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UNIVERSIDADE FUMEC

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS, SOCIAIS E DA SAÚDE - FCH


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO

Anna Lídia Di Nápoli Andrade e Braga

MITO DA LILITH: A INSERÇÃO FEMININA NA SOCIEDADE OCIDENTAL

Belo Horizonte

2022
ANNA LÍDIA DI NÁPOLI ANDRADE E BRAGA

http://lattes.cnpq.br/2002607907594916

MITO DA LILITH: SOBRE A INSERÇÃO FEMININA NA SOCIEDADE


OCIDENTAL

Artigo apresentado ao Programa de Pós-Graduação


Stricto Sensu em Direito da Universidade FUMEC,
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia.
Linha de pesquisa: Esfera pública, legitimidade e
controle (Direito Público).
Orientador: Prof. Dr. Frederico Gabbrich

Belo Horizonte

2022
RESUMO

O presente estudo, por meio de análise sociológica, histórico-legislativa e científica


política visa a analisar as limitações, os desafios e as perceptivas das mulheres na
sociedade democrática ocidental. Pretende-se discutir o papel feminino desde o mito de
Lilith, passando pelo direito canônico estabelecido no Antigo Regime, alcançando o
contexto hodierno de cerceamento dos aspectos femininos do ser humano. Esse artigo
científico pretende confirmar a grave ameaça que a desigualdade de gênero acarreta à
democracia, que é impulsionada pelo machismo estrutural inerentes às sociedades
contemporâneas. Por meio de um estudo sobre a o conceito de representação, busca-se a
efetivação da igualdade de gênero para consolidação dos valores democráticos ocidentais.

Palavras-chave: Lilith; Antigo Regime; Democracia; Psicanálise; Igualdade de Gênero

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Sumário

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 9
1 LILITH ANIMUS .................................................................................................................. 10
2 A SUBJUGAÇÃO DO FEMININO PELO ESTADO-IGREJA ........................................ 12
3 CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE PARA LEGITIMAÇÃO DO FEMININO EM
SOCIEDADE ............................................................................................................................. 16
CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 19
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 21

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J’ai longtemps hésité à écrire un livre sur la femme. Le sujet est
irritant, surtout pour les femmes; et il n’est pas neuf.

Simone de Beauvoir (1949)

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INTRODUÇÃO

A ausência de mulheres, dotadas de direitos individuais, era uma realidade que


deriva em uma grande perda para a consolidação da identidade feminina no mundo
contemporâneo ocidental. O cerceamento do feminino é uma lesão na formação social
dos dias atuais, uma vez que mulheres correspondem a 50% da população mundial.
O tema-problema desse trabalho consiste em proceder a um estudo crítico acerca
das limitações, dos desafios e das perspectivas de mulheres que, atualmente, percebem-
se cerceadas de expressar sua individuação, seu anima e, consequentemente, sua
feminilidade na sociedade, considerada, ocidental e cristã.
Assim sendo, pretende-se discutir o papel feminino desde o mito de Lilith,
confrontando-o com o direito canônico, estabelecido no Antigo Regime, que resulta na
repulsa tradicional a aspectos femininos intrínsecos ao ser humano, percebida em
contexto hodierno no Brasil.
A partir dessa abordagem, ambiciona-se denunciar que o machismo estrutural,
inerente à sociedade contemporânea, ainda, limita a plena participação de mulheres na
vida pública. Almeja-se, outrossim, discutir questões psicanalíticas em torno do falo e de
sua ausência.
O projeto de construção de um uma sociedade legitimamente igualitária não está
completa, uma vez que encontra diversos entraves para sua concretização, justificando a
relevância da presente pesquisa.
Para fins de demarcação teórica, é importante ressaltar que, em 1988, com a
promulgação da Constituição da República, assegurou-se, no artigo 5º, um Estado laico
de respeito à liberdade religiosa, separando as esferas administrativas e religiosas, bem
como a igualdade perante a lei, destacando os idênticos direitos e obrigações tanto para
homens quanto para mulheres (BRASIL, 1988).
Além disso, a complexidade do ser humano justifica a revisitação, nesse trabalho,
da teoria de Emma Jung sobre “Anima e Animus” (1967), do complexo de Édipo e da
questão fálica desenvolvidos por Sigmund Freud (1901-1905).
Para o presente estudo, utilizar-se-á ainda a pesquisa bibliográfica e o método
dedutivo, partindo-se de uma perspectiva macro para uma concepção micro analítica
acerca do tema ora em estudo e, por fim, como procedimento técnico a análise temática,
teórica e interpretativa, buscando sugestão para a solução da questão destacada.

