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PA R A UM A S O C IO L O G IA DA C I Ê N C I A ,,icrrc Rourdieu S

03
c&

^ c a 1°
S O U O i.O G I A
PARA

Fierre B ourdieu
«Pareceu-me ser necessário subm eter
a ciência a uma análise histc
sociológica (...), para perm itir aos que
fazem ciência com preender mell' ■ "■
m ecanism os sociais que orientam a prática
cient ífica, tornando-se assim "donos e
senhores", não só da "natureza" - velha
am bição cart esiana - mas t am bém , e não
menos d ifícil, do mundo social no qual se
produz o conhecim ento da natureza »

Figura insigne da
sociologia francesa
contemporânea,
FIERRE BOURDIEU
foi um dos mais
, importantes teóricos
da epistemología
das ciências humanas.
, \ \ 9 19

22

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1 . 0 M I S T É R I O D A S A Ú D E , d e H a n s -G e o r g G a d a m e r
2. A S R E L A Ç Õ E S I N T E R N A C I O N A I S D E S D E 1 9 4 5 , d e M a u r ic e V a is s e
3. A C T O S D E S I G N I F I C A D O , d e J e r o m e B ru n e r
4. C O N C E IT O S S O C IO L Ó G IC O S F U N D A M E N T A IS , d e M a x W eber
5. A S R E L A Ç Õ E S I N T E R N A C I O N A I S D E 1 9 1 8 A 1 9 3 9 , d e F ie r r e M il z a
6. T E M P O S C A T I V O S : A S C R I A N Ç A S T V , d e L ilia n e L u rç a t
7. H E R A N Ç A E F U T U R O D A E U R O P A , d e H a n s -G e o r g G a d a m e r
8. I N T R O D U Ç Ã O À P S I C O L O G I A S O C I A L M O D E R N A , d e G io v a n n i G o c c i, L a u ra O c c h in i
9 . 0 P R O C E S S O D A E D U C A Ç Ã O , d e J e r o m e B ru n e r
1 0 . Q U E S T Õ E S D E R E T Ó R I C A : L I N G U A G E M , R A Z Ã O E S E D U Ç Ã O , d e M ic h e l M e y e r
1 1 . 0 P A R O X I S T A I N D I F E R E N T E , d e J e a n B a u d r illa r d
1 2 . 0 M É D IC O N A E R A D A T É C N I C A , d e K a rl J a sp e r s
13. A E V O L U Ç Ã O P S I C O L Ó G I C A D A C R I A N Ç A , d e H e n r i W a ilo n
14. R E V O L U Ç Ã O I N D U S T R I A L E C R E S C I M E N T O E C O N Ó M I C O N O S É C . X I X , d e C h a n ta l B e a u c h a m p
15. A S R E L A Ç Õ E S I N T E R N A C I O N A I S D E 1 8 71 A 1 9 1 4 , d e P ie r r e M ilz a
1 6. I N T R O D U Ç Ã O À S O C I O L O G I A , d e N o r b e r t E lia s
17. 0 N A S C I M E N T O D O T E M P O , d e Ily a P r ig o g in e
18 . A F I L O S O F I A D A E D U C A Ç Ã O , d e O liv ie r R e b o u l
19. A S R E L A Ç Õ E S I N T E R N A C I O N A I S D E 1 8 0 0 A 1 8 7 1 , d e B e n o it P e llis tr a n d i
20. P S I C A N Á L I S E E R E L I G IÃ O , E r ic h F r o m m
21. A I N T E R P R E T A Ç Ã O D A S A F A S I A S , d e F r eu d
22. P A R A U M A S O C I O L O G I A D A C I Ê N C I A , P ie r re B o u r d ie u
PARA U M A
SOCIOLOGIA
D A CIÊNCIA
Título original:
Science de la Science et rejlexivité
Cours au Collége de France 2000-2001

© Éditions Raisons d ’Agir, 2001

Tradução: Pedro Elói Duarte

Revisão da tradução: Maria de Lurdes Afonso

Capa de José Manuel Reis

D epósito Legal n.° 217973/04

ISBN : 972-44-1206-7

D ireitos reservados para língua portuguesa


por Edições 70

Paginação, im pressão e acabamento: CASAGRAF


p ara
EDIÇÕES 70, LDA.
em Outubro de 2004

EDIÇÕES 70, Lda.


Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.° Esq.° - 1069-157 LISBOA / Portugal
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procedim ento judicial.
Pierre Bourdieu

PARA U M A
SOCIOLOGIA
D A CIÊN CIA
P r ó lo g o

P or que razão tom ei a ciência com o tem a do curso do ano


lectivo 2000-2001 do C ollège de F rance? E por que é que decidi
publicá-lo, apesar de todas as suas lim itações e im perfeições?
A p e rg u n ta n ão é retó rica e, de q u alq u er form a, p arece-m e
dem asiado séria para que lhe possa dar um a resposta retórica.
C om efeito, penso que o universo da ciência está hoje am eaçado
por u m a terrível regressão. A autonom ia que, a pouco e pouco, a
ciência conquistou aos poderes religiosos, políticos ou até m esm o
económ icos, e, pelo m enos parcialm ente, às burocracias estatais
que lhe asseguram as condições m ínim as de independência, está
m uito enfraquecida. Os m ecanism os sociais que se instalaram à
m edida que ela se afirm ava - com o a lógica da concorrência entre
pares - correm o risco de ser colocados ao serviço de fins impostos
a p artir de fora; a subm issão aos in teresses económ icos e às
seduções m ediáticas am eaça ju n tar-se às críticas externas e às
difam ações internas - são certos delírios «pós-m odem os» - para
m inar a confiança na ciência e, especialm ente, n a ciência social.
Em suma, a ciência está em perigo e, por isso, torna-se perigosa.
Tudo leva a pensar que as pressões da econom ia são cada vez
m aiores, principalm ente nos dom ínios em que os produtos da
investigação são altam ente rentáveis, com o a m edicina, a biotecno­
logia (especialm ente em m atéria agrícola) e, de form a m ais geral,

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P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

a genética - sem falar da pesquisa militar. É assim que m uitos


investigadores ou equipas de investigação caem sob a alçada de
grandes em presas industriais interessadas em garantir, através das
patentes, o monopólio de produtos de elevado rendimento comercial;
e que a fronteira, desde há m uito indefinida, entre a investigação
fundam ental, realizada nos laboratórios universitários, e a investi­
gação aplicada tende progressivam ente a desaparecer: os cientistas
d esin teressa d o s, que não co nhecem outro desíg n io além do
decorrente da lógica das suas pesquisas e que sabem fazer o m ínimo
de concessões às exigências «com erciais» indispensáveis para
garantirem os financiam entos necessários ao seu trabalho, correm
o risco de ser, a pouco e pouco, m arginalizados, pelo m enos em
certos domínios, devido à insuficiência de apoios públicos, e, apesar
do reconhecim ento interno de que são objecto, em proveito de
vastas equipas quase industriais que trabalham para satisfazer
exigências subordinadas aos im perativos do lucro. E o entrelaça­
m ento entre a indústria e a investigação tom ou-se actualm ente
tão forte que todos os dias se ouve falar de novos casos de conflitos
entre os investigadores e os interesses com erciais (por exem plo,
um a em presa califom iana conhecida por produzir um a vacina que
visa aum entar as defesas contra o vírus HIV, causador da sida,
tentou, no final do ano passado, im pedir a publicação de um artigo
científico que dem onstrava a ineficácia dessa vacina). Por isso,
tem e-se que a lógica da concorrência - que, com o se viu, noutros
tem pos, no dom ínio da física, pode levar os investigadores m ais
puros a esquecerem as utilizações económ icas, políticas ou sociais
que podem ser dadas aos produtos dos seus trabalhos - se com bine
e se conjugue com a subm issão m ais ou m enos forçada ou solícita
aos interesses das em presas para, a pouco e pouco, fazer derivar
sectores inteiros da investigação no sentido da heteronom ia (*).
Q uanto às ciências sociais, p o der-se-ia im aginar que, não
estando em posição de fornecer produtos directam ente úteis, ou
seja, im ediatam ente com ercializáveis, estivessem m enos expostas

(*) Heteronomia: leis que se recebem a partir do exterior (segundo Kant, da


natureza) por oposição à autonomia. (N, do T.)

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In t r o d u ç ã o

às solicitações. N a verdade, os especialistas destas ciências, e em


particular os sociólogos, são objecto de grande procura, quer posi­
tiva, e em geral m uito com pensadora, m aterial e sim bolicam ente,
para os que tom am o partido de servir a visão dom inante, nem que
seja por om issão (e, neste caso, a insuficiência técnica basta),
quer negativa e m alévola, por vezes destrutiva, para os que, ao
desem p en h arem sim plesm ente o seu ofício, contribuem p ara
descobrir um pouco da verdade do m undo social.
Foi po r isso que m e pareceu particularm ente necessário sub­
m eter a ciência a um a análise histórica e sociológica que não visa
de m odo algum relativizar o conhecimento científico conformando-
-o e reduzindo-o às suas condições históricas, portanto, a circunstân­
cias localizadas e datadas, m as que pretende, m uito pelo contrário,
fazer com que os cientistas com preendam m elhor os m ecanism os
sociais que orientam a prática científica e se tom em assim «donos
e senhores» não só da «natureza», segundo a velha am bição carte­
siana, mas tam bém , e não há dúvida de que não é m enos difícil, do
m undo social em que se produz o conhecim ento da natureza.
Pretendí que a versão escrita deste curso ficasse tão próxim a
quanto possível daquilo que foi a exposição oral: foi por isso que —
fazendo desaparecer da transcrição as repetições e as recapitula­
ções ligadas às exigências do ensino (com o a divisão em lições) e
tam bém algumas passagens que, sem dúvida justificadas no discurso
oral, m e pareceram , na leitura, pouco necessárias e deslocadas -
tentei apresentar aquilo que é um dos efeitos m ais visíveis da semi-
-im provisação, ou seja, os excursos, m ais ou m enos afastados do
tem a principal do discurso, que assinalei ao transcrevê-los entre
paréntesis rectos. Q uanto às referências a artigos ou obras que fiz
oralm ente ou p or escrito, enunciei-os entre paréntesis e rem etem
para a bibliografia final.

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In tr o d u ç ã o

G ostaria de dedicar este curso à m em ória de Jules Vuillemin.


Pouco conhecido do grande público, encarnava um a elevada ideia
da filosofia, um a ideia da filosofia talvez um pouco grande de mais
para o nosso tem po, dem asiado grande, em todo o caso, para chegar
ao público que ele teria m erecido. Se hoje falo dele é porque foi,
para m im , um grande m odelo que m e perm itiu continuar a acreditar
num a filosofia rigorosa, num a altura em que tinha todas as razões
p ara duvidar, a com eçar pelas que m e eram dadas pelo ensino da
filosofia tal com o era praticado. V uillem in situava-se na tradição
francesa de filosofia da ciência encarnada p or B achelard, K oyré
e C anguilhem e que hoje é prosseguida por outros neste estabeleci­
m ento de ensino. E nesta tradição de reflexão de am bição científica
sobre a ciência que se situa o que vou tentar fazer este ano.

A questão que gostaria de levantar é bastante paradoxal: será


que a ciên cia social não p o d erá co n trib u ir p ara reso lv er um
problem a que ela própria criou, que a tradição logicista não deixou
de atacar - e que conheceu nova actualidade por ocasião do caso
Sokal - e que supõe a gênese histórica de verdades consideradas
trans-históricas? Com o é possível que a actividade científica, um a
actividade histórica, inscrita na H istória, produza verdades trans-
-históricas, independentes da H istória, fora de qualquer relação
com o lugar e o momento, portanto eterna e universalmente válidas?

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P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

Trata-se de um problem a que os filósofos colocaram de form a m ais


ou m enos explícita, sobretudo no século XIX, em grande parte sob
a pressão das ciências sociais acabadas de surgir.
C om o resposta à questão de saber quem é o «sujeito» desta
«criação de verdades e valores eternos», podem os invocar D eus
ou qualquer um dos seus substitutos inventados pelos filósofos: é a
solução cartesiana das sem ina scientiae, as sem entes ou germ es
de ciência que seriam introduzidos na form a de princípios inatos
no espírito hum ano; ou a solução kantiana, a consciência transcen­
dental, o universo das condições necessárias do conhecim ento que
são consubstanciais ao pensam ento, sendo o sujeito transcendental,
de algum a maneira, o lugar das verdades apriori que são o princípio
de construção de qualquer verdade. Pode ser, com H aberm as, a
linguagem , a com unicação, etc. Ou, com o prim eiro positivism o
lógico, a linguagem lógica com o construção a priori que deve ser
im posta à realidade para que a ciência em pírica seja possível. Pode­
riam os evocar tam bém a solução w ittgensteiniana, segundo a qual
o princípio gerador do pensam ento científico é um a gramática, m as
acerca da qual se discute se é histórica (estando os jogos de lingua­
gem sujeitos a constrangim entos que são invenções históricas) ou
se tem a forma que as leis universais do pensam ento dão a conhecer.
Se afastarm os as soluções teológicas ou criptoteológicas -
penso aqui no N ietzsche de O Crepúsculo dos ídolos, que afir­
m ava: «R eceio que n unca nos libertem os de D eus enquanto
continuarm os a acreditar na gram ática» - , será que a verdade
poderá sobreviver a um a historicização radical? Por outras palavras,
será que a necessidade das verdades lógicas é com patível com o
reconhecim ento da sua historicidade? Será que podem os, por
conseguinte, resolver este problem a sem recorrer a um deus ex-
-machina ? Será que o historicism o radical, que é um a form a radical
da m orte de D eus e de todos os seus avatares, não conduzirá à
destruição da própria ideia de verdade, destruindo-se assim a si
m esm o? Ou será que, pelo contrário, é possível defender um
historicism o racionalista ou um racionalism o historicista?
Ou, para retom ar um a expressão m ais escolar deste problem a:
a sociologia e a história que relativizam todos os conhecim entos

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In t r o d u ç ã o

relacionando-os com as suas condições históricas, não estarão


condenadas a relativizarem -se a si m esm as, condenando-se assim
a um relativism o niilista? Será p ossível fugir à alternativa do
logicism o e do relativism o que é po r certo apenas um a variante da
velha controvérsia entre o dogm atism o e o cepticismo? O logicismo,
que está associado aos nom es de Frege e de Russell, é um program a
de fundam entação lógica das m atem áticas que sustenta que há
regras gerais a p rio ri para a avaliação científica e um código de
leis im utáveis para distinguir a boa da m á ciência. Parece-m e ser
um a m anifestação exem plar da tendência tipicam ente escolástica
para descrever não a ciência que se faz, m as a ciência já concluída,
de que se retiram as leis segundo as quais ela se teria feito. A
visão escolástica, lógica ou epistemológica, da ciência, propõe, como
afirm a C am ap, um a «reconstrução racional» das práticas cientí­
ficas ou, segundo Reichenbach, «um substituto lógico dos processos
reais» que se considera corresponder a esses processos. «A descri­
ção», afirm ava R eichenbach, «não é um a cópia do pensam ento
real, m as a construção de um equivalente». C ontra a idealização
da prática científica operada por esta epistem ología norm ativa,
B achelard já observava que a epistem ología tinha reflectido de
m ais sobre as verdades da ciência estabelecida e não o suficiente
sobre os erros da ciência que se faz, sobre a actividade científica
tal com o se apresenta.
Os sociólogos, a diferentes níveis, abriram a caixa de Pandora,
o laboratório, e esta exploração do m undo científico tal com o se
apresenta fez aparecer todo um conjunto de factos que colocam
fortem ente em causa a epistem ología científica de tipo logicista tal
com o a evoquei e reduzem a vida científica a um a vida social com
as suas regras, constrangim entos, estratégias, artifícios, efeitos de
dom ínio, trapaças, roubos de idéias, etc. A visão realista, e em
geral desencantada, que deram assim das realidades do m undo
científico levou-os a propor teorias relativistas, e até niilistas, que
se opõem à representação oficial da ciência. Ora, esta conclusão
nada tem de fatal e podem os, penso, associar um a visão realista
do m undo científico a um a teoria realista do conhecim ento. E isto
na condição de se fazer um a dupla ruptura com os dois term os do

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P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

p a r epistemológico constituído pelo dogm atism o logicista e pelo


relativism o que parece inscrito n a crítica historicista. Sabem os,
com o já Pascal observava, que é a ideia ou o ideal dogm ático de
um conhecimento absoluto que conduz ao cepticismo: os argumentos
relativistas só têm toda a sua força contra urna epistem ología
dogm ática e individualista, ou seja, um conhecim ento produzido
por um cientista particular que enfrenta sozinho a natureza com os
seus instrum entos (por oposição ao conhecim ento dialógico e
argum entativo de um cam po científico).
Som os assim levados a urna últim a questão: se é indiscutível
que o m undo científico é um m undo social, será que podem os
perguntar-nos se é um m icrocosm os, um cam po, análogo (com
algum as diferenças que se devem especificar) a todos os outros e,
em particular, aos outros m icrocosm os sociais: cam po literário,
cam po artístico, cam po ju ríd ico ? A lguns investigadores, que
identificam o m undo científico ao mundo artístico, tendem a reduzir
a actividade laboratorial a urna actividade sem iológica: trabalha-
-se sobre inscrições, faz-se circular textos... Será que é um cam po
com o os outros, e se não for o caso, quais são os m ecanism os que
constituem a sua especificidade e, ao m esm o tem po, a irreduti-
bilidade á historia daquilo que ai se engendra?

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1

A S in o p s e d a D is c u s s ã o

N ão podem os falar deste assunto sem nos exporm os a um


perm anente efeito de espelho: algo que se diga acerca da prática
científica poderá voltar-se contra quem o diz. Esta reverberação,
esta reflexividade não é redutível à reflexão sobre si de um eu
penso {cogito) pensando um objecto ( cogitatum ) que seria apenas
ele próprio. É a im agem reenviada a um sujeito conhecedor por
outros sujeitos conhecedores equipados de instrum entos de análise
que, eventualm ente, lhes podem ter sido fornecidos por aquele
m esm o sujeito. Longe de recear este efeito de espelho (ou de
bum erangue), pretendo conscientem ente, ao tom ar a ciência com o
objecto de análise, expor-m e a m im m esm o, assim com o a todos
os que escrevem sobre o m undo social, a um a reflexividade
generalizada. U m dos m eus objectivos é fornecer instrum entos de
conhecim ento que podem voltar-se contra o tem a do conhecimento,
não para destruir ou desacreditar o conhecim ento (científico), mas,
pelo contrário, para o controlar e reforçar. A sociologia que coloca
às outras ciências a questão dos seus fundam entos sociais não
pode exim ir-se a tam bém ser questionada. D irigindo um olhar
irónico sobre o m undo social, que revela, desm ascara, descobre o
escondido, a sociologia não pode exim ir-se a dirigir este olhar
sobre si m esm a, não com a intenção de destruir a sociologia, m as,
pelo contrário, de a servir; de se servir da sociologia da sociologia
para fazer um a m elhor sociologia.

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P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

Não escondo que estou um pouco espantado por m e ter envolvido


na análise sociológica da ciência, tem a particularm ente difícil, por
várias razões. Em prim eiro lugar, a sociologia da ciência é um
dom ínio que conheceu extraordinário desenvolvimento, pelo menos
quantitativo, ao longo dos últim os anos. Daí um a prim eira difi­
culdade, docum ental, bem exposta por um especialista: «Em bora
a ciência social da ciência seja um dom ínio ainda relativam ente
restrito, não posso pretender cobrir a totalidade da bibliografia. Tal
com o noutros dom ínios, a produção escrita ultrapassa largam ente
a capacidade de ler um a parte substancial. Felizm ente, há bastantes
com pilações (resum os), pelo m enos a nível program ático, para
que u m leitor seja capaz de garantir um a apreensão suficiente da
bibliografia e das suas divisões sem ter de a ler na totalidade»
(Lynch, 1993: 83). A dificuldade aum enta para quem não se dedica
total e exclusivam ente à sociologia da ciência. [U m a das grandes
opções estratégicas em m atéria de investim entos científicos, ou,
m ais precisam ente, da concessão de fundos tem porais, lim itados,
de que cada investigador dispõe é a do intensivo ou do extensivo -
m esm o que seja possível, com o penso, realizar investigações
sim ultaneam ente extensivas e intensivas, graças especialm ente à
intensificação do rendim ento produtivo que se tenta obter com o
recurso a m odelos com o o de cam po, que perm ite im portar conhe­
cim entos gerais para cada estudo particular, perceber os traços
específicos e escapar ao efeito de gueto a que estão expostos os
investigadores encerrados em especialidades circunscritas, com o
os especialistas da história da arte que, com o m ostrei no curso do
ano passado, ignoram geralm ente os conhecim entos da história da
educação ou até da história literária.]
M as não é tudo. Trata-se de com preender um a prática m uito
com plexa (problem as, fórm ulas, instrum entos, etc.) que só pode
ser realm ente dom inada no term o de um a longa aprendizagem .
Sei bem que alguns «etnólogos de laboratório» podem converter a
desvantagem em vantagem , a falta em cum prim ento, e transform ar
em «carreira» a situação de estranho, que é a sua, assum indo-se
com o etnógrafos. Seja com o for, não é certo que a ciência da
ciência seja necessariam ente m elhor quando feita pelos «sem i-

16
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

em pregados» da ciência, os cientistas que deixaram a ciência para


fazer ciência da ciência e que podem ter contas a ajustar com a
ciência que os excluiu ou que não os reconheceu plenam ente:
em bora tenham com petência específica, não possuem necessaria­
m ente a postura que a realização científica dessa com petência
exigiría. De facto, a solução do problem a (com o reunir um a com ­
petência técnica, científica, m uito avançada, a do investigador de
ponta que não tem tem po para se analisar, e a competência analítica,
ela própria m uito avançada, associada às disposições necessárias
para a colocar ao serviço de um a análise sociológica da prática
científica?) não pode ser encontrada, a não ser por m ilagre, num e
por um só hom em e reside, sem dúvida, na construção de colectivos
científicos - o que im plicaria que estivessem preenchidas as con­
dições para que os investigadores e os analistas tivessem interesse
em trabalhar ju n to s e arranjassem tem po para o fazer: com o se
percebe, estamos na ordem da utopia, porque, como acontece muitas
vezes nas ciências sociais, os obstáculos ao progresso da ciência
são fundam entalm ente sociais.
Outro obstáculo é o facto de, tal com o os epistemólogos (em bora
m enos), os analistas m ais subtis dependerem dos docum entos
(trabalham sobre arquivos, textos) e dos discursos que os cientistas
produzem sobre a prática científica, e estes cientistas dependerem
eles próprios, em grande parte, da filosofia da ciência do m om ento
ou de um a época anterior (estando, com o qualquer agente activo,
parcialm ente despojados do domínio da sua prática, podem reprodu­
zir, sem o saber, os discursos epistemológicos ou filosóficos por vezes
inadequados ou ultrapassados de que se devem m unir para com uni­
car as suas experiências e que avalizam assim com a sua autoridade).
Por fim, últim a dificuldade, e não a menor: a ciência, sobretudo
a legitim idade da ciência e a utilização legítim a da ciência são
m otivos perm anentes de luta no m undo social e no próprio seio do
m undo da ciência. Portanto, aquilo a que cham am os epistem ologia
corre sem pre o risco de ser apenas um a form a de discurso ju s ti­
fica tivo da ciência ou de um a posição no cam po científico ou,
ainda, um a repetição falsamente neutralizada do discurso dominante
da ciência sobre si m esm a.

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P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

M as devo explicitar por que razão com eçarei a sociologia da


sociologia da ciência que vou esboçar por um a história social da
sociologia da ciência, e com o concebo tal história. Evocar esta
história é, para m im , um a form a de dar um a ideia do estado das
interrogações que se colocam a propósito da ciência no universo
da investigação sobre a ciência (sendo o domínio desta problem ática
o verdadeiro requisito de adm issão no universo científico). Através
desta história, espero perm itir-vos apreender o espaço das posições
e das tom adas de posição no interior do qual se situa a m inha
própria tom ada de posição (e fornecer-vos assim um substituto
aproxim ado do sentido dos problem as próprios do investigador
envolvido no jogo para quem, do relacionam ento entre as diferentes
tom adas de posição - conceitos em «ismo», m étodos, etc. - ins­
critas no cam po, surge a problem ática com o espaço dos possíveis
e princípio das opções estratégicas e dos investimentos científicos).
A cho que o espaço da sociologia da ciência está hoje bem balizado
pelas três posições que vou analisar.
N a invocação desta história, podem os optar por acentuar as
diferenças, os conflitos (a lógica das instituições académ icas con­
tribui para a perpetuação das falsas alternativas), ou então por
privilegiar os pontos comuns, por os integrar num a intenção prática
de acum ulação. [A reflexividade leva a tom ar um a posição integra-
dora que consiste em colocar entre paréntesis principalm ente aquilo
que as teorias confrontadas podem dever à busca fictícia da dife­
rença: o m elhor que se pode retirar de um a história dos conflitos -
que se deve tom ar em consideração - é talvez um a visão que
dissolve grande parte dos conflitos, à m aneira dos filósofos com o
W ittgenstein que consagraram grande parte da vida a destruir falsos
problem as - falsos problem as socialm ente constituídos com o
verdadeiros, em especial pela tradição filosófica e, por isso, m uito
difíceis de destruir. Tudo isto sabendo, enquanto sociólogo, que
não b asta m ostrar ou até dem onstrar que um problem a é um falso
problem a para fazê-lo desaparecer.] Correrei então o risco de dar
das diferentes teorias concorrentes um a visão que, por certo, não
será m uito «académ ica», ou seja, conform e aos cânones da exposi­
ção escolar, e, por receio de m e submeter ao «princípio de caridade»

18
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

ou, melhor, de generosidade, mas tam bém de privilegiar, em relação


a cada um a, aquilo que m e pareceu «interessante» (a partir do
m eu ponto de vista, ou seja, da m inha visão particular da ciência),
insistirei nos contributos teóricos ou em píricos que ela forneceu
- com a intenção, evidentem ente, de os integrar na m inha própria
construção. P or conseguinte, é de form a m uito consciente que
proponho as m inhas diferentes exposições com o interpretações
livres, ou reinterpretações orientadas que, pelo menos, têm a virtude
de apresentar a problem ática tal com o m e surge: o espaço dos
possíveis relativam ente ao qual me vou determinar.

O cam po das disciplinas e dos agentes que tom am a ciência


com o tem a - filosofia das ciências, epistemología, história das ciên­
cias, sociologia das ciências —, cam po de fronteiras m al definidas,
é atravessado por controvérsias e conflitos que, espantosam ente,
ilustram de m odo exem plar as m elhores análises das controvérsias
propostas pelos sociólogos da ciência (com provando assim a fraca
reflexividade deste universo, do qual se podería esperar que se
servisse dos seus conhecim entos adquiridos para se controlar).
C ertam ente por ser suposto tratar de problem as últim os e se situar
na ordem do m eta, do reflexivo, ou seja, no corolário ou no fun­
dam ento, o cam po é dom inado pela filosofia, cujas am bições de
grandeza ele im ita (especialm ente através da retórica do discurso
de autoridade); os sociólogos e, em m enor grau, os historiadores
que nele estão envolvidos continuam voltados para a filosofia (David
B loor com bate sob a bandeira de W ittgenstein, em bora cite secun­
dariam ente Durkheim, outros dizem-se filósofos e o público visado
é sem pre, m anifestam ente, o dos filósofos); reactivam -se velhos
problem as filosóficos com o o do idealism o e do realism o (um dos
grandes debates em torno de D avid B loor e Barry B arnés consiste
em saber se são realistas ou idealistas), ou o do dogm atism o e do
cepticismo.
O utra característica deste cam po é o facto de se m anipular e
exigir relativam ente poucos dados em píricos, e estes reduzem -se,
na m aioria das vezes, a textos, geralm ente enredados em interm i­
náveis discussões «teóricas». O utra característica desta região

19
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

m arginal - em que todos os sociólogos são filósofos e todos os


filósofos são sociólogos, em que se am ontoam e se confundem os
filósofos que se ocupam das ciências sociais e os adeptos indeter­
m inados das novas ciências, cultural studies ou m inority studies,
que se servem e abusam da filosofia e das ciências sociais - é o
baixo nível de exigência em m atéria de rigor argum entativo (penso
nas. polém icas em torno de B loor tal com o G ingras as descreve
(2000) e, em particular, no recurso bastante sistem ático a estraté­
gias desleais de «desinform ação» ou de difam ação - com o o facto
de se acusar de m arxism o, arm a fatal, mas exactam ente política,
qualquer pessoa que, com o B am es, recorra a D urkheim , a M auss
ou a tantos outros - , ou ainda o facto de se m udar de opinião
conform e o contexto, o interlocutor ou a situação).
N o período recente, o subcam po da nova sociologia da ciência
(o universo balizado pelo livro de Pickering, Science as Practice
and Culture , 1992) constituiu-se por um a série de rupturas ostensi­
vas. Praticou-se bastante a crítica da «velha» sociologia da ciência.
É assim que, para tom ar apenas um exem plo entre m uitos outros,
M ichael Lynch (1993) intitula um dos seus capítulos: «The D em ise
o fth e “O ld” Sociology ofK now ledge». [Dever-se-ia reflectir sobre
este uso da oposição velho/novo que é, sem dúvida, um dos obstá­
culos ao progresso da ciência, especialm ente da ciência social: a
sociologia sofre bastante com o facto de que a procura da distinção
a qualquer custo, realizada em certos estados do cam po literário,
encoraja a forçar artificialm ente as diferenças e im pede ou atrasa
a acum ulação inicial num paradigm a com um - recom eça-se sempre
do zero - e a instituição de m odelos fortes e estáveis. Podem os
observar este facto particularm ente no uso que se faz do conceito
kuhniano de paradigma: qualquer sociólogo pode dizer-se portador
de um «novo paradigm a», de um a «nova» teoria últim a do m undo
social.] A fastado das outras especialidades por um a série de ru p ­
turas que tendem a encerrá-lo nos seus próprios debates, assolado
por inúm eros conflitos, controvérsias e rivalidades, este subcam po
é com pelido pela lógica da ultrapassagem -superação a um leilão
de profundeza («questões m ais profundas, m ais fundam entais,
continuam sem resposta» - Woolgar, 1988a). Woolgar, reflexivista

20
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

relativista, invoca incansavelm ente o insuperável «Problem a», que


nem a reflexividade perm ite dom inar (Pickering, 1992:307-308).
M as será legítim o falar de cam po a propósito deste universo?
É v erd ad e que alg u m as das co isas que d escrev i p odem ser
entendidas com o efeitos de cam po. Por exem plo, o facto de a
irrupção da nova sociologia ter tido o efeito, tal com o se observa
em qualq u er cam po, de alterar as regras de distribuição dos
benefícios em todo o universo: quando se percebe que o im portante
e interessante é estudar não os cientistas (as relações estatísticas
entre as virtudes dos cientistas e o sucesso atribuído às suas obras),
à m aneira dos m ertonianos, m as a ciência ou, m ais precisam ente,
a ciência que se faz e a vida do laboratório, todos os que tinham
um capital ligado à antiga m aneira de fazer ciência sofrem um a
bancarrota sim bólica e os seus trabalhos são rem etidos para o
passado esquecido, p a ra o arcaico.
Com preende-se que não seja fácil fazer a história da sociologia
da ciência, não só por causa do volum e da produção escrita, mas
tam bém pelo facto de a sociologia da ciência ser um cam po em
que a história da disciplina é um a questão de lutas (entre outras).
C ada protagonista desenvolve um a visão desta história conform e
aos interesses ligados à posição que ocupa nesta história, sendo as
diferentes narrações históricas orientadas em função da posição
daquele que as faz, não podendo portanto aspirar ao estatuto de
verdade indiscutível. Vemos, de passagem , um efeito da reflexivi­
dade: o que acabei de dizer coloca de sobreaviso os ouvintes contra
o que vou dizer e coloca-m e de sobreaviso, sou eu que o digo,
contra o perigo de privilegiar um a orientação ou contra a tentação
de m e sentir objectivo sob pretexto, por exem plo, de considerar
toda a gente sem dar razão a ninguém .
A história que aqui vou fazer não é inspirada pelo interesse de
exaltar quem a faz e a introduz progressivam ente na solução última,
capaz de acum ular de m odo puram ente aditivo os conhecim entos
(de acordo com a espécie de hegelianism o espontâneo que se
pratica bastante na lógica dos cursos...). Visa apenas recensear
os conhecimentos, tanto os problemas como as soluções, que devem
ser integrados. Para cada um dos «m om entos» da sociologia da

21
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

ciência que descrevo, e que se sobrepõem parcialm ente, tentarei


determinar, por um lado, o «estilo cognitivo» da corrente considerada
e, por outro, a relação que apresenta com as condições históricas,
o am biente da época.

1. U m a V is ã o E n c a n ta d a

A tradição estruturo-funcionalista da sociologia da ciência é


im portante, em si m esm a, pelos seus contributos para o conheci­
m ento do cam po científico, m as tam bém porque foi relativam ente
a ela que se construiu a «nova sociologia da ciência», hoje social­
m ente dom inante. Em bora faça m uitas concessões à visão oficial
da ciência, esta sociologia rompe, apesar de tudo, com a visão oficial
dos epistem ólogos am ericanos: está atenta ao aspecto contingente
da prática científica (que os próprios cientistas podem exprim ir
em certas condições). Os m ertonianos propõem um a descrição
coerente da ciência que se caracteriza, segundo eles, pelo univer­
salism o, pelo com unism o ou pelo com unalism o (os direitos de
propriedade estão aqui lim itados à reputação ou ao prestígio do
cientista ligados ao facto de dar o seu nom e a fenóm enos, teorias,
provas, unidades de m edida: princípio de H eisenberg, teorem a de
G õdel, volts, curies, rõntgens, síndrom a de Tourette, etc.), pelo
desinteresse pelo lucro, pelo cepticismo organizado. [Esta descrição
aproxim a-se da descrição w eberiana do tipo-ideal da burocracia:
universalism o, com petência especializada, im pessoalidade e p ro ­
priedade colectiva da função, institucionalização de norm as merito-
cráticas para regular a com petição (M erton, 1957)].
Inseparável de um a teoria geral (ao contrário da nova sociologia
da ciência), a sociologia da ciência m ertoniana substitui a sociologia
do conhecim ento do tipo de M annheim por um a sociologia dos
investigadores e das instituições científicas concebida num a pers­
pectiva estruturo-funcionalista que se aplica também a outros dom í­
nios do m undo social. Para dar um a ideia m ais concreta do «estilo»
desta investigação, gostaria de com entar de form a breve um artigo
típico da produção m ertoniana, artigo absolutam ente notável, e

22
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

sem pre válido, que deve ser integrado no capital de conhecimentos


adquiridos da subdisciplina (Cole e Cole, 1967). N o título «Scientific
O utput and R ecognition: A Study in the O peration o f the R ew ard
System in Science», o term o recognition, conceito m ertoniano, é
um a declaração expressa de pertença a um a escola; na prim eira
nota, os autores agradecem a M erton por ter relido o trabalho que
foi financiado por um a instituição controlada pelo m esm o Merton.
São sinais sociais que m ostram que se trata de um a escola unida
po r um estilo cognitivo socialm ente instituído, apoiada por um a
instituição. O problem a colocado é um problem a canónico que se
inscreve num a tradição: a prim eira nota evoca os estudos sobre os
factores sociais do sucesso científico. D epois de afirm arem que
existe um a correlação entre a quantidade de publicações e os índices
de reconhecim ento, os autores perguntam -se se a m elhor m edida
da excelência científica será a quantidade ou a qualidade das obras.
P or conseguinte, estudam a relação entre os outputs quantitativos
e qualitativos de 120 físicos (explicando em porm enor todos os
m om entos do p rocesso m etodológico, am ostra, etc.): h á um a
correlação, m as alguns físicos publicam m uitos artigos de pouca
im portância (significance ) e outros um pequeno núm ero de artigos
de grande im portância. O artigo recenseia as «form as de reconhe­
cim ento» (form s o f recognition ): «recom pensas honoríficas e
participação em sociedades honoríficas» {honorific awards and
m em berships in honorific societies), m edalhas, prêm io N obel,
etc.; cargos «em departam entos de prim eiro nível» ( at top ranked
departments ); citações com o indícios da utilização da investigação
feita por outros e da «atenção que a investigação recebe da com u­
nidade» (aceita-se a ciência tal com o se apresenta). Testa-se
estatisticam ente as suas intercorrelações (observando, de p as­
sagem , que os prêm ios N obel são m uito citados).
Esta investigação considera os sinais de reconhecim ento -
com o a citação - pelo seu valor facial, e tudo se passa com o se as
pesquisas estatísticas visassem verificar que a distribuição dos
p rêm io s é p erfeitam en te ju stific a d a . E sta v isão tip icam en te
estruturo-funcionalista inscreve-se na noção de «rewardsystem »,
tal com o é definida por M erton: «a instituição científica dotou-se

23
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

de um sistem a de recom pensas concebido com a finalidade de


atribuir reconhecim ento e apreço aos investigadores que m elhor
desem penharam os seus papéis, aos que deram contributos autén­
ticam ente originais para o sortim ento com um do conhecim ento»
(M erton, 1957). O m undo científico propõe um sistem a de recom ­
pensas que preenche funções e funções úteis, se não m esm o n e­
cessárias (M erton falará de «reforço pelas recom pensas precoces»
aos cientistas m erecedores) ao funcionam ento do todo. [Vemos,
de passagem , que, contrariam ente ao que alguns críticos afirm am
- retom arei este assunto - , o facto de se substituir recognition
por capital sim bólico não é um a sim ples m udança de léxico m ais
ou m enos gratuita ou inspirada pela simples busca de originalidade,
m as im plica um a visão diferente do m undo científico: o estruturo-
-funcionalismo pensa o mundo científico como um a «comunidade»
que se dotou (has developped) com instituições justas e legítim as
de regulação e onde não há lutas - em todo o caso, não há lutas a
propósito do m otivo das lutas.]
O estruturo-funcionalism o revela deste m odo a sua verdade de
finalism o das entidades colectivas: a «com unidade científica» é
um a dessas entidades colectivas, que alcança os seus fins através
de m ecanism os sem sujeito orientados para fins favoráveis aos
sujeitos ou, pelo m enos, aos m elhores de entre eles. «Parece que
o sistem a de recom pensas em Física age de form a a atribuir as
três espécies de reconhecim ento prioritariam ente à investigação
im portante» (M erton, 1973: 387). Se os grandes produtores pu ­
blicam as investigações m ais im portantes é porque o «sistem a de
recom pensa age de form a a encorajar os investigadores criativos
a ser produtivos e a desviar os investigadores m enos criativos
para outros cam inhos» (M erton, 1973: 388). O rew ard system
encam inha os m ais produtivos para as vias m ais produtivas e a
sabedoria do sistem a que recom pensa os m erecedores encam inha
os outros para vias alternativas com o as carreiras adm inistrativas.
[Trata-se de um efeito secundário cujas consequências se deveria
investigar, especialm ente em m atéria de produtividade científica e
de equidade na avaliação, e verificar se são realm ente «funcionais»
e para quem . D everia haver, por exem plo, interesse pelas conse­

24
A Si n o p s e da D is c u s s ã o

quências da atribuição de posições de autoridade, na direcção de


laboratórios ou na adm inistração científica, a investigadores de
segundo plano que, desprovidos da visão científica e das disposições
«carism áticas» necessárias para m obilizar as energias, contribuem
m uitas vezes para reforçar as forças de inércia do m undo cientí­
fico]. Q uanto m ais conhecidos são os investigadores (pelo sistem a
escolar e, depois, pelo m undo científico), m ais produtivos são e
continuam a ser. Os m ais consagrados são os que foram consa­
grados m ais cedo, ou seja, os early starters, que, devido à sua
consagração escolar, têm um rápido início de carreira - m arcado,
po r exem plo, pela nom eação com o professor-assistente num de­
partam ento prestigiado (e os late bloomers são raros). [Pode ver-
-se aqui a aplicação de um a lei geral do funcionam ento dos campos
científicos. Os sistem as de selecção (com o as escolas de elite)
im pulsionam as grandes carreiras científicas de duas form as: por
um lado, designando os que consideram notáveis e cham ando-os
assim a distinguirem -se por trabalhos excepcionais, especialm ente
aos olhos de quem neles reparou (é a preocupação de cum prir as
expectativas, de estar à altura: noblesse oblige ); por outro lado,
conferindo-lhes um a com petência particular.]
M uito objectivista, m uito realista (não se duvida da existência
do m undo social, da existência da ciência, etc.), m uito clássica
(utilizam -se os instrum entos m ais clássicos do m étodo científico),
esta abordagem não faz a m enor referência à form a com o são
resolvidos os conflitos científicos. Aceita, de facto, a definição
dom inante, logicista, da ciência, à qual entende lim itar-se (m esm o
que possa ferir um pouco esse paradigm a). Seja com o for, tem o
m érito de colocar em evidência algo que não pode ser percebido à
escala do laboratório. Esta sociologia da ciência, elem ento capital
de todo um dispositivo que visa constituir a ciência social com o
profissão , é m ovida por um a intenção de autojustificação (self-
-vindication ) da sociologia na base do consenso cognitivo (veri­
ficado em piricam ente pelos trabalhos de sociologia da ciência da
escola). P enso especialm ente no artigo de C ole e Zuckerm an
intitulado «The Em ergence o f a Scientific Speciality: the S elf
E xem plifying Case o f the Sociology o f Science» (1975).

