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Tratado das Tentações

Pe. Jean Michel

Editora Santa Cruz


Copyright © 2021 Santa Cruz – Editora & Livraria Católica

Projeto editorial: Equipe Santa Cruz


Revisão e diagramação: Catuí Côrte-Real Suarez
Capa: Márcia de Oliveira Corrêa

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J43
Jean Michel, Padre
Tratado das Tentações / Pe. Jean Michel, SJ [obra póstuma] – 1ª ed. – São Caetano do
Sul, SP: Santa Cruz – Editora e Livraria, 2021.
64 p.
ISBN 978-65-87994-18-5
1. Igreja Católica. 2. Vida espiritual
I. Título
CDD: 235

Santa Cruz – Editora & Livraria Católica


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09540-202 – São Caetano do Sul – SP
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Contents

Title Page
Copyright
1. As tentações não são sinal de distância de Deus
2. As tentações não são sinal de um coração mau
3. É preciso recorrer a Deus nas tentações
4. Como saber se se consentiu na tentação
5. Sobre as tentações curtas e passageiras
6. Sobre as tentações duradouras e importunas
7. Sobre as tentações que perturbam as virtudes
8. Não se deve discutir com a tentação
9. Sobre as tentações frequentes
10. As vantagens das tentações
11. Maior vigilância e dependência de Deus
12. Efeitos das tentações nas almas negligentes
13. Combater a tentação não é perda de tempo
1. As tentações não são sinal de distância de Deus

As tentações perturbam as almas piedosas e arrastam ao precipício


as almas dissipadas. Para prevenir o mal que delas pode resultar, é
a propósito vos fazer saber as razões de não as temer demasiado,
os princípios sobre os quais podeis decidir-vos em muitas ocasiões,
a maneira de vos comportardes no tempo em que elas vos atacam, e
de vos premunirdes contra seus efeitos; e mostrar-vos as vantagens
que delas podeis tirar.
As tentações são ideias, sentimentos, inclinações, pendores
que nos induzem a violar a Lei de Deus, para nos satisfazermos.
Essas tentações não devem nem perturbar nem desanimar uma
alma cristã.
O demônio declara guerra principalmente às almas que
detestam o império dele, que combatem as suas próprias paixões,
que são discípulas de Jesus Cristo tanto pela pureza dos seus
costumes como pelo cunho inefável da sua regeneração; ou àquelas
que pensam seriamente em sacudir o jugo sob o qual o demônio as
mantém. Pelas molas que faz funcionar contra elas, o demônio só
procura concitá-las a renunciar ao amor de Jesus Cristo, desprendê-
las de Deus, tornando-as cúmplices da desobediência dele.
Esta reflexão deve consolar as almas que são tentadas. É a
oposição delas ao inimigo da salvação, é o seu apego à piedade, à
vontade de Deus, que lhes atrai essa perseguição doméstica. Um
pouco de constância as tornará vitoriosas e as firmará na virtude.
Almas naturalmente tímidas, ou aquelas que o Senhor por
longo tempo conduziu na calma das paixões e nas doçuras da paz,
imaginam que as tentações que elas às vezes experimentam são
sinais da cólera de Deus sobre elas, e com isso chegam até a pensar
que Deus as abandonou, quando as tentações são fortes e
frequentes. Não podem persuadir-se de que Deus possa deitar
olhares favoráveis sobre um coração violentamente agitado por
sentimentos contrários à virtude. Esta cilada é o último recurso do
inimigo da salvação para derrubar uma alma que ele não pode
vencer pelas vãs satisfações do vício. Rouba-lhe essa preciosa
confiança que pode sustentá-la contra todos os esforços do inferno.
Grosseiramente se enganam essas almas. As que são
instruídas, as que conhecem melhor os caminhos de Deus não se
surpreendem com essa guerra que têm de sustentar. Pelos oráculos
do Espírito Santo aprenderam que a vida do homem é um combate
contínuo, que temos de nos defender incessantemente: por dentro,
contra os nossos gostos, as nossas inclinações, o nosso amor-
próprio, esses inimigos domésticos tão capazes de nos seduzir pelas
suas artimanhas e pretextos; por fora, contra a sedução dos maus
exemplos, contra o respeito humano, contra as potências do inferno,
invejosas da felicidade do homem e conjuradas contra ele desde o
começo do mundo; e aprenderam que só pelas vitórias que
alcançamos com o socorro da graça é que abrimos caminho para
chegarmos ao Céu; que, enfim, consoante o Apóstolo (2Tm 2, 5), só
haverá coroa para aqueles que houverem fielmente combatido até o
fim.
São Paulo não considerou como efeito da cólera e do
abandono de Deus as tentações que continuou a experimentar,
embora tivesse pedido ser livrado delas. Os santos, por tanto tempo
e tão vivamente atacados pelo demônio até nos desertos e nos
exercícios da mais austera penitência, não tiveram das tentações a
mesma ideia que vós. Pelo contrário, consideraram-nas sempre
como o objeto dos seus combates e a matéria dos seus méritos. Não
ignoravam o que é dito nos Livros Sagrados: Por isso que éreis
agradável a Deus, necessário se fazia fôsseis provado pela tentação
(Tb 2, 13). É esta a ideia que deveis fazer da tentação; é a única que
seja justa nos princípios da Religião; e, desta maneira, não ficareis
nem perturbado nem desanimado com ela.
Contudo, embora as tentações não sejam um sinal do
abandono de Deus, porque Deus nunca abandona inteiramente o
homem enquanto este estiver na terra; e embora essas tentações
sejam, ordinariamente, provações para as almas justas, às vezes
são também efeitos da justiça divina, que pune certas negligências
no seu serviço, certas fraquezas a que se deixam levar almas
desaplicadas e presunçosas, certas aplicações naturais que dividem
o coração. Mas, seja punição ou provação, a submissão em recebê-
las, a fidelidade em lhes resistir devem ser as mesmas.
Da parte do mais terno dos pais, a justiça é sempre
acompanhada de misericórdia. A sua graça está sempre ligada à
oração e à confiança. Ele não quer nos perder, não quer nos punir
senão para nos reconduzir a Ele. Esta circunstância, bem longe de
desanimar e de perturbar uma alma, deve, pelo contrário, animá-la
ao combate pela vista do perdão que lhe é oferecido, se com
coração contrito e humilhado, e com fidelidade inviolável, cumprir a
penitência que Deus lhe impõe.

✽✽✽
2. As tentações não são sinal de um coração mau

Ordinariamente, as tentações frequentes bem podem assinalar um


coração sujeito a paixões e propenso ao mal, porém não assinalam
um coração mau e afastado de Deus, quando essas inclinações são
desaprovadas. Esse pendor para o mal, que nós trazemos ao nascer,
pela desordem que o pecado de nosso primeiro pai pôs nas nossas
inclinações, às vezes é fortalecido pela dependência em que a nossa
alma está dos sentidos. Essa dependência nos torna mais ou menos
sujeitos às tentações, conforme seja mais forte ou menos forte a
impressão dos sentidos; sendo tudo isso independente da nossa
vontade, e não vindo do fundo do coração, não assinala nele um
vício particular. Ele não é a causa dessa disposição dos sentidos.
Pelo contrário, sofre com ela, e, quando a corrige pelo seu apego à
virtude, por mais forte que seja a inclinação, o coração nem por isso
se torna mau.
Essa resistência às tentações assinala, antes, um coração
cristão, e faz conhecer o apego que ele tem a seu Deus, e a
proteção que Deus lhe concede; coisa que deve consolá-lo e enchê-
lo de confiança. A determinação em que ele se acha de resistir à
inclinação que o arrasta, recebe-a ele da misericórdia divina, que o
sustenta por uma graça tanto mais particular quanto mais exposto
ele estiver ao mal e ao perigo de sucumbir.
É raciocinar mal o dizer: se a minha mente e o meu coração
estivessem em bom estado, se fossem bem de Deus, teria eu estas
ideias, estes sentimentos, que ferem a caridade, que são opostos à
fé, à submissão, à paciência, e que me metem horror a mim mesmo?
Se essas ideias, se esses sentimentos dependessem de vós,
se estivesse na vossa escolha tê-los ou não os ter, com razão
julgaríeis estar muito afastado de Deus quando os experimentais.
Mas tudo isso absolutamente não depende de vós. Essas ideias,
esses sentimentos insinuam-se sutilmente, ou se abatem com
impetuosidade sobre o vosso espírito e sobre o vosso coração, sem
consultarem a vossa vontade; e, o que é ainda mais forte,
perseveram na vossa alma a despeito da vossa vontade, que
quereria desvencilhar-se deles, e que emprega toda sorte de meios
para os afastar. Eles não são, pois, a expressão livre da vontade;
não são da escolha desta: não podem, pois, decidir coisa alguma
contra o bom estado da alma e contra o seu apego a Deus e à
virtude.
O coração só se apega pelos seus sentimentos refletidos e
deliberados. Pode, pois, um coração ser inteiramente de Deus,
embora experimente indeliberadamente sentimentos contrários à
virtude, desde que estes lhe desagradem em vista de Deus. Digo
mais: o desgosto que ele sente de se ver atacado por tais inimigos, o
horror que tem destes, são uma prova bem decisiva de que ele está
apegado ao dever e ao amor divino. Se ele amasse menos a Deus,
se temesse ou se detestasse menos o pecado, não teria nem esse
desgosto, nem essa perplexidade, nem esse horror; seguiria a sua
inclinação, satisfaria os seus desejos. Não pode ele, pois, ter prova
mais segura do seu amor a Deus do que a fidelidade que Deus lhe
dá em combater essas más inclinações.
Os maiores santos foram postos a essa prova; São Paulo não
foi eximido dela: e eles amavam a Deus perfeitamente. O nosso
divino Salvador quis submeter-se a ela para nossa instrução: e era o
Santo dos santos. O que Ele quis experimentar na sua humanidade
santa não pode ser um mal, nem mesmo uma imperfeição: Ele era
incapaz de um e de outra. Não podemos, pois, ser culpados quando
experimentamos isso da mesma maneira que Ele, quando nos
defendemos disso como Ele o fez, em proporção da nossa fraqueza.