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1 LILITH ANIMUS

Lilith, a primeira Eva, é o irresistível demônio feminino da noite, de longos


cabelos, que sobrevoa as mitologias sumária, babilônica, assíria, cananeia, persa,
hebraica, árabe e teutônica (KOLTUV, 1997). A mulher devassa, a fêmea impura, o fim
de toda carne, a dama de pernas de asno, a estrangeira: o Outro.
Segundo de Beauvoir (1949), a categoria do Outro é tão original quanto a própria
consciência. Desde os primórdios de existência humana, seja nas mais primitivas
sociedades e nas mais antigas mitologias, como a da Lilith, tem-se a existência de uma
dualidade: a do Mesmo e a do Outro. A princípio, essa divisão não ocorria sob o signo
dos sexos, de modo que nenhuma coletividade se definiria como Uma, sem mencionar
imediatamente a Outra de diante de si.
As origens de Lilith, assim como a do Outro, são tão obscuras quanto o próprio
tempo. Koltuv (1997) descreve que ela surgiu do caos, embora haja muitos mitos sobre
seus primórdios. Ela, em todos eles, é percebida como uma força contrária, um peso
contra outro de uma balança equilibrada entre a bondade e a masculinidade de Deus, de
igual grandeza.
No primeiro relato do Velho Testamento sobre a criação da mulher: “Deus criou
o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea os criou” (Gên. 1:27).
Percebe-se, nessa passagem, que tanto Deus quanto Adão eram seres andróginos,
continham o aspecto feminino e o masculino em seu ser. Essa perspectiva é confirmada
e explicada pelo diagrama de quartenio do casamento. Nos mitos cabalísticos, os pares
são, acima, Deus e seu aspecto feminino, que nele habita, a Shekhina, e, abaixo, Samael,
o Diabo, que contém em seu interior Lilith (KOLTUV, 1997).
Na concepção natural primitiva, a alma não é bem uma unidade, e sim um
complexo múltiplo indeterminado (JUNG, 2011). Na alma, existem representações que
se originam da experiência direta conhecida de cada ser. Essas representações, por vezes,
são tomadas por impulsos, sentimentos, pensamentos que aparentemente desconhecidos
daquele indivíduo. Não se trata de algo bom ou mau, mas, simplesmente, de um Outro
diferente, que, surpreendentemente, faz se valer por si mesmo, com vontade e opinião
próprias, dando a impressão de que o indivíduo está tomado ou possuído por espíritos
estranhos.

