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REFERÊNCIA 4

SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo


do leitor imersivo. . São Paulo: Paulus, 2004. Cps. 1 à 3.

TRÊS TIPOS DE LEITORES: O CONTEMPLATIVO, O


MOVENTE E O IMERSIVO

D esde o surgimento dos novos suportes e estruturas


para o texto escrito, notadamente o CD-Rom e a
estrutura hipermídia, a história do livro e da leitu-
ra tem despertado grande interesse em pesquisadores de áreas
diversas do conhecimento. Esse interesse intensificou-se com a
proliferação crescente das redes de telecomunicação, especial-
mente a internet, ligando rizomaticamente todos os pontos do
globo. Nesse contexto, junto com as promessas de universalidade
e intercâmbio internacional de idéias pregadas pelos utopistas,
tem surgido também muita angústia diante das incertezas quanto
ao desaparecimento da cultura do livro (ver Beiguelman, 2003;
Chartier, 2002: 101-124). Será que o livro no seu formato atual,
feito de papel, está fadado a desaparecer como desapareceram os
rolos de papiro?
Afinal, o livro, como o conhecemos hoje, está longe de ser um mero
objeto. Ele foi instaurador de formas de cultura que lhe são próprias, que
incluíram, desde o Renascimento, nada menos do que o desenvolvimento da
ciência moderna e a constituição do saber universitário. Além disso, desde a
revolução industrial, o incremento das técnicas de impressão e sua fusão com
as imagens fotográficas levaram ao aparecimento e multiplicação dos meios
impressos de massa: os jornais e as revistas. Que futuro está reservado também
a esses meios? Sofrerão o mesmo destino do livro?
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

Diante de cantas incertezas, nada poderia ser mais natural do que a


recuperação da história do livro e seus suportes, dos leitores e suas práticas,
numa busca de determinações passadas que possam ajudar a compreender os
vetores do presente. Figura proeminente entre os pesquisadores da história e
cultura do livro e de seus leitores é, sem dúvida, Roger Chartier. Em seus
escritos sobre a história da leitura, Chartier tem buscado reconstituir tanto
"as redes de práticas e as regras de leituras próprias às diversas comunidades
de leitores (espirituais, intelectuais, profissionais etc.)’’, quanto as relações da
história da leitura com os três conjuntos de mutações: tecnológicas, formais e
culturais (Chartier, 1998a: 14, 24; ver também Chartier, 1996; 1998b; 1999,
Cavallo e Chartier, 1997; Foucambert, 1994; e, no Brasil, ver Kleiman, 1999;
Lajolo, 1997; Lajolo e Zilberman, 1996; Zilberman, org., 1998).
Embora esteja inserido nesse contexto muito amplo de preocupações
históricas, culturais e até mesmo arqueológicas relativas à leitura, este
capítulo está marcado por um objetivo muito específico. Não há aqui a
intenção explícita de fornecer diretamente nenhuma resposta sobre o passado
ou futuro do livro e de seus leitores. O interesse que move este trabalho está
voltado para as novas formas de percepção e cognição que os atuais suportes
eletrônicos e estruturas híbridas e alineares do texto escrito estão fazendo
emergir. Que novas disposições, habilidades e competências de leitura estão
aparecendo? Enfim, que novo tipo de leitor está surgindo no seio das
configurações hipermidiáticas das redes e conexões eletrônicas?
Para refletir sobre essa questão, o método a ser aqui utilizado será
classificatório e comparativo. Antes de entrarmos na explicitação desse
método, entretanto, é necessário notar que, para praticar tal método,
precisamos dilatar sobremaneira nosso conceito de leitura, expandindo esse
conceito do leitor do livro para o leitor da imagem e desta para o leitor das
formas híbridas de signos e processos de linguagem, incluindo nessas formas
até mesmo o leitor da cidade e o espectador de cinema, TV e vídeo, também
con
TRÊS TIPOS DE LEITORES: O CONTEMPLATIVO, O MOVENTE E O IMERSIVO

siderados neste trabalho como um dos tipos de leitores, visto que as


habilidades perceptivas e cognitivas que eles desenvolvem nos ajudam a
compreender o perfil do leitor que navega pelas infovias do ciberespaço,
povoadas de imagens, sinais, mapas, rotas, luzes, pistas, palavras, textos e
sons. Se, de um lado, minha proposta é muito específica, a saber, delinear o
perfil cognitivo desse novo leitor, de outro lado, para delinear esse perfil, é
necessário ampliar a concepção mesma do que seja a prática da leitura.
É certo que há, entre os estudiosos da leitura, uma reação contrária à
expansão no emprego do termo “leitura”, quando alegam que são equivocadas
as generalizações da idéia de “leitura” que só contenham alusões metafóricas a
processos que guardam pouca ou nenhuma relação com a prática de decifração
letrada suposta nela (ver Pécora, 1996: 14; Bourdieu e Chartier, 1996: 234-
235). Entretanto, desde os livros ilustrados e, depois, com os jornais e
revistas, o ato de ler passou a não se restringir apenas à decifração de letras,
mas veio também incorporando, cada vez mais, as relações entre palavra e
imagem, desenho e tamanho de tipos gráficos, texto e diagramação. Além
disso, com o surgimento dos grandes centros urbanos e com a explosão da
publicidade, o escrito, inextricavelmente unido à imagem, veio
crescentemente se colocar diante dos nossos olhos na vida cotidiana por meio
das embalagens de produtos, do cartaz, dos sinais de trânsito, nos pontos de
ônibus, nas estações de metrô, enfim, em um grande número de situações em
que praticamos o ato de ler de modo tão automático que nem chegamos a nos
dar conta disso. Tendo isso em vista, não há por que manter uma visão purista
da leitura restrita à decifração de letras. Do mesmo modo que o contexto
semiótico do código escrito foi historicamente modificando-se, mesclando-se
com outros processos de signos, com outros suportes e circunstâncias distintas
do livro, o ato de ler foi também se expandindo para outras situações. Nada
mais natural, portanto, que o conceito de leitura acompanhe essa expansão.
É por isso que, antes mesmo do advento do ciberespaço, conforme já
chamei atenção para isso há algum tempo (Santaella,
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

1981), fora e além do livro, há uma mulciplicidade de tipos de leitores;


multiplicidade, aliás, que vem aumentando historicamente. Há, assim, o leitor
da imagem, no desenho, pintura, gravura, fotografia. Há o leitor do jornal, de
revistas. Há o leitor de gráficos, mapas, sistemas de notações. Há o leitor da
cidade, leitor da miríade de signos, símbolos e sinais em que se converteu a
cidade moderna, a floresta de signos de que já falava Baudelaire. Há o leitor-
espectador da imagem em movimento, no cinema, televisão e vídeo. A essa
multiplicidade, mais recentemente veio se somar o leitor das imagens
evanescentes da computação gráfica e o leitor do texto escrito que, do papel,
saltou para a superfície das telas eletrônicas. Na mesma linha de
continuidade, mas em nível de complexidade ainda maior, hoje, esse leitor das
telas eletrônicas está transitando pelas infovias das redes, constituindo-se em
um novo tipo de leitor que navega nas arquiteturas líquidas e alineares da
hipermídia no ciberespaço.
Tendo em vista a análise e não simplesmente a descrição das
características dessa diversidade de leitores, nosso ponto de partida deve ser
conduzido em direção a um esforço de generalização, um esforço
classificatório. Ora, para assumir um ponto de vista classificatório, isto é, um
ponto de vista que busca agrupar as diferenças singulares dos fenômenos nos
traços comuns por eles apresentados, é preciso haver um critério orientado
pelas finalidades que a análise visa atingir. No caso deste capítulo, como já foi
anunciado, o interesse está voltado para a revelação das características
perceptivo-cognitivas apresentadas por essa diversidade de leitores. Quais são
as habilidades perceptivas e cognitivas implicadas na leitura de livros? E na
leitura de jornais? Que tipo de cognição está implicada na leitura da cidade?
Quais são as habilidades cognitivas envolvidas na imersão nas infovias do
ciberespaço? Tendo por base o critério classificatório estabelecido em função
dos perfis cognitivos que se busca delinear, a aplicação do princípio de
generalização nos permite extrair, da multiplicidade de leitores acima
elencada, crês cipos principais de leitores: o leitor contemplativo, o leitor
movente e o leitor imersivo, cujos
TRÊS TIPOS DE LEITORES: O CONTEMPLATIVO, O MOVENTE E O IMERSIVO

modelos perceptivo-cognitivos este livro buscará explicitar, com ênfase nesse


mais recente tipo de leitor, o imersivo.
Trata-se aí, portanto, de uma tipologia que, para diferenciar os processos
de leitura, não tomou como ponto de partida as distinções entre tipos de
linguagens ou processos de signos, tais como a linguagem verbal escrita do
livro, a linguagem diagramá- tica, verbal e imagética dos jornais, a linguagem
das imagens em movimento no cinema etc. Também não tomou como ponto de
partida as espécies de suportes ou canais que veiculam as mensagens: livro,
jornal, TV, computador etc. Tomou por base, isto sim, os tipos de habilidades
sensoriais, perceptivas e cognitivas que estão envolvidas nos processos e no
ato de ler, de modo a configurar modelos cognitivos de leitor. Disso
resultaram três tipos de leitores com modelos cognitivos que lhes são
próprios.
O primeiro, como já foi mencionado acima, é o leitor contemplativo,
meditativo da idade pré-industrial, o leitor da era do livro impresso e da
imagem expositiva, fixa. Esse tipo de leitor nasce no Renascimento e perdura
hegemonicamente até meados do século XIX. O segundo é o leitor do mundo
em movimento, dinâmico, mundo híbrido, de misturas sígnicas, um leitor que
é filho da Revolução Industrial e do aparecimento dos grandes centros
urbanos: o homem na multidão. Esse leitor, que nasce com a explosão do
jornal e com o universo reprodutivo da fotografia e do cinema, atravessa não
só a era industrial, mas mantém suas características básicas quando se dá o
advento da revolução eletrônica, era do apogeu da televisão. O terceiro tipo
de leitor é aquele que começa a emergir nos novos espaços incorpóreos da
virtualidade. Vejamos cada um desses tipos em mais detalhes.
Antes disso, no entanto, vale dizer que, embora haja uma seqüencialidade
histórica no aparecimento de cada um desses tipos de leitores, isso não
significa que um exclui o outro, que o aparecimento de um tipo de leitor leva
ao desaparecimento do tipo anterior. Ao contrário, não parece haver nada
mais cumulativo do que as conquistas da cultura humana. O que existe, assim,
é uma convivência e reciprocidade entre os três tipos de leitores,
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

embora cada tipo continue, de fato, sendo irredutível ao outro, exigindo,


aliás, habilidades perceptivas, sensório-motoras e cognitivas distintas.

1. 0 LEITOR CONTEMPLATIVO, MEDITATIVO

Nos sete séculos que decorreram da queda do Império Romano até o


século XII, os mosteiros e outros estabelecimentos eclesiásticos conservaram o
monopólio da cultura livresca e da produção do livro. A partir do século XII,
entretanto, intervieram modificações intelectuais e sociais provocadas
especialmente pela fundação das universidades e pelo desenvolvimento da
instrução entre leigos, enquanto se formava uma classe burguesa, capaz ela
também de aceder à cultura: os jurisconsultos, os conselheiros leigos dos reis,
os altos funcionários de toda espécie e também os ricos negociantes. Tudo isso
repercutiu nas condições em que os livros eram compostos, escritos, copiados
e difundidos (Febvre e Martin, 1991: 22). Com a instauração obrigatória do
silêncio nas bibliotecas universitárias na Idade Média central, a leitura se
fixou definitivamente como um gesto do olho, "não mais acompanhada, como
antes, pelo rumor de uma articulação vocal, nem pelo movimento de
manducação muscular. Ler sem pronunciar em voz alta ou a meia-voz é uma
experiência moderna, desconhecida durante milênios” (Certeau apud
Chartier, 1998a: 23).
Com a leitura silenciosa, o leitor podia estabelecer uma relação sem
restrições com o livro e com as palavras, que não precisavam mais ocupar o
tempo exigido para pronunciá-las. Ao contrário, elas podiam existir em um
espaço interior:

passando rapidamente ou apenas se insinuando plenamente


decifradas ou ditas pela metade, enquanto os pensamentos do leitor
as inspecionavam à vontade, retirando novas noções delas,
permitindo comparações de memória com outros livros deixados
abertos para consulta simultânea. O leitor tinha tempo para
considerar e reconsiderar as preciosas palavras
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cujos sons - ele sabia agora - podiam ecoar tanto dentro como fora.
E o próprio texto, protegido de estranhos por suas capas, tornava-se
posse do leitor, conhecimento íntimo do leitor, fosse na azáfama do
scriptorium, no mercado ou em casa (Manguei, 1997: 68).

