obras, Recapitulagao n: 3: Divergéncia e convergéncia (modos de comunicag dos textosentre si) CONCLUSAO BIBLIOGRAFIA INDICE DOSNOMES 101 102 wa ar 253 INTRODUGAO, termo intertextualidade foi tao utilizado, definido, carregado de sentidos diferentes que se tornou uma nogio ambigua do dis- curso literérios com freqlncia, atualmente, d-se preferénciaa esses termos metaféricos, que assinalam de uma maneira menos técnica a presenga de um texto em outro texto: tessitura, biblioteca, en- trelagamento, incorporagao ou simplesmente didlogo. Ele apresen- ta, no entanto, a vantagem, gracas & sua aparente neutralidade, de poder agrupar varias manifestagbes dos textos literdrios, de seu entrecruzamento, de sua dependéncia reciproca. A literatura se es creve certamente numa relagdo com o mundo, mas também apre- senta-se numa rela¢ao consigo mesma, com sua historia, a hist6- ia de suas produg6es, a longa caminhada de suas origens. Se cada texto constréi sua propria origem (sua originalidade), inscreve-se ‘20 mesmo tempo numa genealogia que ele pode mais ou menos explicitar. Esta compde uma érvore com galhos numerosos, com uum rizoma mais do que com uma raiz tinica, onde as filiagdes se dispersam e cujas evolugdes sao tanto horizontais quanto verticai E imposstvel assim pintar um quadro analitico das relagdes que os textos estabelecem entre si: da mesma natureza, nascem uns dos outros; influenciam uns aos outros, segundo o principio de uma geracdo nao espontanea; a0 mesmo tempo nao hé nunca repro- dugio pura e simples ou adogao plena. A retomada de um texto 9 [A intertetualidade existente pode ser aleat6ria ou consentida, vaga lembranga, home- nagem explicita ou ainda submissao a um modelo, subversio do cinon ou inspiragao voluntaria, Citagdo, alusio, referéncia, pastiche, parddia, plégio, colagens de todas as espécies, as praticas de intertextualidade se repertoriam facilmente e se deixam descrever. Oferecem um contetido objetivo & nogao sem, no entanto, eliminar desta tiltima sua imprecisao te6- rica, Disfarce de uma antiga e tradicional critica das fontes ou re- flexdio nova sobre a propriedade literéria e a originalidade de um texto? Nogao historica, criada para se fazer corresponderem o dis- curso literario e praticas modernas de escritura, ou conceito te6- rico, capaz de dar conta de todos os liames das obras com a li- teratura? Fenémeno, entre outros, das modalidades da escritura literdria ou ponto decisivo para compreender uma parte essen- cial de seu trabalho? Diante dessas alternativas, os criticos hesitam, as praticas se dividem, a teoria permanece vaga. Parece-me impor. tante retomar os elementos do dossié, fazer deste uma sintese his- t6rica e critica, propondo meios para pensar a intertextualidade de maneira unificada, reunindo seus tracos em torno da idéia de meméria. O que é ela, com efeito, senao a memoria que literatu- ra tem de si mesma? Entre retomada melancélica, em que ela se contempla no seu préprio espelho, e retomada subversiva ou li- dica, quando a criagao se subordina a ultrapassagem daquilo que a precede, a literatura nao para de lembrar e de conter um desejo idéntico, aquele mesmo da literatura, Assim, além de sua teoriza- ‘a0, da historia de suas teorias (Capitulo 1) e da descrigdo de suas técnicas (Capitulo 11), a andlise da nogao de intertextualidade en- volve uma verdadeira reflexao sobre a meméria da literatura (Ca- pitulo II) e sobre a natureza, as dimensdes ea mobilidade de seu espago, € especialmente sobre o jogo da referéncia— o remeter da 10 Introducao| Jiteratura para si mesma — e da referencialidade —liame da lite- ratura com o real. fento que se torna possivel definir a literatura, consideran- do-se essa dimensdo da meméria, na qual a intertextualidade nao émais apenas a retomada da citagao ou da re-escritura, mas des: crigao dos movimentos e passagens da escritura na sua relagio con- sigo mesma e com 0 outro (Capitulo III). Os efeitos de convergén- cia entre uma obra eo conjunto da cultura que a nutre penetra-a em profundidade, aparecem entao em todas as suas dimensbes: a heterogeneidade do intertexto funda-se na originalidade do texto. E pensar diferentemente a histéria dessa meméria da literatura € -servir-se da tensdo entre a retomada ea novidade, entre o retorno .e. origem, para propor uma poética dos textos em movimento. ‘No final de cada capitulo, recapitulacées mais diddticas propordo ssugest6es visando a colocar explicitamente a nogao a servico do estudo das obras, a ndo separar 0 propésito tedrico da pritica da multiplicidade de textos. u 1 UMA NOGAO INSTAVEL ‘Mais ow menos tos of livos contém sf so de alguma reptgto esperads Aimprecisao tebrica que envolve a nogao de intertextualidade, ex- plicando em parte sua recusa por certos tedricos da literatura, deve-se& biparticao de seu sentido em duas diregées distintas: uma torna-a um instrumento estilistico, lingustico mesmo, designan- do 0 mosaico de sentidos e de discursos anteriores, produzido por todos os enunciados (seu substrato); a outra torna-a uma no poética, €a andlise ai esta mais estreitamente limitada a retomada de enunciados literdrios (por meio da citacao, da alusio, do des- vio, etc.). Essa bipartigao corresponde mais ou menos & dicoto- mia na qual se mantém 0 conjunto do discurso literério, entre de- finigdes restritivas e muito formalizadas e definiges extensivas de uso hermenéutico. Depois de ter sido produzido no contexto do estruturalismo e dos estudos sobre a produgio textual, 0 conceito “migrou’, como diz Marc Angenot, do lado da poética e sofreu uma espantosa inflacdo de definigses. Assim a nogao situa-se no cruzamento de praticas muito antigas (citagao, pastiche, retoma- da de modelos. ..) e de teorias modernas do texto: 0 carter re- cente do vocdbulo, o fato de que seja uma questao importante das 1B [A intertestuatidade PosigGes teéricas atuais, nao deve mascarar a idéia que permite ‘compreender e analisar uma caracteristica maior da literatura, perpétuo