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Dessa forma, o eu consciente é apenas um aspecto da psique, pois o inconsciente,
externo à consciência do eu, aparece não somente em sonhos, mas também em conteúdos
e atividades existentes. A idealização de Persona, para Jung (1984), seria a face externa,
que pode ser observada pelo mundo.
O Zohar, trabalho fundamental da literatura cabalista e do misticismo judaico,
define Lilith como a primitiva energia feminina, a fêmea de Adão: ser andrógino de dois
rostos, cada qual para uma direção. Assim sendo, Lilith é uma parte intrínseca de Adão,
foram criados por Deus e coabitam no mesmo corpo. A princípio Adão se relacionava
sexualmente com Lilith e com os animais, bem como possuía uma sexualidade natural e
instintiva. No entanto, essa inconsciente inteireza era uma afronta a Deus, que impôs a
Adão o sacrifício de seus instintos, de modo que o fez perder o contato com sua Anima,
a Litith, e com seus modos lunares (KOLTUV, 1997). Assim sendo, não é de se estranhar
que Adão e Lilith tenham tido conflitos, porque dentro de um só corpo havia uma
complexidade de vontades e de sentimentos, que, por vezes, eram vistos como
antagônicos.
Entre os arquétipos de Jung (1984), existem dois que são investidos de grande
significado, o consciente, visto como a Persona, e o inconsciente, a face interna. Essas
duas figuras – uma masculina e outra feminina – foram denominadas de Animus e Anima.
Há, nesse sentido, um complexo funcional que age de forma compensatória, em relação
à personalidade externa, sendo que uma personalidade interna apresenta as propriedades
que estão ausentes à personalidade interna. São as características femininas no homem e
masculinas na mulher, denominadas, respectivamente, Animus e Anima, sempre
presentes em determinada medida e incomodas para adaptação externa ou para o ideal
existente, não encontrando espaço algum na Persona voltada ao exterior.
A criação de Eva deu-se no contexto da complexidade e da unicidade de Adão.
Eva, destinada a ser a mãe de todos os que vivem e feita da costela do próprio adão (Gên.
2:18-24), não era tão poderosa ou primordial quanto Lilith, com quem Adão se encontrava
apenas à noite, em suas ereções noturnas enquanto adormecido. Essa metáfora da noite e
do sono remete ao arquétipo Animus de Adão, que, inconscientemente, desperta suas
características femininas fora do alcance do mundo exterior e de sua própria consciência.
Lilith, ao ser preterida por Deus, frente a Adão, o arquétipo do masculino
consciente, escolhe o deserto, simbolizando a fuga, o desprezo e o isolamento do
inconsciente Animus. Com efeito, o feminino encara o isolamento de Lilith em meio a

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uma violenta raiva com que se recusa a submeter-se a um arrogante poder masculino,
escolhendo, em vez disso, o desolado deserto e a companhia dos demônios.
Fugindo do direito divino de Adão, Lilith escolhe o deserto. Ela não será abatida,
nem sujeitada. Ela não se submeterá. Lilith é aquela qualidade pela qual uma mulher se
nega a ser aprisionada num relacionamento. Ela não deseja a igualdade e a uniformidade
no sentido de identidade ou fusão, mas os mesmos direitos de se mover, mulher e de ser
ela própria. (KOLTUV, 1997).
A desconexão é necessária à introjeção e integração de Lilith. Sozinha, na cabana
menstrual, uma mulher pode refletir a respeito de suas feridas, lamber seu próprio sangue
e tornar-se curada e nutrida. Há uma fria lógica lunar para a periódica necessidade de
fugir para o deserto, para o pântano e para a solidão. A menstruação é a comprovação que
a mulher não fertilizou. O sangue é o símbolo de seu fracasso em gerar uma vida e de
obter o falo (FREUD, 1901-1905). É a castração dela como mulher, uma vez que na
feminilidade, ela não tem o falo (KEHL, 2008)
Esse exílio é descrito no Velho Testamento como uma terra árida, encharcada de
sangue, covil de pelicanos, corujas e corvos (Is. 34:14). Na escuridão da lua, ali no
deserto, distante das críticas e formas tradicionais, a mulher pode entrar em contato com
a elementar natureza feminina em seu íntimo, o que tende a ocasionar um processo natural
de cura.
Durante sua permanência no deserto, Lilith é transformada por sua vivência da
solidão e da desolação. Ela se torna um aspecto do eu feminino, simbolizado pelas
corujas, a sabedoria da noite. No deserto, as noturnas e lunares corujas e Lilith tem,
finalmente, ascendência sobre os leões solares de consciência masculina (KOLTUV,
1997). Dá-se, nesse momento, o despertar do Anima no feminino.

