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“C om o escrever poesia depois de

Auschwitz?” Esta pergunta de Theodor


Adorno ressoa até hoje com a força de
uma interdiçao. Mas hâ quem responda
a ela, mesmo em face da impossibilida-
de de dar conta do que se passou; auto­
res para quem escrever é uma das ma-
neiras — talvez a unica — de sobre-
viver à experiência e às mémo ri as da
guerra. Primo Levi e Louis Begley sao
nomes que vêm à mente, aos quais se
junta o de Georges Perec.
“Nào tenho nenhuma memôria da
infância”, diz o narrador de W ou a
memôria cia infância. Mas poucos livras
sâo tâo comovedores em seu esforço
para recuperar essas memôrias ausentes
de uni menino judeu que perde o pai
no broute e a mae num campo de con-
centraçao. T u d o jâ esta no passado
quando o livra começa. O que vai se
1er é uin texto duplo. Capitulos auto-
biogrâfims alternam-se com a narra riva
fantâstica imaginada pelo narrador aos
doze anos, a descriçao de W, a Terra do
Esporte, uni Estado-mâquina kafkiano.
Mas dessas duas narrativas, a pessoal e a
alegorica, quai a mais verdadeira?
“Esquecer para sobreviver” poderia
ser o lema do narrador, nao fossem al-
guns incidentes — um (esquecido) aos
doze anos; uma visita, muito dépôts, ao
bairro judeu de Veneza; uma ci ta ça o
num livra de bistôria — que destravam
esse saber do menino e do adulto. As
memôrias “reais” da infância, tâo cheias
de equfvocos, tao tristes em suas marcas
de exilio, completam-se agora com a
fîcçào desse mundo inteiramente desu-
manizado. Entre a amnésia e a fabula-
çao, o narrador se équilibra como po-
de, sem que ninguém — exceto o lei-
tor — possa restabelecer para ele as li-
gaçoes entre o passado e o présente.
Memoria e am enda sao os gi'andes
temas de Perec, nâo sô neste livra, mas
w
Dados Inlei n.icio:i,i is de Catalogaçâo na Puldîcaçâo (ci;■)
(C i ni ara Bras il cira do Livro, Si', Brasil)

Pci ce, Georges, 1936-1972.


W , ou. A m erndrïa da infància l Georges Perce ; tra-
duçao l’.iulo Neves. — Sâo Pauïo : Com panliia das Lelras,
1995.

Tftulo original; W. ou, le souvenir d'enfance.


BBW 85-7164-196-9

1. Ficçâo franecsa t. T ftulo. n. Tftulo: A mciniSria da


infâncîa.

95-3883 coo-843.91

fn d ice s p a r a ca ta logo siste m âiïco :

1. F tcçâo : S éculo 20 ; L ite ra tu ra fra n e c sa 843.91


2. Sdculo 20 : Ficçâo : Lite ratura franecsa 843.91
GEORGES PEREC

w
OU A MEMÔRIA
DA INFÂNCIA
Traduçao:
PAU LO NEVES

COMPANMIA D a S LEXRAS
Copyright © 1975 by Éditions Denoël
Tftulo original;
W ou le souvenir d'enfance
Capa:
Süvia Ribeiro
Foto da capa:
R. D oisneau/Rapho
Preparaçâo:
Carlos Alberto Inada
Revisâo:
Eliana Antonioli
îsabel Cttry Santana

A publicaçâo desta obra conlou


com o apoio dos minislérios da Cuit lira
e de Relaçôes Exteriores do governo jrances

1995
Todos os direitos desta ediçao reservados à
ED ITO RA SCHW ARCZ LTD A.
Rua T upi, 522
0Ï233-00Û - Sâo Pauio si'
Telefone: (011) 826*1822
Fax: (011) 826-5523
Ha neste livro dois textos simplesmente altemados; poderia
quase parecer que eles nada têm em comum, no entanto estâo
indissoluvehnente imbricados, como se nenhum dos dois pudes-
se existir sozinho, como se apenas de seu encontro, dessa luz lon-
gmqua que lançam um sobre o outro, pudesse se revelar o que
jamais é inteiramente dito num, jamais inteiramente dito no ou­
tro, mas somente em sua frâgii interseçâo.
Um desses textos pertence por inteiro ao imaginàrio: é um
romance de aventuras, a reconstituiçâo, arbitrâria mas minu-
dosa, de um fantasma infantü que evoca uma cidade regida pelo
idéal olimpico. O outro texto é uma autobiografia: o relato frag-
mentâno de uma vida de criança durante a guerra, um relato
pobre de façanhas e de lembranças, feito de fragmentos espar -
sos, de ausências, de esquecimentos, de dûvidas, de hipôteses,
de anedotas insignificantes. O relato de aventuras, em compen-
saçâo, tem algo de grandioso, ou talvez de suspeito. Pois come-
ça contando uma histôria e, de repente, se lança numa outra:
nessa ruptura, nessa/ratura que suspende a narraiiva em tomo
de nâo se sabe quai expectativa, se acha o lugar inicial de onde
saiu este livro, aqueles pontos de suspensâo a que se prenderam
os fios rompidos da infância e a trama da escrita.
G.P.
w
OU A M EM Ô RIA
DA IN FÂN C IA

Para E
PRIMEIRA PARTE

Essa brama insenscita em que se agitam sombras,


como eu poderia clareâ-la?
Raymond Queneau
1

Hesitei por muito tempo antes de empreender


o relato de minha viagem a W. Faço-o agora, mo-
mdo por uma necessidade imperiosa, convencido de
que o$ acontecimentos que testemunhei devem ser
revelados e trazidos à luz. Nâo me dissimulez os es-
crûpulos — ia dizer, nâo sei por que, os pretextos
— que pareciam se opor a uma publicaçâo. Por mui­
to tempo quis guardar segredo a respeito do que ti-
nha visto; nâo me cabia divulgar o que quer que
fosse acerca da missâo que me haviam confiado, pri-
meiro porque, talvez, essa missâo nâo fo i cumprida
— mas quem teria podido levâ-la a cabo? —, de-
pois porque aquele que a confiou a mim desapare-
ceu também.

Por muito tempo fiquei indeciso. Lent ameute


esque ci as inc ertas peripécias da viagem . Mas meus
sonhos se povoavam daquelas cidades fantasmas, da-
quelas corridas sangrentas cujos incontâveis clamo-
res eu acreditava ouvir ainda, daquelas auriflamas
desfraldadas que o vento do mar lacerava. A incom-
preensâo, o horror e a fasdnaçâo se confundiam nes-
sas lembranças sem fundo.

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Por muito tempo investiguei os traços de minha
histôria, consultei mapas e anuârios, montes de ar-
quivos. Nâo encontrei nada, e me pare cia às vezes que
tinha sonhado, que tudo nâo passava de um inesque-
civel pesadelo.

Hâ ... anos, em Veneza, numa taberna da Giu-


decca, vi entrât um homem quejulguei reconhecer.
Precipitei-me em direçâo a ele, mas jâ balbuciando
duas ou très palavras de escusa. Nâo podia haver
sobrevivente. O que meus olhos tinham visto acon-
tecera realmente: os cipôs haviam desconjuntado os
mur os, a floresta havia comido as casas; a areia in-
vadira os estddios, os alcatrazes se abateram aos mi-
Ihares e o silêncio, o silêncio glacial de repente. Nâo
importa o que aconteça, nâo importa o que eufaça,
eu era o ûnico depositârio, a unica memôria viva,
o ûnico vestzgio daquele mundo. Isso, mais que quai-
quer outra consideraçâo, me levou a escrever.

Um leitor aient o por certo compreenderâ, do que


fo i dito, que, no testemunho que me disponho a fa-
zer, fu i testemunha, e nâo ator. Nâo sou o herôi de'
minha histôria. Tampouco sou exatamente seu can-
tor. Ainda que os ac ont eciment os que presenciei te-
nham perturbado o curso, até entâo insignificante,
de minha existência, ainda que continuem a pesar in-
tensamente sobre meu comportamento, sobre minha
maneira de ver, eu gostaria, para relata-los, de ado-
tar o tom frio e sereno do etnôlogo: visitei aquele
mundo submerso e aqui esta o que vi. Nâo é o furor
ardente de Ahab que me habita, mas o branco deva-
neio de Ismael, a paciência de Bartleby. E a eles, mais

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uma vez, apôs tantas outras, que pego serem minhas
sombras tutelares.

Contudo, para cumprir uma regra quase gérai,


e que, de resto, nâo discuto, darei agora, o mais su-
cintamente possivel, algumas indicaçôes sobre minha
existência e, maisprecisamente, sobre as circunstân-
cias que determinaram minha viagem.

Nasciem 25 dejunho de 19..., por volta das qua-


tro horas, em R., pequeno vilarejo de très casas, nâo
longe de A. Meu paipossuîa um pequeno empreen-
dimento agricola. Morreu das conseqüências de um
ferimento, quando eu ia completar seis anos. Deixa-
va pouco mais que dimdas, e toda a minha herança
se limitava a alguns objetos de uso pessoal, lençôis e
très ou quatro peças de louça. Um dos dois vizinhos
de meu pai se ofereceu para me adotar; cresci cerca-
do por seus familiares, em parte como um filho, em
parte como empregado de fazenda.

A os dezesseis anos, deixei R. e fu i para a cida-


de; la exerci por algum tempo diversos ofîcios mas,
nâo achando nenhum que me agradasse, acabei por
me alistar. Habituado a obedecer e dotado de uma
resistência fîsica pouco comum, poderia ter sido um
bom soldado, mas logo me dei conta de que jamais
me adaptaria reaiment e à vida militar. Apôs passar
um ano naFrança, no Centro de Instruçâo de T., fu i
enviado à zona de operaçôes; ali permaneci mais de
quinze meses. Em V., durante uma licença, desertei.
Auxiliado por uma organizaçâo pacifista, consegui
chegar à Alemanha, onde, por muito tempo, fiquei

U
sem trabalho. Acabeipor me instalar em H., junto
à fronteira luxemburguesa. Havia encontrado um em-
prego de lubrificador na maior oficina da cidade. Mo -
rava numa pequena pensâo familiar e passava a maior
parte das noites numa cervejaria vendo telemsâo ou,
às vezes, jogando gamâo com um ou outro de meus
companheiros de trabalho.

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Nâo tenho nenhum a memoria da infância. Até


os doze anos mais ou menos, minha historia se résu­
mé em poucas linhas: perdi meu pai aos quatro anos,
m inha mâe aos seis; passei a guerra em diversos pen-
sionatos de Villard-de-Lans. Em 1945, a irma de meu
pai e seu marido me adotaram .
D urante muito tempo essa ausência de historia
me confortou: sua secura objetiva, sua evidência apa-
rente, sua inocência me protegiam; mas me protegiam
de que, senâo precisamente de minha historia, de mi­
nha historia vivida, de m inha historia real, de minha
historia pessoal que, pode-se supor, nâo era nem se­
ca, nem objetiva, nem aparentem ente évidente, nem
evidentemente inocente?
“Nâo tenho recordaçôes da infância”: eu fazia
essa afirmaçâo com segurança, quase com uma espé-
cie de desafio. Nâo precisavam me interrogar sobre
essa questâo. Ela nâo estava inscrita no meu progra-
ma. Estava dispensado delà: um a outra historia, a
Grande, a Historia com H maiüsculo, havia respon-
dido em meu lugar: a guerra, os campos de concen-
traçâo.
Aos treze anos invente!, contei e desenhei uma
historia. Mais tarde a esqueci. Hâ sete anos, uma noite

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em Veneza me lembrei de repente de que essa histo-
ria se chamava “W ” e que ela era, de certo modo,
se nâo a historia, pelo menos uma historia de minha
infância.
Afora o titulo bruscamente restituxdo, eu nâo ti-
nha praticamente nenhum a lembrança de W. Tudo
o que sabia cabe em menos de duas linhas: a vida de
uma sociedade preocupada apenas com o esporte, nu-
ma îlhota da Terra do Fogo.

Uma vez mais, as armadilhas da escrita se insta-


laram. Uma vez mais, fui como uma criança que brin-
ca de esconde-esconde e nâo sabe o que mais terne
ou deseja: permanecer escondida, ser descoberta.
Mais tarde encontre! alguns dos desenhos que ha-
via feito aos treze anos. Graças a eles, reinventei W
e o escrevi, publicando-o aos poucos, em folhetim, na
Quinzaine Littéraire , entre setembro de 1969 e agos-
to de 1970.

Hoje, quatro anos depois, decido pôr um termo


— quero dizer com isso tanto “traçar os limites” quan-
to “dar um nome” — a essa lenta decifraçâo. W se
assemelha tâo pouco a meu fantasma olfmpico quanto
esse fantasma olfmpico se assemelhava a m inha in-
fância. Mas na rede que tecem, tal como na leitura
que faço deles, sei que se acha inscrito e descrito o
caminho que percorri, o decurso de m inha historia
e a historia de meu decurso.

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3

Eu estava em EL havia très anos quando, na ma -


nhâ de 26 de julho de 19..., minha hospedeira me
entregou uma carta. Havia sido expedida na vêspe-
ra, de K., cidade de alguma importância situada a
uns cinqüenta quilômetros de H. A bri; era em fra n -
ces. 0 papel, de excelente qualidade, trazia no alto
o nome
Otto APFELSTAHL , MD
acima de um brasâo complicado, perfeitamente im­
press o, mas que minha ignorância em matéria de he-
râldica me impediu de identificar, ou mesmo, mais
simplesmente, de decifrar; na verdade, sô consegui
reconhecer com clareza dois dos cinco simbolos que
o compunham: uma torre com ameias no centro,
ocupando toda a altura do brasâo e, embaixo, à di-
reita, um livro aberto, com as folhas em branco; os
très outros, apesar dos esforços quefiz para compreen-
dê-los, permaneceram-me obscuros; nâo se tratavapo-
rém de simbolos abstratos, nâo eram chaveirôes, por
exemplo, nem faixas, nem losangos} mas figuras de
algum modo duplas, com um desenho ao mesmo
tempo preciso e ambiguo, que parecia poder ser in-
terpretado de varias maneiras sem que jamais se pu-

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desse chegar a uma escolha satisfatôria: uma, a rigor,
poderia ser tomada por uma serpente sinuosa cujas
escamasfossem louros, a outra por uma mâo que fosse
ao mesmo tempo raiz; a terceira pare cia tanto um ni-
nho quanto um braseiro, ou uma coroa de espinhos,
ou uma sarça ardente, ou mesmo um coraçâo tras-
passado.
Nâo havia nem endereço nem numéro de telefo-
ne. A carta dizia apenas isto:
Prezado senhor,
Ficariamos extrem am ente gratos se consentisse em
vir conversar conosco sobre um assunto de seu intéresse,
Estaremos no hôtel B e rg h o f no num éro 18 da
Nurm bergstrasse, na prôxim a se x ta fe ita , 2 7 de ju -
Iho, e o aguardaremos no bar a partir das 18 horas.
Agradecendo-lhe antecipadamente e escusando-nos
por nâo poder dar-lhe maiores explicaçôes no momen-
to, rogamos acre dite, senhor, em nossos sentim entos
de estima.

Seguia-se uma assinatura mais ou menos ilegivel


e que somente o nome que constava no alto da folha
me permitiu identificar como devendo significar “0 '
Apfelstahl”.
Êfâcil compreender que, de inîcio, essa caria me
amedrontou. Minha primeira idéia fo i fugir: eu ha­
via sido reconhecido, sô podia tratar-se de uma chan-
tagem. Mais tarde, consegui dominar meus temores:
o fato de essa carta ter sido escrita em franc es nâo
significava que se dirigisse a mim, àquele que eu ha­
via sido, ao soldado desertor; minha atual identidade
fazia de mim um sutço francês e minha francofonia
nâo sùrpreendia ninguém. Os que me haviam aju-

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dado nâo conheciam meu antigo nome e teria sido
necessârio um improvdvel, um inexplicâvel concurso
de circunstâncias para que um homem que tivesse me
conhecido em minha vida anterior me reencontrasse
e reconhecesse. H, é apenas uma aldeia, afastada dos
grandes eixos rodoviârios, os turistas a ignoram, e eu
passava a maior parte de meus dias no fundo
do fosso de lubrificaçao ou deitado embaixo dos mo-
tores. E, além de tudo, que teria podido exigir de mim
aquele que, por um incompreenswel acaso, tivesse en-
contrado minha pista? Eu nâo tinha dinheiro, nâo ti-
nha a possibilidade de tê-lo. A guerra da quai eupar-
ticipara acabara havia mais de cinco anos, era mais
que provâvel que me tivessem anistiado.

Eu procurava considerar, o mais calmamente


possivel, todas as hipôteses que essa carta sugeria. Séria
ela a culminaçâo de uma longa e paciente busca, de
uma investigaçâo que, pouco a pouco, se fechara a
meu redor? Supunham escrever a um homem cujo no­
me eu teria portado ou de quem séria o homônimo?
Um notârio pensava localizar em mim o herdeiro de
uma fortuna imensa?
Lia e relia a carta, a cada vez tentando desco-
brir ne la um indîcio suplementar, mas encontrava
apenas razôes para ficar ainda mais intrigado. Esse
“nos” que me escrevia era uma convençâo epistolar,
como é de praxe em quase todas as correspondências
cornerdais, em que o signât ârio fala em nome da so-
ciedade que o emprega, ou estaria eu lidando com
dois, com vârios correspondentes? E que significava
aquele ”M D”no cabeçalho, apôs o nome Otto Apfels-
tahl? Em principio, como verifiquei no dicionârio que

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pedi emprestado por um momento à secretâria da ga-
ragem, sô podia tratar-se da abreviaçâo americana
de Medical Doctor, mas essa sigla, corrente nosEsta-
dos Unidos, nâo tinha nenhuma razâo para figurai'
no cabeçalho de um alemâo, ainda que mêdico, ou
talvez eu devesse supor que esse Otto Apfelstahl, em-
bora me escrevesse de K., nâo era alemâo, mas ame-
ricano; isso nada tinha de surpreendente em si: hâ
muitos alemâes emigrados para os Estados Unidos, nu-
merosos médicos americanos sâo de origem alemâ ou
austnaca; mas que podia querer de mim um mêdico
americano, e o que viera fazer em K J E era concebî-
vel que um mêdico, nâo importa sua nacionalidade,
pusesse em seupapel de cartas a indicaçâo de suapro-
fissâo, mas substituûse as informaçôes que séria Uci-
to esperar de um doutor em medicina — seu endere-
ço ou o endereço do consultôrio, seu numéro de tele-
fone, seus horârios de consulta, suas funçôes hospita-
lares etc. — por um brasâo tâo anti quado quant o
sibilinof

O dia todo me interrogueisobre o que convinha


fazer. Dévia irâquele encontro?Séria melhorfugirime-
diatamente e recomeçar alhures, na Àustrâlia ou na
Argentina, outra vida clanàestina, forjando màisuma
vez o alibifrâgil de um novo passado, de uma nova iden-
tidadef Com o passar das horas minha ansiedade clava
lugar à impaciência, à curiosidade; imaginava febril-
mente que aquele encontro ia mudar minha vida.
Passei uma parte da noite na Biblioteca Munici­
pal,folheando dicionârios, enciclopédias, anuârios, na
esperança de clescobrir informaçôes sobre Otto Apfels­
tahl, eventuais indicaçôes sobre outras acepçôes da

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sïgla 11MD” ou sobre o significado do brasâo. Mas nâo
encontrei nada.

Na manha seguinte, tomado de um pressenti-


mento tenaz, enfiei algumas roupas em meu saco de
viagem, juntamente com o que teria podido chamar,
se nao fossem tâo irrisôrios, meus bens mais precio-
sos: meu aparelho de radio, um relôgio de algibeira
de prata que poderia muito bem ter sido de meu
tataravô, uma pequena estatueta em madrepérola
comprada em V., uma concha estranha e rara que
minha madrinha de guerra um dia me enviara. Eu
queria fugïr? Penso que nâo: mas estar preparado
para qualquer eventualidade. Avisez minha kospe-
deira de que talvez me ausentasse por uns dias e pa-
guei o que lhe dévia. Fuifalar com meu patrâo; disse-
lhe que minha mâe tinha falecido e que precisava
ir ao encontro em D., na Baviera. Ele me dispensou
por uma semana e pagou, com alguns dias de adian-
tamento, o mês que findava .
Fui à estaçâo ferroviâria, pus minha sacola num
guarda-volumes automâtico . Depois,na sala de espé­
ra da segunda classe, sentado quase no meio de um
grupo de operârios portugueses de partida para Ham-
burgo, esperei as seis da tarde.

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4

Nâo sei onde se romperam os fios que me ligam


a m inha infância. Como todo mundo, ou quase, tive
um pai e uma mâe, um penico, uma cama de gra­
des, um chocalho, e mais tarde uma bicicleta que,
parece, eu jamais montava sem lançar gritos de ter-
ror à simples idéia de que fossem querer levantar ou
mesmo retirar as duas rodinhas adjacentes que asse-
guravam m inha estabilidade. Como todo mundo, es-
queci tudo de meus primeiros anos de existência.

Minha infância faz parte daquelas coisas das


quais sei que nâo sei grande coisa. Ela esta atrâs de
mim, no entanto, é o solo sobre o quai cresci, ela me
pertenceu, seja quai for m inha tenacidade em afin-
m ar que nâo me pertence mais. Por muito tempo
procurei afastar ou mascarar essas evidências, encer-
rando-me na condiçâo inofensiva do orfao, do nâo ge~
rado, do filho de ninguém. Mas a infância nâo é nos-
talgia, nem terror, nem paraiso perdido, nem Tosâo
de Ouro, mas talvez horizonte, ponto de partida, coor-
denadas a partir das quais os eixos de m inha vida po~
derâo encontrar seu sentido. Mesmo contando ape-
nas, para escorar minhas lembranças improvâveis,
com o apoio de fotos amarelecidas, de testemunhos

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raros e documentas insignificantes, nâo tenho outra
escolha senâo evocar o que por muito tempo insisti
em cham ar o irrevogâvel; o que foi, o que se deteve,
o que ficou enclausurado: o que foi, sem duvida,
para hoje nâo ser mais, mas o que foi, também, p a­
ra que eu seja ainda.

Minhas duas primeiras lembranças nâo sâo de


todo inverossimeis, mesmo se é évidente que as nu-
merosas variantes e pseudoprecxsôes que introduzi mais
tarde nos relatos — falados ou escritos — que fiz de-
las as alteraram profundamente, quando nâo as des-
naturaram por completo.