25
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

[R etrospectivam ente, acho que fui bastante injusto para com


M erton nos m eus prim eiros escritos de sociologia da ciência -
sem dúvida sob o efeito da posição que eu ocupava nessa época,
a do recém -chegado a um cam po internacional dom inado por
M erton e pelo estruturo-funcionalism o: por um lado, porque reli de
outra form a os textos, por outro, porque aprendí, acerca das còn-
dições em que estes textos tinham sido produzidos, coisas que
ignorava na época. Por exem plo, o texto intitulado «The Norm ative
Structure o f Science» e que se to m ou no capítulo 13 de Sociology
o f Science, foi publicado pela prim eira vez, em 1942, num a revista
efém era fundada e dirigida por Georges Gurvitch, então refugiado
nos Estados U nidos: o tom ingenuam ente idealista deste texto que
exalta a dem ocracia, a ciência, etc., com preende-se m elhor neste
contexto com o form a de opor o ideal científico à barbárie. P or
outro lado, penso que procedí m al ao colocar no m esm o saco de
Parsons e Lazarsfeld um M erton que tinha reintroduzido Durkheim,
que fazia história da ciência e que rejeitava o em pirism o sem con­
ceitos e o teoricism o sem dados, m esm o que o seu esforço para
fugir à alternativa se saldasse m ais num sincretism o do que num a
verdadeira superação.
U m a breve nota: quando som os jovens — é da sociologia da
ciência elem entar - possuím os, em igualdade de circunstâncias,
m enos capital e tam bém m enos com petência, e por isso tem os
tendência, quase por definição, para nos oporm os aos m ais velhos,
portanto para ter um olhar crítico sobre os seus trabalhos. M as
esta crítica pode ser, em parte, efeito da ignorância. N o caso de
M erton, eu ignorava não só o contexto dos seus prim eiros escritos,
tal com o referi, m as tam bém o trajecto que percorrera: aquele que
eu considerara, num congresso internacional em que ele era rei,
um wasp (*) elegante e refinado, era na realidade, com o depois
vim a saber, um em igrado recente de origem judia, o que, com a
sua apresentação e vestuário^ lhe dava um a m aior elegância british
(ao contrário de H om ans, puro produto da N ova Inglaterra, que

(*) Sigla inglesa para white anglo-saxon prótestant - que designa pessoas
brancas anglo-saxónicas e protestantes (N. R.),

26
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

m e pareceu, num jantar em Harvard, desprovido de qualquer m arca


aristocrática - certam ente efeito da ignorância do estrangeiro que
não sabe reconhecer num a certa desenvoltura descontraída o sinal
da «verdadeira distinção»); e esta tendência para a hipercorreçao,
m uito com um nas pessoas de prim eira geração em vias de inte­
gração e que aspiram fortem ente ao reconhecim ento, estava sem
dúvida também na origem da sua prática científica e da sua exaltação
da profissão, da sociologia que ele pretendia constituir com o
profissão científica.
Vemos aqui, penso eu, todo o interesse da sociologia da socio­
logia: as tendências que M erton im portava para a sua prática cientí­
fica estavam na origem das suas opiniões e equívocos - contra as
quais um a verdadeira sociologia reflexiva teria podido protegê-lo;
e perceber isto significa adquirir princípios ético-epistem ológicos
para tirar partido, selectivam ente, dos seus contributos e, de form a
mais geral, para submeter a um tratamento crítico, simultaneamente
epistem ológico e sociológico, os autores e as obras do passado e a
sua própria relação com os autores e obras do presente e do passado.]
N um a form a optim ista de juízo reflexivo, a análise científica da
ciência no estilo de M erton ju stifica a ciência ao justificar as desi­
gualdades científicas, ao dem onstrar científicam ente que a distri­
buição de prêm ios e recom pensas se adequa à ju stiça científica,
dado que o mundo científico proporciona as recom pensas científicas
aos m éritos científicos dos cientistas. E tam bém para assegurar a
respeitabilidade da sociologia que M erton tenta fazer dela uma
verdadeira «profissão» científica, segundo o m odelo da burocracia,
e dotar o falso paradigm a estruturo-fúncionalista, que ele contribui
p ara construir com Parsons e Lazarsfeld, com esta espécie de
corolário falsam ente reflexivo e em píricam ente validado que é a
sociologia da ciência tratada com o instrum ento de sociodiceia.
[Gostaria de concluir com algum as observações sobre a ciento-
m etria que assenta nos m esm os fundam entos do estruturo-fun-
cionalism o m ertoniano e que tem com o objectivo o controlo e a
avaliação da ciência para fins d e policy-m aking (a tentação ciento-
m étrica pesa sobre toda a história da sociologia da ciência, com o
ciência do coroam ento capaz de conceder diplom as de ciência, e

27
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

os m ais radicalm ente m odernistas e niilistas dos novos sociólogos


da ciência não lhe escapam ). A cientom etria apoia-se em análises
quantitativas que levam em conta apenas as obras; em suma, apoia-
-se em com pilações de indicadores científicos, com o as citações.
Realistas, os biblióm etras sustentam que o m undo pode ser organi­
zado em am ostras, contado, m edido por «observações objectivas»
(Hargens, 1978). Fornecem aos administradores científicos os meios
aparentem ente racionais para gerir a ciência e os cientistas e para
dar justificações de alcance científico a decisões burocráticas.
D ever-se-ia, em especial, exam inar os limites de um m étodo que
se apoia em critérios estritam ente quantitativos e que ignora as
m odalidades e as funções m uito diversas da referência (podendo
ir ao ponto de colocar entre paréntesis a diferença entre as citações
positivas e as citações negativas). A pesar das utilizações duvidosas
(e por vezes deploráveis) da bibliom etria, estes m étodos podem
servir para construir indicadores úteis no plano sociológico, com o
fiz em H om o Academ icus (1984: 261) para obter um índice de
capital simbólico.]

2 . A C iê n c ia N o r m a l e a s R e v o lu ç õ e s C ie n tífic a s

Em bora seja, antes de m ais, historiador das ciências, Thom as


K uhn transform ou profundam ente o espaço dos possíveis teóricos
em m atéria de ciência da ciência. O seu principal contributo foi ter
m ostrado que o desenvolvim ento da ciência não é um processo
contínuo, m as que é m arcado por um a série de rupturas e pela
alternância de períodos de «ciência norm al» e de «revoluções»
(K uhn, 1972). D este m odo, introduziu na tradição anglo-saxónica
um a filosofia descontinuista da evolução científica em ruptura com
a filosofia positivista que considera o progresso da ciência com o
m ovim ento contínuo de acum ulação. A lém disso, elaborou a ideia
de «com unidade científica» ao enunciar que os cientistas form am
um a com unidade fechada cuja investigação assenta num leque
bem definido de problem as e que utilizam m étodos adaptados a
esse trabalho: as acções dos cientistas nas ciências avançadas

28
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

são determ inadas por um «paradigm a» ou «m atriz disciplinar», ou


seja, um estado da realização científica que é aceite por um a fracção
im portante dos cientistas e que tende a im por-se a todos os outros.
A definição dos problem as e a m etodologia de investigação
utilizada decorrem de um a tradição profissional de teorias, métodos
e com petências que só podem ser adquiridos no term o de um a
longa form ação. As regras do m étodo científico tal com o explici­
tadas pelos lógicos não correspondem à realidade das práticas.
Tal com o noutras profissões, os cientistas consideram adquirido
que as teorias e os m étodos existentes são válidos e utilizam -nos
para as suas necessidades. Trabalham , não para a descoberta de
novas teorias, m as para a solução de problem as concretos, conside­
rados com o enigm as (puzzles): por exem plo, m edir um a constante,
analisar ou sintetizar um com posto ou explicar o funcionam ento
de um organism o vivo. Para isso, utilizam com o paradigm a as
tradições existentes no dom ínio.
O paradigm a é o equivalente de um a linguagem ou de um a
cultura: determ ina as questões que podem ser form uladas e as
que são excluídas, o pensável e o im pensável; sendo sim ultanea­
m ente um conhecim ento adquirido (received achievemenf) e um
ponto de partida, é um guia para a acção futura, um program a de
investigações a em preender, m ais do que um sistem a de regras e
norm as. É por isso que o grupo científico está de tal m odo separado
do m undo ex terio r que se podem an alisar m uitos problem as
científicos sem levar em conta as sociedades em que trabalham
os cien tistas. [De facto, K uhn introduz, m as sem a elaborar
enquanto tal, a ideia de autonom ia do universo científico. A caba
assim por afirm ar que este universo escapa pura e sim plesm ente
à necessidade social, portanto à ciência social. N a verdade, não
percebe que (é o que a noção de cam po perm ite com preender)
um a das propriedades paradoxais dos cam pos m uito autónom os,
ciência ou poesia, é o facto de tenderem a já não ter outro laço
com o m undo social senão as condições sociais que asseguram a
sua autonom ia relativam ente a esse m undo, ou seja, as condições
m uito privilegiadas necessárias para produzir ou apreciar a m ate­
m ática ou um a poesia m uito elaborada, ou, m ais exactam ente, as

29
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

condições históricas que tiveram de ser reunidas para que surgisse


um a condição social tal que quem dela beneficiasse pudesse fazer
coisas desse tipo.]
O m érito de Kuhn, já o disse, foi ter cham ado a atenção para
as rupturas, para as revoluções. M as, pelo facto de se lim itar a
descrever o mundo científico numa perspectiva quase durkheimiana,
com o um a com unidade dom inada por um a norm a central, não me
parece que proponha um m odelo coerente para explicar a mudança.
E m bora um a leitura particularm ente atenta possa construir tal
m odelo e encontrar o m otor da m udança no conflito interno entre
a ortodoxia e a heresia, entre os defensores do paradigm a e os
inovadores, estes últim os podem sentir-se reforçados, nos períodos
de crise, pela queda das barreiras entre a ciência e as grandes
correntes intelectuais no seio da sociedade, Tenho consciência de
ter atribuído a Kuhn, através desta reinterpretação, o essencial da
m inha representação da lógica do cam po e da sua dinâm ica. M as
talvez seja tam bém um bom m eio de m ostrar a diferença entre as
duas visões e o contributo específico da noção de cam po.
Seja com o for, se levarm os K uhn à letra, descobrim os um a
representação estritam ente internalista da m udança. C ada para­
digm a atinge um ponto de esgotam ento intelectual; a m atriz disci­
plinar produziu todas as possibilidades que era capaz de engendrar
(é um tem a que se encontrava tam bém , a propósito da literatura,
nos form alistas russos), com o um a essência hegeliana que se reali­
zou, segundo a própria lógica, sem intervenção externa. N o entanto,
é verdade que subsistem alguns enigm as sem solução.
M as gostaria de m e deter, por mom entos, num a análise de Kuhn
que m e parece m uito interessante - sem dúvida, m ais um a vez,
porque a reinterpreto em função do m eu próprio m odelo: a análise
da «tensão essencial», expressão retirada do título que deu a um a
com pilação de artigos (Kuhn, 1977). A tensão essencial da ciência
não faz com que haja um a tensão entre a revolução e a tradição,
entre os conservadores e os revolucionários, mas com que a revo­
lução im plique a tradição, que as revoluções se enraizem no
paradigma: «As viragens revolucionárias de um a tradição científica
são relativam ente raras, e a sua condição necessária são longos

30
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

períodos de investigação convergente [...], Só as investigações


firm em ente enraizadas na tradição científica contem porânea têm
hipótese de quebrar essa tradição e dar origem a urna nova.» (Kuhn,
1977: 307). «O cientista produtivo deve seru m tradicionalista que
gosta de se entregar a jo g o s com plexos governados por regras
p re e sta b le c id a s, para ser um inovador eficaz qu e descobre novas
regras e peças com as quais pode continuar a jog ar» (Kuhn, 1977:
320). «Em bora a discussão daquilo a que aderem fundamentalmente
os investigadores só se verifique na ciência extraordinária, é, porém,
a ciência norm al que revela o objecto a testar e a m aneira de o
fazer» (K uhn, 1977: 364). Significa que um (verdadeiro) revolu­
cionário em m atéria de ciência é alguém que possui grande domínio
da tradição (e não alguém que faz tábua rasa do passado ou que
sim plesm ente o ignora).
Por conseguinte, as actividades de resolução de enigmas («puz-
zle-solving ») da «ciência norm al» assentam num paradoxo vulgar­
m ente aceite que define* entre outras coisas, de forma relativamente
incontestada, aquilo que pode valer com o solução correcta ou
incorrecta. N as situações revolucionárias, pelo contrário, o contexto
que só por si pode definir a «correcção» é posto em causa. (É
exactam ente o problem a que M anet coloca ao operar um a revo­
lução tão radical que punha em causa os princípios em nom e dos
quais se podería avaliá-lo.) E neste caso que nos confrontam os
com a escolha entre paradigm as concorrentes e que os critérios
transcendentes de racionalidade fazem falta (não há nem conci­
liação nem com prom isso: é o tem a, que m uito deu que falar, da
incom ensurabilidade dos paradigm as). E a em ergência de um novo
consenso só se pode explicar, segundo K uhn, por factores não
racionais. M as do paradoxo da «tensão essencial» podem os,
reinterpretando m uito livrem ente Kuhn, concluir que o revolucio­
nário é necessariam ente alguém que tem capital (este resulta da
existência de requisitos de adm issão no cam po), ou seja, um grande
dom ínio dos recursos colectivos acum ulados e que, por isso,
conserva necessariam ente aquilo que supera.
D este m odo, tudo se passa com o se K uhn, levando ao extremo
a contestação dos padrões universais de racionalidade já prefigurada

31
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

na tradição filosófica que tinha evoluído de um universalism o


«transcendental» de tipo kantiano para um a noção da racionalidade
já relativizada - por exem plo, com o m ostrarei m ais tarde, em
Carnap (1950) reencontrasse, com a noção de paradigm a, a
tradição kantiana do apriori, mas tom ado num sentido relativizado
ou, mais exactam ente, sociologizado, com o em D urkheim .
Pelo facto de aquilo que surgiu com o tem a central da obra, a
saber, a tensão entre o establishm ent e a subversão, estar em
afinidade com o am biente «revolucionário» da época, K uhn, que
nada tinha de revolucionário, foi adoptado, um pouco contra vontade,
com o m entor pelos estudantes da universidade de C olum bia e
integrado no m ovim ento da «contracultura» que rejeitava a «racio­
nalidade científica» e exaltava a im aginação contra a razão. Do
m esm o m odo, Feyerabend era o ídolo dos estudantes radicais da
Freie U niversitãt de B erlim (Toulmin, 1979: 155-156, 159). A
invocação destas referências teóricas com preende-se quando se
observa que o m ovim ento estudantil leva a contestação política
para o cam po científico, num a tradição universitária em que o fosso
entre a scholarship e o com m ittm enté particularm ente acentuado:
trata-se de libertar o pensam ento e a acção do controlo da razão e
das convenções, em todo o m undo social, mas tam bém na ciência.
Em resum o, esta teoria científica ficou a dever o seu protago­
nism o não tanto ao conteúdo da m ensagem - excepto talvez ao
título: «A Estrutura das Revoluções» - m as ao facto de ter surgido
num a conjuntura em que um a população culta - os estudantes -
se pôde apropriar dele e transform á-lo em m ensagem revolucio­
nária específica contra a autoridade académ ica. O m ovim ento de
68 transportou p ara o terreno privilegiado da U niversidade a
contestação de form a a pôr em causa os princípios m ais enraizados
e nunca contestados em que se baseava a Universidade, a com eçar
pela autoridade da ciência. U tilizou armas científicas ou episte­
m ológicas contra a ordem universitária, que devia parte da sua
autoridade sim bólica ao facto de ser um a episteme instituída, e
de assentar, em últim a instância, na epistem ologia. Esta revolução
falhada abalou, na ordem académ ica, princípios essenciais e, em
particular, as estruturas cognitivas dominantes da ordem académ ica

32
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

e científica. Um dos alvos da contestação foi a ortodoxia ñas


ciências sociais e o esforço da tríade capitolina —Parsons, M erton
e Lazarsfeld (a que nunca renunciou) - para se apoderar do m ono­
polio da visão legítima da ciência social (com a sociologia da ciência
com o falso fim e corolário reflexivo).
M as a principal força de resistência ao paradigm a am ericano
su rg id a na Europa, no cam po anglófono, com a escola de Edim ­
burgo, D avid B loor e Barry Barnes, o grupo de Bath, Harry Collins,
e, em França, o m eu artigo de 1975 sobre o campo científico (1975a).

3 .0 P r o g r a m a T e ó r ic o “ F o r t e ”

D avid B loor (1983) apoia-se em W ittgenstein para fundar urna


teoria da ciência segundo a qual a racionalidade, a objectividade e
a verdade são norm as socioculturais pouco abrangentes, conven­
ções adoptadas e im postas po r grupos particulares: retom a os
conceitos w ittgensteinianos de «language gam e» e «form oflife»,
que têm um papel central ñas P hilosophical Investigai ions, e
interpreta-os com o se se referissem a actividades sociolinguísticas
associadas a grupos socioculturais particulares em que as práticas
são reguladas por norm as convencionalm ente adoptadas pelos
grupos em causa. As norm as científicas têm os m esm os limites
que os grupos pelos quais são aceites. Gostaria de citar Yves Gingras
(2000), que nos fornece um a apresentação sintética dos quatro
principios do «program a teórico forte»: «David Bloor, no seu livro
Know ledge and Social Imagery, publicado em 1976 e reeditado
em 1991, enuncia quatro grandes principios m etodológicos que
devem ser seguidos para se construir urna convincente teoria
sociológica do conhecimento científico: 1) causalidade: a explicação
proposta deve ser causal; 2) im parcialidade: o sociólogo deve ser
im parcial relativam ente à “verdade” ou à “falsidade” dos enun­
ciados debatidos pelos agentes; 3) sim etria: este princípio estipula
que “os m esm o tipos de causa” devem ser utilizados para explicar
tanto as crenças julgadas “verdadeiras” pelos agentes com o as
consideradas “ falsas” ; 4) a reflexividade exige que a própria socio-

33
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

logia das ciências seja em princípio subm etida ao tratam ento que
aplica às outras ciências. Em num erosos casos de estudos fundados
nestes princípios, a causalidade foi interpretada de form a bastante
lata para incluir a ideia de com preensão (evitando assim a antiga
dicotom ía “explicação versus com preensão”). Enquanto o princípio
de im parcialidade é evidente no plano metodológico e não provocou
verdadeiros debates, os filósofos discutiram bastante o sentido
exacto e a validade do princípio de simetria. Por fim, o princípio de
reflexividade não desem penha, de facto, qualquer papel nos casos
de estudo e só foi verdadeiram ente levado a sério por W oolgar e
Ashm ore, que foram assim levados a estudar m ais a sociologia das
ciências e as suas práticas de escrita do que as próprias ciências».
Subscrevo inteiramente esta exposição e os comentários que contém,
acrescentando apenas que, na m inha opinião, não se pode falar de
reflexividade a propósito de análises da sociologia das ciências
(dos outros) que têm m ais que ver com a polém ica do que com a
«polém ica da razão científica» na m edida em que, com o sugeria
Bachelard, esta se orienta desde logo contra o próprio investigador.
Q uanto a Barry B arnes (1974), que explicita o m odelo teórico
subjacente à análise de K uhn, evita, tal com o este últim o, colocar
a questão da autonom ia da ciência, ainda que se refira principal­
m ente (se não exclusivam ente) aos factores internos na sua investi­
gação das causas sociais das crenças-preferências dos cientistas.
Os interesses sociais suscitam tácticas de persuasão, estratégias
oportunistas e tendências culturalmente transmitidas que influenciam
o conteúdo e o desenvolvimento do conhecimento científico. Longe
de serem determ inadas de form a inequívoca pela «natureza das
coisas» ou por «puras possibilidades lógicas», com o pretendia
M annheim , as acções dos cientistas e a em ergência e consolidação
de paradigm as científicos são influenciados por factores sociais
intra e extrateóricos. Barnes e B loor (1982) baseiam -se na sub-
determinação da teoria pelos fa cto s (as teorias nunca são com ­
pletam ente determ inadas pelos factos que invocam e várias teorias
podem sem pre reivindicar a sua relação com os m esm os factos);
insistem tam bém no facto (que é um a banalidade para a tradição
epistem ológica continental) de a observação ser orientada pela

34
A Si n o p s e da D is c u s s ã o

teoria. As controvérsias (tom adas possíveis, m ais um a vez, pela


indefinição) m ostram que o consenso é fundam entalm ente frágil,
que m uitas controvérsias term inam antes de estar resolvidas só
pelos factos e que os cam pos científicos estáveis incluem sem pre
alguns descontentes que atribuem o consenso apenas ao confor­
m ism o social.
C ollins e a escola de B ath destacam m enos a relação entre os
interesses e as preferências do que o processo de interacção entre
os c ie n tista s n o s e p elo s q u ais se fo rm am os p ressu p o sto s
científicos; m ais precisam ente, destacam as polém icas científicas
e os métodos não racionais utilizados para as resolver. Por exemplo,
H arry C ollins e Trevor Pinch, a propósito de um a polém ica entre
cientistas do establishment e parapsicólogos, m ostram que tanto
uns com o outros utilizam processos estranhos e desonestos: tudo
se passa com o se os cientistas tivessem instaurado fronteiras arbi­
trárias para barrar a entrada a form as de pensar e de agir diferentes
das suas. C riticam o papel da «replicação» (ou das experiências
cruciais) n a ciência experim ental. Q uando os cientistas tentam
reproduzir as experiências de outros cientistas, m odificam ge­
ralm ente as condições originais da experiência - equipam ento,
procedim entos - para seguir os seus próprios program as, e um a
« replicação » perfeita im plica, de facto, agentes interm utáveis
(dever-se-ia analisar, nesta perspectiva, o confronto entre Pasteur
e K och). A lém disso, a m enos que se tenha grande fam iliaridade
com o problem a em causa, é m uito difícil reproduzir os procedi­
m entos experim entais a partir de um relatório escrito. Com efeito,
os relatórios científicos visam m ais respeitar as norm as ideais do
protocolo científico do que relatar as coisas tal qual com o se p as­
saram . Os cientistas podem obter várias vezes «bons» resultados
sem ser capazes de dizer com o os obtiveram . Q uando outros
cientistas não conseguem «replicar» um a experiência, os prim eiros
podem objectar que os seus procedim entos não foram correcta­
m ente observados. De facto, a aceitação ou a rejeição de um a
experiência depende tanto do crédito atribuído à com petência do
cientista com o da força e do significado das provas experim entais.
A convicção resulta m ais da força social do cientista do que da

35
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

força intrínseca da ideia verdadeira. Significa que o facto científico


é feito por quem o produz e propõe, m as tam bém p o r quem o
adm ite (trata-se de outra analogia com o cam po artístico).
Em sum a, tal com o B loor e Barnes, os cientistas insistem no
facto de os dados experim entais não bastarem por si p ara deter­
m inar em que m edida um a experiência pode validar ou invalidar
um a teoria, e é o consenso no seio de um núcleo central {core set )
de investigadores interessados que determ ina se um a questão está
ou não solucionada. Este consenso depende em grande parte de
juízos sobre questões de honestidade, com petência técnica, vínculo
institucional, estilo de apresentação e nacionalidade. Em resum o,
o falsificacionismo popperiano oferece um a imagem idealizada das
soluções encontradas pelo core set de cientistas durante as suas
disputas.
C ollins tem o grande m érito de lem brar que o facto é um a
construção colectiva e que é na interacção entre quem apresenta
o facto com o tal e quem o reconhece e tenta «replicá-lo» para o
falsificar ou confirm ar que se constrói o facto com provado e
certificado, e de m ostrar que processos análogos aos que descobri
no dom ínio da arte se observam tam bém no m undo científico. M as
os lim ites do seu estudo prendem -se com o facto de se m anter
fechado num a visão interaccionista que procura n as relações
entre os agentes o princípio das suas acções e ignora as estruturas
(ou as relações objectivas) e as disposições (em geral ligadas à
posição ocupada nessas estruturas) que são o verdadeiro princípio
das acções e, entre outras coisas, das próprias interacções (que
podem ser a m ediação entre as estruturas e as acções). R eferindo-
-se som ente ao laboratório, não se interroga sobre as condições
estruturais de produção dos pressupostos teóricos: por exem plo,
aquilo a que poderiamos chamar «capital laboratorial», documentado
pelos m ertonianos que dem onstraram , por exem plo, com o vim os,
que se um a descoberta for feita num laboratório reputado de um a
universidade prestigiada, tem m ais hipóteses de ser validada do
que se for realizada noutro m enos considerado.

36
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

4 . U m S e g r e d o d e P o lic h in e lo B e m G u a r d a d o

Os estudos de laboratório têm verdadeira im portância j á que


rom peram com a visão um pouco distanciada e global da ciência
para se aproxim ar m ais dos lugares de produção. R epresentam ,
pois, um contributo incontestável que gostaria de evocar através
das afirm ações de um dos m em bros desta corrente, K arin Knorr-
-Cetina: «O s objectos científicos são não só tecnicam ente fabrica­
dos nos laboratórios, m as tam bém construídos de form a indisso-
ciavelm ente sim bólica e política através das técnicas literárias de
persuasão tal com o as podem os encontrar nos artigos científicos,
através de estratagem as políticos pelos quais os cientistas visam
form ar alianças ou m obilizar recursos, ou através das selecções que
os factos científicos constroem a partir do interior». Entre os «pio­
neiros» dos estudos de laboratório, gostaria de evocar os trabalhos
de M irko D. G rm ek (1973) e Frederic L. H om es (1974), que se
basearam nos registos das experiências laboratoriais de Claude
B ernard para analisar diferentes aspectos da obra deste cientista.
N este trabalho, vem os com o os m elhores cientistas rejeitam os
resultados desfavoráveis com o aberrações que om item dos relató­
rios oficiais, com o por vezes transform am experiências equívocas
em resultados decisivos ou m odificam a ordem em que as experiên­
cias foram feitas, etc., e com o todos se sujeitam às estratégias
retóricas com uns que se im põem quando transform am os registos
das experiências laboratoriais em m aterial para publicação.
M as deve citar-se aqui M edaw ar, que resum e bem as distorções
que se operam baseando-se apenas nos relatórios publicados: «os
resultados parecem m ais decisivos e honestos; os aspectos m ais
criativos da pesquisa desaparecem dando a im pressão de que a
im aginação, a paixão, a arte não desem penharam qualquer papel
e de que a inovação resulta não da actividade apaixonadá de m ãos
e espíritos profundam ente em penhados, mas da subm issão passiva
aos preceitos estéreis do pretenso “M étodo C ientífico” . Este efeito
de em pobrecim ento leva a ratificar um a visão em pirista ou induti-
vista, antiquada e ingênua, da prática da investigação» (M edaw ar,
1964).

37
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

K arin Knorr-Cetina, a partir de um estudo sobre um laboratorio


em que enuncia de form a m inuciosa as progressivas fases de um
esboço que é finalm ente publicado após dezasseis versões suces­
sivas, analisa em porm enor as transform ações da retórica do texto,
o trabalho de despersonalização levado a cabo pelos autores, etc.
(Lam enta-se apenas que, em vez de se entregar a longas discussões
teórico-filosóficas com Habermas, Luhman, etc., a autora não tenha
apresentado as inform ações propriam ente sociológicas sobre os
autores e sobre o laboratório que perm itiríam relacionar as estra­
tégias retóricas utilizadas com a posição do laboratório no cam po
científico e com as disposições dos agentes envolvidos na produção
e circulação dos drafts.)
M as foi nos estudos de G. N igel G ilbert e M ichael M ulkay
(1984) que encontrei a descrição mais correcta e mais com pleta
dos conhecim entos desta tradição. Estes autores m ostram que os
discursos dos cientistas variam conform e o contexto e distinguem
dois «repertórios» (parece-m e que seria preferível dizer duas retó­
ricas). O «repertório empirista» é característico dos artigos form ais
de investigação experim ental que são escritos de acordo com a
representação em pirista da acção científica: o estilo deve ser
im pessoal e m inim izar a referência aos agentes sociais e aos seus
princípios de form a a parecer objectivo; as referências à depen­
dência das observações relativam ente a especulações teóricas
desaparecem ; tudo é feito para acentuar o distanciam ento do cien­
tista em relação ao seu m odelo; na secção dos m étodos, o relatório
é enunciado através de fórm ulas gerais. Depois, há o «repertório
contingente» (contingent repertoiré) que coexiste com o prim eiro:
quando falam informalmente, os cientistas insistem na dependência
em relação a um «sentido intuitivo da investigação» ( intuitivefeel
fo r research ) que é inevitável dado o carácter prático das operações
consideradas (G ilbert e Mulkay, 1984: 53). Estas operações só se
podem escrever e com preender verdadeiram ente por um estreito
contacto social. Os autores falam de «practical skills», de habili­
dades próprias, de receitas (os investigadores fazem m uitas vezes
a com paração com a cozinha). A investigação é um a prática cor­
rente cuja aprendizagem se faz através do exemplo. A com unicação

38
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

estabelece-se entre pessoas que partilham o m esm o background


de problem as e pressupostos ( assum ptions ) técnicos. E notável
que, com o observam os autores, os cientistas usem espontanea­
m ente a linguagem do «repertório contingente» quando se referem
ao que os outros cientistas fazem ou quando lêem os relatórios
oficiais destes.
Em sum a, os cientistas utilizam dois registos linguísticos: no
«repertório em pirista», escrevem de m aneira convencionalm ente
im pesso al; reduzem ao m ínim o as referên cias à intervenção
hum ana, redigem textos em que o mundo físico parece literalmente
agir e falar por si m esm o. Quando o autor é autorizado a aparecer
no texto, é apresentado quer constrangido a em preender as expe­
riências ou a form ular as conclusões teóricas evidentes nos fenó­
m enos naturais que estuda, quer rigidam ente lim itado por regras
do procedim ento experim ental. Em situações m enos form ais, este
repertório é com pletado e por vezes contradito por um repertório
que coloca o acento no papel desem penhado pelas contingências
pessoais na acção e na intuição. O relatório assim étrico que apre­
senta o dado correcto com o surgindo indiscutivelm ente da prova
experim ental e o dado incorrecto com o efeito de factores pessoais,
sociais e geralm ente não científicos, encontra-se nos estudos sobre
a ciência (que se apoiam sobretudo, em geral, nos relatórios formais).
O que a sociologia revela é, de facto, conhecido e pertence até
à ordem do «common knowledge», com o dizem os econom istas.
O discurso pessoal sobre o aspecto particular da investigação é
feito para apelar à m odéstia do sociólogo, para que este não tenha
a tentação de acreditar na descoberta dos «segredos» da ciência
e deve, em todo o caso, ser tratado com bastante reflexão e delica­
deza. Seria necessário em pregar conhecim entos profundos de
fenom enología para analisar estes fenómenos de dupla-consciência,
que associam e com binam , com o todas as form as de má-fé (no
sentido sartriano) ou de self-deception, saber e recusa de saber,
saber e recusa de saber que se sabe, saber e recusa que outros
digam o que sabem os ou, pior, que sabem os. (D ever-se-ia dizer o
m esm o das «estratégias» de carreira e, por exem plo, das escolhas
de especialidade ou de objectos de estudo que não podem ser des­

39
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

critas segundo as antíteses com uns da consciência e da incons­


ciência, do cálculo e da inocência.) Todos estes jo g o s da m á-fé
individual só são possíveis num a cum plicidade profunda com um
grupo de cientistas.
M as gostaria de referir mais em porm enor o últim o capítulo, in­
titulado: “Joking A part” . Os autores observam que, quando entram
nos laboratórios, descobrem , geralm ente afixados nas paredes,
textos bizarros, com o um Dictionary o f useful research phrases,
que circulam de laboratório em laboratório e evocam o discurso
irónico e paródico a propósito do discurso científico dos próprios
cientistas: Post-prandial proceedings o f the Cavendish P hysical
Society, Journal o f Jocular Physics, Journal o f Irreproducible
R esidís , R eview o f Unclear Physics.
Segundo o m odelo das listas que se dividem em «certo/errado»
dos m an u ais de gram ática, os autores com põem um quadro
com parativo que confronta duas versões: a que foi produzida para
a apresentação form al e o relato inform al do que realm ente se
passou. De um lado, «aquilo que escreveu» ( What he wrote), do
outro, «aquilo que realmente queria dizer» ( What he meanf) (Gilbert
eM iilkay, 1984: 176):
1. Desde há muito que se sabe... / / Não me dei ao trabalho
de pro cu ra r a referência.
2. Em bora não tenha sido possível dar respostas definitivas
a estas questões.. . / / A experiência não resultou, mas p en sei
que podería p elo m enos publicar qualquer coisa sobre ela.
3. Três das am ostras fo r a m escolhidas após um estudo
p o rm e n o riza d o ... / / Os resu lta d o s das o u tra s não tinham
qualquer sentido e fo ra m ignoradas.
4. Danificado acidentalmente durante a montagem... //C a iu
ao chão.
5. De grande importância teórica eprática... / / Interessante
para mim.
6. Sugere-se que... Sabe-se que... Parece... / / Eu penso.
7. Pensa-se geralmente que... / / Outros tipos também o pensam.
E ste q u ad ro p ro d u z um efeito h u m o rístico ao m o stra r a
hipocrisia da form a de expressão oficial. M as a dupla verdade da

40
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

experiência que os agentes podem ter da sua própria prática tem


algo de universal. C onhece-se a verdade daquilo que se faz (por
exem plo, o carácter m ais ou m enos arbitrário ou, em todo o caso,
contingente das razões ou das causas que determ inam um a decisão
judicial), m as, para estar de acordo com a ideia oficial daquilo que
se faz, ou com a ideia que se tem de si m esm o, é preciso que essa
decisão p areça ter sido m otiv ad a p o r razões tão elevadas (e
jurídicas) quanto possível. O discurso form al é hipócrita, m as a
tendência para o «radicalism o chique» leva a esquecer que as
duas verdades co-existem , de form a m ais ou m enos difícil, nos
próprios agentes (é um a verdade que tive grande dificuldade em
aprender e que aprendí, paradoxalm ente, graças aos Cabilas (*),
talvez por ser m ais fácil com preender as hipocrisias colectivas
dos outros do que as nossas). Entre as forças que sustentam as
reg ras sociais enco n tra-se este im perativo de regularização,
m anifesto no facto de «se estar em conform idade», que leva a
apresentar com o realizadas de acordo com a regra práticas que
podem estar em transgressão com pleta, porque o essencial é
salvaguardar a regra (e é assim que o grupo aprova e respeita
esta hipocrisia colectiva). Com efeito, trata-se de resguardar os
interesses particulares do cientista particular que partiu a sua pipeta;
m as tam bém , e ao m esm o tem po, salvaguardar os pressupostos
colectivos da ciência que faz com que, em bora todos saibam que a
realidade não é a que apontam , todos finjam que é. O que levanta
o problem a, m uito geral, da função ou do efeito da sociologia que,
em m uitos casos, torna públicos factos «negados» de que os grupos
têm conhecim ento mas fingem não ter.
Seríam os portanto tentados a ratificar a conclusão que me
parece, no essencial, m uito pouco discutível, de G ilbert e Mulkay,
ou de P eter M edaw ar, se não estivesse associada, na m aioria das
vezes, a um a filosofia da acção (e a um a visão cínica da prática)
que encontrará a sua efectivação na m aioria dos trabalhos dedi­
cados à «vida de laboratório». Assim , por exem plo, em bora não

(*) Cabilas: povo berbere sedentário de Cabília, naArgélia. (N . do T.)

41
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

haja dúvida de que é verdade que, com o diz Karin Knorr, o labora­
tório é um lugar onde as acções são realizadas com o intuito de
«fazer funcionar as coisas» («A form ulação vernacular “making
things w ork” sugere um a contingência dos resultados a propósito
da produção: “fazer funcionar” implica um a selecção dos “efeitos”
que podem ser reunidos num conjunto de contingências racionais
ignorando as tentativas que contradizem os efeitos.»), não se pode,
contudo, aceitar a idéia que ela exprim e na frase que acabei de
citar e em que se desvia da ideia, que é o tem a do m eu prim eiro
artigo, do carácter inseparavelmente científico e social das estra­
tégias dos investigadores, para a afirm ação de um a construção
sim bólica e política fundada em «técnicas de persuasão» e «es­
tratagemas» orientados para a form ação de alianças. As «estra­
tégias» sim ultaneam ente científicas e sociais do hábito científico
são pensadas e tratadas com o estratagemas conscientes, para
não dizer cínicos, orientados para o sucesso do investigador.
M as, para term inar, é necessário voltar a m encionar agora um
ram o da sócio-filosofia da ciência que se desenvolveu sobretudo
em França, m as que conheceu algum sucesso nos campus das
universidades anglo-saxónicas. Refiro-m e aos trabalhos de Latour
e W oolgar e, em particular, a Laboratory Life, que dá um a im agem
am pliada de todos os defeitos da nova sociologia da ciência (Latour
e Woolgar, 1979). Esta corrente é profundam ente m arcada pelos
condicionalism o históricos, de forma que receio ter grande dificul­
dade em distinguir, com o fiz para as correntes precedentes, o
m om ento da análise das teses consideradas e o m om ento da análise
das co ndições sociais da sua produção. [Por exem plo, num a
passagem que pretende ser favorável do livro de Latour e Woolgar,
Laboratory Life, pode ler-se: «O laboratório m anipula inscrições
(por referência a D errida), enunciados (por referência aF oucault);
construções que constituem as realidades que elas evocam . Estas
construções im põem -se pela negociação de pequenos grupos de
investigadores envolvidos. A verificação (assay) é autoverificação;
ela cria a sua própria verdade; é autoverificante porque não há
nada para a verificar. Laboratory Life descreve o processo de
verificação com o um processo de negociação».]

