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Cinco séculos de carne de vaca: antropofagia literal e

antropofagia literária

Carlos Fausto

Nuevo Texto Crítico, Año XII, Número 23/24, Enero-diciembre 1999, pp.
75-82 (Article)

Published by Nuevo Texto Crítico


DOI: https://doi.org/10.1353/ntc.1999.0021

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CINCO SECULOS DE CARNE
DE VACA
ANTROPOFAGIA LITERAL
E ANTROPOFAGIA LITERARIA
___________________CARLOS FAUSTO___________________
Pós-Graduacáo em Antropología Social do Museu Nacional / UFRJ

Imagino ter sido convidado a participar deste número temático de Nue-


vo Texto Crítico para falar sobre antropofagia literal e nao literaria; a antro-
pofagia como fato e nao como tropo. É o que farei, atendo-me a alguns
dados etnográficos referentes as sociedades indígenas da América do SuI,
em particular aos grupos tupi-guarani que ocupavam a costa atlántica no
momento da Conquista e que serviram de inspiraçao aos modernistas.
Näo me limitarei, porém, à descriçâo dos fatos, pois a antropofagia mais
do que fato institucional ou prática cultural históricamente datada é um es-
quema relacional básico nas cosmologías indígenas: um esquema que näo se
limita à relaçâo de predaçâo entre humanos, mas se aplica à predaçâo de
todos os entes dotados de capacidades subjetivas. E no caso indígena, como
em outros sistemas anímicos, nao só os humanos possuem verbo e intençâo:
os animais em especial, mas näo só eles, sao também concebidos como su-
jettes, dotados de um ponto de vista proprio sobre o mundo, associado a
uma forma específica de viver e agir. Por isso, prefiro falar em esquema de
relaçâo caníbal, mais do que em esquema antropofagia).
Se definirmos, assim, o canibalismo como apropriaçâo violenta de capa-
cidades subjetivas de entes dotados de perspectiva propria, a antropofagia
deve ser tida como uma subespécie de canibalismo, embora seja sua expres-
säo prototípica, pois dentre todos os seres, os humanos sao aqueles que
mais claramente possuem, por assim dizer, os atributos da humanidade:
açâo, intençâo e perspectiva próprias. Redefino, aqui, a distinçâo entre cani-
balismo e antropofagia, sugerida por Oswald de Andrade em A crise da filo-
sofía messiânica. Distinçâo entre um comer gente para fins alimentares e
comer gente por motivaçâo ritual ou religiosa; diferença que remonta à opo-
siçao, ademáis equivocada, entre a antropofagia tupi e o canibalismo de ou-
tros grupos indígenas, como o dos karib — designaçâo da qual o termo caní-
bal é, possivelmente, uma corruptela (Colombo [1492] 1986:65).
Seja como for, é a antropofagia dos grupos tupi-guarani da costa brasi-
leira quinhentista, que serve de mote à Revista de Antropofagia em suas duas
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dentiçôes, assim como servira, sob outra roupagem, ao indianismo románti-


co do Gonçalves Dias de "Y-Juca-Pirama". O indio que inspirou nossos mo-
vimentos literarios é aquele distante no tempo, figura do passado moldada
conforme os intuitos da elite literaria nacional. É bom lembrar que seja em
meados do século XIX, tempo dos románticos, seja no segundo quartel des-
te século, tempo dos modernos antropófagos, havia ¡números grupos indíge-
nas, distantes no espaço, mas próximos no tempo. Estes, porém, haviam de-
saparecido da consciencia das elites urbanas, ainda que o processo colonial
interno näo tivesse terminado. Se nao me engaño, a única referencia a indios
contemporáneos encontra-se na última ediçâo da Revista de Antropofagia:
um comentario crítico ao contato de um grupo tupi do Maranhäo pelo Ser-
viço de Proteçâo aos indios. No mais, fala-se de personagens consagrados
pelos cronistas quinhentistas e seiscentistas como Cunhambebe e Japu-açu,
citando-se mais autores franceses como Léry e Abbeville (isto sem falar no
sempripresente Montaigne) do que os ibéricos, como Anchieta, Gandavo e
Soares de Souza.
indios do passado lidos por uma mésela de urbanidade modernizante,
com um internacionalismo provincianamente gaulés e um nativismo radical-
mente selvático, seria a metáfora oswaldiana täo distante da realidade indí-
gena quanto o indianismo medievalista de Gonçalves Dias?
O outro Oswaldo, o Costa, quería crer que näo:
A antropofagia nada tem que ver com o romantismo indianista. Ao filho indio
de María, ao indio irmSo do Santíssimo, ao indio degradado pela catequese de
que nos fala Couto de MagalhSes, opomos o caníbal que devorou o catecismo e
disse para Hans Staden que nao o amolasse, porque era gostoso. O indio nu
("De Antropofagia" in Revista de Antropofagia, Diario de Sao Paulo, 12-06-
1929).