A primeira lembrança teria por cenârio o fundo


da loja de m inha avo. Tenho très anos. Estou sen-
tado no centro da peça, no meio de jornais iidiches
espalhados. O cfrculo da familia me rodeia comple-
tamente: essa sensaçâo de cerco nâo se acompanha
para mim de nenhum sentimento de esmagamento
ou ameaça; ao contrario, é proteçâo calorosa, amor:
toda a famflia, a totalidade, a integralidade da fa-
mflia esta ali, reunida em torno da criança que aca-
ba de nascer (mas eu nâo disse hâ pouco que tinha
très anos?), como uma m uralha intranspomveh
Todos se extasiam diante do fato de eu ter dese-
nhado um a letra hebraica, identificando-a: o signo
teria a forma de um quadrado aberto em ângulo in-
ferior esquerdo, algo como

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e seu nome teria sido gammeth, ou gam m el.1 A ce-
na inteira, por seu tema, sua doçura, sua luz, asse-
melha-se para mim a um quadro, talvez de Rem ­
brandt ou talvez inventado, que se chamaria Jésus
diante dos doutores.2

A segunda lembrança é mais breve; assemeîha-


se antes a um sonho; parece ainda mais evidentemente
fabulada que a primeira; existem muitas variantes de­
là que, ao se sobreporem, tendem a tornâ-la cada vez
mais ilusoria. Seu enunciado mais simples séria: meu
pai retorna de seu trabalho; ele me dâ uma chave.
Numa variante, a chave é de ouro; noutra, nâo é uma
chave de ouro, mas uma moeda de ouro; num a ter-
ceira ainda, estou sentado no penico quando meu
pai volta de seu trabalho; numa outra, enfim, meu pai
me dâ um a moeda, eu engulo a moeda, hâ um pâ-
nico gérai, no dia seguinte a encontram em minhas
fezes.

1. É esse acréscimo de precisâo que basta para


estragar a lembrança ou, em todo caso, sobrecarrega-a
com uma letra que ela nâo tinha. Com efeito, existe
um a letra cham ada Gimmel que gosto de acreditar
que poderia ser a inicial de meu nome; ela nâo se as-
semellra em absoluto ao signo que tracei e que pode­
ria, a rigor, passar por um men, ou M. Esther, mi-
nha tia, contou-me recentemente que em 1939 — eu
tinha entâo très anos — minha tia Fanny, irmâ mais
moça de m inha mâe, as vezes me levava de Beïleville
até sua casa. Na época Esther morava na rua des
Eaux, pertinho da avenida de Versailles. Iamos brin-
car à beira do Sena, junto dos grandes montes de

22
areia; um a de minhas brincadeiras consistia em de-
cifrar, com Fanny, letras em jornais, nâo iidiches, mas
franceses.

2. Nessa lembrança ou pseudolembrança, Jésus


é um recém-nascido cercado de velhos benevolentes.
Todos os quadros intitulados Jésus em meio aos Dou-
tores o representam adulto. O quadro a que me refi-
ro, se existe, é muito mais verossimilmente uma Apre -
sentaçâo no Templo.
5

Eram seis horas em ponto quando cruzei a porta


giratôria do hôtel Berghof. O grande saguâo estava
quase deserto; negligentemente apoiados contra uma
coluna, trêsjovens camareiros vestinâo coletes verme-
Ihos com botôes dourados conversavam em voz bai-
xa, de braços cruzados. O porteiro, identificâvel por
s eu casacâo comprido verde-garrafa e seu chapéu de
cocheiro com penacho , atravessava o saguâo em dia­
gonal, carregando duas grandes malas e precedendo
uma cliente que segurava um cachorrinho entre os
braços.
O barficava nofundo do saguâo, separado dele
apenas por uma divisôria de treliça guamecîda de al-
tas plantas verdes. Para minha grande surpresa, nâo
havia nenhum freguês; a fumaça dos charutos nâo flu-
tuava no ar, tornando a atmosfera quase opaca} um
pouco sufocante; la onde eu esperava encontrar uma
desordem abafada, o ruîdo de vinte conversaçôes com
um fundo de mûsica banal, havia apenas mesas lim-
pas, toalhinhas no lugar, cinzeiros de cobre reluzen-
tes. 0 ar-condicionado tornava o lugar quase f n o .
Sentado atrâs de um balcâo de madeira escura e aço7
um barm an com a roupa um pouco amarrotada ha
o Frankfurter Zeitung.

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Fuz sentar-me ao fundo da sala. Levantando por
um instante os olhos do jornal, o barm an me olhou
com ar interrogativo; pedi-lhe uma cerveja. Ele trou­
ve, arrastando os pés; notei que era um homem bas-
tante velho, sua mâo consideravelmente enrugada tre-
mia um pouco.
— Esta bem vazio — eu disse, em parte para di-
zer alguma coisa, em parte porque aquilo me pare-
cia defato surpreendente. Ele balançou a cabeça, sem
responder, depois me perguntou de repente:
— Vai querer Bretzels?
— Comot — respondi sem compreender.
— Bretzels. Bretzels para corner enquanto bé­
bé sua cerveja.
— Nâo, obrigado. Jamais como Bretzels. Consi-
ga-me um jornal, porfavor.
Ele virou as costas, mas certamente eu havia me
expressado mal ou ele nâo prestara atençâo em meu
pedido pois, em vez de se dirigir ao porta-jomais junto
à pare de, voltou para seu balcâo, depositousua ban-
deja e sam por uma pequena porta que dévia dar no
escritôrio.
Olhei meu relôgio. Marcava apenas seis e cinco.
Levantei-me, fu i buscar um jornal. Era um suplemen-
to econômico semanal de um diârio luxemburguês,
o Luxemburger Wort, que datava de mais de dois me-
ses. Percorri-o durante uns dez minutos, bebendo mi-
nha cerveja, absolutamente sozinho no bar.
Nâo dava para dizer que Otto Apfelstahl estava
atrasado; também nâo dava para dizer que fosse pon-
tual. Tudo o que dava para dizer, tudo o que dava
para dizer para si mesmo, tudo o que dava para eu
dizer para mim mesmo, era que, em qualquer encon-

25
tro, sempre se deve prever um quarto de hora de to-
lerância. Eu nâo deveria ter sentido necessidade de
me tranqüilizar, nâo tinha nenkum motivo para es-
tar inquieto, no entanto a ausência de Otto Apfels-
tahl me deixava pouco à vontade. Eram mais de seis
horas, eu estava no bar, eu o esperava, quando ele
é que deveria estar no bar me esperando.

Por volt a das seis e vinte — eu tinha largado o


jornal e havia muito terminara minha cerveja — de-
cidi ir embora. Talvez houvesse um recado de Otto
Apfelstahl para mim na portaria do hôtel, talvez ele
me esperasse numa das salas de leitura, ou no saguâo,
ou em seu quarto, talvez se desculpasse e me propu-
s esse adiar o encontro para mais tarde. ..De repente,
produziu-se uma espécie de grande burburinho no sa­
guâo: cinco ou seis pessoas irromperam no bar, sen-
taram-se ruidosamente à mesa. Quase no mesmo ins­
tante, dois barm en surgiram de detrâs do balcâo.
Eram jovens e nâo pude deixar de notar que prova-
velmente a soma da idade dos dois mal atingia a da-
quele que me havia servido.
Foi no momento em que chamei um dos garçons
para pedir a conta — mas ele pare cia muito ocupa-
do anotando os pedidos dos clientes recém-chegados
para prestar atençâo em mim — que Otto Apfelstahl
apareceu: um homem que, assim que entra num lugar
pûblico, se detém e olha em tomo com um cuidado
particular, com um sentimento de atençâo curiosa,
e volta a avançar assim que seu olhar encontrou o nos-
so sô pode ser nosso interlocutor.
Era um homem de uns quarenta anos, um tanto
baixo, bastante magro, com um rosto afilado, cabe-

26
los muito curtos, jâ embranquecidos, cortados à es-
covinha. Vestia um terno cinza-escuro de jaquetâo.
Se é que um homem pode andar com sua profissâo
estampada no rosto, ele nâo dava a impressâo de ser
mêdico, mas homem de negôcios, procurador de um
grande banco ou advogado.
Ele se deteve a poucos centïmetros de mim.
— 0 senhor é Gaspard Winckler? — perguntou-
me} mas na verdade afrase quase nem era interroga-
tiva, era mais uma constataçâo.
— H m m m ... Sou... — respondi bobamente,
erguendo-me ao mesmo tempo, mas ele me deteve
com um gesto:
— Nâo, nâo, fique sentado, sentemo-nos, esta-
remos bem melhor assim para conversar.
Sentou-se. Considerou por um instante meu co-
po vazio.
Costa de cerveja, pelo que vejo.
~~ De vez em quando — eu disse, sem saber mui­
to bem o que responder.
— Prefiro châ.
Virou-se ligeiramente para o balcâo, erguendo
dois dedos num gesto vago. O garçom veio em seguida.
— Um châ para mim. Quer outra cerveja? —
me perguntou.
Aceitei.
— E uma cerveja para o cavalheiro.
Eu me sentia cada vez mais desconfortâvel. Dé­
via perguntar-lhe se o nome dele era Otto Apfelstahl?
Dévia perguntar-lhe, de saida, à queima-roupa, o que
queria de mim? Tirei meu maço de cigarros e lhe ofe-
reci um, mas ele recusou.

27
— Fumo apenas charuto, e mesmo assim sô de-
pois do jantar .
— O senhor ê médicof
Minha pergunta — ao contrario do que eu inge-
nuamente havia pensado — nao parée eu surpreendê-
lo. Ele apenas esboçou uni sorriso.
— Por que o fato de sô fum ar charuto apôs o
jantar o faz pensar que eu possa ser médicot
— Porque essa é uma das quest ôes que me faço
a seu respeito desde que recehi sua carta.
— 0 senhor se fez muitas outras quest5est
— Algumas, sim.
— Quais?
— Bem, por exemplo, o que quer de mim?
— De fato, eis uma questâo que se impôe. De ~
seja que eu responda de imediato?
— Ficaria muito agradecido.
— Posso antes lhe fazer uma perguntat
— Por favor.
— Acasojâ se perguntou o que aconteceu com
o indimduo que lhe deu seu nome?
— Comot — disse eu sem compreender.

28
6

Nasci num sâbado, 7 de março de 1936, por volta


das nove da noite, num a m aternidade situada na rua
de l1Atlas, 19, em Paris, no 19? arrondissement. Meu
p ai, creio, foi quem me regis trou no cartorio. Deu~
me um ünico nome — Georges ~ e declarou que eu
era francês.1 Ele proprio e minha mâe eram polone-
ses. Meu pai estava com 27 anos incompletos, minha
mâe ainda nâo completara 23. Fazia um ano e meio
que eles estavam casados. Além do fato de morarem
a pouca distancia um do outro, nâo sei exatamente
em que circunstâncias se conheceram. Eu era o pri-
meiro filho dos dois. Tiveram um segundo, em 1938
ou 1939, um a meninazinha a quem deram o nome
de Irène que viveu apenas alguns dias.2

Por muito tempo acreditei que fora em 7 de mar-


ço de 1936 que Hitler havia entrado na Polonia. Eu
me enganava, de data ou de pais, mas no fundo isso
nâo tinha grande importância. Hitler jâ estava no po-
der e os campos de concentraçâo funcionavam per-
feitamente. Nâo era em Varsovia que Hitler entrava,
mas podia muito bem ter sido, ou entâo no corredor
de Dantzig, ou na Austria, ou no Sarre, ou na Tche-
coslovâquia. O certo é que jâ havia começado uma

29
historia que, para mim e todos os meus, em breve iria
tornar-se vital, ou seja, na maioria das vezes, mor-
tal.3

1. Na verdade, esse registro, que correspondia


aos dispositivos do artigo 3 da leî de 10 de agosto de
1927, foi assinado por meu pai alguris meses depois,
mais exatamente em 17 de agosto de 1936, diante do
juiz de paz do 20? arrondissement. Possuo uma co­
pia autenticada da certidâo, datilografada em roxo
num papel de correspondência, datada de 23 de se-
tembro de 1942 e expedida no dia seguinte por mi-
nha mâe a sua cunhada Esther, e que constituî o ül-
timo testemunho que tenho da existência de minba
mâe.

2. Segundo minha tia Esther, que pelo que sei


é a ünica pessoa que se lembra hoje da existência dessa
ünica sobrinha que teve — seu irmâo Léon teve très
meninos —, Irène teria nascido em 1937 e morrido
ao cabo de algumas semanas, vftima de uma malfor-
maçâo do estômago.

3. Pordesencargodeconsciência, examine! emjor-


nais da época (principalmente exemplares do Temps
de 7 e 8 de março de 1936) o que, exatamente, se passa-
ra naquele dia:

Acontecimento bombâstico em Berlimî O pacto de Lo-


carno é denunciado pelo Reich! As tropas alemâs en-
tram na zona renana desmilitarizada.
Num jornal americano, Stalin denuncia a Alemanha
como pais belicoso.

30
Greve dos operârios de construçâo nova-iorquinos.
Conflito îtalo-etfope. A bertura eventual de negocia-
çôes para a interrupçâo das hostilidades.
Crise no Japâo.
Reforma eleitoral na França.
Negociaçôes germano-lituanas.
Processo na Bulgâria depois de sediçôes no exército.
Carlos Prestes preso no Brasil; teria sido denunciado
por um comunista americano que se suicidou.
Avanço das tropas comunistas no Norte da China.
Bombardeio de ambulâncias pelos italianos na Etiopia.
Na Polonia, interdiçâo do abate de animais segundo
o rito talmüdico.
Na Austria, condenaçâo de nazistas acusados de pre-
parar atentados.
Atentado contra o présidente do Conselho Iugosla-
vo: o deputado Arnautovitch dispara contra o prési­
dente Stojadinovitch, sem atingi-lo.
Incidentes na faculdade de direito de Paris. A aula
do sr. Jèze é interrompida por bombas de gases fétidos.
Contramanifestaçâo da Uniâo Fédéral dos Estudan-
tes e dos Estudantes Neutralistas.
Renault fabrica o Nerva grand sport,
Tristan und Isolde em versâo intégral no teatro da
Opéra.
Eleiçâo de Florent Schmitt para a Academia.
Comemoraçâo do centenârio de Ampère.
A semifinal da Copa da França de futebol sera dis-
putada entre Charleville e Red Star, de um lado, e
os vencedores das partidas Sochaux-Fives e Racing-
Lille, de outro.
Projeto de uma Maison de la Radio.

31
Gibbs recomenda, para peles gordurosas, o creme de
sabâo Gibbs; para peles secas, o creme rapido sem sa­
bâo Gibbs.
Scarface no Studio des Ursulines.
Tchapaïev no Panthéon.
Sansâo no Param ount.
La Guerre de Troie n ’aura pas lieu no Athénée.
Anne-Marie , de Raymond Bernard, roteiro de An­
toine de Saint-Exupéry, com Annabella e Pierre-
Richard Wilm, na Madeleine. Anunciada para sexta-
feira, 13 de março, a estréia de Tempos modernos,
de Charlie Chaplin. *
7

— Nâo compreende? — perguntou apôs um ins­


tante Otto Apfelstahl, olhando-me por cima de sua
taça de châ.
— Dïgamos que sua pergunta é pelo menos am-
bigua.
— Ambigua?
— Sô uma ûnica pessoa pode ter me dado, co-
mo o senhor diz, meu nome,
— N esse caso vou esclarecer minha perguntat jâ
que o senhor considéra isso necessârio; nâo me refiro a
seupai nem a nenhum dos membros de sua famüia ou
de seu meio, cujo nome o senhor pudesse ter recebido:
esse é um costume, creio, ainda bastante difundido; tam-
bém nâo é daqueles que, hâ cinco anos, o ajudaram a
adquirir sua atual identidade que estou falando, mas
precisamente daquele cujo nome o senhor utiliza.
— Aquele cujo nome utilizo?
— Nâo sabia disso?
— Nâo sabia, de fato. E que ê feito dele?
— E o que gostariamos de saber. Alias} esse é
o unico objetivo desta conversa.
— Nâo vejo de que modo poderia ser-lhe ûtû.
Sempre pensei que os papéis que me deram fossem
falsos.

33
if#
;
— Na época Gaspard Winckler era um garoto ;
de oito anos, surdo-mudo. Sua mâe, Caecilia, era uma
cantora austnaca, mundialmente conhecida, que se
refugiara na Suiça durante a guerra. Gaspard era um
menino doente e raquûico, condenado por sua enfer-
midade a um isolamento quase total. Ele passava a
maior parte do tempo agachado num canto de seu
quarto, nâo se interessando pelos ricos brinquedos que
sua mâe ou seus famûiares lhe ofereciam diariamen-
te, recusando-se quase sempre a alimentar-se. Para
vencer aquele estado de prostraçâo que a desesperava,
a mâe resolveu dar a volta ao mundo com ele; pen-
sava que a descoberta de novos horizontes, as mudan-
ças de clima e de ritmo de vida teriam um efeito sa-
lutar sobre seufilho, quem sabe até desencadeando
um processo capaz de restituir-lhe a audiçâo e afala,
pois todos os médicos consultados eram categôricos
nesse ponto: nenhuma lesâo interna, nenhum distûr-
bio genético, nenhuma malformaçâo anatômica ou
fisiolôgica explicava seu surdimutismo, que sô podia
ser atribuido a um traumatismo infantil cujas razôes,
infelizmente, eram ainda desconhecidas, embora a
criança tivesse sido levada a vârios psiquiatras. Tudo
isso, o senhor me dira, parece ter pouca relaçâo com
sua prôpria aventura e continua sem explicar como
o senhor fo i adquirir a identidade dessa pobre crian­
ça. Para compreendê-lo, ê preciso antes de mais na-
da que o senhor saiba que, tanto fo r frecauçao co­
mo por gosto pelo trabalho bem-feito, a organizaçâo
de ajuda que se encarregou do senhor nâo utïlizava
papéisfalsos, mas passaportes, carteiras de identida­
de e carimbos autênticos fomecidos porfuncionârios
da administraçâo devotados a sua causa. Acontece que

34
o funcionârio genebrïno que dévia se ocupar de seu
caso morreu très dias antes de sua chegada à Suiça,
sem nada ter preparado, quandojâ haviam sido acer-
tados todos os contât os, todas as etapas de sua via-
gem ulterïor. A organizaçào ficou sem ter como agir.
Foi quando interveio Caecüia Winckler, que perten-
cia a essa organizaçào e era inclusive uma das princi-
pais responsâveis por ela na Suiça. E fo i assim que,
para atender o caso mais urgente, lhe entregaram o
passaporte, ligeiramente retocado, que Caecilia ha-
via mandado fazer algumas semanas antes para o pro-
prio filho.
— E elef
— Os regulamentos intemacionais admitem de
bom grado que um menor de idade divida o passa­
porte com um de seus pais.
— Mas o que teria acontecido a seguir?
— Nada, suponho; eles teriam dado umjeito pa­
ra que Gaspard obtivesse outro passaporte; nâo creio
que tenham pensado em pedir-lhe o seu de volta um
dia.
— Entâo por que o senhor acha que eu teria po-
dido encontrâ-los?
— Eu lhe disse algo semelhantef O senhor nâo
me deixa continuar: algumas semanas apôs sua pas-
sagem por Genebra, quando todos se convenceram
de que o senhor estava em segurança, Caecüia e Gas­
pard partiram para Trieste, onde embarcaram num
iate de 25 métros, o Sylvandre, magnifica embarca-
çâo capaz de fazê-los atravessar ospiores tufoes. Eram
seis a bordo: Caecüia, Gaspard, Hugh Barton, um
amigo de Caecüia que era de certo modo o coman­
dant e de bordo, dois marujos malteses que tambêm

35
funcionavam como camareiro e cozinheiro, e um jo-
vem preceptor, Angus Pilgrim, especializado na edu-
caçâo de surdos-mudos. Contrariamente à esperança
de Caecüia, nâo parece que a viagem tenha melho-
rado o estado de Gaspard, que, a maior parte do tem­
po, permanecia em sua cabine e sô excepdonalmen-
te consentia em subir ao convés para olhar o mar. Da
leitura das carias que Caecüia, Hugh Barton, Angus
Pilgrim e mesmo Zeppo e Felipe, os dois marujos, es-
creveram nessa época e que, por razôes que o senhor
nâo tardarâ a compreender, fu i levado a consultar,
desprende-se, com o passar dos meses, uma impres-
sâo pungente: aquela viagem concebida antes de tu-
do como uma cura perde aos poucos sua razâo de ser;
vai se tomando cada vez mais claro que fo i inûtil em-
preendê-la, mas também nâo hâ razâo alguma para
interrompê-la; o barco erra, levado pelos ventos, de
costa em costa, de porto em porto, detém-se um mes
aqui, très meses ali, buscando cada vez mais inutil-
mente o espaço, a enseada, o horizonte, a praia, o
quebra-mar onde o milagre poderia produzir-se; e o
mais estranho ê que, quant o mais a viagem prosse-
gue, mais cada um parece convenddo de que tal lu-
gar existe, de que em algum ponto do mar hâ uma
ilha, um atol, um rochedo, um cabo onde de repente
tudo poderâ acontecer, onde tudo se desvendarâ, tu-
do se iluminarâ, que bastarâ uma aurora um pouco
especial, ou um pôr-do-sol, ou qualquer outro acon-
tecimento sublime ou irrisôrio, uma passagem de aves,
um bando de baleias, a chuva, a calmaria absoluta,
o torpor de um dia tôrrido. E todos se agarram a essa
ilusâo, até o dia em que, ao largo da Terra do Fogo,
envolvido por um daqueles subitos tornados que na-
quela area sâo quase cotidianos, o barco naufraga.

36
8

Possuo um a foto de meu pai e cinco de minha


mâe (no verso da foto de meu pai tentei escrever, com
giz, numa noite em que estava bêbado, provavelmente
em 1955 ou 1956: “Hâ algo de podre no reino da Di-
nam arca”. Mas nâo consegui sequer traçar o final da
quarta palavra). De meu pai, nâo tenbo outra lem-
brança senâo a daquela chave ou moeda que ele me
teria dado um a noite ao voltar do trabalho. De m i­
nha mâe, a ünica lembrança que me resta é a do dia
em que ela me acompanhou até a estaçâo ferroviâria
de Lyon, de onde parti para Villard-de-Lans com um
comboio da Cruz Vermelha: embora nâo tenha nada
quebrado, tenho o braço num a tipoia. Minha mâe
me compra um Chariot intitulado Chariot pâra-que-
dista: na capa ilustrada, as correias do pâra-quedas
nâo sâo outra coisa senâo os suspensorios da calça de
Carlitos.

O projeto de escrever m inha historia formou-se


quase ao mesmo tempo que meu projeto de escrever.
Os dois textos que seguem datam de mais de quinze
anos. Copio-os sem nenhuma alteraçâo, indicando em

37
nota as retificaçoes e os comentârios que hoje julgo
dever acrescentar.

