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Mito Da Lilith e A Inserção Feminina
Mito Da Lilith e A Inserção Feminina
Belo Horizonte
2022
ANNA LÍDIA DI NÁPOLI ANDRADE E BRAGA
http://lattes.cnpq.br/2002607907594916
Belo Horizonte
2022
RESUMO
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Sumário
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 9
1 LILITH ANIMUS .................................................................................................................. 10
2 A SUBJUGAÇÃO DO FEMININO PELO ESTADO-IGREJA ........................................ 12
3 CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE PARA LEGITIMAÇÃO DO FEMININO EM
SOCIEDADE ............................................................................................................................. 16
CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 19
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 21
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J’ai longtemps hésité à écrire un livre sur la femme. Le sujet est
irritant, surtout pour les femmes; et il n’est pas neuf.
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INTRODUÇÃO
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1 LILITH ANIMUS
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Dessa forma, o eu consciente é apenas um aspecto da psique, pois o inconsciente,
externo à consciência do eu, aparece não somente em sonhos, mas também em conteúdos
e atividades existentes. A idealização de Persona, para Jung (1984), seria a face externa,
que pode ser observada pelo mundo.
O Zohar, trabalho fundamental da literatura cabalista e do misticismo judaico,
define Lilith como a primitiva energia feminina, a fêmea de Adão: ser andrógino de dois
rostos, cada qual para uma direção. Assim sendo, Lilith é uma parte intrínseca de Adão,
foram criados por Deus e coabitam no mesmo corpo. A princípio Adão se relacionava
sexualmente com Lilith e com os animais, bem como possuía uma sexualidade natural e
instintiva. No entanto, essa inconsciente inteireza era uma afronta a Deus, que impôs a
Adão o sacrifício de seus instintos, de modo que o fez perder o contato com sua Anima,
a Litith, e com seus modos lunares (KOLTUV, 1997). Assim sendo, não é de se estranhar
que Adão e Lilith tenham tido conflitos, porque dentro de um só corpo havia uma
complexidade de vontades e de sentimentos, que, por vezes, eram vistos como
antagônicos.
Entre os arquétipos de Jung (1984), existem dois que são investidos de grande
significado, o consciente, visto como a Persona, e o inconsciente, a face interna. Essas
duas figuras – uma masculina e outra feminina – foram denominadas de Animus e Anima.
Há, nesse sentido, um complexo funcional que age de forma compensatória, em relação
à personalidade externa, sendo que uma personalidade interna apresenta as propriedades
que estão ausentes à personalidade interna. São as características femininas no homem e
masculinas na mulher, denominadas, respectivamente, Animus e Anima, sempre
presentes em determinada medida e incomodas para adaptação externa ou para o ideal
existente, não encontrando espaço algum na Persona voltada ao exterior.
A criação de Eva deu-se no contexto da complexidade e da unicidade de Adão.
Eva, destinada a ser a mãe de todos os que vivem e feita da costela do próprio adão (Gên.
2:18-24), não era tão poderosa ou primordial quanto Lilith, com quem Adão se encontrava
apenas à noite, em suas ereções noturnas enquanto adormecido. Essa metáfora da noite e
do sono remete ao arquétipo Animus de Adão, que, inconscientemente, desperta suas
características femininas fora do alcance do mundo exterior e de sua própria consciência.
Lilith, ao ser preterida por Deus, frente a Adão, o arquétipo do masculino
consciente, escolhe o deserto, simbolizando a fuga, o desprezo e o isolamento do
inconsciente Animus. Com efeito, o feminino encara o isolamento de Lilith em meio a
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uma violenta raiva com que se recusa a submeter-se a um arrogante poder masculino,
escolhendo, em vez disso, o desolado deserto e a companhia dos demônios.
Fugindo do direito divino de Adão, Lilith escolhe o deserto. Ela não será abatida,
nem sujeitada. Ela não se submeterá. Lilith é aquela qualidade pela qual uma mulher se
nega a ser aprisionada num relacionamento. Ela não deseja a igualdade e a uniformidade
no sentido de identidade ou fusão, mas os mesmos direitos de se mover, mulher e de ser
ela própria. (KOLTUV, 1997).