✽✽✽
3. É preciso recorrer a Deus nas tentações

Nessas tempestades de que uma alma é agitada, às vezes Deus a


conduz de maneira sensível. Trabalha-se então com coragem para
se sustentar contra as ondas impetuosas das paixões. A vista de
Deus, que se apresenta vivamente a nós, o desejo de amá-Lo, que
se faz sentir, anima-nos, e redobra a nossa confiança. Mas às vezes,
também, Deus se oculta: parece adormecido como outrora na barca
dos discípulos, prestes a perecerem pela violência das ondas pelas
quais ela era batida. Em semelhante ocasião, uma alma acha-se em
perigo, pelo temor excessivo que se lhe apodera do coração e que o
enfraquece.
Não. Nesse momento, nada tendes a temer se levantardes os
olhos para o Céu, de onde vos deve vir o socorro de que precisais, e
se fizerdes uso desse socorro. Os discípulos, expostos a perder-se,
não perderam seu tempo em se lamentar inutilmente; não
abandonaram o cuidado da sua barca por um desânimo pueril:
continuaram a manobra, para se sustentarem contra a borrasca; e
recorreram ao seu divino Mestre, cujo socorro imploraram. Jesus
parecia dormir (Mt 8, 34); e, no entanto, os dirigia, sem que eles
reparassem nisso, nas medidas que tomava para eles não serem
tragados pelas ondas. Assim Deus, por mais oculto que esteja aos
vossos olhos, nem por isto está menos atento ao que se passa no
vosso coração. A todo momento parece-vos que ides naufragar. E,
no entanto, vos sustentais contra a tempestade.
Essas vistas que vos guiam, esses sentimentos que vos
animam e que vos fazem agir quase sem que o percebais, essa
coragem que tantas vezes parece abandonar-vos e que renasce
sempre, essa firmeza que vos faz renunciar com constância aos
falsos prazeres, aos prazeres criminosos que o inimigo vos
apresenta, de quem é que os haveis? Será de vós mesmo? Fraco
como sois, vos lisonjearei de resistir sozinho?
Não os haveis de Jesus Cristo, que, sem se mostrar
sensivelmente, vos sustenta poderosamente, consoante a palavra
que Ele vos deu (1Co 10, 13), de que a provação não será acima das
vossas forças, ajudadas pela sua graça? Sim, mesmo quando o
julgais afastado de vós, Jesus Cristo está no meio do vosso coração:
vós vos julgais esquecido, e mais do que nunca estais presente ao
vosso Salvador, porque tendes necessidade d’Ele. Ele preside aos
vossos combates, como presidiu ao de Santo Estêvão (At 7, 55); e,
desde que não falteis à confiança, Ele vos tornará superior a todos
os vossos inimigos, impedindo-vos de consentir nos maus desígnios
deles.

✽✽✽
4. Como saber se se consentiu na tentação

Sem dificuldade convimos que, em si mesma, a tentação não é um


mal, e que só o consentimento faz o pecado. O que produz
embaraço e causa uma viva inquietação às almas que Deus põe
nessa provação e que conduz pela via penosa das tentações, é que
elas quase sempre temem ofender a Deus; e que, não havendo
refletido bastante sobre esta matéria, não têm princípios para se
tranquilizarem: não sabem distinguir a tentação do consentimento.
Essa incerteza em que elas estão de haverem aderido à tentação
lança-as numa perplexidade que as faz sofrer muito, que lhes faz
perder a paz interior, que lhes debilita a confiança constrangendo-
lhes o coração; que as impede de ir a Deus com liberdade;
finalmente, que as lança num desânimo extremo e lhes abate
inteiramente as forças. Algumas reflexões poderão esclarecer as
vossas dúvidas sobre este ponto, e pôr-vos em estado de decidir-
vos.
Nós não somos inteiramente senhores da nossa mente e do
nosso coração. Não podemos impedir que certas ideias, certos
sentimentos nos ocupem. Às vezes mesmo eles nos ocupam de
súbito tão fortemente, que a alma é arrastada a seguir um
pensamento, um projeto, sem o perceber. A preocupação é tão
grande, que não vemos nada, não ouvimos nada do que se passa ao
redor de nós, que não nos lembramos sequer do momento em que
essas ideias, esses sentimentos começaram a apoderar-se da nossa
alma. Assim, muitas vezes, nos achamos, sem reparar, em
pensamentos e sentimentos contrários à caridade e a outras
virtudes, em projetos de vaidade, de orgulho e de amor-próprio.
Este estado dura mais ou menos, conforme é mais ou menos
forte a impressão dos objetos ou da imaginação, ou conforme
alguma circunstância impressionante tire mais cedo a alma dessa
espécie de encantamento. Então, por uma reflexão distinta, ela
percebe aquilo que a ocupa. Se, nesse momento em que é restituída
a si mesma, ela condena essa ideia, esse sentimento; se os
desaprova e se desvia deles tanto quanto pode, prudentemente
pode-se assegurar que em tudo o que precedeu ela não fez nenhum
mal. A satisfação que ela experimenta de se ver liberta deles é mais
um sinal bastante seguro de que a vontade não tomou nenhuma
parte neles com reflexão.
Nessa preocupação, não houve deliberação, não houve
escolha da parte da vontade. Para que se ofenda a Deus, é preciso
que a vontade consinta deliberadamente em alguma coisa má, e que
possa renunciar-lhe. Não se acha nem uma coisa nem outra naquilo
que precede a reflexão: não pode, pois, haver aí pecado. Aliás, essa
desaprovação tão pronta, desde a primeira reflexão, assinala a boa
disposição da alma, que não teria admitido essas ideias, esses
sentimentos, que não se teria ocupado deles, se os houvesse
conhecido com bastante reflexão para os admitir ou rejeitar por
escolha. Devemo-nos, pois, comportar neste caso como se essas
ideias e esses sentimentos começassem no momento em que os
percebemos com reflexão. Só neste ponto é que deve começar o
exame que se deve fazer; e, se então eles foram rejeitados,
devemos conservar-nos em paz.
Essa preocupação pode ser longa, como muitas vezes sucede
na oração, em que somos arrastados por uma distração que absorve
toda a atividade da alma. Esta circunstância não a torna voluntária e
deliberada. Não depende da vontade tornar essa distração mais
curta, como não depende o impedi-la de vir: não há da sua parte
mais escolha numa coisa do que noutra. Também não haverá mais
mal; visto que a preocupação que chega subitamente sem que a
prevejamos não é um pecado. A extensão do tempo que a
experimentamos não a torna culposa. Não é, pois, muito difícil
decidir-se nessa circunstância.