Na foto o pai tem a atitude do pai. É alto. Tem a ca-


beça descoberta, segura o bonê na mâo. Seu capote desce
quase até os pês.1Tem a cintura marcada por um daque-
les cinturôes de couro grosseiro que se assemelham às cor-
reias das vidraças nos vagôes de terceira classe. Àdivinham-
se, entre os coturnos limpos de poeira — é domingo -— e
a base do capote, as faixas interminâveis das grevas.
O pai sorri. É um simples soldado. Esta de licença
em Paris, é o final do inverno, no bosque de Vincennes.2
Meu pai foi militar durante muito pouco tempo.
Mas quando penso nele, é sempre num soldado que pen-
so. Ele foi um pouco cabeleireiro,'depois trabalhou em
fundiçao, mas jamais consigo, por assim dizer, imaginâ-
lo como um operârio.3 Um dia vi uma foto dele “ à pai-
sana” e fiquei muito espantado; sempre o conheci sol­
dado. Por muito tempo sua foto, numa moldura de couro
que foi um dos primeiros présentes que ganhei depois
da guerra, ficou na cabeceira de minha cama.-1
Tenho muito mais informaçoes sobre meu pai que
sobre minha mâe porque fui adotado por minha tia pa-
terna. Sei onde ele nasceu, no fundo saberia descrevé­
lo, sei como foi educado; conheço alguns traços de sua
personalidade.
Minha tia paterna era rica.5 Foi eïa quem primei-
ro veio para a França e fez vir seus pais e seus dois ir-
maos. Um destes partiu para fazer fortuna em Israël.6

38
Esse nâo era mcu pai. O outro tentou sem muito empe-
nho conseguir um lugar no mundo dos diamantistas no
quai seu cunhado o havla introduzido mas, apôs alguns
meses como engastador, preferiu renunciar a um futu-
ro prôspero e tornou-se operârio especializado.7
Em meu pai, gosto muito de sua despreocupaçâo.
Vejo um homem que assobia baixinho. Ele tinha um no­
me simpâtico: André, Mas fiquei muito decepcionado
no dia em que soube que na verdade — digamos, nos
registros oficiais — ele se chamava Icek Judko, o que
para mim nâo signifie ava grande coisa.8
Minha tia, que gostava muito dele, que o educou
quase sozinha, e que assumiu o compromisso solene de
cuidar de mim, o que alias ela fez muito bem, me disse
um dia que ele era um poeta: que gazeteava na escola,
que nâo gostava de usar gravata, que se sentia melhor
na companhia dos amigos que com os diamantistas (o que
me deixa sem saber por que ele nâo escolhia seus amigos
entre os diamantistas).8
Meu pai também era muito valente. No dia em que
a guerra começou, foi à junta de recrutamento e se alis-
tou. Destacaram-no para o décimo segundo regimento
estrangeiro.
As lembranças que tenho de meu pai nâo sâo mui­
to numerosas.
Em certa êpoca de minha vida, alias a mesraa a que
me referi anteriormente, o amor que eu tinha por meu
pai se confundiu com uma paixâo feroz pelos soldados
de chumbo. Minha tia me intimou certo dia a escolher,
para o Natal, entre um par de patins e um grupo de sol­
dados de infantaria. Escolhi os soldados de infantaria;
ela nem se deu ao trabalho de me dissuadir e foi com-

39
prar os patins, o que sô lhe perdoei depois de muito tem­
po. Mais tarde, quando eu estava começando a freqüen-
tar o liceu, toda manhâ ela me dava dois francos (acho
que eram dois francos) para meu ônibus. Mas eu punha
o dinheiro no bolso e ia para o liceu a pê, o que me fazia
chegar atrasado mas me permitia, très vezes por sema-
na, comprar um soldado (de argila, infelizmente) numa
lojinha situada em meu itinerârio. Um dia, inclusive,
vendo na vitrine um soldado agachado eom um telefo-
ne de campanha, lembrei-me de que meu pai opéra va
nas transmissôes10 e aquele soldado, comprado no dia
seguinte, tornou-se o centro habituai das operaçôes es-
tratégicas ou tâticas que eu empreendia com meu peque-
no exército.
Imaginava para meu pai varias mortes gloriosas.
A mais bêla era que ele fora ceifado por um tiro de me-
tralhadora ao levar, como estafeta, a mensagem da vitô-
ria ao general Fulano.
Eu era um pouco bobo. Meu pai tinha morrido de
maneîra estupida e lenta. Foi logo depois do armisticio.11
Ele estava no caminho de uma bomba perdida. O hospital
estava Iotado. Hoje ele é novamente uma pequena igreja
deserta numa cidadezinha inerte. O cemitêrio esta bem
conservado. Num canto apodrecem aïgumas cruzes de ma-
deira com nomes e numéros de registre.
Visitei uma vez o que se pode chamar o tûmulo de
meu pai. Foi num 1? de novembre. Havia lama por to­
da parte.12
De vez em quando penso que meu pai nâo era um
imbecil. Digo-me em seguida que esse tipo de definiçâo,
tanto positiva como negativa, nâo tem maior alcance.
No entanto, consola-me um pouco saber que havia nele
sensibilidade e inteligêneia.

40
Nâo sei o que teria feito meu pai se ainda estivesse
vivo. O mais curioso é que sua morte, bem como a de
minha mâe, parece-me muito seguidamente uma evidên-
cia. XJm retorno à ordem das coisas.

II

Cyrla Schulevitz,13minha mâe, de quem eu soube,


nas raras vezes em que ouvi falar delà, que a chama-
vam mais comumente Cécile,11 nasceu em 20 de agosto
de 1913 em Varsôvia. Seu pai, Aaron, era artesâo; sua
mâe, Laja, nascida XUajnerer,15 cuidava da casa. Cyrla
era a terceira filha e a sétima da proie.16Seu nascimen-
to fatigou muito a mâe, que depois so teve mais uma fi­
lha, um ano mais moça que minha mâe e que recebeu
o nome de Soura.17
Essas informaçôes quase estatisticas e que para mim
sô têm um interesse bastante restrito, sâo as unicas que
possuo com relaçâo à infância e à juventude de minha
mâe. Ou melhor, para ser preciso, as unicas de que te-
nho certeza. As outras, embora as vezes me pareça que
foram de fato contadas e que as obtive de uma fonte digna
de crédito, provavelmente se devem as relaçoes imagi-
nârîas bastante extraordinârias que mantive regularmen-
te em certa época de minha breve existência com meu
. 18
ramo materno.
Eeito esse esclarecimento, direi que suponho que a
infância de minha mâe foi sôrdida e sem histôria. Nasci­
da em 1913, ela nâo teve outra alternativa senâo crescer
na guerra. Além disso era judia e pobre. Certamente a
vestiram com as roupas que seis filhos antes delà haviam

41
usado, certamente logo lhe destinaram as tarefas dômes-
ticas de pôr a mesa, descascar as batatas, ïavar a ïouça.
P are ce que vejo, quando penso nela, uni a rua tortuosa
do gueto, com uni a luz mortîça, neve talvez, quitandas
miserâveis e mal iluminadas, diante das quais hâ filas
interminâveis. E minha mâe ali, uma coisinha de na-
da, insignificante como très batatas, enrolada quatro ve-
zes num xale tricotado, carregando um cesto escuro que
tem o dobro de seu peso.19
Mesmo assim a dispenso dos maus-tratos, embora
esteja mclinado a pensar que, no meio e nas circunstân-
cias que acabo de brevemente evocar, eles pudessem ser
comuns. Vejo, ao contrario, uma grande doçura e uma
grande paciência, muito amor. Âaron, meu avô, que ja­
mais conbeci, adquire com freqiiência o aspecto de um
sâbio. A noite, arrumadas cuidadosamente suas ferra-
mentas,20 ele pôe os ôculos de armaçâo de aço e lê a Bî-
blia em voz alta. Os filhos sâo virtuoses e se dispôem por
ordem de tamanho em volta da mesa; Laja pega o prato
que um a um eles lhe estendem e derrama uma concha
de sopa.21

Nâo vejo minha mâe envelhecer. No entanto os anos


passam; nâo sei como ela cresce; nâo sei o que descobre
nem o que pensa. Parece-me que por muito tempo as coi-
sas continu am sendo para ela o que sempre foram: a po-
breza, o medo, a ignorâneia. Sera que aprendeu a 1er?
Nada sei a esse respeito.22 As vezes tenho vontade de sa-
ber, mas muitas coisas agora me afastam para sempre des­
sas lembranças. A imagem que tenho delà, arbitra ria e
esquemâtica, me convêm; assemelha-se a ela, define-a,
para mini, quase perfeitamente.
Na vida de minha mâe houve um ünico aconteci-
mento: um dia ela soube que ia partir para Paris. Ima-

42
gino que sonhou. Foi buscar, em alguma parte, um atlas,
um mapa, uma estampa, viu a torre Eiffel ou o Àrco
do Triunfo. Pensou talvez uma porçâo de coisas: certa­
mente nâo nos vestidos ou nos bailes, mas talvez no cli-
ma suave, na tranqüilidade, na felicidade. Bevem ter-
Ihe dito que nâo haveria mais massacres nem guetos, mas
dinheiro para todos.
E partiram. Nâo sei quando, nem como, nem por
que. Séria um pogrom que os expulsava, alguém que os
chamava?23 Sei que chegaram a Paris, seus pais, ela,
Soura, a irma mais moça, prova velmen te os outros tam-
bém. ïnstalaram-se no 20? arrondissement, numa rua
cujo nome esqueci.
Laja, a mâe, morreu. Minha mâe aprendeu, acre-
dito, o oficio de cabeleireira. Depois conheceu meu pai.
Casaram-se. Ela estava com 21 anos e dez dias. Foi em
30 de agosto de 1934 na Prefeitura do 20? arrondisse­
ment. ïnstalaram-se na rua Vilin; passaram a gerenciar
um pequeno salâo de cabeleireiro.
Nasci no mes de março de 1936. Foi'am talvez très
anos de uma felicidade relativa que certamente se obs-
cureceu com as doenças de minha primeira infância (co­
queluche, rubéola, varicela),21 dificuldades materiais
diversas, um futuro que se anunciava sombrio.
Veio a guerra. Meu pai se alistou e morreu. Minha
mâe tornou-se viu va de guerra. Vestiu luto. Deu-me a
criar. Seu salâo foi fechado. Passou a trabalhar como
operâria numa fâbrica de despertadores.25 Greio lem-
brar-me de que um dia se feriu e teve a mâo per fur ada.
Foi obrigada a ostentar a estrela.
Um dia ela foi comigo atê a estaçâo ferroviâria. Era
1942. Era a estaçâo de Lyon. Comprou-me uma revisti-
nha que dévia ser um Chariot. Àcho que a vi agitar um

43
lenço branco na plataforma no instante em que o trem
se punha em movimento. Eu ia para Villard-de-Lans,
corn a Cruz Vermelha.

Mais tarde, pelo que me contaram, ela tentou atra-


vessar o Loire. O passador que ela foi procurai', cujo en»
dereço lhe fora fornecido por sua cunhada, que jâ esta-
va na zona livre, calhou estar ausente. Ela nâo insistiu
mais e voltou para Paris. Aconselharam-na a mudar de
casa, a esconder-se. Nâo fez nada disso. Achava que sua
condiçâo de viuva de guerra a pouparia de todo e quai»
quer problema.26 Numa batida, ela e a irmâ, minha
tia, foram apanhadas. Foi internada em Drancy em 23
de janeiro de 1943, depois, em 11 de fevereiro, deporta-
da para Auschwitz. Reviu seu pais natal antes de mor-
rer. Morreu sem ter entendido.

1. Nâo exatamente, o capote de meu pai nâo


desce quase até os pés: chega aos joelhos; além disso
as abas estâo erguidas até a metade da coxa. Portan-
to nâo se pode dizer que se “adivinham” as faixas das
grevas: elas estâo inteiramente à vista e grande parte
da calça esta descoberta.

2. Domingo, licença, bosque de Vincennes: na­


da me permite afirmar isso. A terceira foto que te-
nho de minha mâe — uma daquelas em que estou
com ela — foi tirada no bosque de Vincennes. Esta,
eu diria hoje que foi tirada no lugar mesmo onde meu
pai estava aquartelado; a começar por seu formato
(15,5 X 11,5 cm), vê-se que nâo é uma foto de ama-
dor: meu pai, em seu uniforme quase novo, posou
diante de um dos fotografos ambulantes que percor-

44
rem juntas de saüde, casernas, casamentos e classes
em fim de ano letivo.

3* Meu pai veio para a França em 1926, alguns


meses antes de seus pais David e Rose (Rozja). Antes
ha via sido aprendiz de um chapeleiro de Varsdvia. Sua
irma mais velha, Esther (que depois me adotou), jâ
estava em Paris havia cinco anos e ele morou em sua
casa, na rua Lamartine, durante algum tempo, apren-
dendo francês, ao que parece com grande facilidade.
O marido de Esther, David, trabalhava como joalheiro
de pérolas e nâo é impossfvel que tenha convidado
meu pai para trabalhar com ele. O certo, em todo
caso, é que Rose, m ulher de grande energia, abriu
um pequeno armazém de gêneros alimentfcios e meu
pai foi seu empregado: ele é que ia, à noite, buscar
as mercadorias no mercado central. É mais ou me-
nos certo que ele também era, e talvez ao mesmo tem­
po, operârio: vârios papéis o designam como “tornei-
ro mecânico”, mas nâo sei se num a fâbrica ou numa
pequena oficina. Provavelmente ele também traba-
lhou num a padaria da rua Cadet, que daria fundos
para o patio do imovel no quai trabalhava David. Ou-
tros papéis fazem dele um “m oldador”, um “fundi-
dor” e até mesmo um “cabeleireiro profission al”; mas
é pouco provâvel que tenha aprendido o oficio; m i­
nha mâe se ocupava sozinha — ou talvez com sua ir-
mâ Fanny — do pequeno salâo de cabeleireiro que
ela administrava.

4. Acho que foi por causa desse présente que


sempre acreditei que as molduras eram objetos pre-
ciosos. Ainda hoje me detenho diante das casas de

45
artigos fotogrâficos para olhâ-îas e invariavelmente
me surpreendo ao encontrâ-las por cînco ou dez fran-
cos nas lojas de departamentos.

5. Séria mais exato dizer que ela estava em via


de tornar-se rica.

6. Tratava-se, na época, da Palestina, eviden-


temente,

7. Mesmo que ja de forma negativa, eu ainda


estava fortemente marcado pelos critérios de êxito so­
cial e econômico que constituiam o essencial da ideo-
logia de minha familia adotiva.

8. ïcek é evidentemente Isaac, ejudko sem duvi-


da um diminutivo de Jehudi. De fato é possivel que pu-
dessem cham ar meu pai André, assim como, de for­
ma quase igualmente arbitrâria, chamavam seu irmâo
mais velho (o que foi fazer fortuna na Palestina) Léon,
quando seu nome no registro civil era Eliezer. Na ver-
dade, todo mundo chamava meu pai Isie (ou Izy). Sou
o unico a ter acreditado, durante muitissimos anos, 'que
se chamava André. Tive um dia uma conversa com mi­
nha tia sobre o assunto. Ela acha que talvez fosse um
apelido que ele tivesse usado em suas relaçôes de tra-
balho ou de café. De minha parte, tendo a pensar que
entre 1940 e 1945, quando a mais elementar prudên-
cia exigia que chamassem alguém Bienfait ou Beau-
champ em vez de Bienenfeld, Chevron em vez de Cha-
vransld, ou Normand em vez de Nordmann, poderiam
ter-me dito que meu pai se chamava André, minha mâe
Cecilia, e que éramos bretôes.

46
O nome de m inha famîlia é Peretz. Ele se en-
contra na Biblia. Em hebraico quer dizer “buraco”,
em russo “pimenta”, em hüngaro (em Budapeste, mais
precisamente) é assim que se désigna o que chama-
mos Bretzel (Bretzel, alias, nâo é senâo um diminuti-
vo — Beretzele — de Beretz, e Beretz, assim como
Barulc ou Barek, é forjado a partir da mesma raiz que
Peretz — em arabe, quando nâo em hebraico, B e
P sâo um a ünica e mesma letra).
Os Peretz de bom grado fazem rem ontar sua ori-
gem a judeus espanhois expulsos pela Inquisiçâo (os
Perez seriam marranos) e dos quais se pode traçar a
migraçâo na Provença (Peiresc), depois nos Estados
do papa, e finalmente na Europa central, principal-
mente na Polonia, mas também na Romênia e na Bul-
gâria. Uma das figuras centrais da familia é o escri-
tor iidiche polonês Isak Leibuch Peretz, a quem todo
Peretz que se preze trata de ligar-se por intermédio
de pesquisas genealogicas as vezes acrobâticas. Quanto
a mim, séria sobrinho-bisneto de Isak Leibuch Peretz.
Ele teria sido o tio de meu avô.
Meu avô chamava-se David Peretz e vivia em Lu-
bar tow. Teve très filhos; a mais velha chama~se Es-
ther Chaja Perec; o do meio, Eliezer Peretz, e o mais
moço, Icelt Judlto Perec. No intervalo que sépara os
très nascimentos, ou seja, entre 1896 e 1909, Lubar-
tow teria sido sucessivamente russa, depois polonesa,
depois russa de novo. Segundo me explicaram, um
funcionârio de cartorio que ouve em russo e escreve
em polonês ou vira Peretz e escreverâ Perec. Nâo é im-
possivel que fosse o contrario: segundo m inha tia, os
russos é que teriam escrito “tz” e os poloneses “c”. Es-
sa explicaçâo aponta, mais do que esgota, toda a ela-

47
boraçâo fantasmâtica ligada à dissimulaçâo patro-
mmica de minha origem judaica que fïz em torno
de meu nome e que marca, além disso, a minüscula
diferença existente entre a ortografia do nome e sua
pronüncia: deveria ser Pérec ou Perrec (e é sempre
assim, com um acento agudo ou dois rr, que o escre-
vem espontaneamente); é Perec, sem no entanto se
pronunciar Peurec.*

9. Evidentemente nâo é a meu pai que me diri-


jo aqui; antes, trata-se de um acerto de contas com
minha tia.

10. Nâo sei quai a origem dessa lembrança que


nada jamais confirmou.

11. Ou melhor, exatamente no mesmo dia, 16


de junho de 1940, ao amanhecer. Meu pai foi feito
prisioneiro apos ter si do ferido na barriga por um tiro
de m etralhadora ou um estilhaço de morteiro. Um
oficial alemâo prendeu em seu uniforme uma étiqueta
com a instruçâo “Cirurgia urgente” e ele foi transpor-
tado para um a igreja de Nogent-sur-Seine, no depar-
tamento de Aube, a uns cem quilômetros de Paris;
a igreja ha via sido transformada em hospital para os
prisioneiros de guerra, mas estava abarrotada e no
local so havia um ünico enfermeiro. Meu pai se es-
vaiu em sangue e morreu pela França antes de ter sido
operado. Os senhores Julien Baude, inspetor-chefe dos
Impostos Indiretos, 39 anos, domiciliado em Nogent-
sur-Seine, avenida Jean-Casimir-Perier, n? 13, e René

(*) Em francês, Peurec se associa a p eu r, "m ed o ” . (N . T .)

48
Edmond Charles Gallée, prefeito da referida cidade,
assinaram o atestado de obito no mesmo dia às nove
horas. Meu pai completaria 31 anos très dias mais tarde.

12. Foi em 1955 ou em 1956. Essa peregrinaçâo


durou um dia inteiro. Passe! a tarde toda num bar
deserto à espera do trem que me le varia de volta pa­
ra Paris. Minha visita ao cemitério foi muito breve.
Nâo precisei procurar muito em meio às duas ou très
centenas de cruzes do cemitério m ilitar (simples qua-
drado num dos cantos do cemitério da cidade). A des-
coberta do tümulo de meu pai, das palavras PEREC
icekjudko seguidas de um numéro de registro inscri­
ras na plaça no alto da cruz de m adeira, ainda bem
legfveis, me causou uma sensaçao dificil de descrever:
a impressâo mais tenaz é a de uma cena que eu esta-
va interpretando, interpretando para mim mesmo:
quinze anos mais tarde, o filho vem m editar junto ao
tümulo do pai; mas havia, por baixo da interpreta-
çâo, outras coisas: o espanto de ver meu nome num
tümulo (pois durante muito tempo uma das particu-
laridades de meu nome foi a de ser ünico: em minha
familia ninguém mais se chamava Perec), o sentimen-
to incômodo de realizar alguma cois a que sempre fo­
ra necessârio que eu realizasse, algo que me teria si­
do impossivel deixar de realizar, mas que eu jamais
saberia por que ëstava realizando, a vontade de dizer
alguma coisa, um a oscilaçao confusa entre uma emo-
çâo incoercivel no limite do balbucio e uma in dife­
rença no limite do deîiberado e, por baixo, uma es-
pécie de serenidade sécréta ligada à ancoragem no
espaço, à ancoragem, impressa na cruz, dessa morte
que cessava enfim de ser abstrata (seu pai esta mor-

49
to, ou, na escola, quando no reinicio das aulas, em
outubro, preenchiam-se as fichas para os professores
que ainda nâo conheciam voce: profissao do pai: fa-
lecido), como se a descoberta daquele minüsculo es-
paço de terra encerrasse por fim aqueia morte que
eu jamais aprendera, jamais experimentara, jamais
conhecera nem reconhecera, mas que me fora neces-
sârio, durante anos e anos, deduzir hipocritamente
dos cochichos compadecidos e dos beijos suspirosos das
damas.
Naquele dia eu estava usando, pela primeira vez,
um par de sapatos pretos e um terno escuro com fi-
nas listras brancas, completamente horrivel, do quai
nao sei mais que membro de minha familia adotiva
tivera a bondade de se ver livre me dando de présen­
té. Voltei para Paris enlameado até quase os joelhos.
Calçados e terno foram limpos, mas dei um jeito de
jamais usà-Ios de novo.

lo. Cometi très erros de ortografia na simples


transcriçâo deste nome: Szulewicz em vez de Schule-
vitz.

14. Devo a esse nome o fato de sempre ter sabi-


do, por assim dizer, que santa Cecilia é a padroeira
dos müsicos e que a catedral de Albi — que so co-
nheci em 1971 — lhe é consagrada.

15. Klajnlerer em vez de Klajnerer.

16. So me falaram de sua irmâ mais moça e de


dois irmâos, que se tornaram peleiros, um dos quais
talvez ainda hoje sediado em Lyon. Acho que por vol ta

50
de 1946 um de meus tios maternos visitou a rua de
l’Assomption — onde tu morava com m inha tia Es-
ther — e ali passou uma noite. Acho também que,
na mesma época, conheci um homem que havia es-
tado no mesmo regimento que meu pai.

17. So pode tratar-se de minha tia Fanny; é pos-


sivel que seu nome oficial tenha sido Soura; esqueci
de que fonte obtive todas essas informaçôes.

18. Evidentemente hoje jâ nâo diria as coisas des-


sa maneira.

19. Nâo chego a estabelecer com precisâo as fon­


tes dessa fabulaçâo; um a delas é, certamente, A pe -
quena vendedora defôsforos, de Andersen; outra, tal-
vez, o episodio de Cosette na casa dos Thénardier; mas
é provâvel que o conjunto se refira a um argumento
teatral bem definido.

20. Na verdade, Aaron — ou Aron — Szulewicz,


que conheci tanto, ou tâo pouco, quanto meu outro
avô, nâo era artesâo, mas vendedor ambulante de fru-
tas e verduras.

21. Desta vez a imagem se référé explicitamen-


te às ilustraçôes tradicionais do Pequeno Polegar e seus
irmâos, ou ainda aos numerosos filhos de Louis Jou-
vet em Drôle de drame.

22. Minha mâe aprendeu, na França, a escrever


em francês, mas corne tia muitos erros; durante a guer-
ra, minha prim a Bianca lhe deu algumas aulas.

51
23. Na verdade, minha mâe chegou a Paris com
a famdia quando era bem pequena, ou seja, prova-
velmente logo apos o fim da Primeira Guerra Mun-
diaï.

24. Esses detalhes, como a maior parte dos que


precedem, sâo fornecidos completamente ao acaso.
Em contrapartida, trago ainda na maior parte dos de-
dos das duas mâos, na junçâo das falanges e das fa-
langetas, as marcas de um acidente que me teria acon-
tecido quando eu tinha alguns meses: uma bouillotte
de louça, preparada por minha mâe, ter-se-ia aberto
ou quebrado, escaldando completamente as mâos.