dilogo que ela tece consigo mesma; nao um simples fe- nomeno entre outros, mas seu movimento principal. Retomemos ois sua historia no comeco, 1 MOVIMENTO E DIALOGO: AS CONCEPQOES EXTENSIVAS L.A teoria do texto Ocontexto epistemoldgico dos anos 60 vé nascer uma quantidade de instrumentos destinados a fundamentar o discurso literdrio ‘numa linguagem propria e especifica, Os termos estrutura, estrutu- ralismo, significancia, as expressoes produgdo textual ou pritica tex- ‘tual, apoiados numa nova definigao do texto, visam ao mesmo tem- po criar uma “ciéncia” do literério e tornar 0 campo auténomo, dissociando-o dos dominios aos quais ele se ligava outrora (his- tria, sociologia, psicologia. . .). Trata-se de considerar o texto independentemente de seu contexto, de maneira imanente, proi bindo-se qualquer referéncia a0 contetido ou as determinacOes ex- teriores. Essa mutacdo epistemolégica, em que a palavra texto abandona seu uso corrente para tornar-se puro objeto tebrico, é muito bem trasada por Roland Barthes no artigo consagrado a “Teoria do Texto’, em 1973, para a Encyclopaedia Universalis, Ele retoma ai uma definicdo de Julia Kristeva: “Definimos 0 Texto como um aparelho translinguistico que redistribui a ordem da lingua, relacionando uma palavra co- 4 Uma nocto intdvel | municativa que visa & informagao direta com diferentes enun- ciados anteriores esincronicos.” Essencialmente lingtistica, como se vé, essa definicdo compor- tacertamente condicdes tedricas satisfatdrias para um estudo cien- tifico do texto literdrio considerado como um campo metodolé- gico, masé totalmente desprovida de qualquer informacio no que io verdadeiramente literaria desse texto. Com- cida nesse contexto, a intertextuslida concernea dimen: preende-se, entao, que, de apareca primeiro como uma nogio lingifstica e abstrata, inte- grada & anélise transformacional (redistribuicdo da ordem da lingua ¢ transformacdo dos cédigos), a fim de levar em conta 0 social eo hist6rico. Percebe-se também sua generalidade original, que faz dela menos um instrumento que descreve priticas do que 6 mecanismo importante de um sistema que formaliza a produ- fo textual. 1,2 Nascimento da palavra: Julia Kristeva Oficialmente, ¢ Julia Kristeva que compée e introduz o termo in- tertextualidade, em dois artigos publicados na revista Tel Quel e retomados em seguida em sua obra de 1969, Recher- ches pour une sémanalyse. O primeiro é de 1966, intitulado “A pa- lavra, 0 didlogo, o romance” e contém a primeira ocorréncia do termo; 0 segundo, “O texto fechado” (1967), precisa a definicao. “Cruzamento num texto de enunciados tomados de outros textos”, “transposigao [ . .] de enunciados anteriores ou sincrénico®”, a intertextualidade € um elemento essencial do trabalho da lingua " Kristevn, Seméiosk Recherches pour une smanalye, Seu, 1969p. 115, * Ibiders, p13, A inertextualidade no texto. E a partir da anidlise e da difusio da obra de Mikhail Bakhtin na Franga — que Kristeva tinha lido no decorrer de sua formagao biilgara, em russo — que ela produz a nosdo e sua de- finicao: *O eixo horizontal (sujeito-destinatério) e 0 eixo vertical (texto-contexto) coincidem para desvelar um fato maior: a pa- lavre (o texto) € um cruzamento de palavras (ce textos) em que se lé pelo menos uma outra palavra (texto), Em Bakhtin, alids, esses dois eixos, que ele chama respectivamente didlogo e ambivaléncia, nao sio claramente distinguidos. Mas essa falta de rigor € antes uma descoberta que Bakhtin €0 primeiro a introduzir na teoria literdria: todo texto se constréi como um mostico de citagdes, todo texto ¢ absorcao e transformacio de um outro texto.” J. Kristeva, Séméoitike, op. cit., p. 145 Relagdo, dinamica, transformasao, cruzamento, o movimen- ‘to da lingua descrito nessa definicdo implica uma concepgao ex- ‘tensiva da intertextualidade. A palavra se carrega de suas signifi- ‘cages, de seus usos e de seus empregos e os transporta no texto ‘que deles se vale e 05 transforma em contato com outras palavras ‘ou enunciados. Retomada por varios te6ricos de Tel Quel na obra ccoletiva intitulada Théorie d’ensemble, essa idéia abstrata, delibe- radamente a-hist6rica e pouco utilizavel enquanto instrumento de anélise, seré assim reformulada por Philippe Sollers: Notemos agai que o termo russo, sve significa 20 mesmo tempo “pala e sais raramente,"scurso” 16 Uma nogao instvet | “Todo texto situa-se na jungdo de varios textos dos quais ele € ao mesmo tempo a releitura, a acen‘uacio, a condensa- cao, 0 deslocamento ea profundidade.” Théorie d’ensemble, textos reunidos por Ph. Sollers, Seuil, 1971, p.75, Trata-se naquele momento de romper coma tradicional criti ca das fontes que considerava os mesmos fenémenos, mas de um ponto de vista estritamente biogréfico ou psicol6gico: quais volu- mes continha a biblioteca de um escritor? Quas livros ele lera? Em que filiacdo se inscrevia? Os problemas de influéncia, de transmis- sto, de “hereditariedade” ou de heranca regulamentavam essa abor- dagem. Ao encadeamento positivista e as metiforas, liquidas, da fluidez, do continuo e do escoamento, propde-se substituira idéia de um sistema de relagao, cujas metdforas se situam mais do lado da rede, do entrelacamento ou da correspondéncia, “O termo intertextualidade designa esta transposigdo de um (ou de varios) sistema(s) de signos em um outro, mas jé que esse termo tem sido frequientemente entendido no sentido ba- nal de «critica das fontes» de um texto, p rimos a ele o de transposigao, que tem a vantagem de precisar que a passagem de um sistema significante a um outro exige uma nova articu- lagio do tético — posicionamento enunciativo e denotativo” J. Kristeva, La révolution du langage poétique, Seuil, 1974, p. 60. Eassim evidente que como o de relacio, o termo de transposi- S40 acomipanha todo estudo intertextual do texto literdrio, 7 | A intertextualidade 1.3 O didlogo dos textos segundo Mikhail Bahktin — Em todo texto a palavra introduz um