✽✽✽
5. Sobre as tentações curtas e passageiras

Geralmente, as tentações são percebidas apenas começam, ou


logo depois, e podem agir diferentemente. Às vezes são
pensamentos, sentimentos, que se apresentam subitamente e que
não fazem mais do que passar. Então, muitas vezes fica-se
embaraçado para discernir se foi uma simples tentação ou um
pecado. Embora nos tenhamos desviado dela, estamos em
dificuldade para julgar se nesse curto intervalo de tempo fizemos isso
bastante cedo para prevenir o consentimento.
Nesta circunstância, podemo-nos decidir com base nos
nossos próprios sentimentos e no nosso procedimento comum. Uma
pessoa que estima, que ama, que pratica com vigilância as virtudes
contra as quais teve essas tentações; que, pela disposição habitual
do seu coração, está afastada de toda falta voluntária contra essas
mesmas virtudes; que, nas ocasiões em que teve tentações mais
seguidas nesse gênero, combateu para não sucumbir, pode
prudentemente julgar que essas ideias, esses sentimentos
passageiros não são faltas, porém unicamente tentações, e que a
desaprovação que as fez desaparecer se antecipou ao
consentimento.
A razão disso é que, quando uma alma age contra os
sentimentos que ordinariamente segue e contra o hábito que
contraiu, faz a si uma espécie de violência da qual não é fácil deixar
de se dar conta. Se, na disposição em que a suponho, ela tivesse
dado algum consentimento à tentação, não o ignoraria, não duvidaria
disso: a impressão, embora passageira, ter-se-ia feito sentir o
bastante para se fazer notar. Devemo-nos, pois, tranquilizar nessas
ocasiões pelo simples fato de não estarmos seguros de haver
consentido na tentação. Então a dúvida é uma certeza: se houvesse
realmente consentido, não se duvidaria.
No caso dessas ideias passageiras, todos os que dão às
almas tentadas regras de conduta convêm unanimemente em que se
devem desprezar essas espécies de tentações; e que se lhes deve
dar o menos de atenção possível. A razão que eles dão disto é
fundada na experiência. Esta nos ensina que, se as desprezamos, se
as deixamos passar, ocupando-nos de outras coisas, elas voltam
mais raramente, ou mesmo não voltam mais; que, ao contrário, se
com elas nos chocamos de frente, se lhes damos uma atenção séria
por exames inquietos, mormente se o temor as acompanha, elas
tinham passado e as tornamos a chamar, detemo-las, damos-lhe
uma nova força pelo estágio que elas fazem na alma. Aquilo que não
passava de uma sombra que se desvanecia num instante, de um
relâmpago que desaparecia num momento, pelo desprezo que dele
se fazia, toma consistência pela atenção que se lhe dá, torna-se um
fogo que aumenta pela reflexão. E então é um inimigo que teve
tempo de se fortificar, que se encarniça no combate, e que põe a
alma em perigo.
Dá-se com a tentação o que se dá com um inimigo tímido: por
assim dizer, ele se ensaia com o seu adversário; se encontra
contemporizações tímidas ou um temor pusilânime, aproveita-se da
fraqueza que ele lhe mostra, ataca com força, obriga o adversário a
receber a lei. Cumpre, pois, deixar cair todas essas ideias sem
evocá-las, e dar toda a sua aplicação a ocupar-se com objetos úteis.
Se, quando essas tentações passageiras se apresentam,
simplesmente volvermos o nosso coração para Deus por um
sentimento de piedade e sobretudo de amor, não receberemos dano
algum.

✽✽✽
6. Sobre as tentações duradouras e importunas

Mais comumente a tentação não cede assim tão facilmente o lugar:


ataca com constância, com viveza. Se dá alguma trégua, logo volta à
carga. E, como ela agita espírito e o coração, uma alma timorata
teme sempre que seja um pecado esse sentimento que ela
experimenta tão repetidas vezes, e que tão frequentemente ela
reencontra no seu coração quando entra nele. Esse temor torna esse
sentimento ainda mais vivo: a agitação em que ela está, a inutilidade
dos esforços que emprega para afastá-la do seu coração, lançam-na
num abatimento ainda mais perigoso do que a tentação, porque lhe
tira as forças de que ela precisa para resistir.
A conduta que se manteve no tempo em que a tentação durou
pode servir para decidir se há alguma coisa a se censurar. Primeiro,
para não se deixar dominar por esses temores tão perigosos e tão
mal fundados, é preciso voltar ao princípio deles. O sentimento que
se experimenta na tentação não é o consentimento livre. É um
engodo do inimigo que o solicita. Ele mostra o objeto à mente: é o
pensamento. Fá-lo degustar pelo coração: é o sentimento que se
segue naturalmente da representação do objeto. Esse sentimento
pode ser mais ou menos vivo, conforme a compleição da pessoa e a
impressão que o objeto produz nela. Tudo isso, independente da
vontade, precede o consentimento.
Para este consentimento, é preciso que a vontade adira
deliberadamente a esse sentimento; que o aprove; que se lhe
apegue; que se compraza nele. Uma ideia pode estar na mente; um
sentimento no coração, sem que a vontade o adote. Assim resistimos
aos bons sentimentos, como aos maus. O mal como o bem não
consiste, pois, nesse primeiro pensamento, nesse primeiro
sentimento, que não fazem senão propor à vontade o objeto bom ou
mau moralmente: consiste na escolha que a vontade faz dele,
apegando-se a ele.
Portanto, se no tempo da tentação uma alma teve o cuidado
de recorrer a Deus para obter as graças de que precisa; se
renunciou a esse sentimento contrário à virtude; se o desaprovou; se
teve afastamento, horror de tudo o que a tentação lhe propunha; se
procurou distrai-se dela, fixando a mente em outros objetos honestos
e úteis: então, embora não possa responder a si mesma, com inteira
certeza, pela sua fidelidade em todos os instantes, pode julgar
prudentemente que tudo o que experimentou, por mais violento e de
qualquer duração que tenha sido, não passou de simples tentação, e
que não houve nisso nenhuma culpa.
Deus não permite que a alma experimente tentações acima
das suas forças. É o que nos assegura o Espírito Santo (2Tm 2, 5).
Ele nunca falta à alma que faz tudo o que depende de si para evitar o
pecado. É certo que, na conduta que segue pondo em obra os meios
que a Religião e a experiência fornecem, ela não tem de se
exprobrar o haver descurado de si. Deve, pois, esperar que Deus,
que pela sua misericórdia a sustentou na fidelidade em empregar os
meios, tê-la-á preservado de toda queda, consoante as suas
promessas. Esta razão deve fazer cessar todos os temores inquietos
que podem sobrevir quando Deus faz suceder a calmaria à
tempestade.
Pode a tentação ser bastante forte para produzir impressões
molestas nos sentidos. Não devem elas, porém, perturbar uma alma
que as experimenta. O que dissemos dos sentimentos deve ser
aplicado às sensações. As impressões sensíveis não dependem da
vontade: esta não tem o poder de detê-las e de fazê-las findar; ela
não é, pois, culpada nem do começo nem da duração delas. Não
pode haver falta, nessa ocasião, senão quando a alma as aprova e
se compraz nelas. Enquanto as considera efeito da tentação que ela
combate, que ela detesta, não toma nelas nenhuma complacência;
não faz, portanto, nenhum mal.
Essas impressões, tornamo-las mais fortes se lhes damos
demasiada atenção, e se fazemos inúteis esforços para destruí-las.
Já que elas não são pecado, não nos devemos afligir com elas. Toda
atenção deve convergir para afastar da mente e do coração a
tentação que lhes é a fonte, e para recusar a esta o consentimento
que ela pede.
✽✽✽
7. Sobre as tentações que perturbam as virtudes