25. Trata-se da Gompanhia Industrial de Me-


cânica Relojoeira, mais conhecida pelo nome de “Jaz”.
Minha mâe trabalhou ali como operâria de m âquina
de 11 de dezembro de 1941 a 8 de dezembro de 1942.

26. Havia de fato um certo numéro de decretos


franceses que supostamente protegiam algumas ca-
tegorias de pessoas: viüvas de guerra, velhos etc. Ti-
ve m uita dificuldade para compreender como minha
mâe e, com ela, tantos outros puderam por um so ins­
tante acreditar nisso.
Nunca conseguimos encontrar vestigios de minha
mâe e de sua irma. É possivel que, depois de depor-
tadas para Auschwitz, tenham sido levadas para ou-
tro campo de concentraçâo; é possivel também que
todo o comboio em que elas estavam tenha sido leva-
do direto para as câmaras de gâs. Meus dois avôs fo-
ram igualmente deportados; David Peretz, dizem,
morreu asfixiado no trem; nao se encontrou nenhum

52
vestigio de Aron Szulewicz. Minha avo paterna, Rose,
deveu apenas à sorte o fato de nâo ter sido detida:
estava em casa de uma vizinha quando os policiais pas-
saram por sua casa; ela se refugiou por algum tempo
no convento do Sacré-Coeur e conseguiu chegar à zona
livre, nâo, como acreditei por muito tempo, fazendo-
se trancar dentro de um a mala, mas ocultando-se na
cabine do condutor do trem.

Minha mâe nâo tem tumulo. Somente em 13 de


outubro de 1958 um decreto a declarou oficialmente
falecida, no dia 11 de fevereiro de 1943, em Drancy
(França). Um decreto ulterior, de 17 de novembro de
1959, precisou que, “se ela fosse de nacionalidade
francesa”, teria tido direito à mençâo “Morta pela
França”.

Disponho de outras informaçôes relativas a meus


pais; sei que elas nâo me ajudarâo em nada a dizer
o que gostaria de dizer deles.
Quinze anos apos a redaçâo desses dois textos,
continuo achando que nâo poderia senâo repeti-los:
fosse quai fosse a precisâo dos detalhes verdadeiros ou
falsos que pudesse vir a acrescentar, a ironia, a emo-
çâo, a aridez ou a paixâo com que pudesse revesti-
los, os fantasmas aos quais pudesse dar livre curso,
as fabulaçôes que pudesse desenvolver, sejam quais
forem também os progressos que eu possa ter feito nos
ültimos quinze anos no exercicio da escrita, parece-
me que chegaria apenas a um resultado inutil e repe-
titivo. Um texto sobre meu pai, escrito em 1970, e

45
que considero pior que o primeiro, convence-me su-
ficientemente, hoje, a nâo querer recomeçar,
Isso nâo se deve, como aleguei por muito tem ­
po, a uma alternativa sem fim entre a sinceridade de
uma fala a encontrar e o artifïcio de uma escrita preo-
cupada exclusivamente em erguer suas muralhas: é
algo ligado à propria coisa escrita, tanto ao projeto
da escrita como ao projeto da lembrança.
Nâo sei se nâo tenho nada a dizer, sei que nâo di-
go nada; nâo sei se o que teria a dizer nâo é dîto por
ser indizivel (o indizivel nâo esta escondido na escrita,
é aquilo que muito antes a desencadeou); sei que o que
digo é branco, é neutro, é signo de uma vez por todas
de um aniquilamento de uma vez por todas.
É isso o que digo, é isso o que escrevo e é somente
isso o que se encontra nas palavras que traço e nas li-
nhas que essas palavras desenham e nos brancos que
o intervalo dessas iinhas deixa aparecer: por mais que
eu persiga meus lapsos ou passe duas horas m atutando
sobre o comprimento do capote de papai, ou busqué
em minhas frases, para evidentemente logo encontrâ-
las, as ressonâncias miüdas do Édipo ou da castraçâo,
sempre irei encontrar, em minha propria repetiçâo/ape-
nas o ültimo reflexo de um a fala ausente na escrita, o
escândalo do silêncio delbs e do meu silêncio: nâo es­
crevo para dizer que nâo direi nada, nâo escrevo para
dizer que nâo tenho nada a dizer. Escrevo: escrevo por-
que vivemos juntos, porque fui um no meio deles, som­
bra no meio de suas sombras, corpo junto de seus cor-
pos; escrevo porque eles deixaram em mim sua marca
indelével e o vestigio disso é a escrita: a lembrança de­
les esta morta na escrita ; a escrita é a lembrança de sua
morte e a afirmaçâo de m inha vida.

54
9

— E depoist
— E depois o quel
— 0 que tenho a ver com essa histôria além do
fato de ter um homônimo afogado?
— Por enquanto, nada . Acho que séria antes
minha vez de entrar nela. 0 breve resumo desses acon-
tecimentos talvez o tenha feito acreditar que eu conhe-
cesse intimamente afam ûia Winckler, ou que per-
tencesse à rede que o ajudou a encontrar, aqui mesmo,
sob o abrigo de uma nova identidade, uma segurança
que nada, até o présenté, veto ameaçar. Nâo fo i isso
o que aconteceu. A té quinze meses atrâs, mais preci-
samente até 9 de maio do ano passado, data mais pro-
vâvel do naufrâgio, tanto sua histôria como a de seu
homôlogo me eram desconhecidas. Embora medtocre
melômano, eu sabia que Caecilia Winckler era uma
grande cantora e acho inclusive que a ouvi cantar no
papel de Desdêmona no Metropolitan pouco antes da
guerra. Em compensaçâo, embora eu jamais tivesse
tido relaçoes dire tas com sua famûia ou com quai-
quer de seus membros, conhecia de nome a organi-
zaçâo de apoio que o ajudou e apreciava o trabalho
considerâvel que ela realizava em varias partes do
mundo. Era umasimpatia de certo modo profissional;

55
me ocupo, com efeito — e é nessa qualidade que
intervenho hoje na histôria de Gaspard Winckler e,
indiretamente, na sua —, me ocupo de uma compa-
nhia de auxûio aos nâufragos. Trata-se de uma or­
ganizaçâo privada, internacional, que recebe fundos
seja de organizaçoes de beneficência, seja de doaçôes
privadas, seja de algumas instituiçoes governamentais
ou municipais, o Ministério da Marinha Mercante,
por exemplo, ou a Uniâo das câmaras de comércio
do mar do Norte, seja, principalmente, das compa-
nhias seguradoras. Ela foi, na origem, uma espéde
de anexo do Bureau Véritas. Sabe o que é o Bureau
Véritasf
— Nâo — confessei.
—s E uma organizaçâo fundada no inicio do sé-
culo X IX e que publica anualmente uma série de es­
tât isticas sobre as construçÔes navals, os movimentos
marïtimos, os naufrâgios e as avarias. No fim do sé-
culo passado, um dos dirigentes do Bureau manifes-
tou o desejo, em seu testamento, de que parte das
subvençôes, entâo muito volumosas, que os govemos
destinavam anualmente à organizaçâo fosse consagra-
da a socorrer os nâufragos, em vez de contentar-se em
contâ-los. A sugestao era perfeitamente estranha aos
estatutos do Bureau, mas as sociedades de salvamen-
to estavam na moda e o conselho administrative de-
cidiu dedicar 0,5% de seu orçamento anual à criaçâo
de um organismo filantrôpico que se encarregasse de
reunir todos 05 dados relacionados a embarcaçôes em
perigo e, na medida de seus limitados recursos, pres-
tar-lhes socorro. Umpouco mais tarde, 0 Lloyd’s Ré­
gister o f Shipping e o American Bureau o f Shipping,
duas organizaçoes rivais do Bureau Véritas, associa-

56
ram-se a esse esforço e a sociedade de socorro aos nâu­
fragos bem ou mal pôde desenvolver-se.
— Nâo entendo muito bem como vocês operam;
quando um barco afunda, vocês évidentemente nâo
estâo no local!
Otto Apfelstahl me olhou em silêncio durante al-
guns segundos. Notei que o bar estava de novo deser-
to; sozinho, bem ao fundo, um barm an de casaco pre-
to ~~ nâo era o que me havia servido nem um dos que
haviam chegado depois — acendia vêlas fixadas em_
velhas garrafas e arrumava as mesas. Olhei meu re-
lôgio; eram nove da noite. Meu nome ainda era Gas­
pard Winckler? Ou sera que deveria ir atrâs de um
nome no outro lado do mundo?
— Quando um barco afunda — retomou enfim
Otto Apfelstahl (e sua voz me pare cia espantosamen-
te prôxima, e a menor de suas palavras me atingia
como se ele estivesse falando de mim ) —, ou hâ um
outro navio, nâo muito distante, que vemlhe prestar
socorro, é o que acontece no melhor dos casos, ou nâo
hâ, e os passageiros se amontoam a bordo de botes
salua-vidas ou em jangadas improvisadas, ouficam
à dériva agarrados a mastros, a destroços desampa-
rados que as correntes arrastam. A maioria submer­
ge nas très ou quatro horas seguintes, mas alguns en-
contram, nâo se sabe apoiados em que esperança, a
força de sobreviver durante dias, durante semanas.
Hâ alguns anos resgatou-se um deles, a mais de 8 mil
quilômetros do local de seu naufrâgio, amarrado a
um tonel, parcialmente corroido pelo sal, mas ainda
vivo apôs mais de très semanas de infortunio. Talvez
o senhor saiba que um camareiro da marinha mer-
cante britânica sobrex/iveu quatro meses e meio numa

57
jangada, de 23 de novembro de 1942 a 5 de abril de
1943, depois que seu navio soçobrou no Atlântico ao
largo dos Açores. Esses exemplos sâo raros mas exis-
tem, assim como acontece ainda hoje de nâufragos
serem lançados a um recife ou a uma ilha deserta, ou
de encontrarem um frâgü refügio numa plataforma
de gelo que diminuidia a dia. E a nâufragos desse tipo
que nossa ajuda pode aplicar-se mais eficazmente. Os
grandes navios seguem rotas conhecidas e quase sem-
pre é possivel organizar o socorro rapidamente, mes-
mo em caso de avaria grave ou de incêndio criminoso.
Nossa açâo diz respeito sobretudo aos isolados, aos ia-
tes, àspequenas embarcaçôes de recreio, às traineiras
em perigo de naufrâgio. Graças a uma rede de corres-
pondentes hoje espalhados por todos os pont os névral­
gie os, podemos num tempo recorde recolher todas as
informaçôes necessdrias e coordenar as operaçôes de
salvamento. E a nossos escritôrios que chegam as gar-
rafas lançadas ao mar e seu équivalente modemo, os
SOS emitidos pelas embarcaçôes em perigo. Ese, infe-
lizmente, na maioria das vezes nossas bus cas resultam
apenasna descoberta de cadâveresjâ emporte dilace-
radospelas aves marinhas, pode acontecer também que
uma de nossas embarcaçôes, um de nossos avides ou
helicôpteros, chegue a tempo aos locais de naufrâgio
para resgatar uma ou duas vidas humanas.
— Mas o senhor nâo disse ha pouco que o nau­
frâgio do Sylvandre aconteceu hâ quinze mesesf
— De fato. Por que me faz essa perguntaf
— Sufonho que espera de mim que participe
dessa busca, nâo é mesmo?
— Exato — disse Otto Apfelstahl —, gostaria
que fosse até lâ e encontrasse Gaspard Winckler.

38
— Mas por que?
— Por que nâo?
— Eu quis dizer: que esperança razoâvel vocês
ainda podem ter de encontrar um nâufrago quinze
meses depois?
— Localizamos o Sylvandre apenas dezoïto ho-
ras apôs ele ter enviado sinais pedindo socorro. Ele
fora jogado de encontro ao quebra-mar de uma mi-
nûscula ilhota, ao sut da üha Santa Inès, a 54°35’ de
latitude sul e 73°14’ de longitude oeste. Malgrado um
vento extremamente violento, uma équipé de socor­
ro da guaràa civil chilena conseguiu chegar ao iate
algumas horas mais tarde, na manhâ do dia seguin-
te. No interior, encontraram cinco cadâveres e cou­
seguiram identificâ-los: eram Zeppo e Felipe, Angus
Pilgrim, Hugh Barton e Caeciha Winckler. Mas ha-
via um sexto nome na lista dos passageiros, o de uma
criança de uns dez anos, Gaspard Winckler, e eles nâo
encontraram seu corpo.

59
10

A RUA V IU N

Morâvamos em Paris, no 20? arrondissement, na


rua Vilin; é uma ruazinha que começa na rua des
Couronnes e que sobe, esboçando vagamente a for­
m a de um S, até as escadarias abruptas que levam
à rua du Transvaal e à rua Olivier Metra (foi desse
cruzamento, um dos ültimos pontos de onde se pode,
ao nfvel do châo, avistar Paris por inteiro, que rodei,
em julho de 1973, com Bernard Queysanne, a cena
final do filme Un homme qui dort). Très quartos da
rua Vilin estâo hoje destruidos. Mais de metade das
casas foram derrubadas, dando lugar a terrenos baï-
dios onde se amontoam detritos, fogôes velbos e car-
caças de automoveis; a maioria das casas ainda de pé
nâo oferece mais que fachadas cegas. Ha um ano, a
casa de meus pais, no numéro 24, e a de meus avds
matemos, onde morava também minha tia Fanny, no
numéro 1, estavam ainda mais ou menos intatas. In ­
clusive se via no numéro 24, dando para a rua, uma
porta de madeira condenada, acima da quai a ins-
criçâo “ c a b e l e i r e i r o DE s e n h o r a s ” ainda podia ser
lida. Parece-me que na época de m inha primeira in-
fância a rua era pavimentada de madeira. Talvez até

60
houvesse, em alguma parte, uma pilha de toros de
madeira perfeitamente cübicos com os quais faziamos
pequenos fortes e automoveis como as personagens de
L ’île rose, de Charles Vildrac.

Vol tel pela primeira vez à rua Vilin em 1946, com


minha tia. Acho que ela falou com um a das vizinhas
de meus pais. Ou taîvez, mais simplesmente, tenha
vindo comigo ver Rose, minha avo, que, regressando
de Villard-de-Lans, voltou a morar por algum tempo
na rua Vilin antes de partir para junto de seu filho
Léon em Haifa. Creio lembrar-me de ter b r inc ado na
rua um momento. Nos quinze anos que se seguiram,
nâo tive ocasiâo nem desejo de voltar la. Teria sido
incapaz, entâo, de sequer localizar a rua, e é mais pro-
vâvel que a tivesse procurado pelos lados dos métros
Belleville ou M énilmontant que pelos lados do metrô
Couronnes.
Foi com amigos que moravam muito perto, na
rua de l'Ermitage, que revi a rua Vilin, em 1961 ou
1962, numa noite de verâo. A rua nâo evocou em mim
nenhum a lembrança précisa, apenas a sensaçâo de
uma familiaridade possfvel. Nâo cheguei a identifi-
car a casa onde haviam morado os Szulewicz nem
aqueîa onde eu passara os seis primeiros anos de m i­
nha vida e que eu acreditava, erradamente, ser a de
numéro 7.
Desde 1969, vou uma vez por ano à m a Vilin,
em funçâo de um livro em andamento, por enquanto
intitulado Les lieux, no quai tento descrever o devir,
no decorrer de doze anos, de doze lugares parisienses
aos quais, por uma razâo ou outra, estou particular-
mente ligado.

61
O imovel do numéro 24 é constituido por uma
série de pequenas construçôes, de um ou dois anda-
res, em tomo de um patiozinho um tanto sordido. Nâo
sei em quai delas habitei. Nâo procure! entrar no in-
terior das moradias, hoje em gérai ocupadas por tra-
balhadores imigrados portugueses ou africanos, con-
vencido de resto de que isso nâo reavivaria com mais
intensidade minhas ïembranças.
Acho que David, Rose, Isie, Cécile e eu morâva-
mos juntos. Nâo sei quantos cômodos havia, mas creio
que eram mais de dois. Também nâo sei onde Rose
tinha seu armazém (talvez no numéro 23 da rua Julien-
Lacroix, que cruza a rua Vilin em seu trecho inferior).
Esfher me disse um dia que Rose e David moravam
no 24, num local diferente do de meus pais, e que
era um a dependência de zelador. Talvez isso queira
simplesmente dizer que ficava no térreo e que era
muito pequeno.

DUAS FOTOS

A primeira foi tirada por Photofeder, bulevar de


Belleville, 47, Paris, 11?. Penso que data de 1938.
Mostra-nos, minha mâe e eu, em primeiro piano. A
mâe e o filho oferecem a imagem de uma felicidade
que as sombras do fotografo exaltam. Estou nos bra-
ços de minha mâe. Nossas têmporas se tocam. Minha
mâe tem cabelos escuros enfunados pela frente e que
caem em caracois sobre sua nuca. Veste uma blusa
estampada com motivos fîorais, talvez fechada por
uma presilha. Seus olhos sâo mais escuros que os meus
e de um a forma ligeiramente mais alongada. Suas

62
sobrancelhas sâo muito finas e bem desenhadas. O ros-
to é oval, as bochechas bem marcadas. Minha mâe
sorri mostrando os dentes, sorriso um pouco tolo que
nâo lhe é habituai, mas que responde por certo ao
pedido do fotografo.
Tenho cabelos louros com uma onda muito bo-
nita na testa (de todas as Ïembranças que me faltam,
esta é talvez a que eu mais fortemente gostaria de ter:
minha mâe me penteando, fazendo-me aquela ondu-
laçâo engenhosa). Visto uma jaqueta (ou um casaqui-
nho, ou um abrigo) de cor clara, fechada até o pes-
coço, com um colarinho pequeno pespontado. Tenho
orelhas grandes, bochechas rechonchudas, um quei-
xo pequeno, um sorriso e um olhar de viés jâ muito
caracteristicos.

A segunda foto traz no verso très mençôes: a pri-


meira, em parte cortada (pois um dia, estupidamen-
te, cortei totalmente as margens da maior parte des­
sas fotografias), na letra de Esther, diz: “Vincennes,
1939”; a segunda, em m inha letra, a esferogrâfica
azul, indica: “1939”; a terceira, a lapis preto, letra
desconhecida, talvez queira dizer “22” (o mais pro-
vâvel é que se trate de uma inscriçao do fotografo que
a revelou). É outono. Minha mâe esta sentada ou,
mais précis amen te, apoiada num a espécie de moldu-
ra metâlica da quai se percebem, atrâs delà, as duas
barras horizontais e que parece estar no prolongamen-
to de um cercado de estacas de madeira e arame como
se vê freqiientemente nos jardins parisienses. Estou de
pé junto delà, à sua esquerda — à direita na foto —,
e sua mâo esquerda enluvada de preto se apoia em
meu ombro esquerdo. No canto à direita, hâ algo que

63
parece ser o casacâo daquele que esta tirando a foto
(meu pai?).
Minha mâe esta com um grande chapéu de fel-
tro cingido por um a faixa, e que lhe cobre os olhos.
Uma pérola esta presa ao lobo de sua orelha. Ela sorri
com doçura, inclinando muito levemente a cabeça
para a esquerda. Como a foto nâo foi retocada, o que
com toda a certeza aconteceu com a precedente, vê-se
que tem um a grande pinta junto da narina esquerda
(à direita na foto). Veste um mantô de tecido escu-
ro, de gola ampla, aberto sobre uma biusa certamente
de seda sintética, de colarinho redondo, fechada por
sete grandes botôes brancos, sendo que o sétimo quase
nâo dâ para ver, uma saia cinza com listras fininhas
que desce até a metade das canelas, mêlas talvez igual-
mente cinza e sapatos bastante curiosos, reforçados,
sola espessa de borracha, gâspea alta e grandes laços
de couro arrematados por uma espécie de bolota.
Es tou de boina, casacâo escuro de gola ragla fe-
chado por dois grandes botôes de couro e que desce
até a m etade de minhas coxas, os joelhos descober -
tos, meias de lâ enroladas nos tornozeîos e pequenas
botinas, talvez engraxadas, de um botâo sô.
Minhas mâos sâo gorduchas e minhas bochechas
rechonchudas. Tenho orelhas grandes, um. sorrisinho
triste e a cabeça ligeiramente inclinada para a es­
querda.
No fundo hâ ârvores que jâ perderam boa parte
de suas folhas e uma menina que veste um casaco claro
com uma minüscula gola de pele.

64
BULEVAR DELESSERT

Meu pai e m inha mâe trabalhavam e minha avo


também. D urante o dia era Fanny que tomava conta
de mim. Ela me levava com freqüência ao bulevar De­
lessert, onde moravam m inha tia e sua filha Ela. Su-
ponho que tomâvamos o metrô na estaçâo Couron­
nes e que faziamos baldeaçâo na Étoile para descer
em Passy. Foi no bulevar Delessert que Ela teria re-
solvido me fazer m ontar num a bicicleta e que meus
gritos teriam amotinado toda a vizinhança.

O EXODO

Minhas primeiras lembranças précisas dizem res-


peito à escola. Acho pouco provâvel ter entrado na
escola antes de 1940, antes do Êxodo. Do Êxodo nâo
tenho, pessoalmente, nenhuma lembrança, mas uma
foto conserva suas marcas. Ao cortar a margem, tor-
nei indecifrâvel a indicaçâo de local que Esther tal­
vez houvesse posto e que esqueceu depois, mas a data
— junho de 1940 — ainda esta visivel.
Piloto um pequeno veiculo, vermelho na minha
lembrança, aqui manifestamente claro, talvez com al-
guns adornos vermelhos (grades de ventüaçâo nas la-
terais do capô). Visto um a espécie de m alha esporti-
va com um botâo, de mangas curtas ou arregaçadas.
Meus cabelos se encaracolam de forma perfeitamen-
te anârquica. Tenho orelhas grandes, um amplo sor-
riso, os olhos franzidos de prazer. Inclino de leve a
cabeça para a esquerda (para a direita na foto). Atrâs
de mim hâ um portâo fechado, reforçado em sua parte

65
inferior por uma fina treliça metâlica e, bem ao fun-
do, um patio de fazenda com uma charrete.
Nâo sei onde ficava essa aldeia. Sempre achei que
fosse na Normandia, mas agora penso que ficava a
leste ou ao norte de Paris. Varias vezes, com efeito,
houve bombardeios muito proximos. Uma amiga de
m inha avo havia se refugiado la com seus filhos e me
levara junto. Ela contou a m inha tia que costumava
esconder-me debaixo de um edredom toda vez que
havia bombardeio, e que os alemâes que tomaram a
aldeia gostavam muito de mim, que brincavam co-
migo, e que um deles ficava o tempo todo me levan-
do para passear sentado sobre seus ombros. Ela fica-
va com muito medo — dizia à minha tia, que depois
me contou — de que eu dissesse alguma coisa que nâo
dévia dizer e ela nâo sabia como me instruir sobre es­
se segredo que eu dévia guardar.
(Segundo m inha tia, ela era uma mulher muito
gorda e muito gentil. Costurava calças. Seu filho se
tornou médico. Sua filha trabalhou fazendo colares
de pérolas na empresa de meu tio, depois foi para os
Estados Unidos, casou-se e mandou buscar a mâe.)