42
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

Presum e-se que os produtos da ciência são resultado de um


processo de fabricação e que o laboratório, ele próprio um universo
artificial, isolado do m undo exterior de m uitas form as - física,
socialm ente e tam bém pelo capital de instrum entos que aí se
m anipulam - , é o espaço de construção e até m esm o de «criação»
dos fenóm enos graças aos quais se elaboram e testam teorias, e
que não existiríam sem o equipam ento instrumental do laboratório.
«A realidade artificial que os participantes descrevem com o enti­
dade objectiva foi, de facto, construída».
A partir desta conclusão que, para alguém fam iliarizado com
Bachelard, nada tem de surpreendente, podem os, jogando com as
palavras ou deixando jo g ar as palavras, passar para proposições
de alcance radical (capazes de provocar grandes efeitos, sobretudo
em universidades do outro lado do A tlântico dom inadas pela visão
logicista-positivista). Ao afirm ar que os factos são artificiais no
sentido em que são fabricados, Latour e W oolgar deixam entender
que os factos são fictícios, não objectivos, não autênticos. O sucesso
das afirm ações destes autores resulta do «efeito de radicalidade»,
com o diz Yves G ingras (2000), que nasce desse deslize sugerido e
encorajado por um hábil uso de conceitos am bíguos. A estratégia
de passagem ao limite é um dos recursos privilegiados da investi­
gação deste efeito, mas pode conduzir a posições insustentáveis,
indefensáveis, porque m uito sim plesm ente absurdas. Daí um a
estratégia típica que consiste em avançar uma posição muito radical
(do tipo: o facto científico é um a construção ou - deslize - um a
fabricação, portanto um artefacto, um a ficção) para depois se
retractar diante da crítica, refugiando-se em banalidades, ou seja,
na face m ais vulgar de noções am bíguas, com o construção, etc.
M as p ara p ro d u zir este efeito de «des-realização» não se
lim itam a acentuar o contraste entre o carácter im provisado das
práticas reais no laboratório e o raciocínio experim ental tal com o
racio n alm en te reconstruído nos textbooks e nos relatórios de
investigação. Latour e Woolmar sublinham o papel muito importante
que, no trabalho de fabricação de fa c to s como ficção, cabe aos
textos. Concluem que os investigadores que observaram durante
o estudo do Salk Institute não tinham com o objecto das suas

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P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

experiências as coisas em si m esm as, m as dados com pilados por


técnicos que trabalham com instrum entos de registo: «Entre os
cientistas e o caos há apenas um a parede de arquivos, etiquetas,
livros de registo, números e papéis». «Apesar do facto de os investi­
gadores acreditarem que esses registos possam ser representações
ou indicadores de algum a entidade dotada de existência indepen­
dente “exterior” , concluím os que tais entidades se constituem
apenas através da utilização desses registos». Em sum a, a crença
ingenuam ente realista dos investigadores num a realidade exterior
ao laboratório é pura ilusão, de que só se podem libertar graças a
um a sociologia realista.
U m a vez que o produto final se elaborou na circulação, as etapas
interm édias que o tom aram possível e, em particular, a v asta rede
de resoluções que estiveram na origem da adm issão de um facto
são esquecidas, principalm ente porque o investigador apaga atrás
de si os traços do seu trabalho. Sendo os factos científicos construí­
dos, com unicados e avaliados na form a de proposições escritas, o
trabalho científico é essencialmente um a actividade literária e inter­
pretativa: «Um facto é apenas um a proposição ( statement ) sem
m odalidade - M - e sem m arca de autor»; o trabalho de circulação
leva ao desaparecim ento das m odalidades, ou seja, os indicadores
de referência tem poral ou local (por exem plo, «estes dados podem
indicar que...», «penso que esta experiência m ostra que...»), em
suma, todas as expressões indiciais. O investigador deve reconstruir
o processo de consagração-universalização pelo qual o facto vem
a ser, a pouco e pouco, reconhecido com o tal, as publicações, as
redes de citações, as disputas entre laboratórios rivais e as reso­
luções tom adas entre m em bros de um grupo de investigação (ou
seja, por exem plo, as condições sociais em que o factor horm onal,
TRF, se afasta de todas as qualificações conflituais); deve des­
crever «com o um juízo foi transform ado num facto e, por isso,
libertado das condições da sua produção» (que são doravante
esquecidas tanto pelo produtor com o pelos receptores).
Latour e W oolgar decidem colocar-se no ponto de vista de um
observador que vê o que se passa no laboratório sem aderir aos
pressupostos dos investigadores. Fazendo da necessidade virtude,

44
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

descrevem o que lhes parece inteligível no laboratorio - as notas,


os textos, as conversas, os procedim entos - e o m aterial que lhes
p arece estranho (um dos grandes m om entos deste estudo é a
descrição «ingênua» de um instrum ento sim ples, urna pipeta... -
Woolgar, 1988b: 85). Podem assim tratar a ciência natural com o
um a actividade literária e recorrer a um m odelo sem iológico (o de
A. J. G reim as) para descrever e interpretar esta circulação dos
produtos científicos. A tribuem o estatuto privilegiado conferido às
ciências naturais não à validade particular das suas descobertas,
m as ao equipam ento dispendioso e às estratégias institucionais que
transform am os elementos naturais em textos praticam ente inatacá­
veis, sendo o autor, a teoria, a natureza e o público efeitos de texto.
A visão semiológica do mundo que os conduz a acentuar os
traços e os signos leva-os a esta form a paradigm ática da prática
escolástica que é o textismo, que constitui a realidade social com o
texto (à m aneira dos etnólogos, com o M arcus (1986) ou até m esm o
Geertz, ou dos historiadores, com a linguistic turn, que, na m esm a
época, afirm aram que tudo é texto). A ciência seria assim apenas
um discurso ou um a ficção entre outras, m as capaz de exercer um
«efeito de verdade » produzido, com o todos os outros efeitos
literários, a partir de características textuais com o o tem po dos
verbos, a estrutura dos enunciados, os m odos, etc. (a ausência de
qualquer tentativa de prosopografia condena a procurar a força
dos textos nos próprios textos). O universo da ciência é um m undo
que consegue im por universalm ente a crença nas suas ficções.
A posição sem iologista nunca é tão visível com o na obra The
P asteurization o f France (Latour, 1988), em que Latour trata
Pasteur com o um significante textual inserido num a história que
tece um a rede heterogénea de instâncias e entidades, a vida quoti­
diana na quinta, as práticas sexuais e a higiene pessoal, a arqui­
tectura e o regim e terapêutico da clínica, as condições sanitárias
na cidade e as entidades m icroscópicas encontradas no laboratório,
em sum a, todo um m undo de representações que Pasteur construiu
e pelo qual se afirm ou com o cientista em inente. [Gostaria, pelo
contrário, de m encionar aqui um trabalho que, apoiando-se num a
leitu ra m in u cio sa de bo a parte dos laboratory notebooks de

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P a r a u ma S o c i o l o g í a d a C iê n c ia

Pasteur, oferece um a visão realista e bem inform ada, mas sem


utilizar ostensivam ente efeitos teóricos gratuitos, da actividade e
tam bém do «m ito» (capítulo 10) pasteurianos: G. L. Geison, The
P rívate Science o f Louis Pasteur (1995).]
O sem iologism o pactua com um a visão ingenuam ente m aquia­
vélica das estratégias dos cientistas: as acções sim bólicas que estes
realizam para fazer reconhecer as suas «ficções» são, ao m esm o
tem po, estratégias de influência e de poder pelas quais servem a
sua p rópria grandeza. Trata-se assim de com preender a form a
com o um hom em cham ado Pasteur construiu alianças e fez prose­
litism o para im por um program a de investigação. Com toda a
am biguidade resultante do facto de tratar entidades sem iológicas
com o indicadores sócio-históricos, Latour trata Pasteur com o um a
espécie de entidade sem iológica que age historicam ente, e que
age com o um qualquer capitalista (poderiamos ler, nesta perspectiva,
a entrevista intitulada «Le dernier des capitalistes sauvages»
(Latour, 1983), em que Latour se esforça por m ostrar que o cientista
consciente dos seus interesses simbólicos seria o expoente m áxim o
do em presário capitalista, cujas acções são orientadas p ara a
procura da m axim ização do lucro). Por não procurar o princípio
das acções onde ele está realm ente, ou seja, nas posições e nas
disposições, Latour só pode encontrá-lo em estratégias conscientes
(e cínicas) de influência e poder (regredindo assim do fm alism o
das entidades colectivas segundo M erton, para o fm alism o dos
agentes individuais). E a ciência da ciência fica reduzida à descrição
das alianças e das lutas pelo «crédito sim bólico».
Vendo-se acusado pelos defensores do «program a teórico forte»
de desinform ação e de utilização de estratégias científicam ente
desleais, Latour, que, em relação ao resto da sua obra, surge com o
um construtivista radical, fez-se recentemente defensor do realism o
ao invocar o papel social que atribui aos objectos e, em particular,
aos objectos m anufacturados na análise do m undo científico.
Propõe precisam ente recusar a distinção entre os agentes (ou as
forças) hum anos e os agentes não hum anos. M as o exem plo m ais
im pressionante é o da porta e do seu fecho autom ático, cham ada
em francês groom, por analogia com o porteiro de carne e osso,

46
A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

que Latour, num artigo intitulado «W here are the missing Masses?»
(1993), invoca para encontrar ñas coisas os condicionantes que
faltam (as «m assas ausentes», referência científica chique) na
análise com um da ordem política e social. Em bora sejam objectos
m ecânicos, as portas e os objectos técnicos agem com o im posições
constantes sobre o nosso com portamento e os efeitos da intervenção
desses «sujeitos» são indiscem íveis dos que exercem um controlo
m oral ou norm ativo: um a porta perm ite-nos passar apenas num
certo ponto da parede e a um a determ inada velocidade; um polícia
robotizado regula o trânsito com o um polícia real, o com putador do
m eu escritório obriga-m e a escrever instruções especialm ente para
ele num a form a sintáctica determ inada. As «m issing masses»
(análogas às que explicam o ritm o de expansão do universo! -
nem m ais nem m enos...) encontram -se nas coisas técnicas que
nos rodeiam . D elegam o-lhes o estatuto de agentes e, ao m esm o
tempo, poder. Tratando-se de com preender esses objectos técnicos
e o seu poder, será que é necessário fazer a ciência técnica do seu
funcionam ento? (Não há dúvida de que é m ais fácil para uma
porta ou um a pipeta do que para um ciclotrão...) Se esse não é o
caso, que m étodo se deverá utilizar para descobrir o facto da
«delegação» e o que é delegado a esses fam osos «sujeitos»? Basta
recorrer ao m étodo, caro aos econom istas, das «hipóteses contra-
factuais» e, tratando-se de com preender a utilidade das portas
autom áticas, im aginar com o seria se não existissem . Faz-se um a
contabilidade por partidas dobradas: de um lado, o que se deveria
fazer se não houvesse porta autom ática; do outro, o esforço ligeiro
para puxar ou em purrar que perm ite cum prir as m esm as tarefas.
Portanto, transform a-se um grande esforço num mais pequeno e
é à operação assim realizada pelo analista que Latour propõe
cham ar deslocam ento, translação ou delegação: «delegám os nos
gonzos o trabalho de reversibilidade que resolve o dilema do buraco
na parede». E, finalm ente, chegam os a um a lei geral: «sem pre que
quiser saber o que um agente faz, im agine sim plesm ente aquilo
que outros agentes hum anos e não hum anos deveríam fazer se
esse agente não existisse». A im aginação (científica) está no poder.
Fez-se desaparecer a diferença trivial entre os agentes hum anos

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P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

e os agentes não hum anos (a porta autom ática tom a o lugar de


um a pessoa e im ita a acção hum ana ao prescrever quem deve
passar) e podem os dissertar livrem ente sobre o m odo com o dele­
gam os poder nos objectos técnicos. (Sei que, nesta sala, há jovens
do curso de preparação da sala ao lado: eis um a história que, por
um a vez, poderá constar das suas «dissertações» e produzir um
certo efeito; é um regresso ao curso inicial...). Para dem onstrar
que aquilo que pode parecer um sim ples jo g o literário é, de facto,
a expressão de um a verdadeira opção «metodológica» de «escola»,
podería evocar tam bém M ichel Callón (1986) que, no seu estudo
sobre as vieiras, coloca no m esm o plano os pescadores, as vieiras,
as gaivotas e o vento enquanto elem entos de um «sistem a de
sujeitos». M as ficarei por aqui.
[Não deixo de sentir aqui algum m al-estar face ao que acabo
de dizer: por um lado, não queria dar a esta obra a im portância que
ela atribui a si m esm a e correr o risco de contribuir, sem querer,
para valorizá-la levando a análise crítica para além daquilo que
este género de texto m erece, e penso, no entanto, que é bom que
haja pessoas que, com o Jacques Bouveresse (1999) fez a propósito
de D ebray ou G ingras (1995) sobre o m esm o Latour, aceitem des­
pender tem po e energia para libertar a ciência dos efeitos funestos
da hubris filosófica; m as, por outro lado, lem bro-m e de um belíssi­
m o artigo de Jane Tom pkins (1988), que descreve a lógica da
« r ig h te o u s w ra th » - q u e se p o d e ria tr a d u z ir p o r « s a n ta
cólera» - , ou seja, o «sentim ento de suprem a rectidão» {sentiment
o f supreme righteousness ) do herói de western que, ao princípio,
«injustam ente m altratado» {unduly victimized), pode ser levado a
fazer «aos vilãos ( against the villains) o que anteriorm ente os
vilãos lhe tinham feito» (things which a short while ago only the
villains did ): no m undo académ ico ou científico, este sentim ento
pode levar aquele que se sente investido de um a m issão ju sticeira
a u m a « v io lên cia sem derram am en to de sangue» ( bloodless
violence) que, em bora se conserve nos lim ites da decência acadé­
m ica, se inspira num sentim ento absolutam ente idêntico ao que
levava o herói de western a fazer ju stiça com as suas próprias
m ãos. E Jane Tom pkins observa que esta ira legítim a pode fazer

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A Si n o p s e d a D i s c u s s ã o

com que alguém se sinta ju stificado em atacar não só os defeitos


ou os erros de um texto, m as especificidades do indivíduo. N ão
escondo que m esm o aqui, através do discurso de autoridade (cuja
parte essencial é dedicada a afirm ar a autoridade do discurso
rem eto aqui para a análise que fiz da retórica de A lthusser-B alibar
- 2001b), as suas fórm ulas encantatórias e autolegitim adoras
(proclam a-se «radical», «contra-intuitivo», «novo»), o seu tom
perem ptório (é preciso ser surpreendente), eu visava as tendências
associadas estatisticam ente a determ inada origem social (é verdade
que as tendências para a arrogância, p ara o b lu ff e até p ara a
im postura, para a procura do efeito de radicalidade, etc., não estão
igualm ente distribuídas entre os investigadores de acordo com as
suas origens sociais, o seu sexo ou, m elhor, segundo o seu sexo e
origem social). E não consigo deixar de supor que se esta retórica
conheceu um sucesso social desproporcionado aos seus m éritos,
é talvez porque a sociologia da ciência ocupa um a posição m uito
especial na sociologia, na fronteira indecisa entre a sociologia e a
filosofia, de m odo que podem os fazer aí a econom ia de um a
verdadeira ruptura com a filosofia e com todos os proveitos sociais
associados ao facto de alguém se apresentar com o filósofo em
certos círculos - ruptura longa e dispendiosa, que im plica a aqui­
sição, difícil, de instrum entos técnicos e grandes investim entos
ingratos em actividades consideradas inferiores e até indignas.
Estas tendências socialm ente constituídas para a audácia e para a
ruptura, que, em cam pos científicos m ais capazes de im por os
seus co n tro lo s e cen su ras, se p o d eríam a ten u ar e sublim ar,
encontraram aí um terreno que lhes perm itiu exprim irem -se sem
disfarce nem freio. Seja com o for, o sentim ento de righteouness
que podia inspirar a m inha «santa cólera» encontra, a m eu ver, o
seu fundam ento no facto de essas pessoas, que recusam geralm ente
o nom e e o estatuto de sociólogos sem serem realm ente capazes
de se subm eter às exigências do rig o r filosófico, poderem ter
sucesso ju n to de m em bros recém -adm itidos e atrasar o progresso
da investigação levantando falsos problem as que fazem perder
m uito tem po, globalmente, levando alguns a impasses e envolvendo
outros, que teriam algo útil a fazer, num trabalho crítico, m uitas

49
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

vezes um tanto desesperado, devido à força dos mecanismos sociais


capazes de sustentar o erro. Penso especialm ente na allodoxia , o
erro sobre a identidade das pessoas e das idéias que se faz sentir
em todos os que ocupam as regiões incertas entre a filosofía e as
ciências sociais (e tam bém o jornalism o), e que, situados de um e
do outro lado da fronteira, tanto no exterior, com o R égis Debray,
com as suas m etáforas científicas que im itam os sinais exteriores
da cientificidade (o teorem a de Gõdel, que provocou a «santa
cólera» de Jacques Bouveresse), a sua form alidade pseudocien-
tífica, «a mediologia», com o no interior, como os nossos sociólogos-
-filósofos da ciência, que são particularmente hábeis e estão particu­
larm ente bem colocados para inspirar um a crença enganadora,
allodoxia, jo g an d o com todos os duplos-jogos, garantes de todos
os duplos ganhos decorrentes da com binação de vários léxicos de
autoridade e de im portância, com o o da filosofia e o da ciência.]

50
2

U m M u n d o à P a r te

U m dos pontos centrais pelo quais não subscrevo as análises


que evoquei é o conceito de cam po que coloca a tónica nas estru­
turas que orientam as práticas científicas e cuja eficácia se exerce
à escala m icrossociológica em que se situa a m aior parte dos tra­
balhos que critiquei, e em particular os estudos de laboratório. Po­
dem os, para m ostrar os lim ites destes estudos, com pará-los com
aquilo que eram, num dom ínio com pletam ente diferente, as m ono­
grafias regionais (e até boa parte dos trabalhos etnológicos) que
tom am com o objecto m icro-unidades sociais consideradas autó­
nom as (quando isso era questionado), universos isolados e circuns­
critos que se pensava ser m ais fáceis de estudar porque os dados
se apresentavam de algum a form a já preparados a essa escala
(os recenseam entos, os cadastros, etc.). O laboratório, pequeno
universo fechado e isolado, que elabora relatórios para análise e
registos, parece, do m esm o m odo, invocar sem elhante abordagem
m onográfica e ideográfica.
Ora, percebe-se im ediatam ente que o laboratório é um m icro­
cosm o social situado num espaço que abrange outros laboratórios
constitutivos de um a disciplina (ela própria situada num espaço,
tam bém hierarquizado, de disciplinas) e que deve um a parte m uito
im portante das suas características à posição que ocupa nesse

51
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

espaço. Ignorar esta série de encaixes estruturais, ignorar esta


posição (relacionai) e os efeitos de posição correlativos, significa
sujeitar-se, com o no caso da m onografia regional, a procurar no
laboratório princípios explicativos que estão no exterior, na estrutura
do espaço em que ele está inserido. Só um a teoria global do espaço
científico, com o espaço estruturado segundo lógicas sim ultanea­
m ente genéricas e específicas, perm ite com preender realm ente
um determ inado ponto deste espaço, laboratório ou investigador
particular.
A noção de cam po m arca um a prim eira ruptura com a visão
interaccionista pelo facto de levar em conta a existência da estrutura
de relações objectivas entre os laboratórios e entre os investigado­
res que com anda ou orienta as práticas; opera um a segunda ruptura,
porque a visão relacionai ou estrutural que introduz se associa a
um a filosofia disposicionalista da acção que rompe com o finalismo,
correlativo de um intencionalism o ingênuo, segundo o qual os
agentes - no caso particular, os investigadores - seriam pessoas
calculistas m ais interessadas nos benefícios sociais assegurados
aos que parecem ter descoberto a verdade, do que na procura da
própria verdade.
N um artigo antigo (1975a), propus a ideia de que o cam po
científico, tal com o outros cam pos, é um cam po de forças dotado
de um a estrutura e tam bém um espaço de conflitos pela m anutenção
ou transform ação desse cam po de forças. A prim eira parte da
definição (cam po de forças) corresponde ao m om ento fisicalista
da sociologia concebida com o física social. Os agentes, cientistas
isolados, equipas ou laboratórios, criam , pelas suas relações, o
próprio espaço que os condiciona, em bora este exista apenas graças
aos agentes que nele se encontram e que, para falar com o a física,
«deform am o espaço envolvente», conferindo-lhe um a determ inada
estrutura. É na relação entre os diferentes agentes (concebidos
com o «fontes de cam po») que se engendra o cam po e as relações
de força que o caracterizam (relação de forças específica, propria­
m ente sim bólica, dada a «natureza» da força capaz de se exercer
nesse cam po, o capital científico, espécie de capital sim bólico que
age n a e p ela com unicação). M ais exactam ente, são os agentes,

52
Um M u n d o à P a r t e

ou seja, os cientistas isolados, as equipas ou os laboratórios, definidos


pelo volum e e pela estrutura do capital específico que possuem ,
que determ inam a estrutura do cam po que os determ ina, ou seja, o
nível das forças que se exercem sobre a produção científica, sobre
as práticas dos cientistas. O peso associado a um agente, suportado
pelo cam po ao m esm o tem po que contribui para o estruturar,
depende de todos os outros agentes, de todos os outros pontos do
espaço e das relações entre todos os pontos, ou seja, de todo o
espaço (quem conheça os princípios da análise das correspondên­
cias m últiplas perceberá a afinidade entre este m étodo de análise
m atem ática e o pensam ento em term os de cam po).
A força de um agente depende dos seus diferentes trunfos,
factores diferenciais de sucesso que podem garantir-lhe um a vanta­
gem em relação aos rivais, ou seja, m ais exactam ente, depende
do volum e e esfiutura do capital de diferentes espécies que possui.
O capital científico é um a espécie particular de capital sim bólico,
capital fundado no conhecim ento e no reconhecim ento. Poder que
funciona com o forma de crédito, pressupõe a confiança ou a crença
dos que o suportam porque estão dispostos (pela sua form ação e
pelo p ró p rio facto de p erten ça ao cam po) a atrib u ir crédito.
A estrutura de distribuição do capital determina a estrutura do campo,
ou seja, as relações de força entre os agentes científicos: a posse
de um a quantidade (logo, de um a parte) im portante de capital con­
fere poder sobre o cam po, portanto, sobre os agentes com parativa­
m ente m enos dotados de capital (e sobre o requisito de adm issão
no cam po) e com anda a distribuição das hipóteses de lucro.
A estrutura do cam po, definida pela distribuição desigual do
capital, ou seja, das arm as ou dos trunfos específicos, faz-se sentir,
não por interacção directa, intervenção ou manipulação, sobre todos
os agentes, m as regulando as possibilidades que lhes estão abertas
conform e estejam pior ou m elhor situados no cam po, ou seja, nesta
distribuição. O dom inante é aquele que ocupa na estrutura um a
posição tal que a estrutura age em seu favor. [Estes princípios muito
gerais - que valem tam bém noutros cam pos, no da econom ia, por
exem plo - perm item com preender os fenóm enos de com unicação
e circulação que têm lugar no cam po científico e que não podem

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P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

ser inteiram ente explicados por um a interpretação puram ente «se-


m iológica». U m a das virtudes da noção de cam po é a de fornecer,
sim ultaneam ente, princípios de com preensão gerais de universos
sociais da form a cam po e obrigar a form ular questões sobre a
especificidade desses princípios gerais em cada caso particular.
As questões que vou form ular e colocar a m im próprio a propósito
do cam po científico serão de dois tipos: trata-se de perguntar se
encontrarem os nele as propriedades gerais dos cam pos, e, por
outro lado, se este universo particular terá um a lógica intrínseca,
ligada aos seus fins específicos e às características próprias dos
jogos que nele se desenrolam. A teoria do cam po orienta e com anda
a investigação em pírica. O briga a form ular a questão de saber a
que é que se jo g a nesse cam po (só na base da experiência, portanto,
e correndo naturalm ente o risco de cair num a variante positiva do
círculo herm enêutico), o que está em jogo, quais os bens ou as
propriedades procuradas e distribuídas ou redistribuídas, e com o é
que se distribuem , quais são os instrum entos ou as arm as que se
deve ter para jo g ar com hipóteses de ganhar e qual é, em cada m o­
m ento do jogo, a estrutura da distribuição dos bens, ganhos e trunfos,
ou seja, do capital específico (a noção de cam po é, com o vem os,
um sistem a de questões que se especificam constantem ente).]
Podem os agora chegar ao segundo m om ento da definição, ou
seja, ao cam po com o espaço de conflitos, com o cam po de acção
socialm ente construído em que os agentes dotados de diferentes
recursos se defrontam para conservar ou transform ar as relações
de fo rça v igentes. Os agentes em preendem aqui acções que
dependem, nos seus fins, meios e eficácia, da sua posição no cam po
de forças, ou seja, da posição na estrutura da distribuição do capital.
Cada acto científico é, com o qualquer prática, produto do encontro
entre duas histórias, um a história incorporada na form a de dispo­
sições e um a história objectivada na própria estrutura do cam po e
em objectos técnicos (instrum entos), escritos, etc. A especificidade
do cam po científico prende-se, em parte, com o facto de a quanti­
dade de história acum ulada ser, sem dúvida, particularm ente im ­
portante, graças em especial à «conservação» dos conhecim entos
num a form a particularm ente económ ica, com , por exem plo, a

54
Um M u n d o à P a r t e

form alização e a conversão em fórm ulas ou na espécie de um


tesouro, lentam ente acum ulado, de gestos calibrados e de aptidões
transform adas em rotina. Longe de se m anifestarem face a uni­
versos sem gravidade e inércia, em que poderíam desenvolver-se
à vontade, as estratégias dos investigadores são orientadas pelas
lim itações e possibilidades objectivas inscritas na sua posição e
pela representação (ela própria ligada à suas posições) que podem
ter da sua posição e da dos seus concorrentes, em função das
suas inform ações e estruturas cognitivas.
O espaço de m anobra deixado às estratégias dependerá da
estrutura do cam po, caracterizada, por exem plo, por um nível mais
ou m enos elevado de concentração do capital (que pode variar
desde o quase m onopólio - de que analisei um exem plo no ano
passado a propósito da A cadem ia de Belas-Artes na época de M anet
- até a um a distribuição quase igual entre todos os concorrentes);
m as organizar-se-á sem pre em redor da oposição principal entre
os dom inantes (a que os econom istas por vezes cham am fir s t
m overs , ilustrando as oportunidades de que dispõem ) e os dom i­
nados, os challengers. Os prim eiros estão em posição de impor,
geralm ente sem nada fazer para isso, a representação da ciência
m ais favorável aos seus interesses, ou seja, a form a «conveniente»,
legítim a, de jo g a r e as regras do jo g o , portanto da participação no
jogo. Estão com prom etidos com a estrutura consolidada do cam po
e são os defensores habituais da «ciência norm al» do m om ento.
D etêm vantagens decisivas na com petição, entre outras razões,
porque constituem um ponto de referência reconhecido pelos seus
concorrentes que, seja o que for que façam ou queiram , são obri­
gados a tom ar posição relativam ente a eles, activa e passivam ente.
A s am eaças que os challengers constituem obrigam -nos a um a
vigilância constante e só podem m anter a sua posição através de
um a inovação perm anente.
A s estratégias e as suas hipóteses de sucesso dependem da
posição ocupada na estrutura. E podem os perguntar-nos com o
são possíveis verdadeiras transform ações do cam po, um a vez que
as forças do cam po tendem a consolidar as posições dom inantes
- sugerindo apenas que, tal com o no dom ínio da econom ia, as

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P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

m udanças no interior de um cam po são geralm ente determ inadas


por redefinições das fronteiras entre os cam pos, ligadas (com o
causa ou efeito) à irrupção de recém -chegados providos de novos
recursos. O que explica que as fronteiras do cam po sejam quase
sem pre questões de conflito no seio do cam po. (D arei m ais tarde
exem plos de «revoluções» científicas ligadas à passagem de um a
disciplina para outra.)
N ão quero concluir esta referência aos esquem as teóricos sem
m encionar que o próprio laboratório é um cam po (um subcam po)
que, em bora definido por um a determ inada posição na estrutura
do cam po disciplinar considerado no seu todo, dispõe de um a certa
autonom ia relativam ente às lim itações associadas a essa posição.
Enquanto espaço de jo g o específico, contribui para determ inar as
estratégias dos agentes, ou seja, o que está ou não ao seu alcance.
As estratégias de investigação dependem da posição ocupada no
subcam po constituído pelo laboratório, ou seja, m ais um a vez, da
posição de cada investigador na estrutura de distribuição do capital
nas suas duas variantes: a científica e a administrativa. É o que de­
m onstra de form a adm irável Terry Shinn (1988) na sua análise da
divisão do trabalho num laboratório de física ou o que deixa transpa­
recer a descrição que Heilbron e Seidel (1989) fazem do laboratório
de física de B erkeley e do conflito entre Oppenheim er e Lawrence.
Os estudos de laboratório tendiam a esquecer o efeito da posição
do laboratório num a estrutura; m as, além disso, há um efeito da
posição na estrutura do laboratório, de que o livro de H eilbron e
Seidel (1989) dá um exem plo típico com a história de um a p erso­
nagem cham ada Jean Thibaud: este jovem físico do laboratório de
Louis de B roglie inventa o m étodo do ciclotrão que to m a possível
a aceleração dos protões com um a pequena m áquina, m as não
tem os m eios suficientes para desenvolver o seu projecto e, sobre­
tudo, «não tinha ninguém com o Law rence para o apoiar», ou seja,
a estrutura de em presa e o director de em presa, personagem bi­
dim ensional, dotada de um a autoridade sim ultaneam ente científica
e adm inistrativa, capaz de criar o facto, o pressuposto, e de lhes
assegurar apoio social, por exem plo, garantindo postos de trabalho
aos jov en s investigadores.
Um M u n d o à P a r t e

E sta brev e referên cia pareceu -m e necessária, entre outras


razões, porque o m eu artigo foi bastante usado por outros, de forma
declarada ou d issim u la d a -u m a das form as m ais hábeis de ocultar
este uso consiste em acom panhá-lo com a crítica de um texto
im aginário a que se pode por vezes opor o m esm o que o próprio
texto criticado propunha. D arei apenas um exem plo, o de K arin
K norr-C etina, um a das prim eiras a inspirarem -se no m eu artigo,
que ela citava, de início, de form a m uito calorosa e, depois, de
m aneira cada vez m ais distante, até à crítica que vou analisar e na
qual já quase nada resta nem daquilo que eu dizia, nem do que ela
parecia ter entendido do texto: acusa o m odelo que eu proponho
de ser «perigosam ente próxim o do da econom ia clássica» e, mais
papista do que o papa, de não incluir um a teoria da exploração, por
ignorância da distinção entre scientists capitalists and scientists
workers; acusa-m e tam bém de fazer do agente «um m axim izador
consciente de lucros», por não saber «que os resultados não são
conscientem ente calculados» (num texto m ais antigo, ela dizia
exactam ente o contrário e invocava o hábito). Por fim, pensa que
se deve ver apenas um a «substituição de term os» na utilização de
capital simbólico em vez de «recognition» (Knorr-Cetina e Mulkay,
1983). [Esta crítica inscreve-se no âm bito de um a com pilação de
textos, produto típico de um a iniciativa académ ico-editorial que
v isa dar visibilidade a um conjunto de autores com a m esm a
orientação teórica: estes non books, com o apropriadam ente lhes
cham am os am ericanos, entre os quais se deve classificar tam bém
os m anuais, têm um a em inente função social; canonizam - por
vezes sob o nom e «fragm entos escolhidos» categorizam , distin­
guindo os subjectivistas e os objectivistas, os individualistas e os
holistas, distinções estruturantes, geradoras de (falsos) problem as.
D ever-se-ia analisar todos os instrum entos de conhecim ento, de
concentração e acum ulação do saber que, sendo tam bém instru­
m entos de acum ulação e concentração do capital académico, orien­
tam o conhecim ento em função de considerações (ou estratégias)
de poder académ ico, de controlo da ciência, etc. Deste m odo, os
dicionários - de sociologia, etnologia, filosofia, etc. - são geralmente
actos de violência na m edida em que perm item legislar parecendo

57
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

descrever; instrum entos de construção da realidade que fingem


registar, podem fazer existir autores ou conceitos que não existem,
gu ard ar silêncio sobre conceitos ou autores que existem , etc.
M uitas vezes, esquecem o-nos de que parte im portante das fontes
dos historiadores é produto deste tipo de trabalho de construção.]
Se m e alonguei um pouco sobre este com entário bastante cari­
catural, foi porque pude esclarecer algum as características da vida
da ciência tal com o se vê em universos em que se pode m anifestar
um elevado nível de incom preensão de trabalhos concorrentes sem,
ao m esm o tem po, se ser desconsiderado; foi tam bém porque esteve
na origem , com alguns outros escritos da m esm a fam ília, e do
m esm o calibre, de certo núm ero de m ás leituras do m eu trabalho
m uito difundidas no m undo das ciências da ciência.

1 .0 « O fíc io » d o C ie n tis ta

A noção de habitus é, talvez, particularm ente útil quando se


trata de com preen d er a lógica de um cam po com o o cam po
científico em que a ilusão escolástica se im põe com um a força
particular. Tal com o a ilusão do lector levava a apreender a obra
de arte com o opus operatum, num a «leitura» que ignora a arte
(no sentido de D urkheim ) com o «prática pura sem história», a
visão escolástica que parece im por-se m uito especialm ente em
m atéria de ciên cia im pede que se co nheça e se reco n h eça a
verdade da prática científica com o produto de um habitus científico,
de um sentido prático (de tipo m uito particular). Se há um lugar
onde se pode supor que os agentes agem de acordo com intenções
conscientes e calculadas, segundo métodos e programas consciente­
m ente elaborados, é certam ente o dom ínio científico. Esta visão
escolástica está na origem da visão logicista, um a das manifestações
m ais conseguidas do «scholastic bias »: exactam ente com o a teoria
iconológica ia buscar os seus princípios de interpretação à opus
operatum, à obra de arte consum ada, em vez de se fixar na obra
que se faz e no modus operandi, um a certa epistem ología logicista
constitui em verdade da prática científica um a norm a desta prática

58
Um M u n d o à P a r t e

retirada ex p o st da prática científica consum ada, ou, por outras


palavras, esforça-se por deduzir a lógica da prática dos produtos
logicam ente conform es do sentido prático.
R eintroduzir a ideia de habitus rem ete as práticas científicas,
não para o princípio de um a consciência cognitiva que age de
acordo com as norm as explícitas da lógica e do m étodo experi­
m ental, m as para a ideia de «ofício», ou seja, um sentido prático
dos problem as a tratar, das m aneiras adaptadas para os tratar, etc.
Para apoiar o que acabei de dizer, e para vos tranquilizar se pensam
que mais não faço do que aplicar à ciência a m inha visão da prática,
em relação à qual a prática científica podería constituir um a excep-
ção, invocarei a autoridade de um texto clássico e m uito citado de
M ichel Polanyi (1951) - é um tem a frequentem ente evocado e
podería citar m uitos outros autores - que relem bra que os critérios
de avaliação dos trabalhos científicos não podem ser com pleta­
m en te ex p licitad o s ( a rticu la ted ). H á sem pre um a dim ensão
implícita, tácita, um a sabedoria convencional envolvida na avaliação
dos trabalhos científicos. Este dom ínio prático é um a espécie de
«connaisseurship» (um a arte de conhecedor) que pode ser com u­
nicada pelo exem plo, e não através de preceitos (contra a m eto­
dologia), e que não é m uito diferente da arte de avaliar um bom
quadro ou de determ inar a sua época ou o autor, sem estar neces­
sariamente em posição de explicitar os critérios utilizados. «A prática
da ciência é um a arte» (Polanyi, 1951). Seja com o for, Polanyi não
é de m odo algum contrário à form ulação de regras de verificação
e refutação, de m edida ou objectividade, e aprova os esforços
para to m ar esses critérios tão explícitos quanto possível. [A refe­
rência à prática é geralm ente inspirada por um a vontade de denegrir
a intelectualidade, a razão. E isso não facilita a aquisição dos
instrum entos teóricos necessários para pensar a prática. A nova
sociologia da ciência sucum be m uitas vezes a esta tentação de
difam ação e p o d er-se-ia d iz e r- p en sem o s em P asteu r - que
nenhum cientista é grandioso para o sociólogo que o estuda. Se a
ciên cia social é tão arriscad a é p o rq u e os erros, com o dizia
Bachelard, tom am a form a de pares de posições com plem entares;
de tal m odo que nos arriscam os a escapar de um erro apenas para

59
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

cair noutro, tendo o logicism o com o contrapartida um a espécie de


«realism o» desencantado.]
M as tam bém nos podem os apoiar nos trabalhos da nova socio­
logia da ciência com o os de Lynch, que recorda a diferença que
há entre o que se diz da prática científica nos livros (de lógica ou
de epistem ología) ou nos relatórios pelos quais os cientistas dão
conta do que fizeram e aquilo que se faz realm ente nos laboratórios.
A visão escolástica da prática científica leva a produzir um a espécie
de «ficção». A s declarações dos investigadores confundem -se com
as dos artistas ou dos desportistas: afirm am à saciedade a dificul­
dade de explicar por palavras a prática e a form a de a adquirir.
Quando tentam exprim ir o que entendem por procedim ento correc­
to, invocam apenas a experiência anterior que perm anece im plícita
e fechada em si m esm a, e quando falam inform alm ente das suas
investigações, descrevem -nas com o um a prática que exige h abili­
dade, intuição e sentido prático, «um sexto sentido», coisas difíceis
de transcrever no papel e que só podem ser verdadeiram ente
com preendidas e adquiridas através do exem plo e do contacto
com pessoas com petentes. Invocam m uitas vezes - principalm ente
os alquim istas - a analogia com a cozinha e as suas receitas. E, de
facto, com o m ostra Pierre Lazlo (2000) que ilustra perfeitam ente
as afirm ações de Polanyi que citei, o laboratório de quím ica é um
lugar de trabalho m anual onde se fazem m anipulações, onde se
utilizam sistem as de esquemas práticos transponíveis para situações
h o m ó lo g a s e qu e se ap ren d e m p ro g re s s iv a m e n te seg u n d o
procedim entos laboratoriais. De form a geral, a com petência do
cientista é, em grande parte, com posta po r um a série de rotinas, a
m aioria delas m anuais - com o a transform ação em solução, a
extracção, a filtragem , a evaporação, etc. - que exigem destreza
e envolvem instrum entos delicados.
A prática é sem pre subestim ada e subanalisada, ao passo que,
para a com preender, é necessária m uita com petência teórica, m uito
m ais, paradoxalm ente, do que para com preender um a teoria. D eve
evitar-se reduzir as práticas à ideia que se tem quando delas só
existe um a experiência lógica. Ora, os cientistas não sabem neces­
sariam ente, por falta de um a teoria adequada da prática, investir

60
Um M u n d o à P a r t e

nas descrições das suas práticas a teoria que lhes perm itiría ter e
dar um verdadeiro conhecim ento dessas práticas.
A analogia que alguns analistas fazem entre a prática artística
e a prática científica não deixa de ter fundam ento, mas tem alguns
lim ites. O cam po científico é, tal com o outros cam pos, o lugar de
lógicas práticas, m as com a diferença de o habitus científico ser
um a teoria realizada, incorporada. U m a prática científica possui
todas as características reconhecidas às actividades m ais tipica­
m ente práticas, com o as actividades desportivas ou artísticas. M as
tal não im pede que seja tam bém , sem dúvida, a form a suprem a da
inteligência teórica: para parodiar a linguagem de H egel quando
fala da m oral, é «um a consciência teórica realizada», ou seja, in­
corporada, no estado prático. A actividade num laboratório é m uito
sem elhante à actividade num atelier de pintura, que dá lugar à
aprendizagem de toda um a série de esquem as e técnicas. M as a
especificidade do «ofício» do cientista decorre do facto de essa
aprendizagem ser a aquisição de estruturas teóricas extrem am ente
com plexas que podem , além disso, ser colocadas em fórm ulas,
especialm ente m atem áticas, e que se podem adquirir de m aneira
acelerada graças à form alização. A dificuldade da iniciação num a
qualquer prática científica (física quântica ou sociologia) advém
do facto de ser necessário fazer um duplo esforço para dom inar o
saber teoricam ente, m as de tal form a que esse saber passe real­
m ente p ara as práticas, na form a de habilidade, «golpe de vista»,
etc., e não fique no estado de m etadiscurso a propósito das práticas.
A «arte» do cientista está, com efeito, separada da «arte» do artista
p o r duas grandes diferenças: por um lado, a im portância do saber
form alizado que é dom inado no estado prático, graças principal­
m ente à form alização, e, po r outro, o papel dos instrum entos que,
com o dizia Bachelard, são saber form alizado feito coisa. Por outras
palavras, um m atem ático de vinte anos pode ter vinte séculos de
m atem ática no seu espírito, em parte porque a formalização perm ite
adquirir na forma de automatismos lógicos, que se tom aram automa­
tism os práticos, produtos acumulados de invenções não automáticas.
Em relação aos instm m entos é a m esm a coisa: para m anipular,
utilizam os instrum entos que são concepções científicas conden­

61
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

sadas e objectivadas num conjunto de aparelhos que funciona como


um obstáculo, e o domínio prático que Polanyi evoca traduz-se pela
assim ilação tão perfeita dos m ecanism os do instrum ento que nos
relacionam os intim am ente com ele, fazem os o que ele espera, é
ele que controla: é necessário ter assimilado m uita teoria e bastantes
procedim entos para estar à altura das exigências de um ciclotrão.
Tem os de nos deter por um m om ento na questão da relação
entre a prática e o m étodo que m e parece ser um a form a particular
da questão w ittgensteiniana de saber o que significa o facto de
«seguir um a regra». N ão se age de acordo com um m étodo, tal
com o não se segue um a regra, por um acto psicológico de adesão
consciente, m as essencialm ente deixando-se levar por um sentido
do jo g o científico que se adquire pela experiência prolongada do
jo g o científico tanto com as suas regularidades com o com as
suas regras. R egras e regularidades que são perm anentem ente
lem bradas, quer através de form ulações expressas (as regras que
regem a apresentação de textos científicos, por exem plo), quer
através dos índices inscritos no próprio funcionam ento do cam po
e m uito especialm ente nos instrum entos (entre os quais se devem
contar as ferram entas m atem áticas) que exigem a destreza do
cientista experiente.
U m cientista é a m aterialização de um cam po científico e as
suas estruturas cognitivas são hom ólogas à estrutura do cam po e,
por isso, constantem ente ajustadas às expectativas inscritas no
cam po. A s norm as e princípios, que determ inam , se quiserm os, o
com portam ento do cientista, só existem enquanto tal - ou seja,
enquanto instâncias eficientes, capazes de orientar a prática dos
cientistas no sentido da conformidade às exigências de cientificidade
- porque são entendidas por cientistas fam iliarizados com elas, o
que os torna capazes de as perceber e apreciar, e ao m esm o tem po
dispostos e aptos a cum pri-las. Em sum a, as norm as só os con­
dicionam porque eles se propoem a cum pri-las por um acto de
conhecim ento e reconhecim ento prático que lhes confere eficácia
ou, por outras palavras, porque estão dispostos (ao fim de um
trabalho de socialização específica) de tal m aneira que são sensíveis
às directrizes que elas encerram e estão preparados p ara lhes

62
Um M u n d o à P a r t e

responder de form a sensata. P ercebe-se que seria, certam ente,


inútil perguntar, nestas condições, onde está a causa e onde está o
efeito e se será m esm o possível distinguir as causas da acção e as
razões de agir.
D evem os agora retom ar as análises de Gilbert e M ulkay (1984)
que descrevem as tentativas dos cientistas de fazer apresentações
num a linguagem «form al», conform e às regras de apresentação
em vigor e à ideia oficial da ciência. N este caso, é provável que
tenham consciência de obedecer a um a norm a e podem os, sem
dúvida, falar de um a verdadeira intenção de seguir a regra. M as
será que não obedecem tam bém à preocupação de se regulariza­
rem ? O u seja, de preencher conscientem ente a distância entre a
regra com preendida com o tal e a prática que exige, precisam ente
pela sua não conform idade com a regra, o esforço explícito neces­
sário para a «regularizar»?
Em resum o, o verdadeiro princípio das práticas científicas é
um sistem a de disposições base, em grande parte inconscientes,
transponíveis, que tendem a generalizar-se. Este habitus assum e
form as específicas segundo as especialidades: as passagens de
um a disciplina para outra, da física para a quím ica, no século XIX,
da física para a biologia, actualm ente, dão a perceber as diferenças
entre esses sistem as; os contactos entre ciências, que, tal com o os
contactos entre civilizações, possibilitam a explicitação das dis­
posições implícitas, especialmente nos grupos interdisciplinares que
se constituem em redor de um novo objecto, poderíam ser um
terreno privilegiado de observação e objectivação destes esquemas
práticos. [Os confrontos entre especialistas de disciplinas, portanto,
de form ações diferentes, devem m uitas das suas características -
efeitos de dom ínio, m ás interpretações, etc. - à estrutura do capital
detido por uns e outros: nas equipas que reúnem físicos e biólogos,
os prim eiros, por exem plo, dispõem de forte com petência m atem á­
tica, os segundos de m aior com petência específica, sim ultanea­
m ente m ais livresca e prática, m as a relação, até então favorável
aos físicos, volta-se cada vez m ais a favor dos biólogos que, m ais
ligados à econom ia e à saúde, colocam em jo g o m uitos problem as
novos. Pelo contrário, a unidade de um a disciplina encontra, sem

63
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

dúvida, a sua base m ais sólida na distribuição quase hom ogénea


dos capitais detidos pelos diferentes membros, mesm o que possam
existir diferenças secundárias, com o a que separa os teóricos e os
empiristas.]
Estes sistem as de disposições variam conform e as disciplinas,
m as tam bém conform e princípios secundários com o os trajectos
escolares ou até sociais. Por conseguinte, pode supor-se que os
habitus são princípios de produção de práticas diferenciadas de
acordo com variáveis de género, origem social, certam ente de
nação (através da form ação escolar), e que, m esm o tratando-se
de disciplinas de grande capital científico colectivo acum ulado,
com o a física, poder-se-ia encontrar um a relação estatística inte­
ligível entre as estratégias científicas dos diferentes cientistas e as
propriedades de origem social, trajecto, etc. [De passagem , vemos
que a noção de habitus pode ser entendida, em sim ultâneo, como
princípio geral da teoria da acção - por oposição aos princípios
invocados por um a teoria intencionalista - e com o princípio espe­
cífico, diferenciado e diferenciador, de orientação das acções de
um a categoria particular de agentes, ligado a condições particulares
de form ação.]
P or conseguinte, há habitus disciplinares (que, estando ligados
à form ação escolar, são com uns a todos os produtos do mesmo
m odo de geração) e habitus particulares ligados ao trajecto (fora
do cam po - origem social e escolar - e no cam po) e à posição no
cam po. [Sabe-se, por exem plo, que, apesar da autonom ia ligada
ao capital colectivo, a orientação para esta ou aquela disciplina, ou
nesta disciplina, para esta ou aquela especialidade, ou, nesta espe­
cialidade, para este ou aquele «estilo» científico, não é independente
da origem social, e a hierarquia social das disciplinas não deixa de
ter relação com a hierarquia social das origens.] N ão há dúvida de
que se pode distinguir fam ílias de trajectos com, principalm ente, a
oposição entre, por um lado, os centrais, os ortodoxos, os conti­
nuadores, e, por outro, os m arginais, os heréticos, os inovadores
que se situam geralm ente nas fronteiras da sua disciplina (que por
vezes atravessam ) ou que criam novas disciplinas na fronteira de
vários cam pos.