A desconexão é necessária à introjeção e integração de Lilith. Sozinha, na cabana
menstrual, uma mulher pode refletir a respeito de suas feridas, lamber seu próprio sangue
e tornar-se curada e nutrida. Há uma fria lógica lunar para a periódica necessidade de
fugir para o deserto, para o pântano e para a solidão. A menstruação é a comprovação que
a mulher não fertilizou. O sangue é o símbolo de seu fracasso em gerar uma vida e de
obter o falo (FREUD, 1901-1905). É a castração dela como mulher, uma vez que na
feminilidade, ela não tem o falo (KEHL, 2008)
Esse exílio é descrito no Velho Testamento como uma terra árida, encharcada de
sangue, covil de pelicanos, corujas e corvos (Is. 34:14). Na escuridão da lua, ali no
deserto, distante das críticas e formas tradicionais, a mulher pode entrar em contato com
a elementar natureza feminina em seu íntimo, o que tende a ocasionar um processo natural
de cura.
Durante sua permanência no deserto, Lilith é transformada por sua vivência da
solidão e da desolação. Ela se torna um aspecto do eu feminino, simbolizado pelas
corujas, a sabedoria da noite. No deserto, as noturnas e lunares corujas e Lilith tem,
finalmente, ascendência sobre os leões solares de consciência masculina (KOLTUV,
1997). Dá-se, nesse momento, o despertar do Anima no feminino.
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Essa supervisão sexual aumentou no século XII, quando os concílios de Latrão de
1123 e 1139 proibiram a prática corrente do casamento e do concubinato entre clérigos,
estimulado pelo receio de que as esposas dos padres interferissem excessivamente nas
questões da igreja católica (McNama e Wemple, 1988), e declararem o matrimonio como
um sacramento cujos votos não podiam ser dissolvidos. Nesse sentido, foram reiteradas,
também, limitações impostas pelos penitenciais sobre o ato sexual.
A igreja sustentava a exclusão e subjugação da mulher, salientando seus aspectos,
confirmando a imposição do direito canônico sobre elas. Em Beauvoir apud. Songe Du
Verger (1949), este afirma:
“Entre as más condições que tem as mulheres, acho, em direito, que
elas têm nove: uma mulher por sua própria natureza busca seu
prejuízo, são avarentas, suas vontades são caprichosas, elas são
naturalmente más, hipócritas, falsas e, portanto, segundo o direito
civil, uma mulher não pode ser aceita como testemunha em
testamentos, em consequência uma mulher faz sempre o contrário
do que lhe mandam fazer. São matreiras e maliciosas. ”
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numa cidade, a mesma coisa que uma cloaca num palácio; suprime a cloaca e o palácio
se tornaram um lugar sujo e infecto” (DE BEAUVOIR apud são Tomás de Aquino, 1949).
A organização da sociedade tornava a prostituição necessária, segundo
Schopenhauer as prostitutas são os sacrifícios humanos no altar da monogamia (DE
BEAUVOIR apud Schopenhauer, 1949). O homem procura saciar seus desejos mais
ocultos com a figura desdenhada pela sociedade, sendo, por vezes, reconhecida como
Lilith, por serem tachadas, legalmente, de infames. Elas não detinham qualquer recurso
contra a política e a magistratura, vivendo na miséria, sob constante violência e em casa
públicas, majoritariamente, de acordo de Beauvoir (1949).
Nesse contexto, pode-se afirmar o desdém por Eva, a mulher pecadora, e por
Lilith, o feminino renegado, culminando na exaltação de Maria, a Mãe Virgem do
Redentor. O culto da Virgem, segundo de Beauvoir (1949), tornou-se tão importante
nessa época que é confirmado que Deus se fizera mulher para os católicos.