UMA FOTO

Esta escrito atrâs “Parque Montsouris 19(40)”.


A escrita mistura maiüsculas e minüsculas: é talvez
a de m inha mâe, e séria entao o ünico exemplo que
eu teria de sua escrita (de meu pai nâo tenho ne-
nhum). Minha mâe esta sentada numa cadeira de jar-
dim junto à relva. No fundo, ârvores (comferas) e um
arbusto alto e largo. Minha mâe esta com uma grande

66
boina prêta. O mantô é talvez o mesmo que ela veste
na foto tirada no bosque de Vincennes, a julgar pelo
botâo, mas desta vez eîe esta fechado. A boisa, as lu-
vas, as meias e os sapatos com cordôes sâo pretos. Mi­
nha mâe é viüva. Seu rosto é a ünica m ancha clara
da foto. Ela sorri.

A ESC OLA

Tenho très lembranças de escola.5

A primeira é a mais imprecisa: é no porâo da es-


cola. Nos nos empurramos. Fazem-nos experimentar
mascaras de gâs: os grandes olhos de mica, a engenhoca
que pende como uma tromba, o cheiro enjoativo da
borracha.

A segunda é a mais tenaz: desço correndo — nâo


exatamente correndo: a cada passada, salto um a vez
sobre o pé que acaba de se firmar; é um jeito de cor-
rer, entre a corrida propriam ente dita e o puïo num
pé so, muito freqüente entre as crianças, mas, que
eu saiba, sem denominaçâo particular —, desço por­
tante a rua des Couronnes, segurando com o braço
estendido um desenho que fiz na escola (uma pintura,
a bem dizer) e que représenta um urso castanho so­
bre fundo ocre. Estou transbordando de alegria. Grito
com todas as minhas forças: “Os ursinhos! Os ursi-
nhos!”.

A terceira é, aparentemente, a mais organiza-


da. Na escola nos davam pontos por bom comporta-

67
mento. Eram quadradinhos de papelâo amarelos ou
vermelhos nos quais estava escrito: “1 ponto”, emol-
durado de um a guirlanda. Quando se alcançava uni
certo numéro de pontos na semana, tinha-se direito
a uma medalha. Eu tinha vontade de ganhar uma me-
dalha e um dia a obtive. A professora a prendeu no
meu avental. Na saida, na escada, houve um empura-
em purra que se propagou de degrau em degrau e de
criança em criança. Eu estava no meio da escada e
derrubei uma menina. A professora achou que eu ti-
nha feito de proposito; precipitou-se em minha dire-
çâo e, sem ouvir meus protestas, arrancou minha me­
dalha.
Vejo-me descendo a rua des Couronnes a correr
daquela m aneira particular que as crianças têm de
correr, mas ainda sinto fisicamente aquele empurrâo
nas costas, aquela prova flagrante da injustiça, e a
sensaçâo cenestésica daquele desequilibrio imposto pe-
los outros, vindo de cima de mim e incidindo sobre
mim, permanece gravada em meu corpo de forma tâo
intensa que me pergunto se essa lembrança nâo en-
cobre, na verdade, seu exato contrario: nâo a lem­
brança de um a m edalha arrancada, mas a de uma
estrela pregada com alfinete.1

1. Foi praticamente ao redigir essas très lembran-


ças que uma quarta me veio: a das toaïhinhas de papel
que faziamos na escola: dispunhamos paralelamente
tiras estreitas de papelâo fino coloridas de diversas co-
res e as cruzâvamos com tiras idênticas, passando uma
vez por cima, uma vez por baixo. Lembro que esse
exercido me encantou, que depressa entendi seu prin-
cipio e que o fazîa com perfeiçâo.

68
A P A R TW A

Minha mae me acompanhou à estaçao ferroviâ-


ria de Lyon. Eu tinha seis anos. Ela me confiou a um
comboio da Cruz Vermelha que partia para Greno­
ble, na zona livre. Ela me comprou um a revista, um
Chariot, em cuja capa se via Carlitos, sua bengala,
seu chapéu, seus sapatos, seu bigodinho, saltar de
pâra-quedas. O pâra-quedas esta preso em Carlitos
pelos suspensorios de sua calça.
A Cruz Vermelha évacua os feridos. Eu nâo es­
tava ferido. No entanto era preciso evacuar-me. Por-
tanto, era preciso fazer de conta que eu estava feri­
do. Por isso meu braço estava num a tipoia.
Mas m inha tia é mais ou menos categorica: eu
nâo estava com o braço num a tipoia, nâo havia ne-
nhum a razâo para eu estar com o braço num a tipoia.
É na condiçâo de “filho de baixa”, “orfao de guer-
ra ”, que a Cruz Vermelha, de m aneira inteiramente
regulamentar, me transportava.
É possivel, em contrapartîda, que eu tivesse uma
hérnia e portasse um a faixa hernial, um suporte.
Quando cheguei a Grenoble, acho que fui operado
— inclusive acreditei por muito tempo, surrupiando
esse detalhe de nâo sei mais que outro membro de mi­
nha familia adotiva, que o professor Mondor é que
havia praticado a operaçâo — ao mesmo tempo de
uma hérnia e.de apendicite (teriam aproveitado a hér­
nia para me retirar o apêndice). É certo que nâo foi
logo ao chegar a Grenoble. Segundo Esther, foi mais
tarde, e de apendicite. Segundo Ela, foi de uma hér­
nia, mas bem antes, em Paris, quando eu ainda ti­
nha meus pais.1

69
Uma caracteristica triplice percorre essa lem-
brança: pâra-quedas, braço na tipoia, faixa hernial,
coisas relacionadas a suspensâo, sustentaçâo, quase
protese. Para existir, é preciso um suporte. Dezesseis
anos mais tarde, em 1958, quando as vicissitudes do
serviço militar fizeram de mim um efêmero pâra-que-
dista, pude 1er, no minuto mesmo do salto, um texto
decifrado dessa lembrança: fui precipitado no vazio;
todos os fios se romperam; cai, sozinho e sem susten­
taçâo. O pâra-quedas se abriu. A corola se desdobrou,
cabide frâgil e seguro antes da queda controlada.

1. De fato eu estava usando uma faixa hernial.


Fui operado em Grenoble, aîguns meses mais tarde,
e aproveitaram para me retirar o apêndice. Isso em
nada altéra o fantasma, mas permite traçar uma de
suas origens. Quanto a esse imaginârio braço na ti~
poia, iremos vê-lo, mais adiante, fazer uma curiosa
reapariçâo.

70
— O estudo do diârio de bordo e dos documen­
tas portuârios, preenchidos toda vez que o Sylvandre
fazia escala, e o cruzamento de diversas informaçoes
meteorolôgicas e radiogoniométricas nos permitiram,
posteriormente, reconstituir de maneira mais ou me-
nos satisfatôria as circunstâncias do naufrâgio. A ul-
tima escala do Sylvandre havia sido em Port Stanley,
nas Malvinas; dali o iate chegara ao estreito de Le
Maire, dobrara o cabo Hotm, e depois, em vez de con-
tinuar em direçâo ao Pacific o, subira para a baia de
Nassau alcançando, pela passagem muito estreita que
sépara as ilhas Hoste e Navarin, o canal de Beagle,
quase em /rente de Ushuaia. A 7 de maio, ao rneio-
dia, Hugh Barton, como todo dia, détermina as coor-
denadas e anota no diârio de bordo sua posiçâo: algo
como 57° de latitude sul e 71° de longitude oeste, ou
seja, mais ou menos na altura da peninsula de Breck-
nock, a parte mais ocidental da Terra do Togo pro-
priamente dita, entre as ilhas OBrien e Londonderry,
ao largo dos ûltimos contrafortes da cordilheira de
Darwin, ou seja, a menos de cem milhas maritimas
do local do naufrâgio. No dia seguinte, excepdonal-
mente, a posiçâo nâo é indicada ou, em todo caso,
o que para nos dâ no mesmo, nâo é anotada no diârio
de bor do. No dia 9, as très da madrugada, um ha-
leeiro norueguês em caça no mar de Weddell e um
radioamador da üha Trïstâo da Cunha captam uma
mensagem de alerta do Sylvandre, mas nâo conseguem
estabelecer comunicaçào com ele. A mensagem nos
é transmitida menos de duas horas depois, mas o iate
jâ esta mudo e em vâo nossas estaçôes de Punta Are-
nas e do cabo Hermite tentam entrar em contato.
Conclui-se do relatôno feito pornossos corresponden-
tes chilenos que o SOS do Sylvandre precedeu de mui-
to pouco, alguns minutos, talvez até apenas algumas
dezenas de segundos, a catdstrofe. As trancas dos bo­
tes salva-vidas nâo estavam desaferrolhadas, très dos
cinco cadâveresnâo estavam sequer vestidos, ninguêm
teve tempo de pôr uma bôia individual. A violência
do choque deve ter sido terrîvel. Angus Pilgrim fo i
hteralmente esmagado contra a parede de sua cabi­
ne; Hugh Barton teve a cabeça destroçada pela que-
da do mastro principal, Zeppo fo i despedaçado pelos
rochedos e Felipe decapitado por um cabo de aço. Mas
a morte mais hornvel fo i a de Caecilia; ela nâo mor-
reu imediatamente, como os outros, mas, com a es-
pinha que brada por um bau que, mal fixado, fora
arrancado de seu lugar no momento da colisâo, ten-
tou, certamente durante varias horas, alcançar e de-
pois abnr a porta de sua cabine; quando a équipé de
socorro chilena a descobriu, seu coraçâo mal havia
cessado de bâter e suas unhas ensangüentadas hatdam
arranhado profundamente a porta de carvalho.
— E o filho?
— Ele estava na cabine xnzinha à de Caecilia.
Tudo estava revirado, suas roupas, seus brinquedos.
Mas ele nâo estava la.

72
— Talvez tivesse caido no mar.
— Muito pouco provâvel. Séria preciso que ele
estivesse no convés e nâo havia nenhuma razâo para
isso.
— Mas se mesmo assim estivesse?
— As très da madrugada? Que estaria fazendo
no convés às très da madrugada?
— Alguém, Hugh Barton, por exemplo, talvez
tenha pensado que o espetâculo da tempestade po-
deria ter um efeito decisivo sobre o menino...
Mas Otto Apfelstahl sacudiu a cabeça.
— Nâo — disse ele —, nâo é possivel. Mesmo
se tivesse sido precipitado ao mar, o mar o tena des-
troçado contra as pedras do récif e e terîamos encon -
trado um vestigio, um indîcio, alguma coisa dele, san-
gue, uma mec ha de cabelo, um boné, um sapato, seja
o que for. Nâo, efetuamos buscas, nossos homens-râs
mergulharam quase até a exaustâo, esquadrinhamos
cada irregularidade do rochedo. Em vâo,

Permaneci em silêncio. Parecia-me que Otto A p -


felstahl, naquele ponto de seu discurso, esperava de
mim uma resposta, ou pelo menos um sinal qualquer,
nem que fosse de indiferença ou hostilidade. Mas eu
nâo achava nada que dizer. Também ele se calava;
nem mesmo me olhava. De algum lugar vinha o som
de um acordeâo. Tive a visâofurtiva de uma taberna
de marinheiros, num porto quase polar, très deles aga-
salhados com grossos cachecôts de lâ azuis, tomando
caido de carne, soprando entre os dedos. Vasculhei
os boisos em busca de um cigarro.
— Seu maço estâ em cima da mesa — disse tran-
qüilamente Otto Apfelstahl.

73
Peguei um cigarro. Sua mâo me ofereceu um is-
queiro aceso. Murmurez um agradecimento quase
inaudivel.
Permanecemos assim silenciosos durante talvez
cmco minutos. De quando em quando eu aspirava
uma longa baforada, acre e seca, de meu cigarro. Otto
Apfelstahl parecia perdido na contemplaçâo de seu
isqueiro, que virava e revirava em todos os sentidos.
Depois coçou duas ou très vezes o pescoço.
— Se ~ disse ele enfim, rompendo um silêncio
que se tornava cada vez mais pesado —, se conside-
rarmos a velocidade média do Sylvandre e sua posi-
çâo tal como foi calculada e anotada dia 7 de maio
ao meio-dia, percebe-se que no dia 9, as très horas
da madrugada, o late jà devena estar muito mais
adiante em direçâo a oeste. Se, por outro lado, admi-
tirmos que sô uma perturbaçdo extrema, um desvario
gérai, quase umpânico, pode impedir um comandan-
te de bordo de cumprir essa formalidade elementar,
mas mdispensâvel para a segurança de um barco, que
é uma indicaçào de posiçâo, chegamos necessariamen-
te a uma unica conclusâo. Percebe quai?
~ Creio perceber, mas nao estou certo de que
seja a unica.
— Que esta querendo dizer?
— Eles deram meia-volta para ir à procura dele,
isso pode querer dizer que o menino haviajugido, nâo
digo que nâo, mas também pode querer dizer que o ha-
mam abandonado e que em seguida se arrependeram.
— Sera que isso altéra alguma coisa?
— Nâo sei.

74
Fez-se novamente um longo silêncto.
— Como conseguiu me encontrarf — perguntei.
— Eu estava um pouco fascinado pot aquela ca-
tâstrofe, pela personalidade das vûimas, por aquela
espécie de mistêrio que cercava o desapare ciment o do
merdno. Escala apôs escala, reconstîtui a histôria da
idagem, entrei em contato com asfamilias e os amigos
dos desaparecidos, tive acesso às carias que haviam
recebido. Hâ très meses, aproveitando uma passagem
por Genebra, tive ocasiâo de encontrar o ex-secretâno
particular de Caecilia, voce o conhece, foi ele quem
lhe deu seus papéis de identidade; ele mefalou de sua
existência, me contou o que sabia de sua histôria. Você
era bem mais fâcil de descobnr que o outro. Existem
apenas 25 consulados sutços em toda a Alemanha...
— E mais de mil ilhotas na Terra do Fogo —
acrescentei como que para mim mesmo.
— Mais de mil, sim. Quase todas inacessiveis,
inabitadas, inabitâveis. E a guarda costeira argentina
e a chilena vasculharam incansavelmente as outras.

Fiquei calado. Por um breve instante, tive von-


tade de perguntar a Otto Apfelstahl se ele acreditava
que eu teria mais sorte que as guardas costevras. Mas
era uma questâo a que, doravante, sô eu podia res~
ponder...

75
(...)
SEGUNDA PARTE

essa bruma insensata em que se agitavi sombras,


— entâo é esse meu futuro?
R aym ond Q ueneau
12

Lâ longe, na outra extremidade do mundo, ha-


veria uma ûha. Ela se chanta W.

Esta orientada de leste para oeste; seu compri­


ment o mâximo é de cerca de catorze quilômetros. Sua
configuraçâo gérai tem aform a de um crânio de car-
neiro cuja mandibula inferior tivesse sido um tanto
deslocada.
O viajante extraviado, o nâufrago voluntârio ou
desditoso, o explorador ousado que afatalidade, o es-
pirito de aventura ou a perseguïçâo de uma quimera
qualquer tivessem lançado no meio dessa poeira de
ühas que costeia a ponta acidentada do continente
sul-americano teriam apenas uma chance minima de
abordar W. Com efeito, nenhum ponto de desembar­
que natural se oferece na costa, apenas baixios que
récif es à flor da âgua tornam extremamente perigo-
sos, falésias de basalto, abruptas, retilmeas e semfa-
Ihas, ou ainda, a oeste, na regiâo correspondente ao
occipicio do cameiro, pântanos pestilentos. Esses pân-
tanos sâo alimentados por dois rios de âgua quente,
respectivamente chamados Oméga e Kent, cujos me-
andros paralelos determinam num curto trajeto, na
porçào mais central da ûha, uma micromesopotâmia

81
fêrtil e verdejante. A natureza profundamente hostil
do mundo circundante, o relevo acidentado, o solo
ârido, a paisagem constantemente glacial e brumosa
tornam ainda mais maravilhosa a campina fresca e
alegre que entâo se descortina: nâo mais a charneca
desértica varrida pelos ventos selvagens do Antârtico,
nâo mais os taludes retalhados, nâo mais as descar-
nadas algas que milhoes de aves marinhas nâo ces-
sam de sobrevoar, mas voles suaves coroados de bos-
quezinhos de carvalhos e plâtanos, caminhos de terra
margeados de pedras se cas empilhadas ou allas se bes
de amoras, grandes campos de mirtilos, nabos, bata-
tas-doces.
A despeito dessa clemência singular, nem osfue-
guinos nem os patagônios se implantaram em W.
Quando o grupo de colonos cujos descendentes for-
mam hoje a populaçâo inteira da ilha ali se estabele-
ceu no final do sêculo X I X , W era uma ilha absolu-
tamente deserta, como o sâo ainda quase todas as ilhas
da regiâo; a bruma, os récif es, os pântanos haviam
impedido sua abordagem; exploradores e geôgrafos
nâo haviam completado nem sequer haviam empreen-
dido o reconhecimento de seu traçado, e na maioria
dos mapas W nâo apareda ou era apenas uma mam lijijg
cha indistinta e sem nome cujos contornos impreci- ISlflI
si il
sos mal separavam a terra do mar. iijjli
A tradiçâo faz remontar a um certo Wilson afun-
11
daçâo e o prôprio nome da ilha. Desse ponto de par-
tida unânime, numerosas verso es foram propostas.
Numa, por exemplo, Wilson é um guardiâo de farol
cuja negligência teria sido responsâvel por uma tern-
vel catâstrofe; noutra, é o Uder de um grupo de con-
victs que teriam se amotinado ao serem levados para
il
82

18
a Austrâlia; noutra ainda, é um capitâo Nemo des-
gostoso do mundo e que confia construir uma Cidade
idéal. Uma quarta versâo, bastante prôxima da an-
terior mas significativamente diferente, faz de Wilson
um campeao (outras dizem um treinador) que, exal-
tado pelo empreendimento olimpico, mas desesperado
com as dificuldades que Pierre de Coubertin entdo
enfrentava, e convencido de que o idéal olimpico so
podia ser rîdicularizado, conspurcado, desviado em
proveito de sôrdidos interesses mercantis, submetido
aos piores compromissos justamente por aqueles que
pretendiam servi-lo, résolve fazer de tudo para fun-
dar, ao abrigo das disputas chauvinistas e das mani-
pulaçôes ideolôgicas, uma nova Olîmpia.
Os detalhes dessas tradiçôes sâo desconhecidos;
mesmo sua legitimidaâe esta longe de ser garantida. Is-
so nâo tem maior importância. EspeculaçÔes habüido-
sas sobre certos costumes (por exemplo, talprixnlégio
concedido a tal aldeia) ou sobre alguns patronimicos
ainda em uso poderiamfomecer esclarecimentos sobre
a histôria de W, sobre a proveniência dos colonos
(sabendo-se com certeza, pelo menos, que eram bran-
cos, ocidentais e, inclusive, quase todos anglo-saxôes:
holandeses, alemâes, escandinavos, représentantes da-
quela classe orgulhosa que nos Estados Unidos
chamam-se Wasp), sobre o numéro deles, sobre as leis
que estabeleceram etc. Mas que W tenha sido funda-
da por piratas ou esportistas, isso, no fundo, é indife-
rente. 0 que é verdade, o que é certo, o que impressiona
à primeira vista, é W ser hoje uma terra em que o Es-
porte é rei, uma naçâo de atletas em que o Esporte e
a vida se confundem num mesmo esforço magnifie o.
A divisa orgulhosa

83
F O R T IU S A L T ÏU S C IT ÏU S

que orna os pôrticos monumentais à entrada das al-


deias, os estâdios magnîjicos com pistas cuidadosa-
mente conservadas, os gigantescos jornais murais que
publicam a toda hora do dia os resuit ados das com-
petiçôes, os triunfos cotidianos reservados aos vence-
dores, o vestuâno dos homens: um abrigo cinza com
um imenso W branco impresso nas costas, tais sâo al-
guns dos primeiros espetâculos que se oferecem ao
recém-chegado. Este ficarâ sabendo, com admiraçâo
e entusiasmo (quem nâo se entusiasmaria com aque-
la disciplina audaciosa, aquelas proezas cotidianas,
aquela disputa renhiday aquela embrïaguez que a vi-
tôria proporcionaf), que a vida, a qui, é feita para
maior glôria do Corpo. E mais tarde se verâ como es-
sa vocaçâo atlética détermina a vida da Cidade, co­
mo o Esporte govema W, como modelou profunda-
mente as relaçoes sociais e as aspiraçôes individuais.

84
13

Doravante as lembranças existem, fugazes ou te-


nazes, füteis ou opressivas, mas nada as reüne. Sâo
como essa grafia nâo ligada, feita de letras isoladas
incapazes de se soldarem entre si para form ar uma
palavra, que foi a minha até a idade de dezessete ou
dezoito anos, ou como esses desenhos dissociados, des-
conjuntados, cujos elementos esparsos nâo conseguem
jamais ligar-se uns aos outros e com os quais, na épo-
ca de W, entre, digamos, meus onze e meus quinze
anos, cobri cadernos inteiros: personagens que nada
prendia ao solo que supostamente os sustentava, na-
vios cujas vêlas nâo se ligavam aos mastros, nem os
mastros ao casco, mâquinas de guerra, engenhos de
morte, aeroplanos e veiculos com mecanismos impro-
vâveis, com seus tubos de ferro desconectados, seus
cabos interrompidos, suas rodas girando no vazio; as
asas dos avioes se soltavam da fuselagem, as pernas
dos atletas eram separadas dos troncos, os braços se-
parados dos torsos, as mâos incapazes de pegar fosse
o que fosse.

O que caracteriza essa época é antes de tudo sua


ausência de referenciais: as lembranças sâo bocados
de vida arrancados ao vazio. Nada as ancora, nada

85
as fixa. Quase nada as confirma. Nenhuma cronolo-
gia a nâo ser a que arbitrariam ente reconstituf com
o passar do tempo. Tempo passava. Havia estaçôes.
Esquiava-se ou colhia-se feno. Nâo havia começo nem
fim. Nâo havia mais passado, e durante muito tem­
po também nâo houve mais futuro; simplesmente
aquilo durava. Estava-se ali. A coisa se passava num
lugar que era longe, mas ninguém poderia ter dito
exatamente longe de que lugar, taîvez simplesmente
longe de Villard-de-Lans. De tempos em tempos mu-
dâvamos de lugar, ïamos para uma outra hospeda-
gem ou uma outra familia. As coisas e os lugares nâo
tinham nomes ou tinham vârios; as pessoas nâo ti-
nham rosto. Uma vez era uma tia, a vez seguinte era
uma outra tia. Ou entâo uma avo. Um dia encontrâ-
vamos uma prima e quase haviamos esquecido de que
tmhamos uma prima. Depois nâo encontrâvamos mais
ninguém; nâo sabiamos se aquilo era normal ou nâo,
se ia continuar o tempo todo assim ou se era apenas
provisorio. Sera que havia épocas de tias e épocas sem
tias? Nada perguntâvamos, nâo sabiamos muito bem
o que caberia perguntar, deviamos sentir um pouco
de medo da resposta que teriamos obtido câso pen-
sâssemos em perguntar alguma coisa. Nâo colocâva-
mos nenhum a questâo. Esperâvamos que o acaso fi-
zesse voltar a tia ou, se nâo aquela tia, um a outra,
afinal, pouco importava saber quai das tias séria e in­
clusive que houvesse tias ou que nâo as houvesse. Na
verdade, sempre estâvamos um pouco surpresos de que
houvesse tias, e primas, e um a avo. Na vida, passâ-
vamos muito bem sem elas, nâo viamos muito bem
para que aquilo servia, nem por que eram pessoas
mais importantes que as outras; nâo gostâvamos muito

86
daquele jeito que elas tinham, as tias, de aparecer e
desaparecer a toda hora.