Ao indio missionarizado e aculturado, os modernistas opuseram um in-


dio nu, pré- e contra-catequese, antecipando uma mudança no modo da
sociedade brasileira conceber sua relaçâo com os primeiros habitantes do
país. Mudança que ganharia ímpeto a partir dos anos 1950, quando o dis-
curso assimilacionista entáo predominante começou a ceder terreno à idéia
de preservacäo das culturas nativas.
Ainda assim, o indio nu oswaldiano continua sendo uma figuraçâo dis-
tante das realidades indígenas efetivas. A antropofagia como metáfora, no
entanto, parece-me expressar uma compreensáo profunda do canibalismo
como operaçâo prático-conceitual. Para entendermos em que sentido isso é
verdade, é preciso aproximar-se dos fatos etnográficos. Começo, pois, por
uma descriçâo do caso clássico de antropofagia que serviu de topos aos mo-
dernistas, aquele dos tupi-guarani que viviam na costa atlántica no momento
da Conquista.
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O Festim Caníbal Tupinambá


Tupi-Guarani é a designaçâo de uma familia lingüística e dos grupos
que falam línguas dessa familia. No século XVI, eles dominavam toda a fai-
xa litorânea, a bacía dos rios Paraná-Paraguai e, provavelmente, outras áreas
do interior. Na costa, vivía uma numerosa populaçâo, que embora bastante
homogénea lingüística e culturalmente, estava dividida, para usar os termos
dos cronistas, em varias naçôes, castas ou geracóes inimigas. Tamoio, Tupini-
quim, Tobajara, Caeté, Temomino, Tupinambá foram alguns dos termos pe-
los quais ficaram conhecidas essas diferentes castas de gentíos» cuja realida-
de sociológica precisa é, hoje, difícil de se determinar.
A unidade política mínima era a aldeia, enquanto a máxima era o con-
junto de aldeias ligadas por laços de consangüinidade e aliança, que man-
tinham relacóes pacíficas entre si, opondo-se a outros conjuntos de mesma
estrutura. Tais conjuntos nao estavam sujeitos a uma autoridade comum,
nem possuíam fronteiras rígidas, que se redefiniam constantemente em fun-
çâo da propria lógica guerreira.
A guerra endémica entre os Tupi surpreendeu os cronistas por duas
razóes: primeiro, porque parecía nâo envolver qualquer razäo material, ten-
do como única motivaçâo explícita a honra e, como dizia Thevet, esse absur-
do e gratuito sentimento de vingança ([1576] 1978: 135). A vingança e a hon-
ra estavam inextrincavelmente ligadas à antropofagia: o segundo motivo de
surpresa para os conquistadores, pois, nas palavras de um missionário jesuí-
ta, "nâo se têm por vingados com os matar senäo com os comer" (carta de
Antonio Blasquez de 1557 in Navarro [1550-1568] 1988: 198). O principal
objetivo das expedicóes guerreiras era fazer cativos para serem executados e
comidos em praça pública. "Se reduzem ao cativeiro quatro ou cinco dos
inimigos", escreve Anchieta, "voltam sem mais outro motivo e os comem
grandes festas de cantares e copiosíssima libaçâo de vinhos..." ([1554-1594]
1988: 55).
A execuçao ritual dos prisioneiros, contudo, poderia demorar varios
meses. O cativo passava a viver na residencia de seu captor, que lhe cedia
uma irmâ ou filha como esposa. Ele tinha um papel importante nas relacóes
inter-aldeäs, devendo ser mostrado aos parentes e amigos de aldeias vizi-
nhas, e executado em uma grande festim, para o qual se convidavam os
aliados. Sua morte ritual era, assim, um momento privilegiado de articulaçâo
de aldeias em nexos sociais maiores.
A festa começava alguns días antes da execuçao propriamente dita, com
a chegada dos convidados e o inicio das danças e cauinagens. Durante esse
período, o cativo era preparado para execuçao em um crescente processo
de reinimizaçâo: no dia que antecedía o massacre, encenavam uma tentativa
de fuga do prisioneiro e sua captura. Era-lhe dado o direito de vingar ante-
cipadamente a propria morte: amarrado pelo ventre por uma grossa corda,
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recebia pedras, frutos, cacos de cerámica, que deveria lançar contra a au-
diencia, mostrando sua ferocidade e coragem.
A derradeira manhä chegava com o fim da cauinagem. Levado ao ter-
reiro, pintado e decorado, preso por uma corda, o cativo esperava o carras-
co que, portando um diadema rubro e o manto de penas de ibis vermelha,
aproximava-se de sua presa, imitando uma ave de rapiña. Das mäos de um
velho matador, o algoz recebia a borduna. Tinha inicio, entáo, o célebre
diálogo ritual com a vítima, imortalizado pelos cronistas.
Após o breve coloquio, em que cada parte reafirmava vinganças pasea-
das e anunciava vinganças futuras, um golpe concreto e presente, desferido
contra a nuca do cativo, rompia-lhe o cranio e lançava-o ao chao. As velhas
acudiam com cabaças para recolher o sangue que se espalhava. Nada deve-
ria ser perdido, tudo precisava ser consumido e todos deviam fazê-lo: as
mäes besuntavam seus seios de sangue, para que seus bebés também pudes-
sem provar do inimigo. Se a comida era pouco e muitos os convivas, desfru-
tava-se o caldo de pés e mäos cozidas; se, ao contrario, o repasto era farto,
os hospedes levavam consigo partes moqueadas (Fausto 1992).
O único que nâo comía era o matador, que iniciava um longo período
de resguardo, no qual deveria se abster de uma série de alimentos e ativida-
des. Recluso, despossuído de seus bens pessoais, escarificado e tatuado, o
homicida tomava um novo nome que, segundo alguns cronistas, só revelaría
durante uma cauinagem no final do resguardo. A re-nominaçâo, o tomar
nomes na cabeça de seus contrarios, permitía ganhar fama e renome: os
grandes guerreiros acumulavam cento e mais apelidos, para serem cantados
e contados (Monteiro [1610] 1949: 409). Era também promessa de imortali-
dade futura, de um destino postumo ao qual só os matadores tinham acesso.
De Inimigos e Cativos
A explicaçâo mais difundida sobre a antropofagia tupi é a de que, por
meio da devoraçâo, buscava-se incorporar as qualidades do inimigo. Recor-
demos "Y-Juca-Pirama":