Na Igreja Católica, as mulheres não existiam, embora, entre os heréticos, fossem
consideradas como iguais, possuindo os mesmos direitos, como a uma vida social, a
celebrar cultos e pregações, e a uma mobilidade que não existia no Antigo Regime
(FEDERICI, 2017). Os hereges provinham dos setores mais pobres dos servos e
constituíam um verdadeiro movimento de mulheres que se desenvolveu dentro do marco
dos diferentes grupos de hereges. A esse respeito, discorre Simone de Beauvoir (1949)
que, na contemporaneidade, é entre os ricos proprietários fundiários que subsiste a família
patriarcal; quanto mais poderoso se sente o homem, social e economicamente, mais se
vale da autoridade do pater famílias. Assim sendo, vê-se que não foram nem o feudalismo,
muito menor a igreja que emanciparam as mulheres.
Ao dialogar com o disposto por Silvia Federici (2017), Simone de Beauvoir
(1949) conclui que o servo e sua esposa não possuíam nada, tinham somente o gozo
comum da casa e de seus poucos pertences: o homem não tinham nenhuma razão para
procurar tornar-se senhor da mulher que nada possuía, pelo contrário, os laços de trabalho
e de interesses, que os uniam, elevavam a esposa ao nível de companheira. Ao passo que
a mulher rica garantia sua ociosidade com a submissão.
As hereges estão presentes nas crônicas da Inquisição, sendo que algumas delas
foram queimadas na fogueira e emparedadas para o resto de suas vidas. Outrossim, o
controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser percebido como uma ameaça à
estabilidade econômica e social, o que é comprovado no período posterior à catástrofe
demográfica da Peste Negra, que dizimou mais de um terço da população europeia entre
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1347 e 1352 (FEDERICI, 2017). Assim sendo, os hereges foram acusados de sodomia,
de rituais de orgia, voos noturnos e sacrifícios de crianças – Lilith é, também, vista como
assassina de crianças e de homens (MITOGRAFIAS, 2019). Coincidindo com o esse
processo, que marcou a transição da perseguição à heresia para a caça às bruxas, a figura
do herege tornou-se, gradualmente, a de uma mulher, de forma que, no início do século
XV, a bruxa se transformou no principal alvo de perseguição.
São tantos os elementos que se conjugam contra a independência da mulher que
nunca se encontram abolidos ao mesmo tempo: a força física não mais importa, mas a
subordinação feminina permanece útil à sociedade, em especial por meio do matrimônio.
Assim sendo, o poder marital sobrevive ao desaparecimento do regime feudal. Vê-se
afirmar-se o paradoxo que se perpetua até hoje: a mulher mais plenamente integrada na
sociedade é a que possui menor número de privilégios; na época feudal civil, o casamento
conserva o mesmo aspecto que tinha no feudo militar; o esposo permanece como tutor da
esposa (DE BEAUVOIR, 1949).
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dialética entre o selvagem e o civilidade, o popular e o erudito, a liberdade e a técnica, o
que contrapõe as filosofias, as religiões da transcendência e, sobretudo, as formas de
organização sociopolítica baseadas no patriarcado.
Dessa forma, Lacan questiona a função fálica, para afirmar que em todas as
sociedades o poder político é androcêntrico, sendo que, no contexto político, há uma
confusão entre cetro (símbolo do poder político) falo (significante mestre, chave da
operação de constituição da subjetividade). Se há uma confusão, não há, exatamente, uma
fusão. Isso leva a constatar, segundo Chechia (2020), que poderia haver uma distinção e
não uma identificação entre cetro e falo.
A ideia do falo é anterior ao patriarcado, mas foi Freud (1901-1905) quem
começou esse conceito a partir da estrutura patriarcal que analisou. O falo, dessa forma,
torna-se uma função de poder. A posição fálica, portanto, seria transitória, circularia,
conforme Foucault e Lacan.
O embate entre Adão e Lilith, nesse sentido, é justamente um conflito de desejos.