Além de permitir a comunicação sem testemunhas entre o livro e o leitor


(Manguei, ibid.: 68), “a leitura silenciosa criou a possibilidade de ler mais
rapidamente e, portanto, de ler mais e de ler textos mais complexos”
(Chartier, 1999: 24). Retrospectivamente, pode-se perceber que todas essas
modificações só estavam preparando o terreno para o advento do livro
impresso.
Segundo Paul Chalus (1991: 9), a transformação do manuscrito em livro
impresso pode muito bem ser comparada à mutação propiciada pela invenção
da escrita no terceiro milênio antes da nossa era. Se, nos primeiros tempos da
impressão, a aparência do livro mudou pouco, pois o livro do século XV
assemelhava-se ao livro manuscrito, a matéria de que o livro passou a ser
feito foi bastante nova: uma película de natureza vegetal, o papel, podia ser
fabricada em grandes quantidades. Graças aos tipos móveis, os livros podiam
ser reproduzidos com rapidez e facilidade. Os exemplares apareciam por
centenas, por milhares, de uma só vez.
Longe de ter sido mera realização técnica cômoda, o livro impresso foi um
poderoso instrumento para conferir toda eficácia à meditação individual, para
concentrar o pensamento que, sem ele, estaria disperso, ao mesmo tempo que
assegurava, em um tempo mínimo, a difusão de idéias, criando, entre os
pensadores, novos hábitos de trabalho intelectual (Febvre, 1991: 15).
Como foi bem lembrado por Chartier (1998a: 17-19), autores não
escrevem livros, eles escrevem textos que se tornam objetos escritos,
manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados. Ora, o efeito que o
texto é capaz de produzir em seus receptores não é independente das formas
materiais que o texto suporta. Essas formas materiais e o contexto em que se
inserem contribuem largamente para modelar o tipo de legibilidade do texto.
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Assim, a impressão em papel por meio de tipos móveis trouxe consigo uma
maneira específica de ler o texto. Entre os séculos XVI e XVIII, “o triunfo dos
brancos sobre os pretos", isto é, a aeração da página pela multiplicação dos
parágrafos que quebram a continuidade ininterrupta do texto, e aquela das
alíneas, que, entre idas e vindas à linha, tornam a ordem do discurso imedia-
tamente mais legível, produziu um tipo de leitura que fragmenta os textos em
unidades separadas, e que reencontra, na articulação visual da página, as
conexões intelectuais ou discursivas do raciocínio (Chartier, 1998a: 18-19).
Desde o século XVI, junto com as formas mais nobres de livros,
começaram a surgir publicações precárias, pouco cuidadas e pouco custosas,
vendidas por mascates e destinadas àqueles que não queriam entrar nas
livrarias. O conjunto dessas coleções e séries veio dar impulso à multiplicação
dos livros garantida pela invenção de Gutenberg. Mesmo assim, a produção do
livro não tinha ainda a dimensão que viria adquirir no século XIX e início do
século XX com a industrialização da atividade gráfica e com a proliferação das
tiragens graças aos livros de bolso. Essas diferentes formas do livro também
funcionam como índices de práticas distintas de leitura. Mesmo quando se
trata da leitura de livros, da decifração do código das letras impressas, a
prática da leitura não é um ato monolítico. Mesmo depois de fixada a
genealogia da nossa maneira contemporânea de ler em silêncio e com os olhos,
continuaram existindo leituras em voz alta com sua dupla função: de um lado,
comunicar o texto aos que não sabem decifrar, de outro lado, cimentar as
formas de sociabilidade em espaços comunitários. Também existem nítidas
distinções que separam a leitura intensiva da leitura extensiva. Enquanto a
primeira, reverenciai e respeitosa, apoiada na escuta e na memória, confronta-
se com livros pouco numerosos, a segunda “consome muitos textos, passa com
desenvoltura de um a outro, sem conferir nenhuma sacralidade à coisa lida”
(Chartier, 1998a: 23). Há ainda leituras eruditas e leituras vacilantes, leitura
como intelecção abstrata e leitura como engajamento do corpo etc.
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Sem desconsiderar codas as variações das práticas de leitura tão caras a


Chartier, o perfil cognitivo do leitor do livro, que pretendo aqui delinear,
toma como paradigmática a prática que se tornou dominante a partir do
século XVI, ou seja, a leitura individual, solitária, de foro privado, silenciosa,
leitura de numerosos textos, lidos em uma relação de intimidade, silenciosa e
individualmente; leitura laicizada em que as ocasiões de ler foram cada vez
mais se emancipando das celebrações religiosas, eclesiásticas ou familiares.
Esse tipo de leitura nasce da relação íntima entre o leitor e o livro, leitura
do manuseio, da intimidade, em retiro voluntário, num espaço retirado e
privado, que tem na biblioteca seu lugar de recolhimento, pois o espaço de
leitura deve ser separado dos lugares de um divertimento mais mundano.
Mesmo quando se dá em tais lugares, o leitor se concentra na sua atividade
interior, separando-se do ambiente circundante. É uma atividade de leitores
sentados e imóveis, em abandono, desprendidos das circunstâncias externas.
Mas esse aparente abandono não deve nos levar a minimizar o fato de que a
leitura também é trabalho: por trás da aparente imobilidade, há a produção
silenciosa da atividade leitora. Trata-se, pois, de uma imobilidade plena de
energia mental que faz adivinhar uma animação interior, uma tensão pacífica,
pois o ato de ler letras é um processo complexo que “envolve não apenas a
visão e percepção, mas inferência, julgamento, memória, reconhecimento,
conhecimento, experiência e prática”. [...] Ler, então, não é um processo
automático de capturar um texto como um papel fotossensível captura a luz,
mas um processo de reconstrução desconcertante, labiríntico, comum e,
contudo, pessoal” (Manguei, 1997: 49, 54).
Segundo Wittrock (apud Manguei, ibid.: 54), “ler não é um fenômeno
idiossincrático, anárquico. Mas também não é um processo monolítico,
unitário, no qual apenas um significado está correto. Ao contrário, trata-se de
um processo generativo que reflete a tentativa disciplinada do leitor de
construir um ou mais sentidos dentro das regras da linguagem”.
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

Além disso, a leitura é também hábito e, por isso mesmo é


a leitura de muitos livros, sempre comparativa, que faz emergir
a biblioteca vivida, a memória de livros anteriores e de dados
culturais (Goulemot, 1996: 113). “Ler é cumulativo e avança em
progressão geométrica: cada leitura nova baseia-se no que o leitor
leu antes” (Manguei, 1997: 33).
A leitura do livro é, por fim, essencialmente contemplação e
ruminação, leitura que pode voltar as páginas, repetidas vezes
que pode ser suspensa imaginativamente para a meditação de um
leitor solitário e concentrado.
Em resumo, esse primeiro tipo de leitor é aquele que tem dian-
te de si objetos e signos duráveis, imóveis, localizáveis, manuseá-
veis: livros, pinturas, gravuras, mapas, partituras. É o mundo
papel e do tecido da tela. O livro na estante, a imagem exposta,
à altura das mãos e do olhar. Esse leitor não sofre, não é acossado
pelas urgências do tempo. Um leitor que contempla e medita.
Entre os sentidos, a visão reina soberana, complementada pelo
sentido interior da imaginação. Uma vez que estão localizados
no espaço e duram no tempo, esses signos podem ser contínua e
repetidamente revisitados. Um mesmo livro pode ser consultado
quantas vezes se queira, um mesmo quadro pode ser visto tanto
quanto possível. Sendo objetos imóveis, é o leitor que os procura,
escolhe-os e delibera sobre o tempo que o desejo lhe faz dispensar
a eles. Embora a leitura da escrita de um livro seja seqüencial, a
solidez do objeto livro permite idas e vindas, retornos, re-signifi-
cações. Um livro, um quadro exigem do leitor a lentidão de
dedicação em que o tempo não conta.

2. 0 LEITOR MOVENTE, FRAGMENTADO

Inspirado na obra de Walter Benjamin, grande leitor de Poe e Baudelaire


e um dos maiores teóricos da modernidade, Santos (1998: 10) informa-nos
que, em meados do século passado, as transformações urbanas de cidades
como Paris e Londres foram
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modelos de grandes transformações que vieram trazer conseqüências


profundas no modo de viver das pessoas. Devido ao incremento que a
Revolução Industrial havia trazido para o capitalismo, nessas cidades, o
tráfico de pessoas crescia para atender ao fluxo do capital em expansão. As
locomotivas e as estações ferroviárias, além de exibirem o avanço tecnológico,
serviam de marcos reais para a cidade, carregando seus sonhos de
confraternização de uma humanidade inteira ligada por trilhos. As máquinas a
vapor já submergiam os trabalhadores em rígidos horários nas fábricas,
consolidando a nova lógica de desenvolvimento econômico. O capital ia se
concentrando cada vez mais nos centros urbanos.
À luz de Berman (1989), Santos (ibid.: 10) afirma também que, submetidos
à lógica da produção serial, progressiva e racionalizada, sem poder competir
com a produção capitalista, camponeses e artesãos eram forçados a abandonar
suas terras e a fechar seus estabelecimentos. Com o declínio do campo e do
artesanato, grande número de migrantes pobres chegavam à cidade para se
transformarem em proletários ou em uma legião de miseráveis que o capital
não arregimentou. Para a melhor administração do capital e dos grandes
centros urbanos, o Estado aparece como instituição legal e fiscal para garantir
a ordem das transformações. A conjuntura econômica demarca de forma clara
duas classes: os operários, de um lado, e os donos do capital, a elite industrial,
de outro.
Para permitir a comunicação entre os homens, especialmente dos homens
que estavam no comando dos negócios e de sua administração, nesse universo
que crescia em complexidade, surgiram o telégrafo, o telefone e, depois, a
consolidação das redes de opinião, os jornais, com notícias rápidas e
imediatas, próprias de cidades com excesso de informação, encontros e
desencontros (ibid.: 11).
Tudo isso acontecia em um novo cenário e em um novo ambiente: o das
cidades que cresciam no ritmo das novidades. Com a chegada das redes de
eletricidade, os centros urbanos começaram a se iluminar e a expor, sob efeito
das luzes, as diver-
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sas configurações materiais da metrópole, principalmente nos novos objetos


produzidos pelo progresso técnico. Nas construções arquitetônicas, nos
traçados urbanísticos das ruas, nos grandes magazines, nas galerias, nos
cassinos, nas exposições, nos museus de cera, e principalmente na moda, a
febril imaginação moderna ia se forjando.
O mundo público moderno foi se marcando pela lógica do consumo e da
moda que estabelece um novo estatuto para a percepção e imaginação, “um
mundo aberto e cênico, cujos cenários e personagens, em constante superação,
desfilam e desaparecem” (Carvalho 1997: 132-135). Conforme foi lucidamente
perscru- tado por Simmel, no seu ensaio pioneiro de 1903, “A metrópole e a
vida mental" (apud Singer, 2001: 1 1 6 ), seguido depois pelas análises de
Kracauer (cf. Hansen 2001: 497-558) e de Benjamin, o espaço urbano foi se
refazendo no movimento contínuo e na proximidade física quase promíscua
de corpos que se esbarram em espaços exíguos de calçadas tumultuosas. Nesses
deslocamentos rápidos, que causam “um aumento radical na estimulação
nervosa e no risco corporal” (Singer apud Charney e Schwartz, 2001: 25), os
olhares das pessoas não se cruzam e as almas não se entregam.
Na cidade-luz, das lanternas a gás, da eletricidade e do néon, na cidade-
vitrina, com seus boulevards, galerias, parques, cafés, museus e teatros, na
cidade-passarela que estetiza as aparências e os gostos, a identidade do
homem moderno se desconstrói em uma multiplicidade infinita de imagens e
registros, tipos, estilos e perfis urbanos. Na sensorialidade alucinógena que o
excesso de estímulos produz, só pode encontrar sua identidade o flâneur,
aquele que passeia pela cidade com olhar contemplativo, ondu- lante e aberto
à vertigem das alteridades.

Alegorista da cidade, detentor de todas as significações urbanas, do saber


integral da cidade, do seu perto e do seu longe, do seu presente e do seu
passado, reconhecendo-a sempre em seu verdadeiro rosto - um rosto
surrealista - vendo em todos os momentos seu lado de paisagem, em que
ela é natureza, e
TRÊS TIPOS DE LEITORES: O CONTEMPLATIVO, O MOVENTE E O IMERSIVO

em seu lado de interior, em que ela é quarto, o flâneur assume sua


condição de viajante da modernidade e resolve contar-nos o que viu em
sua perambulação (Rouanet, 1993: 23).

No cenário volátil da cidade, convertida em “arena para a circulação de


corpos e mercadorias” (Charney e Schwartz, ibid.: 22), aquilo que realmente
deu forma à experiência da modernidade foi a destituição crescente de todas
as coisas de sua aura de valor. A roupa, o livro, o médico, o advogado e o
poeta, tudo foi se transformando em mercadoria e com ela nascia um novo
tipo de percepção do mundo, cada vez mais voltada para a proximidade, para o
imediato, para a segurança contra os riscos da cidade grande. O ser humano
passou a se preocupar muito mais com a vivência do que com a memória. O
passado também foi destituído de seu valor diante da necessidade de se
proteger das surpresas e choques da metrópole, da necessidade de se adaptar
ao novo, ao diferente imposto pelo mercado: o novo da mercadoria, da moda,
da decoração, das vitrinas, das ruas cuja única função é aumentar o consumo.
Contudo, ao mesmo tempo que as mercadorias são substituídas
constantemente por novos produtos, nada muda significativamente (ibid.: 14).
Para alimentar a ilusão de que há mudanças, surgiu a publicidade, filha
dileta de um mundo que transformou tudo em mercadoria. Para a oferta de
produtos em lojas, bazares e galerias, a cidade começou a ser povoada de
imagens. Isso só se tornou possível graças à reprodutibilidade técnica,
inaugurada pelas técnicas de impressão e pela fotografia, que dilata a visão
humana, devolvendo ao mundo cenas, paisagens, lugares, pessoas, que são
duplos dele mesmo.
O espetáculo do luxo, da novidade, da sofisticação e da moda alimenta os
prazeres do consumo. Com a publicidade, nova forma de comunicação pública,
foi se dando a proliferação abundante de imagens e mensagens visuais, em um
mundo de produtos à venda, expostos ao desejo que nasce no olhar, mundo no
qual tudo vira mercadoria, até as próprias imagens que são feitas para
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