didlogo com outros textos: eis a idéia que Julia Kristeva toma emprestada de Bakhtin, acarre- tando sua euforia neolégica e sua abstracao tebrica. O autor de Estética et teoria do romance e de A Poética de Dostoievski ndo em- pregava em nenhum momento os termos intertextualidade ow i tertexto. Entretanto, seus estudos sobre o romance (que remon- tam a fins dos anos 20), originando as grandes possibilidades de integracao do género, seus componentes lingtiisticos, sociais e cul- turais, introduziam a idéia de uma multiplicidade de discursos trazida pelas palavras. O texto aparece entdo como o lugar de uma toca entre pedagos de enunciados que ele redistribui ou permuta, construindo um texto novo a partir dos textos anteriores. Nao se trata, a partir dai, de determinar um intertexto qualquer, jé que tudo se torna intertextual; trata-se antes de trabalhar sobre a car ga dialogica das palavras e dos textos, os fragmentos de discursos que cada um deles introduz. no dislogo. “A linguagem do roman- ce, escreve Bakhtin, é um sistema de linguagens que se iluminam mutuamente, dialogando”. Para mostré-lo, 0 exemplo de Dos- toievski é particularmente esclarecedor, uma vez que fundamenta © romance polifénico, que representa e faz atuar uma multiplici- dade de vozes: “Vemos aparecerem, em suas obras, herdis cuja vor é na sua estrutura, idéntica aquela que encontramos normalmente “M, Bakltine,Esthéique ethorie du roman, Gallimard, coll. "Te" 1978, p. 115, 18 Uma nog iste | nos autores. A palavra do her6i sobre si mesmo e sobre o mun- do é tdo valida e inteiramente significativa quanto geralmente 0 é a palavra do autor [. . .]. Ele possui uma independéncia excepcional na estrutura da obra, ressoa de alguma maneira a0 lado da palavra do autor, combinando-se com ele, do mes- mo modo que com as vozes igualmente independentes esigni- ficantes das outras personagens, de uma maneira completa mente original. M. Bakhtine, La poétique de Dostoievski, Seuil, p. 33. ssa polifonia em que todas as vozes ressoam de um modo igual implica o dialogismo: os enunciados das personagens dialogam com os do autor e ouvimos constantemente esse dilogo nas pala- vas, lugares dindmicos onde se efetuam as trocas, Poderiamos cret que o relativismo situa-se, de regra, na realizacdo desse movimen- to, que todas as posicdes se equivalem; nao é nada disso. O autor conserva ai uma posigio exterior, que Ihe permite ver a persona- gem como um todo ¢ englobar 0 conjunto dos pontos de vista, Para tanto, importa que todas as personagens possam dialogar com cle, Assim, como explica Bakhtin: “Nosso ponto de vista ndo vem absolutamente afirmar uma espécie de passividade do autor, que faria apenas uma montagem dos pontos de vista dos outros, das verdades dos outros, que renuncia inteiramente ao seu ponto de vista, a sua verdade. Nao se trata absolutamente disso, mas de uma inter- relagdo inteiramente nova e particular entre sua verdade e a verdade de outrem. O autor é profundamente ativo, mas sua a¢ao tem um caréter dialégico particular (. . .]. Dostoievski interrompe freqlentemente a voz do outro, mas nao a cobre 9 | A intertextuaidade nunca, nao a termina nunca a partir de «si», isto 6 de uma consciéncia estrangeira (a sua).” Citado por T. Todorov, “Bakhtine et Paltérite”, Poétique,n.° 40, p.508. 10 de alteridade é decisiva para estabelecer esse movimen- to dos textos, esse movimento da linguagem que carrega outras pa- lavras, as palavras dos outros. E, segundo Bakhtin, o proprio mo- vimento da vida e da consciéncia (Tzvetan Todorov mostra isso em Mikhail Bakhtine, le principe dialogique). A consciéncia é constan- temente preenchida de elementos exteriores a ela, ingredientes tra- Zidos por outrem e necessarios a sua realiza¢ao: “Na vida, fazemos isso a cada passo: nés nos apreciamos a 1n6s mesmos do ponto de vista dos outros, tentamos compreen- der 0s momentos transgredientes* & nossa prépria consciéncia e consideré-los por meio do outro [. ..|; numa palavra: cons- tante intensamente, vigiamos e capturamos os reflexos de nos- sa vida no plano da consciéncia dos outros homens.” Ibidem, p. 502 Assim, a relagao de um criador com sua personagem de roman- ce, por exemplo, ndo pode nunca ser inteiramente de identifica- ‘40: deve manter essa dimensao exterior pela qual essa personagem dialoga com 0 autor tanto quanto o autor com ela, Lemos perfei- tos exemplos desse tipo de didlogo no estilo indireto livre, quando a narragao assume aparentemente o pensamento das personagens. No capftulo II dos Moedeiros Falsos,de Gide, os senhores Molinier (0 terme “teansgrediente” ¢ complementar de ingredient: crresponde a esses dados exteriores fundies pela conscitnciae necessrios para sua realizgto 20 Uma nog instivel | ¢Profitendieu discutem sobre mudangas que afetam o mundo e so- prea educagdo a ser dada as criancas. Pouco a pouco, o texto dei- xa o plano da conversa e a narrativa a substitu integrando as pa- Javras das personagens que dialogavam um pouquinho antes “Com eftito, Profitendieu s6 tivera, até o presente, do que se gabar de seus filhos; mas nao se iludia: a melhor educacéo do mundo nao prevalecia contra os maus instintos; gracas a Deus, seus filhos nao tinham maus istintus. Nao mais que os filhos de Molinier sem diivid réprios se afasta- vam das més companhias e das més leituras. Pois que adianta proibir aquilo que nao se pode impedir?” A. Gide, Les Faux-Monnayeurs, Gallimard, Coll. “Folio’, pp. 19-20. or isso el A partir da segunda frase, ouvimos o discurso de Profitendieu a Molinier, entrecruzado com as palavras do narrador. O efeito de dislogo é perfeitamente perceptivel pois, mesclando-se, as vozes permanecem distintas. “O estilo indireto livre instaura uma zona intermedidria instével que permite ao narrador atuar em dois ni veis de discurso co mesmo tempo”, Assim, mesmo se o movimen- to se faz &s vezes mais subterrineo, um enunciado esté sempre envolvido numa rede de outros enunciados que contribuem para construi-lo. A