2 A SUBJUGAÇÃO DO FEMININO PELO ESTADO-IGREJA

Ao não ser diretamente mencionado na bíblia católica, o mito de Lilith


compromete o reconhecimento social dos aspectos femininos intrínsecos ao ser humano.
Neumann (1959) descreve a necessidade e o valor dessas ações heroicas da mulher, a fim
de que se mova da fase de consciência matrimonial e patriarcal para a individuação e para
um encontro do ego feminino com o eu feminino.
A tradicional forma patriarcal do matrimônio, preferida por Adão, na qual o
homem sustenta as qualidades masculinas de atividade e de domínio, enquanto a mulher
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sustenta as qualidades femininas da dependência e submissão, tem como resultado, a
opressão da mulher e seu encarceramento, impedindo-a de tornar-se ela mesma. Para
crescer e se desenvolver psicologicamente, uma mulher precisa integrar as qualidades de
liberdade, movimento e instintividade de Lilith (KOLTUV, 1997). No entanto, a Lilith é
pouco integrada, além de sua simbologia ter sido suprimida ao longo da história, em
especial no período de ascensão da igreja católica como formuladora de leis no Estado.
Desde tempos muito antigos, em especial depois que o cristianismo se tornou a
religião estatal no século IV, o clero reconheceu o poder que o desejo sexual conferia às
mulheres sobre os homens e tentou persistentemente exorcizá-lo, identificando o sagrado
com a prática de evitar as mulheres e o sexo (FEDERICI, 2017). Entre as medidas
adotadas pela igreja católica, houve a expulsão de mulheres de qualquer momento da
liturgia e do ministério dos sacramentos; a usurpação da liberdade de usar trajes
femininos; a imposição da vergonha sobre a sexualidade. Nesse sentido, a casta patriarcal
tentou quebrar o poder das mulheres e de sua atração erótica.
Além disso, Simone De Beauvoir (1949) argumenta que, na mesma época, a
mulher não poderia pretender um domínio feudal, uma vez que seria incapaz de defendê-
lo. Essa situação muda no momento em que os feudos passam a ser hereditários e
patrimoniais. A mulher torna-se o instrumento pelo qual a propriedade se transmite, e não
sua possuidora, portanto não se emancipa, sendo absorvida pelo feudo, na mesma
condição dos bens móveis de um lar. Dessa forma, a mulher é escrava da propriedade e
do senhor dessa propriedade por meio da proteção de um marido que lhe é imposto. Nesse
contexto, aos homens eram-lhes permitidos castigos corporais, legitimados pelas leis
canônicas vigentes, que autorizavam a repressão razoável do marido sobre a mulher.
Quanto à sexualidade, Federici (2017) descreve que ela permeou termas de
confissão, nos quais os mais íntimos detalhes das funções corporais entraram em
discussão. A sexualidade, portanto, obteve novo significado, sendo que os distintos
aspectos do sexo foram divididos no pensamento, na palavra, na intenção, nas vontades
involuntárias e nos fatos reais para conformar uma ciência da sexualidade. Nesse sentido,
a igreja católica inicia um possível catecismo sexual (FEDERICI, 2017), prescrevendo
detalhadamente as posições permitidas durante o ato sexual, os dias em que se podia fazer
sexo, com quem era permitido e com quem era proibido. Apenas uma posição era
permitida durante o sexo, essa simbologia remete ao mito da Lilith, quem se negou a
submeter a Adão, reivindicando uma posição de igualdade, também nesse contexto
(KOLTUV, 1997).

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Essa supervisão sexual aumentou no século XII, quando os concílios de Latrão de
1123 e 1139 proibiram a prática corrente do casamento e do concubinato entre clérigos,
estimulado pelo receio de que as esposas dos padres interferissem excessivamente nas
questões da igreja católica (McNama e Wemple, 1988), e declararem o matrimonio como
um sacramento cujos votos não podiam ser dissolvidos. Nesse sentido, foram reiteradas,
também, limitações impostas pelos penitenciais sobre o ato sexual.
A igreja sustentava a exclusão e subjugação da mulher, salientando seus aspectos,
confirmando a imposição do direito canônico sobre elas. Em Beauvoir apud. Songe Du
Verger (1949), este afirma:
“Entre as más condições que tem as mulheres, acho, em direito, que
elas têm nove: uma mulher por sua própria natureza busca seu
prejuízo, são avarentas, suas vontades são caprichosas, elas são
naturalmente más, hipócritas, falsas e, portanto, segundo o direito
civil, uma mulher não pode ser aceita como testemunha em
testamentos, em consequência uma mulher faz sempre o contrário
do que lhe mandam fazer. São matreiras e maliciosas. ”