S6 sabemos que aquilo durou muito tempo e que


depois, um dia, se interrompeu.

Mesmo m inha tia e minhas primas esqueceram


muita coisa. Minha tia se lembra de que olhava as
montanhas; perguntava-se por que o pequeno sitio que
percebia na orla da floresta nâo era o de seu avô: é
la que teria nascido; la teria brincado durante toda
a sua infância.
Quanto a mim, teria gostado de ajudar minha
mae a limpar a mesa da cozinha depois do jantar. So­
bre a mesa teria havido um oleado com quadradinhos
azuis; acima da mesa, um a lâm pada suspensa com
um abajur quase em forma de prato, de porcelana
branca ou métal esmaltado, e um sistema de polias
com um contrapeso em forma de pêra. Depois eu te­
ria ido buscar m inha pasta de estudante, teria retira-
do meu livro, meus cadernos e meu estojo de madei-
ra, tê-los-ia posto em cima da mesa e teria feito meus
deveres. É assim que a coisa era descrita em meus li-
vros de escola.
14

A maioria dos habitantes de W se agrupa em


quairo povoaçôes chamadas simplesmente as “al-
deias”: ha a aldeia W, certamente a mais antiga, a
que fo i fundada pela primeira geraçâo dos homens
W, e as aldeias Norte ~W, Oeste- W e Noroeste- W, si-
tuadas respectivamente ao norte, a oeste e a noroeste
de W. Essas aldeias sâo suficientemente prôximas
umas das outras para que um corredor a pé, que parta
da sua ao amanhecer e atravesse sucessivamente as ou­
tras très, tenha voltado ao ponto de partida antes do
final da manhâ. Esse exercfcio é alias muito popular
e numerosos dire tores esportivos o escolheram como
preludio das sessôes de treinamento, nâo apenas pa­
ra os fundistas, mas para todos os atletas, inclusive
os lançadores, os saltadores e os lutadores.
A estrada que reüne essas aldeias é particular-
mente estreita e logo se estabeleceu o costume de pra-
ticar esse treinamento matinal respeitando um senti-
do ümco, no caso o sentido dos ponteiros do relôgio.
E evidentemente um grave atentado à regra correr no
sentido contrario. Na medida em que a noçâo de pe-
cado é, se nâo desconhecida em W, ao menos com-
pletamente integrada à moral esportiva (todafalta,
voluntâria ou involuntâna — essa distinçâo nâo tendo

88
o rnenor sentido em W —, acarreta automaticamen-
te a desqualificaçâo, ou seja, a derrota, sançâo aqui
extremamente importante, para nâo dizer capital),
o nâo-respeito de um costume, quando nâo esté ligado
à competiçâo, sô pode ter um significado de desafio:
sobre essa base muito simples se construiu o mecanis-
mo, bastante complexo, que rege os encontros entre
as aldeias.
Para compreender esse mecanismo, que ê um dos
pilares da vida W, cumpre precisar um pouco essa
noçâo de “aldeia”: as aldeias nâo agrupam a totali-
dade dos habitantes de W, mas apenas os esportistas
e aqueles que, embora nâo praticando mais nenhum
esporte, embora nâo participando mais das compe-
tiçôes, sâo diretamente necessârios aos esportistas:
os diretores de équipé, os treinadores, os médicos, os
massagistas, os nutricionisias etc. A queles cuja atvm-
dade esta ligada, nâo aos individuos, mas a seus com-
bates, ou seja, na ordem decrescente da hierarquia
e das responsabilidades, os organizadores, os direto­
res de corrida, os juïzes e os ârbitros, os cronometris-
tas, os guardas, os musicos, os portadores de tochas
e estandartes, os lançadores de pombas, os varredo­
res de pista, os servidores etc., alojam-se nos estâdios
ou em dependências anexas. Os outros, aqueles cuja
atividade nâo esta ou nâo esta mais diretamente re-
lacionada com o Esporte, isto é, principalmente os
velhos, as mulheres e as crianças, se alojam num con-
junto de prédios situados a alguns quilômetros a su-
doeste de W e chamado a Fortaleza. É la que se en-
contram, entre outros, o hospital e a enfermana
central, o asilo, as casas de jovens, as cozinhas, os ate-
liès etc. 0 prôprio nome Fortaleza vem do prédio cen­

89
tral, uma torre com ameias, quase semjanelas, cons-
truîda numa pedra cimenta e por osa, uma espécie
de lava petrificada, e cujo aspecto evocaria mais ou
menos o de um fa ro l Essa torre serve de sede ao Go-
vemo Central de W. É la que, no maior segredo, sâo
tomadas as decisoes mais importantes, aquelas, em
particular, que dizem respeito à organizaçâo das
maiores reuniôes esportivas, osJogos, que sâo em nu­
méro de très: as Olimpiadas, as Espartaquiadas e as
Atlantiadas. Os membros do Govemo sâo escolhidos
entre os Organizadores e o corpo de Jtuzes & Ârbi-
tros, mas jamais entre os Atletas. A gestâo de uma
cidade esportiva exige, com efeito, uma imparciali-
dade total, e qualquer que fosse o atleta, nâo im ­
porta sua honestidade, seu senso do fair play, séria
muito tentado a favorecer sua propria vitôria ou a
de sua équipé para respeitar atê o fïm a neutralida-
de implacavel dosJutzes. De maneira mais gérai, ne-
nhuma funçâo administrativa, em escalâo algum, ja ­
mais ê confiada a um Atleta em exercido: as aldeias
e os estâdios (de certo modo os nweis municipais do
Govemo) sâo geridos por funcionârios nomeados pe-
lo Poder Central e geralmente escolhidos entre os cro-
nometrïstas e diretores de corrida (entende-se por “di-
retor de corrida” um suborganizador responsâvel pelo
desenrolar normal de uma prova; convém nâo con-
fundi-lo com um “diretor esportivo”, ou “diretor de
équipé”, responsâvel pelo treinamento e boa condi-
çâo dos Atletas).
Em suma, em W, uma aldeia é mais ou menos
o équivalente do que alhures chamariam uma uvila
olimpica”, do que na prôpria OUmpia chamavam o
Leonidaion, ou ainda daqueles campos de treinamen-

90
to onde esportistas de um ou vârios païses passam um
periodo para entrât em forma às vésperas dos gran­
des encontros intemacionais.
Cada aldeia possui, além dos alojamentos dos
Atletas, pistas de tremamento, um ginâsio, uma pis-
cina, salas de massagem, uma enfermaria etc. A meio
caminho de cada aldeia existe um estâdio, de dimen-
sôes bastante mo destas, reservado às competiçôes en­
tre as duas aldeias que lhe sâo conexas. Mais ou me­
nos no centro do quadrilâtero formado pelas quatro
aldeias encontra-se o Estâdio Central, muito mais im-
ponente, onde têm lugar osJogos, isto ê} as competi­
çôes que opôem représentantes de todas as aldeias,
e as assim chamadas fprovas de seleçâo ”, ou simples-
mente "seleçôes”, isto é, encontros que opôem as al­
deias nâo conexas. De fato, compreende-se que W,
por exemplo, possa enfrentar-se dianamente com
Norte- W {no estâdio que lhes é comum, a meio ca­
minho de W e Norte-W) e com Oeste-W {no estâdio
a meio caminho de W e Oeste-W), mas hâ pouca
chance de se medir com Noroeste-W, aldeia com a
quai nâo partilha diretamente um estâdio. Do mes-
mo modo, Norte-W tem poucas ocasiôes de confron-
to com Oeste-W. Hâ portanto entre as aldeias opor-
tunidades de encontro bastante diferenciadas. Como
isso se produz com freqüência, essa diferença exacer-
bou a oposiçâo das aldeias entre si; por uma espécie
de reflexo l‘a ldeâo”, os Atletas acabam por conside-
rar os Atletas da aldeia que nâo lhes é conexa como
sens piores inimigos. As disputas entre duas aldeias
nâo conexas sâo assim animadas por um espirito com-
bativo, uma agressimdade, uma vontade de vencer que
dâo a essas competiçôes um atrativo que nem sempre

91
têtu as disputas entre aldeias conexas e, menas ain-
da, as provas de classificaçdo no interior de uma uni-
ca aldeia.
As competiçôes, como vemos, sâoportanto de qua-
tro tipos. Na base da escala hâ os campeonatos de clas-
sificaçâo, 677i que os Atletas de uma mesma aldeia ga-
nham o direito de participar das disputas interaldeias.
A seguir vêm os campeonatos locais, que opôem
as aldeias conexas; hâ quatro desses campeonatos: W
contra Norte-W, W contra Oeste-W, Norte-W con­
tra Noroeste-W, Oeste-W contra Noroeste-W.
Depois as “seleçôes”, que opôem as aldeias nâo
conexas, W contra Noroeste-W e No 7'te-W contra
Oeste- W.
Enfzm osjogos, que, como dissemos, sâo em nu­
méro de très: as Olimpfadas, que se realizam uma vez
por ano; as Espartaqufadas, que se realizam a cada
très meses e sâo, excepcionalmente, abertas aos Atle­
tas nâo classificados em sua aldeia; e as Allant fadas,
que se realizam todos os meses.
A data dosJogos êfixada pelo Governo Central.
Os outros encontros sâo regidos pelo princfpio do de-
safio: toda manhâ, por ocasiâo do circuito de treina-
mento, um Atleta de uma das aldeias, designado na
noite antenor por seu diretor esportivo, parte em sen-
tido contrario e desa/ia o primeiro atleta que encon-
trar. Très possibilidades podem ocorrer: ou o Atleta
que ele desafia é um Atleta de sua prôpria équipé e
as competiçôes do dia serâo campeonatos de classifi-
caçâo interna; ou pertence a uma das duas aldeias
conexas, e nesse caso haverâ campeonatos locais; ou
entâo pertence à aldeia nâo conexa e haverâ uma
disputa de seleçâo.

92
15

Henri, o filho da irma do marido da irma de meu


pai, que depois me habituei a chamar meu primo em-
bora nâo o fosse, como tampouco sua mâe Berthe era
m inha tia, Marc meu tio, Nicha e Paul meus primos,
sofria de asma e, jâ antes da guerra, lhe fora reco-
mendado o ar semimontanhês de Villard-de-Lans. Foi
por essa razâo que todos os membros de m inha farni-
lia adotiva que nâo haviam optado por emigrar para
os Estados Unidos — ou seja, cerca de dois terços —
se refugiaram em Villard-de-Lans juntam ente com
alguns de seus aparentados (refiro-me a parentes dis­
tantes) e seus amigos, bem como um numéro bastan-
te considerâvel de pessoas, em gérai mas nâo obriga-
toriamente judias, vindas de todos os cantos da França
ocupada e às vezes até de mais longe, por exemplo
da Bélgica, e que vieram ocupar as casas de campo,
pensôes de familia e asilos para crianças que, feliz-
mente, existiam em abundância em Villard.
Minha tia Esther morava com a familia numa
casa de campo bastante afastada, bem no alto da es-
trada em declive que dâ na praça de Villard e cuja
porçâo inferior constitui um a das duas ruas principais
da aldeia, pelo menos no que concerne ao comércio.
Ao longo dessa estrada se achavam igualmente, à di-

93
reita, de cima para baixo, o sitio dos Garde, onde mo-
ravam Marc, o irmâo de meu tio David, sua mulher
Ada e seus filhos Nicha e Paul, e um pouco mais aci-
ma, à esquerda, uma casa de campo chamada o ïglu,
onde viviam Berthe, a irma de David, seu marido Ro­
bert e seu filho Plenri.
Acho que eu sabia o que era um iglu: abrigo fei-
to de blocos de gelo empilhados, construido pelos es-
quimos; mas certamente nâo conhecia a significaçâo
da palavra frim as , que designava a casa de campo
que minha tia ocupava. Até este minuto mesmo, em
que um escrupuîo tardio de autobiografo me levou
a consuîtar diversos dicionârios, acreditei na explica-
çâo que certamente me deram na primeira vez que
perguntei o que aquilo queria dizer: um équivalente
poético do inverno que evoca ao mesmo tempo a bran-
cura da neve e o rigor do clîma, e so agora venho a
saber — perguntando-me como pude ignorâ-lo por
tanto tempo — que désigna muito mais especifica-
mente o nevoeiro que congela.
Da casa de campo propriamente, nâo guardo ne-
nhum a lembrança précisa, embora tenha passado
diante delà nâo faz muito tempo, em setembro de
1970. Sei que hâ uma escada extema, flanqueada por
uma m ureta que sustenta grandes bolas de pedra: is-
so porque très dessas bolas sâo visiveis num a foto em
que aparecem, agrupados na escada, num dia de ve-
râo, alguns adolescentes entre os quais se podem re-
conhecer m inha prima Eîa e meu primo Paul.

Perto da casa de campo, do outro lado da estra-


da, havia um sitio — hoje é uma fâbrica de bugigan-
gas de m atéria plâstica — ocupado por um velho de

94
bigode cinza, que usava camisas sem colarinho (essas
camisas sem colarinho que Orson Welles gosta de fa-
zer Aldm Tam iroff usai* e que para mim sempre evo-
cam a dignidade perdida dos apâtridas ou o orgulho
humilhado dos grâo-duques transforma dos em car-
regadores) e de quem conservo uma lembrança niti-
da: ele serrava sua madeira sobre um cavalete formado
por duas cruzes paralelas, apoiadas na extremidade
de seus dois montantes de m aneira a formar aquela
figura em X que chamamos “Cruz de Santo André”
e reunidas por uma travessa perpendicular, o conjunto
chamando-se, muito singelamente, um X.
Minha lembrança nâo é uma lembrança da ce-
na, mas lembrança da palavra, simples lembrança
dessa letra transform ada em palavra, desse substan-
tivo unico na lingua a ter apenas um a ünica letra,
ünico também pelo fato de so ele ter a forma daquilo
que désigna (o tê do desenhista se pronuncia como
a letra que ele représenta, mas nâo se escreve “T ”),
mas signo também da palavra que se anula com um
risco — a seqüência de x sobre a palavra que nâo se
quis escrever —, signo contraditorio da ablaçâo [em
neurofisiologia, onde, por exemplo, Borison e McCar-
thy (J. Appl. Physiol., 1973,34:1-7) opôem aos gatos
intatos {intact), gatos dos quais cortaram seja os nervos
vagos ( VAGX ), seja os nervos carotidianos (CSNX)]
e da multiplicaçâo, da ordenaçâo (eixo dos X) e da
incognita matemâtica, ponto de partida enfim de uma
geometria fantasmâtica em que o V desdobrado cons-
titui a figura de base e cujas combinaçôes mültiplas
traçam os simbolos maiores da historia de minha in-
fância: dois V ligados pelas pontas desenham um X;
prolongando as hastes do X por segmentos iguais e

95
perpendiculares, obtém-se uma cruz gamada ( JJj ),
ela propria facilmente decomponfvel, por uma rota*
çâo de 90° de um dos segmentos em 5 sobre seu ân-
gulo inferior, no signo % ; a superposiçâo de dois V
em posiçôes invertidas leva a uma figura ( XX ) da
quai basta reunir horizontalmente as hastes para ob-
ter uma estrela judaica ( $ ). É na mesma perspecti-
va que me lembro de ficar impressionado pelo fato
de Charlie Chaplin, em O grande ditador, ter substi-
tuido a cruz gamada por uma figura idêntica (do pon-
to de vista de seus segmentos) que adquire a forma
de dois X entrecruzados ( \ ).

Atrâs da casa de campo havia um grande roche-


do, de dificil acesso frontal — parece-me lem brar ter
visto um de meus pseudoprimos, certamente Nicha,
empreender vitoriosamente a escalada — mas facil­
mente acessfveî por trâs: a unica dificuldade consis-
tia em transpor uma “chaminé” apoiando, na ausên-
cia de qualquer irregularidade propicia, os ombros,
os quadris e as palmas das mâos num lado do vâo,
com os pés es cor a dos no outro. O orgulho que devo
ter sentido ao cabo dessa modesta façanha sem duvi-
da explica que ela tenha sido imortalizada: posei pa­
ra uma foto (um pé ligeiramente à frente, as mâos
atrâs das costas) no alto do rochedo: quase nâo se per-
cebe o efeito de contra-plongée, e deve-se evidente-
mente deduzir que esse grande rochedo nâo dévia ser
na verdade tâo alto.
Tenho os cabelos cortados muito curtos, visto
uma camiseta clara de mangas curtas e um short mais

96
escuro e de confecçâo bastante curiosa: nâo parece ter
braguilha e se abotoa dos lados; nâo é impossfvel que
fosse um short de minha prima Ela, alias é muito gran­
de para mim, nâo tanto em comprimento (pude veri-
ficar em outras fotos — de Henri e de Paul, entre ou­
tras — que as calças curtas chegavam facilmente, na
época, quase até os joelhos), mas em largura, o que
sublinha o tamanho do cinto que o prende à cintura;
tenho as pernas nuas, muito bronzeadas; talvez meus
joelhos tivessem tendência a se tocar (parece que, ao
chegar em Villard, eu era muito raquitico, mas isso
quase nâo é visivel na foto); estou com sandâlias bran-
cas que deviam ser de borracha ou imitaçâo de bor-
racha; olho diretamente para a objetiva, com a boca
entreaberta e um meiô sorriso; minhas orelhas sâo
imensas e bastante salientes.

Nâo creio ter morado por muito tempo em Les


Frimas, talvez somente durante as primeiras semanas
apos minha chegada a Villard, no final da primave-
ra de 1942. Lembro que meu tio tinha uma belissi-
ma bicicleta de corrida, que Ela de vez em quando
usava, e com a quai ele podia ir a Grenoble e voltar
no mesmo dia, o que me parecia uma extraordinâria
façanha. Lembro também que minha tia fazia talha-
rim cortando tiras na massa aberta sobre uma mesa
de madeira salpicada de farinha, tiras longas e estrei-
tas que depois ela punha a secar. Outra vez ela che-
gou a fabricar sabâo, com uma mistura de soda e gor-
dura bovina (e talvez até cinzas).

97
Embora cronologicamente impossfvel, jâ que ela
sô teria podido desenrolar-se em pleno inverno, e a des-
peito do desmentido de que foi objeto mais tarde, é
nesse primeiro e curto perfodo que me obstino em si-
tuar a seguinte cena: desço com m inha tia a estrada
que leva à aldeia; no caminho, minha tia encontra uma
senhora, sua amiga, a quem digo bom-dia estenden-
do a mâo esquerda; alguns dias antes, fazendo pati-
naçâo no gelo na pista que se estende abaixo dos Bains,
fui derrubado por um treno pequeno; cai de costas e
quebrei a omoplata; é um osso que nâo dâ para en-
gessar; para que ele pudesse reconstituir-se, prende-
ram-me o braço direito nas costas com todo um siste-
ma de contençâo que me impedia o menor movimen-
to, e a m anga direita de meu casaco pende no vazio,
como se eu fosse defmitivamente maneta.
Nem minha tia nem m inha prima Ela guarda-
ram lembrança alguma dessa fratura que, suscitan-
do o compadecimento gérai, era para mim fonte de
uma inefâvel felicidade.
Em dezembro de 1970 fui passar uns dias na ca­
sa de um amigo que vivia em Lans, a sete quilôme-
tros de Villard, e la conheci um pedreiro chamado
Louis Argoud-Puix. Nascido e criado em Villard, ti-
nha aproximadamente minha idade e nâo tivemos ne-
nhum a dificuldade para evocar a lembrança de um
colega comum, Philippe Gardes, cujos pais hospeda-
ram por um bom tempo Marc, Ada, Nicha e Paul
e cuja irmâ mais velha mais tarde veio a casar-se com
Nicha. Quando de meu ültimo ano em Villard, fre-
qüentei a escola püblica com Philippe. Louis Argoud-
Puix me afirmou que havia feito toda a escola com
Philippe, mas nâo se lembrava em absoluto de mim.

98
Perguntei-lhe se estava lembrado do acidente que me
teria ocorrido. Tam bém nâo se lembrava, mas nâo
deixava de surpreender-se muito, pois conservava a
lembrança précisa de um acidente exatamente idên-
tico tanto em suas causas (patinaçâo no gelo, choque
do trend, queda de costas, fratura da omoplata) co-
mo em seus efeitos (impossibilidade de engessar, re-
curso a uma contençâo de aparência mutiladora)
ocorrido a esse mesmo Philippe num a data que alias
nâo soube precisar.
O fato aconteceu, um pouco mais tarde ou um
pouco mais cedo, mas nâo fui sua vitima heroica e
sim um a simples testemunha. Como no episodio do
braço na tipoia da estaçâo ferroviâria de Lyon, per-
cebo bem o que aquelas fraturas eminentemente re-
parâveis e que demandavam apenas uma imobilizaçâo
temporâria podiam substituir, ainda que a metâfo-
ra, hoje, me pareça inopérante para descrever com
precisâo o que havia sido quebrado e que sem düvida
era inütil esperar encerrar no simulacro de um mem-
bro fantasma. Mais simplesmente, essas terapêuticas
imaginârias, menos de contençâo que de apoio, esses
pontos de suspensào, designavam dores nomeâveis e
vinham no momento oportuno justificar caricias cujas
razôes reais so eram dadas em voz baixa. Seja como
for, e tâo remot amen te quanto me lembro, a palavra
omoplata e sua comparsa, a palavra clavicula, sem-
pre me foram familiares.
16

Apôs diversas tentatives, reflexos de desavenças


entre tendências ortodoxas que pretendiam restringir-
se as provas dosJogos antigos ou, no mâximo, aos doze
escolhidos para osJogos de Atenas de 1896 e tendên­
cias modernistas que desejavam introduzir outras dis­
ciplinas, como a halterofilia, a ginâstica e ofutebol,
a Administraçâo dos Jogos acabou por fixar em 22
o numéro de provas a disputer.
Com exceçâo da luta greco-romana {que aqui é
na verdade uma espécie de luta em que os adversâ-
rios, além de se baterem com mâos nuas, podem dar
golpes com o cotovelo, estando estes envolvidos com
faixas de couro chumbadas), todas essas provas per-
tencem ao que os americanos chamam o track and
field, isto é, o atletismo. Doze sâo corridas, entre as
quais très de velocidade {100 m, 200 m, 400 m), duas
de distancia média {800 e 1500 m), très de fundo
{5000 m, 10 000 m, maratona), quatro de obstâculos
{110 m com barreiras, 200 m com barreiras, 400 m
com barreiras, 3000 m com fossos): sete sâo compe-
tiçôes, entre as quais très provas de salto (altura,
distancia, salto triplo) e quatro de arremesso {peso,
martelo, disco e dardo). A essas dezenove provas de
atletismo se acrescentam duas competiçôes mistas que

100
combinavam varias disciplinas, o pentatlo e o deca-
tlo. Muito inexplicavelmente, mas talvez por razôes
morfolôgicas, o salto com vara nâo é, ou nâo é mais,
praticado. Também nâo hâ provas de revezamento;
elas nâo teriam aqui nenhum sentido, nâo seriam
compreendidas pelo publico: a vitôria de um homem
é sempre a vitôria de sua équipé, a vitôria upor équi­
p é ” nâo quer dizer nada.
Para garantir o interesse dosJogos é preciso évi­
dent emente que a luta entre os représentantes das al-
deiasseja renhida. Assim, cada aldeia tem de alinhar
concorrentes no inicio de cada prova e deve, porcon-
seguinte, formar seus homens tendo em vista essa obri-
gaçâo. Com isso o treinamento dos Atletas obedece
a uma especializaçâo intensa e procura-se formar, pa­
ra cada tipo de prova, aqueles que serâo os melhores
nessa prova e somente ne la.
O efetivo de uma aldeia oscila entre 380 e 420
Atletas. Entre estes, um numéro varidvel (entre cin-
qüenta e se tenta ) de noviços {sâo rapazes de catorze
anos que, vindo das Casas de jovens, chegam à aldeia
à medida que os veteranos a abandonam ) e um nu­
méro invariâvel de concorrentes, 330 divididos em 22
équipés de quinze Atletas cada uma. Quando um
Atleta deixa sua équipé, seja por ter atingido o limi­
te de idade, seja por nâo ser mais capaz de nenhuma
performance aceitâvel, seja por causa de um aciden-
te, os Dire tores esportivos escolhem, entre os noviços
■mais antigos {eles têm entâo dezessete ou dezoito anos),
o que lhes parece, com base em critérios morfolôgi-
cos, fisiolôgicos e psicolôgicos e também a partir dos
resultados obtidos no treinamento, o mais capacita-
do para ocupar seu lugar.