voz ea palavra de outrem se inscrevem nas palavras que dizemos e 0 dialogo identifica-se com a expansio de todos es- sesenunciados. ‘Todas as palavras abrem-se assim as palavras do outro, 0 ou- tro podendo corresponder ao conjunto da literatura existente: os * André Topia,"Contrepoinsjoyciens’sPoetgue, 27,1976, p. 352 a | A intertextualidade textos literdrios abrem sem cessar o didlogo da literatura com sua propria historicidade, ea nogdo tem todo o interesse em tornar a ‘critica sensivel 8 consideragao dessa complexa relagao, que a lite- ratura estabelece entre sie 0 outro, entre o génio individual sin- gular e o aporte intertextual e ndo puramente psicolégico do ou- tuo. Aqui, apenas 0s ali texto no pensamento francés dos anos 60 fazem diferir os termos: de Bakhtin a Kristeva, do dialogismo a intertextualidade, vemos que us fendmenos descritos sio 08 mesmos. Entretanto, tal como foi colocado aquela época, o conceito de intertextualidade nao é tio metodol6gico quanto o de dialogismo, o que consiste em gran- de parte a causa de suas e-interpretagdes posteriores. Sua falta de sustentagio implica, ao ser retomado, sua modificagao, adaptada a outras proposigdes te6ricas, menos transformacionais que re- lacionais, a outras probleméticas (a da leitura, por exemplo): logo a intertextualidade ndo se contentard mais em ser uma simples de- signacdo, mas se esforgard por constituir um conceito operatério, segundo grande aporte de Bakhtin, além da questao da alte- ridade e do dialogismo, acrescenta & nogdo de intertextualidade sua dimensio propriamente critica, aspecto que nao se pode negli- genciar: mostrando que a retomada de linguagens ou de géneros anteriores produz efeitos de sobrecodificagio — os textos paré- dicos repousam eles proprios sobre formas codificadas — o autor de Estética e teoria do romance analisa precisamente os mecanismos da criagdo e da renovagio da linguagem literdria. E também o que mostra Victor Chklovski em Sobre a Teoria da Prosa, estudando sob esse angulo o exemplo de Tristram Shandy, de Laurence Sterne: se esse romance rompe com a literatura anterior, € antes porque faz dela uma sintese, retomando todos os seus discursos — didético, ico, judiciério, literario —, todas as formas dos erces tedricos e a primazia concedida a0 religioso, pol 2 ina nog intel | iscursos existentes, levando-os a um ponto de saturagio, de ibridismo e de parddia que conduz necessariamente & sua trans- formacio. 2 CITAGAO E REFERENCIA: (OSEFEITOS DELEITURA Roland Barthes, primeiro, Michael Riffaterre, depois, retomam, no seu modo de ver, a intertextualidade, reduzindo jé um pouco seu campo de agao (veremos que este movimento de reducao e de pre- cisio ndo deixaré de se acentuar). Levando em conta aspectos a0 mesmo tempo te6ricos e criticos, ambos fazem dela uma dimen- sio importante da leitura do texto literério. 2.1 Um exame dos intertextos: Roland Barthes Desde o artigo “Teoria do texto” para a Encyclopeedia universalis, Barthes coloca em primeiro plano a intertextualidade, ligando-a A citagdo: “todo texto, escreve ele, é um tecido novo de citacées pas- sadas’,fazendo eco a constatagdo malarmaica, proposta na aber- ‘tura deste capitulo: Mais ou menos todos os livros contém a fusio de alguma citagao esperada. Por isso, as citagdes nao remetem necessariamente ao corpus literdrio e Barthes permanece no seu artigo muito préximo de Julia Kristeva e da produtividade textual: “A intertextualidade nao se reduz evidentemente a um pro- blema de fontes ou de influéncias; o intertexto € um campo geral de frmulas andnimas, cuja origem é raramente locali- 23 | A intertextuatidade zAvel, de citagdes inconscientes ou autométicas, feitas sem, R Barthes, “Texte (théorie du)”, Encyclopedia Uni. versalis, 1973. A linguagem continua sendo 0 campo hiperextensivel do tra- balho intertextual, dificil, a partir dai, de ser medido. Sem fazer dele um uso sistemético, Barthes retoma e precisa o termo em Le plaisir du texte (1973, também), eo liga aos usos da leitura: “Saboreio o reino das formulas, a derrubada das origens, a desenvoltura que faz vir o texto anterior do texto ulterior. Compreendo quea obra de Proust é, pelo menos para mim, a obra de referéncia, a mathesis geral, a mandala de toda a cos- mogonia literdria [. . .]. Proust [. . .] isso nao é uma eautori- dade»; simplesmente uma lembranga circular. E isso é bem o in- tertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito — que este texto seja Proust, ou 0 jornal cotidiano, ou a tela de televisio: o livro azo sentido, o sentido faz a vida” R. Barthes, Le plaisir du texte, Seuil, 1973, p. 59. Se 0 propésito permanece geral, vemos que a reflexdo se es- tteita sobre a literatura ea referéncia a Proust funciona como uma medida da leitura,ligada & memoria e ao mergulho definitivo no uuniverso dos textos. Ela propoe assim, destocando ligeiramente a nosao para a leitura, um primero passo para pensar uma dupla dimensao da recepcio literdria, a acolhida da literatura pela es- critura, de um lado; pela leitura, de outro. Ela permite pensar uma intertextualidade de superficie (estudo tipolégico e formal dos gestos de retomada), e uma intertextualidade de profundidade 24 Uma nogao instével| {estudo das numerosas relagdes nascidas dos contatos dos textos ire’) 2.2 Uma estilistica dos textos: Riffaterre (Com os estudos de Michael Riffaterre (La production du texte, 1979, ¢ Sémiotique de la poésie, 1983), a intertextualidade torna-se ver- dadeiramente um conceito para a recepcio, permitindo impor modelos de leitura fundados sobre fatos retéricos captados em es- pessura, nas suas referencias a outros, presentes no corpus da lite- ratura. O intertexto — que o autor distingue da intertextualida- de, caracterizado como “o fendmeno que orienta a leitura do texto, que governa eventualmente sua interpretagao, e que é 0 contrério daleitura linear” — é af uma categoria da interpretancia e designa qualquer indice, qualquer traco, percebidos