O desejo, segundo Kehl (2008) é a posição a partir da qual o sujeito almeja o objeto que
irá privilegiar, e o discurso a partir do qual enunciará sua presença mundana. Uma vez
divididos e nomeados como homem e mulher, haverá o sacrifício de algumas
possibilidades de satisfação da pulsão. Desse contexto, tem-se a diferenciação freudiana
fundamental de ativo e passivo, para as posições masculina e feminina, sujeito e objeto
em relação ao desejo de um semelhante, um outro, para além da condição fundamental
do desejo que, segundo Lacan, é sempre a de “desejo do desejo do Outro”
Nesse sentido, tem-se a masculinidade e a feminilidade, composta tanto pelas
identificações que estruturam o eu consciente, não apenas segundo os modos de cada
cultura organizada em seus ideais de gênero, mas também pelas estratégias particulares
com que cada um se organiza em relação ao trinômia falo/falta/desejo.
Dessa forma, o masculino crê-se como portador de um falo. Com isso, ele deseja
satisfazer e completar aquela cujo corpo parece garantir que a castração estará, apenas,
do lado das mulheres. Essa é uma composição típica da masculinidade. Já a feminilidade,
tradicionalmente, organiza-se em torno do imaginário da falta; na feminilidade, a mulher
não tem o falo, ela se oferece para ser tomada como falo a partir de um lugar de falta
absoluta, do qual somente o desejo de um homem poder resgatá-la (KEHL, 2008).
Tanto a simbologia da Lilith quanto as mulheres subjugadas numa sociedade
católica encararam uma enorme insatisfação com as limitações da vida doméstica e um
grande impasse no que se refere às possibilidades de se inventar uma outra vida (KEHL,
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2008). A função fálica, fundada em uma lógica de poder, difere-se da lógica de conflito
em que se insere o feminino e o masculino do indivíduo. Enquanto um indivíduo detém
o falo, outro indivíduo será apagado. E o feminismo vai de encontro à concepção de que
ele seria a mulher na função fálica, porque não existe poder sem submissão e alienação,
sempre haverá um escravo (MARX, 2011).
A busca por igualdade entre os gêneros não pressupõe a masculinização do
feminino, pois, embora impensável para Freud que a condição das mulheres no Ocidente
pudesse vir a sofrer profundas modificações, abalando os fundamentos da natureza
feminina. Contudo, a psicanálise corroborou essa transformação (KEHL, 2008).
Questiona-se, a esse respeito, a legitimação psicanalista de Freud de que o único lugar
verdadeiro para uma mulher é o da identificação com a despossessão fálica – ou, em outro
extremo, com a falicíssima e assexuada mãe. Haveria, nesse sentido, poucas
possibilidades libidinous para mulheres no casamento: limitação da maternidade e do
amor conjugal (FALANDO DE PSI, 2020).
Assim sendo, para a psicanálise, a manobra a mais que a menina precisa efetuar
para reconhecer seu sexo como igual ao de sua mãe, sem se confundir com ela e sem ter
que necessariamente abandonar as identificações constituídas quando ela ainda era um
“homenzinho” – é o que faz dela, fundamentalmente, uma mulher. O resto, de acordo
com Kehl (2008), seja um estilo que a faça desejável a partir do manejo da castração seja
uma narrativa que a faça feliz a partir do manejo do falo, sempre estará por construir.
CONCLUSÃO
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feminismo, como busca pela igualdade de gênero, não visa a sobrepor as mulheres aos
homens, desconsiderando a função fálica como reformadora de uma nova ordem social.
Conforme exposto, não se pode buscar a concretização de um Estado Democrático
de Direito a partir de uma ideia de democracia sem que haja igualdade de gênero, o que
torna imprescindível uma reanálise da inserção feminina em espaços públicos e privados,
sendo que o valor histórico-cultural impõe, ainda, uma condição de subjugação a aspectos
femininos, inerentes tanto aos homens quanto às mulheres.
Diante das considerações tecidas nesse trabalho, verifica-se a importância da
psicanálise para fortalecimento e reconhecimento do feminino, amplamente suprimido, o
que vai de encontro a preceitos democráticos que formulam as sociedades ocidentais
católicas.
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REFERÊNCIAS
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Rio de
Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica.
BRASIL. Constituição Federal. Brasília: 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 26 de jan. 2022.
JUNG, Emma. Animus e Anima. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix Ltda, 2011.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2008.
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