Todos esses princípios servirão para decidir e animar uma alma


durante certas tentações, que ela pode experimentar na prática do
bem. O inimigo da salvação não ousaria propor a certas almas
abandonarem o exercício das virtudes que levam à perfeição: mas
põe por obra um artifício para detê-las, e para retê-las numa
mediocridade que as faz cair na negligência. Todo o tempo que não é
destinado aos exercícios de piedade, ele as deixa tranquilas; porém,
mal elas se aplicam a esses santos exercícios, enche-lhes a
imaginação de mil ideias que as atormentam.
Se há almas que pensam em levar uma vida mais perfeita, e
se não as pode ele desviar disso nem pelo respeito humano, nem
pela visão do constrangimento a que elas se obrigam e que ele
aumenta aos olhos delas, inspira-lhes então uma secreta vaidade na
prática dos seus deveres. Essa ideia segue-as em quase todas as
suas ações. Parece-lhes que elas só agem para atrair a vã estima
dos homens, ou por uma vã complacência para consigo mesmas.
Essas tentações afetam tão fortemente certas pessoas, que
elas ficam fatigadas, desconcertadas com elas. Na ideia que as
impressiona vivamente, de se constrangerem sem fruto e sem
méritos por essa falta de pureza de intenção, elas preferem resistir a
Deus; afastam-se dos exercícios de piedade; levam uma vida cheia
de imperfeições e de faltas. Pelo temor do combate, omitem o bem
que Deus lhes inspira. Assim, só evitam uma cilada caindo noutra.
Se a tentação sobrevém a ensejo das inutilidades a que a
pessoa se entrega, ou mesmo das ocupações perigosas que não são
do seu estado, não é duvidoso que ela deva renunciar a elas, para
não se expor ao perigo; menos verdade não é, porém, que o temor
da tentação não deve impedir uma alma de cumprir os seus deveres
e de seguir o espírito de Deus. Por si mesma, a tentação não é um
mal; mas é um mal o faltar aos próprios deveres, àquilo que Deus
exige.
Se a alma fiel se deixa guiar por essa aflição, e por esta razão
abandona os seus exercícios de piedade ou o bem que pode fazer
pelos sacrifícios secretos, é infiel; priva-se dos socorros que a fariam
progredir na perfeição; dá ao inimigo um meio seguro para a fazer
abandonar sucessivamente tudo o que para ela é de obrigação. O
inimigo fará uso desse império que ganha sobre ela, desse temor
que lhe inspira e que alimenta nela, para fazê-la negligenciar as
práticas de religião, os sacramentos, e tudo o que pode nutrir a
piedade. Uma alma neste estado, sem ânimo e sem força, uma alma
que não ousa haurir na oração, na mortificação, os meios de se
sustentar, essa alma resistirá aos assaltos que o inimigo poderá
desfechar-lhe?
Não deve ela, pois, temer essas espécies de tentações, visto
não serem faltas, enquanto a vontade não as adotar, enquanto nelas
não consentir. As que são mais seguidas, deve ela combatê-las pela
confiança e pelo amor. As que só consistem em ideias passageiras,
por mais frequentes que sejam, deve ela, sem se inquietar com elas,
desprezá-las, deixá-las cair, propondo-se cumprir a vontade de Deus
em todas as suas ações. Assim sendo, essas ideias não
entremearão nisso a menor imperfeição. Farão, mesmo, um bem:
obrigarão essa alma a renovar mais frequentemente a pureza de
intenção com que deve agir. Assim ela tirará o bem do mal: fará
servir à sua santificação aquilo que era preparado para a sua
perdição.

✽✽✽
8. Não se deve discutir com a tentação

Há potências que não poderemos vencer se não as atacarmos


diretamente, seguindo uma conduta oposta à que elas sugerem. São
desse número as que vêm do fundo da índole que se não domou. Se
uma pessoa é sujeita à vaidade, à cólera, à sensibilidade, a essa
mania a que se chama antipatia, não superará essas paixões senão
praticando nas ocasiões as virtudes que lhes são diretamente
opostas. Não somente deve renunciar aos sentimentos que essas
paixões lhe inspiram, mas deve também agir para mortificá-las.
Caso se contente com evitar certas ocasiões, não destruirá
esses sentimentos desregrados; e, nas ocasiões em que não as
puder evitar, sucumbirá quase sempre. É praticando a humildade, a
doçura, é renunciando-se a si mesmo, é indo ao encontro das
pessoas contra quem se têm prevenções, é deste modo que se
vibram nessas paixões golpes eficazes e poderosos que asseguram
a derrota delas, e que dão uma vitória completa àquele que combate
fielmente em todos os ataques.
Mas, também, não há nada mais prejudicial do que o
procedimento de certas almas nas tentações. Elas acreditariam ter
algo a se exprobrar se não se exaurissem em argumentações para
destruir aquilo que a tentação lhes inspira. Entram, pois, em
esclarecimento com a paixão que as ataca, e à qual não faltam
pretextos para se justificar. Assim, aturam um combate longo e
perigoso, combate que muitas vezes poderia ter sido terminado num
momento se elas não houvessem entrado em disputa com um
inimigo artificioso, ou que pelo menos lhes teria dado muito menos
pena a suportar. Isso lhes sucede sobretudo quando elas têm ideias
contra a Fé, contra a Esperança, sentimentos contra a Caridade.
Elas querem assegurar-se das suas disposições interiores,
combatendo diretamente a tentação. Essa maneira de proceder é
uma fonte de penas, de perplexidades: é perigosíssima.
Desde que se discute com a tentação, ou sobre matérias
difíceis nas quais as dificuldades se fazem sentir sem custo e as
respostas são difíceis de compreender por aqueles que carecem de
luzes e de princípios nesse gênero; ou sobre coisas que lisonjeiam o
amor-próprio e que a malignidade natural aplaude, estamos no maior
perigo de sucumbir. Assim se perdeu Eva.
A tentação que entra na alma pelos sentidos, e que lhe
apresenta uma satisfação conforme à natureza, causa uma forte
impressão. Não sendo sensível e não constrangendo a natureza
aquilo que se lhe tem a opor, não causa, quase certo, nesta, uma
impressão semelhante, a menos que uma fé viva lhe dê força. Na
perturbação em que nos achamos, às vezes essa fé tem dificuldades
em se fazer sentir; e então já não opomos à paixão senão uma fraca
resistência. Aliás, em combatendo desse modo a paixão, damos-lhe
uma atenção que a alimenta e que a torna mais sensível, de maneira
que a todo instante parece que consentimos nela; o que lança a alma
numa perturbação e num embaraço do qual ela custa a sair quando
quer dar-se conta do seu procedimento.
Em todas essas tentações, não há meio mais seguro para se
colocar fora de alcance do que desviar sem demora a mente dessas
ideias, ligando o coração a sentimentos de piedade. Se há na mente
pensamentos que não dependem da vontade, a vontade também
pode obrigar a mente a ocupar-se de certos objetos que a desviem
daqueles que a tentação lhe apresenta. Aliás, nem sempre é
necessário preferir aqueles que são diretamente opostos à tentação.
Desaprovamo-la suficientemente desde que nos volvamos para Deus
por qualquer pensamento e por qualquer ato de virtude que seja.
Cada um deve apegar-se àquilo que ordinariamente mais o
sensibiliza ou impressiona.
Uns, sensíveis aos sofrimentos de um Deus feito homem para
salvar os homens, colocam-se ao pé da Cruz de Jesus Cristo,
ocupados desse Deus Salvador, que, pelo sacrifício da sua vida
infinitamente preciosa, expiou os pecados deles; eles concebem um
vivo pesar das suas faltas, das suas infidelidades, e um grande
horror a tudo o que possa de novo crucificar no seu coração o seu
bom Mestre. Outros, retirando-se, pelo pensamento, no Sagrado
Coração de Jesus, cujo socorro e misericórdia imploram, penetram-
se dos sentimentos de bondade e de compaixão que esse divino
Salvador por eles teve, para se excitarem à gratidão e à confiança
que asseguram a sua fidelidade.
Uns, mais sensibilizados pelo milagre do amor de Jesus
Cristo, que quis dar-se a eles de maneira tão admirável na divina
Eucaristia, servem-se dos sentimentos que esta misericórdia infinita
lhes inspira, para desviarem o seu coração de tudo o que possa
ofender um Deus tão bom. Outros, colocando-se em espírito no
momento em que irão dar contas a Deus de todo o curso da sua
vida, representam-se situados entre o Céu e o Inferno. Dizem a si
incessantemente: se, depois deste combate, eu devesse comparecer
no tribunal de Jesus Cristo, como quereria ter sustentado este
combate? Ocupam-se vivamente desses objetos, tão interessantes
para o homem, para o cristão, e tão capazes de os afastar de todo
mal. Compenetrado dessas verdades tão tocantes, tão
impressionantes, o seu coração torna-se insensível ao objeto da
tentação, a sua mente não se ocupa mais deles.
Poucas tentações há que resistam muito tempo numa alma
que, sem escutar as razões da imaginação escaldada pela paixão, e
sem se divertir em lhe responder, animada de uma viva confiança
volve-se para Deus por sentimentos de amor, e lhe implora o socorro
sob a proteção da Santíssima Virgem. Este exercício do amor de
Deus, enquanto durar o ataque, é a defesa mais segura do coração.
Este nunca será forçado enquanto se mantiver apegado a Deus por
esse sentimento. Para tornar esse sentimento mais forte e mais
duradouro, apliquemos a mente à consideração dos motivos que
devem alimentá-lo e aumentá-lo: logo o inimigo, confuso,
abandonará o seu ataque. Se ele recomeçar o combate, o poremos
em fuga pela mesma manobra.
Finalmente; trata-se, com a graça de Deus, de afastar da
mente ou do coração as ideias e os sentimentos que põem em
perigo. Mais fácil e mais seguramente conseguimos isso dando-lhes
outro curso, outra ocupação. Há mesmo circunstâncias, quando as
tentações são fortes e obstinadas, em que é oportuno, para se
distrair delas, ocupar-se de alguma obra de espírito ou de corpo,
cuidar de empregos ou de afazeres. Estas ocupações afastam da
alma os objetos que as obsidiam, e proporcionam-lhe a tranquilidade.
Quando a calma volta, a mente e o coração elevam-se a Deus com
mais liberdade, prendem-se a Ele com muito mais força.
Nesses combates, ponto essencial é não se perturbar, é não
deixar enfraquecer a sua confiança em Deus, sobretudo resistir aos
primeiros ataques. Se a mente e o coração são perturbados pelo
temor, não sabem a que se apegar para se sustentarem: a
perturbação escurece as verdadeiras luzes. Neste estado, já não se
pensa em procurar socorro. O coração não sabe a que se resolver,
porque a mente não lhe apresenta nada que seja capaz de animá-lo.
É diária a experiência disto, e estende-se às coisas temporais como
às coisas espirituais. Vede esse homem que se acha num perigo,
num ataque imprevisto: fornecem-lhe meios de safar-se dele, mas
ele não os vê; tem as suas armas junto de si, mas procura-as sem as
achar.
Recebei o inimigo com mais segurança, e tomareis mais
medidas para lhe aparar os golpes, vereis melhor os meios de
vencê-lo, empregareis esses meios com mais liberdade, empregá-
los-eis com mais vantagem: Afinal de contas, por que vos
perturbardes? O demônio pode, na verdade, sugerir-vos tudo o que
ele tem de mais perverso, porém não pode obrigar-vos a consentir
nisso. O consentimento não depende dele; só depende de vós. Por
que, pois, vos assustardes, como fazeis, numa coisa em que sois
absolutamente senhor, em que, com o socorro da graça, podeis
sempre recusar o consentimento? Resisti, e nada tendes a temer de
um inimigo que só pode vencer-vos quando bem o quiserdes.
Esta segurança, vos será dada pela confiança em Deus, se
não a deixardes enfraquecer. Uma alma desanimada na tentação é
uma alma meio vencida. Ela não faz mais senão fracos esforços,
porque já não é sustentada por essas graças particulares que Deus
só concede à confiança. Como haveria ela de tê-las, essas graças
preciosas? Nesse estado, ela nem sequer pensa em pedi-las. Parece
que Deus não é mais para ela o Deus forte, o Deus bom, que pode,
que quer sustentá-la. Entretanto, ela experimentaria essa bondade e
esse poder, se os invocasse com fé. Deus prometeu-o: sua palavra é
infalível (Sl 17, 4; 137, 7).
Não digais: tenho experimentado tantas vezes a minha
fraqueza nessa tentação! Se a experimentastes, foi por haverdes
sempre faltado à confiança. Não falteis mais, e não mais
sucumbireis. Pedro, andando sobre as águas por ordem de Jesus
Cristo, começou a afundar assim que faltou à fé e à confiança (Mt 14,
31): e só foi salvo pela volta desse sentimento, que lhe atraiu a
proteção do seu divino Mestre.
Nas tentações, mormente nas que geralmente são violentas,
atenta aos primeiros ataques da paixão, aplicai-vos a lhe sustar os
primeiros movimentos. Se deixardes à imaginação tempo para se
esquentar, ao coração tempo para se prender ao objeto, e isto por
uma defesa fraca de vossa parte, esta infidelidade enfraquecer-vos-á
ainda mais. A paixão tratada com considerações grimpa logo. Era
apenas uma faísca, que teria sido fácil apagar: mas, por essa
negligência, torna-se um abrasamento, que ganha todas as
potências da alma.
Ainda mais necessário é este conselho nas tentações cuja
força redobra pelas impressões que elas produzem nos sentidos.
Então fazem-se necessários rasgos de uma misericórdia particular
para se conservar no meio das chamas sem ser por elas danificado.
A diligência em prevenir esse perigo, ou vos teria preservado da
tentação, ou vos teria assegurado a proteção de Deus para sairdes
dela sem receber ferimento.
Quando não se tem experiência, devem-se revelar ao seu
confessor as tentações assim que começam. Assim aprende-se a
maneira de combatê-las; e assim nos desfazemos delas mais
facilmente. Esse ato de humildade e de simplicidade cristã atrai
graças particulares do Céu. Uma alma que, segundo a ordem
estabelecida pela Providência, quer conduzir-se pela trilha da
obediência, merece que o Senhor se interesse especialmente por ela
nas suas penas. Por isto, com frequência sucede já não causarem
essas tentações perturbação, mal as revelamos ao ministro do
Senhor. Se as calamos, na esperança de que elas passarão,
ordinariamente damos-lhes tempo para se fortificarem, e elas se
tornam mais difíceis de vencer.