pelo leitor, sejam eles citagao implicita, alusdo mais ou menos transparente ou vaga remi- niscéncia, que podem esclarecer a organizacio estlistica do texto (‘conjunto dos textos que encontramos na meméria a leitura de ‘uma dada passage”) Riffaterre, nessas operagées, nao interroga nunca a objetividade das aproximagdes, mas sua pertinéncia para o sentido profundo do texto que ele chama de nogao de origem Jacaniana de significancia, Ele admite também reviravoltas da cro- nologia: jé que o intertexto € antes de tudo um efeito de leitura, nada deve impedir um leitor de hoje de interpretar uma figura pre- sente no monélogo de Molitre, a partir de uma figura semelhante, presente no teatro de Brecht. A continuagao da obra pelo leitor é ‘uma dimensdo importante da intertextualidade, segundo Riffater- te, e pode ser considerada uma “anacronia” que é a da meméria “Linwertexteinconna’ Linérature,n*°41, 1981.5. Tbidem, p. 4 25 | A inertestvalidade do leitor. Ela tem nesse caso um valor operatério na medida em ‘que se torna um mecanismo de produgdo da significancia que, di ferentemente, do sentido que faz palavras se corresponderem com ‘suas referéncias nao verbais, “resulta des relagies entre essas mesmas palavras e sistemas ver~ bais exteriores ao texto (mas as vezes parcialmente citados no texto) e que se encontram seja em estado potencial na lingua, seja ja atualizados na literatura.” M. Riffaterre, “Liintertexte inconnu’ op. cit. Assim, 0 texto torna-se “um conjunto de pressuposicoes de ou- tros textos”, dai a necessidade de compreendé-lo a partir de seu in. tertexto, Num importante artigo da revista Poétique, intitulado“La Sylepse Intertextuelle” (1979), Michael Riffaterre precisa sua pro- posigio tedrica com andlise de dois exemplos particularmente es- clarecedores. localizacao do intertexto torna-se facil, segundo ele, pela presenga, no texto, de uma resisténcia semantica ou gramati- cal. A silepse, que consiste em tomar uma mesma palavra em dois sentidos ao mesmo tempo, apresenta esta resistencia estlistica: sua ocorréncia num texto deve despertar a atengdo e, na maior parte do tempo, supde 0 intertexto. Por exemplo, o poema “Guitare” de Laforgue, em Limitation de Notre-Dame la Lune, a dimensio pa rédica da pega se assinala pela silepse: Jn que um Philippede Champaigne “Oh! qu'un Philippe de Champaigne “Mas nascdo Pierro, enhae te pinte? Mais né Pierrot vienne et te pegne! ‘Um nada, una miniatura Un ren, une miniature Do tamanhe de um tonsural” De a largeur d'une tonsure!" * Perde-enatradgio 0 jogo de signi frances peignesabjuntivo do verbo peindee (pinta) e peigner (pentesr). (NT) 26 gto, pinta epentesr,contido no vorbulo Usa nog instvel | «silepse, explica Riffaterre, pois peigne (pinte), subjuntivo do verbo peindre (pintar) é também o subjuntivo de peigner (pen tear)’ sentido capilar recalcado, mas confirmado pela palavra ton sura, no final da estrofe. Esse sentido Ile permite chegar ao inter- texto: uma passagem de La Fontaine em que a tonsura, o tamanho estao presentes, concorrendo também para o efeito cOmico (“l. .. ‘Tenho lembranga/ Que num prado de monges passando, / A fome, a ocasido, a erva tenra, eeu penso/ Algum diabo também me em- purrando/, Tosei este prado no tamanho de minha lingua.” // J'ai souvenanice/ qu’en wn pré moines passant,/ La faim, Voccasion, Pherbe tendre, ete pense/ quelque diable aussi me poussant,/ Je tondis de ce préla largeur de malangue.”): “Quando Laforgue retine num verso «tosar» ¢ «tamanho» explicitamente e «monge» implicitamente, é impossivel ao lei- tor recusar a relagio com La Fontaine. Disso resulta uma satu ragio da passagem, pois a palavra mais anédina («tamanho», equivalente figurativo de uma conjungao de comparagao) se torna uma marca de humor. Todas as palavras, qualquer que seja sua fungao indi lual, concorrem para a mesma signifi- cancia, isto é, para o humor. A tripla combinagao intertextual forma pois uma unidade semiética, o que € proprio do texto literario. O texto e 0 intertexto séo pélos insepardveis, tendo ambos safdo de uma tinica silepse.” M. Riffaterre, “La sylepse intertextuelle”. Poétique, 1.240, 1979, No segundo exemplo, uma silepse semelhante com a palavra mie (migalha), designando em Leiris a amiga (amie) e recalcando ‘a migalha de pao, remete por contigitidade a “Vin des amants”, de 27 | A imerteralidade Baudelaire. Nos dois casos, s6 se capta a disseminagao do sentido, fracas a uma atenta leitura retroativa. O intertexto ¢ entao defin do como “a percepsao, pelo leitor de relagdes entre uma obra € outras que a precederam ou a seguiram'™. Estendida ao conjunto do corpus literdrio, a nogao de intertextualidade reduz, no entan- to, seu campo de agao e se torna assim um instrumento decisivo para a andlise, fundada sobre microfendmenos estlisticos, da lite- rariedade. Essa concepgao anuncia — precedendo-as um pouco— as concepgdesrestritas. 3. IMITAGAO E PALIMPSESTO: AS CONCEPGOES RESTRITAS ‘A obra decisiva para @ migragdo da nogdo das concepgées extensi- vvas do conceito & sua percepgao restrita aparece em 1982. Palimp- sestes, de Gérard Genette, com o subtitulo La littérature au second degré, acaba de semear confusao em torno do termo, deslocando- 0 definitivamente da lingiistica para a poética. Ao mesmo tempo, ele produz um trabalho decisivo para a compreensio ea descri¢a0 da nogao, inscrevendo-a numa tipologia geral de todas as relagdes {que 0s textos entretém com outros textos. A partir dessa obra, os usudrios da intertextualidade nao podem mais utilizar impune- mente o termo: devem escolher entre sua extensio generalizante ¢ essencialmente dial6gica (Bakhtin, mesmo que a aplicagio incida sobre andlises poéticas) ou sua formalizacao teérica, visando atu- alizar praticas (Genette). A tal ponto que, apesar de Kristeva e Tel °° M Rifaterre, La production du texte, Seu, 1979, p.9. 28 r Ume nogaoinsdvel | Quel, parece preferivel conservar o termo de dialogismo para de- signar a primeira concepgao e reservar o de intertextualidade para asegunda. 