vender mercadorias. A vida cotidiana passou a ser um espectro visual, um


desfile de aparências fugidias, um jogo de imagens que hipnotizam e seduzem.
De fato, os modernos encontraram na fotografia e no cinema o que lhes
era mais contemporâneo: a velocidade da reprodução e substituição incessante
de imagens, pois essas imagens fazem parte de uma cultura organizada sob o
signo do choque, de indivíduos que se acostumaram com os desencontros da
metrópole. As imagens são, assim, espécies de anúncios e síntese das
construções de seu tempo: imagens que fascinam e prendem a visão para, logo
em seguida, morrer prematuramente ao serem substituídas por outras
imagens. Com isso, as imagens, além de ajudarem a vender mercadorias, elas
mesmas também se transformam em mercadorias. Elas podem ser reproduzidas
à exaustão e encontradas em qualquer parte — jornais, revistas, panfletos,
vitrinas, letreiros e esquinas das cidades. Ao mesmo tempo que exercem poder
sobre os modernos, para exercer esse poder, as imagens precisam se des-
sacralizar. Como tudo o mais, não passam de poeira fugidia que se desmancha
no ar.
Uma das características mais particulares do cidadão moderno está na
agilidade com que dá e recebe estocadas. Por isso mesmo, esse cidadão tem
mais consciência do que memória porque os choques do cotidiano na grande
cidade mudam sua sensibilidade. "No meio do tráfego urbano, da constante
troca de mercadorias, no consumo exagerado de produtos e imagens, o
homem, sob pena de não conseguir gravar tudo em sua mente, acabou forta-
lecendo sua memória com aparelhos externos, máquinas oculares como a
fotografia, o cinema e, mais tarde, a TV e o vídeo” (Santos ibid.: 18).
Com o tempo, o ser humano passou a substituir o fetiche da mercadoria
pelo fetiche da imagem, pois viver na grande cidade implica conviver com a
fugacidade dos contatos sociais, com a reposição contínua de imagens nas
ruas, vitrinas, jornais e revistas. Viver passou a significar adaptar-se à
congestão de imagens na retina. O espectador moderno é um ser submetido ao
frêmito
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urbano e à superexposição perceptiva da velocidade com que imagens, cenas,


personagens atravessam a retina do mesmo modo que as coisas, fatos e pessoas
da cidade se transformam e atravessam a consciência para logo desaparecerem
“na correnteza caótica de homens e coisas" (Carvalho, 1997: 135).
Por tudo isso, para Carvalho (ibid.: 127), a modernidade corresponde a um
novo estágio da história humana, “época em que as formas de experimentar e
sentir a realidade e a vida sofreram inflexões agudas". Nessa nova realidade, as
coisas fragmentam- se sob efeito do transitório, do excessivo e da
instabilidade que marcam o psiquismo humano com a tensão nervosa, a
velocidade, o superficialismo, a efemeridade, a hiperestesia, tudo isso
convergindo para a experiência imediata e solitária do homem moderno.
É nesse ambiente que surge o nosso segundo tipo de leitor, aquele
que nasce com o advento do jornal e das multidões nos centros urbanos
habitados de signos. É o leitor que foi se ajustando a novos ritmos da atenção,
ritmos que passam com igual velocidade de um estado fixo para um móvel. É o
leitor treinado nas distrações fugazes e sensações evanescentes cuja percepção
se tornou uma atividade instável, de intensidades desiguais. É, enfim, o leitor
apressado de linguagens efêmeras, híbridas, misturadas. Mistura que está no
cerne do jornal, primeiro grande rival do livro. A impressão mecânica aliada
ao telégrafo e à fotografia gerou essa linguagem híbrida, a do jornal,
testemunha do cotidiano, fadada a durar o tempo exato daquilo que noticia.
Aparece assim, com o jornal, o leitor fugaz, novidadeiro, de memória curta,
mas ágil. Um leitor que precisa esquecer, pelo excesso de estímulos, e na falta
do tempo para retê-los. Um leitor de fragmentos, leitor de tiras de jornal e
fatias de realidade.
Com a sofisticação dos meios de reprodução, tanto na escrita quanto na
imagem, com a reprodução fotográfica, a cidade começou a se povoar de
signos, numa profusão de sinais e mensagens. As palavras, as imagens
cresceram, agigantaram-se e tomaram conta do ambiente urbano. Sinais para
serem vistos e decodifica
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

dos na velocidade. Como orientar-se, como sobreviver na grande cidade sem


as setas, os diagramas, os sinais, a avaliação imediata da velocidade do
movimento e do burburinho urbano?
O leitor do livro, meditativo, observador ancorado, leitor sem urgências,
provido de férteis faculdades imaginativas, aprende assim a conviver com o
leitor movente; leitor de formas, volumes, massas, interações de forças,
movimentos; leitor de direções, traços, cores; leitor de luzes que se acendem e
se apagam; leitor cujo organismo mudou de marcha, sincronizando-se à
aceleração do mundo.
Há uma isomorfia entre o modo como esse leitor se move na grande
cidade, no movimento do trem, do bonde, dos ônibus e do carro e o
movimento das câmeras de cinema. De fato, a sensibilidade adaptada às
intensidades fugidias da circulação incessante de estímulos efêmeros é uma
sensibilidade inerentemente cinematográfica. “Não é de surpreender que a
vanguarda modernista, atraída pela intensidade das emoções da modernidade,
[...] ao reconhecer o poder do cinema para transmitir velocidade, simul-
taneidade, superabundância visual e choque visceral, tenha se apossado [...} do
cinema como um emblema da descontinuidade e da velocidade modernas”
(Singer, 2001: 137). Para Benjamin, “o cinema corresponde a mudanças
profundas no aparelho apercep- tivo — mudanças que são experimentadas, em
uma escala individual, pelo homem na rua, no tráfego da cidade grande, e, em
uma escala histórica, por qualquer cidadão dos dias de hoje". A rapidez do
ritmo cinematográfico e sua fragmentação audiovisual de alto impacto
constituíram um paralelo aos choques e intensidades da vida moderna. "Em
um filme”, continua Benjamin, “a percepção na forma de choques foi
estabelecida como um princípio formal. Aquilo que determina o ritmo de
produção em uma esteira rolante é a base do ritmo de recepção do cinema”
(apud Singer, ibid.: 137-138).
Por isso mesmo, o cinema tornou-se a arte definidora da experiência
temporal da modernidade, oscilação entre a intensidade de um instante
sensório e sua evanescência igualmente potente,
TRÊS TIPOS DE LEITORES: O CONTEMPLATIVO, O MOVENTE E O IMERSIVO

que transformou a estrutura mesma da experiência e criou novas


formas de sensibilidade e de pensamento, uma outra maneira de
interagir com o mundo. Não é por acaso que essa estrutura expe-
riencial inédita tenha criado as condições para a emergência de um
tipo de leitor radicalmente distinto do leitor do livro. Esbarrando
a todo instante em signos, signos que vêm ao seu encontro, fora
e dentro de casa, esse leitor aprende a transitar entre linguagens,
passando dos objetos aos signos, da imagem ao verbo, do som para
a imagem com familiaridade imperceptível. Isso se acentua com o
advento da televisão: imagens, ruídos, sons, falas, movimentos e
ritmos na tela se confundem e se mesclam com situações vividas.
Onde termina o real e onde começam os signos se nubla e mistura
como se misturam os próprios signos.
Esse segundo tipo de leitor, no entanto, intermediário entre o
leitor do livro e o leitor imersivo do ciberespaço, esteve preparan-
do a sensibilidade perceptiva humana para o surgimento do leitor
imersivo, que navega entre nós e conexões alineares pelas arqui-
teturas líquidas dos espaços virtuais. De fato, se não levarmos em
conta as mudanças na estrutura mesma da senso-motricidade, na
aceleração da percepção, do ritmo da atenção, flutuando entre a
distração e a intensidade da penetração no instante perceptivo,
trazidas pelo leitor movente, fica muito difícil compreender o
perfil desse tipo radicalmente novo de leitor que está se deline-
ando nos processos de navegação no ciberespaço, como será visto
a seguir.

3. 0 LEITOR IMERSIVO, VIRTUAL

O aspecto sem dúvida mais espetacular naquilo que vem sendo chamado
de “era digital", na entrada do século XXI, está no poder dos dígitos para
tratar toda e qualquer informação — som, imagem, texto, programas
informáticos — com a mesma linguagem universal, bites de 0 e 1, uma espécie
de esperanto das máquinas. Graças à digitalização e à compressão dos dados,
todo
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

e qualquer tipo de signo pode ser recebido, estocado, tratado e difundido, via
computador. Aliada à telecomunicação, a informática permite que esses dados
cruzem oceanos, continentes, hemisférios, conectando numa mesma rede
gigantesca de transmissão e acesso, potencialmente qualquer ser humano no
globo. Tendo na multimídia seu suporte e na hipermídia sua linguagem, esses
signos de todos os signos estão disponíveis ao mais leve dos toques, no clique
de um mouse. Nasce aí um terceiro tipo de leitor, um leitor imersivo, distinto
dos anteriores.
Diferentemente do leitor do livro, que tem diante de si um objeto
manipulável, a tela sobre a qual o texto eletrônico é lido não é mais
manuseada diretamente, imediatamente pelo leitor imersivo.

A inscrição do texto na tela cria uma distribuição, uma organização,


uma estruturação do texto que não é de modo algum a mesma com
a qual se defrontava o leitor do livro em rolo da Antigüidade ou o
leitor medieval, moderno e contemporâneo do livro manuscrito ou
impresso, onde o texto é organizado a partir de sua estrutura em
cadernos, folhas e páginas. 0 fluxo seqüencial do texto na tela, a
continuidade que lhe é dada, o fato de que suas fronteiras não são
mais tão radicalmente visíveis, como no livro que encerra, no interior
de sua encadernação ou de sua capa, o texto que ele carrega, a
possibilidade para o leitor de embaralhar, de entrecruzar, de reunir
textos que são inscritos na mesma memória eletrônica: todos esses
traços indicam que a revolução do livro eletrônico é uma revolução
nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas
maneiras de ler (Chartier, 1998b: 12-13).

É certo que o leitor da tela guarda certos traços de semelhança com o


leitor da Antigüidade. Como no livro em rolo, o texto corre verticalmente, lá,
ao ser desdobrado manualmente, aqui, na tela que corre sob a pressão de um
botão. Também como o leitor do livro impresso, o leitor imersivo pode
utilizar referências como a paginação, o índice, o recorte do texto (Chartier,
ibid.: 13). Não
TRÊS TIPOS DE LEITORES: O CONTEMPLATIVO, O MOVENTE E O IMERSIVO

obstante esses traços de semelhança, o leitor imersivo é obrigato-


riamente mais livre na medida em que, sem a liberdade de escolha entre
nexos e sem a iniciativa de busca de direções e rotas, a leitura imersiva não se
realiza.
Nessa medida, as semelhanças não podem nos levar a menosprezar o fato
de que se trata de um modo inteiramente novo de ler, distinto não só do
leitor contemplativo da linguagem impres- sa, mas também do leitor
movente, pois não se trata mais de um leitor que tropeça, esbarra em signos
físicos, materiais, como é o
caso desse segundo tipo de leitor, mas de um leitor que navega numa tela,
programando leituras, num universo de signos evanes- centes e eternamente
disponíveis, contanto que não se perca a rota que leva a eles. Não é mais
tampouco um leitor contemplativo que segue as seqüências de um texto,
virando páginas, manuseando volumes, percorrendo com passos lentos a
biblioteca, mas um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e
nexos, num roteiro multilinear, multisseqüencial e labiríntico que ele próprio
ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens,
documentação, músicas, vídeo etc.
Trata-se, na verdade, de um leitor implodido cuja subjetividade se mescla
na hipersubjetividade de infinitos textos num grande caleidoscópico
tridimensional onde cada novo nó e nexo pode conter uma outra grande rede
numa outra dimensão. Enfim, o que se tem aí é um universo novo que parece
realizar o sonho ou alucinação borgiana da biblioteca de Babel, uma
biblioteca virtual, mas que funciona como promessa eterna de se tornar real a
cada “clique” do mouse.
Diferentemente dos dois primeiros tipos de leitores, as características
cognitivas desse terceiro tipo de leitor, dada sua novidade, ainda foram pouco
exploradas. A proposta deste livro de se aprofundar na investigação desse tipo
de leitor, que chamo de leitor imersivo, virtual, nasceu dessa lacuna.
As características do leitor da linguagem verbal escrita, do leitor do livro
já foram sobejamente mapeadas na vasta bibliografia existente sobre leitura,
literatura esta, aliás, que sintomaticamen-
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

te começou a crescer justamente a partir do advento do terceiro tipo de


leitor, o leitor imersivo. Esse crescimento produz a suspeita de que a onda
atual de livros voltados para a reflexão sobre o livro de papel esteja sendo
movida por sentimentos nostálgicos e ansiedade diante da possibilidade de
seu desaparecimento.
Quanto ao segundo tipo de leitor, uma espécie de esgrimista que se safa
dos golpes do coditidano nos grandes centros urbanos, lançando olhares
distraídos, “por entre fotos e nomes, os olhos cheios de cores... em dentes,
pernas, bandeiras” (Caetano Veloso), os traços deste leitor podem ser
extraídos dos trabalhos de Sim- mel, Kracauer e Walter Benjamin.
O campo que, por ser muito jovem, ainda permanece quase virgem,
reclamando por estudos específicos, é o do terceiro tipo de leitor. Este livro
visa atender a esse apelo.
A hipótese fundamental que norteou este trabalho é a de que a passagem
de um tipo de leitor a outro envolve grandes transformações sensórias,
perceptivas, cognitivas e, conseqüentemente, também transformações de
sensibilidade, conforme foi apontado por Walter Benjamin no que diz
respeito ao segundo tipo de leitor. Ficaram bastante conhecidas as
características daquilo que Benjamin chamou de estética do choque como
definidora da modernidade perceptiva a partir de suas leituras de Poe e Bau-
delaire.
Assim também, com relação ao leitor imersivo, parti da hipótese de que a
navegação interativa entre nós e nexos pelos roteiros alineares do
ciberespaço envolve transformações sensórias, perceptivas e cognitivas que
trazem conseqüências também para a formação de um novo tipo de
sensibilidade corporal, física e mental. Essas transformações devem muito
provavelmente estar baseadas em:

a) tipos especiais de ações e controles perceptivos que resultam da


decodificação ágil de sinais e rotas semióticas,
b) de comportamentos e decisões cognitivas alicerçados em operações
inferenciais, métodos de busca e de solução de
TRÊS TIPOS DE LEITORES: O CONTEMPLATIVO, O MOVENTE E O IMERSIVO

problemas. Embora essas funções percepcivo-cognitivas só sejam


visíveis no toque do mouse, elas devem estar ligadas à
polissensorialidade e senso-motricidade, no envolvimento extensivo
do corpo na sua globalidade psicossensorial, isto é, na sua capacidade
sensorial sinestésica e sensório-motora.