✽✽✽
9. Sobre as tentações frequentes

Quando estamos expostos a tentações frequentes, devemos, no


tempo da calma, premunir-nos contra os ataques delas, haurir forças
para lhes resistir. Aquele que espera pelo momento do combate para
a ele se dispor, infalivelmente é surpreendido e logo vencido. É no
tempo de paz que devemos nos preparar para a guerra: esta máxima
é geralmente reconhecida. Devemos fazer uso dela na piedade,
onde as derrotas são de consequência inteiramente outra que nas
coisas temporais, visto que privam de um reino eterno.
Esta preparação consiste numa vida recolhida, interior.
Entregue à dissipação, uma alma não presta, a princípio, toda a
atenção que deve prestar ao que se passa no seu coração. A
tentação faz progressos antes que ela esteja em estado de
renunciar-lhe. Ocupada com inutilidades, a mente custa a refletir
seriamente sobre os motivos de Religião que podem contrabalançar
o atrativo da paixão. No recolhimento, a alma, ocupada de Deus e de
bons sentimentos, de longe vê vir o inimigo: precata-se de início: e
acha, na sua mente e no seu coração, armas prontinhas para
combatê-lo com êxito.
A mente ocupada das verdades da Fé, o coração apegado à
virtude, pelos sentimentos habituais que o guiam, dificilmente são
abalados pelas falsas satisfações que a paixão apresenta. Ao clarão
desse facho da Fé, facilmente reconhecemos o precipício horrendo a
que a tentação conduz, concebemos horror dele, afastamo-nos dele
para a ele não nos deixarmos arrastar. A oração assídua, a proteção,
que reclamamos, dos santos, e sobretudo da Mãe de Deus, abrem
os tesouros do céu: fazem descer dele essas graças de escolha de
que se torna indigna uma alma dissipada, que não pensa em solicitá-
las.
Se essa vida recolhida for sustentada pelos sacramentos, dos
quais nos aproximamos amiúde, para isto nos preparando com
cuidado, ainda em mais segurança estaremos. Ainda mesmo quando
sucumbíssemos algumas vezes, não devemos afastar-nos dos
sacramentos: muito antes, a eles devemos recorrer mais
frequentemente. O sacramento da Penitência foi estabelecido não
somente para perdoar os pecados que se cometeram, mas ainda
para conferir graças particulares que afastam dos pecados que ainda
se poderiam cometer, graças que fortificam contra as paixões que os
fizeram cometer. Afastando-nos do sacramento, privamo-nos dessas
graças especiais, e tornamo-nos sempre mais fracos.
À medida que mais amiúde nos aproximamos do sacramento
da Penitência, concebemos sempre mais horror ao pecado. Este
horror, mais vezes reiterado, imprime-se mais fortemente, age mais
vivamente na alma, e sustenta-a mais poderosamente na ocasião.
Aliás, todos os Doutores convêm em que uma pessoa que teve a
desdita de cair num pecado mortal, mormente quando tem pendor
para ele, não deve adiar por muito tempo o sair desse estado,
porque, privada da graça santificante, e por isto afastada de Deus,
de quem se tornou inimiga, está em maior perigo de cair em
semelhantes pecados, se for de novo atacada pela tentação. Causa
ela, pois, a si mesma grandíssimo prejuízo quando se afasta do
sacramento da Penitência.
A santa Comunhão também é um meio poderoso para se
sustentar contra as tentações, se nos aproximarmos dela com santas
disposições. Nela recebemos Jesus Cristo, o Salvador de nossas
almas. Depois de se haver dado a nós, podemos pensar que Ele nos
recusará os socorros que devem prender-nos a Ele? Ele só vem ao
nosso coração para firmá-lo no bem. O santo Concilio de Trento,
falando da divina Eucaristia, diz: Jesus Cristo quis que esse
Sacramento fosse recebido como o alimento espiritual das almas,
alimento que as sustentasse e fortificasse... e como um antídoto pelo
qual fôssemos libertos das faltas diária e preservados dos pecados
mortais (Sess. 13, c.II).
Se há estado em que a alma tenha necessidade premente de
um socorro particular que a sustente no bem, que a fortifique contra
os inimigos da sua salvação, que a preserve dos pecados mortais,
esse estado é, sem dúvida, esse em que se acha a alma sujeita às
tentações. Nunca essa comida celeste, esse antídoto poderoso, lhe é
mais necessário. Privar-se, por culpa própria, de tamanho bem,
estabelecido para o fim que se deseja nesse estado, não é querer
expor-se a sentir todo o peso de sua fraqueza? Aliás, essa alma que
quer aproximar-se santamente dos sacramentos está ocupada desse
grande objeto: cheio dos sentimentos de piedade que quer trazer a
eles, o seu coração faz diversão às tentações que o assediam, e fica
poderosamente empenhado em não admitir coisa alguma que possa
opor óbice às graças que ele solicita.
Sobre este artigo, entretanto, é ao confessor que compete
julgar das disposições; é a ele que cabe prescrever o que uma alma
deve fazer nesse estado, para não cair na ilusão.
A todos esses meios de se premunir contra as tentações a
que uma alma está exposta, pode-se juntar a penitência. Ela atrai
graças; humilha o espírito; amortece as paixões; expia os pecados,
as faltas, as infidelidades; desperta o fervor; excita à vigilância. Não
se deve, entretanto, empregá-la sem discrição e sem discernimento.
Devemo-nos mortificar, mas até certo ponto, para além do qual
haveria um excesso capaz de prejudicar a saúde, saúde que a
prudência cristã e religiosa manda poupar. Empregam-se sempre
com êxito as práticas da penitência contra a maioria das paixões:
mas há tentações em que essas práticas podem ser perniciosas a
certas pessoas, no tocante ao seu caráter, ao seu temperamento.
Para essas pessoas, devem as penitências ser interditas; e essas
pessoas nada devem fazer, nesse gênero, sem conselho e sem
permissão.