3.1A formalizacao de Gérard Genette Propondo, no comego de Palimpsestes, distinguir cinco relagoes transtextuais, Gérard Genette faz a sintese de seus trabalhos ante riores, aqueles que se interessavam pela relagdo de um texto com seu género (Introduction a architexte, 1979), e anuncia seus traba- Ihos futuros, que tratardo especialmente da relacao de um texto com seu contexto imediato (Seuils, 1987). Sobretudo, como preci sa Laurent Milesi, num importante artigo de sintese: “La onde Riffaterre trata a intertextualidade como uma pratica cultural intuitiva inerente a toda (boa) leitura, Genet- te visa a construir uma taxinomia formal das relagoes literd- rias pelo vies de uma cartografia genérica pare a leitura” L. Milesi, “Inter-textualités: enjeuxet perspectives”, In Texte(s) et intertexte(s) Rodopi, 1997, p. 22 Assim, 0 autor de Palimpsestes introduz o trabalho sobre a rela- ‘ao de um texto com um outro texto, e define, ento, a intertextua- lidade como “a presenga efetiva de um texto em um outro”; distin- gue-a da relacéo pela qual um texto pode derivar de um texto anterior, sob a forma sobretudo da parédia e do pastiche, e que ele chama de hipertextualidade. Voltaremos a ela mais adiante. Ele cha- ‘ma transtextualidade o objeto da postica, isto 6, 0 conjunto das ca- tegorias gerais de que cada texto procede e repertoria cinco tipos: 29 | A intertestuaidade —o primeiro é pois a intertextualidade, que ele define, coma acabamos de ver, por uma relagdo de co-presenca entre dois oy varios textos (priticas da citagao, do plégio, da alusio); —“O segundo tipo é constitufdo pela relagao, geralmente menos explicita e mais distante, que, no conjunto formado por uma obra literéria, o texto propriamente dito mantém com aqui- Jo que se pode apenas nomear seu paratexto: titulo, subtitulo, pre facio, ete"; —o terceiro tipo, que ele nomeia metatextualidade, descreve a relagdo de comentario que une um texto 20 texto do qual ele falas —o quarto, que constitu o objeto de Palimpsestes, justamen- te, é chamado hipertextualidade, —o quinto e tiltimo —a arquitextualidade — determina 0 es- tatuto genérico do texto. Limitando a definigao da intertextualidade, Genette permite, cenfim, resolver suas ambigiidades. Poder-se-ia objetar-Ihe que ele a priva de qualquer possibilidade hermenéutica e que reduz, com isso, seu alcance eritico. No entanto, ele apresenta a vantagem de descrever priticas antigas e modernas da literatura sem fazé-las de- pender estritamente de uma concepsao histérica da produgio tex- tual. Enfim, contrariamente as concepgdes extensivas, que privile sgiavam a componente transformacional da intertextualidade, ele insiste sobre a componente relacional —colocando sua dinamica transformacional do lado da hipertextualidade —, o que permite fazer dela uma nogao mais concreta "\G, Genete,Palimpeeste. La inérature au second degré, Sel 1982, p9. 30 Uma nogao int 3.2 Intertextualidade e hipertextualidade ‘com efeito, Gérard Genette distingue dois tipos de relagoes ou- trora confundidas, sob as duas categorias de intertextualidade e de hipertextualidade, separadas sob pretexto de que uma designa a.co-presenca de dois textos (A estd presente com B no texto B) € outra, a derivagio de um texto (B deriva de A mas A nao esté efe- tivamente presente em B). A intertextualidade €entao, “sob sua forma m: explicita e mais|iteral, [. . .]aprética tra- dicional da citagao (com aspas, com ou sem referéncia preci- sa); sob uma forma menos explicita menos candnica, a do pligio (em Lautréamont, por exemplo), que é um empréstimo no declarado, mas ainda literal; sob uma forma zinda menos explicita e menos literal, a da alusio, isto é, de um enunciado, ccuja plena inteligéncia supde a percepco de uma relagao en- tre ele € um outro ao qual remete necessariamente uma ou outra de suas inflexdes, que, de outro modo, nao seria acei- tavel.” G. Genette, Palimpsestes, op. cit, p.8. Contrariamente as caracteristicas desta presenca efetiva de um texto em ouuo, que € urna manera de impor a biblioteca de ma- neira horizontal, a hipertextualidade torna-a presente de maneira vertical. “Chamo, pois, hipertexto todo texto derivado de um tex- to anterior por simples transformacao (diremos doravante 31 | A intertestuatidade simplesmente transformacdo) ou por transformacao indireta: diremos imitagao.” Tbidem, p. 14 A heterogencidade do texto absorvido nao é, neste caso, va, mas a re-escritura ou o desvio da literatura anterior sio co- locados em evidéncia. Nos dois casos — é a principal distancia tomada em relagdo a Kristeva e as concepgées extensivas — 0 in- tertexto ou o hipotexto nao sao mais indeterminéveis, mas deter- minados, localizaveis, qualquer que seja o seu grau de implicito, O esforco terminolégico ¢ o rigor descritivo de Genette (voltare- ‘mos a isso no Capitulo I) obedecem a um exame dos fatos litera rios e & sua taxinomia. Repousam sobre praticas declaradas (ou observadas a posteriori) e nao sobre uma caracterizacao geral a priori da natureza da linguagem. Seo discurso te6rico continua geralmente chamando intertex- tualidade todas as manifestagdes de co-presenga e de derivagao dis- tinguidas por Genette (o que faremos mais adiante nesta obra), é preciso, entretanto, sublinhar os méritos desta divisio. O longo e ‘minucioso trabalho sobre a hipertextualidade desenvolvido em Pa- limpsestes — este titulo remete ao manuscrito apagado e re-esc to que deixa aparecer, em filigrana, vestigios variaveis do texto an- terior — permite em primeiro lugar esclarecer relagdes entre um texto presente ¢ um texto ausente, entre o atual e 0 virtual. Gesto maior da estética pelo qual a linguagem real do texto remete vir- tualmente sempre a uma outra linguagem, linguagem virtual no horizonte da figura e que considera o leitor-intérprete. 