64
Um M u n d o à P a r t e

D edicar-m e-ei, com m uitas hesitações, a um exercício m uito


arriscado: tentar caracterizar dois habitus científicos e relacioná-
-los com os trajectos científicos correspondentes. Isto sobretudo
para dar um a ideia, ou um program a, daquilo que um a sociologia
aperfeiçoada da ciência deveria fazer. Se surgisse a suspeita de
um a di ferença entre cientistas que trabalham em dom ínios em que
o capital colectivo acum ulado e o trabalho de form alização são
muito importantes e que dispõem inicialm ente de um capital escolar
quase sem elhante - como Pierre-Gilles de Gennes e Claude Cohen-
-Tannoudji, am bos adm itidos quase sim ultaneam ente na Ecole
nórm ale supérieure e laureados, cinquenta anos m ais tarde, pelo
jú ri do prêm io N obel - , poderiam os concluir que o habitus social
(fam iliar), no plano escolar e científico, tem um a certa relevância.
[Pode encontrar-se um estudo com parativo entre Pierre-G illes de
Gennes e C laude Choen-Tannoudji no livro de A natole Abragan,
De la physique avant toute chose? —2001.] Parece-m e evidente
que o facto de se explicar parcialm ente as estratégias científicas
através das variáveis sociais não reduziría em nada a validade das
obras científicas. N ão possuo toda a inform ação que seria neces­
sária para elaborar rigorosam ente a com paração das duas obras e
lim ito-m e a opor dois «estilos», revelados através de indícios, sem
dúvida, grosseiros, e a relacioná-los com indícios, não menos gros­
seiros, da pertença e do trajecto social, aristocrático, de um lado,
pequeno-burguês, do outro. Enquanto C laude Cohen-Tannoudji
perm anece na ENS e continua u m a (grande) tradição - a física
atóm ica - , Pierre-G illes de G ennes tro ca a ENS por áreas de inte­
resse no lim ite da física e da quím ica, a m atéria condensada, com
a física da supercondutividade que, na época, era tam bém um
dom ínio nobre, depois evolui para a m atéria mole, cristais líquidos,
polím eros, em ulsões, dom ínio um p ou co m arginal, que pode ser
considerado m enos importante. D e um lado, a v ia academicam ente
m ais nobre, m as tam bém a m ais difícil, em que se concentram as
questões m aiores e os concorrentes m ais tem íveis e que culminará,
após grandes descobertas, com o a condensação de Bose-Einstein
que relança este tem a, num grande M anuel de physique quanti-
que , considerado a bíblia da disciplina; e do outro, um a via m ais

65
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

arriscada, m enos académ ica e m ais próxim a das aplicações e das


em presas (com os polím eros, questões industriais e económ icas).
D ois trajectos, portanto, que surgem com o a projecção de dois
tipos diferentes de disposições, de relações com o m undo social e
com o m undo universitário.
Para com preender com o as origens sociais, portanto, as dis­
posições que se exprim em - audácia, elegância, desem baraço ou
seriedade, convicção e investim ento - , se retraduzem progressiva­
m ente nesses trajectos, dever-se-ia exam inar, por exem plo, se a
im agem reverberada que um certo habitus reflecte nas regiões
onde se encontra não terá contribuído, nos dois casos, para encorajar
aquelas disposições. O habitus, com o repeti inúm eras vezes, não
é um destino e nenhum dos diversos factores que enum erei estão
inscritos, ab ovo, no habitus original. U m a postura que poderia
ser vista com o leviandade superficial («será realm ente sério?»)
pode ser tam bém vista com o um desem baraço prom etedor se tiver
encontrado, de algum a maneira, o seu «lugar natural», ou seja, um a
região do cam po ocupado por pessoas predispostas, devido à suas
posições e habitus, a apreender positivam ente e a apreciar favo­
ravelm ente os com portam entos em que esse habitus se m ostra,
se revela (em parte, tam bém a si m esm o) e, por isso, predispostas
a reforçá-lo, confirm á-lo e conduzi-lo assim ao pleno desenvolvi­
m ento, ou seja, ao estilo particular que se caracteriza, por exem plo,
pela econom ia de m eios, a elegância conceptual, etc. O habitus
m anifesta-se continuam ente nos exam es orais, nas exposições em
sem inários, nos contactos com os outros e, m ais sim plesm ente, no
aspecto físico, um porte, um a postura, que é a sua transcrição m ais
directam ente visível, e a recepção social dada a esses sinais visíveis
reenvia à pessoa em causa um a im agem de si m esm a que faz com
que se sinta ou não autorizada e encorajada nas suas disposições,
que, em outros, poderíam ser desencorajadas ou interditas.
Pretendi fazer este exercício na esperança de p oder um dia
continuá-lo, com a colaboração dos investigadores interessados,
ou que outros o levem a bom term o. Teria de se fazer um a pesquisa
sistem ática que im plicaria a colaboração de investigadores em
ciências da natureza e em ciências sociais, e um a das principais

66
Um M u n d o à P a r t e

funções do sociólogo, neste caso, consistiría em auxiliar os investi­


gadores no trabalho de explicitação dos esquem as práticos que
estiveram na origem de escolhas decisivas, escolha de tal disciplina,
de tal especialidade, de tal laboratório, de tal revista; este trabalho
de explicitação, m uito difícil para os am adores por conta própria,
seria facilitado por um a utilização m etódica da com paração, que
ganharia toda a sua força se, na base de um a análise das correspon­
dências m últiplas, fosse possível levá-la à escala da totalidade do
cam po, com os pontos m ais afastados, m as tam bém , e sobretudo,
os m ais próxim os.

2 . A u to n o m ia e R e q u is ito s d e A d m is s ã o

C om eçarei por recordar alguns pontos do artigo antigo (Bour-


dieu, 1975a), que dizia o essencial, m as num a form a elíptica, para
m ostrar que a noção de cam po é útil, talvez, principalm ente, pelos
erros que perm ite evitar, especialm ente na construção do objecto
e tam bém pelo facto de perm itir resolver algum as dificuldades
encontradas pelas outras abordagens, e tentarei, por outro lado,
integrar alguns dados das teorias recentes e clarificar novas implica­
ções do m odelo antigo fornecendo-lhe com plementos e correcções.
Gostaria de mostrar, em prim eiro lugar, com o a noção de cam po
perm ite rom per com pressupostos tácitam ente aceites pela m aioria
dos que se interessam pela ciência. Prim eiras rupturas im plicadas
n a noção de cam po: a contestação da ideia de ciência «pura»,
totalm ente autónom a e que se desenvolve segundo a sua lógica
interna, e tam bém da ideia de «com unidade científica», noção
considerada evidente e que se tom ou, pela lógica dos automatismos
verbais, um a espécie de designação forçada do universo científico.
M erton orquestra a ideia de «com unidade» com o tem a do «com u­
nism o» dos cientistas e o livro de W arren H agstrom (1965) define
a com unidade científica com o um «grupo cujos m em bros estão
unidos por um objectivo e por um a cultura comuns». Falar de campo
significa rom per com a ideia de que os cientistas form am um grupo
unificado ou até hom ogéneo.

67
P a r a u ma S o c i o l o g í a d a C iê n c ia

A ideia de cam po leva, ao m esm o tem po, a pôr em causa a


visão irenista do m undo científico, a de um m undo de trocas gene­
rosas em que todos os investigadores colaboram p ara um m esm o
fim . E sta visão idealista que descreve a prática com o produto da
subm issão voluntária a um a norm a ideal é contradita pelos factos:
o que se observa são conflitos, po r vezes ferozes, e com petições
no interior de estruturas de dom ínio. A visão «com unitarista»
esquece-se do próprio fundam ento do funcionam ento do m undo
científico com o universo de disputas pelo «m onopolio da m anipu­
lação legítim a» dos bens científicos, ou seja, m ais exactam ente, do
bom m étodo, bons resultados, boa definição dos fins, objectos e
m étodos da ciência. E, com o se percebe quando Edw ard Shils
nota que, na «com unidade científica», cada elem ento da tradição
científica está sujeito à avaliação crítica, esta visão é assim levada
a descrever com o efectivação voluntária e subm issão deliberada
a urna norm a ideal aquilo que é produto da submissão a mecanismos
objectivos e anónim os.
A noção de cam po destrói tam bém todo o tipo de oposições
com uns, a com eçar pela oposição entre consenso e conflito e,
em bora acabe com a visão ingenuam ente idealista do m undo
científico com o com unidade solidária ou com o «reino dos fins»
(no sentido de Kant), opõe-se à visão muito parcial da vida científica
com o «guerra», bellum omnium contra omnes, que os próprios
cientistas por vezes evocam (quando, por exem plo, caracterizam
alguns deles com o «assassinos»): os cientistas têm em com um
características que, em certos aspectos, os unem e, noutros aspec­
tos, os separam , os dividem , os opõem - fins, por exem plo, m esm o
os m ais nobres, com o encontrar a verdade ou com bater o erro - e
tam bém tudo o que determ ina e possibilita a com petição, com o
um a cultura com um , que tam bém é um a arm a nas lutas científicas.
Os investigadores, tal com o os artistas e os escritores, estão unidos
pelas lutas que os opõem , e as próprias alianças que os podem unir
têm sem pre algo que ver com as posições que ocupam nessas lutas.
Seja com o for, a noção de «com unidade» designa outro aspecto
im portante da vida científica: todos os que estão envolvidos num
cam po científico podem , em certas condições, dotar-se de instru­

68
Um M u n d o à P a r t e

m entos que lhes perm item funcionar com o com unidades e que
têm com o função oficial professar a salvaguarda dos valores ideais
da profissão de cientista. São as instituições científicas, as institui­
ções de defesa «corporativas», de cooperação cujo funcionamento,
com posição social, estrutura organizacional (direcção, etc.) devem
ser com preendidas em função da lógica de cam po; há tam bém
todas as formas organizacionais que estruturam de modo duradouro
e perm anente a prática dos agentes e das suas interacções, com o
o CNRS ou o laboratório, e é necessário obter os m eios de estudar
essas instituições, sabendo bem que não contêm o princípio da sua
própria com preensão e que, para as entender, é preciso com pre­
ender a posição dos seus participantes no cam po. U m a associação
disciplinar (Sociedade Francesa de Biologia) poderá contribuir para
fazer funcionar, no seio do cam po disciplinar, algo com o um a co­
m unidade que gere parte dos interesses com uns apoiando-se nos
interesses e cultura com uns, para funcionar. M as, para com pre­
ender com o funciona, seria necessário tom ar em consideração as
posições ocupadas no cam po por aqueles que fazem parte dela e
que a dirigem . Poderiam os assim observar que alguns encontram
na pertença a essas instituições e na defesa dos interesses com uns
recursos que não lhes são fornecidos pelas leis de funcionam ento
do cam po científico; tudo isto em ligação com a existência de dois
princípios de dom ínio no cam po científico, tem poral e intelectual:
os poderes tem porais estão norm alm ente do lado da lógica com uni­
tária, ou seja, da gestão dos assuntos com uns, do consenso mínimo,
dos interesses com uns mínimos, coloquios internacionais, relações
com o estrangeiro ou, em caso de conflito grave, a defesa dos
interesses colectivos.
A m aioria dos analistas ignora a autonom ia relativa do cam po e
coloca o problem a do constrangim ento exercida sobre o cam po
(pela religião ou pelo Estado), das regras im postas pela força.
Barnes tenta «exorcizar» a ideia de autonom ia da ciência: rejeita a
ideia segundo a qual a ciência se distingue das outras form as de
cultura com o pura e « undistorted », ou seja, autónom a; pretende
fundar um a sociologia que se aplique tanto às crenças verdadeiras
com o às falsas enquanto produtos de forças sociais (Barnes, 1974),

69
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

D e facto, o cam po está sujeito a pressões (exteriores) e é habitado


por tensões, entendidas com o forças que agem de m odo a afastar,
a separar as partes constitutivas de um corpo. D izer que o cam po
é relativam ente autónomo a respeito do universo social circundante,
significa que o sistem a de forças constitutivas da estrutura do cam po
(tensão) é relativam ente independente das forças que se exercem
sobre o cam po (pressão). Dispõe, de algum a forma, da «liberdade»
n ecessária p ara desenvolver a sua própria necessidade, a sua pró­
pria lógica, o seu próprio nomos.
U m a das características que m ais diferencia os cam pos é o
grau de autonom ia e, ao m esm o tem po, a força e a form a do
requisito de admissão im posto aos recém -chegados. Por exem plo,
sabem os que o cam po literário se caracteriza relativam ente aos
outros cam pos, o cam po burocrático, científico ou jurídico, pelo
facto de, nele, o requisito de adm issão avaliado em termos escolares
ser m uito fraco. (Quando nos interrogam os acerca da cientificidade
de um cam po, referim o-nos a propriedades que têm todas a ver
com o grau de autonom ia. Por exem plo, as ciências sociais têm de
contar incessantem ente com forças externas que travam de form a
constante a «descolagem ».)
P or conseguinte, vou tentar descrever esta autonomia, posterior­
m ente a lógica e os factores do processo de autonom ização e, por
fim, tentarei analisar em que consiste, neste caso particular, o requi­
sito de adm issão. A autonom ia não é um dado, m as um a conquista
histórica, sem pre renovada. Esquecem os isto facilm ente no caso
das ciências da natureza, porque a autonom ia está inscrita, em si­
m ultâneo, na objectividade das estruturas do cam po e tam bém nas
m entes, n a form a de teorias e m étodos incorporados que voltaram
ao estado prático.
A autonom ia, tanto neste cam po com o em todos os outros, foi
conquistada a pouco e pouco. Iniciada por C opém ico, a revolução
científica concluiu-se, segundo Joseph Ben-D avid, com a criação
da Royal Society em Londres: «O objectivo institucional desta revo­
lução - fazer da ciência um a actividade intelectual distinta, contro­
lada apenas pelas suas próprias norm as - foi alcançado no século
X V II» (B en-D avid, 1997: 280). Entre os factores deste processo,

70
Um M u n d o à P a r t e

um dos m ais im portantes, que foi evocado por K uhn num dos
seus textos reunidos em La Tensión essentielle (K uhn, 1977),
«M athem atical versus experim ental tradition», é am atem atização.
E Yves G in g ras, num artig o in titu lad o « M ath ém atisatio n et
exclusión, socioanalyse de la form ation des cités savants» (Gingras,
2002), m ostra que a m atem atização está na origem de vários
fenóm enos convergentes que tendem a reforçar a autonom ia do
m undo científico e, em particular, da física (não é certo que este
fenóm eno exerça sem pre e em toda a parte os m esm os efeitos,
em particular nas ciências sociais).
A m atem atização produz, em prim eiro lugar, um efeito de
exclusão do cam po da troca de idéias (Yves Gingras lem bra as
resistências ao efeito de exclusão provocado pela m atem atização
da física - por exem plo, o abade N ollet «reivindica o direito de
propor a sua opinião»): com Newton (ao qual acrescentaria Leibniz),
a m atem atização da física tende progressivam ente, a p artir de
m eados do século X VIII, a instaurar um profundo fosso entre os
profissionais e os am adores, a separar os insiders e os outsiders ;
o dom ínio das matemáticas (adquirido na altura da formação) tom a-
-se condição de adm issão e reduz o núm ero não só dos leitores
mas tam bém dos produtores potenciais (o que, como verem os, tem
enorm es consequências). «As fronteiras do espaço são lentam ente
redefinidas de tal m odo que os leitores potenciais estão cada vez
m ais lim itados aos contribuidores potenciais dotados da m esm a
form ação. P or outras palavras, a m atem atização contribui para a
form ação de um cam po científico autónom o» (Gingras, 2001).
É assim que Faraday sofre o efeito de exclusão das m atem áticas
de M axw ell. O fosso im plica o fecham ento sobre si, que produz a
censura. C ada um dos investigadores inseridos no cam po está
sujeito ao controlo de todos os outros e, em particular, dos seus
concorrentes m ais com petentes, tendo, por consequência, um con­
trolo m uito m ais forte do que as m eras virtudes individuais ou todas
as deontologias.
A segunda consequência da m atem atização é a transform ação
da ideia de explicação. É através do cálculo que o físico explica o
m undo, que engendra as explicações que depois tem de confrontar

71
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

pela experim entação com as coisas previstas tal com o o dispositivo


experim ental perm ite com preendê-las. Se K uhn tivesse construído
o seu m odelo de revolução apoiando-se, não no caso da revolução
copernicana, com o fez, m as no caso da revolução new toniana,
teria visto queN ew to n foi o prim eiro a fornecer explicações m ate­
m áticas que im plicavam um a m udança da teoria física: sem tom ar
necessariam ente posição sobre a ontologia correspondente (evi­
dentem ente, pode falar-se de acção à distância, etc.), substituiu a
explicação através do contacto m ecânico (com o em D escartes ou
L eibniz) p o r u m a explicação m atem ática, o que im plica um a
redefinição da física.
Isto leva a um terceiro efeito da m atem atização, que pode ser
designado por dessubstanciação, segundo as análises de C assirer
em Substance et Fonction, a que tam bém se refere G ingras: a
ciência m oderna substitui as substâncias aristotélicas pelas relações
funcionais, pelas estruturas, e é a lógica da m anipulação dos sím ­
bolos que guia o físico a conclusões necessárias. A utilização de
form ulações m atem áticas abstractas enfraquece a tendência para
conceber a m atéria em term os substanciais e leva a destacar os
aspectos relacionais. P enso aqui num livro de M ichel B itbol,
M écanique quantique (1996), que perm ite com p reen d er este
processo de dessubstanciação da física pelas m atem áticas e, m ais
precisam ente, pelo cálculo de probabilidades que funciona com o
um «sim bolism o de previsão» (Bitbol, 1996: 141). O cálculo de
probabilidades perm ite prever m edições posteriores a partir dos
resultados das m edições iniciais. Bitbol, que se situa n a tradição
de Bohr, evita todas as referências a um qualquer real, a qualquer
afirm ação ontológica acerca do m undo: «o que se m ede com os
instrum entos» serve de base p ara experiências que p erm item
prever m edições. A epistem ología não tem de tom ar posição sobre
a realidade do m undo; lim ita-se a tom ar posição sobre a previsi­
bilidade das m edições possibilitadas pela utilização do cálculo de
probabilidades baseado em m edições anteriores. O cálculo de
probabilidades ou o form alism o dos espaços de H ilbert, afirm a
ainda B itbol, são um m eio de com unicação entre os físicos «que
perm ite dispensar o conceito de um sistem a físico sobre o qual se

72
Um M u n d o à P a r t e

deveria efectuar a m edição» (B itbol, 1996: 142). [Não há dúvida


de que se poderia ver na evolução da noção de cam po um exem plo
deste processo de «dessubstanciação»: com, num a prim eira etapa,
os cam pos estáticos clássicos - cam po electrostático ou cam po
gravitacional - , que são entidades subordinadas às partículas que
os engendram , ou seja, descrições possíveis, não obrigatórias, da
interacção de partículas; depois, segunda etapa, os cam pos dinâ­
m icos clássicos - cam po electrom agnético —, em que o cam po
tem um a existência própria e pode subsistir após o desaparecimento
das partículas; por fim , terceira etapa, os cam pos quânticos, a
electrodinám ica quântica, em que o sistem a de cargas é descrito
por um «operador de cam po».]
O p ro cesso de au to n o m ização que daí resu lta efectiva-se
tam bém na objectividade do m undo social, em especial através da
criação dessas realidades absolutam ente extraordinárias (não o
vem os porque estam os habituados a isso) que são as disciplinas. A
progressiva institucionalização na universidade destes universos
relativam ente autónom os é o produto de conflitos que visam im por
a existên cia de novas entidades e das fronteiras destinadas a
delim itá-los e protegê-los (aquilo que está em causa nos conflitos
é geralm ente o m onopólio de um nom e, com todo o tipo de conse­
quências, linhas orçam entais, cargos, créditos, etc.). Yves Gingras,
num livro intitulado Physics and the Rise o f Scientific research
in Canada (G ingras, 1991), distingue no desenvolvim ento de um
cam po científico, em prim eiro lugar, a em ergência de um a prática
de investigação, ou seja, de agentes cuja prática assenta m ais na
investigação do que no ensino, e a institucionalização da investi­
gação na universidade através da criação de condições favoráveis
à produção do saber e à reprodução a longo prazo do grupo; em
segundo lugar, a constituição de um grupo reconhecido com o
socialm ente distinto e de um a identidade social, quer disciplinar,
através da criação de associações científicas, quer profissional,
através da criação de um a corporação: os cientistas dotam -se de
representantes oficiais que lhes dão visibilidade social e que defen­
dem os seus interesses. Este últim o processo não pode ser descrito
sim plesm ente com o «profissionalização»: de facto, lidam os com

73
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

duas práticas da física, um a confinada à universidade, a outra aberta


aos m eios industriais, em que os físicos estão em com petição com
os engenheiros; de um lado, a construção de um a disciplina cientí­
fica, com as suas associações, reuniões, revistas, m edalhas e repre­
sentantes oficiais, e, do outro, a delim itação de um a «profissão»
que m onopoliza o acesso aos títulos e aos cargos correspondentes.
Esquecem os m uitas vezes a dualidade do m undo científico, com,
de um lado, os investigadores, ligados à universidade, e, do outro, o
corpo dos engenheiros que se dota das suas próprias instituições,
caixas de aposentação, associações, etc. D este m odo, na Grã-
-Bretanha, durante a Prim eira G uerra M undial, os físicos com eça­
ram a preocupar-se com o estatuto social e tom aram -se conscientes
da sua não existência social: criam um a organização representativa
- The Institute o f Physics - e im põem um a visão segundo a qual a
investigação é parte integrante das funções da universidade.
O processo de autonom ização está ligado ao estatuto do requi­
sito de admissão explícito ou im plícito. O requisito de adm issão é
a com petência, o capital científico incorporado (por exemplo, como
v im os, o co n h ecim en to da m atem ática que é cada v ez m ais
im perativam ente exigido), que se tornou o sentido do jogo, m as é
tam bém a apetência, a libido scientifica, a illusio, crença não só
naquilo que está em jogo, mas tam bém no próprio jogo, ou seja, no
facto de o jo g o valer a pena ser jogado. Sendo produto da educação,
a com petência e a apetência estão estatisticam ente ligadas porque
se form am correlativam ente (em especial, durante a form ação).
Em prim eiro lugar, a com petência: não se trata apenas do dom í­
nio dos conhecim entos, dos recursos acum ulados no cam po (m ate­
m áticos principalm ente), é o facto de ter incorporado, transform ado
em sentido prático do jogo, convertido em reflexos, o conjunto dos
recursos teórico-experim entais, ou seja, cognitivos e m ateriais
oriundos de investigações anteriores (a «tensão essencial» de que
fala Kuhn está inscrita no facto de a tradição que deve ser dom inada
para entrar no jogo ser a própria condição da ruptura revolucionária).
O requisito de adm issão é, portanto, a com petência, m as um a
com petência com o recurso teórico-experim ental m aterializado,
tornado sentido do jogo ou habitus científico como dom ínio prático

74
Um M u n d o à P a r t e

de vários séculos de investigações e de dados da investigação -


na forma, por exem plo, de um sentido dos problem as im portantes,
interessantes ou de um arsenal de esquem as teóricos e experi­
m entais que se podem aplicar, por transferí, a novos dom ínios.
A quilo que as taxinom ias escolares descrevem através de toda
um a série de oposições que se resum em na distinção entre o
brilhantismo, o desembaraço, a facilidade e a correcção, o laborioso,
o escolar, é a relação de ajustam ento perfeito às expectativas-
-im posições de um cam po, que exige não só saberes m as um a
relação com o saber capaz de fazer esquecer que o saber teve
de ser adquirido, aprendido (isto sobretudo no universo literário)
ou de atestar que o saber está tão perfeitam ente dom inado que se
tom ou automatismo natural (por oposição às competências livrescas
do estudioso com a cabeça cheia de fórm ulas que não sabe utilizar
face a um problem a real). Em sum a, aquilo que o cam po científico
exige é um capital assim ilado de tipo particular, e em especial todo
um conjunto de recursos teóricos de âm bito prático, de sentido
prático (ou de «olho», como se diz no caso das disciplinas artísticas,
ou, com Everett Hughes, ao falar de «olho sociológico», da própria
sociologia).
C ada disciplina (com o cam po) é definida por um nomos parti­
cular, um princípio de visão e divisão, um princípio de construção
da realidade objectiva irredutível ao de outra disciplina - segundo
a fórm ula de Saussure: «o ponto de vista cria o objecto» (o carácter
arbitrário deste princípio de constituição que é constitutivo do «olho
disciplinar» resum e-se no facto de se enunciar, em geral, na form a
de tautologías, com o por exemplo, na sociologia, «explicar o social
pelo social», ou seja, explicar sociologicam ente as coisas sociais).
C hegam os à segunda dim ensão do requisito de adm issão, a
illusio, a crença no jo g o , que im plica, entre outras coisas, a sub­
missão sem obrigação ao imperativo do desinteresse. Steven Shapin,
autor, com Sim ón Schaffer, do livro sobre a bom ba de ar, m ostra
que o nascim ento do cam po coincide com a invenção de um a
nova crença (Shapin e Schaffer, 1985). De início, as experiências
eram feitas nos «public rooms» das residências privadas de gen-
tlemen, U m conhecim ento é considerado autêntico, autentificado,

75
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

hom ologado, quando acede ao espaço público, m as um espaço


público de tipo particular: é a condição de gentleman que funda a
validade das testem unhas, logo a reliability e a objectividade do
conhecim ento experimental; isto porque a supomos livre de qualquer
ganho (ao contrário dos criados, que tam bém podem assistir às
experiências, os gentlemen são independentes da autoridade e do
dinheiro, autónomos). O testemunho válido é um compromisso entre
h o m en s de h o n ra, ou seja «entre hom ens indepen d en tes que
estudam livrem ente fenóm enos experim entais e que criam o facto
com provado». O s experim ental triáis m arcam a p assagem do
espaço privado (as residências nobres tinham as suas divisões
públicas e privadas) para o espaço público das A cadem ias e, ao
m esm o tem po, da ideia para a concretização. D este m odo, a legiti­
m idade do conhecim ento depende de um a presença pública em
certas fases da produção do conhecim ento.
M as tam bém gostaria de evocar aqui um artigo que M ario Biagioli
(1998), autor de belíssim os trabalhos sobre Galileu, consagra aos
efeitos da pressão das exigências externas que, em certos dom ínios
de investigação, am eaça a actividade desvinculada dos cientistas
ou, m elhor, a preferência específica pela actividade desvinculada
(com o se vê no dom ínio da bio-m edicina em que, devido à im por­
tância dos aspectos económ icos e sob a pressão de um am biente
com petitivo e em presarial , se assiste a um a inflação da multiau-
thorship e ao desenvolvim ento de um ethos capitalista). B iagioli
descobre a tensão entre o carácter desvinculado da actividade
que é im posto pelas censuras cruzadas que o cam po exerce sobre
cada um dos que nele estão envolvidos (estar num cam po científico
é estar situado em condições em que se tem vantagem em m anter
um a actividade exterior a qualquer vínculo, especialm ente porque
este desprendim ento é recom pensado) e um a forte exigência social,
econom icam ente sancionada, que apela a concessões. B iagioli
insiste no facto de, no dom ínio científico, haver um a diferença
entre a «lei da propriedade intelectual» ( intellectualproperty law)
e o sistem a de recom pensas da ciência ( the rew ard system o f
Science ) tal com o o descrevi na m inha análise do capital simbólico:
«um a descoberta sensacional que pode m erecer um prêm io N obel

76
Um M u n d o à P a r t e

não pode traduzir-se [...] num a patente ou num copyright ». O


prêm io do «crédito científico» não é o dinheiro, mas as recompensas
asseguradas pela avaliação dos pares, reputação, prêm ios, cargos,
participação em sociedades. Este «crédito honorífico» ( honorific
credit) é pessoal e intransm issível (propriedade privada, não pode
ser transm itido por contrato ou por testam ento: não posso legar o
m eu capital sim bólico a ninguém). Está ligado ao nom e do cientista
e é construído com o não m onetário. Em suma, aquilo que produz a
virtude científica é um a certa disposição socialm ente constituída,
em relação a um cam po que recom pensa a livre investigação e
sanciona as falhas (principalm ente as fraudes científicas).
Em geral, o desinteresse pelo lucro não é de m odo algum o
produto de um a espécie de «geração espontânea» ou um a dádiva
da natureza: pode afirm ar-se que, no estado actual do cam po
científico, é produto da acção do sistem a escolar e da fam ília, o
que faz dele um a disposição parcialm ente hereditária. Verifica-se
tam bém que quanto m ais observam os as instituições escolares
que preparam para as carreiras m enos lucrativas, com o as carreiras
científicas - a Ecole nórm ale supérieure, por exemplo, por oposição
à Ecole polytechnique, à Ecole nationale d ’adm inistration ou à
Ecole des hautes études com m erciales —, m aior é o núm ero de
alunos oriundos de fam ílias que pertencem ao universo escolar e
científico.
H á um a espécie de am biguidade estrutural do cam po científico
(e do capital sim bólico) que poderia ser o princípio objectivo da
«am bivalência dos cientistas», já evocada por M erton, a propósito
das reivindicações de prioridade: a instituição que valoriza a prio­
ridade (ou seja, a apropriação simbólica), valoriza tam bém o desin­
teresse e «a dedicação desinteressada ao avanço do conhecimento»
{the se lfle s s d ed ica tio n to the a d va n cem en t o f k n o w led g e )
(M erton, 1973). O cam po im põe, sim ultaneam ente, a com petição
«egoísta» - e os interesses, por vezes, arrebatados que esta origina,
através, p o r exem plo, do receio de ser ultrapassado nas suas
descobertas - e o desprendim ento.
N ão há dúvida de que foi tam bém esta am biguidade que fez
com que se pudesse descrever as trocas que têm lugar no cam po

77
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

científico segundo o m odelo da troca de dádivas, em que cada


investigador, de acordo com H agstrom , deve oferecer aos outros
a nova inform ação que descobriu para deles obter, em contrapartida,
o reconhecim ento (H agstrom , 1965: 16-22). De facto, a procura
do reconhecim ento é sem pre categoricam ente negada, em nom e
do ideal do desinteresse lucrativo: isto não surpreende os que sabem
que a econom ia das trocas sim bólicas, cujo paradigm a é a troca
de dádivas, assenta na negação forçada do interesse lucrativo; a
dádiva pode - e, em determ inado aspecto, deve - ser vivida com o
acto generoso de oferenda sem contrapartida, que dissimula, m esm o
aos olhos daquele que a faz, a am bição de garantir um poder, um a
influência duradoura sobre o beneficiário, em sum a, a relação de
força virtual que encerra (acerca deste ponto, rem eto p ara as
análises da dupla verdade da dádiva que apresentei, em especial,
nas M éditations pascaliennes - 1997). E p o der-se-ia m ostrar
que o capital científico faz parte desta ambiguidade enquanto relação
de força fundada no reconhecim ento.
D epois de saberm os com o se constitui o cam po, ou seja,
instituindo inicialm ente requisitos de selecção que funcionarão
depois perm anentem ente, pela própria lógica do seu funcionamento
e fora de qualquer norm atividade transcendente, pode descobrir-
-se um a prim eira consequência, que podem os designar por n o r­
m ativa, desta conclusão. O facto de os produtores tenderem a ter
com o clientes apenas bs seus adversários m ais rigorosos, os m ais
com petentes e críticos, portanto os mais inclinados e os mais aptos
a validar a sua crítica, é p ara m im o ponto arquimediano em que
nos podem os basear p ara explicar científicamente a razão da
razão científica , para libertar a razão científica da redução rela­
tivista e explicar que a ciência pode avançar incessantem ente para
um a m aior racionalidade sem ser obrigada a recorrer a um a espécie
de m ilagre fundador. N ão é necessário sair da H istória p ara com ­
p reender a em ergência e a existência da razão na H istória. O
fecham ento sobre si do cam po autónom o constitui o princípio
histórico da gênese da razão e do exercício da sua norm atividade.
Foi, parece-m e, p o r tê-lo constituído, m uito m odestam ente, com o
problem a histórico, colocando-m e assim em posição (e na respon­

78
Um M u n d o à P a r t e

sabilidade) de estabelecer científicam ente a lei fundam ental do


funcionam ento da cidade científica, que pude resolver o problem a
das relações entre a razão e a H istoria ou da historicidade da razão,
problem a tão velho quanto a filosofia, que, m uito particularm ente
no século X IX , assom brou os filósofos.
O utra consequência do fecham ento sobre si ligado à autonom ia
é o facto de o cam po científico obedecer a urna lógica que não é a
de um cam po político. F alar de indiferen ciação ou de «não-
-diferenciação» do nivel político e do nivel científico (Latour,
1987) significa perm itir-se a colocar no m esm o plano as estra­
tégias cien tíficas e as intrigas p ara obter fundos ou prém ios
científicos, e a descrever o m undo científico com o um universo
em que se obtém resultados graças ao p o d er da retó rica e à
influência profissional; com o se o principio das acções fosse a
am bição associada a um a retórica estratégica e guerreira e com o
se os cientistas se virassem para este ou aquele tem a de investigação
com o único fim de subir na escala profissional, com o outros
arranjam estratagem as para obter o prém io N obel dotando-se de
urna rede de conhecim entos.
É verdade que, no cam po científico, as estratégias apresentam
sem pre duas facetas. Têm um a função puram ente científica e
um a função social no campo, ou seja, em relação aos outros agentes
envolvidos no cam po: por exem plo, um a descoberta pode ser um
assassínio sim bólico (isto observa-se quando, durante alguns dias
ou, po r vezes, algum as horas, o investigador contestado perde os
frutos de toda um a vida de investigação) e é um efeito secundário
da lógica estrutural, distintiva, do campo. M as voltarei a este ponto.

3 .0 C a p it a l C ie n tíf ic o , s u a s F o r m a s e D is tr ib u iç ã o

A s relações de força científicas são relações de força que se


efectivam , sobretudo, através das relações de conhecim ento e
com unicação (Bourdieu, 1 9 82,2001b). O p oder sim bólico de tipo
científico exerce-se apenas sobre agentes que têm as categorias
de percepção necessárias para o conhecer e reconhecer. Trata-

79
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

-se de um poder paradoxal (e, em certo sentido, heterónim o) que


pressupõe a «cum plicidade» daquele que o sofre. M as devo, em
prim eiro lugar, lem brar as propriedades essenciais do capital
sim bólico. O capital sim bólico é um conjunto de propriedades
distintivas que existe na e pela percepção de agentes dotados de
categorias de percepção adequadas, categorias que se adquirem
principalm ente através da experiência da estrutura da distribuição
desse capital no interior do espaço social ou de um m icrocosm o
social particular com o o cam po científico. O capital científico é
um conjunto de propriedades que são produto de actos de conhe­
cim ento e de reconhecim ento realizados por agentes envolvidos
no cam po científico e dotados, por isso, de categorias de percepção
específicas que lhes perm item fazer as diferenças pertinentes,
conform es ao princípio de pertinência constitutivo do nomos do
cam po. Esta percepção diacrítica só é acessível aos detentores
de um suficiente capital cultural incorporado. Existir científicamente
significa ter «algo m ais», segundo as categorias de percepção em
vigor no cam po, ou seja, para os pares («ter dado um contributo»).
É sobressair (positivam ente) através de um contributo distintivo.
N a tro ca científica, o cientista dá um «contributo» que lhe é
reconhecido p or actos de reconhecim ento público tais com o, no ­
m eadam ente, a referência com o citação das fontes do conheci­
m ento utilizado. Significa que o capital científico é produto do
reconhecim ento dos concorrentes (um acto de reconhecim ento
que dá tanto m ais capital quanto m ais reconhecido é aquele que o
realiza, portanto, m ais autónom o e m ais dotado de capital).
O capital científico funciona com o um capital sim bólico de
reconhecim ento que vale, antes de m ais, e por vezes exclusiva­
mente, nos limites do campo (embora possa ser reconvertido noutras
espécies de capital, principalm ente económ ico): o peso sim bólico
de um cientista tende a variar segundo o valor distintivo dos seus
contributos e a originalidade que os pares concorrentes reconhe­
cem ao seu contributo distintivo. O conceito de visibility, em uso
n a tradição universitária am ericana, evoca bem o valor diferencial
desse capital que, concentrado num nom e próprio conhecido e
reconhecido, destaca o seu portador do fundo indiferenciado no

80
Um M u n d o à P a r t e

qual se confunde o com um dos investigadores anónim os (segundo


a oposição form a/fundo que está no centro da teoria da percepção:
daí, certam ente, o rendim ento particular das metáforas perceptivas,
cuja m atriz é a oposição entre o brilhante e o obscuro, na m aioria
das taxinom ias escolares).
Em bora lhe esteja intim am ente associado, o capital sim bólico
não se confunde com o capital cultural incorporado, ou seja, a
parte m aior ou m enor dos recursos científicos colectivam ente
acum ulados e teoricam ente disponíveis detida e dom inada pelos
diferentes agentes envolvidos no cam po. A posição ocupada por
um agente particular na estrutura da distribuição desse capital, tal
com o é entendida pelos agentes dotados da capacidade de a
perceber e avaliar, é um dos princípios do capital sim bólico que é
atribuído a esse agente, na m edida em que ela contribuiu para
determ inar o seu valor distintivo, a sua raridade, e que está geral­
m ente ligada à sua contribuição para os progressos da investigação,
ao seu contributo e ao seu valor distintivo.
O capital sim bólico atrai o capital simbólico: o cam po científico
dá crédito aos que o já têm ; são os m ais conhecidos que m ais
beneficiam dos ganhos sim bólicos aparentem ente distribuídos em
partes iguais entre os signatários nos casos de autorias m últiplas
ou de descobertas m últiplas por pessoas de fam a desigual - mesm o
quando os m ais conhecidos não ocupam o prim eiro plano, o que
lhes dá um benefício ainda m aior, ou seja, de parecer desinteres­
sados do ponto de vista das norm as do campo. [Com efeito, em bora
pareçam desm enti-la, as observações de H arriet A. Zuckerm an
sobre os «m odelos de grau de nom eação entre os autores de artigos
científicos» confirm am a lei da concentração que enunciei: tendo
assegurada um a m aior visibilidade autom ática, os detentores de
prêm ios N obel podem m anifestar o desinteresse que convém ao
ceder o prim eiro plano. M as não vou dar m ais porm enores sobre a
dem onstração que fiz no artigo de 1975 (1975a).]
O reconhecim ento pelos pares que caracteriza o cam po tende
a produzir um efeito de fecham ento. O poder sim bólico de tipo
científico só se pode exercer sobre o hom em com um (com o poder
de fazer ver e fazer acreditar) se for ratificado pelos outros cien-

81
P a r a u ma S o c i o l o g í a d a C iê n c ia

tistas - que controlam tácitam ente o acesso ao «grande público»,


através principalm ente da divulgação. [O capital político tam bém
é um capital sim bólico de conhecim ento e de reconhecim ento ou
de reputação, mas é obtido ju n to de todos na lógica do plebiscito.]
A estru tu ra da relação de forças constitutiva do cam po é
definida p ela estrutura da distribuição de duas espécies de capital
(tem poral e científico) que intervém no cam po científico. Com o a
autonom ia nunca é total e devido ao facto de as estratégias dos
agentes envolvidos no cam po serem inseparavelm ente científicas
e sociais, o cam po é o lugar de duas espécies de capital científico:
um capital de autoridade propriam ente científica e um capital de
poder sobre o m undo científico, que pode ser acum ulado por vias
que não são puram ente científicas (ou seja, em especial através
das instituições que alberga) e que é o principio burocrático de
poderes tem porais sobre o cam po científico com o os dos m inistros
e dos m inistérios, dos decanos, dos reitores ou dos adm inistradores
científicos (estes poderes tem porais são sobretudo nacionais, ou
seja, ligados às instituições nacionais, principalm ente as que regem
a reprodução do corpo dos cientistas - com o as A cadem ias, os
com ités, as com issões, etc. - , enquanto o capital científico é m ais
internacional).
P or conseguinte, quanto m ais autónom o é um cam po, m ais a
hierarquia segundo a distribuição do capital científico se diferencia,
até adquirir um a form a inversa da hierarquia segundo o capital
tem poral (em certos casos, com o as faculdades de letras e de
ciências hum anas que tive a ocasião de estudar em H om o acade-
micus (1984), há um a estrutura quiasm ática, em que a distribuição
dos poderes tem porais tem um a form a inversa da distribuição do
poder específico, propriam ente científico).
Os juízos sobre as obras científicas são afectados pelo conheci­
m ento da posição ocupada nas hierarquias sociais (e isto tanto
m ais quanto m ais heterónim o for o cam po). D este m odo, Cole
m ostra que, entre os físicos, a frequência de citação depende da
universidade a que pertencem e sabe-se que, de form a m ais geral,
o capital sim bólico de um investigador, logo da recepção dada aos
seus trabalhos, depende, em parte, do capital sim bólico do seu

82
Um M u n d o à P a r t e

laboratório. É o que se percebe da m icrosociologia construtivista,


pelo facto de os constrangim entos estruturais exercidos sobre as
práticas e as estratégias não serem perceptíveis ao nível m icros-
sociológico, ou seja, à escala do laboratório, porque estão ligados à
posição do laboratório no cam po.
A lógica da lutas científicas só pode ser com preendida se
levarm os em conta a dualidade dos princípios de dom ínio. Por
exem plo, as ciências dependem , para a sua produção, de dois tipos
de recursos: os recursos propriam ente científicos, a m aioria deles
incorporados, e os recursos financeiros necessários para adquirir
ou construir os instrum entos (com o o ciclotrão de Berkeley) ou
pagar salários, ou os recursos adm inistrativos, com o os cargos; e,
na concorrência que os opõe, os investigadores devem lutar sempre
para conquistar os seus m eios específicos de produção num cam po
em que as duas espécies de capital científico são eficientes.
A participação dos investigadores, individual ou colectivamente,
nas actividades orientadas para a procura dos recursos económ icos
- subsídios, contratos, cargos, etc. - varia conform e a dependência
da sua actividade científica relativam ente a esses recursos (e,
secundariam ente, conform e a sua posição na hierarquia do labora­
tório): nula, fraca ou secundária em disciplinas com o a matem ática
ou a história, torna-se fortíssim a em disciplinas com o a física ou a
sociologia. E as instâncias burocráticas encarregadas de controlar
a distribuição dos recursos, com o, em França, os m inistérios ou o
CN R S, podem arbitrar, por interm édio de adm inistradores cien­
tíficos ou de com issões que não são necessariam ente os que estão
em m elh o r p osição p ara o fazer científicam ente, os conflitos
científicos entre os investigadores.
Os critérios de avaliação estão perm anentem ente em jo g o no
cam po e há sem pre desentendim entos a propósito dos critérios
que perm item regular os conflitos (controvérsias). O poder que os
adm inistradores científicos exercem sobre os cam pos, apesar de
ser regulado por considerações científicas, está longe de ser regido
estritam ente por elas (sobretudo quando se trata de ciências sociais)
e pode sem pre apoiar-se nas divisões internas dos cam pos. E,
tanto nestes dom ínios com o noutros, aquilo a que cham o lei do

83
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

jdanovism o (*) - segundo a qual os agentes dotados de m enor


capital específico, ou seja, os menos eminentes segundo os critérios
esp ecifícam en te cien tífico s, têm ten d ên cia p ara reco rrer aos
poderes externos para se reforçar e eventualm ente triunfar nas
suas lutas científicas - encontra um terreno de aplicação.