✽✽✽
10. As vantagens das tentações

Não encaramos as tentações sob o seu verdadeiro ponto de vista:


daí vem o entristecermo-nos tanto com elas. Só prestamos atenção
ao perigo a que elas nos expõem, ao mal a que nos levam; mas não
pensamos nas vantagens que delas podemos tirar, nos bens
espirituais que elas podem proporcionar-nos. Esta ignorância, ou
esta falta de reflexão, é a causa do pouco proveito que nelas
achamos. As reflexões seguintes servirão para nos fazer suportá-las
mais pacientemente, e dar-nos-ão mais facilidade para vencê-las.
As tentações podem empenhar um coração cristão na prática
das virtudes mais sólidas, e fazer-lhe adquirir grandes merecimentos
para o Céu. Bem grande consolação é poderdes tirar, dos próprios
inimigos que vos atacam, vantagens eternas, e poderdes fazê-los
servir à vossa felicidade. A vista de tamanho bem não pode deixar de
animar uma alma no combate. É um motivo que nos propõe o
Apóstolo São Tiago: Considerai um motivo de alegria quando fordes
atacado de diferentes tentações; quando fordes posto em diversas
provações (Tg 1); sabendo que essas provações em que vossa fé é
posta produzem a paciência, e que a paciência dá perfeição às
obras.
O homem reflete pouco sobre si mesmo: conhece-se pouco;
evita examinar-se a fundo, com medo de achar em si defeitos de que
o amor-próprio teria de corar. Toda a sua atenção dedica-se, pois,
naturalmente a paliar, aos seus próprios olhos, os seus vícios, a
salientar as suas boas qualidades. Desta conduta tão pouco sábia é
que vem esse amor-próprio tão delicado, tão sensível, tão
susceptível, essa vã estima que ele tem de si mesmo, essa
presunção que o expõe a tantos perigos; essa vaidade, essa
preferência que ele se dá sobre os outros. O orgulho, fonte de todos
os males, cega-o sobre a sua miséria, sobre os seus defeitos, sobre
as suas quedas, sobre as suas fraquezas.
As próprias pessoas que se afeiçoam à piedade nem sempre
estão isentas dessa vã complacência, tão natural, de uma alma que
se nutre das suas virtudes, e que procura a distinção e a estima. É
um princípio de orgulho e de vaidade que as eleva aos seus próprios
olhos, que as enche de si mesmas, que as faz contar com as suas
próprias forças, e que as mantém numa segurança temerária e
perigosa: veneno sutil que muitas vezes infecta as ações mais
santas em aparência.
As tentações são um remédio soberano para esse mal tão
perigoso, e para as suas consequências funestas. Elas desvendam
ao homem todo o seu coração: fazem-no conhecer tal qual é quando
está entregue a si mesmo, sem que ele possa ocultá-lo ou disfarçá-lo
a si mesmo. Ao clarão desse triste facho, ele vê todas as misérias
desse coração, todas as fraquezas, toda a corrupção. Atacado
alternativamente por diferentes paixões de inveja, de ciúme, de ódio,
de vingança, e por outras ainda mais baixas e mais vergonhosas, ele
vê no seu coração o germe de todas aquelas que arrastam os
homens às maiores desordens, e facilmente se persuade de que
naturalmente nada tem acima deles.
O primeiro efeito que essa visão produz numa alma cristã é
inspirar-lhe uma humildade proporcionada à miséria em que ela se
acha: ela só vê em si motivos de humilhação e de desprezo. A
estima que poderia conceder a si por algumas boas qualidades que
vislumbra no seu coração, logo é abatida por essa chusma de más
inclinações contra as quais é obrigada a lutar incessantemente. Ela é
a seus próprios olhos o que seria aos olhos dos homens se o seu
coração, com todas as suas paixões, lhes fosse desvendado. Já não
tem por si mesma senão os sentimentos de um desprezo cristão, que
a humilham diante de Deus, e que fazem cessar de sua parte toda
pretensão diante dos homens.
Que vantagens uma alma não tiraria desse conhecimento,
sustentado pelo espírito de religião? É ela afligida? Sofre? Submissa
à Providência, pensa em que mesmo assim, Deus ainda a poupa e
não a trata segundo a corrupção do seu coração. É consolada?
Recebe benefícios? Então adora a bondade do seu Deus, que se
digna de tratá-la tão favoravelmente. O contraste entre a sua
indignidade e a bondade divina excita-lhe no coração a mais viva
gratidão, faz nascer nele os sentimentos do amor mais perfeito. Na
convicção em que está de ser indigna dos bens que recebe, de só os
dever a uma misericórdia infinita, ela aperfeiçoa a sua humildade,
essa virtude tão necessária e o recurso de tantas virtudes.
Uma alma a quem as tentações fazem conhecer toda a
baixeza do seu coração, sente diante de Deus a mesma confusão
que sentiria diante dos homens, se fosse por eles conhecida.
Confusão salutar, que a esperança sustenta. Assim sendo, guiada
pelo espírito de religião, ela já não se irrita contra o proceder das
criaturas a seu respeito, por mais duro, por mais desagradável que
ele possa ser. A luz da fé faz-lhe ver que ela merece ainda mais
desprezo do que lhe é testemunhado; e que, se as pessoas não
levam ainda mais longe esse desprezo, é que não a conhecem tal
como ela é no fundo, é que a caridade lhes oculta mesmo uma parte
daquilo que aparece exteriormente. Será preciso mais para lhe fazer
perder para sempre toda vã vítima de si mesma?