Monsenhor santo Agostinho, em similar análise, afirmava que “a mulher é um


animal que não é seguro nem estável”; “é odienta para tormento do marido, é cheia de
maldade e é o princípio de todas as demandas e disputas, via e caminho de todas as
iniquidades” (DE BEAUVOIR apud santo Agostinho, 1949).
Essas medidas conformaram a Lei Canônica, como instrumento de governo, de
disciplina e de ordem (FEDERICI, 2017). Paradoxalmente, em todos os países do Antigo
Regime, uma das consequências da escravização da “mulher honesta” à família é a
existência da prostituição. Relegadas hipocritamente à margem da sociedade, as
prostituas desempenham papel dos mais importantes (de Beauvoir 1949). De acordo com
Federici (2017), as prostitutas eram mulheres que foram desonradas por meio do estupro,
crime comum à época, praticamente impassível de pena.
O cristianismo despreza as prostitutas, mas aceitam-nas como um mal necessário.
A prostituição era uma profissão regulamentada pelo Estado, uma vez que continham,
entre outros desvios da época, o homossexualismo (FEDERICI, 2017).
A esse respeito, santo Agostinho (DE BEAUVOIR apud santo Agostinho, 1949)
estabelece “suprime as prostitutas e perturbareis a sociedade com a libertinagem” e é
confirmado por são Tomás de Aquino “Eliminais as mulheres públicas do seio da
sociedade, e a devassidão a perturbará com desordens de todas espécie. São as prostitutas,

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numa cidade, a mesma coisa que uma cloaca num palácio; suprime a cloaca e o palácio
se tornaram um lugar sujo e infecto” (DE BEAUVOIR apud são Tomás de Aquino, 1949).
A organização da sociedade tornava a prostituição necessária, segundo
Schopenhauer as prostitutas são os sacrifícios humanos no altar da monogamia (DE
BEAUVOIR apud Schopenhauer, 1949). O homem procura saciar seus desejos mais
ocultos com a figura desdenhada pela sociedade, sendo, por vezes, reconhecida como
Lilith, por serem tachadas, legalmente, de infames. Elas não detinham qualquer recurso
contra a política e a magistratura, vivendo na miséria, sob constante violência e em casa
públicas, majoritariamente, de acordo de Beauvoir (1949).
Nesse contexto, pode-se afirmar o desdém por Eva, a mulher pecadora, e por
Lilith, o feminino renegado, culminando na exaltação de Maria, a Mãe Virgem do
Redentor. O culto da Virgem, segundo de Beauvoir (1949), tornou-se tão importante
nessa época que é confirmado que Deus se fizera mulher para os católicos.
Na Igreja Católica, as mulheres não existiam, embora, entre os heréticos, fossem
consideradas como iguais, possuindo os mesmos direitos, como a uma vida social, a
celebrar cultos e pregações, e a uma mobilidade que não existia no Antigo Regime
(FEDERICI, 2017). Os hereges provinham dos setores mais pobres dos servos e
constituíam um verdadeiro movimento de mulheres que se desenvolveu dentro do marco
dos diferentes grupos de hereges. A esse respeito, discorre Simone de Beauvoir (1949)
que, na contemporaneidade, é entre os ricos proprietários fundiários que subsiste a família
patriarcal; quanto mais poderoso se sente o homem, social e economicamente, mais se
vale da autoridade do pater famílias. Assim sendo, vê-se que não foram nem o feudalismo,
muito menor a igreja que emanciparam as mulheres.
Ao dialogar com o disposto por Silvia Federici (2017), Simone de Beauvoir
(1949) conclui que o servo e sua esposa não possuíam nada, tinham somente o gozo
comum da casa e de seus poucos pertences: o homem não tinham nenhuma razão para
procurar tornar-se senhor da mulher que nada possuía, pelo contrário, os laços de trabalho
e de interesses, que os uniam, elevavam a esposa ao nível de companheira. Ao passo que
a mulher rica garantia sua ociosidade com a submissão.
As hereges estão presentes nas crônicas da Inquisição, sendo que algumas delas
foram queimadas na fogueira e emparedadas para o resto de suas vidas. Outrossim, o
controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser percebido como uma ameaça à
estabilidade econômica e social, o que é comprovado no período posterior à catástrofe
demográfica da Peste Negra, que dizimou mais de um terço da população europeia entre