Por que razão é im portante trazer à luz a estrutura do cam po?


Porque, construindo a estrutura objectiva da d istribuição das
propriedades ligadas aos indivíduos ou às instituições, dotam o-nos
de um instrum ento de previsão dos com portam entos prováveis
dos agentes que ocupam diferentes posições nessa distribuição.
P or exem plo, fenóm enos para os quais a «nova sociologia da
ciência» cham ou a atenção, com o a circulação e o processo de
consagração e de universalização dos trabalhos, dependem das
posições ocupadas na estrutura do cam po pelos cientistas que
fizeram esses trabalhos. Com efeito, adm ite-se (e observa-se) que
o espaço das posições d etennina (em term os de probabilidades) o
espaço hom ólogo das tom adas de posição, ou seja, as estratégias
e as interacções. (Esta hipótese faz desaparecer a separação que
alguns fazem entre a ciência dos cientistas e a ciência das obras
científicas.) O conhecim ento dos interesses profissionais (ligados
à posição e às disposições) que nos dão inform ações sobre as
preferências pode explicar a opção entre diferentes possíveis: por
exem plo, nas lutas que, no século X IX , opunham os quím icos e os
físicos, estes últim os, m unidos de um capital físico-m atem ático,
m as com poucos conhecim entos de quím ica, caíram m uitas vezes
em erros e im passes.
A estrutura do cam po científico é sem pre definida pelo estado
da relação de forças entre os protagonistas das disputas, ou seja,
p ela estru tu ra da d istribuição do capital específico (nas suas
diferentes espécies) que puderam acum ular ao longo das lutas
anteriores. É esta estrutura que atribui a cada investigador, em
função da posição que nela ocupa, as suas estratégias e tom adas

O D e A n d re i Jd an o v , p o lítico so v iético q u e d irig iu a p o lític a cu ltu ra l d u ra n te


a e ra esta!inista.(/V . do T.)

84
Um M u n d o à Par t e

de posição científicas, e as hipóteses objectivas de éxito que lhes


são prom etidas. Estas tom adas de posição são o produto da relação
entre a posição no cam po e as disposições (o habitus ) do seu
ocupante. N ão há escolha científica - escolha do dom inio de
investigação, escolha dos m étodos utilizados, escolha do lugar de
publicação, decisão, bem descrita p or H agstrom (1965: 100), de
p u b licar rap id am en te resu ltad o s p arcialm en te verificad o s ou
tardíam ente resultados plenam ente controlados - que não seja
também um a estratégia social de posicionam ento orientada para a
m axim ização do lucro específico, indissociavelm ente social e
científico, dado pelo cam po e determ inado pela relação entre a
posição e as disposições que enunciei.
P o r o u tra s p a la v ra s , o c o n h e c im e n to das p ro p rie d a d e s
pertinentes de um agente, portanto da sua posição na estrutura da
distribuição, e das suas disposições, que estão em geral intimamente
ligadas às suas propriedades e posição, perm ite prever (ou, pelo
m enos, com preender) as suas tom adas de posição específicas (por
exem plo, o tipo de investigação científica que vai realizar, normal,
reprodutiva ou, pelo contrário, marginal, arriscada). Se pudéssem os
colocar um a dezena de questões a um grupo de cientistas franceses,
por um lado, sobre as suas origens sociais, estudos, posições que
ocuparam , etc., e, por outro, sobre o tipo de ciência que praticam
(as questões, neste caso, seriam m uito difíceis de elaborar e
im plicariam um a longa pesquisa prévia), penso que seria possível
estabelecer relações estatisticam ente significativas, do tipo das
que estabelecí noutros dom ínios.
Entre o espaço das posições e o espaço das tom adas de posição
não há um a relação de reflexo m ecânico: o espaço das posições
só a ctú a de alg u m m odo so b re as to m ad as de p o sição p o r
interm édio dos habitus dos agentes que apreendem este espaço,
a sua posição neste espaço e a percepção que os outros agentes
envolvidos nesse espaço têm de todo ou de parte do espaço. O
espaço das posições, quando percebido através de um habitus
adaptado (com petente, dotado do sentido do jogo), funciona com o
um espaço de possíveis, das form as possíveis de fazer ciência,
entre as quais se pode fazer um a escolha; cada um dos agentes

85
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

envolvidos no cam po tem um a percepção prática das diferentes


realizações da ciência, que funciona com o um a problem ática.
E sta percepção, esta visão, varia segundo as disposições dos
agentes e é m ais ou m enos com pleta, m ais ou m enos am pla; pode
deixar de lado - classificar com o sem interesse ou sem importância
- e desprezar alguns sectores (as revoluções científicas têm, muitas
vezes, com o consequência a transform ação da hierarquia). A
relação entre o espaço de possibilidades e as disposições pode
funcionar com o um sistem a de censura, excluindo de fa cto , sem
sequer im por interdições, vias e m odos de investigação; o efeito
restritivo é tanto m aior quanto m ais desprovidos estiverem os
agentes de capital simbólico e de capital cultural específicos (alguns
podem ser levados a excluir com o im possíveis - «isso não é para
m im » - escolhas que podem im por-se naturalmente a outros).
P a ra te r um esp aço de p o ssív e is m a te m á tic o s qu e seja
reconhecido com o m atemático pelos outros matemáticos, é preciso
ser m atem ático. A dm itido isto, este espaço variará segundo o
habitus dos m atem áticos, a sua com petência específica, o seu
lugar de form ação, etc., e um a das mediações do efeito do espaço
dos possíveis sobre as disposições, são as disposições. Assim, com o
vem os, as causalidades, em sociologia, adquirem form as m uito
com plexas: para ser considerado efeito do cam po das m atem áticas,
é p re c iso e sta r « p red isp o sto » m atem aticam en te. P o r o u tras
palavras, aquele que é determ inado contribui para a sua própria
determ inação, m as através de propriedades, com o as disposições
ou as capacidades, que ele não determ inou. O que está subjacente
ao facto de se escolher este ou aquele tem a de tese ou de se
orientar nesta ou naquela direcção da física ou da quím ica, são
duas form as de determ inação: do lado do agente, a sua trajectória,
a sua carreira; do lado do cam po, do lado do espaço objectivo,
efeitos estruturais que actuam sobre o agente na m edida em que
está constituído de m aneira a ser «sensível» a esses efeitos e a
contribuir assim ele próprio para o efeito que se exerce sobre si.
[Isto, sem entrar em discussões filosóficas sobre o determ inism o
e a liberdade, para relem brar aos filósofos e a outros sociólogos
que im itam os filósofos que o que dizem os é geralm ente m ais

86
Um M u n d o à P a r t e

com plexo do que o que eles afirm am a propósito do que dizem os -


e talvez até m ais do que o que afirm am no que acreditam pensar
de m ais com plicado sobre a liberdade.]
A percepção do espaço das posições, que é, em sim ultáneo,
conhecimento e reconhecimento do capital simbólico e contribuição
para a constituição desse capital (por juízos baseados em índices
com o o lugar de publicação, a qualidade e quantidade de notas,
etc.), perm ite a orientação nesse cam po. As diferentes posições
realizadas, quando apreendidas por um habitus bem constituido,
são tanto possibilidades com o form as possíveis de fazer o que faz
aquele que as percebe (da física ou da biologia), form as possíveis
de fazer j á experim entadas, j á realizadas, ou a realizar, m as
invocadas pela estrutura dos possíveis já realizados. Um cam po
contém virtualidades, um futuro provável (que um habitus ajustado
perm ite antecipar). O m undo físico tem tendências im anentes, tal
com o o m undo social. A ciência propõe determ inar o estado do
m undo e, ao m esm o tem po, as tendências im anentes desse mundo,
o futuro provável desse m undo, aquilo que não pode acontecer (o
im possível) ou aquilo que tem hipóteses, m aiores ou m enores, de
acontecer (o provável) ou ainda, m as é m ais raro que esteja em
posição de o fazer, aquilo que deve necessariam ente acontecer (o
certo). Conhecer a estrutura significa adquirir os m eios de com pre­
ender o estado das posições e das tom adas de posição, mas também
o futuro, a evolução provável das posições e tom adas de posição.
Em sum a, com o não deixo de o repetir, a análise da estrutura, a
estática e a análise da m udança, a dinâm ica, são indissociáveis.
A estática e a dinâmica são inseparáveis, um a vez que o principio
da dinâm ica se encontra na estática do cam po, nas relações de
força que o definem : o cam po tem um a estrutura objectiva que
não é outra senão a estrutura da distribuição (no sentido, em
sim ultâneo, estatístico e económ ico do term o) das propriedades
pertinentes, portanto eficientes, dos trunfos que actuam nesse
cam po (neste caso, o capital científico), e as relações de força
constitutivas desta estrutura; significa que as propriedades, que
podem ser tratadas com o propriedades lógicas, traços distintivos
que perm item dividir e classificar (opondo e reunindo, como se
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

deve fazer para construir a estrutura da distribuição), são sim ul­


taneam ente coisas que estão em jogo, enquanto objectos possíveis
de apropriação, e arm as, enquanto instrum entos possíveis de con­
flitos de apropriação, para os grupos que se dividem ou se reúnem
a propósito delas. O espaço das propriedades é tam bém um cam po
de lutas pela apropriação.
Q uando se utiliza um a técnica estatística com o a análise de
correspondências, cria-se um espaço de várias dim ensões em que
se distribuem , sim ultaneam ente, propriedades e os detentores
dessas propriedades, através de um a operação classificatória que
perm ite caracterizar a estrutura dessa distribuição; m as b asta
alterar a definição dessas propriedades para as considerar, já não
com o traços distintivos de um a taxinom ia classificatória que serve
para diferenciar agentes e propriedades num espaço estático, mas
com o tru n fo s n a lu ta no in terio r do cam po (por exem plo, a
antiguidade ou o facto de ter publicado m uitos prêm ios N obel
surgem, neste ponto de vista, com o um dos fundam entos do capital
sim bólico de um a editora) (Bourdieu, 1999), ou, m elhor, com o
poderes que definem o futuro previsível do jogo que se vai jo g ar
entre os agentes detentores de trunfos desiguais do ponto de vista
da definição do jogo.
Podem os recorrer aqui, para representar as diferentes espécies
de poder (ou de capital), à m etáfora das pilhas de fichas de jo g o
de diferentes cores que são a m aterialização, sim ultaneam ente,
dos ganhos obtidos nas fases precedentes da partida e dos trunfos
susceptíveis de ser utilizadas no seguim ento do jogo, ou seja, um a
espécie de síntese do passado e do futuro do jogo. Percebe-se que
descrever rigorosam ente um a etapa do jogo, ou seja, a distribuição
dos ganhos e dos trunfos, é descrever, ao m esm o tem po, o futuro
provável do jo g o , as hipóteses prováveis de ganho de diferentes
jogadores e as suas estratégias prováveis, um a vez que se conhece
o estado dos seus recursos (isso, na hipótese de um a estratégia
ajustada na prática às hipóteses de ganho, ou seja, m ais sensata
do que racional - com o é a estratégia do habitus).

88
Um M u n d o à P a r t e

4 . U m C o n flito R e g u la d o

Os agentes, com o seu sistem a de disposições, com a sua


com petência, capital e interesses, confrontam -se, no interior deste
jo g o que é o cam po, num a luta para fazer reconhecer um a m aneira
de conhecer (um objecto e um m étodo), contribuindo assim para
conservar ou transform ar o cam po de forças. Um pequeno núm ero
de agentes e instituições concentra capital suficiente p ara se
apropriar prioritariam ente dos ganhos oferecidos pelo campo; para
exercer poder sobre o capital detido pelos outros agentes, sobre
os pequenos detentores de capital científico. Este poder sobre o
capital exerce-se, de facto, através do poder sobre a estrutura de
distribuição das hipóteses de obter ganhos. Os dominantes impõem,
apenas pela sua existência, com o norm a universal, os princípios
que introduzem nas suas próprias práticas. E o que a inovação
rev o lu c io n á ria co lo ca em causa, su b v erten d o a estru tu ra de
distribuição das hipóteses de ganho e, ao m esm o tem po, reduzindo
os ganhos dos que estão ligados à estrutura antiga. U m a grande
inovação científica pode destruir grande núm ero de investigações
e investigadores e sem ter a m ínim a intenção de prejudicar: isso
contra a visão m esquinha que pode ser sugerida p ela análise das
estratégias científicas com o form as de «rivalizar», inspiradas pelo
desejo de ser o prim eiro ou de triu n far sobre os adversários.
C om preende-se que as inovações não sejam bem recebidas, que
suscitem grande oposição que pode servir-se da difam ação como
arm a - m uito eficaz contra um capital que, com o qualquer capital
sim bólico, é fa m a , reputação, etc.
Os dom inantes im põem , de fa c to , com o norm a universal do
valor científico das produções científicas, os princípios que eles
próprios utilizam consciente ou inconscientemente nas suas práticas,
em especial n a escolha dos seus objectos, m étodos, etc. São
constituídos em exem plos, em realizações exem plares da prática
científica, em ideal realizado, em norm as; a sua própria prática
torna-se a m edida de todas as coisas, o procedim ento correcto
que tende a desacreditar os restantes. Consagram certos tem as
dedicando-lhes os seus estudos e, através do próprio tem a dos
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

seus estudos, tendem a agir sobre a estrutura das hipóteses de


sucesso e, por isso, sobre o sucesso obtido pelos diferentes estudos.
[Assim , hoje, o CNRS utiliza as estruturas e, sobretudo, talvez, o
léxico da ciência americana, impondo, como um a evidência, a ideia
de «program a» (de investigação) ou m odelos institucionais com o
o «Fundo N acional da Ciência» (isso, geralm ente, por interm édio
de p erso n alid ad es que, ten d o sido co n sag rad as p elo s EU A ,
reproduzem com o o m elhor ou o único possível o m odelo que os
consagrou).]
Os revolucionários, em vez de se lim itarem a jo g a r dentro dos
lim ites do jo g o tal com o ele é, com os seus princípios objectivos de
form ação de prêm ios, transform am o jo g o e esses princípios. Por
exem plo, um a das m aneiras de alterar o m odo de form ação dos
prêm ios vigente consiste em alterar o m odo de form ação dos
produtores. É isto que explica a violência de alguns conflitos a
propósito do sistem a de ensino superior (como se pode com provar
quando se assiste a um a reunião da com issão para os program as
escolares, situação em que os ânim os se exaltam - vi professores
que estavam a um ano da reform a e, aparentem ente, não tinham
qualquer interesse directo neste assunto, envolver-se, para defender
a m anutenção de um a hora de russo, de geografia ou de filosofía
nos program as, em com bates que visam perpetuar todo um sistem a
de crenças ou, m elhor, de investim entos, perpetuando a estrutura
do sistem a de ensino).
A s lutas de prioridade opõem geralm ente aquele que descobriu
um facto bruto, m uitas vezes um a anom alia em relação ao estado
do conhecim ento, ao que, graças a um equipam ento teórico m ais
avançado, a constituiu em facto científico, constitutivo de um a
nova m aneira de conceber o mundo. As guerras epistem ológicas
são g eralm en te d este tip o e op õ em a d v ersário s d o ta d o s de
diferentes propriedades sociais que os predispõem a sentir-se em
afinidade com um ou outro campo. U m a das coisas que está em
jo g o nas lutas epistem ológicas é sem pre a valorização de um a
espécie de capital científico, de teórico ou de cientista, por exem plo
(estando cada um dos adversários inclinado a defender o tipo de
capital de que está particularm ente dotado).

90
Um M u n d o à Par t e

A definição do que está em jo g o no conflito científico faz parte


das questões desse m esm o conflito. Os dom inantes são os que
conseguem im por a definição da ciência segundo a qual a m elhor
realização da ciência consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles
têm , são ou fazem . E po r isso que deparam os sem pre com a
antinom ia da legitim idade: no cam po científico, tal com o noutros,
não há um a instância para legitim ar as instâncias de legitim idade.
A s revoluções científicas subvertem a hierarquia dos valores
sociais ligada às diferentes form as de prática científica, portanto,
a hierarquia social das diferentes categorias de cientistas. U m a
das p articu la rid ad es das rev o lu çõ es cien tíficas é o facto de
introduzirem um a transform ação radical ao m esm o tem po que
conservam os conhecim entos anteriores. São, por conseguinte,
revoluções que conservam os conhecim entos - sem ser revoluções
conservadoras, que visam subverter o presente para restaurar o
passado. Só podem ser realizadas por pessoas que são, num certo
sentido, cap italistas específicos, ou seja, pesso as capazes de
dom inar todos os conhecim entos da tradição.
A s revoluções científicas têm com o efeito a transform ação da
hierarquia: aspectos consideradas sem im portância podem ser
reactivados por um a nova m aneira de fazer ciência e, inversamente,
sectores inteiros da ciência podem ficar desactualizados, ultra­
passados. A s lutas no interior do cam po são lutas p ara ser ou
perm anecer actual. Aquele que introduz um a nova m aneira legítima
de fazer ciência subverte as relações de força e introduz o tempo.
Se nenhum a alteração se verificasse, não haveria tempo; os conser­
vadores querem abolir o tempo, eternizar o estado actual do campo,
o estado da estrutura que está conform e aos seus interesses porque
ocupam nele a posição dom inante, enquanto os inovadores, sem
sequer se interessarem em com petir seja com quem for, introduzem,
apenas pela sua intervenção, a m udança e criam a tem poralidade
específica do cam po. Por conseguinte, cada cam po tem o seu
tem po próprio, um a cronologia única que tende a resum ir num a
falsa unilinearidade tem poralidades diferentes, as séries indepen­
dentes que correspondem aos diferentes cam pos que podem , aliás,
encontrar-se, principalm ente p or ocasião de crises históricas que

91
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

têm com o efeito sin cro n izar cam pos d otados de h istó rias e
tem poralidades diferentes.
A té aqui, fiz com o se o sujeito da luta científica fosse exclusiva­
m ente um indivíduo, um cientista individual. D e facto, pode ser
tam bém um a disciplina ou um laboratório. D etenham o-nos por um
m o m en to n a disciplina. D e um a form a geral, p o dem os falar
indiferentem ente, a propósito de níveis m uito diferentes da divisão
do trabalho científico, de disciplina, de subcam po ou de especiali­
dade (por exem plo, falam os de disciplina para designar a quím ica
no seu todo, ou a quím ica orgânica, a quím ica física, a quím ica
física orgânica, a quím ica quântica, etc.). D aryl E. C hubin faz
um a distinção (Nye, 1993: 2) entre a disciplina (física), o sub­
cam po (a física das altas energias ou de partículas), a especialidade
(interacções fracas) e a subespecialidade (estudos experim entais
vs estudos teóricos).
A disciplina é um cam po relativam ente estável e delim itado,
portanto relativamente fácil de identificar: tem um nome reconhecido
escolar e socialm ente (ou seja, que está presente nom eadam ente
nas classificações das bibliotecas, com o a sociologia por oposição
à «m ediologia», por exem plo); está inscrita em instituições, labora­
tórios, departam entos universitários, revistas, instâncias nacionais
e internacionais (congressos), processos de certificação de com pe­
tências, sistem as de retribuição, prêm ios.
A disciplina é definida pela posse de um capital colectivo de
m étodos e conceitos especializados cujo dom ínio co nstitui o
requisito de adm issão tácito ou im plícito no cam po. Produz um
«transcendental histórico», o hábito disciplinar com o sistem a de
esquem as de percepção e apreciação (a disciplina incorporada
age com o censura). E caracterizada por um conjunto de condições
sócio-transcendentais, constitutivas de um estilo, [Abro aqui um
paréntesis sobre a noção de estilo: os produtos de um m esm o
habitus são m arcados por um a unidade de estilo (estilo de vida,
m aneira, assinatura de um artista). N a tradição da sociologia da
ciência, o tem a do estilo está presente em M annheim , em L udw ig
Fleck (1980) que fala de «estilos de pensam ento», ou seja, de um a
«tradi-ção de pressupostos partilhados» em grande parte invisíveis

92
Um M u n d o à P a r t e

e n u n c a p o s to s em q u e s tã o , e ta m b é m d e « c o le c tiv o de
pensamento», comunidade de pessoas que partilham idéias: as idéias
com patíveis com os pressupostos fundam entais do colectivo são
integrados, os outros são rejeitados. H á assim toda um a série de
usos m uito sem elhantes que valem tanto para u m a disciplina no
seu todo, com o para um grupo, um a colectividade intelectual que
partilha um saber e pressupostos sobre a metodologia, a observação,
as hipóteses adm issíveis e os problem as im portantes - Ian Hacking
(1 9 9 2 ) fa la ta m b ém de « s is te m a s fe c h a d o s de p rá tic a d a
investigação» ( closed systems o f research practice ).] Esta noção
de «estilo» é im por-tante, ao m enos, p ara designar, apontar, um a
propriedade das diferentes ciências ou disciplinas que foi esmagada,
esquecida, em toda a reflexão sobre a ciência, pelo facto de a
física e, m ais precisam ente, a física quântica ter sido constituída
com o modelo exclusivo da cientifícidade, em nome de um privilégio
social convertido em privilégio epistemológico pelos epistemólogos
e filósofos, pouco capazes de pensar os efeitos de im posição social
que se exercem sobre o seu pensam ento.
A s fronteiras da disciplina são protegidas po r condições de
acesso m ais ou m enos codificadas e restritivas; m ais ou m enos
definidas, as fronteiras são p or vezes contestadas por disciplinas
afins. Pode haver intersecções entre as disciplinas, algumas inúteis,
outras úteis, que oferecem a possibilidade de extrair idéias e infor­
m ações de m aior ou m enor núm ero e diversidade de fontes. (A ino­
vação nas ciências engendra-se norm alm ente nas intersecções).
A noção de cam po científico é im portante porque relem bra,
por um lado, que há um m ínim o de unidade da ciência e, por outro,
que as diferentes disciplinas ocupam um a posição no espaço
(hierarquizado) das disciplinas e que aquilo que nele sucede
depende em parte desta posição. Vou deter-m e, em prim eiro lugar,
na questão da unidade: o cam po científico pode ser descrito com o
um conjunto de cam pos locais (disciplinas) que têm interesses (por
exem plo, o interesse de racionalidade, contra o irracionalism o, a
anticiência, etc.) e princípios m ínim os comuns. Entre os princípios
unificadores da ciência, penso que se deve destacar aquilo a que
Terry Shinn (2000) cham a «instrumentos base» (ultracentrifugador,

93
P a r a u ma S o c i o l o g í a d a C iê n c ia

e sp e c tro sc o p ia p o r co eficien tes de F o u rie r , laser, co n tad o r


Geiger), «instrumentos genéricos», «coisas epistémicas» (epistemic
things) que constituem «um a form a consistente de conhecim ento
teórico» (Shinn, 2000), em que tam bém se devem englobar todas
as formas racionalizadas, fonnalizadas, padronizadas de pensam en­
to com o a m atem ática, susceptível de funcionar com o instrum ento
de descoberta, e as regras do m étodo experim ental. O capital
científico de processos padronizados, de m odelos testados, de
protocolos reconhecidos que os investigadores vão buscar a outros
e com binam para conceber novas teorias ou novos procedim entos
experim entais (a originalidade pode consistir, m uitas vezes, num a
nova com binação de elem entos conhecidos), age com o factor de
unificação e antídoto contra as forças centrífugas ao im por a
incorporação de regras que presidem à sua utilização (protocolos
de utilização). Outro princípio unificador é, sem dúvida, «o efeito
de dem onstração» que a ciência dom inante exerce sem pre e que
está na origem das trocas entre ciências.
U m a disciplina é definida não só por propriedades intrínsecas,
m as tam bém por propriedades que ela deve à sua posição no
espaço (hierarquizado) das disciplinas. Dos princípios de diferen­
ciação entre as disciplinas, um dos m ais importantes é a quantidade
do capital de recursos colectivos que acum ulou (e, em particular,
os recursos de tipo teórico-formal) e, correlativamente, a autonomia
de que dispõe em relação a constrangim entos externos, políticos,
religiosos ou económ icos. Indicarei, sem m ais porm enores, que há
dois princípios de diferenciação/hierarquização entre as disciplinas:
o princípio tem poral e o princípio propriam ente científico.
Para ilustrar o efeito dos recursos científicos, teórico-form ais,
posso evocar as relações entre a física e a quím ica, apoiando-m e
nos livros de N ye (1993) e Pierre Lazlo, M iroir de la chimie
(2000). A oposição entre a física e a quím ica encontra-se em todos
os níveis de diferenciação e, em particular, entre a física m ecânica
b asead a em fu n d am en to s axio m ático s e m atem ático s e um a
sim ples ciência taxinóm ica e classificatória que assenta em funda­
m entos descritivos e em píricos. Pierre Lazlo evoca a consequência
desta relação objectiva quando fala (Lazlo, 2000:243) de «síndroma

94
Um M u n d o à P a r t e

de Lavoisier» para descrever a reniténcia dos quím icos em consi-


derarem -se com o tal: Lavoisier, o grande quím ico do século XVIII,
prefería considerar-se físico. C iência descritiva e em pírica que se
ocupa de tarefas práticas e aplicadas (adubos, medicam entos, vidro,
insecticidas) e utilizando receitas (daí a analogia com a cozinha), a
quím ica é sem pre descrita com o um a ciência acessória (Nye, 1993:
3 ,57). Lazlo evoca o «carácter infantil e lúdico da química» (Lazlo,
2000: 243), que, tal com o todos os outros traços já m encionados,
se inscreve num a hom ología com a oposição entre o m asculino e o
fem inino (que se encontra claram ente na oposição entre física
teórica e quím ica orgánica - N ye, 1993: 6-7). N o inicio dos anos
30, o aparecimento de inúmeros físicos na área da quím ica (London,
O ppenheim er) favorece a adesão entre os quím icos à «física
m olecular» ligada à física, com as suas revistas periódicas, e
rebaptizada de acordo com a definição dom inante.
Se m e pareceu im portante referir esta disciplina, deve-se ao
facto de as lutas disciplinares poderem constituir um factor de
m udança científica através de toda um a série de efeitos, de que
evocarei um só exem plo, descrito po r B en-D avid e Collins num
artigo clássico acerca daquilo a que se cham ou «hibridização»: a
hibridização, ou seja, o facto de «se ajustar os métodos e as técnicas
de um papel antigo aos m ateriais de um novo papel, com a intenção
deliberada de criar um novo papel», produz-se quando o cam po A
(a fisiología) oferece vantagens com petitivas relativam ente ao
cam po B (a filosofía) e quando tem um estatuto inferior a ele
(B en-D avid e Collins, 1997): «A m obilidade dos cientistas de um
dom inio p ara outro dar-se-á quando as hipóteses de sucesso (por
exem plo, ser reconhecido, obter um a cátedra num a idade ainda
relativam ente jovem , dar um contributo excepcional) se mostrarem
fracas num a disciplina, em geral por causa da plétora de candidatos
num dom ínio em que o núm ero de cargos se m antém estável.
Encontrarão m elhores condições de com petição. N estas circuns­
tâncias, há fortes hipóteses de m uitos cientistas passarem para
um dom ínio próxim o em que encontrarão melhores condições de
com petição. Em certos casos, isso significará que irão para um
dom ínio cujo estatuto é relativam ente inferior ao do dom ínio de

95
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

origem . Isto cria as condições de um conflito de papéis» (Ben-


-David e Collins, 1997: 80). O investigador resolve o conflito ligado
à perda de um estatuto superior no plano intelectual e talvez social
«ao inovar, ou seja, adaptando ao novo papel os m étodos e as
técnicas do antigo, com o objectivo deliberado de criar um novo
papel» (Ben-David e Collins, 1997:80), operando «umahibridização
de papel em que os métodos da fisiología serão aplicados ao material
da filo so fia (no seu ponto de m aior convergência, ou seja, a
psicologia), de tal m odo que o inovador se destaca dos práticos
m ais tradicionais da disciplina m enos reconhecida» (B en-D avid e
C ollins, 1997: 81). Em sum a, se abandonarm os a linguagem
inadequada do «conflito de papéis» e da «hibridização de papéis»
e a filosofia da acção que isso im plica, pode dizer-se (verem os,
espero, que não se trata de um a sim ples m udança de linguagem )
que este fenómeno surge quando os representantes de um a disciplina
dom inante (a filosofia, no caso de Fechner ou de D urkheim ) se
m udam para um a disciplina dominada (a psicologia ou a sociologia),
o que im plica para eles um a perda de capital, obrigando-os de
algum a m aneira, para recuperar os seus investim entos e para res­
taurar o capital am eaçado, a elevar a disciplina apropriando-se
dos conhecim entos da disciplina im portada.
M as a construção de um a disciplina pode ser também o objectivo
de um em preendim ento colectivo, orientado por agentes que visam
obter os m eios económ icos e sociais para realizar um grande pro­
jecto científico, descobrir «o segredo da vida», neste caso. Gostaria
de evocar de form a m uito breve - seria necessário entrar em todos
os porm enores - a história dos que ficaram conhecidos por «phage
w orkers» — grupo dotado de um a cultura distintiva e de um a
estrutura norm ativa que desem penhou o papel de factor de inte­
gração - principalm ente pelos estudantes form ados pelo grupo
(M ullins, 1972). É um a história exem plar que m ostra o erro teórico
e prático com etido por aqueles que pensam que se pode retirar do
estudo dos laboratórios princípios de estratégias calculadas de
«auto-engrandecim ento» e de «golpes políticos» no universo cien­
tífico. Vemos claram ente aqui que, em bora haja todo um trabalho
organizacional de constituição de redes, etc., tudo isso se passa

96
Um M u n d o à P a r t e

segundo um a lógica que não é de m odo algum a da intenção, do


cálculo, ou, num a palavra, do cinism o. Em prim eiro lugar, tem os
um «grupo paradigm a» (paradigm group ) que se interessa pelo
m esm o problem a de investigação e constitui um a reserva de con­
tactos pessoais. Em seguida, instauram -se relações reais através
de um a «rede de com unicação» (netw ork fo r Communications )
que cresce graças a cooptações sucessivas. D epois, vem os criar-
-se, a pouco e pouco, um verdadeiro cluster, impulsionado por Max
D elbrück que organiza o summer phage course. O reconhecim ento
enquanto grupo é fundado n a existência de um estilo intelectual
com um (dogm a central) e de um a vida social {summer course) e
tam bém , evidentem ente, nas prim eiras invenções. Um papel deter­
m inante deve-se ao carism a do líder que, em bora tenha com etido
num erosos erros (por exem plo, ao tentar afastar W atson da quí­
m ica), acertou na sua escolha do «phage problem» e na intenção
de encontrar «o segredo da vida». A passagem do estado de cluster
para o estatuto de «especialidade» ( speciality ) é facilitada pela
tradição universitária am ericana de descentralização e competição:
«A biologia molecular teve o seu primeiro departamento universitário
no início dos anos 60». Em suma, o sucesso caracteriza-se pela
rotinização do carisma. E vem os assim que só se pode com preender
a ascensão ou o declínio de um a disciplina na condição de se levar
em conta, em sim ultâneo, a sua história intelectual e a sua história
social, indo desde as características sociais do líder e das suas
com panhias iniciais até às propriedades colectivas do grupo, como
a sua atracção social e a capacidade de ter alunos.
É p o r o cam po científico ser, em certos aspectos, um cam po
com o os outros, m as que obedece a um a lógica específica, que
podem os com preender, sem recorrer a algum a form a de transcen­
dência, que ele é um lugar histórico onde se produzem verdades
trans-históricas. A prim eira, e sem dúvida a m ais fundam ental, das
propriedades singulares do cam po científico é, com o vim os, o seu
fecham ento sobre si (m ais ou m enos total) que faz com que cada
investigador tenda a ter apenas com o receptores os investigadores
m ais aptos a com preendê-lo, m as tam bém a criticá-lo, e até refutá-
-lo e desm enti-lo. A segunda, que dá a form a particular ao efeito

97
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

de censura implicado neste fechamento, é o facto de a luta científica,


ao contrário da luta artística, ter com o objectivo o m onopólio da
representação científicam ente legítim a do «real» e de os investiga­
dores, no seu confronto, aceitarem tácitam ente a arbitragem do
«real» (tal com o pode ser produzido pelo equipam ento teórico e
experim ental efectivam ente disponível no m om ento considerado).
Tudo se passa com o se, ao adoptarem um a atitude próxim a daquilo
a que os fenom enólogos cham am «a atitude natural», os investiga­
dores concordassem tácitam ente sobre o projecto de dar um a
representação realista do real; ou, m ais exactam ente, com o se
aceitassem tácitam ente a existência de um a realidade objectiva
pelo facto de assumirem o projecto de investigar e de dizer a verdade
do m undo e aceitar ser criticados, contraditos, refutados, em nom e
da referência ao real, assim constituído em árbitro da investigação.
[Este postulado ontológico im plica outro: a ideia de que há
sentido, ordem, um a lógica, em suma, algo a compreender no mundo,
incluindo no m undo social (contra aquilo a que H egel cham ava «o
ateísm o do m undo m oral»); que não se pode afirm ar qualquer coisa
a propósito do m undo («anything goes», segundo a expressão
cara a Feyerabend), porque tudo e m ais algum a coisa não é possível
no mundo. É com algum a espanto que encontram os um a expressão
perfeita deste postulado em Frege: «Se tudo estivesse num fluxo
contínuo e nada se m antivesse fixo para sem pre, não haveria
possibilidade de conhecer o m undo e tudo estaria m ergulhado na
confusão» (Frege, 1953: V II). Este postulado, que nem sem pre foi
aceite em relação ao m undo natural, continua a ser contestado -
em nom e, sobretudo, da denúncia do «determ inism o» —a propósito
do m undo social.]
Se a análise sociológica do funcionam ento do cam po científico
não condena de todo a um relativism o radical, se podem os e
devem os adm itir que a ciência é um facto social transversalm ente
histórico sem im plicar que as suas produções são relativas às con­
dições históricas e sociais da sua em ergência, é porque o «sujeito»
da ciência não é um colectivo integrado (como pensavam Durkheim
e a tradição m ertoniana), m as um cam po e um cam po absolutam en­
te singular, em que as relações de força e de luta entre os agentes

98
Um M u n d o à P a r t e

e as instituições estão subm etidas às leis específicas (dialógicas e


argum entativas) decorrentes de duas propriedades fundam entais,
intim am ente ligadas entre si: o fecham ento sobre si m esm o (ou a
concorrência dos pares) e a arbitragem do real, que enunciei atrás.
A própria lógica, a necessidade lógica, é a norm a social de um a
categoria particular de universos sociais, os cam pos científicos, e
exerce-se através dos constrangim entos (principalm ente as cen­
suras) socialm ente instituídos nesses universos.
P ara fundam entar esta proposição, é necessário colocar em
causa todo um conjunto de hábitos de pensam ento, com o por
exem plo o que tende a perceber a relação de conhecim ento com o
um a relação entre um cientista singular e um objecto. O sujeito da
ciência não é o cientista singular, m as o cam po científico, com o
universo de relações objectivas de com unicação e de concorrência
reguladas em m atéria de argum entação e de verificação. Os cien­
tistas nunca são os «gênios singulares» de quem se faz a história
hagiográfica: são sujeitos colectivos que, enquanto história colectiva
incorporada, actualizam toda a história pertinente da sua ciên cia-
penso, por exem plo, em N ew ton ou Einstein - , e que trabalham no
seio de grupos colectivos com instrum entos que pertencem à
história colectiva objectivada. Em suma, a ciência é um im enso
aparelho de construção colectiva utilizado colectivam ente. N um
cam po científico m uito autónom o, em que o capital colectivo de
recursos acum ulados é enorme, é o cam po que «escolhe» os hábitos
capazes de realizar as suas ten d ên cias pró p rias - o que não
significa que os habitus não tenham im portância, na m edida em
que determ inam a orientação dos trajectos individuais no espaço
dos possíveis oferecidos por um estado do cam po - , enquanto que
num cam po cuja autonom ia está sem pre am eaçada — com o o
cam po da sociologia, que interessa a m uitas pessoas que gostariam
de a colocar ao seu serviço, etc. - os habitus contribuem fortemente,
a não ser que haja um a vigilância especial, para orientar as práticas.
A luta científica deve tam bém a sua especificidade (e este
poderia ser o terceiro princípio de diferenças relativam ente à luta
artística, tam bém ela caracterizada, nos estádios m ais avançados,
pelo fecham ento sobre si m esm a) ao facto de os candidatos ao

99
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

monopólio da representação legítima da realidade objectiva (legítimo


significante susceptível de ser reconhecido, validado ou, m elhor,
hom ologado , no sentido forte da raiz grega, no estado dos instru­
m entos de com unicação, de conhecim ento e de crítica) disporem
de um im enso equipam ento colectivo de construção teórica e de
verificação ou falsificação em pírica cujo domínio é exigido a todos
os participantes na com petição. (Poderia, ainda aqui, invocar Terry
Shinn: a ciência está cada vez mais dependente de toda a tecnologia
de in vestigação («research technology »), que tende cada vez
m ais a autonom izar-se para se to m ar um a disciplina que oferece,
segundo a lógica do seu próprio desenvolvim ento, novas possibili­
dades às outras disciplinas.) Este equipam ento não pára de crescer
com todos os novos dados da investigação, dados em m atéria de
conhecim ento do objecto que são inseparáveis dos dados em
m atéria de instrum entos de conhecim ento.
[E necessário m enos tem po para nos apropriarm os dos recursos
acum ulados no estado objectivado (nos livros, instrum entos, etc.)
do que para os acum ular, o que é (com a divisão do trabalho) um a
das razões da cum ulatividade da ciência e do progresso científico.
Se um m atem ático de vinte anos pode dom inar suficientem ente os
conhecim entos históricos da sua disciplina para fazer coisas novas,
é em parte graças às virtudes da form alização e das capacidades
de condensação gerativa que ela oferece. Leibniz teve a intuição
deste fenóm eno quando defendia contra Descartes o papel daquilo
a que cham ava evidentia ex terminis , a evidência que decorre da
própria lógica das fórm ulas lógicas de tipo algébrico, das suas
transform ações, desenvolvim entos, e que se opõe à evidência
cartesiana (principalm ente por ser independente das flutuações
da inteligência ou da atenção), que pode ser assim dispensada.]