✽✽✽
11. Maior vigilância e dependência de Deus

O conhecimento da corrupção do coração dado pelas tentações a


uma alma cristã, produz outro efeito, que, bem sustentado, a conduz
à perfeição. Uma alma sujeita às tentações, e que quer operar a sua
salvação, apega-se mais fortemente a Deus; vive em maior vigilância
sobre si mesma: dois meios bem próprios para lhe proporcionar
grandes progressos na trilha da santidade.
Essa alma vê no seu coração uma multidão de inimigos:
conhece toda a sua fraqueza, e posto que sinta em si bastante
resolução para, com as graças ordinárias, em ocasiões pouco
urgentes e com relação a objetos pouco interessantes, resistir a
alguns, está convencida, tanto pela depravação do seu coração,
como por uma triste experiência e como pelos princípios da Religião,
de que, sem graças especiais, não terá bastante ânimo e força para
resistir a ataques mais vivos.
Que faz, pois, uma alma cristã, esclarecida por essas luzes, e
espantada com um combate tão desigual? Procura um socorro
poderoso, que possa sustentá-la contra todos os seus inimigos, e
sobretudo contra os mais temíveis. A Fé lhe ensina que só junto a
Deus pode ela achar esse socorro para si tão necessário, e que
efetivamente o achará se o implorar com ardor e perseverança. É,
pois, a Ele que ela se dirige sem cessar, com confiança inteira.
Ao primeiro movimento que o inimigo faz para atacá-la (Sl
120), ela ergue os olhos para as montanhas santas, de onde lhe
deve vir o socorro: solicita-o pelas suas preces; atrai-o pelos seus
desejos: todos os afetos do seu coração falam, rogam para obtê-lo.
Quanto mais esforço a tentação faz para arrastá-la, tanto mais ela se
apega a Deus pelos seus sentimentos. É uma criança que, andando
à beira dos precipícios, ou achando-se cercada de animais ferozes,
agarra-se mais fortemente a seu pai (que é só quem pode garanti-la)
à medida que as passagens são mais escorregadias e mais
perigosas, e à medida que ela está mais exposta a receber
ferimentos mortais.
Sob a proteção do seu Deus, como o santo Rei profeta, ela
não mais teme inimigos sempre fracos contra uma fé viva que lhe
desvenda bens eternos, contra uma esperança firme que lhe atrai as
graças particulares que Deus prometeu à confiança. Não os conta
mais, esses inimigos que ela considerava tão temíveis; despreza-os,
ou ataca-os com segurança; e, nestas disposições, obtém de Deus a
vitória.
Esse benefício muitas vezes concedido faz-lhe conhecer de
maneira mais assinalada a bondade, a misericórdia de Deus; de
Deus que tão especialmente se interessa pela sua felicidade; e com
isso o seu amor a Deus torna-se mais forte e mais ardente. As
tentações, se as encararmos e as suportarmos segundo as máximas
da Religião, apegam, pois, a alma mais fortemente a Deus pelas
virtudes principais, pela Fé, pela Esperança, pela Caridade, das
quais a obrigam a produzir atos mais frequentes.
Mas, por outro lado, a convicção da sua fraqueza obriga a
alma a viver em maior vigilância sobre si mesma. O homem fraco é
cauteloso, e o é na proporção da sua fraqueza. Essa cautela dá-lhe
uma circunspecção singular para evitar tudo o que lhe possa atrair
inimigos, ou despertar o ódio dos que ele já tem. É atento sobre
todos os seus passos, sobre todas as suas palavras. Não ataca
ninguém, porque não tem confiança de poder resistir. É este o
procedimento que, com mais cuidado ainda, observa a alma cristã.
Evita tudo o que possa despertar as tentações a que é sujeita, tudo o
que possa proporcionar-lhe novas.
Pelos oráculos do Espírito Santo, sabe que aquele que se
expõe temerariamente ao combate merece perecer nele (Eclo 2, 27).
No temor de experimentar toda a sua fraqueza se se tornar indigna
do socorro do Céu pela sua presunção, está continuamente atenta
sobre a sua mente e sobre o seu coração, com medo de que se
insinue neste algum novo inimigo; ou de que os que nele estão
escondidos, aproveitando-se da sua negligência, se apoderem dos
seus sentimentos, lhe façam provar a doçura envenenada da paixão,
e a arrastem ao precipício.
A vigilância parece-lhe tanto mais necessária quanto a
tentação nem sempre age à força aberta. Toma desvios; engana por
pretextos, seduz pela aparência do bem, para de mansinho conduzir
a alma às armadilhas. As paixões nem sempre se mostram a
descoberto, para se não deixarem reconhecer. Há umas que se
insinuam insensivelmente, que se disfarçam, para se introduzirem no
coração sem que a gente o desconfie. Uma alma pouco atenta dá-
lhes tempo de se fortalecer, ou só fracas barreiras opõe à sedução.
Pelo contrário, a alma que pelos combates que tem de sustentar
conhece toda a consequência que há em sentir novas inclinações, ou
em ter a menor complacência para com as antigas, está tão alerta,
que vislumbra os menores movimentos que se operam no seu
coração. Procura-lhes a causa, para remediá-los. Mal reconhece o
inimigo, afasta-o, precata-se contra os seus ataques.
Assim, a vigilância que ela emprega é um baluarte seguro que
a defende contra as tentações de fora e de dentro. Ela nunca é pega
desprevenida: a paixão acha-a sempre em estado de defesa.
Muitas vezes nós procedemos sem precaução em tempo de
paz e durante a calma. Mas, em tempo de guerra e durante a
tempestade, estamos muito atentos a tudo, se não queremos
sucumbir e naufragar. A vigilância entretém a união com Deus: esta
união confere docilidade às inspirações do Espírito Santo, e esta
docilidade conduz à perfeição.

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12. Efeitos das tentações nas almas negligentes
As tentações, que parecem dever perder as almas negligentes,
muitas vezes têm sido um meio de que Deus se tem servido para
retirá-las do estado de displicência em que elas viviam, e para lhes
fazer praticar a virtude com um fervor porfiado. Há almas que levam
uma vida esmorecida nas vias da piedade. Na verdade, não há
desordem assinalada na conduta delas; mas também elas não dão
atenção à sua perfeição. Se não cometem dessas faltas graves que
as afastariam de Deus, fazem pouco bem, pelo pouco cuidado que
têm de praticar a mortificação dos sentidos e das paixões mesmo
honestas e, em certo sentido, inocentes, ou que lhes parecem tais; e
de agirem habitualmente num espírito de fé. A sua vida, todo natural
na maioria das suas ações, bem pouco mérito tem perante Deus.
Elas são como uma nau que, em tempo de calmaria, quase não faz
caminho.
Por misericórdia, Deus perturba essa calmaria por
tempestades. A tentação desperta a piedade adormecida nessa
alma, que Deus ilumina nesse momento e que atrai a si por sua
graça. Ela se vê de repente à borda de um precipício que lhe faz
horror. Vê-se a braços com inimigos que empregam alternativamente
a doçura e o terror para seduzi-la ou intimidá-la. A Religião age então
no coração dela com mais força. Assustada com o perigo, ela recorre
ao seu Deus, em quem põe toda a sua confiança, para sair vitoriosa
do combate. Se os assaltos se renovam, para evitar perder-se ela
pensa seriamente em se fortificar contra os ataques reiterados dos
seus inimigos, por todos os meios que a Fé lhe fornece.
Desta maneira, aplicada à oração, que deve alcançar-lhe as
graças de força de que ela precisa para resistir; unida a Deus, a
quem o perigo em que ela se acha a reconduz sem cessar; vigilante
sobre si mesma, para não cair nas ciladas que lhe são armadas, ela
não age mais senão por motivos de piedade, coloca-se num
exercício contínuo de virtude. Tudo o que deseja, tudo o que faz,
quer que seja uma homenagem que o seu coração preste a Deus.
Quanto mais premida se sentir pelas paixões que a atacarem, tanto
mais se firmará na determinação de nunca se afastar dessa trilha, a
única que pode pô-la a coberto dos ataques dos seus inimigos.
Assim, de uma vida negligente ela passa logo a uma vida de fervor,
em que todos os seus momentos são consagrados a Deus.
Essa mudança deve ocorrer se essa alma, até então tíbia e
displicente, for fiel à sua graça. Porquanto, assim atacada pela
tentação, vendo a sua salvação em perigo, querendo evitar a
desgraça irreparável da sua perdição, por pouco que raciocinar
segundo os princípios da Fé ela compreenderá desde logo que
haveria presunção, e uma presunção bem culpada, se esperasse de
Deus a vitória sem empregar, para alcançá-la, nenhum dos meios a
que Deus a ligou. Uma alma que, a pretexto da misericórdia de
Deus, pretendesse ter os socorros para resistir às paixões que a
atacam embora levasse uma vida dissipada e omitisse ou cumprisse
com negligência os exercícios de piedade; embora se aproximasse
dos sacramentos ou raramente ou com pouca preparação, e não
quisesse incomodar-se para evitar as faltas leves; essa alma tentaria
a Deus: tornar-se-ia indigna do seu socorro; mereceria que Deus
permitisse que ela experimentasse toda a sua fraqueza, que se
tornasse escrava de todas as suas paixões.
Com tais disposições, poder-se-ia dizer com verdade que
essa alma tíbia e covarde não quereria sinceramente resistir:
porquanto querer o fim sem empregar os meios é realmente não o
querer. Deus lhe diria com justiça, como dizia ao seu povo: A vossa
perdição vem de vós, ó Israel (Os 13, 9). Não falo, pois, de uma alma
desse caráter: falo daquela que, apesar da sua negligência, teme
bastante o pecado, ama bastante o Senhor, para estar na disposição
sincera de não o ofender mortalmente e, conseguintemente, de
empregar os meios que Deus lhe deu para obter a sua proteção. A
tentação é utilíssima a essa alma para tirá-la da sua indolência e
para lhe fazer renascer o seu fervor.
Os Padres, na vida espiritual, convêm que Deus permite às
vezes que uma alma que está na tibieza caia em alguma falta grave,
para tirá-la do seu torpor pelo horror que ela sente dessa falta.