Justificativa para essas hipóteses encontra-se no fato de que, nas telas da


hipermídia, a combinatória plurissensorial, que naturalmente nosso cérebro
pratica para constituir suas imagens, tornou-se possível fora do cérebro, na
medida em que essa combinatória é encenada na própria tela. É com ela que o
leitor interage por meio do movimento nervoso do mouse.
Com base nesses pressupostos, a realização da pesquisa seguiu duas rotas
simultâneas e interatuantes. De um lado, a rota teórica que visou à seleção de
um campo conceitual apropriado àquilo que se buscava responder. Quer dizer,
qual o campo teórico que apresentava mais proximidade com o objeto a ser
estudado? Conforme será apresentado no capítulo 4, foi nas ciências
cognitivas, especialmente nos modelos cognitivos de resolução de problemas e
na neurociência cognitiva que encontrei a fundamentação teórica mais
sintonizada com as questões levantadas.
A outra rota foi a da prática, que teve por finalidade levantar dados para
confronto com os pressupostos teóricos, por meio de uma pesquisa de campo
que me pusesse em contato com os leitores imersivos, usuários do
ciberespaço. Os passos dessa pesquisa serão relatados no capítulo 3-
0 CIBERESPAÇO E SUA LINGUAGEM: A
HIPERMÍDIA

orteando este trabalho está a hipótese de que a navegação


interativa no ciberespaço envolve transformações perceptivo-
cognitivas por parte desse novo tipo de
leitor que chamo de “leitor imersivo”, aquele que navega entre nós e nexos
construindo roteiros não lineares, não seqüenciais. Como já mencionei no
capítulo 1, essas transformações devem estar baseadas:
a) Em tipos especiais de ações e controles perceptivos que resultam da
decodificação ágil de sinais e rotas semióticas.
b) Em tipos de comportamentos e decisões cognitivas alicerçados em
processos inferenciais, métodos de busca e de solução de problemas.
c) Na ligação das funções perceptivo-cognitivas à polissenso- rialidade e
senso-motricidade do corpo na sua globalidade psicossensorial.
Uma vez que se trata aí de hipóteses que se referem a questões
fundamentalmente cognitivas, para colocá-las em discussão, alguns
pressupostos conceituais advindos das ciências cognitivas são necessários.
Entretanto, antes disso, é preciso conhecer o ambiente em que esses processos
cognitivos são performatizados: o ambiente do ciberespaço. Quais são as suas
características? Para conhecê-las, apresentarei a seguir um traçado geral desse
espaço
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

cibernético, acompanhado de comentários sobre a linguagem que é própria


desse novo ambiente de comunicação: a hipermídia. As linguagens do
ciberespaço são linguagens hipermidiáticas. Inteirar-se da natureza palinódica
da semiose na hipermídia, que se expressa na sua estrutura reticular, nodal,
constitui porta de entrada para o conhecimento do ciberespaço.

1.0 QUE ÉO CIBERESPAÇO

Cada vez mais crescentemente processos de comunicação são criados e


distribuídos em forma digital legível no computador. Forma digital significa
que quaisquer fontes de informação podem ser homogeneizadas em cadeias de
0 e 1. Isso quer dizer que a mesma tecnologia básica pode ser usada para
transmitir todas as formas de comunicação — seja na forma de textos, áudio
ou vídeo — em um sistema de comunicação integrado, tal como aparece na
internet.
Como a internet funciona? Seu funcionamento depende não apenas do
papel capital desempenhado pela informática e pelos computadores, mas da
comunicação que se institui entre eles por meio da conexão em rede. As duas
forças principais da informática, capacidade de armazenamento e
processamento da informação, multiplicam-se imensamente na medida em que
as máquinas podem se beneficiar umas das outras. Na internet, a palavra
“rede” deve ser entendida em uma acepção muito especial, pois ela não se
constrói segundo princípios hierárquicos, mas como se uma grande teia na
forma do globo envolvesse a terra inteira, sem bordas nem centros. Nessa teia,
comunicações eletrônicas caminham na velocidade da luz (300 mil km/s), em
um “tempo real”, pode-se dizer, no qual a distância não conta (Baylon e
Mignot,
1999: 376).
Quais são os componentes dessa teia? Ela se compõe de um número de
dezenas de milhares de sub-redes, elas mesmas conectadas a redes chamadas
de “espinhas dorsais” ou “redes federati-
0 CIBERESPAÇO E SUA LINGUAGEM: A HIPERMÍDIA

vas”. Dentre as sub-redes, a mais empregada é a WWW {World Wide Web). A


chave para conectar a rede está no seu conjunto subjacente de regras de
comunicação ou protocolos. Para o usuário, a execução dos protocolos da rede
é até certo ponto fácil, na medida cm que não é necessário saber o que está
por baixo da interface na cela, muito menos como funcionam os programas
computacionais e a máquina em que esses programas são processados. Se o
usuário não tiver muitas pretensões exploratórias, basta memorizar um plano
técnico de indicações sumárias para que ele possa entrar na rede. E por isso
que crianças de cinco anos já são capazes de se conectar a partir da
memorização de uma pequena seqüência de ícones.
Por trás da tela, os protocolos têm um método de transmissão que é
comum a muitos outros tipos de redes de dados: a comutação de pacotes. Isso
significa que as transmissões digitais são quebradas em pequenas parcelas de
dígitos, chamados de pacotes. Cada pacote tem bits adicionais, indicando os
endereços na rede tanto da parte emissora quanto da parece receptora, a
seqüência do número de cada pacote e um código para a verificação de erros.
A vantagem disso é que muitas mensagens podem simultaneamente
compartilhar um único circuito. Por meio da informação dos endereços e das
seqüências dos números, a mensagem é recondicionada no seu ponto de
chegada. O futuro da tecnologia de comutação de pacotes será aumentar a
velocidade de transmissão em várias ordens de magnitude por meio da fibra
óptica. Deverá haver priorização de pacotes de modo que pacotes de voz e
vídeo, que exigem entrega imediata, poderão receber tratamento preferencial
sobre aplicações que aceitam algum atraso, como correio eletrônico
(Straubhaar e LaRose, 1997: 22).
O universo virtual das redes alastrou-se exponencialmente por todo o
planeta fazendo emergir um universo paralelo ao universo físico no qual
nosso corpo se move. Assim sendo, como nos diz Nora (1997: 77), a internet
converteu-se em uma mescla inacreditável de infra-estruturas subsidiadas e
dedicadas à investigação, de redes privadas de empresas, de centros de
informação de
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

todo tipo e um sem-fim de grupos de discussão etc. Trata-se de uma estrutura


associativa em cujo seio abrigam-se competidores econômicos selvagens. Por
ser um gigante descentralizado, não conhece regras de jogo universais. Não
tem donos, nem censores, apenas uma “netiqueta”.
Desde a imaginativa sugestão de Marcos Novac ([1991] 1993), o universo
paralelo, que tem sua matriz na internet, que abriga megalópolis, ou bancos
de dados comerciais, e uma infinidade de portais e sites de todas as espécies,
vem sendo chamado de ciberespaço. Onde está o ciberespaço? Não há resposta
fácil para essa pergunta. “O ciberespaço é como Oz — existe, chegamos a ele,
mas não tem ubiquação” (Stenger, 1993: 54). De que se constitui isso que
existe em um lugar sem lugar e que é, ao mesmo tempo, uma miríade de
lugares? Consiste de uma realidade multidirecional, artificial ou virtual
incorporada a uma rede global, sustentada por computadores que funcionam
como meios de geração e acesso. Nessa realidade, da qual cada computador é
uma janela, os objetos vistos e ouvidos não são nem físicos nem,
necessariamente, representações de objetos físicos, mas têm a forma, caráter e
ação de dados, informação pura. E certamente uma realidade que deriva em
parte do funcionamento do mundo natural, físico, mas que se constitui de
tráfegos de informação produzida pelos empreendimentos humanos em todas
as áreas: arte, ciência, negócios e cultura (Benedikt, 1993: 116).
Como o ciberespaço se relaciona com a realidade virtual, com a
visualização da informação, com as interfaces gráficas dos usuários, com as
redes, com os meios de comunicação múltiplos, com a convergência das
mídias, com a hipermídia? Ele se relaciona com todos, inclui a todos, pois tem
a capacidade de reunir e concentrar todas essas faces em um objetivo comum.
Nessa medida, o ciberespaço deve ser concebido como um mundo virtual
global coerente, independente de como se acede a ele e como se navega nele.
Tal qual uma língua, cuja consistência interna não depende de que os seus
falantes estejam, de fato, pronunciando-a, pois eles podem estar todos
dormindo, em um dado
0 CIBERESPAÇO E SUA LINGUAGEM: A HIPERMlDIA

momento imaginário, o ciberespaço, como uma virtualidade disponível,


independe das configurações específicas que um usuário particular consegue
extrair dele. Além disso, há várias maneiras de se entrar no ciberespaço. Pelas
animações sensíveis de imagens no monitor do vídeo controlado pelo mouse,
passando pela tecnologia da realidade virtual, que visa recriar o sensório
humano tão plenamente quanto possível, até os eletrodos neurais diretos.
Benedikt (ibid.: 162) estabelece sete princípios para o designa e a natureza do
ciberespaço:
a) O princípio da exclusão: duas coisas não podem ocupar o mesmo lugar
ao mesmo tempo.
b) O princípio da máxima exclusão, junto com a identidade máxima do
objeto. Dado qualquer estado n-dimensional de um fenômeno e todos
os valores — reais e possíveis — de n dimensões, eleger como
dimensões extrínsecas — como espaço e tempo — aquele conjunto de
(duas, ou três, ou quatro) dimensões que minimizarão o número de
violações do princípio de exclusão.
c) O princípio da indiferença. A realidade sentida de qualquer mundo
depende do grau de sua indiferença quanto à presença de um usuário
particular e de sua resistência ao desejo dele.
d) O princípio de escala. A velocidade máxima (de espaço) de movimento
do usuário no ciberespaço é uma função inversa, monotônica da
complexidade do mundo visível para ele.
e) O princípio do trânsito. A distância entre dois pontos do ciberespaço
deverá ocorrer fenomenicamente através de todos os pontos que
intervêm nele, sem importar a rapidez (salvo quando se tratar de uma
velocidade infinita). O viajante deve arcar com os custos
proporcionais da distância percorrida.
f) O princípio da visibilidade pessoal. Os usuários individuais no e do
ciberespaço deveriam ser visíveis, de alguma
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

forma não trivial, e em todo momento, a todos os demais usuários


vizinhos, e os usuários individuais podem escolher por suas próprias
razões se desejam ou não, e em que medida, ver qualquer usuário
vizinho ou todos eles.
g) O princípio da comunidade recomenda que os espaços virtuais sejam
objetivados de maneira circunscrita por uma comunidade de usuários
definida.
Quando Benedikt editou o seu livro antológico Ciberespaço. Primeiros Passos
(1991), de onde as informações acima foram extraídas, as redes estavam
engatinhando. É impressionante o poder premonitório dos prognósticos
contidos nesse livro, pois foi só em 1993 que a WWW se difundiu
mundialmente a partir da consolidação da língua franca da internet, a
linguagem HTML (Hypertext Mark-up Language), baseada em vínculos
hipertextuais entre palavras, e seus protocolos derivados. Logo depois, Marc
Pesce inventou uma nova linguagem informática, a VRML (Virtual Reality
Modelling Language). “Imaginem”, dizia Pesce (apud Reid, 1997: 171):

uma interface de internet onde as fontes de dados - livros, sons,


vídeos, pudessem ser representados de maneira natural, como são no
mundo real, com metáforas procedentes do mundo real. A gente pode
recordar as metáforas do mundo real porque têm sentido. [...]
Organizamos nossa vida sensorialmente - pense em sua coleção de
discos - e necessitamos transferir essa mesma técnica para a internet
se, de fato, queremos usar a rede de acordo com todas as nossas
capacidades.