5. H is to r ia e V e r d a d e

A objectividade é um produto social do cam po que depende


dos pressupostos adm itidos nesse cam po, principalm ente no que
respeita à form a legítim a de regular os conflitos (por exem plo, a

100
Um M u n d o à P a r t e

coerência entre os factos e a teoria ou a replicabilidade). Os prin­


cípios da lógica e do m étodo experim ental estão perm anentem ente
em jo g o quando são postos em prática durante as transacções e
negociações que acom panham o processo de publicação e divul­
gação. A s regras epistem ológicas m ais não são do que as regras e
as regularidades sociais inscritas nas estruturas e/ou nos habitus ,
sobretudo no que respeita à form a de conduzir um a discussão (as
regras de argum entação) e de regular um conflito. Os investiga­
dores detêm -se n a sua experim entação quando pensam que a
experiência está conform e às norm as da sua ciência e que pode
enfrentar as críticas antecipadas. [Vemos que o discurso científico
está sujeito à lei geral da produção de discursos, produção que é
sem pre o rien tad a pela an tecipação (inconsciente, na base de
disposições) de ganhos, positivos ou negativos, propostos por um
certo m ercado, em que cada locutor se defronta num certo estado
do m ercado, ou seja, da censura social que ele antecipa (Bourdieu,
1 9 8 2 ,2001b).] O conhecim ento científico é aquilo que sobreviveu
às objecções e pode resistir às objecções futuras. A opinião validada
é aquela que é reconhecida, pelo m enos negativam ente, porque já
não suscita objecções pertinentes ou não tem m elhor explicação.
N estas lutas que aceitam com o árbitro o veredicto da experiência,
ou seja, daquilo que os investigadores concordam em considerar
com o real, a verdade é o conjunto das representações consideradas
verdadeiras por serem produzidas segundo as regras que definem
a produção da verdade; é nisto que concordam os concorrentes
que estão de acordo sobre os princípios de verificação, sobre os
m étodos com uns de validação das hipóteses.
N um universo com o o da ciência, as construções individuais,
que são sem pre, de facto, construções colectivas, estão sujeitas a
tran sacçõ es regu lad as não p o r reg ras tran scen d en tes de um a
epistem ología, de um a m etodologia ou até da lógica, m as pelos
princípios de sociabilidade específicos im postos pela pertença ao
cam po que são tais que se as ignorarm os ou as transgredirm os,
excluímo-nos. Penso aqui num a descrição dos tratamentos terríveis,
por vezes assassinos, a que o autor de um estudo pode ser submetido
num sem inário, e que são perfeitam ente legítim os, até irrepreen­

101
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

síveis, na m edida em que são exercidos na im pecabilidade form al


pelos detentores do dom ínio das regras im plícitas tácitam ente
aceites por todos os que entram no jo g o (Tom pkins, 1988).
N os requisitos de adm issão tácitos associados à illusio com um
que condiciona a pertença ao cam po científico está im plicada a
aceitação do estado das norm as acerca da validade de um facto
científico e, mais exactamente, o reconhecimento do próprio princípio
da razão dialéctica: o facto de jo g ar o jogo da discussão, do diálogo
(no sentido socrático), de subm eter as suas experiências e cálculos
ao exam e crítico, de se com prom eter a responder por si diante dos
outros, e de m aneira responsável, ou seja, m antendo-se fiel a si pró­
prio, sem contradição, em suma, subm etendo-se aos princípios prá­
ticos de um ethos de argumentação. O conhecimento assenta, não
na evidência subjectiva de um indivíduo isolado, mas na experiência
colectiva, regulada por norm as de com unicação e argum entação.
P or conseguinte, a visão bachelardiana do trabalho científico -
que resum i na fórm ula «o facto científico é conquistado, construído,
verificado» - deve ser alargada e completada. Pensa-se tácitam ente
que a construção deve ser validada pela experiência, num a relação
entre o cientista e o seu objecto. De facto, o processo de validação
do conhecim ento com o legitimação (assegurado pelo m onopólio
da opinião científica legítim a) diz respeito à relação entre o sujeito
e o objecto, m as tam bém à relação entre os sujeitos e, sobretudo,
às relações entre os sujeitos a propósito do objecto (voltarei a este
ponto). O facto é conquistado, construído, verificado na e pela
com unicação dialéctica entre os sujeitos, ou seja, através do
processo de verificação, de produção colectiva da verdade, na e
pela negociação, pela transacção e tam bém pela hom ologação,
ratificação pelo consenso explicitam ente expresso —homologein
- (e não apenas na dialéctica entre a hipótese e a experiência).
O facto só se to m a verdadeiram ente um facto científico se for
reconhecido. A constm ção é duplam ente determinada socialmente:
por um lado, pela posição do laboratório ou do cientista no cam po;
por outro, pelas categorias de percepção associadas à posição do
receptor (sendo o efeito de im posição, de autoridade, tanto m ais
forte quanto m ais baixa for a posição relativa deste receptor).

102
Um M u n d o à P a r t e

O facto científico só se realiza com pletam ente com o facto


científico quando é feito pela totalidade do cam po e quando toda a
gente colaborou para fazer dele um facto conhecido e reconhecido:
por exem plo, os receptores de um a descoberta colaboram para a
sua verificação ao tentar (em vão) destruí-la, refutá-la. Verificado
sig n ifica co lectiv am en te v alidado através de um trabalho de
com unicação que term ina no reconhecim ento universal (no limite
do cam po, ou seja, do universo dos conhecedores com petentes).
A ideia verdadeira tem um a força intrínseca no interior do universo
científico, sob certas condições sociais. É um a form a de convicção
que se im põe ao adversário concorrente que tenta refutá-la e que
é obrigado a entregar as armas. Os adversários colaboram no tra­
balho de verificação pelo trabalho que fazem para criticar, corrigir
e refutar.
Com o é que investigadores que estão em concorrência pelo
m onopólio da verdade podem chegar à homologein, ao consenso?
[Paréntesis: as ciências sociais, e m uito particularm ente a socio­
logia, têm dificuldade em im por esta am bição do m onopólio, que,
porém , está inscrita no facto de «a verdade ser una», porque, em
nome, entre outras coisas, de um a contaminação da ordem científica
por princípios de ordem política e da dem ocracia, deseja-se que a
verdade seja «plural», com o se diz hoje, e que diferentes poderes
de dim ensão sim bólica, nom eadam ente políticos e religiosos, e
sobretudo jornalísticos, sejam armados socialmente para reivindicar
com hipóteses de sucesso o direito de dizer a verdade sobre o
m undo social.] A homologein , o acordo racional, é o produto do
diálogo, da discussão, mas não de um qualquer diálogo; é um diálogo
subm etido às regras da dialéctica (lem brei em M èditations pas-
caliennes (1997), num breve resum o de um a investigação que
realizei, h á m uito tem po, com Jean Bollack, sobre a passagem do
raciocínio analógico para o raciocínio lógico na Grécia antiga, que
o desenvolvim ento progressivo da dialéctica e do diálogo regulado
acom panha a em ergência de um cam po filosófico em que, a pouco
e pouco, se constrói a civilidade do pensam ento civilizado no e
pelo qual os adversários aprendem a estar de acordo em questões
controversas e nas form as de regular os diferendos).

103
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

O trabalho de verificação e a homologein que o ratifica e con­


sagra pressupõem o acordo dos observadores quanto ao princípio
da hom ologação. Jacques M erleau-Ponty descreve a em ergência,
nas ciências dos séculos X IX e XX, da ideia de um a «com unidade
que se define pelas operações que perm item que cada um concorde
com os outros» (M erleau-Ponty, 1965). O invariável já não se
define pelo im utável, m as pela «identidade para toda um a classe
de observadores». A definição de objectividade que daí resulta já
não assenta na operação de um indivíduo isolado que observa a
natureza, m as faz intervir «a ideia de identidade para um a classe
de observadores e de com unicabilidade num a com unidade inter-
subjectiva». A objectividade depende do «acordo de um a classe
de observadores acerca daquilo que é registado nos aparelhos de
m edição em determ inada situação experim ental m uito precisa».
Pode então dizer-se que não há realidade objectiva independente
das condições da sua observação, sem se pôr em dúvida o facto
de que o que se m anifesta, um a vez determ inadas essas condições,
conserva um carácter de objectividade.
Pode tam bém evocar-se, nesta perspectiva, as análises de Jean-
-C laude Passeron, que m ostram as m aneiras particulares com o a
linguagem teórica está articulada sobre protocolos em píricos
(Passeron, a publicar: 106-107), ou a ideia de Ian Hacking, segundo
a qual existe um a correspondência entre um a teoria e os instru­
m entos que ela utiliza: «Criam os um conjunto de aparelhos que
fornecem dados que confirm am as teorias; avaliam os este conjunto
de aparelhos segundo a sua capacidade de produzir dados que se
ajustam » (H acking, 1992: 54). A incom ensurabilidade resulta do
facto de «os fenóm enos serem produzidos por técnicas funda­
m entalm ente diferentes e teorias diferentes que correspondem a
fenóm enos diferentes vagam ente ( loosely ) ligados» (H acking,
1992:57).
Vemos que, se estas análises tiveram o m érito de colocar o
acento no contributo que o processo de circulação, esquecido pela
epistem ología tradicional, dá para a construção do facto científico,
os estudos de laboratório esqueceram ou subestim aram bastante
a lógica inseparavelm ente social e intelectual desta circulação e
Um M u n d o à P a r t e

os efeitos de controlo lógico e em pírico, e, por isso, de universa­


lização, que ela produz. A circulação crítica é um processo de
desparticularização, de divulgação, no duplo sentido de oficialização
e de universalização, resultando naquilo a que Eugéne G arfield
cham a «a obliteração da origem das ideias, dos m étodos e das
descobertas pela sua incorporação no conhecim ento adm itido»
(G arfield, 1975). (A m aior consagração que um investigador pode
conhecer consiste em poder dizer-se autor de conceitos, efeitos,
etc., que se tom am anónim os, sem sujeito.) D everíam os retom ar
aqui a bela análise de G erald H olton, que m ostra com o R obert
M illikan conquistou o assentim ento ( assent ) a propósito do seu
trabalho com gotas de azeite por ter tido o cuidado de publicar as
suas experiências (H olton, 1978). É tam bém nesta perspectiva
que ganham todo o sentido alguns estudos que visam com preender
a transição com plexa da «privacy » do laboratorio para a «publiciíy»
do cam po, com o as de Owen H annaw ay (1988) ou Stephen Shapin
(1988). Os epistem ólogos ignoram esta passagem e a transm utação
a que dá lugar, mas os sociólogos que identificam a publicação
com a publicidade tam bém não têm os m eios de com preender a
sua lógica, inseparavelmente epistemológica e social, a m esm a
que define o processo sociológico de verificação.
[Com efeito, se é im portante levar em consideração o papel da
«divulgação», entendida com o o facto de to m ar público ( Òffen-
tlichkeit), esta não é um a form a de publicidade ou de relações
públicas, com o alguns defensores da nova sociologia da ciência
parecem pensar - e, sem dúvida, de boa fé, pois tentam colocar a
sua ideia de sucesso ao serviço do sucesso das suas ideias e agem
de acordo com a sua im agem de cientistas, que vêem à sua
im agem ... Colocando em prática a sua visão do m undo científico,
pretendem criar redes em que se constitua o reconhecim ento da
sua im portância: a verdade social é o objectivo da prova de força
e, portanto, é preciso estar em posição de força, nas revistas,
editoras, etc., p ara ter socialm ente razão sobre os adversários.]
M as há outra m aneira de perverter a lógica da oficialização-
-universalização possibilitada pelo facto de se poder imitar o aspecto
da universalidade. N a m inha obra sobre H eidegger, U O ntologie

105
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

politique de M artin H eidegger (1988a), tento descrever o proces­


so pelo qual se pode dar o aspecto de sistem aticidade e necessidade
a um léxico, que se apresenta assim com o independente do agente
histórico que o produz e das condições sociais de que é produto.
Poderia citar m uitos exem plos, em obras sociológicas e sobretudo
económ icas, deste tipo de trabalho social de neutralização que, ao
im itar os efeitos de universalização das ciências da natureza, pode
produzir efeitos de ciência perfeitam ente enganadores. G ostaria
de ter tem po p ara ler e com entar aqui um a longa carta de W assily
Leontief, intitulada «A cadem ic Econom ics» (Leontief, 1982), a
propósito da econom ia e que m ostra que esta disciplina baseia a
sua autoridade científica num a organização colectiva autoritária
que visa conservar a crença colectiva e a disciplina dos «m em bros
m ais jov en s da universidade» (younger fa cu lty members).
O p ro cesso de d esp erso n alização , de u n iv ersalização , de
desparticularização, cujo produto é o facto científico, tem tantas
m ais hipóteses de se efectuar realm ente quanto m ais autónom o e
internacional for o cam po (de todos os cam pos especializados, o
cam po científico é, certam ente, o que está m enos encerrado nas
fronteiras nacionais e em que o peso relativo dos «nacionais» é
m enor: o grau de internacionalização, que se pode m edir através
de diferentes indicadores, com o a língua utilizada, os lugares de
publicação, nacionais ou estrangeiros, etc., é um dos bons índices
do grau de autonom ia). C itarei aqui Ben-D avid: «A atribuição do
reconhecim ento científico é geralmente um processo supranacional
e, pelo m enos até certo ponto, supradisciplinar; portanto, os efeitos
de um qualquer preconceito no juízo estão aqui m inim izados.»
(B en-D avid, 1997: 283). U m a vez que, com o afirm ei, o capital
tem poral está m ais ligado às instâncias nacionais, às instâncias
tem poralm ente dom inantes, com o as academ ias, e dependentes
em relação a autoridades tem porais, tanto económ icas com o polí­
ticas, o processo de universalização tom ará necessariam ente a
form a de um a internacionalização com o desnacionalização.
O internacional é, com efeito, um recurso contra os poderes
tem porais nacionais, sobretudo em situações de fraca autonom ia.
E citarei aqui, m ais um a vez, Ben-D avid: «O cientista rejeitado da

106
Um M u n d o à Par t e

sua disciplina por um a autoridade teria várias instâncias de recurso


à sua disposição. Podería subm eter o seu artigo a várias revistas,
apresentá-lo na forma de livro a toda a com unidade científica, como
fez Darwin, ou confirm ar a sua teoria por experiências sensacionais,
com o P asteur e Koch. Todos estes recursos se fazem diante de
organism os e de públicos com pletam ente independentes dos orga­
nism os de ensino e de investigação, e em geral com objectivos inter­
disciplinares e de composição internacional» (Ben-David, 1997:279).
Q uais são as consequências propriam ente epistem ológicas
destas análises? As lutas a propósito do m onopólio da representação
cientificam ente legítima devem a sua especificidade (deveria dizer-
-se a sua excepcionalidade) ao facto de, ao contrário do que se
observa sobretudo no cam po artístico, a lógica da concorrência
conduzir (ou obrigar) os cientistas a utilizar sem pre todos os
instrum entos de conhecim ento disponíveis e todos os m eios de
verificação que foram acum ulados ao longo de toda a história da
ciência, e a dar assim a sua plena eficácia ao poder de arbitragem
da «realidade» (construída e estruturada segundo princípios social­
m ente definidos).
Substituir a relação entre um sujeito (o cientista) e um objecto
por um a relação entre os sujeitos (o conjunto dos agentes envolvidos
no cam po) a propósito da relação entre o sujeito (o cientista) e o
seu objecto, conduz a rejeitar, em simultâneo, a visão realista ingênua
segundo a qual o discurso científico é um reflexo directo da reali­
dade, um puro registo, e a visão construtivista relativista, segundo
a qual o discurso científico é produto de um a construção, orientada
por interesses e estruturas cognitivas, que produziría visões m úl­
tiplas, subdeterm inadas pelo mundo, desse mundo. [Pode observar-
-se, de passagem , que o relativism o assenta num realism o, ou seja,
por exem plo, no facto de haver interpretações diversas e variáveis
de um a realidade inalterada; ou então aquilo que os cientistas dizem
opõe-se ao que, na realidade, fazem.] A ciência é um a construção
que fa z em ergir um a descoberta irredutível à construção e às
condições sociais que a tom aram possível.
Tal com o se deve superar a alternativa do construtivism o idea­
lista e do positivism o realista com vista a um racionalismo realista

107
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

que sustente que a construção científica é a condição de acesso


ao advento do «real» a que cham am os descoberta, é necessário
su p erar a oposição entre a visão ingenuam ente idealizada da
«com unidade científica» com o reino encantado dos fins da razão
e a visão cínica que reduz as trocas entre os cientistas à brutalidade
calculada de relações de força políticas. A visão pessim ista da
ciência vê apenas m etade da verdade: esquece que, tanto na ciência
com o n a vida quotidiana, as estratégias de oficialização pelas quais
«se está em conform idade» fazem parte da realidade ao m esm o
título que as transgressões da regra oficial, e que contribuem para
a perpetuação e para a afirm ação da regra e da crença na regra
sem o que já não há regularidade nem conform idade m ínim a,
exterior, form al, à regra.
O estratag em a da razão cien tífica consiste em criar p res­
supostos a partir da contingência e do acaso, e em converter a
necessidade social em virtude científica. A visão oficial da ciência
é um a hipocrisia colectiva conveniente para garantir o m ínim o de
pressupostos com uns essenciais ao funcionam ento de um a ordem
social; a outra face da ciência é universalm ente conhecida de todos
os que participam no jo g o e, ao m esm o tem po, é unánim em ente
dissim ulada, com o um segredo de Polichinelo (os econom istas
fala riam de com m on know ledge ) cu id ad o sam en te g u ardado.
Todos conhecem a verdade das práticas científicas, que os novos
sociólogos da ciência descobrem e revelam alto e bom som, e
todos continuam a fingir não saber e a acreditar que isso se passa
de outro m odo. E se a hom enagem que o vício presta à virtude é
tão unânim e, tão incontestada e tão fortem ente afirm ada em todas
as estratégias de universalização, é porque o essencial, m esm o
quando se é obrigado a transgredir a regra, é evitar denunciar a
regra que está na base da crença ( illusio ) do grupo, ratificando as
p ráticas, porém com uns, que a transgridem e contradizem . A
ciên cia avança, em grande parte, porque se acredita e se faz
acreditar que ela avança com o dizem os que avança, principal­
m ente nos livros de epistem ología, e porque esta ficção colectiva
colectivam ente conservada continua a constituir a norm a ideal das
práticas.

108
Um M u n d o à P a r t e

Podem os agora regressar à questão que eu tinha form ulado no


início - a questão das relações entre a verdade e a história, que
está no centro da luta secular entre a filosofía e as ciências sociais;
com eçarei, com o não deixei de o repetir, por rejeitar os dois termos
da alternativa vulgarm ente adm itida, por um lado, o absolutism o
logicista que pretende dar fundam entos lógicos a p rio ri ao conhe­
cim ento científico, por outro, o relativism o historicista. M as, antes
disso, tenho de traçar a linha geral do m ovim ento que pretendo
seguir: num a prim eira fase, substituí as condições universais e os
a p rio ri de K ant por condições e alguns a p rio ri soeialm ente
constituídos, com o fez D urkheim em relação à religião e aos
princípios religiosos de classificação e construção do m undo em
Les fo rm es élémentaires de la vie religieuse e no artigo «Les
form es prim itives de classification»; posteriorm ente, gostaria de
m ostrar com o é que o processo de historicização da interrogação
kantiana deve concluir-se num a objectivação científica do sujeito
da objectivação, num a sociologia do sujeito cognoscente na sua
generalidade e particularidade, em sum a, naquilo a que cham o
um a teoria da reflexividade, que v isa objectivar o inconsciente
transcendental que o sujeito cognoscente investe sem o saber nos
seus actos de conhecim ento ou, se quiserm os, o seu habitus com o
transcendental histórico, de que se pode dizer que é a p rio ri
enquanto estrutura estruturante que organiza a percepção e a
ap reciação de q u alq u er ex p eriên cia e a p o sterio ri enquanto
estrutura estruturada produzida por toda um a série de aprendizagens
com uns ou individuais.
Para evitar que, com o geralm ente acontece, o contributo da
sociologia coexista num plano paralelo, mas social e intelectualmente
inferior (a hierarquia das disciplinas tam bém está presente nos
cérebros), com um a tradição de reflexão dom inante praticam ente
intocada e inalterada, lem bro que, num a perspectiva kantiana, a
objectividade é intersubjectividade, validação intersubjectiva, e
opõe-se, portanto, a qualquer form a de realism o que vise fundar a
verdade na «adequação da coisa e do espirito»; mas K ant não
descreve os processos em píricos pelos quais se chega a esse acordo
intersubjectivo - acerca do qual se adm ite, ou se afirm a a priori,

109
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

em nom e da cisão entre o transcendental e o empírico, que é fundado


no acordo das consciências transcendentais que, tendo as m esm as
estruturas cognitivas, estão de acordo universalm ente sobre o
m esm o universal. A objectividade, a verdade, o conhecim ento não
se referem a um a relação de correspondência entre o espírito
hum ano e um a realidade independente do espírito. A o insistir no
facto de não term os acesso ao conhecim ento das «coisas em si»,
K ant rejeita qualquer interpretação realista. M as não entende, com
isso, propor um a explicação do funcionam ento da ciência natural
considerada com o fenóm eno em pírico; pelo contrário, faz um a
distinção entre a função «transcendental» da filosofia, ou seja, a
enunciação das condições necessárias do conhecim ento verdadei­
ram ente científico, da estrutura espácio-tem poral que possibilita
os fenóm enos, e a função «em pírica» das diferentes ciências.
N ão obstante, foi num a perspectiva kantiana, m as totalm ente
excluída p o r Kant, em nom e da cisão entre o transcendental e o
em pírico, que m e coloquei, tom ando com o objecto a investigação
das condições sócio-transcendentais do conhecimento , ou seja,
da estrutura social ou sócio-cognitiva (e não apenas cognitiva)
em píricam ente observável (o cam po, etc.), que torna possível os
fenóm enos tal com o são apreendidos pelas diferentes ciências ou,
m ais exactam ente, a construção do objecto científico e do facto
científico.
Os positivistas lógicos continuam a afirm ar que a objectividade
científica só é possível graças a um a construção m atem ática a
p rio ri que deve ser im posta à natureza p ara que um a ciência
em pírica da natureza seja possível. M as esta estrutura m atem ática
subjacente não é, com o pretendia Kant, a expressão de leis eternas
e universais do pensam ento. Estas construções a priori devem
ser descritas com o linguagens. E é aqui que encontram os H enri
Poincaré, que, ao reflectir sobre as geom etrías não-euclidianas,
insiste no facto de essas construções deverem ser descritas com o
«livres convenções». [Henri Poincaré cham a «convenções» aos
princípios das ciências que não são nem evidências, nem generali­
zações experim entais, nem hipóteses form uladas por conjectura
em vista de fazer a sua verificação. «Os axiom as m atem áticos

110
Um M u n d o à P a r t e

não são nem ju ízo s sintéticos a priori, nem factos experim entais.
São convenções; a nossa escolha, entre todas as convenções pos­
síveis, é guiada p o r factos experim entais»; m as perm anece livre e
é lim itada apenas pela necessidade de evitar qualquer contradição»
(Poincaré, 1968, 2.a parte, cap. III). A geom etria euclidiana não é
a m ais verdadeira, m as a m ais cóm oda (Poincaré, 1 9 6 8 ,2.a parte,
cap. IV). Poincaré insiste tam bém no facto de essas convenções
não serem «arbitrárias», m as terem «um a origem experim ental».]
De facto, Poincaré introduz o lobo sociológico no redil m atem ático
e na visão sem pre um pouco pastoral que ele encoraja, com o
term o «convenção», cujas im plicações sociais ele não desenvolve,
m as coloca em causa a ideia de validade universal e convida a
questionar as condições sociais dessa validade convencional.
Poincaré está m uito próxim o do R u d o lf C am ap que, em 1934,
afirm ava que não há noção de validade universal independente­
m ente das regras particulares e diversas dos cálculos form alm ente
especificáveis, igualm ente possíveis e legítim os. A s noções de
«racionalidade» ou de objectividade são «relativas» à escolha desta
ou daquela linguagem ou quadro linguístico. As regras linguísticas
particulares de um determ inado quadro linguístico definem o que é
correcto. A escolha entre diferentes quadros é apenas o efeito de
um a livre convenção governada por critérios pragm áticos e não
racionais. D aí o princípio de tolerância. N um artigo intitulado
«Em piricism , Sem antics and O ntology» (1950), Carnap faz um a
distinção entre as questões internas e as questões externas: as
prim eiras colocam -se nos lim ites de um quadro linguístico e po ­
dem os responder-lhes nos lim ites das regras lógicas desse quadro
linguístico já escolhido e aceite relativam ente às quais as noções
de objectividade, de racionalidade, de validade e de verdade têm
um sentido. A s questões externas dizem respeito à escolha entre
diferentes quadros linguísticos, escolha que obedece a critérios
puram ente pragm áticos de ajustam ento a um qualquer fim.
Esta distinção de Cam ap é bastante análoga à distinção de Kuhn
entre ciência norm al e ciência revolucionária: as actividades de
resolução de enigmas («puzzle-solving») da ciência normal apoiam-
-se no pano de fundo de um paradigm a geralm ente aceite que

111
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

defíne, de m odo relativam ente incontestado, o que pode valer com o


solução correcta ou incorrecta. N as situações revolucionárias, pelo
contrário, o único paño de fundo que pode definir a «correcção»
está ele próprio em causa. É neste caso que nos defrontam os com
a escolha entre paradigm as concorrentes e que os critérios trans­
cendentes de racionalidade fazem falta. E a em ergência de um
novo consenso só pode ser explicada por factores não racionais.
Por conseguinte, a colocação em causa dos critérios universais
de racionalidade estava já prefigurada na tradição filosófica que
tinha evoluído de um universalism o «transcendental» de tipo kan ­
tiano p ara um a noção da racionalidade já relativizada, com o em
C am ap. K uhn m ais não fez do que reencontrar a tradição kantiana
do a p rio ri , m as tom ado num sentido relativizado, historicizado,
ou, m ais exactam ente, sociologizado, com o em Durkheim , a quem
se podería atribuir a paternidade da ideia das condições sócio-
- transcendentais. A filosofia, m uito entrelaçada com a ciência,
evoluiu para um a concepção da racionalidade relativizada e conven-
cionalista, próxim a da sociologia da ciência, mas que não leva em
conta os factores sociais responsáveis pela aceitação consensual
do quadro linguístico de C am ap ou do paradigm a de Kuhn.
E aqui que se pode colocar a questão da leitura sociológica de
W ittgenstein, que ocupa, com o vim os, um lugar m uito im portante
na intersecção entre a filosofía e a sociologia da ciência desde que
D avid B loor se apoiou neste filósofo para fundar um a teoria da
ciência segundo a qual a racionalidade, a objectividade e a verdade
são norm as socioculturais locais, convenções adoptadas e im postas
por gm pos particulares: os conceitos de «language game» e «form
o f Ufe», que desem penham um papel central nas Philosophical
Investigations , são interpretados com o referindo-se a actividades
sociolinguísticas associadas a grupos socioculturais particulares
em que as práticas são reguladas por norm as convencionalm ente
adoptadas pelos gm pos envolvidos (Bloor, 1983).
C ontra a leitura de Bloor, invoca-se o facto de W ittgenstein se
lim itar a tratar de exem plos im aginários e a conceber a filosofia
que propõe com o fundam entalm ente não empírica: o seu trabalho
não diz respeito - com o ele não deixa de o lem brar - à «ciência

112
Um M u n d o à P a r t e

natural», nem m esm o à «história natural», um a vez que está em


posição de «produzir um a história natural fictícia» para as neces­
sidades da sua investigação (W ittgenstein, 1953). Apenas descreve
os m últiplos usos da linguagem na nossa única com unidade lin­
guística (e não com unidades sócio-cognitivas em concorrência).
Com P hilosophical Investigations, espécie de lógica trans­
cendental de tipo kantiano que visa descrever os pressupostos ou
condições de possibilidade absolutam ente necessários a todo o
pensam ento sobre o real (Friedm an, 1996), W ittgenstein abandona
o absolutism o lógico do Tractatus a favor de um a espécie de
pluralismo linguístico: há não só vários quadros lógico-matemáticos,
com o em C am ap, m as várias linguagens que perm item construir o
m undo. M as os com entadores de W ittgenstein têm razão em
observar que, se ele rejeita todas as justificações e todos os fun­
damentos últimos e se afirm a firm emente que somos nós que dam os
sentido e força às leis lógico-m atem áticas através da m aneira com o
as aplicam os, não chega ao ponto de fundar a necessidade dessas
leis no acordo e na convenção. São «leis do pensam ento» que
exprim em a essência do espírito hum ano e que, a esse título, devem
ser objecto de um a investigação não em pírica, ou, com o diz
W ittgenstein, «gramatical».

M as m ais do que optar entre um a leitura «sociológica» (à


m aneira de Bloor) e um a leitura «gram atical» de W ittgenstein,
gostaria de m ostrar que se pode conservar a norm atividade dos
princípios «gramaticais» sem os quais não há pensam ento possível,
reconhecendo o carácter histórico e social de qualquer pensam ento
hum ano; que é possível postular a historicidade radical das norm as
lógicas e salvar a razão, e isso sem artifício transcendental e sem
exim ir a própria razão sociológica à análise que a sociologia im põe
a todo o pensam ento.
[Entre paréntesis, gostaria de dizer que a referência às duas
leituras possíveis de W ittgenstein tem o m érito de levantar com
toda a clareza a questão das relações entre as lim itações lógicas e
as lim itações sociais, através da questão dos universos de práticas,
das «form as de vida», em que as lim itações lógicas se apresentam

113
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

na form a de lim itações sociais, com o o m undo das m atem áticas


ou, mais am plamente, da ciência. E, ao notar que todos os exemplos
de «jogos de linguagem » propostos por W ittgenstein são retirados
das nossas sociedades, eu podería, levando ao extrem o a ruptura
w ittgensteiniana com o logicism o, tentar esboçar um a solução de
inspiração wittgensteiniana para a questão da historicidade da razão
e da relação entre as lim itações lógicas e as lim itações sociais.
Para isso, bastaria reconhecer naquilo a que cham o cam pos, reali­
zações em píricas dessas «form as de vida» em que se jogam «jogos
de linguagem » diferentes; e observar que, entre esses cam pos, há
uns que, com o o cam po científico, favorecem ou im põem trocas
em que as lim itações lógicas adquirem forma de limitações sociais;
isto porque elas estão inscritas nos procedim entos instituciona­
lizados que regulam a entrada no jogo, nas lim itações que pesam
sobre as trocas em que os produtores apenas têm com o clientes
os m ais com petentes e os m ais críticos dos seus concorrentes, e
por fim, e sobretudo, nas disposições dos agentes que são, em
parte, produto dos m ecanism os do cam po e do «nivelam ento» que
eles exercem .]
Pode assim salvar-se a razão sem invocar, com o um D eus ex
machina, esta ou aquela form a de afirm ação do carácter transcen­
dental da razão. Isto descrevendo a em ergência progressiva de
universos em que, para ter razão, é necessário fazer valer razões,
dem onstrações reconhecidas com o consequentes, e em que a lógica
das relações de força e das lutas de interesse é de tal m odo regulada
que a «força do m elhor argum ento» (de que fala H aberm as) tem
razoáveis hipóteses de se impor. Os cam pos científicos são uni­
versos no interior dos quais as relações de força sim bólicas e as
lutas de interesses que elas favorecem contribuem para dar força
ao m elhor argum ento (e no interior dos quais a teoria de H aberm as
é verdadeira, em bora não coloque a questão das condições sociais
de possibilidade desses universos e inscreva essa possibilidade em
propriedades universais da linguagem por um a form a falsam ente
historicizada de kantism o).
Por conseguinte, há universos em que se instaura um consenso
social a propósito da verdade, m as que estão sujeitos a constrangi­

114
Um M u n d o à P a r t e

m entos sociais que favorecem a troca racional e obedecem a


mecanismos de universalização com o os controlos m útuos; em
que as leis em píricas de funcionam ento que regem as interacções
im plicam a utilização de controlos lógicos; em que as relações de
força sim bólicas adquirem um a forma, absolutamente excepcional,
tal que, por um a vez, há um a força intrínseca da ideia verdadeira,
que pode ir buscar força à lógica da concorrência; em que as
antinom ias vulgares entre o interesse e a razão, a força e a verdade,
etc., tendem a enfraquecer ou a desaparecer. E citaria aqui Popper,
que, certam ente num a intenção e num a lógica diferentes, sustenta,
com o Polanyi, que é a natureza social da ciência a responsável
pela sua objectividade: «de form a m uito paradoxal, a objectividade
está intim am ente ligada ao carácter social do m étodo científico,
porque a ciência e a objectividade científica não resultam (e não
podem resultar) das tentativas de um cientista individual para ser
“objectivo” , m as antes da cooperação am igavelm ente-hostil de
num erosos cientistas. A objectividade científica pode ser descrita
com o a intersubjectividade do m étodo científico» (Popper, 1945).
R eintroduzim os assim na intersubjectividade kantiana as con­
dições sociais que a fundam e que lhe conferem a eficácia propria­
m ente científica. A objectividade é um produto intersubjectivo do
cam po científico: fundada nos pressupostos partilhados nesse
cam po, é resultado do acordo intersubjectivo no cam po. Cada
cam po (disciplina) é o lugar de um a legalidade específica {nomos)
que, produto da História, está encamada nas regularidades objectivas
do funcionamento do cam po e, mais precisamente, nos mecanism os
que regem a circulação da inform ação, na lógica da distribuição
de recom pensas, etc., e nos hábitos científicos produzidos pelo
cam po que são a condição do seu funcionam ento. A s regras
epistem ológicas são as convenções estabelecidas em m atéria de
regulação das controvérsias: regem o confronto do cientista com
o m undo exterior, ou seja, entre a teoria e a experiência, mas
tam bém com os outros cientistas, perm itindo antecipar a crítica e
refutá-la. U m bom cientista é alguém que tem o sentido do jo g o
científico, que pode antecipar a crítica e adaptar-se antecipada­
mente aos critérios que definem os argumentos admissíveis, fazendo

115
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

assim avançar o processo de reconhecim ento e de legitim ação;


alguém que põe fim à experim entação quando pensa que esta está
conform e às norm as socialm ente definidas da sua ciência e quando
se sente suficientem ente seguro para enfrentar os seus pares. O
conhecim ento científico é o conjunto das proposições que sobre­
viveram às objecções.
Os critérios ditos epistém icos são a form alização das «regras
do jo g o » que devem ser observadas no cam po, ou seja, regras
sociológicas das interacções no cam po, principalm ente regras de
argum entação ou norm as de com unicação. A argum entação é um
processo colectivo levado a cabo diante de um público e subm etido
a regras. N inguém está m enos isolado, m enos entregue a si próprio,
na sua originalidade singular, do que um cientista; não só porque
trabalha sem pre com outros, em laboratórios, m as porque se apoia
em toda a ciência passada e presente dos restantes cientistas,
retom ando ou legando-lhes tem as perm anentem ente, e porque está
h abitado p o r um a espécie de superego colectivo, inscrito em
instituições sob a form a de apelos à ordem estabelecida, e inserido
num grupo de pares m uito crítico, para quem se escreve, com
quem se tem e com parar, e, ao m esm o tem po, m uito tranquilizador,
que oferece garantias, cauções (são as referências) e assegura a
qualidade das produções.
O trabalho de universalização, que se realiza no cam po, através
do confronto regulado dos concorrentes m ais inclinados e m ais
aptos para reduzir à particularidade contingente de um a opinião
singular qualquer juízo que aspire à validação e, por isso, à validade
universal, é o que faz com que a verdade reconhecida pelo cam po
científico seja irredutível às suas condições históricas e sociais de
produção. U m a verdade que passou pela prova da discussão num
cam po em que interesses antagónicos, e até estratégias de poder
opostas, se defrontaram a seu respeito, não é em nada afectada
pelo facto de aqueles que a descobriram terem in teresse em
descobri-la. É m esm o necessário adm itir que as pulsões, em geral
as m ais egoístas, são o m otor desta m áquina que as transform a e
transm uda a favor de um confronto arbitrado pela referência ao
real construído. Se a verdade se apresenta com o transcendente

116
Um M u n d o à P a r t e

em relação às consciências que a apreendem e aceitam com o tal,


relativam ente aos sujeitos históricos que a conhecem e reconhe­
cem , é po r ser o produto de um a validação colectiva realizada nas
condições absolutam ente singulares que caracterizam o cam po
científico, ou seja, na e pela cooperação conflitual mas regulada
que a concorrência nele im põe, e por ser capaz de im por a supe­
ração de interesses antagónicos e, se necessário, apagar todas as
m arcas ligadas às condições particulares da sua em ergência. É o
que se percebe, parece-m e, quando se observa que os físicos do
dom ínio quântico não têm qualquer dúvida sobre a objectividade
do co n h ecim en to que dele tran sm item pelo facto de as suas
experiências serem reprodutíveis por investigadores dotados da
com petência necessária para as invalidar.

117
3

P o r q u e D e v e m a s C ie n c ia s S o c ia is s e r
T o m a d a s c o m o O b je c to ?

Ao colocar o problem a do conhecim ento com o coloquei, não


deixei de te r presente no espírito as ciências sociais, cuja particu­
laridade cheguei outrora a negar. Isto não por u m a espécie de
cientism o positivista, com o se podería crer ou parecer crer, m as
porque, m uitas vezes, a exaltação da singularidade das ciências
sociais é apenas um a m aneira de decretar a im possibilidade de
com preender científicam ente o seu objecto. Penso, por exem plo,
num livro de A d o lf G rünbaum (1993) que lem bra as tentativas de
alguns filósofos -H a b e rm a s, Ricoeur, etc. - para definir lim ites a
prio ri a estas ciências. (O que eu considero absolutam ente injusti­
ficável: por que razão afirm ar que certas coisas são incognoscíveis,
e isso, a priori, antes m esm o de qualquer experiência? Os que
são hostis à ciência aplicaram e concentraram a sua fúria sobre as
ciências sociais e, m ais precisam ente, sobre a sociologia - contri­
buindo assim , decerto, para lhe refrear o progresso - , talvez por a
c iên cia da n atu re za já não lhes d ar o p o rtu n id ad e p ara isso.
D ecretam incognoscíveis algum as coisas, com o o religioso e todos
os seus substitutos, a arte, a ciência, às quais se deveria renunciar
dar um a explicação.) Era contra esta resistência m ultiform e às
ciências sociais que M étier de sociologue (B ourdieu, C ham -
boredon e Passeron, 1968) afirm ava que as ciências sociais são
ciências com o as outras, m as que têm u m a dificuldade particular
em ser ciências com o as outras.