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1347 e 1352 (FEDERICI, 2017). Assim sendo, os hereges foram acusados de sodomia,
de rituais de orgia, voos noturnos e sacrifícios de crianças – Lilith é, também, vista como
assassina de crianças e de homens (MITOGRAFIAS, 2019). Coincidindo com o esse
processo, que marcou a transição da perseguição à heresia para a caça às bruxas, a figura
do herege tornou-se, gradualmente, a de uma mulher, de forma que, no início do século
XV, a bruxa se transformou no principal alvo de perseguição.
São tantos os elementos que se conjugam contra a independência da mulher que
nunca se encontram abolidos ao mesmo tempo: a força física não mais importa, mas a
subordinação feminina permanece útil à sociedade, em especial por meio do matrimônio.
Assim sendo, o poder marital sobrevive ao desaparecimento do regime feudal. Vê-se
afirmar-se o paradoxo que se perpetua até hoje: a mulher mais plenamente integrada na
sociedade é a que possui menor número de privilégios; na época feudal civil, o casamento
conserva o mesmo aspecto que tinha no feudo militar; o esposo permanece como tutor da
esposa (DE BEAUVOIR, 1949).

3 CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE PARA LEGITIMAÇÃO DO


FEMININO EM SOCIEDADE

Segundo os dados da biologia, Simone de Beauvoir (1949) critica que “os


amadores definem a mulher, simplistamente, como uma matriz, um ovário; é uma fêmea,
e esta palavra basta para defini-la”.
Se, por um lado, a rainha das terminas reina sobre os machos escravizados; a
fêmea do louva-a-deus e a aranha, fartas de amor, matam o parceiro e o devoram, a cadela
no cio erra pelas vielas, deixando atrás de si um rastro de odos perversos; a macaca exibe-
se impudentemente e se recusa com faceirice hipócrita; por outro, Napoleão declara que
a mulher humana, assim como uma pereira pertence ao proprietário de peras, a mulher é
propriedade do homem a quem fornece os filhos. A mulher não tem quase nenhuma
relação direta com os poderes públicos, nem relações autônomas com indivíduos
estranhos à sua família (DE BEAUVOIR, 1949).
Inerte, impaciente, matreira, estúpida, insensível, lubrica, feroz, humilhada, o
homem projeta na mulher todas as fêmeas ao mesmo tempo. E o fato é que elas são a
fêmea: a Eva e a Lilith. Esta, enquanto o primitivo, instintivo e livre espirito da mulher –
“macho e fêmea os criou, à sua própria imagem os criou” – e aquela, enquanto recém-
criada “mãe de todos os que vivem”. E há, também, Adão, como homem, consciente de
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sua instintividade e de sua necessidade de usá-la a serviço do eu (KOLTUV, 1997). Toda
mitologia a respeito de Lilith é repleta de imagens de humilhação, diminuição, fuga e
desolação, sucedidas por uma profunda raiva de vingança, na pele de uma mulher
sedutora e assassina de crianças.
O fato de Lilith discordar de Adão não surpreende, quando se considera sua
natureza sombria, ardente, feminina e lunar. Por que adão teria o direito divino sobre a
propriedade e Lilith não? Sendo que eram ambos filhos de Deus. A reivindicação de Lilith
por igualdade fundamenta-se nisso, e ela se recusa a ser mera terra para Adão (KOLTUV,
1997).
As mulheres, historicamente, foram alijadas dos centros das tomadas de decisões,
porquanto, no período pós-feudal, ainda que não se possa afirmar o machismo como um
conceito nesse momento, é marcada a categorização do trabalho por gênero, tendo sido
relegado às mulheres o trabalho doméstico. A esse respeito, Federici (2017, p. 12), explica
que, mesmo nos estudos críticos e mais aprofundados sobre o processo de construção da
sociedade capitalista pós-feudal, de Marx e de Engels, a importância e a relevância do
trabalho doméstico na criação do proletariado industrial foram desconsideradas. Nesse
sentido, a discriminação feminina não é uma herança da era pré-moderna, senão um
legado da formação do capitalismo, construída sobre diferenças sexuais existentes e
reconstruída para cumprir novas funções sociais (FEDERICI, 2017, p. 30).
Esses questionamentos remetem à construção da sociedade ocidental, embora,
antes de sua elaboração, existissem outras sociedades, com outras composições. Nestas
comunidades, não havia a preocupação com a linhagem dos filhos e as relações amorosas
e sexuais entre homens e mulheres eram livres. Teria sido com a descoberta da concepção
da vida humana que os homens teriam passado a estabelecer relações de disputa e domínio
sobre as mulheres, preocupando-se com a linhagem descendente (CHECHIA, 2020).
Nesse sentido, a suposição de Freud que a instituição da cultura seria
concomitante à instituição do patriarcado, ele desenvolve sua teoria fálica sobre a hipótese
de que o patriarcado seria inerente a qualquer comunidade humana. Não havendo, nesse
caso, questionamento sobre sua existência e sua destituição, a fim de conceder espaço
para a formação de uma nova ordem social (CHECHIA, 2020).
A esse respeito, Viveiros de Castro (2008) defendeu a reintegração da vida
selvagem na civilização industrial, a fim de almejar a emergência de um “homem novo”,
do “homem natural tecnizado”. Ele utiliza das teorias psicanalíticas, marxistas e
antropológicas, ao criar uma concepção de mundo antropofágica, baseada na síntese