Veio daí a idéia de criar uma interface sensorial na WWW, da qual procede
a VRML, apresentada pela primeira vez em Orlando, no SIGGRAPH 1994, e
imediatamente implementada pela Silicon Graphics, a empresa mais potente
em infografia no planeta. Para operacionalizar as propostas de Pesce e seus
seguidores, que já haviam criado um primeiro ambiente virtual telemático, o
Labyrinth,
0 CIBERESPAÇO E SUA LINGUAGEM: A HIPERMlDIA

.1 Silicon adquiriu o ambiente de programação Open Inventor, criado por Rick


Carey, e construiu o portal Web Space, especificamente desenhado para a nova
linguagem. Assim surgiu a versão VRML 1.0, que teve grande impacto sobre
os internautas interessados na transmissão de imagens, apesar de suas
insuficiências, como, por exemplo, o caráter estático das imagens e sua
incapacidade para incorporar o som. Em 1996, essas insuficiências foram
superadas na versão 2.0, que se converteu prontamente no principal padrão da
internet para a transmissão de imagens tridimensionais.
Com isso, as imagens podiam então se mover em cenários virtuais
representáveis na própria rede, à maneira de desenhos animados no
ciberespaço. Também era possível incorporar sons procedentes de tais
imagens, o que possibilitou criar representações de sujeitos falantes nos
lugares virtuais. Além disso, essas entidades virtuais, providas de sensores,
reagiam aos movimentos e sons emitidos por outras imagens, mediante
técnicas de vida artificial. Estava assim inventado o teatro virtual interativo
que se desenvolveu vertiginosamente a partir de 1997 (Echeverría, 2000: 90-
92).
Nessas alturas, os navegadores já estavam em plena ação e o Netscape
incorporou rapidamente a VRLM 2.0. Embora tenha tentado lançar uma
linguagem alternativa, a Microsoft acabou por incorporá- la ao Explorer. Com
isso, uma linguagem ideográfica aparecia como uma nova linguagem para a
rede. Com a VRLM surgiram os lugares virtuais nas redes e os avatares. Estes
são figuras gráficas que podem movimentar-se, atuar e inter-relacionar-se
com outras máscaras digitais em um mundo virtual tridimensional. Cada
usuário que entra nesses ambientes virtuais pode criar seu próprio avatar, ao
eleger uma máscara em um guarda-roupa digital disponível. Pode até
modificá- la, ao imprimir-lhe uma gestualidade e uma voz específica.
Hoje, não obstante o grande número de opções que se abrem ao usuário, o
ambiente ciberespacial codificou-se em rotas e sítios sinalizados com uma
organização interna que, nos serviços que disponibiliza, apresenta alguns
tipos de comunicação já estratifi- cados, tais como:
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

a) O correio elecrônico que pode também conduzir a voz mais


rapidamente do que a escrita, que exige mais esforço.
b) Os grupos de discussão que se constituem tanto nos fóruns que
congregam grupos reunidos em torno de interesses comuns, quanto
nos grupos de discussão em tempo real, Internet Relay Chats.
c) A busca de informações na internet, que se tornou uma das vias
privilegiadas para a pesquisa científica, para a publicação de revistas
on-line e para uma série inumerável de outros serviços de
disponibilização de informações.
d) O comércio e a publicidade eletrônicas que igualmente povoam esses
ambientes.
As comunidades virtuais do ciberespaço têm crescido e se diferenciado
com cal intensidade que produziram o aparecimento de uma nova forma de
cultura, a cultura do ciberespaço ou cibercultura (ver Lévy, 2000, Lemos,
2002, Costa, 2002, Santaella, 2003). Não obstante a importância dessa questão,
para os objetivos do presente capítulo, devemos nos concentrar em uma das
faces fundamentais da cibercultura, a saber, a face das linguagens do
ciberespaço cuja chave de compreensão está na hipermídia, que tanto pode
estar manifesta no design de um suporte CD-Rom quanto nas estruturas em
movimento dos nós e conexões de um usuário da WWW.
Antes disso, contudo, é necessário alertar para o fato de que não há um
consenso quanto ao sentido que se dá para o ciberespaço. Para alguns (ver, por
exemplo, Batchen, 1998: 273), trata- se estritamente de um sinônimo de
realidade virtual (RV). Esta pode ser definida como um sistema informático
capaz de criar um mundo simulado paralelo dentro do qual o usuário tem a
impressão de estar, quando navega manipulando seus objetos. Trata-se de um
sistema que permite simular as percepções humanas, gerando um ambiente
virtual que produz a sensação de realidade, na medida em que os objetos se
movem de acordo com os movimentos e o ponto de vista do participante,
todos controlados por
0 CIBERESPAÇO E SUA LINGUAGEM: A HIPERMÍDIA

computadores. Os recursos mais comuns para produzir esse tipo de


experiência são os capacetes e as luvas de dados e um sistema informático que
gera o ambiente virtual e transmite ordens do usuário mediante um sistema
de controle. Contemporaneamente, a cave, caverna digital, é um meio muito
mais sofisticado para a criação de ambientes simulados que incorporam, em
tempo real, o ponto de vista do participante (para mais informações sobre
isso, ver Cantoni).
Embora a RV, de fato, constitua-se no ponto mais alto da imersão de um
participante no mundo simulado, o conceito de ciberespaço é mais amplo do
que o de RV. Na verdade, a RV é apenas uma das dimensões possíveis do
ciberespaço, talvez a mais sofisticada. Se é certo que não há um consenso
sobre o sentido a ser dado a ciberespaço, a maioria dos autores concorda
quanto ao fato de que, no seu sentido mais amplo, ele se refere a um sistema
de comunicação eletrônica global que reúne os humanos e os computadores
em uma relação simbiótica que cresce exponen- cialmente graças à
comunicação interativa. Trata-se, portanto, de um espaço informacional, no
qual os dados são configurados de tal modo que o usuário pode acessar,
movimentar e trocar informação com um incontável número de outros
usuários. O ciberespaço inclui, portanto, todas as modalidades de uso que as
redes possibilitam, de modo que a RV é apenas a extensão última desse
processo até o ponto de produzir um grau de imersão sensória total no
ambiente simulado.
Em síntese, neste livro, ciberespaço será considerado como todo e
qualquer espaço informacional multidimensional que, dependente da
interação do usuário, permite a este o acesso, a manipulação, a transformação
e o intercâmbio de seus fluxos codificados de informação. Assim sendo, o
ciberespaço é o espaço que se abre quando o usuário conecta-se com a rede.
Por isso mesmo, esse espaço também inclui os usuários dos aparelhos sem fio,
na medida em que esses aparelhos permitem a conexão e troca de
informações. Conclusão, ciberespaço é um espaço feito de circuitos
informacionais navegáveis. Um mundo virtual da comunica
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

ção informática, um universo etério que se expande indefinidamente mais


além da tela, por menor que esta seja, podendo caber até mesmo na palma de
nossa mão.
Também de acordo com o ponto de vista que defendo, entrar no
ciberespaço é, sine qua non, imergir nesse espaço. A imersão é tanto mais
profunda, quanto mais o espaço é capaz de envolver o usuário
tridimensionalmente, como é o caso da RV. Isso não significa, contudo, que a
imersão se limita à RV. Há graus decrescentes de imersão. Assim, o limite
máximo da imersão encontra-se na imersão perceptiva da RV. Um outro grau
de imersão é aquele que se dá mediante telepresença. Esta ocorre quando a
tecnologia de RV é conectada a um sistema robótico fisicamente presente em
alguma locação à distância. “O usuário vê, toca e move-se pela locação
fisicamente distante graças aos elos com os sensores dos robôs (câmaras,
microfones, sensores de toque etc.) e atuadores (braços de robôs)’’ (Biocca,
1997: 203).
Há ainda o grau de imersão representativa, obtida nos lugares virtuais
construídos pela linguagem VRML. Enquanto na RV, o participante tem a
sensação de estar dentro, agindo no cenário virtual, na imersão
representativa, o participante se vê representado no ambiente virtual, mas
não está envolvido tridimensionalmente por ele. Um quarto grau de imersão,
em ordem decrescente, é aquele que se dá quando o usuário se conecta com a
rede. Entrar na rede significa penetrar e viajar em um mundo paralelo,
imaterial, feito de bits de dados e partículas de luz. Por isso mesmo, como
quer Rheingold (1991: 101), o conceito de navegação transcende o tipo
particular de tecnologia que se usa para a manipulação da informação.
Transcende também a forma particular da informação. Assim sendo, é possível
navegar:

a) através de uma base de dados textuais;


b) através de um elenco de imagens animadas;
c) através de uma simulação virtual do mundo físico;
d) ou via controle telerrobótico, através de uma parte remota do mundo
físico.
0 CIBERESPAÇO E SUA LINGUAGEM: A HIPERMÍDIA

Em todos esses casos, não obstante a diferença no grau de imersão de cada


um deles, trata-se, ao fim e ao cabo, de navegação. É nesse sentido que o
adjetivo “imersivo” está qualificando o novo tipo de leitor que este livro tem
por tarefa caracterizar. Trata-se, de fato, de um leitor, na medida em que se
entenda a palavra “leitor” como designando aquele que desenvolve
determinadas disposições e competências que o habilitam para a recepção e
resposta à densa floresta de signos em que o crescimento das mídias vem
convertendo o mundo. É, no entanto, um tipo especial de leitor, o imersivo,
quer dizer, aquele que navega através de dados informacionais híbridos —
sonoros, visuais e textuais — que são próprios da hipermídia, como será visto
abaixo.

2. A LINGUAGEM HIPERMÍDIA

Tomando por base o suporte CD-Rom, em um outro livro (Santaella, 2001:


389-412) desenvolvi um estudo sobre a linguagem hipermídia, que me levou a
concluir que há pelo menos quatro traços definidores fundamentais da
hipermídia. Apresentarei esses traços no que se segue para ir, passo a passo,
considerando o comportamento que eles adquirem no ambiente das redes.
Há muitos tipos de CD-Roms: de entretenimento (esportes, aventuras,
filmes), obras de referência (dicionários, enciclopédias, atlas, guias) produtos
ludo-educativos, produtos educativos, produtos de "eduversão” ( edutainment),
educação + diversão, e obras artístico-literárias. Os traços caracterizadores,
que serão discutidos abaixo, não se referem aos possíveis conteúdos das
hipermídias, mas aos traços gerais que a configuram como linguagem, de modo
que são aplicáveis a qualquer tipo específico de hipermídia.
O primeiro traço encontra-se na hibridização de linguagens, processos
sígnicos, códigos e mídias que a hipermídia aciona e, conseqüentemente, na
mistura de sentidos receptores, na sen- sorialidade global, sinestesia
reverberante que ela é capaz de
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

produzir, na medida mesma em que o receptor ou leitor imersivo interage com


ela, cooperando na sua realização. Por isso mesmo, em uma definição sucinta e
precisa, hipermídia significa “a integração sem suturas de dados, textos,
imagens de todas as espécies e sons dentro de um único ambiente de
informação digital” (Fel- dman, 1995: 4).
A hibridização de tecnologias e linguagens vem sendo chamada de
convergência das mídias. Entretanto, há certa sutileza na compreensão dessa
expressão que merece ser levada em conta. A hipermídia mescla textos,
imagens fixas e animadas, vídeos, sons, ruídos em um todo complexo. É essa
mescla de vários setores tecnológicos e várias mídias anteriormente separadas
e agora convergentes em um único aparelho, o computador, que é comu-
mente referida como convergência das mídias. Entretanto, para alguns (ver,
por exemplo, Castells, 2003: 244), só haverá uma verdadeira convergência das
mídias quando houver a integração entre a televisão e as redes, ou seja, com o
advento da televisão interativa, como um canal comum de alta tecnologia. De
fato, essa tão esperada integração que está implicando atualmente
investimentos vultosos, envolvendo a fusão de grandes empresas de
entretenimento, de companhias telefônicas e de software, levará a convergência
das mídias ao seu ápice, ao abarcar, em um único aparelho, a televisão, o
computador pessoal, as máquinas de jogos, os toca-discos digitais etc. (cf.
Nora, 1997, Dizard, 2000). Isso não significa, contudo, que a convergência das
mídias já não esteja operando nas redes. Tanto isso é verdade que nelas encon-
tram-se as novas versões digitais do rádio, do jornal etc. De resto, sem essa
convergência, a hipermídia, como linguagem híbrida, prototípica do mundo
digital, não seria possível.
Esclarecido esse ponto, podemos passar para o segundo traço definidor da
hipermídia. Além de permitir a mistura de todas as linguagens, textos,
imagens, sons, ruídos e vozes em ambientes multimidiáticos, a digitalização
também permite a organização reticular dos fluxos informacionais em
arquiteturas hipertextuais. Por isso mesmo, o segundo traço da linguagem
hipermídia está na
0 CIBERESPAÇO E SUA LINGUAGEM: A HIPERMÍDIA

sua capacidade de armazenar informação e, por meio da interação do


receptor, transmutar-se em incontáveis versões virtuais que vão brotando na
medida mesma em que o receptor se coloca em posição de co-autor. Isso só é
possível devido à estrutura de caráter hiper, não seqüencial, multidimensionai
que dá suporte às infinitas opções de um leitor imersivo. Que estrutura é
essa? Para compreendê-la é necessário entender melhor o sistema hipertexto.
Em vez de um fluxo linear de texto como é próprio da linguagem verbal
impressa, no livro particularmente, o hipertexto quebra essa linearidade em
unidades ou módulos de informação, consistindo de partes ou fragmentos de
textos. Nós e nexos associativos são os tijolos básicos de sua construção. Os
nós são as unidades básicas de informação em um hipertexto. Nós de
informação, também chamados de molduras, consistem em geral daquilo que
cabe em uma tela. Cada vez menos os hiperdocumentos estão constituídos
apenas de texto verbal, mas estão integrados em tecnologias que são capazes
de produzir e disponibilizar som, fala, ruído, gráficos, desenhos, fotos, vídeos
etc. Essas informações multimídias também constituem os nós. Assim, os nós
de informação podem aparecer na forma de texto, gráficos, seqüências de
vídeos ou de áudios, janelas ou de misturas entre eles. A idéia de nó, por isso
mesmo, não é uma idéia de medida, mas modular, dependendo de sua
funcionalidade no contexto maior de que faz parte. Um nó pode ser um
capítulo, uma seção, uma tabela, uma nota de rodapé, uma coreografia
imagética, um vídeo, ou qualquer outra subestrutura do documento. É muito
justamente a combinação de hipertexto com multimídias, multilinguagens,
chamando-se de hipermídia.
Dado o caráter descontínuo dos nós, um outro tijolo básico da construção
hipermidiática está nos nexos ou conexões. Um discurso verbal arma-se em
um todo coeso graças aos conectores gramaticais. Um artigo se estrutura em
parágrafos de transição, tópicos e subtópi- cos, assim como um livro se
organiza em capítulos. Do mesmo modo, a hipermídia também tem um
sistema de conexões que lhe é próprio. O propósito básico desse sistema é
conectar um nó a outro de acordo com algum desenho lógico, seja este
analógico, arbóreo, em rede,
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