Mentiste, que um Tupi nâo chora nunca,


E tu choraste!...parte; nao queremos
com carne vil enfraquecer os fortes.

Ou Oliveira Martins, citado na ediçâo de 8 de maio de 1929, da Revista


de Antropofagia:
Devorar o seu semelhante é um ato que provém da noçâo de imanéncia da
capacidade do homem nos seus tecidos; e da transferencia dessa capacidade com
a absorçâo deles.

A idéia da absorçâo de qualidades através da devoraçâo, ainda que näo


de todo incorreta, deixa sem resposta dois problemas básicos: por um lado,
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nao dá conta do complexo ritual. Caso se tratasse apenas de ingurgitar a
carne, por que tanto rodeio e tanta demora? Por que tanto artificio? Por
outro lado, caso se tratasse de simples incorporaçâo de uma substancia, co-
mo explicar que o matador era o único a abster-se do repasto?
Permitam-me começar pela segunda questâo. A chave para sua com-
preensáo é atentar para as duas relacóes, contraditórias entre si, que se es-
tabeleciam com o cativo. Capturado na guerra, ele era adotado pela familia
de seu futuro algoz, que o alimentava e protegía. Hans Staden conta que, na
viagem de retorno após sua captura, os guerreiros diziam-lhe justamente: xe
remimbaba in dé, "tu és meu xerimbabo" (Staden [1557] 1974: 84). A condi-
çâo social do cativo alterava-se, no entanto, as vésperas da execuçao, quan-
do era reinimizado. Prendiam-no, separavam-no de sua familia de adoçâo,
faziam-no assumir novamente a posiçâo de inimigo e o submetiam a um rito
de captura. Por fim, era morto e devorado.
Todo o complexo jogava, portanto, com uma oscilaçao entre a familiari-
zaçâo do inimigo e sua predaçâo, a qual ocorria após a reinimizaçâo. Para
compreendermos essa seqüéncia é preciso recorrer a outros exemplos etno-
gráficos, para os quais possuímos maior riqueza de detalhes. Tomemos o
caso dos Araweté, um grupo tupi-guarani do Para, estudado por Viveiros de
Castro (1992), entre os quais näo há canibalismo de fato. Que tipo de rela-
çâo eles créem se estabelecer entre o guerreiro e sua vítima? Para os Ara-
weté, o homicidio é uma forma de devoraçâo, digamos, ontológica: o mata-
dor captura o espirito do inimigo e aprende a controlá-lo ao longo do res-
guardo. A operaçâo é delicada, pois, de inicio, o matador é tomado pela
subjetividade do morto: assume sua perspectiva, perde o controle sobre si
mesmo, quer matar os próprios parentes, mas acaba domesticando-o e pon-
do-o a serviço da comunidade. Dele ouvirá novos cantos que moveräo a
maquinaria ritual e novos nomes que permitiráo singularizar seus parentes.
A transformaçâo da presa em xerimbabo, da vítima em espirito-auxiliar
é um fenómeno recorrente nas representaçôes amerindias sobre a guerra.
Entre os Nivacle do Chaco (Sterpin 1993), encontramos o mesmo processo
de domesticacäo de um principio ontológico da vítima, cuja relaçâo com o
matador é equiparada a de um animal cativo sob o controle de seu dono.
Como no caso anterior, o processo de captura e apaziguamento do espirito
do inimigo se dava ao longo do resguardo e dos rituais ligados ao escalpo,
comportando o mesmo perigo: o do matador assumir definitivamente a
perspectiva do outro e, ao invés de alienar sua vítima, alienar-se a si mesmo.
A primeira vista, a antropofagia ritual tupi invertía a ordem dos fatores:
o cativo aprisionado fazia, em vida, as vezes da alma-xerimbabo e precisava
ser reinimizado antes de ser morto; i.e., era feito primeiro um animal fami-
liar e posteriormente predado. É possível, no entanto, que a execuçao tam-
bém fosse pensada como predaçâo ontológica, e que o inimigo, depois de
morto, voltasse à condiçao de cativo sob o controle de seu matador. Os
cronistas, porém, nao nos esclarecem sobre esse ponto.
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De qualquer modo, a dissociaçâo entre os que comiam e prosseguiam