101
As provas de classificaçâo regularmente pratica-
das em cada aldeia para cada équipé permitem de-
terminar quais os très melhores dentre esses quinze
Atletas. Sâo esses très Atletas classificados que repre-
sentam a aldeia nos campeonatos locais, nas provas
de seleçao e nas Olimpiadas. Os dois melhores têm,
além disso, o direito,ferozmente cobiçado, de parti-
cipar das Atlantiadas. Em compensaçâo, sâo os doze
ultimos, isto ê, os Atletas nâo classificados, que to-
mam parte nas Espartaquiadas.
Vê-se que esse modo de repartiçâo de certa forma
dinâsiico responde sobretudo a um cuidado de orga-
nizaçâo; ele permite uma contagem exata e rigorosa
dos Atletas, o que, do ponto de vista das Autorida-
des, reduz ao mâximo todas as operaçoes de contrôle.
Sabe-se de uma vez por todas que hâ, em toda a W,
sessenta sprinters de 100 m rasos divididos em quatro
équipés de quinze, que seis participam dos campeo­
natos locais ou das provas de seleçâo, oito das Atlan­
tiadas, doze das Olimpiadas e 48 das Espartaquiadas.
Sabe-se, do mesmo modo, que as Atlantiadas reûnem
176 concorrentes, as Olimpiadas, 264 e as Espartaquia­
das, 1056. Umavezfixados, esses numéros nâo tarda-
ram a tornar-se imutâveis, incorporaram-se ao ritual
das éliminâtorias; graças a eles, o desenrolar de uma
disputa, seja quaifor, tem sempre garantida uma re-
gularidade absoluta, o que so pode satisfazer a A dmi-
nistraçâo dosJogos, sempre desejosa de eficâcia.
Esse sistema apresenta evidentemente alguns in-
convenientes para os Dire tores esportivos, quer sejam
responsâveis por uma aldeia inteira ou apenas poruma
équipé. 0 mais grave, sem dûvida, é impedir a acumu-
laçâo defunçôes. Sabe-se — as medalhas de ouro da

102
maior parte dos Jogos, as duplas vitôrias de Thorpe
em Estocolmo, de Phll em Anvers, de ÎCuts em Mel­
bourne, de Snell em Tôquio, as tnplices vitôrias de
Zatopec em Helsinque e de Owens em Ber Uni, a qua­
drupla vitôria de Paavo Nurm i em Paris estâo ai para
demonstrâ-lo — que um sprinter êgeralmente tâo boni
nos 100 m rasos quant o nos 200, um corredor de dis-
tância média nos 800 e nos 1500, um fundista nos
5000, nos 10 000 e na maratona. A maior parte dos
Diretores esportivos teria assim o maior interesse, an­
tes de uma grande competiçâo, de ahnhar um mes-
mo Atleta — o que estivesse no melhor de sua forma
— na partida de varias provas. Embora seja teorica-
mente possivel, embora nenhuma lei escrita proîba a
acumulaçâo de funçôes, issojamais aconteceu: nenhu­
ma aldeia jamais se arriscou a indicar num encontro
menos concorrentes do que o normalmente prewsto,
decerto por receio de indispor os Organizadores, quan-
do nâo por que a apresentaçâo dos Atletas as Autori-
dades, por ocasiâo da abertura das Olimpiadas, por
exemplo, simula a forma de um W grandioso dese-
nhado pelos 264 concorrentes, e uma équipé com efe-
tivo reduzido (mas contando com um sô de seus cam-
peôes para arrebatar varias vitôrias) perturbaria a
perfeiçâo desse mosaico humano.
Préféré-se admitir, mesmo se nem sempre isso de
fato se verifica, que os métodos de treinamento sâo
suficientemente apropriados aos diferentes tipos de
prova para que um sprinter, por exemplo, possa ser
especificamente preparado para os 100 métros, en-
quanto um outro o serâ para os 200.

103
Resta, é claro, o caso do pentatlo e do decatlo.
Uma das conseqüências desse treinamento ultra-es-
pecializado é que nâo se ter)i tempo — nem, a bem
àizer, método — paraformar umAtleta capaz de pra-
ticar cmco ou dez provas diferentes coin um minimo
de eficâcia. O treinamento pluridisciplinar que se-
guem os noviços em seus primeiros anos na aldeia
séria ainda o mais bem adaptado, mas os pequenos
esforços empreendidos para realizâ-lo de maneira pro-
fissional, a fim de formar Atletas realmente pouva­
ient es, nâo forum coroados de sucesso. Jsso se explica
Jacilmente: as leis do esporte W, como cada aldeia
logo compreendeu, sdo feitas de toi modo que é pre-
ferivel fazer de tudo para ganhar cinco corridas, com
cmco Atletas preparados para apenas essas corridas,
a uma ûnica vitôria com um ûnico Atleta que triun-
fasse em cinco ou dez provas.
Os Organizadores, de inicio espantados com a
fraqueza verdadeiramente deplordvel dos resultados
obtidos nos decatlos e pentatlos, por pouco nâo su-
primiram essas provas. Mantiveram-nas, afinal, mas
adaptanclo-as de maneira totalmente original à me-
diocndade dos concorrentes: fizeram delas prôvas para
nr, falsas provas destinaclas a relaxar o publico da ten-
sâo extremamente forte que impera durante a maior
parte das competiçoes: ê disfarçados de palhaços, com
os rostos pintados de maneira exagerada, que os con­
correntes do pentatlo e do decatlo entrain no estâdio,
e cada prova é um pretexto para a troça: os 200 mé­
tros rasos sâo corridos a pé-coxinho, os 1500 métros
sào uma corrida com saco, a tâbua de suporte do sal-
to em distância com freqüência é perigosamente en-
sebada etc. A vitôria nessas provas requer por certo

104
algumas aptidôes esportivas,, mas sobretudo qualida­
des de ator, um certo senso da pantomima, da paro­
dia ou do grotesco. Um noviçofazedor de curetas, ou
com tiques nervosos, ou com uma leve desvantagem,
se é raquûico, por exemple, ou se coxeia ou arrasta
um pouco a pem a, ou se apresenta alguma tendên-
cia à obesidade, ou, ao contrario, se é de uma ma-
greza extrema, ou se possui um forte estrabismo, corre
o grande risco ~~ mas com freqüência se correm ris-
cos ainda maiores que o de se entregar àsfacécias de
um pûblico folgazâo — de iniegrar a équipé do pen­
tatlo ou do decatlo.
É também ai — ranssimo exemplo de mudança
de équipé — que poderâ participât, caso tenha con-
tado com os apoios necessârios, um Atleta afastado
para sempre da competiçâo em conseqüência, por
exemplo, de um acidente, se ainda forjovem demais
para usufruit os direitos dos veteranos e manifesta-
mente inapto para vir a ser treinador.
17

Inicialmente fui colocado num pensionato para


crianças dirigido por um certo sr. Pfister (talvez um
sufço). Louis Argoud-Puix afirma que esse pensiona-
to se chamava Le Clos-Margot, emboi'a em minha va-
ga e remota lembrança tivesse um nome de pâssaro
(Les Mésanges, por exemplo). Parece que nessa épo-
ca, segundo m inha tia, eu nâo sabia am arrar meus
sapatos; talvez fosse uma das condiçoes exigidas para
ser aceito no pensionato (como saber cortar o bife,
saber abrir e fechar uma torneira, beber âgua sem
derram ar, nâo fazer xixi na cama etc.).
O pensionato ficava bem perto das Frimas, e du­
rante essa época, que acredito ter durado apenas al-
guns meses, tive certamente contatos freqüentes com
minha familia adotiva. É assim que me lembro de um
dia acompanhar minha tia Esther à casa de sua cunha-
da Berthe, no Iglu; elas se instalaram na sala e Ber-
the me disse para ir brincar la em cima com seu filho
Pfenri que dévia ter entâo doze ou treze anos. Nâo
sei por que conservo uma lembrança muito précisa
da escada, muito estreita e muito ingreme. Encon-
trei Henri e um de seus primos distantes, chamado
Robert (sua tia era a mulher do primo de seu avô ma-
terno), sentados no châo, muito envolvidos num jogo

106
de batalha naval movel (variante bastante compli-
cada da batalha naval em que os navios, como se
sabe, têm o direito de se deslocar durante a partida;
terei a oportunidade de voltar a falar desse jogo); eles
nâo me deixaram entrar na partida, afirmando que
eu era muito pequeno para compreender seu meca-
nismo, o que me humilhou bastante.

Do mundo exterior eu nada sabia, exceto que ha-


via guerra e, por causa da guerra, refugiados: um des-
ses refugiados se chamava N orm and e morava num
quarto na casa de um senhor chamado Breton. E a
primeira piada de que me lem bro.11'
Havia também soldados italianos, caçadores al-
pinos com uniformes, parece-me, de um verde ber-
rante. Nao os viamos muito. Diziam que eles eram
bobos e inofensivos.(*)

(*) N o rm a n d e B re to n sâo ta m b é m a djetivos re fe re n te s aos h a ­


b ita n tes d a N o rm a n d îa e d a B re ta n h a , d u a s provincias vizinhas no O este
d a F ra n ç a . (N . T .)

107
___ ____ ____ ___ _________________________ ______________ ____ ___ - ■■- --------------------------------------- -
E claro que a organizaçâo de base da vida espor:
tiva em W (a existência das aldeias, a composiçâo das
équipés, as modalidades de seleçâo, para dar dessa
organizaçâo apenas exemplos elementares) tem por
finalidade ûnica exacerbar a competiçâo, ou, se qui-
serem, exaltar a vitôria. Desse ponto de vista, pode-
se dizer que nao existe sociedade humana capaz de
rivalizar com W. O struggle for life é a lei aquz; mas
a luta em si também nada significa, nao é o amor do

_
esporte pelo esporte, da façanha pela façanha, que
anima os homens W, e sim a se de da vitôria, da vitô­
ria a qualquer preço. 0 pûblico dos estâdios jamais
perdoa a um Atleta ter perdido, e nâo poupa seus
aplàusos aos vencedores. Gloria aos vencedores! A i dos
venctdos! Para o esportista profissional que é o cida-
dâo de uma aldeia, a vitôria é a ûnica saida possivel,
a umca chance. A vitôria em todos os niveis: em sua
prôpna équipé, nas disputas com as outras aldeias,
nos Jogos, enfim e sobretudo.
Como todos os outros valores morais da socieda­
de W, essa exaltaçâo do triunfo encontrou na vida
cohdiana sua expressâo concreta: cerimônias grandio-
sas sâo dadas em honra dos Atletas vitoriosos. É ver-
dade que os vencedores sempre foram celebrados, que

108
subiram ao pôdio, que para elesfoi tocado o hino de
sua naçâo, que receberam medalhas, troféus, taças,
diplomas, coroas, que sua cidade natal fez deles cida-
dàos eméritos, que seu govemo os condecorou. Mas
essas celebraçoes e homenagens em nada se compa-
ram com as que a naçâo W réserva a seus vencedores.
Toda noite, quaisquer que tenham sido as competi-
çôes disputadas no dia, os très primeiros de cada sé­
rie, apôs terem subido ao pôdio, apôs terem sido lon-
gamente aplaudidos pela multidâo, que lhes lançou
flores, confetes, lenços, apôs terem recebido das mâos
dos caligrafos oficiais o diploma brasonado que imor-
taliza seu feito, apôs terem. tido o insigne privilégio de
içar a bandeira de sua aldeia no alto dos mastros olim-
picos, os très primeiros de cada série sâo conduziclos,
precedidos dos portadores de tochas e estandartes, dos
lançadores de pombas e das fanfarras, aos grandes sa-
lôes do Estâdio Central, onde é preparada para eles
uma recepçâo ritual, cheia de brilho e munificência.
Eles retiram seus abrigos e sâo convidados a escolher
um traje magnifie o} uma casaca enfeitada, uma capa
de seda com galôes rutilantes, um uniforme rendado
coberto de condecoraçôes, um fraque, um gibâo com
peitilho pregueado e omamentos de renda. Sâo leva-
dos até diante das Autoridades, que brindam à sua
saûde, congratulando-o$. Sâo arrastados num turbi-
Uxâo de brindes e libaçôes. Oferecem-lhes um banqueté
que se prolonga quase até o amanhecer: as iguarias
mais requintadas lhes sâo oferecidas, os vinhos mais
capitosos, as cames mais finas, as guloseimas mais sa-
borosas, as bebidas alcoôlicas mais embriagadoras.
As festas celebradas no momento dos grandesfo-
gos têm evidentemente mais amplitude e mais brilho

J 09
que as /estas dadas aos vencedores dos campeonatos
de classificaçâo ou dos campeonatos locais. Mas essa
diferença, poracentuada que seja, nâo é essencial para
a compreensâo do sistema de valûtes praticado em W.
O que em contraparticla é muito mais signi/icativo,
e que constitui inclusive um dos traços mais originais
da sociedade W, nâo é que os vencidos sejam exclu-h
dos dessas /estas — isso séria apenas justiça — mas
que sejam purci e simplesmente privados da re/eiçâo
da noite. É/dcil compreender, com e/eito, que, se tanto
vencedores como vencidos recebessem comida, o uni-
co privilégio dos vencedores séria o de obier uma co­
mida de melhor qualidade, uma comida de /esta em
vez de uma comida cotidiana. Os Organizadores, nâo
sem razao, consideraram que isso talvez nâo fasse su-
/iciente para dar aos A t le tas a combatividade ne ces-
sâria a competiçôes de alto nivel Para que um Atleta
vença, primeiro é précis o que queira vencer. Pot cer-
to a preocupaçâo com sua glôria pessoal, o desejo de se
ficar/amoso, o orgidho nacional constituem motiva-
çoes poderosas. Mas, no instante crucial, no momento
em que o homem deve dar o melhor de si, em que deve
ir além de suas forças e buscar num derradeiro es/or-
ço a energia que lhe permitirâ conquistar a vitôria,
nâo é inutil que o que esteja entâo emjogo dependci
de um mecanismo quase elementar de sobrevivência,
de um rejlexo de de/esa tornado quase instintivo: o
que o Atleta espera de sua vitôria é muito mais que
o prestigio, necessariamente/ugaz, de ter sido o mais
forte, é a garantia, pela simples obtençâo dessa re/ei­
çâo suplementar, de uma melhor condiçâo flsica, a
certeza de um melhor equilibrio alimentât e, conse-
qüentemente, de uma melhor forma.

110
É aqui que se poderâ apreciar até que ponto o
sistema de alimentaçâo W se inséré de maneira sutil
no sistema global da sociedade e se toma inclusive uma
de suas articulaçôes essenciais. É claro que a ausên-
cia da refeiçâo da noiie nâo constûui em si uma pri-
vaçâo vital. Se tal acontecesse, hâ muito nâo haveria
mais vida esportiva, nem mesmo simplesmente vida,
em W: com efeito, um câlculo elementar mostra que,
no melhor dos casos, o dos campeonatos de classifi-
caçâo, apenas 264 Atletas, de um total de 1320, têm
oportunidade de jcintar. Apôs os campeonatos locais
ou as provas de seleçâo, nâo hâ mais que 132 e, no
fincd dosJogos, restam apenas 66, ou seja, exatamenle
um em cada vinte. A grande maiona dos Atletas sé­
ria, portanto, cronicamente subnutrida. Isso nâo acon-
tece: seu régime comporta très refeiçôes por dia, a pn-
meira de manhâ bem cedo, antes do circuito pelas
aldeias, a segunda ao meio-dia, ao final das sessôes
de treinamento, a terceira às quatro horas da tarde,
durante o intervalo tradicional que sépara as elimt-
natôrias dasfinais. Em compensaçâo, essas refeiçôes
sâo calculadas de forma a nâo satisfazer todas as ne-
cessidades dietéticas e energéticas dos atletas. 0*açû-
car esta quase completamente ausente delas, assim
como a vitamina B l, indispensâvel à assimilaçâo dos
glicidios. Os Atletas sâo portanto submetidos de mo­
do permanente a um régime de carência que, a mé-
dio ou longo prazo, arrisca comprometer seriamente
sua resistência àfadîga muscular. A refeiçâo dos ven­
cedores, com suas frutas frescas, sens vinkos doces,
suas bananas se cas, suas tâmaras, suas geléias de mo-
rango, suas compotas, seus medalhôes de chocolaté,
constûui assim, desse ponto de vista, uma verdadeira

111
recuperaçâo glictdica, indispensâvel à boa condiçâo
dos Atletas.
O inconvéniente desse mêtodo, obviamente, é
que ele cotre o risco, ao favorecer os vencedores e
penaiizar com severiclade os vencidos num dominio
precisamente ligado às condiçoes fisiolôgicas da com-
petiçâo, de acentuar as diferenças entre os atletas e
culminât numa espécie de sistema em circuito fecha-
do: os vencedores do dia, recompensados na mesma
noite pot uma raçâo suplementar de açucar, têm to-
das as chances de set também os vencedores do dia
seguinte, e assim pot diante, uns sendo cada vez maïs
vigorosos, os outros cada vez mais fracos. Claro que
isso tiraria todo inter esse das competiçôes, os resulta-
dos sendo, por assim dizer, conhecidos de antemao.
Para atenuar esse inconveniente, 05 organizadores nao
tomaram nenhuma medida especial; em vez de proi-
birem aos vencedores a entrada nos estâdios no dia
seguintë a sua vitôria — medida evidentemente con­
traria ao espirito mesmo da vida em W —, eles prefe-
riram, dando prova uma vez mais de sua sagaciclade,
de seu profundo conhecimento do coraçâo humano,
confiât naquilo que chamam, rindo, a natureza. A
experiência lhes deu razâo. Os vencedores nâo sâo ex-
cluîdos das competiçôes do dia seguinte. Mas, na
maioria das vezes, passaram a noite acordados e sô
voltaram a seus alojamentos para a chamada mati­
nal. Desejosos de açucar, precipitaram-se sobre as
comidas, empanturraram-se como glutôes. Embria-
gados por sua vitôria, foram levados a responder a
todos os brindes que se erguiam em sua homenagem,
misturando vinhos e lieores até rolar debaixo da me-
sa. Compreende-se facilmente por que, em tais con-

112
diçoes, é rarissimo um Atleta tviunfar duo,s vezes se-
guidas. A sabedoria aconselharia o vencedor a refrear-
se, a recusar ou, pelo menos, a hmitar as hbaçôes,
a consumir com moderaçâo alimentos escolhidos. Mas
para os laureados festejados as tentaçôes sâo tao fo r­
tes que séria preciso uma aima szngularmente auste-
ra para resistir. Ninguém os impele a isso, alias, nem
as Autoridades — pelo contrario, elas os convidam
a todo instante a esvaziar seus copos — nem os Dire-
tores esportivos, que, preocupados com o bem-estar
de sua équipé, têm todo o interesse em que uma per­
muta râpida dos vencedores assegure o mais rapida-
mente possivel ao maior numéro de Atletas a indis­
pensâvel contribuiçâo energética dessas refeiçôes da
noite.

113
19

O Colégio Turenne, também chamado o Cam-


panârio, era um prédio rosa, bastante grande, de
construçâo certamente recente, situado a pouca dis-
tância de Villard, uns quinhentos métros depois das
Primas, como vim a descobrir corn espanto quando
voltei a visitâdo em dezembro de 1970, tanto em rai-
nha lembrança era um lugar terrivelmente afastado,
aonde ninguém jamais vinha, aonde as noticias nâo
chegavam, onde aquele que havia cruzado seu limiar
nâo tornava a cruzâ-lo.
O colégio era uma instituiçâo religiosa, dirigida
por duas irmâs (talvez tanto no sentido familiar quan-
to religioso do termo) que imagino, mais que volto
a ver, vestindo longas tunicas cinzentas e tra'zendo à
cintura énormes molhos de chaves. Eram severas e
pouco inclinadas à ternura. O diretor de estudos, ao
contrario, era de uma grande delicadeza e eu tinha
por ele um sentîmento proximo da veneraçâo; cha-
mava-se padre David, era um monge franciscano ou
dominicano, envergava um a tunica branca, com um
cinto de corda trançada de cuja extremidade pendia
um rosârio. Qualquer que fosse o tempo, andava com
os pés nus dentro das sandâlias. Que eu me lembre
eïe era calvo e usava uma grande barba ruiva. Se*

114
gundo m inha tia, era um judeu convertido, e foi tal-
vez tanto por proselitismo quanto por medida de pro-
teçâo que ele exigiu que Q.u fosse batizado.
Nâo sei como foi minhe educaçâo religiosa e es-
queci tudo que me inculcaram do catecismo, exceto
que me dediquei a seu estudo com um fervor e uma
devoçâo exagerados. Conservo, em todo caso, uma lem-
brança extremamente précisa de meu batismo, cele-
brado num dia do verâo de 1945. Na mesma m anhâ
eu fizera um voto de pobreza, isto é, decidira que,
para começar, usaria na cerimônia de batismo as rou-
pas que usava todos os dias. Havia me retirado para
um canto da horta que ficava atrâs do colégio e esta-
va mergulhado em oraçôes quando apareceram as di-
retoras e duas empregadas. Estavam me procurando
havia uma hora. Agarraram-me e, apesar de meus
protestos, despiram-me, jogaram-me numa cuba cheîa
de âgua frla e me esfregaram sem amenidade com sa-
bâo de Marselha — ou seu équivalente na época —
antes de me obrigarem a vestir um fantâstico terno
azul-marinho. Meu ünico consolo foi ficar com meus
sapatos, que nada tinham de cerimonial.
O terno azul-marinho pertencia a meu padrinho,
um rapazinho belga refugiado em Villard com a ir­
ma, que foi m inha m adrinha. Mais tarde me disse-
ram que eles eram filhos de um a das damas de honra
da rainha da Bélgica. Certamente foi deles que rece-
bi como présente de batismo um a espécie de imagem
em relevo da Virgem com o Menino, emoldurada com
douraduras, que contemplei com devoçâo a tarde in-
teira, dispensado de estudar, sentado no fundo da clas­
se, e que à noite pendurei acima de meu leito.