hierárquico etc. São essas conexões, geralmente ativadas por meio de um


mouse, que permitem ao leitor da hipermídia mover-se através do documento.
Descobrindo e seguindo pistas que são deixadas em cada nó, basta o
instantâneo de um click para que, em um piscar de olhos,
o leitor salte de um nó para outro.
Há uma infinita variedade de conexões possíveis. Entre elas, a mais
importante é aquela que liga um nó a outro no interior do documento. Mas há
as conexões que ligam o texto a nós ou há ainda as conexões lexicais que ligam
regiões de texto a nós, entre outras. Transitando entre informações
modularizadas, reticuladas, as opções do caminho a ser seguido são de inteira
responsabilidade do leitor. A hipermídia não é feita para ser lida do começo
ao fim, mas sim através de buscas, descobertas e escolhas. Esse percurso de
descobertas, entretanto, não cai do céu. Ao contrário, para que ele seja
possível, deve estar suportado por uma estrutura que desenha um sistema mul-
tidimensional de conexões. A estrutura flexível e o acesso não linear da
hipermídia permitem buscas divergentes e caminhos múltiplos no interior do
documento. Quanto mais rico e coerente for o desenho da estrutura, mais
opções ficam abertas a cada leitor na criação de um percurso que reflete sua
própria rede cognitiva.
Hipermídia significa, sobretudo, enorme concentração de informação. Ela
pode consistir de centenas e mesmo milhares de nós, com uma densa rede de
nexos. A grande flexibilidade do ato de ler uma hipermídia, leitura em
trânsito, funciona, contudo, como uma faca de dois gumes. Ela pode se
transformar em desorientação se o receptor não for capaz de formar um mapa
cognitivo, mapeamento mental do desenho estrutural de um documento. Para
a formação desse mapa, contudo, ele precisa encontrar pegadas que funcionem
como sinalizações do desenho. Vem daí a necessidade, nas hipermídias em
suporte CD-Rom, de se criar roteiros que sejam capazes de guiar o receptor no
seu processo de navegação.
A hipermídia em CD-Rom ainda mantém algumas características de
“obra”, enquanto na rede ela é potencialmente extensível. Por isso mesmo,
enquanto a navegação da hipermídia em suporte
0 CIBERESPAÇO E SUA LINGUAGEM: A HIPERMÍDIA

CD-Rom depende da criação de roteiros para os possíveis nós e nexos da


navegação, no hipertexto on-line, as associações são radicalmente
imprevisíveis, como são imprevisíveis os caminhos que são seguidos a cada dia
pelos usuários de uma grande biblioteca. Daí as alusões que a literatura sobre
internet não se cansa de fazer à lendária biblioteca borgiana, a biblioteca de
Babel, composta de infinitas galerias hexágonas. Analogamente ao conceito
biológico do labirinto rizomático deleuziano, entrelaçado não estruturado, a
biblioteca é periferia sem centro. “É uma esfera cujo verdadeiro centro é
qualquer hexágono e cujo perímetro é impenetrável” (Wirth, 1998: 97).
Quando milhões de usuários fazem milhões de saltos através de milhares
de documentos todos os dias, atravessando as arquiteturas líquidas da
informação, arquiteturas com arestas macias, fluidas, tão intercomunicantes
quanto as sinapses das redes neu- ronais, também não é de se estranhar que as
conexões na hipermídia sejam comparadas a fitas de DNA, cada uma não
apenas uma composição de ácidos nucléicos em si mesma (sua descrição), mas
uma fórmula, um sistema de comando para a organização de proteínas em
padrões pré-configurados (sua prescrição).
Tendo isso em vista, transitar pelas infovias pode produzir desconcerto e
frustração se o internauta são conseguir ajustar os alvos pretendidos ao
programa estrutural do documento. Atualmente, contudo, nas redes, o
potencial da hipermídia para a desorientação encontra alguma resolução no
desenvolvimento dos portais que permitem a seleção do conteúdo de acordo
com aquilo que o usuário deseja (“primeiro me mostre a previsão do tempo,
depois
o esporte, mas apenas a final do campeonato, então as notícias, e, por fim,
meu correio eletrônico"). Algumas rádios na internet já incluem um código de
formato digital que permite programar as rádios para funções como “procurar
heavy metal”. Os programas de busca na WWW, que permitem ao usuário
procurar conteúdos por meio de palavras-chaves, são indicativos do grau de
controle de uso que provavelmente estará disponível em todas as mídias daqui
a não muito tempo. Assim funcionam os programas de fil
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

tragem que permitem aos pais programar seus computadores para que seus
filhos não tenham acesso a certos sites da internet. O V- chip também permite
filtrar programas de adultos ou de violência na TV. E agora as páginas da rede
estão ganhando novos códigos de conteúdo que não apenas nos ajudam a
filtrar o que não queremos receber, mas também a encontrar o material que
desejamos. Novas aquisições incluem programas que funcionam como agentes
que buscam informações na rede e avatares que permitem a construção de
imagens do usuário que interagem com outros avatares (Straubhaar e LaRose,
1997: 23). Os recursos acima da estrutura hipermidiática na internet, e a
necessidade de mapas para a navegação nos CD-Roms, colocam-nos diante do
terceiro traço definidor da hipermídia: seu cartograma navegacional.
A hipermídia é uma linguagem eminentemente interativa. Este é o seu
quarto traço definidor. O leitor não pode usá-la de modo reativo ou passivo.
Ao final de cada página ou tela, é preciso escolher para onde seguir. É o
usuário que determina qual informação deve ser vista, em que seqüência ela
deve ser vista e por quanto tempo. Quanto maior a interatividade, mais
profunda será a experiência de imersão do leitor, imersão que se expressa na
sua concentração, atenção, compreensão da informação e na sua interação
instantânea e contínua com a volatilidade dos estímulos. O desenho da
interface é feito para incentivar a determinação e a tomada de decisão por
parte do usuário. Isso significa que a interatividade em um sistema
informacional dá ao receptor alguma influência sobre o acesso à informação e
um grau de controle sobre os resultados a serem obtidos (Feldman, 1995: 6).
Também nas redes, a grande inovação da comunicação encontra-se no seu
caráter interativo que é inseparável do caráter hiper- textual e hipermidiático
de sua linguagem. Comparando-se com as outras mídias, de fato, a internet é a
única inteiramente dialó- gica e interativa (isso será detalhadamente
discutido no capítulo 10). O rádio e a televisão são capazes de colocar milhões
de pessoas na sintonia de um único acontecimento, mas sua comunicação é
assimétrica, tem um só sentido. A única reação que os receptores
0 CIBERESPAÇO E SUA LINGUAGEM: A HIPERMÍDIA

podem ter é a de ligar, mudar de canal, ou desligar a transmissão. O telefone


e o fax já são interativos, mas só são capazes de conectar um número limitado
de pessoas em cada ligação. Além disso, são mono-semióticos. O telefone
centraliza-se na voz, e o fax, na mensagem impressa em papel.
Contrariamente, graças à digitalização, a informação hipermídia é transmitida
sob as mais diversas formas de linguagem escrita, visual e sonora, dirigindo-
se simultaneamente a diversos sistemas sensoriais aptos a perceber a
informação à distância, especialmente o olho e o ouvido, com grande
interferência do sentido tátil-motor na interatividade, como será examinado
no capítulo 9-
TRÊS TIPOS DE USUÁRIOS: O NOVATO,
O LEIGO E O EXPERTO

esde a fase de elaboração do projeto de pesquisa, que

D deu origem a este livro, estava muito certa daquilo que


não queria realizar. Não me interessava conduzir uma
pesquisa quantitativa para medir algumas transformações per-
ceptivas e cognitivas dos usuários do ciberespaço. O que buscava encontrar
era um perfil holístico capaz de delinear os traços definidores de um novo
modo de ler próprio do cibernauta. O que me surpreendia nesse modo de ler
era a sincronia da cognição com os aspectos sensório-motores, a motricidade
física expressa na pron- tídão das respostas, em certo modo de reagir
sensitivo e muscular, em suma, o controle motor exímio, a agilidade e
instantaneidade das ligações entre a mente que pensa, o olho que perscruta e
o
corpo que reage na extremidade da mão. Para compreender como essa
sincronia se dá, a pesquisa dependia de observações bem informadas e de
conceitos teóricos muito afinados para que a observação não ficasse no nível
do senso comum.
Por isso mesmo, de saída, a pesquisa foi pensada para se realizar em duas
camadas nitidamente demarcadas, uma teórica e uma outra camada de
pesquisa de campo. Embora em duas camadas, elas não teriam de esperar uma
pela outra. Ao contrário, a idéia era que o acesso ao usuário, no início um
acesso meramente exploratório, fosse trazendo subsídios para a pesquisa
teórica, na
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

medida em que esta visava selecionar conceitos que fossem ope- rativamente
apropriados para ajudar a compreender a indagação que a pesquisa buscava
responder. Tratava-se de fazer avançar a pesquisa nos seus dois flancos, o
teórico e o empírico, de modo que um pudesse fornecer subsídios para o
outro. Foi, de fato, assim que se deu.
Antes de tudo, busquei conhecer mais profundamente os ambientes do
ciberespaço, habitar as arquiteturas líquidas, viajar um pouco nelas para que
meu olhar observador pudesse ficar mais atento. Em seguida, dei início às
gradativas e crescentes fases de observação e coleta de dados.

1. PRIMEIRA FASE: OBSERVAÇÃO POUCO ESTRUTURADA

Esta fase caracterizou-se pela observação pouco ou não estruturada, na


modalidade da observação participante. A observação era informal e tinha por
objetivo desenvolver uma familiaridade com o comportamento exibido pelos
usuários no ato de navegar. Para inferir sobre possíveis habilidades cognitivas
que estavam por trás do comportamento motor e perceptivo, a observação era
muitas vezes acompanhada por perguntas do tipo: “Por que você clicou nesse
lugar? Como sabia que deveria seguir essa rota?” etc.
A par disso, foram também feitas observações informais do
comportamento motor e perceptivo de usuários de jogos eletrônicos. Essa
observação tinha por finalidade comparar a presteza motora e perceptiva do
usuário dos jogos eletrônicos com a do usuário do ciberespaço.
O que se buscava nessa primeira fase era encontrar subsídios para o tipo
de abordagem ao usuário a ser adotado pela pesquisa.

2. SEGUNDA FASE: PESQUISA-PILOTO EXPLORATÓRIA

Essa pesquisa-piloto teve por objetivo testar os meios de acesso ao


usuário, tendo em vista as metas da pesquisa: detectar mudanças
TRÊS TIPOS DE USUÁRIOS: O NOVATO, O LEIGO E O EXPERTO

perceptivas e cognitivas no tipo de leitura que é próprio do cibe-


respaço. Ora, as mudanças perceptivas são até certo ponto obser-
váveis, mas as mentais devem ser inferidas. Daí a necessidade de
uma pesquisa-piloto para o encontro de um caminho que pudesse
levar a equipe de pesquisa às conclusões mais confiáveis quanto às
habilidades cognitivas implicadas.
Os procedimentos adotados nessa fase foram os seguintes.
O universo de usuários foi dividido em dois grupos: (a) aqueles
que tinham familiaridade com o uso do ciberespaço e (b) aqueles
que não tinham nenhuma intimidade. Todos os usuários deveriam
ter escolaridade mínima de segundo grau completo ou em está-
gio adiantado. Essa era a única restrição. Idade e sexo não foram
levados em consideração. A pesquisa não visava avaliar esses tipos
de diferenças. A exigência da escolaridade tinha em vista evitar
a interferência de outros tipos de problemas cognitivos, que são
próprios do usuário de baixa escolaridade, na questão específica
que a pesquisa visava determinar. A esses dois grupos de usuários,
15 usuários do grupo (a) e 15 do grupo (b), num total de 30 usu-
ários, foram aplicados questionários para coleta de informações
básicas do tipo:

Nome
Idade
Grau de escolaridade
Usa computador?
Tem computador em casa?
Usa a internet?
Há quanto tempo?
Qual a freqüência de uso da internet?
Que tipos de uso faz da internet?

Depois de aplicado o questionário, foram feitas entrevistas abertas. O


usuário do grupo (a) deveria responder à seguinte questão: “Que dicas você
daria para uma pessoa que não tem familiaridade com a rede e que deseja
começar a navegar?”
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

O usuário do grupo (b) deveria responder à seguinte questão: “Que


dificuldades você encontra para navegar na rede?"
Os resultados dessa pesquisa-piloto foram frustrantes. Os usuários do
grupo (a) limitaram-se a dar respostas do tipo:

"Cuidado com e-mails de pessoas desconhecidas. Use sempre


antivírus."
"Visite o site www.aisa.com.br"
"Cuidado com a internet que é uma porta de entrada de vários vírus."
"Digitar o endereço correto e ter calma e paciência."
"Entre em contato com a companhia telefônica para verificar a fiação
e velocidade de sua linha" etc.