119
P a r a u ma S o c i o l o g í a d a C iê n c ia

H oje, não há dúvida de que esta dificuldade ainda é m ais


evidente e parece-m e que, para realizar o projecto científico em
ciências sociais, é necessário dar m ais um passo, que as ciências
da n atu reza podem dispensar. P ara descobrir o que está po r
excelência oculto, o que escapa ao olhar da ciência porque se
esconde no próprio olhar do cientista, o inconsciente transcendental,
é necessário historicizar o sujeito da historicização, objectivar o
sujeito da objectivação, ou seja, o transcendental histórico cuja
objectivação é a condição de acesso da ciência à consciência de
si, ou seja, ao conhecim ento dos seus pressupostos históricos. E
necessário pedir ao instrum ento de objectivação constituído pelas
ciências sociais o m eio de resgatar essas ciências da relativização
a que estão expostas enquanto as suas produções continuarem a
ser determ inadas pelas determ inações inconscientes inscritas no
cérebro do cientista ou nas condições essenciais no interior das
quais ele produz. Por isso, devem enfrentar o círculo relativista ou
céptico e quebrá-lo, utilizando, para fazer a ciência das ciências
sociais e dos cientistas que as produzem , todos os instrum entos
fornecidos por essas m esm as ciências e produzir assim instru­
m entos que perm itam dom inar as determ inações sociais a que
elas estão expostas.
Para com preender um dos princípios fundam entais da particu­
laridade das ciências sociais, basta exam inar um critério que já
evoquei quando levantei a questão das relações entre cientificidade
e autonomia. Seria possível distribuir as diferentes ciências segundo
o grau de autonom ia do cam po de produção científica relativamente
às diferentes form as de pressão externa, econôm ica, política, etc.
N os cam pos com fraca autonom ia, portanto profundam ente im er­
gidos em relações sociais, com o a astronom ia ou a física na sua
fase inicial, as grandes revoluções fundadoras são tam bém revolu­
ções religiosas ou políticas que podem ser combatidas politicamente
com hipóteses de sucesso (pelo m enos a curto prazo) e que, com o
as de C opérnico ou de G alileu, subvertem a visão do m undo em
todas as suas dim ensões. Pelo contrário, quanto m ais autónom a é
um a ciência, m ais, com o observa Bachelard, ela tende a ser o
lugar de um a verdadeira revolução perm anente, m as com cada

120
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

vez m enos im plicações políticas ou religiosas. N um cam po m uito


autónom o, é o cam po que defíne não só a ordem ordinária da
«ciência norm al», m as tam bém as rupturas extraordinárias, as
«revoluções ordenadas» de que fala Bachelard.
Podem os perguntar-nos por que razão é que as ciências sociais
têm tanta dificuldade em fazer reconhecer a sua autonom ia, por
que é que um a descoberta tem tanta dificuldade em im por-se no
exterior do cam po e até m esm o no interior. A s ciências sociais, e
m uito particularm ente a sociologia, têm um objecto dem asiado
im portante (diz respeito a toda a gente, a com eçar pelos que detêm
o poder), dem asiado m elindroso para que o possam os deixar à sua
discrição, abandoná-lo apenas à sua lei, dem asiado im portante e
m elindroso do ponto de vista da vida social, da ordem social e da
ordem sim bólica, para que lhes seja atribuído o m esm o grau de
autonom ia dado às outras ciências e lhes seja entregue o monopólio
da produção da verdade. E, de facto, toda a gente se sente no
direito de se introm eter na sociologia e entrar na luta a propósito
da visão legítim a do m undo social, n a qual o sociólogo tam bém
intervém , m as com um a m otivação m uito especial, que é perm itida
sem problem as a todos os outros cientistas, e que, no seu caso,
tende a parecer m onstruosa: dizer a verdade ou, pior, definir as
condições em que se pode dizer a verdade.
A ciência social está, portanto, exposta à heteronom ia porque
a pressão externa que sofre é particularm ente forte e porque as
condições internas da autonom ia são m uito difíceis de instaurar
(principalm ente pela im posição de requisitos de adm issão). O utra
razão para a fraca autonom ia dos cam pos das ciências sociais é o
facto de, no próprio interior desses cam pos, se defrontarem agentes
desigualm ente autónomos, e de os investigadores m ais heterónimos
e as suas verdades «endóxicas», com o diz A ristóteles, terem , por
definição, mais hipóteses de se impor socialmente aos investigadores
autónom os: aqueles que são dom inados científicam ente são, com
efeito, os m ais inclinados a subm eter-se às pressões externas, de
direita ou de esquerda (é aquilo a que cham o a lei do jdanovism o)
e estão m elhor preparados, geralm ente por defeito, para as satisfa­
zer, e têm portanto m ais hipóteses de triunfar na lógica do plebiscito

121
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

- ou do aplaudím etro ou do audím etro. D eixa-se grande liberdade,


m esm o no interior do campo, aos que contradizem o próprio nomos
do cam po e que estão ao abrigo das sanções simbólicas que, noutros
cam pos, castigam os que faltam aos princípios fundam entais do
cam po. Aqui, proposições inconsistentes ou incom patíveis com os
factos têm m ais hipóteses de se perpetuar e até de prosperar do
que nos cam pos científicos m ais autónom os, desde que sejam
dotadas, tanto no interior com o no exterior do cam po, de peso
social capaz de com pensar a sua insuficiência ou insignificância,
especialm ente garantindo-lhes apoios m ateriais e institucionais
(créditos, subsídios, cargos, etc.). Ao m esm o tem po, tudo o que
define um cam po m uito autónom o, e que está ligado ao fechamento
do sub cam p o de pro d u ção restrin g id o a si m esm o, com o os
m ecanism os de censura m útua, é difícil de ser instaurado.
Com poucos requisitos de admissão, logo censura m uito reduzida
- questões sociais m uito importantes - , a ciência social possui um a
terceira particularidade que torna especialm ente difícil a ruptura
social que é a condição para a construção científica. Vim os que a
luta científica é arbitrada pela referência ao «real» construído. N o
caso das ciências sociais, o «real» é m uito exterior e independente
do conhecim ento, m as é tam bém um a construção social, um
produto de lutas anteriores que, pelo m enos a este título, continua
a ser objecto de lutas presentes. (Percebem os bem isto, m esm o
no caso da história, quando se estuda acontecim entos ainda contro­
versos para os contem porâneos.) Por conseguinte, é necessário
associar um a visão construtivista da ciência a um a visão constru-
tivista do objecto científico: os factos sociais são socialm ente
construídos e qualquer agente social, com o o cientista, constrói
tão bem com o mal e pretende impor, com m aior ou m enor força, a
sua visão singular da realidade, o seu «ponto de vista». É isto que
faz com que a sociologia, quer queira quer não (e, na m aioria das
vezes, quer), seja parte interessada nas lutas que descreve.
A ciência social é, portanto, um a construção social de um a
construção social. Existe no próprio objecto, ou seja, na realidade
social no seu todo e no m icrocosm o social no interior do qual se
constrói a representação científica desta realidade, o cam po cien-

122
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

tífico, um a luta a propósito da (pela) construção do objecto, luta


em que a ciência social participa duplam ente: envolvida no jogo, a
ciência social sofre os seus constrangim entos e produz efeitos,
decerto lim itados. O analista faz parte do m undo que ele procura
objectivar e a ciência que ele produz é apenas um a das forças que
se defrontam nesse m undo. A verdade científica não sê im põe por
si m esm a, ou seja, apenas pela força da razão argum entativa (nem
sequer no cam po científico). A sociologia é socialm ente fraca, e
tanto m ais, sem dúvida, quanto m ais científica for. Os agentes
sociais, sobretudo quando ocupam posições dom inantes, não são
apenas ignorantes, ignoram deliberadamente (por exemplo, a análise
científica da televisão perm ite observar um confronto frontal entre
os detentores do poder tem poral sobre esses universos e a ciência
que m ostra a verdade). A sociologia só pode esperar o reconheci­
m ento unânim e se atrair as ciências da natureza (cujo objecto já
não é - ou é m uito pouco - um a questão de lutas sociais fora do
cam po) e está votada a ser contestada, controversa.

1. O b j e c tiv a r o S u je ito d a O b je c tiv a ç ã o

A reflex iv id ad e não é apenas a única m aneira de sair da


contradição que consiste em reivindicar a crítica relativizante e o
relativism o quando se trata das outras ciências, ao m esm o tem po
que se m antém ligada a um a epistem ología realista. Entendida
com o o trabalho pelo qual a ciência social, tom ando-se a si m esm a
com o objecto, se serve das suas próprias arm as para se com pre­
ender e se controlar, a reflexividade é um m eio particularm ente
eficaz de reforçar as hipóteses de se aceder à verdade ao reforçar
as censuras m útuas e ao fornecer os princípios de um a crítica
técnica, que perm ite controlar de form a m ais atenta os factores
susceptíveis de alterar o sentido da investigação. N ão se trata de
procurar um a nova form a de saber absoluto, m as de exercer um a
form a específica de vigilância epistem ológica, a m esm a que deve
efectuar esta vigilância sobre um terreno em que os obstáculos
epistem ológicos são, prim ordialm ente, obstáculos sociais.

123
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

A ciência m ais sensível aos determ inism os sociais pode, com


efeito, encontrar em si m esm a os recursos que, m etodicam ente
utilizados como dispositivo (e disposição) crítico, lhe podem permitir
lim itar os efeitos dos determ inism os históricos e sociais. Para que
apliquem à sua própria prática as técnicas de objectivação que
aplicam às outras ciências, os sociólogos devem converter a refle-
xividade num a disposição constitutiva dos seus hábitos científicos,
ou seja, um a reflexividade reflexa, capaz de agir não ex p ost,
sobre o opus operatum, m as a priori, sobre o modus operandi
(disposição que interditará, por exem plo, analisar as aparentes
diferenças nos dados estatísticos a propósito de diferentes nações
sem questionar as diferenças escondidas entre as categorias de
análise ou as condições da recolha dos dados ligadas às diferentes
tradições nacionais que podem ser responsáveis por essas dife­
renças ou pela sua ausência).
M as devem previam ente fugir à tentação de se conform ar à
reflexividade a que poderiam os cham ar narcísica , não só porque
esta reflexividade se lim ita m uitas vezes a um retorno com placente
do investigador às suas próprias experiências, mas tam bém porque
é em si m esm a o seu fim e não produz qualquer efeito prático. D e
bom grado eu classificaria nesta categoria, apesar dos contributos
que por si m esm a pode dar para um m elhor conhecimento da prática
científica, a reflexividade tal com o é praticada pelos etnom eto-
dólogos, que deve a sua sedução especial ao ar de radicalidade
que dá apresentando-se com o um a crítica radical das form as es­
tabelecidas da ciência social. Para tentar esclarecer a lógica dos
diferentes «jogos de codificação» ( coding games), G arfinkel e
Sachs (1986) observam dois estudantes encarregados de codificar,
segundo instruções estandardizadas, ficheiros de pacientes de um
hospital psiquiátrico. R ecenseiam as «considerações a d hoc» que
os codificadores adoptaram para realizar o ajustam ento entre o
conteúdo dos ficheiros e a folha de codificação, principalm ente
term os retóricos com o «etc., let itp a ss, unless», e observam que
eles utilizam o conhecimento da clínica onde trabalham (e, de forma
m ais lata, do m undo social) para fazer esses ajustam entos. Tudo
isto para concluir que o trabalho científico é m ais constitutivo do

124
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

que descritivo ou com provativo (o que é um m odo de questionar a


pretensão das ciências sociais à cientifícidade).
O bservações e reflexões com o a de G arfinkel e Sachs podem
ter pelo m enos o efeito de retirar aos estatísticos a sua confiança
positivista em taxinom ias e procedim entos rotinizados. E percebe-
-se tudo o que um a concepção realista da reflexividade pode ganhar
com análises deste tipo, que, aliás, efectuei inúm eras vezes desde
há m uito. Isto, na condição de se inspirar num a intenção a que se
pode cham ar reformista , na m edida em que assum e explicitam ente
o projecto de procurar na ciência social e no conhecim ento que
ela pode fornecer, principalm ente acerca da própria ciência social,
das suas operações e dos seus pressupostos, instrum entos indispen­
sáveis p ara um a crítica reflexiva capaz de lhe assegurar um grau
superior de liberdade relativam ente a constrangim entos e a neces­
sidades sociais que pesam tanto sobre ela com o sobre qualquer
outra actividade hum ana.
M as esta reflexividade prática só ganha toda a sua força se a
análise das im plicações e dos pressupostos das operações rotineiras
da prática científica se desenvolver num a verdadeira crítica (no
sentido de Kant) das condições sociais de possibilidade e dos limites
das form as de pensam ento que o cientista ignorante dessas con­
dições inclui sem o saber na sua investigação e que realizam sem
ele saber, ou seja, no seu lugar, as operações m ais especificam ente
científicas, com o a construção do objecto da ciência. Assim , por
exem plo, um a inquirição verdadeiram ente sociológica sobre as
operações de codificação deveria esforçar-se por objectivar as
taxinom ias utilizadas pelos codificadores (estudantes encarregados
de codificar os dados ou autores responsáveis pela grelha de
codificação) e que podem pertencer ao inconsciente antropológico
com um , com o as que descobri num questionário do IFOP (*) em
form a de «jogo chinês» (analisado em anexo da La Distinction -
1979), ou a um inconsciente escolar, com o as «categorias do
entendimento professoral» que revelei a partir dos juízos formulados
por um professor para justificar as suas notas e classificações; e

O Instituto Francês de Opinião Pública. (N. de T.)

125
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

que, em am bos os casos, podem então ser relacionadas com as


suas condições sociais de produção.
Foi assim que a reflexão sobre as operações concretas de codi­
ficação, as que eu próprio realizei nas m inhas pesquisas, ou as que
foram realizadas pelos produtores de estatísticas e que eu cheguei
a utilizar (em especial as pesquisas do IN SEE (*)), m e levou a
relacionar as categorias ou os sistem as de classificação utilizados
com os utilizadores, com os idealizadores dessas classificações e
com as condições sociais da sua produção (principalm ente a sua
form ação escolar); a objectivação desta relação fornece um m eio
eficaz de com preender e controlar os seus efeitos. Por exem plo,
não há manifestação mais perfeita daquilo a que chamo pensam ento
de Estado do que as categorias da estatística do Estado que só
revelam o seu carácter arbitrário (norm alm ente disfarçado pela
rotina de um a instituição autorizada) quando desbaratadas por um a
realidade «inclassifícável»: com o as populações recentem ente
surgidas, n a fronteira incerta entre a adolescência e a idade adulta,
ligadas sobretudo ao prolongam ento dos estudos e à transform ação
dos costum es m atrim oniais, populações que j á não sabem os se
são com postas de adolescentes ou adultos, estudantes ou assala­
riados, casados ou celibatários, trabalhadores ou desem pregados.
M as o pensam ento de Estado é tão forte, sobretudo na m ente dos
cientistas de Estado oriundos das grandes escolas estatais, que o
desbaratam ento das rotinas classifícatórias e dos com prom issos
que norm alm ente perm item salvá-las - como todos os equivalentes
dos «let itpass» do codificador americano, reagrupamentos, recurso
a categorias genéricas, construção de índices, etc. - não chegaria
para pôr em causa as taxinom ias burocráticas, garantidas pelo
Estado, se os estatísticos de Estado não tivessem a oportunidade
de ter encontrado um a tradição reflexiva que só podia ter nascido
e crescido no pólo da ciência «pura», burocráticam ente irrespon­
sável, das ciências sociais.
D eve acrescentar-se, para acabar de m arcar a diferença com
a reflexividade narcísica, que a reflexividade reform ista não é

O Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Económicos. (N. de T.)

126
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

um a questão de apenas um a p essoa e que só se pode exercer


plenam ente se envolver todos os agentes do cam po. A vigilância
epistem ológica sociologicam ente arm ada que cada investigador
pode exercer por sua própria conta só pode ser reforçada pela
generalização do im perativo de reflexividade e pela divulgação
dos instrum entos indispensáveis para lhe obedecer, o único capaz
de instituir a reflexividade com o lei com um do cam po, que estaria
assim votado a um a crítica sociológica de todos por todos capaz
de intensificar e duplicar os efeitos da crítica epistem ológica de
todos por todos.
E sta concepção reform ista da reflexividade pode, em cada
investigador e, a fo rtiori, à escala de um colectivo com o uma
equipa ou um laboratório, estar no princípio de um a espécie de
p rudência epistem ológica que perm ite antecipar as hipóteses
prováveis de erro ou, de form a m ais lata, as tendências e as ten­
tações inerentes a um sistem a de disposições, a um a posição ou à
relação entre am bos. Por exem plo, depois de se ler a obra de
C harles Soulié (1995) sobre a escolha dos tem as de trabalhos
(m em órias, teses, etc.) em filosofía, h á m enos hipóteses de se ser
m anipulado pelos d eterninism os ligados ao sexo, à origem social e
à filiação escolar que norm alm ente orientam as escolhas; ou, do
m esm o modo, quando conhecem os as tendências do «aluno-prodí-
gio» para a hiperidentifícação m aravilhada com o sistem a escolar,
estam os m elhor preparados para resistir ao efeito do pensam ento
de Escola. O utro exem plo: se, à m aneira de Weber, que fala de
«tendências do corpo sacerdotal», falarm os de tendências do corpo
professoral, podem os aum entar as hipóteses de escapar à mais
típica delas, a tendência para o desvio escolástico, destino provável
de tantas leituras de lector , e de observar de form a com pletam ente
diferente um a genealogia, construção escolástica típica que, ao
aparentar libertar a verdade do parentesco, im pede que se adquira
a ex p eriên cia p rática da rede de p arentesco e das estratégias
destinadas, por exem plo, a m antê-la. M as podem os ir além do
conhecim ento das tendências m ais com uns e esforçarm o-nos por
conhecer as tendências específicas do corpo dos professores de
Filosofia, ou, m ais precisam ente, dos professores de Filosofia fran-

127
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

ceses, ou, de form a ainda m ais exacta, dos professores franceses


form ados nos anos 50, e ter assim algum as hipóteses de antecipar
destinos prováveis e evitá-los. Do m esm o m odo, a descoberta do
laço entre os pares epistem ológicos descritos por B achelard e a
estrutura dualista dos cam pos leva-nos a desconfiar dos dualism os
e a subm etê-los a um a crítica sociológica e não apenas epistem o­
lógica. Em sum a, a socioanálise do espírito científico, tal com o a
evoco, parece-m e ser um princípio de liberdade, p ortanto, de
inteligência.
Um trabalho de objectivação só é científicamente controlado em
proporção da objectivação que se fez previam ente sobre o sujeito
da objectivação. Por exemplo, quando pretendo objectivar um objecto
com o a universidade francesa na qual m e incluo, tenho com o objec-
tivo, e devo sabê-lo, objectivar toda um a faceta do m eu inconsciente
específico que pode ser um obstáculo ao conhecim ento do objecto,
sendo todo o progresso no conhecim ento do objecto inseparavel-
m ente um progresso no conhecim ento da relação com o objecto,
portanto, no dom ínio da relação não analisada com o objecto (a
«polém ica da razão científica» de que fala B achelard pressupõe
quase sem pre um a suspensão da polém ica no sentido vulgar). Por
outras palavras, tenho tantas m ais hipóteses de ser objectivo quanto
m ais tiver com pletam ente objectivado a m inha própria posição
(social, universitária, etc.) e os interesses, principalm ente os inte­
resses propriam ente universitários, ligados a essa posição.
[Para dar um exem plo da relação «dialéctica» entre a auto-
-análise e a análise que está no centro do trabalho de objectiva­
ção , poderia contar aqui toda a história da pesquisa que conduziu
ao H om o academicus (1984) - infelizm ente, não tive o «reflexo
reflexivo» de fazer um diário de pesquisa e tinha de trabalhar de
m em ória. M as, para continuar o exem plo da codificação, descobri,
por exem plo, que não havia critérios de qualidade científica (à
excepção de distinções com o as m edalhas de ouro, prata ou bronze,
dem asiado raras para poderem servir de critério de codificação
eficaz e pertinente). P or conseguinte, fui levado a construir índices
de reconhecim ento científico e, ao m esm o tempo, obrigado a reflec-
tir não só sobre o tratam ento diferente que devia dar às categorias

128
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c ia is . ..

«artificiais» e às categorias já constituídas na realidade (com o o


sexo), m as tam bém sobre a própria ausência de princípios de
hierarquização específica num corpo literalm ente obcecado pelas
classificações e pelas hierarquias (por exem plo, entre os agregados
[(agrégés ], os bi-admissibles, os admissibles, os certifiés, etc.).
O que m e levou a inventar a ideia de sistem a de defesa colectivo,
um dos elem entos do qual é a ausência de critérios de «valor
científico», e que perm ite aos indivíduos, com a cum plicidade do
grupo, protegerem -se dos efeitos prováveis de um rigoroso sistem a
de avaliação do «valor científico»; isso, sem dúvida, porque um tal
sistem a seria de tal m odo doloroso p ara a m aioria dos envolvidos
na vida científica que toda a gente trabalha com o se esta hierarquia
não fosse avaliável e que, assim que um instrum ento de m edição
aparece, com o a citação index, pode ser rejeitado em nom e de
diversos argum entos, com o o facto de favorecer os grandes labo­
ratórios, ou os anglo-saxónicos, etc. Ao contrário do que se passa
quando se classifica coleópteros, neste caso classifica-se classifi-
cadores que não aceitam ser classificados, que podem até contestar
os critérios de classificação ou o próprio princípio de classificação,
em nom e de princípios de classificação dependentes da sua posição
nas classificações. Vemos que, a pouco e pouco, esta reflexão
sobre o que, à partida, é apenas um problem a técnico, leva a que
nos interroguem os sobre o estatuto e a função da sociologia e do
sociólogo, e sobre as condições gerais e particulares em que se
pode exercer o ofício de sociólogo.]
F azer da objectivação do sujeito da objectivação a condição
prévia da objectivação científica é, portanto, não só tentar aplicar
à prática científica os m étodos científicos de objectivação (com o
no exem plo de Garfinkel), m as tam bém esclarecer cientificam ente
as condições sociais de possibilidade da construção, ou seja, as
condições sociais da construção sociológica e do sujeito desta
construção. [Não é por acaso que os etnom etodólogos esquecem
este segundo m om ento, porque, em bora lem brem que o m undo
social é construído, esquecem -se que os próprios construtores são
socialm ente construídos e que a construção destes depende das
suas posições no espaço social objectivo que a ciência deve construir.]

129
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

R ecapitulando, o que se deve objectivar não é a experiência


feita do sujeito cognoscente, m as as condições sociais de possibi­
lidade, portanto, os efeitos e os lim ites, desta experiência e, entre
outros, do acto de objectivação. O que se deve dom inar é a relação
subjectiva com o objecto - que, quando não é controlada e orienta
a escolha de objecto, m étodo, etc., é um dos m ais im portantes
factores de erro —e as condições sociais de produção dessa relação,
o m undo social que fez a especialidade e o especialista (etnólogo,
sociólogo ou historiador) e a antropologia inconsciente que ele
envolve n a sua prática científica.
E ste trabalho de objectivação do sujeito da objectivação deve
ser feito a três níveis: em prim eiro lugar, é necessário objectivar a
posição no espaço social global do sujeito da objectivação, a sua
posição de origem e a sua trajectória, a sua pertença e as suas
adesões sociais e religiosas (é o factor de distorção m ais visível, o
m ais geralm ente percebido e, por isso, o m enos perigoso); em
seguida, é necessário objectivar a posição ocupada no cam po dos
especialistas (e a posição desse cam po, dessa disciplina, no cam po
das ciências sociais), tendo cada disciplina as suas tradições e
particularidades nacionais, as suas problem áticas reconhecidas,
os seus hábitos de pensam ento, os seus princípios e evidências
partilhadas, os seus rituais e recom pensas, as suas lim itações em
m atéria de divulgação de resultados, as suas censuras específicas,
sem falar de todo o conjunto de pressupostos inscritos na história
colectiva da especialidade (o inconsciente académ ico); em terceiro
lugar, é necessário objectivar tudo o que está ligado à pertença ao
universo escolástico, prestando particular atenção à ilusão da au­
sência de ilusão, do ponto de vista puro, absoluto, «desinteressado».
A sociologia dos intelectuais faz descobrir esta form a particular
de interesse que é o lucro com o desinteresse pelo lucro (contra a
ilusão de Tawney, D urkheim e Peirce) (H askell, 1984).

2 . E s b o ç o P a r a u m a A u to -A n á lis e

R ecordei que a análise reflexiva deve ater-se, sucessivam ente,


à posição no espaço social, à posição no cam po e à posição no

130
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

u n iv erso escolástico. C om o, sem se entregar à com placência


narcísica, aplicar a si m esm o este program a e fazer a sua própria
sociologia, a sua auto-socioanálise, sabendo-se que tal análise não
pode ser m ais do que um ponto de partida e que a sociologia do
objecto que eu sou, a objectivação do seu ponto de vista, é um a
tarefa necessariam ente colectiva?
Paradoxalm ente, a objectivação do ponto de vista é a m ais
segura utilização do «princípio de caridade» (ou de generosidade)
e corro o risco, ao aplicá-lo, de parecer entregar-me à complacência:
co m p reen d er é « n ecessitar», explicar, ju s tific a r a existência.
Flaubert criticava à ciência social do seu tem po o facto de ela ser
incapaz de «tom ar o ponto de vista do autor» e tinha razão se
entenderm os por isso o facto de se situar no ponto em que se si­
tuava o autor, no ponto que ele ocupava no m undo social e a partir
do qual via o m undo; situar-se nesse ponto significa tom ar sobre o
m undo o ponto de vista que é o seu, com preendê-lo com o ele o
com preendia, portanto, num certo sentido, justificá-lo.
Um ponto de vista é, em prim eiro lugar, um a visão considerada
a partir de um ponto particular ( Gesichtspunkt ), de um a posição
particular no espaço e, no sentido em que o entendo aqui, no espaço
social: objectivar o sujeito da objectivação, o ponto de vista (objec-
tivante), significa rom per com a ilusão do ponto de vista absoluto,
que é o facto de qualquer ponto de vista (inicialm ente condenado
a ignorar-se com o tal): portanto, é tam bém um a visão perspectiva
(Schau) - todas as p ercepções, visões, crenças, expectativas,
esp eran ças, etc., são so cialm en te estru tu rad as e socialm en te
condicionadas e obedecem a um a lei que define o princípio da sua
variação, a lei da correspondência entre as posições e as tom adas
de posição. A percepção do indivíduo A é para a percepção do
indivíduo B o que a posição de A é p ara a posição de B ; o habitus
assegura o relacionam ento do espaço das posições e do espaço
dos pontos de vista.
M as um p o n to de v ista é tam b ém u m po n to num espaço
(Standpunkt), um ponto do espaço onde nos colocam os p ara ver
um a vista, um ponto de vista no prim eiro sentido, sobre esse espaço:
p ensar o ponto de vista com o tal é pensá-lo diferencialm ente,

131
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

relacionalm ente, em função das possíveis posições alternativas a


que ele se opõe em relação a diferentes aspectos (rendim entos,
títulos académ icos, etc.). E, ao m esm o tem po, é constituir com o
tal o espaço dos pontos de vista: é o que define de form a m uito
precisa um a das tarefas da ciência, com o objectivação do espaço
dos pontos de vista a partir de um novo ponto vista, que só pode
ser tom ado pelo trabalho científico, dotado de instrum entos teóricos
e técnicos (com o a análise geom étrica dos dados) - este ponto de
vista que engloba todos os pontos de vista é, segundo Leibniz, o
ponto de vista de Deus, o único capaz de produzir o «geom etral de
todas as perspectivas», lugar geom étrico de todos os pontos de
vista, nos dois sentidos do term o, ou seja, de todas as posições e
de todas as tom adas de posição, ponto do qual a ciência só se
pode aproxim ar indefinidam ente e que se conserva, segundo outra
m etáfora geom étrica, desta vez em prestada por K ant, com o fo c u s
imaginarius, um lim ite (provisoriam ente) inacessível.
Estejam os tranquilos, este tipo de auto-socioanálise não terá
nada de um a confissão e se confissões houver, serão apenas m uito
im pessoais. D e facto, com o já sugeri, toda a investigação em ciên­
cias sociais, quando se sabe utilizá-la para esse fim , é um a form a
de socioanálise; e isto é particularm ente verdade, evidentem ente,
em relação à história e à sociologia da educação e dos intelectuais.
(N unca m e esqueço da frase de D urkheim : «o inconsciente é a
história».) Ora, o ponto de vista que é o m eu só posso constituí-lo
com o tal e conhecê-lo pelo m enos parcialm ente na sua verdade
objectiva (principalm ente nos seus lim ites) construindo e conhe­
cendo o cam po no interior do qual ele se define com o ocupando
um a certa posição, um certo ponto.
[Para vos dar u m a ideia m enos abstracta, e talvez tam bém
m ais engraçada, da inversão que consiste em tom ar um ponto de
vista sobre o seu próprio ponto de vista, em objectivar aquele que,
com o o investigador, faz profissão de objectivar, evocarei um conto
intitulado A M an in the Zoo, em que D avid G am ett narra a história
de um jo v em que se zanga com a nam orada durante u m a visita ao
jard im zoológico e que, desesperado, escreve ao director do zoo
propondo-lhe um m am ífero que falta à sua colecção, o hom em .

132
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

É posto num ajaula, ao lado do chimpanzé, com um a etiqueta dizendo:


«H om o sapiens. Este espécim e foi oferecido po r John Crom antie.
E favor não irritar o hom em com observações pessoais».]
D epois de todos estes preâm bulos, vou então fazer em relação
a m im próprio um pouco o que fiz com as diferentes correntes de
sociologia da ciência que evoquei no início e definir a m inha posição
diferencial.

Vou com eçar por evocar a posição que eu ocupava no cam po


das ciências sociais em diferentes m om entos do m eu trajecto e
talvez, pelo paralelism o com as outras correntes da sociologia da
ciência, no subcam po da sociologia da ciência, na altura em que
escrevi o m eu prim eiro texto sobre o cam po científico, no início
dos anos 70, ou seja, num m om ento em que a «nova sociologia da
ciência» ainda não tinha feito a sua aparição, em bora as condições
sociais que decerto m uito contribuíram para o seu sucesso social
nos campus estivessem então a constituir-se.
M as não h á dúvida de que se deve com eçar por exam inar a
posição inicialm ente ocupada no cam po, po r volta dos anos 50: a
de «filósofo form ado na Ecole nórm ale supérieure», posição de
excelência no cum e do sistem a escolar num a altura em que a
filosofia podia parecer triunfante. D e facto, já disse o essencial
para as necessidades da explicação e da com preensão da trajectória
ulterior no cam po universitário, excepto talvez o facto de, nesse
tem po e nesses lugares, a sociologia e, num grau inferior, a etnologia
serem disciplinas m enores e até desprezadas (m as, para m ais por­
m enores, rem eto para a passagem das M éditations pascaliennes
intitulada «Confessions im personnelles» -1 9 9 9 :4 4 -5 3 ).
O utro m om ento decisivo foi a entrada no cam po científico, por
volta dos anos 60. Com preender, neste caso, é com preender o
cam po contra o qual e com o qual nos fazem os; é com preender
tam bém a distância em relação ao cam po e aos seus deterninism os,
que pode ser dada por um certo uso da reflexividade: devíam os
reler aqui um artigo intitulado «Sociologie et philosophie en France,
M orí et résurrection d ’une philosophie sans sujet» que escrevi
com Jea n -C la u d e P asse ro n p a ra a re v ista a m erican a S o cia l

133
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

Research (B ourdieu e Passeron, 1967). Este texto, em bora no es­


tilo enfático da ENS e cheio de chavões retóricos, dizia duas coisas
essenciais e, penso eu, profundam ente autênticas sobre o cam po
das ciências sociais: em prim eiro lugar, o facto de o m ovim ento
pendular que tinha levado os alujnos form ados na ENS nos anos
30, e em particular Sartre e Aron, a reagir contra o durkheim ism o,
considerado um pouco «totalitário», se ter invertido, no início dos
anos 60, principalm ente sob o im pulso de Lévi-Strauss e da antro­
pologia estrutural, reconduzindo ao que então se cham ava, por
parte da Esprit e de Paul Ricoeur, um a «filosofia sem sujeito»
(depois, a partir dos anos 80, tom ou outro sentido...); em segundo
lugar, o facto de a sociologia ser um a disciplina refugio, subm etida
ao m odelo dom inante do cientism o im portado da A m érica por
Lazarsfeld. [A sociologia da sociologia te d a por efeito e virtude
libertar as ciências sociais dos m ovim entos pendulares deste tipo
que, geralm en te d escritos com o fenóm enos de m oda, são na
realidade essencialm ente efeito de m ovim entos reaccionáis dos
recém -chegados que reagem às tom adas de posição dos dom i­
nantes, que são tam bém os m ais antigos, os m ais velhos.]
C onstruir o espaço dos possíveis que se m e apresentava no
m om ento de entrada no cam po significa reconstituir o espaço das
posições constitutivas do cam po tal com o podiam ser apreendidas
a partir de um determ inado ponto de vista socialm ente constituído,
o m eu, sobre esse cam po (ponto de vista que se tinha constituído
através de toda a trajectória social que conduzia à posição ocupada,
e tam bém através desta posição - a de assistente de R aym ond
A ron n a Sorbonne e de secretário-geral do centro de investigação
que ele criara na École des H autes Études). Para reconstituir o
espaço dos possíveis é necessário com eçar por reconstruir o espaço
das ciências sociais, em especial a posição relativa das diferentes
disciplinas ou especialidades. O espaço da sociologia éstá já cons­
tituído e o Traité de sociologie de G eorges G urvitch, que ratifica
a distribuição da sociologia entre as «especialidades» e os «especia­
listas», dá um a boa im agem dele: é um m undo fechado em que
todos os lugares estão ocupados. A geração dos antigos ocupa as
posições dom inantes que, nessa altura, são todas elas posições de

134
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

professor (e não de investigador) e de professor na Sorbonne (que,


para dar um a ideia das alterações m orfológicas que desde então
se sucederam , com a m ultiplicação dos cargos, sobretudo de nível
inferior, contava no total com três professores de Sociologia e de
Psicologia Social, tendo cada um deles um só assistente): Georges
Gurvitch, que dom ina a Sorbonne de form a notoriam ente despótica,
Jean Stoetzel, que ensina Psicologia Social na Sorbonne e dirige o
C entre d ’études sociologiques, o IFO P e controla o CNRS, e, por
fim, R aym ond Aron, recentem ente nom eado para a Sorbonne, que,
pela percepção relacionai (im posta pelo funcionamento em campo),
parecia oferecer um a saída para quem queria fugir à alternativa
da sociologia teoricista de G urvitch e da psicossociologia cientista
e am ericanizada de Stoetzel, autor de um a extensa e m edíocre
com pilação de trabalhos am ericanos sobre a opinião. A geração
dos jo v en s em ascensão, todos à volta dos quarenta anos, partilha
a investigação e os novos poderes, ligados à criação de laboratórios
e revistas, segundo um a divisão em especialidades, geralm ente
definidas por conceitos de senso com um , e claram ente repartidas
com o feudos: a sociologia do trabalho é A lain Touraine e, secunda­
riam ente, Jean-D aniel R eynaud e Jean-René Tréanton; a sociologia
da educação é Viviane Isam bert; a sociologia da religião, François-
-A ndré Isam bert; a sociologia rural, H enri M endras; a sociologia
urbana, Paul-FIenri C hom bard de Lauw e; a sociologia do lazer,
Joffre D um azedier; havia ainda, sem dúvida, algum as outras áreas
m enores ou m arginais que esqueço. O espaço é balizado por três
ou quatro grandes revistas recentem ente fundadas, a Revue fra n -
çaise de sociologie, controlada por Stoetzel e por alguns investiga­
dores da segunda geração (R aym ond B oudon irá dirigi-la alguns
anos depois), L es Cahiers internationaux de sociologie , contro­
lada por G urvitch (depois dirigida por G eorges B alandier), Les
Archives européennes de sociologie, fundada por A ron e dirigida
p o r Éric de D am pierre, e algum as revistas secundárias, pouco
estruturantes - um pouco com o G eorges Friedm an do lado dos
antigos Sociologie du travail e Études rurales.
D eve citar-se tam bém L ’H om m e, revista fundada e dirigida
por Lévi-Strauss que, em bora seja dedicada quase exclusivam ente

135
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

à etnologia, exerce grande atracção nos recém -chegados (entre


os quais m e incluo). P or aqui se percebe a posição em inente da
etnologia e a posição dom inada da sociologia no espaço das disci­
plinas. D ever-se-ia m esm o dizer duplam ente dom inada: no cam po
das ciências puras, em que tem dificuldade em fazer-se aceitar
(se o quiser...; estam os longe dos tem pos de D urkheim ), enquanto
a etnologia, através de Lévi-Strauss, se esforça por ser reconhecida
com o ciência legítim a (usando especialm ente a referência à lin­
guística, então no seu apogeu), e tam bém no cam po das disciplinas
literárias, em que as «ciências hum anas» continuam , p ara m uitos
filósofos, cheias de segurança estatutária e de literatos ciosos de
distinção, uns já estabelecidos e outros recém -chegados.
N ão adm ira que encontrem os nesta disciplina refúgio, m uito ou
dem asiado acolhedora ou, com o diz bem Yvette D elsaut, «pouco
intim idante», um pequeno núm ero de m em bros da categoria A,
que são antes de tudo professores que ensinam a história da disci­
plina e que praticam pouco a investigação, e um a m assa (de facto,
não m uito num erosa) de m em bros da categoria B, m uito raram ente
agregados (principalm ente de filosofia) e com origens académ icas
m uito diversas (a licenciatura de sociologia não existia na altura
da entrada da segunda geração). Os investigadores que não recebe­
ram a form ação única e hom ogeneizante susceptível de lhes dar o
sentim ento da unidade e que se dedicam, sobretudo, a investigações
em píricas na sua m aioria pouco fundamentadas, tanto teórica com o
experim entalmente, distinguem-se (dos historiadores, por exemplo)
por todos os indícios de um a enorme dispersão (principalm ente
em m atéria de nível académ ico) pouco favorável à instauração de
um universo de discussão racional. Poder-se-ia falar de disciplina
pária: a «desvalorização», que, num m eio intelectual porém m uito
ocupado e preocupado com a política - mas muitos envolvim entos,
principalm ente com o Partido Com unista, são ainda um a form a,
certam ente bastante paradoxal, de m anter à distância o m undo
social - , afecta tudo o que diz respeito às coisas sociais, vem , com
efeito, reforçar um a posição dom inada no cam po universitário.
Sobre este ponto, em bora a situação pouco tenha m udado, esta
descrição continua essencialm ente verídica - com o o testem unha

136
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

o facto, atestado por inúm eros indícios, de a passagem da filosofia


p ara a sociologia ser acom panhada, tanto hoje com o no tem po de
D urkheim , po r um a espécie de «degradação», ou ainda o facto de,
entre as «idéias recebidas» m ais profundam ente enraizadas nas
m entes dos filósofos ou dos literatos, haver a convicção de que,
seja qual for o problem a, é necessário «ir além da sociologia» ou
«superar a explicação puram ente sociológica» (em nom e da rejeição
do «sociologismo»).
M as a sociologia tam bém pode ser um a form a de continuar a
política por outros m eios (não há dúvida de que é neste aspecto
que se opõe à psicologia, fortem ente fem inizada no seu recruta­
m ento) e, n a classificação das ciências de A uguste Com te, surge
com o a disciplina do corolário, capaz de rivalizar com a filosofia
quando se trata de pensar as coisas do m undo na sua globalidade.
(R aym ond A ron, que transportou p ara a sociologia as am bições
totais da filosofia à m aneira sartriana, escreveu um a obra intitulada
Paix et Guerre entre les nations —1984). A lém disso, a referência
à A m érica, pela qual a sociologia se opõe às disciplinas canónicas
- história, literatura ou filosofia - dá-lhe um ar de m odernidade.
Em sum a, é um a disciplina dispersa que, tanto na sua definição
social com o na população que atrai, professores, investigadores ou
estudantes, oferece um a imagem ambígua e até mesm o fragmentada.
D ever-se-ia tam bém analisar a relação entre a sociologia e a
história, que já não é sim ples - e para dar m ais um indício do
estatuto de pária atribuído ao sociólogo, cham aria sim plesm ente a
vossa atenção para o cuidado com que os historiadores se excluem
das ciências sociais e, enquanto declaram de tão bom grado a
obediência à etnologia, se m antêm à distância da sociologia, à qual,
tal com o os filósofos, vão buscar m uitas coisas, principalm ente em
m atéria de instrum entos conceptuáis. M as tam bém sobre este
ponto, p ara m ais porm enores, rem eto para um a conversa que tive,
há alguns anos, com um historiador alem ão da escola dos A m a le s
(Bourdieu, 1995).
P ara co n stru ir o espaço dos po ssív eis que se engendra na
relação entre um habitus e um cam po, é necessário ainda evocar
rapidam ente (voltarei depois a este ponto) as características do

137
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C i ê n c ia

habitus que im portei para este cam po: habitus que, devido ao
m eu trajecto social, não era m odal no cam po filosófico nem tão-
-pouco, sobretudo devido ao m eu trajecto escolar, no cam po socio­
lógico, e que m e separava da m aioria dos m eus contem porâneos
filósofos ou sociólogos. A lém disso, ao regressar da A rgélia com
um a experiência com o etnólogo, que, nas condições difíceis de
um a guerra de libertação, tinha m arcado para m im um a ruptura
decisiva com a experiência escolar, fui levado a ter u m a visão
bastante altiva da sociologia e dos sociólogos, a visão do filósofo
que se alia à do etnólogo.
C om preende-se que, nestas condições, o espaço dos possíveis
que se m e oferecia não se podia reduzir ao que m e era proposto
pelas posições constituídas com o sociológicas, tanto em França
com o no estrangeiro, ou seja, nos Estados U nidos e, secundaria­
m ente, na A lem anha e em Inglaterra. E claro que tudo m e levava
a recusar deixar-m e fechar na sociologia, ou m esm o na etnologia
e n a filosofia, e a pensar o m eu trabalho em relação à totalidade
do cam po das ciências sociais e da filosofia. [O facto de ser aqui,
sim ultaneam ente, sujeito e objecto da análise redobra um a d ifi­
culdade, m uito com um , da análise sociológica: o perigo de as
interpretações propostas das práticas - aquilo a que por vezes se
cham a as «intenções objectivas» - serem com preendidas com o
intenções expressas do sujeito agente, estratégias intencionais,
projectos explícitos. Quando, por exem plo, relaciono (com o, em
bom m étodo, não se pode deixar de fazer) os m eus projectos
intelectuais, particularm ente vastos, desconhecedores das fronteiras
entre as especialidades, mas tam bém entre a sociologia e a filosofia,
com a m inha passagem da filosofia, disciplina prestigiada, em que
alguns dos m eus pares académ icos tinham ficado - o que decerto
é m uito im portante subjectivam ente - para a sociologia e com o
desperdício de capital simbólico que daí resultaria «objetivam ente»,
isso não significa, no entanto, que as m inhas escolhas de objecto
ou de m étodo m e tenham sido inspiradas, de m odo consciente ou
quase cínico, pela intenção de salvaguardar esse capital.]
O facto de, inicialm ente, m e pensar com o etnólogo, que era
um a form a subjectivam ente m ais fácil de aceitar a desprom oção
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c ia is . ..