0 fato ret6rico comesa ali onde eu posso comparara for- mma dessa palavra ou dessa frase & de uma outra palavra ou de 32 Uma nogto instvel| ‘uma outta frase que teriam podido ser empregadas em seu lu- gate que podemos considerar que as substituem.” G. Genette, Figures I, Seuil, 1966, p.210. Senos permitirmos ligé-loa seu homénimo de significacao dife- rente, utilizado em informética (o que Genette se recusa a fazer), ohipertexto remete desta maneira ao texto ao mesmo tempo frag- mentrio ¢ infinito, Em Hypertext (1995"), George Landow analisa, por sua vez, 0s pontos de encontro entre a critica literéria contem- porinea e a tecnologia; ele mostra particularmente como o traba- Iho sobre as configuragdes em drvores desfaz a idéia, segundo a qual seria legivel apenas a narrativa linear, produzida segundo a ordem da cadeia causal. Apoiada no texto de Michael Joyce intitulado After- noon (1987), a anélise mostra que, no caso do romance hipertex- tual, a responsabilidade do fim, do encerramento e do continuo pertence somente ao eitor, coagido a diferentes tipos de bricolagem. Em seguida, a hipertextualidade segundo Gérard Genette, oferece a possibilidade de percorrer a histéria da literatura (como das outras artes) compreendendo um de seus maiores tracos: ela se faz por imitagao e transformagao. O exame de outras préticas artisticas, nos dominios pictural e musical, que Genette nomeia hiperestésicos, permite medir sua importincia. A parédia da Ja- conde, de Marcel Duchamp (LHOOQ, 1919), 0 disfarce das Me- nninas, de Velizquez, pot Picasso constituem equivalentes is pré- ticas textuais. A miisica, que se distingue da literatura por uma maior complexidade de seu discurso, autoriza transformagoes de duas naturezas: no texto da partitura, mas também na interpre- tagdo pela execugao; elas tomam as formas da parédia ou da G. Landow, Hypertext 20. The convergence of contemporary critical theory ad ‘echlogy, Baltimore, The Johas Hopkins University Pres 1995, 33 | inertestatidade transposi¢ao, por variagao ou por pardfrase. A imitagdo caracte- riza-se, como na literatura, por principios de continuacdo ou de pastiche (os exemplos escolhidos sao A Bela Helena, de Offenbach, € Dueto dos gatos, de Rossini). Esse desvio por outros territérios estéticos permite sublinhar a importancia da distingdo, no seio das priticas hipertextuais, da transformagao (parddia ou disfarce bur- lesco} e da imitacéo (pastiche). Permite sobretudo colocar em evi- déncia a diversidade e a importincia das “praticas de arte em se- gundo grau’, Essas duas categorias da transtextualidade, intertextualidade ¢ hipertextualidade sao definidas como fatos ¢ jogos da escritura diterdria, A restrigao era necesséria: ela € decisiva para a compre- ‘ensdo da nogao de intertextualidade e sua validade no discurso cri- tico, seu uso no estudo concreto de uma obra. 4 COLAGENS EJUNCOES: (OS SINCRETISMOS FLEXIVEIS 4.10 trabalho da citagdo: Antoine Compagnon Antes da nova teorizagao de Gérard Genette, criticos tinham per- cebido o interesse da intertextualidade para substituir a tradicio- nal critica das fontes a0 mesmo tempo que sua necesséria restri¢ao para analisar praticas. Se admitimos, de fato, que todo texto é se- gundo, que ele vem depois de outros textos, ainda € preciso del mitar alguns desses textos anteriores para se dedicar a um traba- Iho de anilise critica. Portanto, com uma preocupago menos teérica que critica (nv sentido em que ele nao se dedica simples- 4 {Uma nogao instével | mente a descrever de modo formal fatos, mas procura também in- terpreté-los nos textos), Antoine Compagnon propée, em 1979, um trabalho sistemético sobre a pratica intertextual dominante: a citagio. Mesmo descrevendo-a como manifesta¢ao particular, ele acapta também de modo geral, fazendo dela o emblema das exigén- cas transformacional e combinat6ria de qualquer escritura litera ria. Fe se situa pois no cruzamento das concepcées extensivas ¢ res- tritas da intertextualidade. Antes definida como “repetigao de uma unidade de discurso num outro discurso’, “um enunciado repetido ¢ uma enunciacdo repetente””, a citagao € a reprodugio de um enunciado (texto citado), que se encontra extraido de um texto origem (texto 1) para ser introduzido num texto de acolhida (texto 2). O autor analisa, entdo, todas as modalidades posstveis do novo valor neste contexto de reinser¢ao. Indo mais longe, ele sistemati- zaa citagdo para fazer dela o modelo de toda escritura literéria “O trabalho da escritura é uma reescritura, visto que se tra- ta de converter elementos separados e descontinuos num todo continuo e coerente [. ..] Reescrever, realizar um texto a par- tir de seus fragmentos, ¢ arranjé-los ou associé-los, fazer as li- gagbes ou as transigdes que se impdem entre os elementos pre- sentes. Toda escritura é colagem e glosa, citacao e comentério” A. Compagnon, La seconde main, op. cit., p.32. Aconclusio muito (demasiado?) geral nao deve fazer esquecer «a notavel validade descritiva das priticas de reescritura. Como Ge- nette que fornece uma maior formalizacio a seu respeito, Compag- non modifica a nogdo para aplicé-Ia ao exame dos textos e dé ori- gem aos fundamentos a0 mesmo tempo técnicos ¢ psicolégicos da ‘A. Compagnon, La seconde main ou le travail de citation, Sui, 1979, p. 56 35 | A intertestuaidade bricolagem de citagdes. Se tomarmos o exemplo de dois dos maiores autores do século XX, Joyce e Proust, 0 primeiro fez da tesoura e da. -cola os objetos emblemiticos da escritura; o segundo, “paperoles’, tras de papel coladas e superpostas por estratos sobre o manuscri- ‘to, o movimento de expansio da obra. Esses tragos de uma relaco- ‘original concreta com o papel, com o prazer nostélgico de jogo- infantil em que o mundo de papel é um mundo a sua imagem, que ‘se assemelha e que retine, nés os encontramos na citaco, na qual -colagem se deixa aparecer mais ou menos. Considerar a intertextua- ‘idade como colagem é enfatizar uma transferéncia exterior mais do que o dislogo, as marcas de uma passagem, de um empréstimo- mais do que 0 processo de transformagao. A heterogeneidade