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dialética entre o selvagem e o civilidade, o popular e o erudito, a liberdade e a técnica, o
que contrapõe as filosofias, as religiões da transcendência e, sobretudo, as formas de
organização sociopolítica baseadas no patriarcado.
Dessa forma, Lacan questiona a função fálica, para afirmar que em todas as
sociedades o poder político é androcêntrico, sendo que, no contexto político, há uma
confusão entre cetro (símbolo do poder político) falo (significante mestre, chave da
operação de constituição da subjetividade). Se há uma confusão, não há, exatamente, uma
fusão. Isso leva a constatar, segundo Chechia (2020), que poderia haver uma distinção e
não uma identificação entre cetro e falo.
A ideia do falo é anterior ao patriarcado, mas foi Freud (1901-1905) quem
começou esse conceito a partir da estrutura patriarcal que analisou. O falo, dessa forma,
torna-se uma função de poder. A posição fálica, portanto, seria transitória, circularia,
conforme Foucault e Lacan.
O embate entre Adão e Lilith, nesse sentido, é justamente um conflito de desejos.
O desejo, segundo Kehl (2008) é a posição a partir da qual o sujeito almeja o objeto que
irá privilegiar, e o discurso a partir do qual enunciará sua presença mundana. Uma vez
divididos e nomeados como homem e mulher, haverá o sacrifício de algumas
possibilidades de satisfação da pulsão. Desse contexto, tem-se a diferenciação freudiana
fundamental de ativo e passivo, para as posições masculina e feminina, sujeito e objeto
em relação ao desejo de um semelhante, um outro, para além da condição fundamental
do desejo que, segundo Lacan, é sempre a de “desejo do desejo do Outro”
Nesse sentido, tem-se a masculinidade e a feminilidade, composta tanto pelas
identificações que estruturam o eu consciente, não apenas segundo os modos de cada
cultura organizada em seus ideais de gênero, mas também pelas estratégias particulares
com que cada um se organiza em relação ao trinômia falo/falta/desejo.
Dessa forma, o masculino crê-se como portador de um falo. Com isso, ele deseja
satisfazer e completar aquela cujo corpo parece garantir que a castração estará, apenas,
do lado das mulheres. Essa é uma composição típica da masculinidade. Já a feminilidade,
tradicionalmente, organiza-se em torno do imaginário da falta; na feminilidade, a mulher
não tem o falo, ela se oferece para ser tomada como falo a partir de um lugar de falta
absoluta, do qual somente o desejo de um homem poder resgatá-la (KEHL, 2008).
Tanto a simbologia da Lilith quanto as mulheres subjugadas numa sociedade
católica encararam uma enorme insatisfação com as limitações da vida doméstica e um
grande impasse no que se refere às possibilidades de se inventar uma outra vida (KEHL,