sua vida cotidiana, e o executor que näo comía e dévia entrar em resguardo,
leva-nos a pensar que o fundamental na operaçâo caníbal näo era comer de
fato, mas fazê-lo simbólicamente, como se a forma mais produtiva do cani-
balismo fosse aquela mais pura, mais abstraía, menos contaminada pela pas-
sagem ao ato. Já tendo devorado simbólicamente a vítima, o matador nao
dévia e nao podia comer suas carnes.
A Maquinaria Ritual
Resta-nos, agora, compreender melhor o sentido do complexo ritual.
Por que afinal tanto artificio? A resposta encontra-se na ligaçâo entre dois
momentos afastados no tempo: aquele da predaçâo na guerra e aquele da
execuçao ritual. Nesse intervalo, processava-se uma multiplicaçâo dos efei-
tos da predaçâo, uma socializaçâo do homicidio. O ato isolado no campo de
batalha era transferido para a esfera coletiva, para a praça pública, tornan-
do-se um elemento central da vida sociopolítica.
Sabemos que näo eram só os executores que adquiriam novos nomes.
Suas mulheres, segundo Staden ([1557] 1974: 170), também o faziam, assim
como aqueles que sujeitavam o inimigo no calor do combate ou aqueles que
os capturavam na encenaçâo pré-massacre (Abbeville [1614] 1975: 231). To-
da a lógica da guerra estava voltada para ampliar os efeitos da destruiçâo de
cada inimigo, para extrair muito de poucas mortes, e o rito ocupava um
lugar privilegiado nessa operaçâo.
A maquinaria ritual visava, enfim, tornar público e socializar o homici-
dio. Mas para qué? Pelo que sabemos dos cronistas, a execuçao ligava-se à
nominaçâo, ao casamento e ao destino postumo; i.e., à singularizaçâo de
pessoas, sua reproduçâo e permanencia. Estes säo aspectos recorrentes dos
sistemas guerreiros amerindios e vinculam-se a um tema, que embora pouco
desenvolvido na antropofagia tupi-guarani, näo deve ser esquecido: o poder
genésico do homicidio, sua funçâo fertilizadora.
Varios dos rituais guerreiros sul-americanos, envolvendo ou näo antro-
pofagia e caca de troféus, sao generativos em sentido ampio, i.e., sao life-
giving, à maneira dos ritos para garantir a abundancia da caça ou o cresci-
mento das plantas cultivadas. Seu objeto, porém, nâo é a produçâo de ali-
mentos, mas de pessoas. Esse caráter genésico expressa-se, assim, como de-
senvolvimento das capacidades criativas dos matadores, como produçâo de
novos sujeitos por meio da nominaçâo, ou mesmo como reproduçâo física,
pois alguns desses ritos sao supostos a atuar diretamente sobre a fertilidade
feminina.
O canibalismo é, pois, um modo de produçâo de pessoas por meio da
destruiçâo de pessoas. E aqui o complexo ritual possui um papel estratégico,
pois permite näo apenas que os atos homicidas adquiram máxima produtivi-
dade, "socializando-os e multiplicando-os", mas, sobretudo, com que deixem
de ser uma série justaposta de atos ¡solados, de acóes individuáis, para se
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tornarem um modo de reproduçâo social generalizado, fundado na preda-
çâo e familiarizaçâo de subjetividades alheias.
Conclusáo