Enfim, tratava-se de respostas que ficavam bem longe da problemática


cognitiva que buscávamos, pois esses usuários pareciam não ter nenhuma
consciência das dificuldades, até mesmo motoras, que uma pessoa
inexperiente poderia ter para transitar na rede.
Os usuários do grupo (b) limitaram-se a dar respostas evasivas. Justamente
por serem inexperientes, por não terem familiaridade com a rede, nem podiam
prever as dificuldades que surgiriam.
Embora os resultados tenham sido frustrantes, a pesquisa- piloto parece
ter cumprido alguma função, pois foi por meio dela que se pôde concluir que
o universo dos usuários não poderia ser simplesmente dual. Deveria haver um
subgrupo de usuários intermediários entre o experiente e o inexperiente, pois
este último apresenta tais dificuldades, até mesmo em um nível puramente
motor, que as dificuldades perceptivas e cognitivas nem podiam ser acessadas.
Foi daí que veio a idéia de que os usuários a serem abordados são, de fato, de
três tipos: o novato, o leigo e o experto. Acreditava-se que o nível
intermediário dos leigos poderia dar-nos elementos que nem o experto nem o
novato poderiam. Entendemos que o usuário novato é aquele que não tem
nenhuma intimidade com a rede, para o qual tudo é novidade. O leigo é
TRÊS TIPOS DE USUÁRIOS: O NOVATO, O LEIGO E O EXPERTO

aquele que já sabe entrar na rede, já memorizou algumas rocas específicas,


mas não adquiriu ainda a familiaridade e competência de um experto, que
conhece os segredos de cada mínimo sinal que aparece na cela.
Enquanto isso, a pesquisa teórica prosseguia, trazendo-me gradativamence
a seleção dos conceitos cognitivos aplicáveis aos processos de navegação no
ciberespaço, conforme está relatado no capítulo 4. Faltava-me, porém, na
pesquisa com os usuários, um caminho para a coleta de dados que fizesse
avançar a pesquisa.
A solução do problema, que então se apresentava, não veio de
especialistas em pesquisa de campo, mas brotou de forma espontânea da
sugestão de um dos bolsistas de IC (Iniciação Científica). Por conta própria,
sem meu direcionamento, ele começou a aplicar um tipo de entrevista
participativa que me pôs no caminho daquilo que buscava.
Ao entrevistar os usuários, classificados nos três tipos acima indicados,
em vez de lhes fazer perguntas, esse bolsista lhes propunha um problema
adequado ao perfil de seu tipo, novato, leigo ou experto. As respostas eram
então descritas e analisadas pelo bolsista de um ponto de vista técnico. Ora,
essa análise técnica era capaz de me fornecer pistas preciosas sobre os
processos perceptivos e cognitivos que eram o objeto da pesquisa. Os
resultados dessa primeira coleta foram cão bons que foi feita, a partir daí,
uma coleta definitiva, seguindo os protocolos necessários, como se segue.

3. TERCEIRA FASE: ENTREVISTA PARTICIPATIVA

Nessa fase, em lugar de um questionário aberto para ser respondido,


depois da coleta de informações básicas, o instrumento adotado foi o da
entrevista participativa. A cada usuário era proposta uma tarefa de navegação,
ou seja, a resolução de um problema adequado ao nível de dificuldade
previsto para a escala em que o usuário se enquadrava: novato, leigo ou
experto. Esses usuários
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

foram divididos em 3 grupos de 15, num total de 45 usuários. Para se ter uma
idéia do tipo de dados que foram coletados, a seguir, estão exemplos de três
entrevistas participativas:

3.1. Usuário experto

Nome: xxx Sexo:


masculino Idade:
23 anos
Grau de escolaridade: superior incompleto
Há quanto tempo usa computador? Perto de um ano
Tem computador em casa? Não
Usa a internet? Sim
Há quanto tempo? Perto de um ano
Qual a freqüência de uso da internet? Três vezes por semana Que tipos de uso
faz da internet? Sites de casas de show, sites de tv a cabo, sites de busca.

Obs.: embora não tivesse computador em casa, o motivo principal para seu
acesso à rede devia-se ao fato de que, saindo do trabalho às 18 horas, “para
não pegar o trânsito infernal”, ele acessava a internet para gastar seu tempo
utilmente.

Problema dado: encontrar informação sobre o campeonato paulista de


futebol.
Comportamento do usuário: ele clicou sobre o campo “endereço”, digitou
www.globo.com e apertou a tecla “enter”. Em seguida, abriu na mesma janela
a página principal do site. Nesta, ele clicou no link “esportes”, depois clicou
sobre o link “últimos resultados”. Na mesma janela, abriu uma página com o
título “Esportes - últimos resultados”. Nesta página, havia, em forma de texto,
resultados de jogos de diferentes esportes realizados recentemente. Ele deu
uma lida no resultado de jogos que o interessavam e, logo depois, clicou em
“Voltar”. Então, abriu, na mesma janela, a página anterior à atual, que tinha o
título de
TRÊS TIPOS DE USUÁRIOS: O NOVATO, O LEIGO E O EXPERTO

“Esportes”. Em seguida, ele clicou no link “Futebol”, e aí clicou


sobre o link “Competições”, abrindo, então, na mesma janela,
uma página com cinco links, entre eles, o link “Campeonato
paulista”. Nessa página, havia todos os times inscritos no campe-
onato paulista de futebol com seu respectivo número de pontos,
número de partidas ganhas, número de partidas perdidas e saldo
com gols, tudo em forma de texto.
Avaliação do usuário: esse usuário sabe encontrar o que busca
com grande velocidade. Não se perdeu, nem hesitou por nenhum
momento. Sabe ir e voltar, conhece o uso do clique direito do
mouse, utiliza o recurso das janelas com muita presteza. Enfim,
navega com muito conhecimento.

3.2. Usuário leigo

Nome: xxx
Sexo: feminino
Idade: 17 anos
Grau de escolaridade: cursinho
Há quanto tempo usa computador? Um ano
Tem computador em casa? Sim
Usa a internet? Sim
Há quanto tempo? 6 meses
Qual a freqüência de uso da internet? De duas a três vezes por
semana
Que tipos de uso faz da internet? Sites de bate-papo, e-mail.

Problema dado: entrar em uma home page brasileira e procurar


informações sobre videoquê.
Comportamento da usuária: Ela não conhecia nenhum site sobre videoquê.
Para tentar resolver o problema dado, meio sem rumo, ela procurou no menu
da UOL se havia alguma coisa sobre videoquê. Foi clicando sem orientação.
Entrou em sites que não tinham nada a ver com o problema. Chegou a entrar
no subdi retório da UOL, na parte de e-mail. Quando viu que não estava
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

conseguindo resolver o problema, foi desistindo, até pedir que o entrevistador


a ajudasse.
Avaliação da usuária: pode-se perceber que, embora usuária da internet há
seis meses, ela se limita a fazer sempre as mesmas coisas: bate-papo e e-mails.
Não se aventura a explorar outras realidades. Não está acostumada com o
ambiente da internet. Diante da tarefa proposta, depois de algumas tentativas,
parecia que havia parado de raciocinar e, no fim, ficou desesperada. Muito
perdida, pediu ajuda.

3.3. Usuário novato

Nome: xxx Idade: 37 anos Sexo: feminino


Escolaridade: 2 o grau completo
Há quanto tempo usa computador? Algumas semanas
Tem computador em casa? Sim
Usa a internet? Sim
Há quanto tempo? 6 semanas
Qual a freqüência de uso da internet? Todos os dias
Que tipos de uso faz da internet? Sites de bate-papo

Problema dado: entrar em um site brasileiro de bate-papo, de um outro


provedor, diferente do uol, que é aquele que ela tem usado há 6 semanas.
Comportamento da usuária: sem sair da UOL, ela procurou uma sala de
bate-papo, sem perceber que todas as salas ali eram da UOL. Pediu-se que
saísse da uol e procurasse outro provedor em um site de busca. Ela ficou
perdida. Não conhecia sites de busca. Para ela, a internet tinha uma rota única:
entrar no site da UOL e, em seguida, entrar na mesma sala de bace-papo que
estava acessando há algumas semanas. Além disso, não conseguia realizar mais
nada.
Avaliação da usuária: essa usuária memorizou um único caminho na rede.
Fora dele, tudo o mais lhe era incompreensível. Com
TRÊS TIPOS DE USUÁRIOS: O NOVATO, O LEIGO E O EXPERTO

inocência, ela disse ao entrevistador que só podia usar o site da


UOL porque só era assinante da uol. Nem lhe passava pela cabeça
a existência de um número enorme de sites que podem ser acessa-
dos livremente. Seu desconhecimento da rede era quase completo.
Seu uso era também muito limitado.
Com os dados dessa coleta, já pude fazer a avaliação dos níveis
de operacionalização dos conceitos teóricos ao confrontá-los com
aquilo que os dados me revelavam.
Um outro passo adicional na pesquisa, completamente inespe-
rado, foi dado por um outro bolsista. De fato, a experteza desses
bolsistas de IC, com os quais tive a sorte de poder contar, não é
algo para se pôr em dúvida.

4. QUARTA FASE: GRAVAÇÕES DE VÍDEOS

Na avaliação de muitas entrevistas participativas, os entrevistadores


relatavam sobre as dificuldades no nível motor dos usuários novatos para a
manipulação do mouse e do teclado, especialmente para a coordenação entre o
uso destes apetrechos, a atenção voltada para os signos que aparecem e
desaparecem da tela e a reação diante desses signos. Tendo isso em vista, um
dos bolsistas, por sua própria iniciativa, gravou em vídeo cinco entrevistas
participativas com usuários novatos.
A idéia desse bolsista foi mesmo de grande valia, pois, sem os vídeos,
ficava muito difícil avaliar, por meio de meras descrições verbais, as reações
sensório-motoras, muscular-reativas dos usuários. Quando vi os primeiros
vídeos gravados, fiquei tão surpreendida com os resultados, e a análise desses
vídeos se revelou tão interessante, que acabei por incorporar à pesquisa
também uma coleta de material em vídeo. Com isso, a gravação em vídeo foi
adotada na pesquisa como meio de aferição das dificuldades motoras dos
usuários novatos. Foram assim gravados mais 15 vídeos, que foram de
importância fundamental especialmente para visualizar as dificuldades
motoras dos usuários novatos. O
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

desajeitamento para tocar o mouse e manipulá-lo, a incapacidade de


coordenação visomotora e de concatenação do mouse com as mudanças visuais
dinâmicas na tela ficaram muito evidentes.

5. QUINTA FASE: O TESTEMUNHO DOS USUÁRIOS EXPERTOS

Outra complementação dos dados foi realizada por meio da coleta de


testemunhos de usuários expertos. O objetivo da pesquisa lhes foi relatado e
os usuários, alguns deles desempenhando a função de treinadores de usuários
iniciantes na rede, deram seus testemunhos sobre o que pensavam a respeito
do processo de navegação. Aspecto muito interessante na coleta desse
material foi a evidência de que cada usuário experto tem um modo muito
próprio de navegar, como se cada um deixasse rastros de sua personalidade no
ato de navegar.
Quando todas essas fases gradativas da coleta de dados se completaram, a
escolha do suporte teórico para a interpretação desses dados pôde se tornar
mais seletiva e ajustada. Nesse momento, as pesquisas sobre “solução de
problemas e aquisição de habilidades cognitivas” (VanLehn, 1989)
funcionaram como uma bússola de orientação de inestimável valor. Soluções
de problemas não são processos exatamente iguais aos processos de navegação.
Embora haja diferenças entre ambos, há similaridades nas habilidades
cognitivas que lhes estão subjacentes. É em razão dessas similaridades que
pude tomar por base as pesquisas em solução de problemas para as
interpretações dos dados que seguem abaixo, evidentemente adaptando seus
conceitos e reoperacionalizando-os para as situações específicas da navegação.

6. INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

Todos os usuários expertos entrevistados entram na rede pelo menos uma


vez por dia. Os leigos apresentam uma média de duas a três vezes por semana,
quase sempre para realizar os mesmos
TRÊS TIPOS DE USUÁRIOS: O NOVATO, O LEIGO E O EXPERTO

percursos e, quanto aos novatos, alguns tiveram experiências esporádicas com


a rede, outros observaram terceiras pessoas navegando, sem terem realizado
ainda a experiência por si mesmos. Isso já funciona como um indicador de que
a freqüência de uso das redes e a prática conseqüente é um fator primordial
para a aquisição da competência para navegar.
Os principais traços revelados pelo novatos são: desorientação diante da
profusão de signos que se apresentam na cela, ansiedade e insegurança nas
operações de navegação. Alguns novatos também apresentam impaciência em
relação ao tempo e atenção que seriam necessários para tentar compreender os
indicadores de navegação. Disso resulta um estado de desconcentração, uma
grande incidência de erros, a confusão e a incapacidade para encontrar um
caminho de volta. Vem daí a grande freqüência com que se desesperam e
desistem, pedindo ajuda. Diante desse quadro não é de estranhar que os
entrevistadores tenham concluído com unanimidade que os novatos precisam
de assessoramento e suporte presencial para aprender pelo menos os primeiros
passos de entrada na rede. De fato, a primeira impressão que essa entrada
parece produzir nos inexperientes é a de estarem diante de um código cifrado
com significados misteriosos. Isso é corroborado pelo testemunho dos
expertos quando declaram, por exemplo, que, no início, as dificuldades são
reais e naturais e que, para superá-las, é preciso não só obter ajuda, mas
também “aprender a se virar”.
Essa expressão, “aprender a se virar”, é muito justamente aquela que é
capaz de indicar os traços identiflcatórios do usuário leigo. Este usuário é
aquele que já tem um conhecimento específico de algumas rotas e que vai se
virando para encontrar outras. É aquele que examina a situação a cada passo e
já sabe eliminar alternativas falsas e escolher as corretas. A maior parte dos
entrevistados nessa categoria já sabe retornar, quando percebe ter realizado
um avanço equivocado. Percebe-se, nesse usuário, a capacidade de examinar o
lugar mais provável para clicar, avançando por tentativa e erro.
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