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2008). A função fálica, fundada em uma lógica de poder, difere-se da lógica de conflito
em que se insere o feminino e o masculino do indivíduo. Enquanto um indivíduo detém
o falo, outro indivíduo será apagado. E o feminismo vai de encontro à concepção de que
ele seria a mulher na função fálica, porque não existe poder sem submissão e alienação,
sempre haverá um escravo (MARX, 2011).
A busca por igualdade entre os gêneros não pressupõe a masculinização do
feminino, pois, embora impensável para Freud que a condição das mulheres no Ocidente
pudesse vir a sofrer profundas modificações, abalando os fundamentos da natureza
feminina. Contudo, a psicanálise corroborou essa transformação (KEHL, 2008).
Questiona-se, a esse respeito, a legitimação psicanalista de Freud de que o único lugar
verdadeiro para uma mulher é o da identificação com a despossessão fálica – ou, em outro
extremo, com a falicíssima e assexuada mãe. Haveria, nesse sentido, poucas
possibilidades libidinous para mulheres no casamento: limitação da maternidade e do
amor conjugal (FALANDO DE PSI, 2020).
Assim sendo, para a psicanálise, a manobra a mais que a menina precisa efetuar
para reconhecer seu sexo como igual ao de sua mãe, sem se confundir com ela e sem ter
que necessariamente abandonar as identificações constituídas quando ela ainda era um
“homenzinho” – é o que faz dela, fundamentalmente, uma mulher. O resto, de acordo
com Kehl (2008), seja um estilo que a faça desejável a partir do manejo da castração seja
uma narrativa que a faça feliz a partir do manejo do falo, sempre estará por construir.

CONCLUSÃO

Diante das considerações tecidas neste trabalho, verifica-se a supressão dos


aspectos femininos e da feminilidade na sociedade ocidental atual, demonstrando que,
apesar dos estudos antropológicos, psicanalíticos e sociais, a existência do feminino em
igualdade ao contexto predominantemente masculino é, ainda, ameaçada.
Demonstrou-se a ideia de que, intrinsicamente, ao ser humano, existem aspectos
conscientes e inconscientes que dialogam com o feminino e com o masculino. Dessa
forma, a exclusão de aspectos femininos da individualidade, como ocorreu com a
perseguição de mulheres na Inquisição e em sua objetificação no matrimônio, deve-se,
sobretudo, ao fato de prevalecer uma retórica predominantemente machista, corroborada
em maior ou menor grau pela religião católica ocidental. Vale mencionar que o

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feminismo, como busca pela igualdade de gênero, não visa a sobrepor as mulheres aos
homens, desconsiderando a função fálica como reformadora de uma nova ordem social.
Conforme exposto, não se pode buscar a concretização de um Estado Democrático
de Direito a partir de uma ideia de democracia sem que haja igualdade de gênero, o que
torna imprescindível uma reanálise da inserção feminina em espaços públicos e privados,
sendo que o valor histórico-cultural impõe, ainda, uma condição de subjugação a aspectos
femininos, inerentes tanto aos homens quanto às mulheres.
Diante das considerações tecidas nesse trabalho, verifica-se a importância da
psicanálise para fortalecimento e reconhecimento do feminino, amplamente suprimido, o
que vai de encontro a preceitos democráticos que formulam as sociedades ocidentais
católicas.

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REFERÊNCIAS

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Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica.
BRASIL. Constituição Federal. Brasília: 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 26 de jan. 2022.

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Editora Dialética, 2020.
DE CASTRO, Eduardo Viveiros. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.
FALANDO DE PSI: Fernanda Guerra, FEMINISMO E PSICANÁLISE. TÁKI CORDÁS:
Ana Prestes- Políticas para mulheres: Para quê? Entrevistador: Sebastião. Entrevistada:
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KOLTUV, Barbara Black. O livro de Lilith: psicologia e mitólogo. São Paulo: Editora
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JUNG, C.G. Psicologia do inconsciente. São Paulo: Editora Vozes, 1984.

JUNG, Emma. Animus e Anima. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix Ltda, 2011.

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2008.

MITOGRAFIAS: PAPO LENDÁRIO: Lilith. Entrevistador: Leonardo. Entrevistadas: Ju Ponzi


e Dra. Tupa Guerra. [S.I.] 24 jun. 2019. Podcast. Disponível em:
https://open.spotify.com/episode/4Uk7fJd9yEyb6RdDBNl48O?si=iD102MgPQQytMlPSPDLL
dQ Acesso em: 19 jan. 2022.

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