éposta. ‘em evidéncia entre material emprestado e texto de acolhida e a di- namica da bricolagem (ou bri-colagem, conviria escrever aqui) pre- sside a0 exame das relagdes intertextuais. A imagem da escritura que Euripides>Racine), 74 A meméria da literature | a fibula (narrativa oral>Esopo>La Fontaine>Florian), 0 retrato moral (sabedoria popular>Teécrito>La Bruyere). . . Dois fatores ‘0 explicam: o primeiro, hist6rico, esté ligado ao nascimento des- tes generos, a uma época em que as nogdes de originalidade e de autor nao prevaleciam na criacao literdria; 0 romance moderno, ‘20 contrario, aparece numa época que exalta a individualidade do ‘autor ¢ a propriedade literéria. O segundo fator relaciona-se & ma- ria €8 visada destes géneros: repousando sobre um patriménio -coletivo, os mitos fundadores ou a sabedoria das nagdes, a tragé: dia ou os géneros moralistas desenvolvem uma narrativa ou do uma ligo que ndo muda. Ao mesmo tempo porque a literatura é transmissdo, mas também porque ela acarreta a retomada, a adap- tagao de um mesmo assanto a um publico diferente. E do mesmo modo que um novo amor faz nascer a lembranga do antigo, a lite- ratura nova faz nascer alembranca da literatura. Desde a origem, a literatura esté duplamente ligada a meméria, ‘Oral, ela € recitada, seus ritmos e suas sonoridades sio organizados de maneira que se inscrevam por muito tempo na memeéria. Seus -proprios contetidos procedem de uma obrigacdo de meméria: cole- ‘tivamente, é preciso recolher a gesta fundadora, coletar e registrar ‘os altos feitos, as agdes resplandecentes, uma est6ria constitutiva e cconstituinte. A origem esta li, na necessidade absoluta de precisar uma origem. Em seguida, mas quase simultaneamente, a literatura, ccontinuando a carregar a meméria do mundo e dos homens (se :ndo fosse pela forma de testemunho), inscreve o movimento de sua propria meméria. Mesmo quando ela se esforga para cortar 0 cor- dao que a liga 8 literatura anterior, quando ela reivindica a trans- {gressio radical ou a maior originalidade possivel (ser sua prépria ‘origem), a obra poe em evidéncia esta meméria, jé que, alids, se separar de alguma coisa é afirmar sua existéncia. 7 | A imterectualidade E interessante que a literatura ea parddia, os generos nobres @ seus disfarces burlescos, tenham aparecido quase concomitante. mente. Desde @ Antigtidade, muitas par6dias da ilfada foram, produzidas, das quais a mais célebre (chegou até nés} € Batraco.. miomaquia®, Conservando o estilo da Iliada ea maneira homérica, © texto desvia 0 assunto, transformando a luta entre gregos etroia. nos em combate entre ratos (mus, muos) eas ras (batrachos), 0 que corresponde exatamente & definigao da parddia, segundo Genette, ‘Aos 24 cantos da Ilfada respondem 293 versos que retomam, resu- ‘mindo-a, a estrutura do poema de Homero em quatro momentos principais: as causas da guerra; os preparativos;a batalha; 0 desen- lace. As personagens principais tém seus duplos cémicos: Maxigoi tre € Paris, Rongecrodte é Menelau e Rognerapine, é Aquiles. Do lado das ras,“os troianos” obedecem aos doces nomes de Coassin, Amideleau ou Vautrefange. Quanto a Zeus, apelidado de Cronide, filho de Cronos, assemelha-se perfeitamente ao deus de Homero. Numerosos tragos de estilo foram conservados, da forma do verso (heximetro datilico) & especificidade do grego (mistura de ioniano € de eoliano), as formulas recorrentes eas perifrases homéricas. “Oscombatentes tinham todos se reunido no campo de ba- talha, Mosquitos, agitando grandes trombetas, ‘Anunciavam o sinal do combate: cumes celestes, Zeus o Cronide rosnou, prességio de rude batalha. Hautcoasseut, o primeiro, feriu com sua estace Léche- Ihomme, La Batractomymache, precedida do Discours sur la Barachomyomadhi de Giacomo ‘Leopardi trad. do grego por Ph Brunet, lia, 1998. 76 ‘A mermria da iteratra | ‘Que se mantinha na frente, Ihe furando o figado pelo ven- tre, ‘Testa contra a terra, caiu, manchando sua tenra pelagem’ G. Leopardi, La batrachomyomachie, op. cit. v. 198-204. A trivialidade do assunto obriga evidentemente a desviar 0 estilo, deslizando do elevado para o burlesco, resultando em po- derosos efeitos cOmicos. A presenca dos mosquitos, o sintagma (“tenra pelagem’, contrastam fortemente com as expressdes hriperbolicas (“pressagio de rudes batalhas’, os verbos “anunciavam” e“rosnar”) € as periftases, diretamente tomadas de Homero. O canto XX da Ilfada, que relata 0 comeco da batalha, constitui aqui a referencia direta & evocagao do combate das ras e dos ratos ¢ ¢ cle que ¢ ridicularizado por este texto (que data provavelmente do VI século antes de nossa era — mesmo que tenha sido por muito tempo atribuido ao préprio Homero—, ele lhe ¢ posterior em apenas trés séculos). Destinado a fazer 0 auditério rir, este poema parddico associa a meméria do autor ea do auditor ou do leitor: registra plenamente uma meméria comum da epopéia, da qual fala tanto quanto de si mesmo. Se tém antes uma visada comica, as operacdes de deslocacdo € de contraste tém também como finalidade instalar o texto nesta referencia arquimemo- tial (de arché, em grego, ao mesmo tempo, comego e comando) nestes monumentos da meméria que slo os textos conhecidos de todos. Escrever € pois re-escrever. . . Repousar nos fundamentos existentes e contribuir para uma criagao continuada. Flaubert: “Aquele que Ihe perguntasse de onde veio aquilo que escreveu, 0 7 [A intertextuatidade autor responderia: «imaginei, lembrei-me e continuei»”.” As atic Vidades de leitura e de escritura se interpenetram entao como em reflexos sem fim. Como o antigo e 0 novo. “Cada livro, escreve Mi- -chel Schneider, é0 eco daqueles que o anteciparam ou o pressigio -daqueles que o repetirao®” CChega-se a considerar a intertextualidade nao como o simples fato de citar, de tomar emprestado, de absorver 0 outro, que seria uma técnica literérie entre outras, mas como uma caracterizacao

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