O experto, por fim, tem conhecimento dos aplicativos no seu todo,


manipulando as ferramentas e os comandos com desenvoltura e velocidade.
Transita pela rede com familiaridade em função da representação mental clara
que tem da estrutura, da qualidade e das idiossincrasias dos mecanismos de
navegação. Vejamos como os traços gerais desses três tipos de usuários se
revelam à luz de uma análise cognitivista.
Encontrar um caminho na hipermídia e na rede depende de se seguir uma
seqüência de passos corretos, ou, se os passos não forem corretos, ser capaz de
corrigi-los. Esquematicamente, a navegação envolve: (a) um estado inicial, (b)
um conjunto de operadores de navegação, (c) compreensão desses operadores,
(d) manipulação dos operadores, (e) mudança de estados como resultado da
manipulação dos operadores. Portanto, a navegação caracteriza-se como um
campo de estados no qual há novos estados e estados precedentes. Um novo
estado é aquele que é produzido pela mais recente aplicação de um operador.
O que aqui estou chamando de operador é comumente chamado de ferra-
menta. Prefiro o termo operador por sua evocação de mecanismos não só
manuais, mas também mentais. Assim, os operadores são notações formais
(palavras, ícones, índices, barras, diagramas) que correspondem a regras
heurísticas que o usuário usa para passar de um estado a outro. Nos processos
de navegação, os operadores funcionam como indicadores de ação.
A navegação começa a partir de um estado inicial e a heurística é usada
para selecionar um operador entre um conjunto de outros. Quando o operador
se revela inaplicável porque não conduz ao resultado esperado, então um
subalvo é formado. Este consiste em se encontrar um caminho capaz de mudar
o estado atual. Os dois processos fundamentais em que se funda a navegação
são: a compreensão do estado de coisas e a busca para se chegar a um alvo.
Nisto a navegação não difere muito da resolução de problemas.
Todo processo de resolução de problemas pode ser analisado em dois
subprocessos cooperantes: compreensão e busca. A compreensão é responsável
pela assimilação dos estímulos e para
TRÊS TIPOS DE USUÁRIOS: O NOVATO, O LEIGO E O EXPERTO

produzir estruturas de informação mental que constituem a compreensão que


a pessoa tem do problema. O processo de busca é conduzido pelos resultados
do processo de compreensão, mais do que pelo estímulo nele mesmo. Em
outras palavras, o processo de compreensão gera a representação interna que a
pessoa tem do problema, enquanto o processo de busca gera a representação
interna da solução (VanLehn, ibid.: 530).
Transferindo essas conclusões para a situação da navegação, os dados
colhidos pela pesquisa nos levam a concluir que o processo de compreensão,
como entendimento inicial de um estado de coisas e do alvo que se tem em
mente, domina no caso do usuário novato, e a estratégia de busca, no caso do
usuário leigo. Cumpre lembrar, entretanto, que esses dois processos sempre
caminham juntos, pois, embora alguma compreensão seja necessária antes que
a busca se inicie, não se pode assumir que é necessário que a compreensão se
complete antes que a busca comece. Tanto isso é verdade que, nas suas idas e
vindas, avanços e recuos, o leigo demonstra que seus movimentos em direção
à solução são entremeados por breves insights de compreensão. Sem negar isso,
estou propondo que, no caso do novato, há uma dominância da compreensão
sobre a busca e, no caso do leigo, uma dominância da busca sobre a
compreensão.
A compreensão depende de um conjunto de pressupostos. É esse conjunto
de pressupostos que o novato não domina. Entre esses pressupostos, o
processo de compreensão parece depender muito das mídias que se
apresentam à percepção e à cognição. No caso da hipermídia, sua natureza é
híbrida, envolvendo uma mistura de signos, sinais, imagens, texturas gráficas,
figuras, diagramas, sons, ruídos e suas respectivas hiper-sintaxes que implicam
uma alfabetização semiótica do usuário. A passagem do nível do novato ao
leigo significa avanços nessa alfabetização. O usuário leigo é capaz de encetar
estratégias de busca porque já passou pelo estágio de compreensão do
significado pelo menos de alguns signos e sinais.
O processo de busca localiza-se entre dois processos colabora- tivos: a
estratégia de retorno e a estratégia de avanço (ibid.: 537).
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

No caso da navegação, a estratégia de retorno refere-se à capacidade de


retornar a um estado anterior e escolher um outro operador. Estratégias de
retorno são determinadas pela memória de que o usuário dispõe para
armazenar estados prévios. Como sua memória não automatizou os passos a
serem seguidos, o leigo, muitas vezes, faz uso de memória externa, isto é,
notas escritas em um papel. A estratégia de avanço consiste em escolher um
operador, aplicá-lo sobre o estado em questão e avaliar o estado resultante. A
heurística é também usada para esse processo avaliativo.
No caso dos expertos, estes substituíram a busca pelo reconhecimento
instantâneo. Por isso mesmo, neles domina o processo de elaboração. Por
elaboração, entende-se aqui a internalização de que o usuário dispõe do
esquema geral que está subjacente ao processo de navegação e sua habilidade
para ligar os procedimentos particulares ao esquema geral. Isso significa que,
para o experto, os estágios da compreensão e da busca não são mais as
determinantes principais de seus procedimentos. Ao contrário, eles têm uma
compreensão instantânea dos estímulos, um reconhecimento deles como um
estado de coisas familiar e realizam uma aplicação imediata dos operadores
que levam às mudanças de estados desejadas. Essa coleção de conhecimentos
que suportam seus procedimentos pode ser chamada de esquema mental de
navegação. Tais esquemas são tão poderosos, que, ao que tudo indica, são
adaptados, quando o usuário experto se defronta com situações não familiares.
Os usuários expertos devem ter encontrado o caminho muitas vezes no
passado, portanto, eles parecem reconhecer cada situação como um exemplo
de um tipo familiar de situação, recuperam por meio da memória as operações
a serem realizadas e chegam rapidamente ao que buscam. Assim, o usuário
experto pode ser definido como aquele que possui estratégias globais afinadas
e precisas, mas também, e sobretudo, como aquele que detém o conhecimento
do conjunto, o que lhe permite tomar prontas decisões em pontos em que
escolhas devem ser feitas.
Os leigos, ao contrário, mais lentos e hesitantes, realizam repetidamente
operações de busca, avançam, erram e se autocor-
TRÊS TIPOS DE USUÁRIOS: O NOVATO, O LEIGO E O EXPERTO

rigem, retornam e tentam outro caminho para encontrar uma solução. Os


novatos, por seu lado, revelam perplexidade diante da tela, parece faltar-lhes
compreensão dos signos, dos lugares que ocupam, por que ocupam esses
lugares e do que significam. Falta-lhes também destreza para manusear o
mouse e controlá-lo, falta-lhes especialmente o controle dos objetos
representados na tela por meio do movimento do mouse, isto é, a sincronia do
olho, do tato e da reação motora. Os dados colhidos pela pesquisa revelam,
nos novatos, uma tendência a abandonar as tarefas no meio do caminho,
abandono acompanhado de um sentimento de fracasso e de frustração.
Quando realizam manipulações, o fazem com base em operações superficiais,
isto é, sem nenhuma capacidade de previsão do que pode resultar da operação.
Isso ocorre porque aos novatos falta a internalização de esquemas gerais e a
conseqüente capacidade de recuperar esses esquemas para adaptá-los às
situações em curso, habilidades que podem explicar a presteza que é exibida
pelos usuários expertos.
Embora as estratégias de busca caracterizem predominantemente os
procedimentos do leigo, os expertos também realizam esses procedimentos,
quando estão diante de tarefas para as quais não podem aplicar um esquema já
internalizado. Entretanto, enquanto o leigo realiza suas buscas com certas
hesitações e mais demora, o experto as realiza com muita rapidez. O novato
não é sequer capaz de realizar esses procedimentos.
Trata-se de procedimentos não-determinísticos na medida em que nem
sempre há especificações de como uma escolha deve ser feita. Em razão disso,
muitos programas de navegação usam critérios simples e eficientes para
estreitar o conjunto de escolhas por meio do que é chamado de restrição de
domínio. Por isso mesmo, esses programas são chamados de programas de
busca, pois os próprios programas se estruturam seguindo uma lógica que é
própria dos procedimentos de busca.
Do não-determinismo dos operadores e das escolhas resulta que, em todos
os níveis, o dos novatos, o dos leigos e o dos expertos, há a presença do insight.
Na navegação, este significa a
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

capacidade de mudar de estado, descoberta de uma rota eficaz no caminho


para um resultado final. As mudanças se dão tanto no estado interior do
usuários quanto no estado físico da tela.
Esses insights têm um significado fundamental para o usuário novato.
Funcionam como pequenas luzes que se acendem no caminho da compreensão.
Os insights ainda são importantes para o leigo, pois uma operação bem-
sucedida é tomada, por este, como modelo e transferida para uma outra
situação por analogia. Tal transferência por analogia é muito eficaz na
navegação porque uma das características fundamentais dos mapas de
navegação na hipermídia e dos programas de navegação está na recursividade
de suas regras. A estrutura arbórea subjacente a muitos desses programas leva
o usuário a induzir que o todo pode ser decomposto em módulos, submódulos
e subsubmódulos. Para o usuário experto, o insight é menos freqüente, pois só
entra em ação diante de situações ainda não internalizadas e, por isso mesmo,
surpreendentes.
Para resumir, pode-se dizer que o usuário experto tem uma visão geral dos
meios e fins; por isso mesmo, é capaz de realizar todas ou quase todas as
operações de navegação sem encontrar nenhum estado insatisfatório. O
usuário novato navega aleatoriamente, sem compreender quais operadores são
aplicáveis a cada estado. O leigo já é capaz de usar regras situacionais para
diminuir a aleatoriedade das escolhas. É por meio dessas regras situacionais
que o leigo resolve os impasses que lhe são característicos.
Embora os novatos tenham desempenho trôpego, e os leigos, hesitante e
lento, sabe-se que a prática leva esses usuários a uma melhora rápida de
desempenho, comprovando o poder do aprendizado conduzido pela prática
(ibid.: 541), aprendizado que é tanto mais rápido, quanto mais envolve a
automatização das inferências mentais e das ações perceptivas e motoras por
meio da força do hábito, que é muito justamente o que caracteriza os
procedimentos do usuário experto.
No que diz respeito à memória, enquanto o novato não dispõe de
nenhuma memorização dos operadores e das mudanças
TRÊS TIPOS DE USUÁRIOS: O NOVATO, O LEIGO E O EXPERTO

de estado que eles produzem, os leigos colocam em uso um tipo de memória


que é chamada operativa, quer dizer, memória que armazena a informação
temporariamente para o cumprimento de tarefas que se apresentam no
momento. Quanto mais as operações momentâneas são utilizadas com sucesso,
mais elas tendem a ser retidas pela memória de longa duração. É essa memória
de longa duração que o usuário experto possui. Eles estão dotados de esquemas
mentais, o que pode explicar as suas estruturas de memória de longo prazo.
Memória de longa duração, no caso da navegação, não quer dizer a
retenção de uma soma de dados atomizados, mas a inter- nalização do
esquema geral de um processo e a capacidade de inferir, a partir desse
esquema geral, os procedimentos que devem ser atualizados no momento. A
memorização dos esquemas gerais é realizada em mecanismos de
aprendizagem desenvolvidos pela prática. É assim que os expertos adquirem
conhecimento especializado sobre rotas de navegação.
Os efeitos da prática e do conhecimento adquirido são visíveis nas
habilidades perceptivo-motoras dos usuários. Os expertos demonstram ter
uma compreensão instantânea do conjunto e uma capacidade imediata de
selecionar o operador correto em cada situação, assim como a seqüência deles
de um estado a outro. Isso fica evidente na destreza e rapidez com que
manipulam os toques do mouse, o que funciona como sinal externo da
sincronia entre os canais motores, perceptivos e mentais. A velocidade do
desempenho dessas habilidades perceptivo-motoras só vem comprovar a lei
poderosa da prática que, segundo os especialistas (ibid.: 555), é uma lei cujos
efeitos não cessam nunca. Quanto mais a prática é executada, mais o
desempenho se aperfeiçoa.
Sabe-se que o poder da prática leva à automatização dos gestos. Isso é
muito visível quando se opera uma máquina, por exemplo, de costura.
Também é visível quando se guia um automóvel. Entretanto, neste último
exemplo, a sincronia entre a percepção e as reações motoras já se torna mais
complexa. No caso da navegação, à sincronia de habilidades perceptivas e
moto-
NAVEGAR NO CIBERESPAÇO

ras adicionam-se operações mentais complexas, que envolvem compreensão,


identificação, seleção, decisão e avaliação. Por isso mesmo, é possível guiar ao
longo de uma estrada, enquanto se pensa em outras coisas, mas é impossível
navegar sem estar com a atenção e o pensamento colados nos operadores e nas
mudanças dinâmicas que resultam da ação dos operadores.
A hesitação que se constitui no traço caracterizador do leigo e seu
procedimento típico de se deter em partes específicas da tela demonstra que
ele não possui um esquema internalizado das operações a serem realizadas.
Seu procedimento é ad hoc. Isso se revela nos seus movimentos de cabeça, que
buscam sucessivamente aproximar e afastar os olhos da tela, como se essa
aproximação dos olhos pudesse revelar segredos escondidos na tela. Esse pro-
cedimento se acentua nos novatos, que tendem a colocar os olhos muito perto
da tela na tentativa de decifrar os significado dos signos operadores.
As interpretações acima das habilidades que são próprias dos novatos, dos
leigos e dos expertos levaram-me a perceber conexões muito evidentes entre
essas habilidades e os três tipos de raciocínio que C. S. Peirce longa e
detalhadamente estudou, o abdutivo, o indutivo e o dedutivo. Isso me
conduziu à postulação de que os três tipos de usuários, o novato, o leigo e o
experto, estão sob o domínio, cada um deles, de operações de raciocínio, de
inferências mentais que, de acordo com Peirce, são os mecanismos lógicos
fundamentais que conduzem o pensamento humano: a abdução, a indução e a
dedução. Essas operações dão origem a três graus ou níveis perceptivo-
cognitivos que se constituem nas fundações para a construção do modelo
cognitivo do leitor imersivo ou navegador: o navegador errante, aquele que
abduz, o navegador detetive, aquele que induz, e o navegador previdente,
aquele que deduz, conforme esses níveis serão trabalhados nos capítulos 5, 6 e
7.

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