✽✽✽
13. Combater a tentação não é perda de tempo

Oque aflige muitas pessoas sujeitas às tentações é imaginarem


perder o seu tempo nesses combates. Dizem elas: raramente posso
viver no recolhimento. Se quero aplicar-me à meditação, recitar
orações, passar algum tempo junto de Jesus Cristo residente no
sacramento do seu amor, não posso ocupar-me de Deus: é esse
quase sempre o tempo em que as tentações vêm assediar-me; e
passo-o quase todo inteiramente ocupado em me defender contra a
impressão delas. Topo com esses inimigos importunos e
encarniçados até na Mesa Santa, onde vou receber meu Salvador e
nutrir-me do Deus das virtudes. Que fruto pode tirar-se de exercícios
de piedade feitos nessa agitação?
Este pensamento lança essas pessoas assim tentadas num
abatimento perigoso. Para curá-las, tranquilizá-las e consolá-las, é
importante pôr-lhes debaixo dos olhos os princípios e as reflexões
que devem fazer-lhes conhecer o seu erro, e toda a vantagem que
esse estado penoso lhes proporciona quando elas são fiéis.
É uma máxima universalmente reconhecida que não devemos
servir a Deus segundo as nossas ideias e os nossos gostos:
devemos servi-lo como Ele o exige, e tal como lhe apraz. Deus liga
suas graças e suas recompensas não precisamente às boas obras
que nos impomos, porém, às que Ele autoriza ou que pede de nós.
Neste princípio é que se funda a decisão de que, se a obediência vos
aplica a algum emprego que vos impede de estar na meditação,
satisfazendo esse emprego com espírito interior sois tão agradável a
Deus quanto se estivésseis na meditação. E, se tirásseis de vós
mesmo o exercício desse emprego, para orar e para meditar, não
serviríeis o Senhor como Ele quer: faltaríeis para com Ele, ao invés
de O honrar.
Este princípio bastaria para vos convencer de que não perdeis
o vosso tempo quando, durante os exercícios de piedade, estais
ocupado em combater o inimigo da salvação. O demônio só tem
poder contra os homens na medida em que Deus lho permite. Ele
não pôde colocar Jó em tantas provações e tentá-lo de tantas
maneiras, senão por permissão expressa do Senhor. Deus permite,
pois, esse estado de tentação em que vos achais; e, como as
distrações são uma espécie de tentação, deve-se aplicar-lhes o que
aqui dizemos.
Como quer então Deus que o sirvais? Será por uma
meditação seguida e ininterrupta das coisas santas? Será por
colóquios amorosos com Ele, colóquios que nenhum afeto terreno
venha perturbar? Não: Ele quer que o sirvais por uma resistência fiel
e constante a tudo o que o inimigo vos inspira para vos seduzir e
para vos fazer renunciar ao seu divino amor; quer que, a exemplo
dos judeus ao reerguerem os muros de Jerusalém, empunheis com
uma das mãos a espada para resistir aos inimigos (Ne 4, 17) que vos
atacam, e com a outra trabalheis em elevar o edifício espiritual da
vossa perfeição pelos sentimentos de uma fé viva e de uma
esperança firme: digo firme na vontade, embora, a contragosto
vosso, seja ela vacilante na imaginação. Tendes tido essa fidelidade?
Então tendes cumprido a vontade de Deus, e O tendes honrado
como Ele o pedia de vós nesse momento; tendes-lhe sido tão
agradável na vossa submissão, na vossa paciência, na vossa
fidelidade em resistir às tentações, como se tivésseis feito uma
meditação animada de fervor o mais sensível, cheia de sentimentos
os mais afetuosos.
Pergunto-vos: perdemos o nosso tempo quando procedemos
de maneira tão assinalada e tão sólida? Deveis, pois, ficar tão
satisfeito após um exercício em que, pela misericórdia de Deus,
houverdes suportado corajosamente os assaltos dos inimigos da
salvação, como se a houvésseis feito na maior tranquilidade. Tereis
tido nela menos doçura e gosto; porém o fruto, bem longe de ser
com isso diminuído, só terá feito aumentar. Tereis feito a vontade de
Deus: Deus reconhecê-lo-á pelas graças de que vos cumulará. O
cumprimento dessa vontade santa ter-vos-á sido mais penoso: essa
pena não será esquecida na recompensa que receberdes. O Espírito
Santo assegura-nos disto pelo órgão do Apóstolo: Deus não é injusto
para esquecer as nossas penas e os nossos trabalhos (Hb 6, 10).
O tempo que empregamos em combater as tentações não é,
pois, um tempo perdido para a alma fiel, não somente porque
prestamos a Deus a honra e a homenagem que Ele exige, e pela
maneira como a exige, como ainda porque nesses combates
adquirimos méritos que se multiplicam a cada instante. As
perseguições, multiplicando os sofrimentos dos mártires,
aumentavam-lhes a coroa: as tentações são uma perseguição que
tem o mesmo efeito quando somos fiéis.
No Eclesiástico, capítulo 31, o Espírito Santo declara feliz o
homem que pôde violar o mandamento de Deus e não o violou; que
pôde fazer o mal e não o fez. A sua felicidade corresponde ao mérito
que ele adquiriu pela sua fidelidade. Baseado neste princípio,
quando obedeceis à lei de Deus, e quando cumpris a sua vontade de
uma maneira que é penosa para a natureza, tendes um duplo mérito:
haverdes obedecido, e o haverdes feito com esforço, resistindo e
combatendo. O sacrifício que fazeis do natural que vos impele e que
vos é recompensado tanto no tempo, por novas graças, como na
eternidade, por um aumento de glória e de felicidade.
Argumentando com fundamento no mesmo princípio, que
tesouro de méritos não deve amontoar uma alma que, atacada por
diferentes tentações, as combate generosamente para não se
separar de Deus!
É certo que cada sacrifício que fazemos a Deus tem o seu
merecimento e terá a sua recompensa. A cada vez que a alma fiel
resistiu à tentação, pode-se dizer: ela pôde violar o mandamento,
pôde fazer o mal, e não o fez. Porém, que número de sacrifícios não
faz uma alma que, frequentemente atacada, solicitada pela paixão,
desaprova-a constantemente, renuncia ao objeto que ela apresenta,
resiste-lhe com perseverança! Há poucos momentos que não sejam
assinalados por uma vitória. Os esforços reiterados e diversificados
do inimigo só fazem aumentar o número das vitórias que a alma fiel
oferece ao seu Deus.
Que tesouro de méritos não achará ela nessas espécies de
combates singulares com a paixão? Nem sempre ela percebe todos
os seus sacrifícios; mas não há nenhum deles que escape à
vigilância do Senhor; nenhum que não tenha a sua recompensa.
Será preciso mais para consolar uma alma nesse estado, e para
animá-la à perseverança? Se o combate é penoso, a coroa é
brilhante; é imortal; é um momento de pena, e um peso imenso de
glória (2Co 4, 17). E quereríamos perdê-lo por uma satisfação de um
momento?
O mérito não se cinge a esses sacrifícios tão amiúde
reiterados; essa alma acha novos tesouros dele nas virtudes
interiores que pratica durante esse estado de tentação. Ela bem
sente que não pode resistir com constância sem o socorro do Céu,
sem se tornar atenta às vistas e aos objetos da Fé, sem se entregar
aos sentimentos da Esperança e do Amor divino.
O seu coração está então num exercício contínuo de oração e
dos atos dessas excelentes virtudes. Se um ato de Amor de Deus
tem um mérito tão assinalado que pode reconciliar o pecador com
Deus, quantos méritos não adquire uma alma que, para se sustentar
nos combates da tentação, produz tão amiúde esses atos tão
meritórios?
É, pois, à míngua de reflexão que se acredita num estado de
inação para o Céu e para a virtude quando se está ocupado em
combater as tentações. Ao contrário, evidente é, pelo que acabamos
de dizer, que se está na maior ação, e num exercício contínuo, para
merecer um e para praticar a outra.

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