ligada à passagem da filosofía para as ciências sociais, levou-m e a


transpor para a sociologia m uito do que aprendera com o filósofo e
etnólogo: técnicas (com o a utilização intensiva da fotografia, a que
m e dedicara na Argélia), m étodos (com o a observação etnográfica
ou a entrevista com indivíduos considerados com o fonte de infor­
m ação e não tanto com o entrevistados) e, sobretudo, talvez, pro­
blem as e m odos de pensar invocados pelo politeísm o m etodológico
que depois fui teorizando a pouco e pouco (com o a com binação da
análise estatística com a observação directa de grupos, no caso de
Un art moyen). O que era um a form a de passar para a sociologia,
m as p ara u m a so cio lo g ia redefinida e enobrecida (podem os
encontrar traços de tudo isto no Prólogo de Travail et Travailleurs
en Algérie - Bourdieu, Darbel, Rivet e Seibel, 1963 - ou no prefácio
a Un art m oyen - Bourdieu, B oltanski, Castel e Cham boredon,
1965), segundo o m odelo de Ben-D avid e Collins que já aqui referi.
N ão há dúvida de que eram os m esm os princípios sociais (acres­
centados à m inha form ação epistem ológica) que m e inspiravam a
rejeição (ou o desprezo) da definição científica da sociologia e, em
particular, a rejeição da especialização, que, im posta pelo m odelo
das ciências m ais avançadas, m e p arecia com pletam ente des­
provida de justificação no caso de um a ciência debutante com o a
sociologia (recordo em especial o choque que senti, em m eados
dos anos 60, no C ongresso M undial de Sociologia de Varna, face
às divisões injustificáveis da disciplina em sociologia da educação,
sociologia da cultura e sociologia dos intelectuais, em que cada
um a destas ciências podia ceder a outra os verdadeiros princípios
explicativos do seu objecto). Foi assim que m uito naturalm ente
pensei ser necessário trabalhar para reunificar um a ciência social
falsam ente fragm entada, sem porém rem eter para os discursos
acadêm icos sobre o «facto social total» com que se deleitavam
alguns professores da Sorbonne, e, tanto nas m inhas investigações
com o nas publicações que apoiei n a colecção «Le Sens com m un»
que criei nas E ditions de M inuit, tentei reunir a história social e a
sociologia, a história da filosofia e a história da arte (com autores
com o Erw in Panofsky e M ichael Baxandall), a etnologia, a história
e a linguística, etc. Fui assim levado a um a prática científica, a

139
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

pouco e pouco convertida em decisão deliberada, que se pode


considerar, em certos aspectos, com o um a espécie de «antiudo»
e, noutros, «abarca tudo», catch all, com o se diz de algum as deci­
sões. E encontrei-m e assim , sem nunca o querer explícitam ente e,
sobretudo, sem qualquer intenção «im perialista», face à totalidade
do cam po das ciências sociais.
Significa que, m esm o que tenha concebido e form ulado explíci­
tamente o seu projecto, recorrendo ao grande modelo durkheimiano,
nunca tive a intenção explícita de fazer um a revolução nas ciências
sociais, a não ser talvez contra o modelo americano então dominante
em todo o m undo e, m uito especialm ente, contra a cisão que ele
introduzia, e que conseguia im por em todo o universo, entre a
«theory» e a « m e th o d o lo g y» (en ca rn a d a n a o p o sição en tre
Parsons e Lazarsfeld que, tanto um com o o outro, tinham as suas
«filiais» e «sucursais» de introdutores, tradutores e com entadores
em França), e tam bém , m as noutro terreno, contra a filosofia que,
na sua definição social dom inante, m e parecia representar um
grande obstáculo ao progresso das ciências sociais (defini-m e
m uitas vezes, m esm o aqui, decerto de form a um tanto irónica,
com o líder de um m ovim ento de libertação das ciências sociais
contra o im pério e a influência da filosofia). Já não tinha paciência
p ara os sociólogos que viam n a passagem para os E U A um a
espécie de viagem iniciática, paciência que eu não tivera, dez ou
quinze anos antes, para os filósofos que se precipitavam p ara os
arquivos inéditos de um H usserl cujas obras m aiores eram ainda,
em grande parte, inéditas em francês.
C om eço p ela relação com a sociologia am ericana que, n a sua
expressão m ais visível - falo daquilo a que se cham ava a tríade
capitolina, Parsons, M erton, L azarsfeld -, im punha à ciência social
todo um conjunto de reduções e m utilações de que m e parecia
indispensável libertá-la, principalm ente através de um regresso
(encorajado por Lévi-Strauss) aos trabalhos de D urkheim e dos
durkheim ianos (especialm ente M auss) e tam bém à obra de M ax
W eber (ren o v ad a p o r u m a leitura em ruptura com a redução
neokantiana operada po r A ron), dois grandes autores que tinham
sido anexados e m onopolizados por Parsons. Para com bater esta

140
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

n o v a o rto d o x ia so cialm en te m uito p o d ero sa (o p ró p rio A ron


consagrou dois anos de sem inário a Parsons e L azarsfeld ensinou
durante um ano aos sociólogos franceses reunidos por B oudon e
Lécuyer —m as não a todos: havia pelo m enos um a excepção...
os rudim entos da «m etodologia» que a verdadeira m ultinacional
científica que ele criara im punha com sucesso em todo o universo),
era necessário recorrer a estratégias realistas e rejeitar duas tenta­
ções com plem entares (com o auxílio da sociologia da sociologia e,
em particular, de um trabalho com o o de M ichael P ollak - 1979 —
sobre «Paul Lazarsfeld, fundador de um a multinacional científica»):
por um lado, a subm issão pura e sim ples à definição dom inante da
ciência; p o r outro, o encerram ento na ignorância nacional que con­
duzia, por exem plo, à rejeição a p rio ri dos m étodos estatísticos,
associados ao positivism o norte-am ericano, posição cujo defensor
m ais notório era sem dúvida Lucien Goldm an, juntam ente com
alguns m arxistas que consideravam suspeita, a priori, qualquer
referência a M ax W eber ou à literatura anglo-saxónica que, em
geral, conheciam pouco (foi, entre outras coisas, contra este encer­
ram ento «nacional» politicam ente encorajado e reforçado que eu
quis, com a colecção «Le Sens com m un» das Editions de M inuit e,
depois, com a revista Actes de la recherche en Sciences sociales,
abrir as portas aos grandes investigadores estrangeiros, clássicos,
com o Cassirer, ou contem porâneos, com o Goffm an, Labov, etc.).
N a luta contra a ortodoxia teórica e m etodológica que dom inava
o m undo científico, tentei encontrar aliados na A lem anha, m as o
fosso entre os teóricos escolásticos (a escola de Francoforte, Ha-
berm as e, depois, Luhm an) e os em piristas subm etidos à ortodoxia
am ericana era (e continua a ser) m uito largo, praticam ente intrans­
ponível. H avia, no m eu projecto, tal com o o expliquei a am igos
alem ães, u m a intenção política, m as específica: tratava-se de criar
um a terceira via realista, capaz de conduzir a um a nova m aneira
de fazer a ciência social, tom ando as arm as do adversário (estatís­
ticas principalm ente; m as tam bém havia, em França, um a grande
tradição, com o IN SEE, onde aprendí m uito) para as virar contra
ele, reactivando tradições europeias deturpadas e deform adas pela
suas retrad u çõ es am ericanas (D urkheim e os durkheim ianos,

141
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

m aioritariam ente reeditados na colecção «Le Sens com m un»,


W eber depurado po r um a releitura activa ou, m ais exactam ente,
por um a interpretação livre que o desembaraçava, simultaneamente,
de Parsons e de A ron, Schütz e a fenom enologia do m undo social,
etc.); e p ara fugir assim à alternativa representada p ela oposição
entre os sim ples im portadores de m étodos e conceitos duvidosos e
os m arxistas ou aparentados, bloqueados na rejeição de W eber e
da sociologia em pírica. (N esta perspectiva, a política de tradução
era um elem ento capital: penso, por exem plo, em Labov, cuja obra
e presença activa serviram de base ao desenvolvim ento, em França,
de u m a verdadeira sociolinguística, renovando a tradição europeia
de que ele próprio era originário.) Isso, com a ambição de encontrar
um a base internacional para esta nova ciência, por um a acção
pedagógica voltada especialm ente para a Hungria, que se libertava
lentam ente do diam at (*) e descobria a estatística (principalm ente
da pobreza), p ara a A rgélia, que nesse tem po era u m a referência
das lutas do Terceiro M undo, e para o Brasil.
M as tam bém m e opunha resolutamente à filosofia, ou seja, tanto
aos filósofos de instituição em penhados na defesa da agregação e
dos seus program as arcaicos e, sobretudo, à filosofia aristocrática
da filosofia com o casta de essência superior, com o a todos os
filósofos que, apesar do seu espírito anti-institucional e apesar, em
relação a alguns, de um a ruptura m anifesta com as «filosofias do
sujeito», continuavam a professar o desprezo de casta pelas ciências
sociais que era um a das bases do credo filosófico tradicional: penso
em Althusser, que evoca «as ciências ditas sociais», ou em Foucault,
que classifica as ciências sociais na ordem inferior dos «saberes».
N ão podia deixar de sentir um a certa irritação face ao que m e
parecia um jo g o duplo dos filósofos que se apoderavam do objecto
das ciências sociais ao m esm o tem po que se esforçavam p o r lhes
m inar o fundam ento. A resistência que decidi opor à filosofia não
era inspirada p or qualquer hostilidade para com esta disciplina e
foi ainda em nom e de um a elevada ideia da filosofia (dem asiado
elevada, talvez) que tentei contribuir para um a sociologia da filosofia

O M a te ria lis m o d ia lé c tic o d e c a riz so v ié tic o . (N. do T.)

142
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c ia is . ..

capaz de dar m uito à filosofia desem baraçando-a da filosofia dóxica


da filosofia, que é um efeito das limitações e das rotirias da instituição
filosófica.
E, sem dúvida, a situação m uito singular da filosofia em França,
consequência nom eadam ente da existência, absolutam ente única,
de um ensino da filosofia nos últim os anos do ensino secundário e
da posição dom inante da filosofia nas hierarquias escolares, que
explica a força particular da subversão filosófica surgida em França
nos anos 70 (dever-se-ia propor aqui um m odelo análogo ao que
invoquei para explicar a força excepcional do m ovim ento de sub­
versão antiacadém ico que surgiu em França, com M anet e os
im pressionistas, em reacção contra um a instituição académica toda-
-poderosa, e a ausência, pelo contrário, de tal m ovim ento em
Inglaterra, devido à ausência de um a sem elhante concentração de
poderes sim bólicos em m atéria artística).
M as o m ovim ento dos filósofos franceses que ascendem à
celebridade nos anos 70 deve a sua am biguidade ao facto de a
revolta contra a instituição universitária se com binar com um a
reacção conservadora contra a am eaça que a ascensão das ciên­
cias sociais, principalm ente através da linguística e da antropologia
«estruturalistas», constituía para a hegem onia da filosofia (analisei
m ais em porm enor o contexto social da relação entre a filosofia e
as ciências sociais em H om o academicus e, especialm ente, no
prefácio à segunda edição desta obra): com o, devido ao trajecto
escolar que os conduzia ao topo da instituição universitária no
m om ento em que esta entrava nu m a p rofunda crise, estavam
anim ados po r um espírito anti-institucional particularm ente forte
contra um a instituição particularm ente rígida, fechada e opressiva,
os filósofos franceses dos anos 70 responderam de m odo «provi­
dencialm ente» adaptado (sem evidentem ente o ter procurado) às
expectativas geradas pela «revolução» de 68, revolução específica,
que levou a contestação político-intelectual para o cam po univer­
sitário (Feyerabend em Berlim e K uhn nos Estados U nidos foram
assim utilizados para dar voz a um a contestação espontânea da
ciência). M as, além disso, obcecados pela conservação da sua
hegem onia relativam ente às ciências sociais, retom avam paradoxal­

143
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

m ente por sua conta, radicalizando-a, num a estratégia m uito sem e­


lhante à de H eidegger que ontologizava o historicism o (B ourdieu,
1988 a), a crítica historicista da verdade (e das ciências).
O s anos 70 m arcam um a súbita inversão da discussão do m ood
filosófico dom inante. A té então, a filosofia (pelo m enos anglo-
-saxónica e até continental) aspirava à lógica, am bicionava construir
um sistem a fonnal unitário fundado na análise das m atem áticas
de R ussell: a filosofia analítica, o em pirism o lógico de H em pel,
C am ap e R eichenbach, grandes adm iradores do prim eiro Witt-
genstein ( Tractatus ), e tam bém a fenom enología, que seguia Frege
n a rejeição de qualquer concessão ao «historicism o» e ao «psicolo-
gism o»; todos expressavam a m esm a vontade de estabelecer um
fosso m uito profundo entre as questões form ais ou lógicas e as
questões em píricas, pensadas com o não racionais ou até irracionais
- erguiam -se especialm ente contra a «genetic fa lla c y » que consis­
te em m isturar considerações em píricas com justificações lógicas.
Esta conversão colectiva, espécie de vingança sem quartel da «ge­
neticfallacy », «sim bolizada», em França, pela passagem de K oyré
e Vuillem in para Foucault e Deleuze, faz surgir o apego às verdades
form ais e universais com o antiquado e até um tanto reaccionário,
com parado com a análise de situações histórico-culturais particu­
lares, ilustrada pelos textos de Foucault que, reunidos sob o título
P ow er/K now ledge , m oldaram a sua form a am ericana (acerca da
viragem dos anos 70 nos Estados U nidos, pode ler-se Stephen
Toulm in, 1979:143-144). [Seria fácil dem onstrar que, em bora en­
raizada na filosofia m ais aristocrática da filosofia, esta transfor­
m ação do espírito filosófico está directam ente associada, no seu
estilo e objectos, às experiências e influências do M aio de 68, que
dão a descobrir aos filósofos e à filosofia a política ou, com o gostam
de dizer, o político.]
Penso que esta análise, por muito simplificativa que seja, perm ite
perceber, e a m im em prim eiro lugar, que a m inha posição foi
constantem ente am bígua relativam ente àqueles que o radicalism o
de cam pus classificava globalm ente na categoria genérica dos
«pós-m odem os» (os que se interessam pela «recepção» encontram,
decerto, neste desfasam ento a chave do acolhim ento dado à m inha

144
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

obra nos EUA: será ele m oderno ou pos-m oderno, sociólogo ou


filósofo, ou, secundariam ente, etnólogo ou sociólogo, ou até de
direita ou de esquerda, etc.? - B ourdieu 1996). Tendo trocado a
filosofía pela sociologia (transição-traição que, do ponto de vista
dos que se conservam apegados ao título de filósofo, faz urna
diferen ça toto cáelo), eu pod ia apenas, enquanto cientista de
am bição, m anter-m e enraizado na visão racionalista; isso em vez
de utilizar, com o F oucault ou D errida, as ciências sociais para as
reduzir ou destruir, exercendo-as sem o dizer e sem pagar o preço
de um a verdadeira conversão às exigências da investigação em ­
pírica. Fortem ente enraizado num a tradição filosófica hard (Leibniz,
H usserl, Cassirer, história e filosofia das ciências, etc.) e não tendo
ido p ara a sociologia p o r um a escolha negativa (G eorges Can-
guilhem , a quem apresentei um tem a de tese, depois abandonado,
preparara-m e um a carreira de filósofo segundo o m odelo da sua -
um cargo de professor de Filosofia em Tolosa associado a estudos
de m edicina), não estava inclinado p ara condutas com pensatórias
do tipo das que levam alguns, m enos seguros, sociólogos ou histo­
riadores, a «imitar os filósofos». Fiel a esta espécie de aristocracismo
da recusa que caracterizava p ara m im Canguilhem , esforcei-m e
m etodicam ente po r deixar em notas ou em incisos as reflexões
que se poderíam cham ar «filosóficas» (penso, por exem plo, num a
das raras discussões explícitas que dediquei a Foucault, e que foi
relegada p ara a nota final de um artigo obscuro da revista Études
rurales (1989), em que retom ava a investigação que eu tinha levado
a cabo há trinta anos sobre o celibato entre os cam poneses). Ao
reivindicar sem pre fortem ente o título de sociólogo, eu excluía
absolutam ente de form a consciente (a custo de um a perda de
capital sim bólico com pletam ente assum ida) as estratégias m uito
difundidas de jo g o duplo e de lucro duplo (sociólogo e filósofo,
filósofo e historiador) que, devo confessá-lo, m e eram profunda­
m ente antipáticas, entre outras razões porque m e pareciam anun­
ciadoras de um a falta de rigor ético e científico (B ourdieu, 1996).
C om preende-se que, n a m esm a lógica, eu não podia entrar nos
debates sobre a ciência tal com o se apresentavam nos anos 70.
D e facto, tendo muito naturalmente encontrado, enquanto sociólogo,

145
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

o problem a do enraizam ento social da ciência que os outros só


descobriam indirectam ente, lim itei-m e a exercer o m eu ofício de
sociólogo ao subm eter a ciência e o cam po científico, para m im
um objecto com o os outros (a não ser por m e ter dado oportunidade
de enfrentar um dos pilares da tríade capitolina, Robert M erton), a
um a análise sociológica - em vez de ajustar contas com a ciência
(social) com o o farão os filósofos «pós-m odem os» e, com estilos
diferentes, todos os novos «filósofos-sociólogos» da ciência. N ão
é necessário recorrer a m eios de ruptura extraordinários (com o a
referência tão equívoca quanto dignificante a W ittgenstein) para
subm eter à crítica sociológica as visões logicistas e cientistas;
tam bém não há necessidade de rupturas ostensivas com a tradição
racionalista à qual m e ligava a m inha form ação (história e filosofia
das ciências) e a m inha orientação filosófica, e tam bém a m inha
posição de investigador. E não deixaria de m e apoiar em B achelard
e na tradição francesa da epistem ología, no m eu esforço p ara
fundar um a epistem ología das ciências sociais nu m a filosofia
construtivista da ciência (que antecipa K uhn, m as sem cair p ura e
sim plesm ente no relativismo dos pós-m odem os), tal com o na m inha
análise do cam po científico. A ruptura, que m e parece im por-se,
com a visão indígena da ciência, m ais ou m enos revezada pela
visão cientista (m ertoniana), não conduz nem a um questionam ento
nem a u m a legitim ação da ciência (nom eadam ente social) e a
m inha posição de dupla-recusa (nem M erton, nem B loor-C ollins,
nem relativism o niilista, nem cientism o), irá colocar-m e, m ais um a
vez, n um a posição am bígua nos debates dos novos sociólogos da
ciência, que eu ajudei a lançar.
E sta tom ada de posição aparentem ente neutra e prudente deve
tam bém , sem dúvida, m uito às predisposições individuais que
co n d u zem à re c u sa da p o stu ra « h eró ica» , « rev o lu c io n ária» ,
«radical» ou, m elhor , «radical chique », em sum a, do radicalism o
pós-m odem o identificado com a profundidade filo só fica-ta l como,
em política, à rejeição do «esquerdism o» (ao contrário de Foucault
e D eleuze), m as tam bém do Partido C om unista ou de M ao (ao
contrário de A lthusser). E não há dúvida de que é ainda pelas
predisposições individuais que se deve explicar a antipatia que m e

146
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

inspiram os fraseadores e os artífices e o respeito que tenho pelos


«cientistas da prova», p ara falar com o B achelard, e po r todos
aqueles que, hoje, na sociologia e na história da ciência, perpetuam
sem alvoroço a tradição da filosofia e da história das ciências
inaugurada po r B achelard, C anguilhem , K oyré ou Vuillemin.
M as talvez todas estas recusas tenham apenas com o funda­
m ento a intuição que estas atitudes e posturas ultra-radicais m ais
não são do que a inversão de posições autoritárias e conservadoras,
ou cínicas e oportunistas; intuição que foi am plam ente confirm ada
pelas flutuações de tantas trajectórias ulteriores ao sabor das forças
do cam po, com o por exem plo a passagem do tudo (é) político para
o tudo (é) m oral, podendo a constância do habitus m anifestar-se
pela inversão das tom adas de posição quando se inverte o espaço
dos possíveis (poderia analisar aqui, entre outras, todo o tipo de
inversões à prim eira vista surpreendentes, com o as passagens de
H eidegger para Wittgenstein ou o m al-entendido dos althusserianos
sobre o círculo de V iena e a filosofia austríaca, que, para quem
tem pouca idade e m em ória, evocam precisam ente o tratam ento
dado a H eidegger pelos m arxistas chiques, sem falar das revira­
voltas políticas que costum am os cham ar espectaculares e que
conduziram tantos contem porâneos do ultrabolchevism o para o
ultraliberalism o, m oderado ou não num social-liberalism o m uito
oportuno e oportunista).
Seria necessário, em bom m étodo, exam inar o estado actual do
cam po da sociologia e do cam po das ciências sociais para poder
com preender os trajectos individuais e colectivos (em especial, o
trajecto do grupo de investigação po r m im dirigido) ligados às
alterações das relações de força sim bólicas no interior de cada
um desses dois cam pos e entre eles (distinguindo bem as duas
espécies de capital-poder científico). Pode dizer-se, pelo m enos,
que a posição da sociologia no espaço das disciplinas transform ou-
-se profundam ente, assim com o a estrutura do cam po sociológico
- e que é, certam ente, aquilo que m e dá a possibilidade de dizer o
que digo, e que não p o d eria te r dito h á trin ta anos, ou seja,
nom eadam ente o projecto de transform ar o cam po que, na época,
teria parecido insensato ou, m ais precisam ente, m egalóm ano e

147
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

redutível às particularidades de um a pessoa singular (ainda se nota


algo de tudo isso quando se caracteriza o grupo de investigação que
eu construí, o C entre de sociologie européenne, com o u m a seita,
p o r não se com preender e aceitar a intenção global de um projecto
científico colectivo, cum ulativo, que integra os conhecim entos teó­
ricos e técnicas da disciplina, num a lógica semelhante à das ciências
da natureza, e que se funda num conjunto com um de opções
filosóficas explícitas, sobretudo no que respeita aos pressupostos
antropológicos im plicados em qualquer ciência do hom em ).
D ever-se-ia tam bém considerar o m eu trajecto nesse cam po,
levando em conta, p ara evitar a utilização um tanto sim plista que
geralm ente se faz do conceito de «m andarim», ele próprio bastante
sim plista e socialm ente pouco adequado, o carácter específico da
posição do C ollège de France, a m enos institucional (ou a m ais
anti-institucional) das instituições universitárias francesas que, como
dem onstrei em H om o academ icus (1984), é o lugar dos heréticos
consagrados. D ever-se-ia exam inar o sentido e alcance da «revolu­
ção» que se fez, m as que, em bora tenha tido êxito no plano simbólico
(pelo m enos no estrangeiro), conheceu, ao nível institucional, um
insucesso bastante indiscutível que se vê bem no destino do grupo,
conjunto unido de indivíduos relegados para posições universitárias
secundárias, m arginais ou m enores: a dificuldade encontrada n a
tentativa de «fazer escola» lem bra aquela que, no seu tem po, Ém ile
D urkheim conheceu (que, porém , tinha percebido m elhor que não
se podia fazer escola sem dom inar a escola, e desenvolveu esforços
m etódicos nesse sentido). D ever-se-ia analisar a função da revista
A c tes de la recherche en Sciences sociales com o instrum ento
de divu lg ação au tónom o relativ am en te à div u lg ação escolar,
controlada em grande parte pelos detentores dos poderes tem porais
que, com o vim os, são fundam entalm ente nacionais. Seria neces­
sário, por últim o, analisar o custo extrem o da pertença prolongada
ao grupo, cuja responsabilidade é im putada ao fundador e aos
responsáveis do grupo, ao passo que, em grande parte, é efeito de
m ecanism os sociais de rejeição (seria certam ente outra oportuni­
dade para falar de reprodução interdita).

148
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

Já adiantei algum as considerações sobre a análise do habitus


ao invocar várias vezes o p apel das d isposições socialm ente
constituídas nas m inhas decisões e, em particular, nas m inhas
sim patias ou antipatías por idéias ou pessoas. N ão sou excepção à
lei social que afirm a que a posição geográfica e social de origem
desem penha um papel determ inante nas práticas, em relação com
os espaços sociais no interior dos quais se actualizam as disposições
que ela favorece.
O passado social é particularm ente em baraçoso quando se trata
de teorizar acerca das ciências sociais. E isso seja ele qual for, p o ­
pular ou burguês, masculino ou fem inino. Indissociável do passado
explorado pela p sicanálise e retrad u zid o ou convertido num a
vivência escolar a que os veredictos da escola conferem por vezes
a força de um destino, continua a p esar durante toda a vida.
Sabem os bem , por exem plo, m as sem dúvida um pouco abstracta­
m ente, que as diferenças de origem social continuam a orientar
durante toda a vida as práticas e a determ inar o sucesso social
que lhes é atribuído. M as não foi sem espanto que pude verificar
que alguns ex-alunos da ENS de diferentes origens sociais, em bora
aparentem ente «igualados» pelo sucesso no m esm o concurso e
pela detenção de um título socialmente homogeneizante (pela própria
distinção que afirm a relativam ente a todos os outros), conheceram
destinos universitários profundam ente diferentes e proporcionais,
de algum a m aneira, aos seus estatutos iniciais (Bourdieu, 1975b).
N ão m e alongarei, porque seria dem asiado difícil no quadro de
um a intervenção pública, sobre as características da m inha fam ília
de origem . O m eu pai, filho de rendeiro que, por volta dos trinta
anos - ou seja, pouco antes do m eu n ascim ento - se tornou
pequeno funcionário rural, exerceu durante toda a vida o seu ofício
de em pregado num a pequena aldeia da região de B éarn parti­
cularm ente atrasada (em bora m uito perto de Pau, a m enos de 20
quilóm etros, os m eus cam aradas de liceu não a conheciam e
gracejavam com esse facto); penso que a m inha experiência infantil
de filho de tránsfuga (que reconhecí no N izan evocado por Sartre
no seu prefácio a Aden Arabie ) pesou, sem dúvida, na form ação
das m inhas disposições a respeito do m undo social: m uito próxim o

149
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

dos m eus colegas da escola prim ária, filhos de pequenos cam po­
neses, artesãos ou com erciantes, com quem tinha quase tudo em
com um , excepto o sucesso que m e distinguia um pouco, estava
separado deles po r um a espécie de barreira invisível, que se expri­
m ia p o r vezes em certos insultos rituais contra os lous em plegats ,
os em pregados m arginalizados, um pouco com o o m eu pai estava
separado (e dava m uitos sinais de sofrer isso, com o o facto de
votar sem pre m uito à esquerda) desses cam poneses (e do seu pai
e irm ão que ficaram n a quinta, que ele ia ajudar todos os anos
durante as férias), de quem , porém , estava m uito próxim o (princi­
palm ente pelos serviços assíduos que, com infinita paciência, lhes
prestava) e que eram , pelo m enos alguns, m uito m ais abastados
do que ele. (Deveis pensar que a m inha linguagem é m uito confusa,
m as - esta é tam bém um a das diferenças indeléveis - nem todas
as «histórias» de vida são fáceis e agradáveis de contar, principal­
m ente porque a origem social, sobretudo quando se trata de alguém
que, com o eu, m ostro u a im portância desta variável, tende a
desem penhar o papel de instrumento e objecto de lutas, de polémica,
e a ser utilizada nos sentidos m ais diferentes m as, quase sem pre,
para o pior...).
D ever-se-ia analisar tam bém a experiência, sem dúvida, pro ­
fundam ente «estruturante» do internato, através especialm ente da
descoberta de um a diferença social, desta vez invertida, com os
citadinos «burgueses» e do fosso entre o m undo do internato
(Flaubert escreveu algures que quem conheceu o internato, com
doze anos, sabe quase tudo da vida) - escola terrível de realism o
social, em que tudo está já presente, o oportunism o, o servilism o
interesseiro, a acusação, a traição, a denúncia, etc. - e o m undo
da escola, onde reinam valores com pletam ente opostos e profes­
sores que, principalm ente as m ulheres, propõem um universo de
descobertas intelectuais e de relações hum anas que se podem
cham ar encantadas. Percebi recentem ente que o m eu investim ento
m uito profundo na instituição escolar se constituiu, sem dúvida,
nesta experiência dual e que a revolta profunda, que nunca m e
abandonou, contra a Escola tal com o se apresenta resulta certa­
m ente da enorm e e inconsolável decepção produzida em m im pela

150
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

diferença entre a face nocturna e detestável e a face diurna e


suprem am ente respeitável da escola (a m esm a coisa pode dizer-
-se, p or transposição, dos intelectuais).
Para evitar alongar indefinidam ente a análise, gostaria de voltar
rapidam ente ao que hoje, no m eu pensam ento, m e parece essencial:
o facto de a coincidência contraditória da eleição na aristocracia
escolar e da origem popular e provinciana (quase dizia particular­
m ente provinciana) ter estado n a origem da constituição de um a
d iv a g em , geradora de todo o tipo de contradições e tensões. N ão
é fácil descrever os efeitos, ou seja, as disposições, que este tipo
de coind d en tia oppositorum engendrou. P or um lado, um a dis­
posição rebelde, principalm ente a respeito do sistem a escolar. Alma
m ater b ifro n te que, sem dú v id a p o r te r sido objecto de um a
dedicação excessiva de oblato, foi objecto de um a violenta e cons­
tante revolta fundada na dívida e na decepção. Por outro, a altivez,
a segurança e até m esm o a arrogância do «supereleito», levado a
viver dos seus feitos com o um a criança prodígio, capaz de vencer
todos os desafios (vejo um exem plo paradigm ático disto n a m á
partida que H eidegger prega aos kantianos quando lhes retira um a
das bases do racionalism o ao descobrir a finitude no centro da
E stética Transcendental). A am bivalência a respeito do m undo
universitário e do m undo intelectual que daí resulta faz com que
toda a m inha relação com esses universos pareça incom preensível
ou deslocada, quer se trate da indignação exaltada e reform adora
ou da distância espontânea relativam ente às consagrações escolares
(penso naquele que se indignava com a reflexividade crítica da
m inha lição inaugural, sem ver que essa era a condição para tom ar
a experiência suportável) ou ainda da lucidez sobre os costum es e
temperamentos universitários que não se pode exprimir, em conversas
quotidianas ou em livros (Bourdieu, 1 9 8 4 ,1988b), sem passar pela
traição daquele que «cospe na sopa» ou, pior, revela um segredo.
E sta am bivalência está na origem de um a dupla d istâ n d a
relativam ente às posições opostas, dom inantes e dom inadas, no
campo. Penso, por exemplo, na m inha atitude em m atéria de política
que m e afasta, em sim ultâneo, do aristocratism o e do populism o, e
na atitude rebelde que, fora de qualquer imperativo da virtude cívica

151
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

ou m oral, m as tam bém de qualquer cálculo, m e orienta quase


sem pre para o lado oposto, levando-m e a dizer-m e ostensivam ente
w eberiano ou durkheim iano em tem pos, por volta de 68, em que
era bem visto ser m arxista, ou, pelo contrário, com o hoje, a entrar
num a espécie de dissidência bastante solitária quando toda a gente
parece achar m ais oportuno aderir à ordem social (e «socialista»).
Isso sem dúvida, em parte, por reacção contra as tom adas de posição
dos que seguem as tendências de habitus diferentes do m eu e cujo
conform ism o oportunista m e é particularm ente antipático quando
assum e a form a de um farisaísm o da defesa das boas causas.
N ão posso deixar de citar aqui Bouveresse (em quem o m eu feitio
se reconhece m uitas vezes): «M usil diz do seu herói, U lrich, em
L ’H om m e sans qualités, que adorava as m atem áticas por causa
de todas as pessoas que não as podiam suportar. Comecei por adorar
a lógica m atem ática parcialm ente por razões do m esm o género,
por causa do desprezo e do m edo que ela geralm ente inspirava
aos filósofos que eu conhecia» (Bouveresse, 2001: 198).
M as é no estilo próprio da m inha investigação, no tipo de objectos
que m e interessam e na m inha m aneira de os abordar que se pode
encontrar, sem dúvida, a m anifestação m ais clara de um habitus
científico clivado, produto de um a «conciliação dos contrários» que
tende talvez a «reconciliar os contrários». Penso no facto de investir
grandes am bições teóricas em objectos em píricos geralm ente
m uito triviais - a questão das estruturas da consciência tem poral a
propósito da relação dos subproletários com o futuro, as questões
rituais da estética, principalm ente kantiana, a propósito da prática
fotográfica vulgar, a questão do fetichism o a propósito da alta
costura e do preço dos perfum es, o problem a das classes sociais a
respeito de um problem a de codificação - , que são outras tantas
provas de um a m aneira sim ultaneam ente am biciosa e «m odesta»
de fazer ciência. Talvez o facto de ser oriundo das «classes» por
vezes cham adas «m odestas» forneça, neste caso, virtudes que
não são ensinadas pelos m anuais de m etodologia, com o a ausência
de qualquer desdenho pelas paciências e m inúcias da em piria; o
gosto pelos objectos humildes (penso nos artistas que, com o Saytour,
reabilitam os materiais m enos nobres, como o linóleo); a indiferença

152
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

pelas barreiras disciplinares e pela hierarquia social dos dom ínios


que conduz a objectos desprezados e que encoraja a reunir o m ais
elevado e o m ais baixo, o m ais quente e o m ais frio; a disposição
anti-intelectualista que, intelectualmente cultivada, está no princípio
da teoria da prática envolvida no trabalho científico (por exem plo,
no papel atribuído à intuição), e que conduz a um a utilização anti­
escolástica dos conceitos, excluindo tanto a exibição teoricista como
o falso rigor positivista (o que provoca m al-entendidos com os
«teóricos» e, sobretudo, com os m etodólogos sem prática, com o
este ou aquele que escreve sobre a noção de habitus ); o sentido e
o gosto pelos saberes e práticas tácitos que se investem, por exemplo,
na construção de um questionário ou de um a folha de codificação.
E não há dúvida de que foram as disposições antagónicas de um
habitus clivado que m e encorajaram a em preender e m e perm i­
tiram conseguir a transição perigosa de um a disciplina soberana, a
filosofia, para um a disciplina estigm atizada como a sociologia, mas
im portando para esta disciplina inferior as am bições associadas à
em inência da disciplina de origem e as virtudes científicas capazes
de as concretizar (B en-D avid e Collins, 1997).

C ontrariam ente ao que exige o im perativo da Wertfreiheit, a


experiência ligada ao passado social pode e deve ser m obilizada
na investigação, na condição de ter sido previam ente subm etida a
um rigoroso exam e crítico. A ligação ao passado que perm anece e
se m anifesta na form a de habitus deve ser analisada socialm ente.
P ela anam nese libertadora que favorece, a socioanálise perm ite
racio n alizar, sem cinism o, as estratég ias científicas. P erm ite
com preender o jo g o em vez de o sofrer e, até certo ponto, «retirar
ensinam entos» dele - por exem plo, tirando partido das revelações
que podem ser dadas pela lucidez interessada dos concorrentes
ou levando a adquirir consciência dos fundam entos sociais das
afinidades intelectuais.
E assim que a sociologia da educação pode desem penhar um
papel determ inante naquilo a que B achelard cham ava «psicanálise
do espírito científico», e não há dúvida de que, no m eu trabalho, e
não só no dom ínio da educação, ganhei bastante com a lucidez

153
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

m uito particular de quem se conservava m arginal e que, ao m esm o


tem po, acedia aos lugares m ais centrais do sistem a. M as esta
lucidez alim enta-se constantem ente de si m esm a num e p o r um
esforço constante p ara pedir à sociologia os m eios p ara explorar
m ais profundam ente o inconsciente social do sociólogo (penso, por
exem plo, na análise das categorias do entendim ento professoral).
U m dos fundam entos desta dim ensão da com petência científica
a que vulgarm ente se cham a «intuição» ou «im aginação criativa»
deve certam ente ser procurado n a utilização científica de um a
experiência social previam ente subm etida à crítica sociológica.
D evia descrever aqui em porm enor (m as já o fiz recentem ente
num a intervenção in titulada «P articipant O bjectivation») esta
espécie de experim entação sobre o trabalho de reflexividade que
realizei po r ocasião da investigação que conduziu ao artigo dos
anos 60, intitulado «C élibat et condition paysanne» (1962): após
tom ar consciência de que utilizava a m inha experiência social
prim ária para m e defender da sociologia espontânea dos m eus
inform adores cabilas, resolvi regressar à origem desta experiência
e tom á-la com o objecto, e descobri assim , a propósito de dois
exem plos - por um lado a noção de besiat, a vizinhança, o conjunto
dos vizinhos, que alguns etnólogos tinham constituído com o unidade
social, e, por outro, a propósito de um a observação de um infor­
m ador sobre o interesse que se pode ter em «tratar por prim o»,
com o se dizia no grande século («tom aram -se m uito chegados
d esd e que h á um p o litécn ico n a fam ília» ) - , que o m o d elo
genealógico e as idéias adm itidas em m atéria de parentesco im pe­
dem que se apreenda na sua verdade as estratégias de reprodução
pelas quais os grupos sobrevivem e o próprio m odo de vida desses
grupos. Em suma, vem os que um a experiência social, seja ela qual
for, e sobretudo talvez quando é acom panhada por crises, conver­
sões e reconversões, pode, na condição de ser dom inada pela
análise, converter-se de desvantagem em capital.
R epeti incessantem ente que a sociologia da sociologia não é
um a divisão entre outras da sociologia; que tem os de nos servir da
ciência sociológica adquirida para fazer sociologia; que a sociologia
da so cio lo g ia deve aco m p an h ar co nstantem ente a p rática da

154
P o r q u e d e v e m a s C i ê n c i a s S o c i a i s . ..

sociologia. M as, m esm o que haja um a virtude da tom ada de cons­


ciência, a vigilância sociológica não basta. A reflexividade só ganha
toda a sua eficácia quando se encarna em colectivos que a incorpo­
raram , ao ponto de a exercer com o um reflexo. N um grupo de
investigação deste tipo, a censura colectiva é m uito forte, m as é
um a censura libertadora, que faz pensar na de um campó idealmente
constituído, que libertaria cada um dos participantes das «distor­
ções» ligadas à sua posição e disposições.

155
C o n c lu s ã o

Sei que estou inserido e im plicado no m undo que tom o com o


objecto. N ão podia tom ar posição, enquanto cientista, sobre as
disputas pela verdade do m undo social sem saber que o fazia, que
a única verdade é que a verdade é um a questão de lutas tanto no
m undo científico (o cam po sociológico) com o no m undo social que
esse m undo científico tom a com o objecto (cada agente tem a sua
visão idiossincrática do m undo, visão que ele prende impor, sendo
o insulto, po r exem plo, um a form a de exercício selvagem do poder
sim bólico) e a propósito do qual trava as suas lutas de verdade. A o
dizer isto, e ao preconizar a prática da reflexividade, tenho tam bém
consciência de estar a oferecer instrum entos a outros que podem
aplicá-los a m im para m e subm eter à objectivação - m as, ao agir
assim , dão-m e razão.
C om o a verdade do m undo social se resum e aos conflitos dessa
esfera e do m undo (sociológico) que está votado à produção da
verdade sobre o m undo social, neste a luta pela verdade é neces­
sariam ente infindável, interminável. (E a ciência social nunca parará
de se esforçar para se im por com o ciência.) A verdade é a relativi­
dade generalizada dos pontos de vista, subtraindo aquele que os
constitui com o tais ao constituir o espaço dos pontos de vista. N ão
podem os deixar de p ensar num a m etáfora que já evoquei: retirada
de Leibniz, consiste em considerar D eus com o o «o ponto em que
coincidem todas as perspectivas», o lugar em que se integram e se

157
P a r a u ma S o c i o l o g i a d a C iê n c ia

reconciliam todos os pontos de vista parciais, o ponto de vista


absoluto a partir do qual o m undo se oferece com o espectáculo,
um espectáculo unificado e unitário, a vista sem ponto de vista,
view fro m nowhere e fro m everywhere de um D eus sem lugar,
que está, sim ultaneam ente, em toda a parte e em parte nenhum a.
M as este «ponto em que coincidem todas as perspectivas» m ais
não é do que o cam po onde, com o o lem brei incessantem ente, os
pontos de vista antagónicos se enfrentam segundo procedim entos
regulados e se integram progressivam ente, graças ao confronto
racional. É um facto que o sociólogo singular, por m aior que possa
ser o contributo que dê para a estruturação e para o funcionam ento
do cam po, deve ter o cuidado de não esquecer. Tal com o tam bém
não deve esquecer que se, como qualquer outro cientista, se esforça
por contribuir para a construção do ponto de vista sem perspectiva
que é o ponto de vista da ciência, ele está, enquanto agente social,
incluído no objecto que tom a com o objecto e que, a esse título, tem
um ponto de vista que não coincide nem com o dos outros nem
com a perspectiva sobranceira e dom inante de espectador quase
divino que o cientista pode alcançar se cum prir as exigências do
cam po. P or conseguinte, sabe que a particularidade das ciências
sociais im põe que se esforce (com o tentei fazer para o caso da
dádiva e do trabalho em M éditations pascaliennes — 1997) para
construir u m a verdade científica capaz de integrar a visão do
observador e a verdade da visão prática do agente com o ponto de
vista que se ignora com o tal e vive n a ilusão do absoluto.
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IN D IC E

P R Ó L O G O ............................................................................... 7
IN T R O D U Ç Ã O ...................................................................... 11

1. A SIN O PSE D A D ISC U SSÃ O ....................................... 15


1. U m a visão e n c a n ta d a ................................................... 22
2. A ciência norm al e as revoluções c ie n tífic a s................ 28
3. O program a teórico “ forte” ......................................... 33
4. Um segredo de polichinelo bem g u a rd a d o .................. 37

2. U M M U N D O À PARTE .................................................. 51
1. O «ofício» do c ie n tis ta ................................................. 58
2. A utonom ia e requisitos de a d m issã o .............................. 67
3 .0 capital científico, suas form as e distribuição............ 79
4. U m conflito re g u la d o ..................................................... 89
5. H istória e v e rd a d e .......................................................... 100

3. P O R Q U E D E V E M A S C IÊ N C IA S S O C IA IS S E R
T O M A D A S C O M O O B JE C T O ? ................................... 119
1. O bjectivar o sujeito da o b je c tiv a ç ã o ............................ 123
2. Esboço para um a a u to -a n á lise ....................................... 130

C O N C L U S Ã O ......................................................................... 157
B IB L IO G R A F IA ..................................................................... 159

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