Mas, afinal, que tipo de sociedade é essa na qual a constituiçâo de su-


jeitos plenos passa pela apropriaçâo violenta de principios de subjetivaçâo,
que sao, por necessidade, exteriores? Seja no plano da constituiçâo da pes-
soa, seja do grupo social, estamos diante de um modo centrífugo de reprodu-
çâo sociocultural, que nao se funda na acumulaçao e transmissáo interna de
capacidades e riquezas simbólicas, mas em sua apropriaçâo no exterior.
Apropriaçâo de capacidades e perspectivas que para se tornarem proprias
devem ser consumidas efamiliarizadas.
Os Nivacle do Chaco, aos quais me referí anteriormente, expressam
com clareza tal idéia, ao afirmarem que o matador deve tornar o espirito de
sua vítima nitôiya:
O termo nitôiya, traduzido em espanhol por "manso", é o negativo de tôiyi: bom
(pessoas), correto, feroz, selvagem (animal) [...]. Essas glosas aparentemente
contraditórias se esclarecem desde que consideremos que tôiyi deriva de toi: ter
consciencia, saber, poder, dar-se conta, lembrar-se. Assim, um animal correto é
aquele que tem consciencia daquilo que ele é: ele se mostra tôiyi, selvagem e
feroz. Um animal nitôiya, cativo, é um animal inconsciente (Sterpin 1993: 59-
60).

O objetivo do matador é, pois, tornar sua presa inconsciente, fazer com


que perca consciencia de si. Seu desejo é apropriar-se da perspectiva do
outro e colocá-la sobre seu controle, torná-la outra consciência-de-si. A re-
laçâo modelar de controle nessas cosmologías nâo é, porém, aquela entre
senhor e escravo —pois o sistema näo se baseia na apropriaçâo de trabalho
para produzir bens—, mas aquela entre senhor e xerimbabo, expressa na
familiarizaçâo do principio vital da vítima na guerra e de espiritos de ani-
mais no xamanismo (Fausto 1999). Eis porque o cativo tupi, tratado e conce-
bido como animal familiar, precisava ser reinimizado as vésperas da execu-
çao; era necessário que assumisse novamente seu ponto de vista, que se
mostrasse outro e autónomo, feroz e consciente daquilo que era: um inimi-
go, enfim. Só assim, haveria algo de que se apropriar e familiarizar.
Esse movimento de conversäo da relaçâo de predaçâo em familiariza-
çâo, esse esquema relacional contraditório, é o que me parece melhor des-
crever a operaçâo caníbal. E é nesse sentido que disse, no inicio deste en-
saio, que a metáfora antropofágica modernista era congruente com as repre-
sentacóes indígenas. Em ambos os casos, e me permitam aqui resgatar a
velha e boa dialética, o movimento nao deve ser entendido como mera iden-
tificaçâo ao outro, nem como simples negaçâo do outro. O caníbal nega sua
presa ao mesmo tempo em que a afirma, pois emerge da relaçâo como novo
sujeito afetado pelas capacidades subjetivas da vítima. Ele busca mobilizar a
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perspectiva do outro em proveito da reproduçâo de si, exprimindo a contra-


diçao entre um desejo centrífugo, heterônomico, e uma necessidade de au-
toconstituiçao enquanto sujeito autónomo. O risco da alienaçâo, contudo,
permanece sempre presente, pois se o caníbal controla subjetividades outras
que tornam possível a reproduçâo da vida, ele está definitivamente marcado
por elas. "Só me intéressa o que nao é meu. Lei do homem. Lei do antropó-
fago".
Ao buscar navegar entre o nacionalismo regressivista e o mimetismo
europeizante para construir uma literatura nacional internacional, ao visar
um nacional por adiçâo, a antropofagia modernista talvez tenha sido, de
fato, fiel ao espirito do canibalismo tupi. Nao obstante, no quadricentésimo
quadragésimo quinto aniversario da deglutinaçao do Bispo Sardinha, ainda
nao pudemos devorar o velho sloganeo: "quase cinco séculos de carne de
vaca! Que horror!".

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