115
'

No dia seguinte de m anhâ devolvi o terno, mas


minha pîedade e minha fé permaneceram exempla-
res e o padre David me nomeou chefe religioso de meu
dormitorio, encarregando-me de dar o sinal para a
oraçâo da noite e de zelar por sua boa execuçâo. Cer-
tas manhas, eu obtinha a permissâo de me levantar
antes dos outros e assistir à missa que, auxiliado por
um ünico sacristao, o padre David celebrava para si
e para as duas diretoras na capelinha com a via-crücis
estilizada cujo campanârio dava ao colégio seu cog­
nome. Meu maior desejo era ser aquele sacristao, mas
isso era impossfvel: antes eu tinha que fazer minha
primeira comunhâo, depois minha comunhào sole-
ne, e até minha crisma. Eu conhecia os sete sacra-
mentos e a crisma me parecia o mais misterioso de
todos, talvez porque se realizasse uma ünica vez (ao
contrario da comunhâo — ou eucaristia — e da con-
fissâo — ou penitência —, que poclem ser até coti-
dianas) e porque sua inutilidade profunda (para que
confirmar o que o batismo jâ enunciou?) se acom-
panha de um cerimonial que pôe em cena um ver-
dadeiro dignitârio da Igreja, um bispo, um homem
oficial, uma personalidade, uma personagem com di-
mensôes para mim quase historicas e cujo équivalen­
te eu ainda nâo conhecia, nâo prestando atençâo nem
nos générais — que dezoito meses ou dois anos mais
tarde haveriam de ser meus idolos —, nem nos mi-
nistros, nem nos campeôes esportivos que, alias, na-
queles tempos perturbados, nâo tinham milita oca-
siâo de rnanifestar-se.
Um bispo foi ao colégio crismar, dando-lhes um
tapa na face — tanto mais simbolico por nâo se pa-
recer em absoluto com o que eu sabia ser uma bofe-

116
tada, uma palm ada ou um sopapo —, alguns dos in ­
térims, provavelmente dos mais velhos. A cerimônia,
tâo fabulosa quanto fabulada, teve lugar ao ar livre;
para minha grande decepçâo, o bispo nâo portava sua
m itra nem seu bâculo; vestia um a batina prêta e ape-
nas uma estola e um barrete roxos testemunhavam.
sua elevada condiçâo. Lembro-me de que senti mui-
ta vontade de tocâ-lo, mas nâo sei se consegui.

Tenho uma vaga lembrança das litanias, a vaga


impressâo de ouvir ainda a interminavel ladainha dos
“Orai por nos” repetidos em coro apos cada nome de
santo. A essa lembrança se associa a dos jogos de pa-
lavras, em que a seqüência dos numéros leva, geral-
mente bem depressa, a um trocadilho: “Une gare,
deux gares, trois gares, quatre gares, cinq gares, ci­
gare?', ou ainda: "Pie un, Pie deux, Pie trois, Pie qua­
tre, Pie cinq, Pie six, Pissette!”.*

Lembro-me também de “Sou cristâo, eis minha


gloria, m inha esperança e meu sustento”, mas natu-
ralmente esqueci a continuaçâo, assim como nâo sei
mais o que vem depois de “Nasceu a divina criança,
tocai oboés, ressoai gaitas de foies...”.

(*) Esse tipo de b rin ca d eira verbal e m uico p rô p rio da lingxia fran-
cesa. N o p rim e iro caso, lia u n i jo g o e n tre g a re (“e staç âo fe rro v ia ria ",
ou tam b é m “c u id a d o r) e cigare (“c h aru to "); no segundo, en tre p ie (“pe-
g a ” ; “ta g a re la ”) e p issette (“m ija d in h a ”). (N . T .)

117
20

Desde a fundaçâo de W, ficou decidido que os


nomes dos pnmeiros vencedores seriam conservados
com devoçâo na mémo via dos homens e que seriam
dados a todos aqueles que os sucedessem na vitôria.
O costume se impôs a partir das segundas Olimpia-
das: o vencedor dos 100 métros rasos recebeu o titulo
de Jones, o dos 200 métros o titulo de MacMillan, os
dos 400, dos 800, da maratona, dos 110 métros com
barreiras, do salto em distância e do salto em altura
foram respectivamente chamados Gustafson, Millier,
Schollaert, Kekkonen, Hauptmann e Andrews.
A prâtica logo se generalizou e foram designa-
dos segundo o mesrno principio os vencedores das Es-
partaquiadas e das provas de seleçâo, depois os dos
campeonatos locais e dos campeonatos de classifica-
çâo. Enfim, os segundo s e terceiros, que a principio
haviam sido glorificados pela adjunçâo a seus nomes
dos qualificcitivos honorïficos “de prata” e “de bron­
ze”, também passaram a receber como titulo o nome
do mais antigo dos que haviam ocupado seu lugar.
Era évidente que aqueles titulos, ostentados co­
mo medcdhas, simbolos de vitôria, nâo tardariam a
t omar-se mais importantes que o nome dos A t letas.
Por que dizer de uni vencedor: ele se chama Martin,

118
ele é campeâo oltmpico dos 1500 métros, ou: ele se
chama Lewis, classifie ou-se em segundo no salto tri-
plo na disputa local de W contra Oeste- W, quando
é suficiente dizer: ele é o Schreiber, ou: ele é Van den
Bergh. O abandono dos nomes prôpnos correspon-
dia à lôgica W: em pouco tempo a identiclade dos
A tletas se confundiu com o enunciado de seus desem-
penhos. A partir dessa idêia-chave — um atleta nâo
é senao suas vitôrias ~~ edificou-se um sistema ono-
mâstico tâo sutil quanto rigoroso.
Os noviços nâo têm nomes. Sâo chamados “no-
viço Podem ser reconhecidos por nâo terem o W nas
costas de seus abrigos, mas um grande triângulo de
tecido branco, costurado com a ponta para baixo.
Os A tletas em atividade nâo têm nomes, mas
apelidos. Esses apelidos foram, na origem, escolhi-
dos pelos proprios A tletas; faziam alusâo seja a par-
ticularidades ftsicas (o Mago, o Nariz Achatado, o
Lâbio Leporino, o Ruivo, o Carapinha), seja a qua­
lidades morais (o Astuto, o Fogoso, o Molengâo), se­
ja a particularidades étnicas ou regionais (o Fnsio,
o Sudeto, o Insular). Posteriormente foram acrescen-
tadas denominaçoes quase completamente arbitrârias
que se inspiravam, se nâo na antropommia indige-
na, ao menos em sua imitaçâo escoteira: Coraçâo de
Bisâo, Jaguar Veloz etc.
A Administraçâo jamais viu com bons olhos a
existência desses apelidos que, muito populares entre
osAtletas, ameaçavam desvalorizar o uso dos nomes-
titulos. Além de jamais tê-los aceito oficialmente {para
ela, um Atleta, afora os nomes que podem valer-lhe
suas vitôrias, sô é designado pela inicial de sua aldeza
acompanhada de um numéro de identificaçâo), tam-

119
bém conseguiu, porum lado, restringir seu uso ao in-
terior das aldeias, evitando assim que se popularizas-
sem nos estâdios e, por outro, impedir sua renovaçào.
Os apelidos sâo doravante hereditârios: o Atleta que
abandona sua équipé deixa ao noviço que o substitut
seu nome oficial (isto ê, seu numéro de identificaçâo
na aldeia) e seu cognome. Foi engraçado, durante al-
gum tempo, verumgigante batizado “magricela”, ou
um obeso atendendo ao cognome de “baixote”. Mas,
a partir da terceira geraçâo, os apelidos perderam to-
do o seu poder evocador. Desde entâo nâo eram mais
que referências inexpressivas, pouco mais humanas
que as matrîculas oficiais. A partir de entâo sô con-
tavam os nomes dados pelas vitôrias.
O modo de classificaçâo dos Atletas e a organi-
zaçâo das competiçôes fazem haver menos nomes que
A tletas (o que é évidente, uma vez que os nomes assi-
nalam as vitôrias) e que um Atleta — e essa é uma
particularidade notâvel do sistema de nomes W —
possa ter vârios nomes.
Dos campeonatos de classificaçâo saem 264 no­
mes, 66 por aldeia, que correspondent aos très pri-
meiros em cada uma das 22 disciplinas praticadas.
Os quatro campeonatos locaisfornée em quatro vezes
66 outros, ou seja, também 264; as duas provas de
seleçâo acrescentam duas vezes 66, isto é, 132. As
Olimpiadas e as Espartaqufadas têm cada uma 66 ven-
cedores, ou seja, mais uma vez 132 nomes. As Atlan-
tiadas, enfim, que consistem numa prova inteiramente
particular, têm um numéro indeterminado de ven-
cedores (geralmente de cinqüenta a oitenta), todos
com o direito ao mesmo nome, o de Casanova. Ha
portanto, no total, em W, 793 nomes. Mas, jâ que os

120
campeonatos locais, as Seleçôes, as Olimpîaàas e as
Atlantiadas sâo disputadas pelos vencedores dos cam­
peonatos de classificaçâo, dai decorre que os 264 Atle­
tas classificados e jâ providos de um nome graças a
sua vitôria nos campeonatos de classificaçâo irâo dis-
putar 463 dos 529 titulos restantes, enquanto para os
1056 Atletas nâo classificados restarâ a disputa dos
66 nomes postos emjogo nas Espartaquiadas. Em su-
ma, dos 1320 Atletas em exercicio, ao todo 330 Atle­
tas terâo direito a uma identidade oficial, 264 graças
aos campeonatos de classificaçâo e às outras compe-
tiçôes, 66 graças às Espartaquiadas. Os 66 campeôes
das Espartaquiadas nâo poderâo portât outros titu­
los senâo o que tiverem ganho nessas provas; os ou­
tros, ao contrario, poderâo acumular até seis nomes.
Assim, um corredor dos 400 métros rasos de Norte- W
pode:
— ser Westerman, ao classificar-se em primei-
ro lugar no campeonato de classificaçâo de Norte- W;
— ser Pfister, ao classificar-se em segundo lu­
gar no campeonato local W contra Norte-W;
— ser Cummings, ao classificar-se em segundo
lugar no campeonato local Norte-W contra No-
roeste-W;
— ser Grunelius, ao chegar em primeiro lugar
na seleçâo Norte - W contra Oeste- W;
— receber o titulo prestigioso do Gustafson, ao
triunfar nas Olimpiadas (para o vencedor das Olim-
piadas, faz-se précéder o nome do artigo definido, co-
mo acontece com as cantoras, e diz-se “o Gustafson"
“o Jones”, “o Kekkonen” etc.);
— ser enfim Casanova, ao figurât entre os ven­
cedores de uma Atlantiada.

121
Sâo esses seis nomes que, inscritos em seu qua-
dro de honra, constituirâo seu tûulo oficial e que, res-
peitando uma hierarquia imutâvel, ele pronunciarâ
desta forma quando tiver de se apresentar diante das
Autoridades: o Gustafson de Grunelius de Pfister de
Cummings de Westerman-Casanova.
Claro que essas denominaçôes, ainda que ofîciais,
sâo de duraçâo variâvel. O tûulo de campeâo olim-
pico é um dos mais sôlidos, jâ que sô hâ uma Olim-
piada por ano; o tûulo de Casanova é posto emjogo
todos os meses, a cada A tlantiada; os tûulos prove-
mentes das vitôrias obtidas nas seleçôes, nos campe o-
natos locais e nos ca?npeonatos de classificaçâo devem
ser defendidos quase toda semana.
O tûulo de campeâo oltmpico, o mais estâvel,
e portanto o mais disputado, représenta uma culmi-
nância na carreira de um Atleta. Rapidamente se
estabeleceu o costume de conseruar seu privilégio para
quem o conquistou uma vez, mesmo se jamais repe-
tiu a façanha. Assim como é chamado para o resto
da vida “senhor Présidenten aquele que foi, ainda
que apenas por uma semana, présidente do Conse-
lho} também é vitallcia a denominaçâo “o Kekko-
nen” para quem venceu os 110 métros com barrei-
ras nas Olimpûidas, ainda que sb uma vez. Toda-
via} para nâo confundir esse, ou melhor, esses, pois
sâo vârios, Kekkonen de honra com o Kekkonen em
exercicio, transformasse ligeiramente o tûulo, em gé­
rai com a duplicaçâo da primeira sûaba. Diz-se as­
sim o Kekekkonen, o Jojones, o MacMacMillan, o
Schoschollaert, o Andrandrews, para assinalar os ex-
vencedores olimpicos dos 110 métros com barreiras,
dos 100 métros rasos, dos 200 métros rasos etc.

122
Esses tîtulos hononficos sâo bem mais que sim­
ples marcas de respeito. Com efeito, o costume quer
que diversos privilégios sejam associados aos nomes.
Os Atletas classificados (isto é, que têm pelo menos
um nome) têm o direito de locomover-se livremente
pelo Estâdio Central. Os que têm dois nomes (por
exemplo, Amstel-Jojones, 3? nos 100 m de N.-O. -W,
ex-campeâo oltmpico) têm direito a duchas suplemen-
tares. Os que têm très nomes (por exemplo, Moreau-
Pfister- Casanova, 2? dos 400 m W , 2? dos 400
W-N.- W> vencedor da Atlantiada) têm direito a um
treinador particular que se chama o Oberschrittma-
cher, isto é} o Treinador Gérai, certamente porque o
primeiro a ter ocupado esse posto era alemâo; os que
têm quatro nomes têm direito a um abrigo novo etc.

123
21

Uma vez, os alemaes vieram ao colégio. Era de


m anhâ. De longe avistamos dois deles — oficiais —
atravessando o patio em companhia de uma das
diretoras. Comparecemos as aulas como de hâbito,
mas nâo tornamos a vê-los. Ao meio-dia correu o
boato de que eles haviam apenas examinado os
registros do colégio e de que haviam ido embora re-
quisitando o porco que o cozinheiro estava criando
(lembro-me do porco: era enorme; alimentava-se
exclusivamente de cascas de legumes).

Outra vez, minha tia Esther foi me visitar.


Fotografaram-nos juntos. Atrâs da foto esta escrito,
nâo sei por quem, “1943”. Ao fundo vêem-se os Al­
pes, trechos de florestas, campos, um vilarejo e um
grande chalé branco com o telhado muito inclinado,
parcialmente truncado (“telhado pata de ganso”, se-
gundo diversos dicionârios), caracteristico das habi-
taçôes de m ontanha. Sete individuos —- quatro per-
tencentes a diversas espécies animais, très à espécie
huraana — aparecem em primeiro piano. Sâo, da di-
reita para a esquerda (na foto): a) uma cabra prêta
com algumas manchas brancas, parcialmente cortada
pela margem direita da foto; ela tem uma barbicha

124
muito comprida; provavelmente esta presa a um a es-
taca e parece nâo perceber que a fotografam; b) mi-
nha tia; veste uma calça de la cinza, com bainha vi-
rada bem estreita, pregas bastante marcadas, blusa
(ou camlsa) clara, de mangas curtas ou arregaçadas,
casaco de la angora colocado sobre os ombros e reti-
do por um ünico botâo superior. Nâo parece usar
jdias. Esta penteada com uma risca no meio, cabelos
puxados e presos atrâs. Sorri de modo um tanto me-
lancolico; segura nos braços c) um cabrito branco com
cabeça prêta que nâo parece muito satisfeito e que
olha para a direita, em direçâo à cabra que é prova­
velmente sua mâe; d) eu proprio; com a mâo esquer-
da seguro uma das pernas do cabrito; com a direita
estendo, como se quisesse mostrar seu interior à pes-
soa que esta nos fotografando, um grande chapéu
branco, de palha ou lona, que com certeza pertence
a minha tia; visto calças curtas de tecido escuro, uma
camisa xadrez tipo cow-boy, de mangas curtas (por
certo uma daquelas de que terei ocasiâo de falar no-
vamente), e um pulôver sem mangas. Minhas meias
estâo esgarçadas; m inha barriga esta um pouco estu-
fada. Meus cabelos estâo cortados muito rente, mas
mechas irregulares me caem sobre a testa. Minhas ore-
Ihas sâo grandes e bastante salientes; inclino um pouco
a cabeça para a frente e, com um ar um tanto con-
trariado, olho para a câmera de baixo para cima.
Muito nitidam ente à esquerda e atrâs do grupo for-
mado por m inha tia, o cabrito e eu vêem-se é) uma
galinha branca, semi-encoberta por j) uma campo-
nesa de uns sessenta anos, vestindo um longo vestido
escuro e um grande chapéu de palha que lhe oculta
quase por completo o rosto; esta com um a mâo na

125
cintura; ao lado delà, g) um cavalo de pêlo escuro,
com arreios, munido de viseiras, cortado em parte pela
margem esquerda da fotografia. Bem embaixo na fo-
to, à direita, percebe-se uma boisa de couro vagabun-
do ou imitaçâo de couro com grandes alças, que tal-
vez pertença a minha tia.

Outra vez, tenho a impressâo de que, juntamente


com muitas outras crianças, estâvamos juntando o feno
quando alguém veio correndo avisar-me que minha
tia havia chegado. Corri na direçâo de uma silhueta
de roupa escura que, vindo do colégio, dirigia-se até
onde estâvamos através do campo. Parei de repente,
a poucos métros delà: nâo conhecia a senhora que es-
tava à minha frente e que me dizia bom-dia sorrindo.
Era minha tia Berthe; mais tarde, fui morar quase
um ano na casa delà; talvez entâo ela tenha me lem-
brado essa visita, ou entâo foi um acontecimento in-
teiramente inventado, no entanto conservo com uma
nitidez absoluta a lembrança, nâo da cena toda, mas
de meu sentimento de incredulidade, hostilidade e des-
confiança naquele momento: ainda hoje ele perma-
nece b as tan te difïcil de exprimir, como se fosse a re~
velaçâo de uma “verdade” eîementar (de agora em
diante você so sera procurado por estranhas e você hâ
de buscâ-las e rechaçâ-las constantemente; elas nâo
lhe pertencerâo, você nâo lhes pertencerâ, pois você
so saberâ mantê-las à parte...) cujos meandros eu ain­
da estaria a percorrer.

Juntar o feno consistia sobretudo em empilhar


com o forcado alguns feixes e em seguida deslizar ou

126
dar cambalhotas enquanto a meda nâo estivesse muito
alta. Contavam-nos um acidente que havia ocorrido
a uma garotinha: sakando do alto de uma meda, ela
caira sobre um forcado dissimulado no meio do feno
e uma das hastes lhe atravessara completamente a
coxa.
De outra vez fomos colher mirtilos. Guardo a
imagem bucolica de uma multidâo de crianças aga-
chadas sobre toda a extensao de um a colina. Servia-
mo-nos de um instrumento chamado “carda”, um
minüsculo cesto de madeira com a borda inferior pro-
vida de dentes e que recolhia a cada passagem bagas
em parte esmagadas, espécie de papa enegrecida que
nâo tardava a nos deixar completamente manchados.

Durante todo o inverno, e mesmo depois, prad-


cava-se esqui. Por isso nos anos posteriores, e até a
metade dos anos 50, quando parei completamente de
freqüentar “os esportes de inverno”, tive muita faci-
lidade com esquis, descendo, sem me im portar com
estilo ou liçôes mas com alegre despi~eocupaçâo, qual-
quer pista de dificuldade média e podendo até, even-
tualmente, encarar as mais perigosas. Lembro-me
inclusive de ter começado a aprender a saltar em pe-
quenos trampolins de neve batida,
A prâtica do esqui constituiu para mim a oca-
siâo de um aprendizado profundo, sendo que o es-
sencial se produziu naqueles dois anos passados no Co­
légio Turenne e é a fonte de um saber hoje caduco,
mas cujos detalhes conservam, todos, um notâvel fres-
cor. Assim, sei que os mais bel os esquis sâo de hico-
ria, madeira canadense que sempre achei que fosse

127
um dos materiais mais raros do mundo (mas a rari-
dade da hicoria era uma das provas de sua existên-
cia, ao passo que havia coisas inteiramente ausentes
e acerca das quais nos perguntâvamos como podiam
existir, por exempîo as laranjas (primeiro é um mé­
tal precioso, depois um habitante dos céus, o conjun-
to uma fruta deliciosa...*), de que terei ocasiâo de
voltar a falar, ou entâo os chocolatés recheados, ou,
melhor ainda, o papel prateado, dobrado em pape-
lotes ou em barquinhas, que envolve esses chocola­
tés...). Do mesmo modo, sei que o tam anho idéal dos
esquis se calcula da seguinte maneira: é preciso ficar
de pé, braços e mâos erguidos como uma prolonga-
çâo do corpo, e a ponta do esqui mantido vertical-
mente deve vir apoiar-se no meio da palma da mao.
Quanto à altura idéal dos bastôes, é preciso segurâ-
los com os braços dobrados e os cotovelos colados ao
corpo, e a ponta dos bastôes deverâ entâo roçar o so­
lo. Eu poderia multiplicar os exemplos, quer se trate
da calcadura das pistas (a colônia de crianças pondo-se
em fila, com os esquis perpendiculares ao eixo da en-
costa, e subindo aos saltinhos), da lubrificaçâo do es­
qui (diversas qualidades de graxa, identificadas pela
cor da embalagem de papelâo: azul para a neve mais
fina, ver de para a normal, vermelha para o schuss,
branca para o esqui de fundo etc.; aquecer a graxa
antes de aplicâ-la; passar primeiro uma camada de
parafina translücida; raspar as graxas muito velhas,
nâo engordurar a linha média dos esquis, evitar lu-
brificar as lâminas, mas, ao contrario, afiâ-las etc.),

(*) A p a la v ra orange (“la ra n ja ”, em fran cês) é fo rm a d a d e or (“ou-


ro ”) e ange (“an jo "), o q u e expHca a fb rm u la ç â o d a a d iv in h a . (N . X )

128
das escaladas das encostas (numa época em que so ex-
cepcionalmente havia “subidas mecânicas”: subidas
perpendiculares à encosta (calcando a neve com os
esquis), subidas em ziguezague, subidas acompanhan-
do o eixo da encosta, ou entâo com esquis retos (pro-
vidos de peles de focas), ou abertos em V, com o corpo
apoiado para trâs, sobre os bastôes etc.), do equipa-
mento (importância do calçado; engraxar os sapatos;
se nâo, esfregâ-los com bolas de papel jornal; fusôs,
anoraks, luvas, bonés ou gorros, oculos etc.), enfim,
e sobretudo, dos sistemas de fixaçâo: meus esquis se
prendiam junto aos tornozelos; eram duros de fechar
(fazia-se alavanca com a ponta de ferro do bastâo),
nâo se fixavam bem no pé e ao menor movimento se
abriam; eu sonhava com presilhas que se fecham na
frente do calçado e cujo fio metâlico que se encaixa
na depressâo do calcanhar tem a forma de uma pon­
ta de lança; ou, mais ainda, com aquele sistema ex-
traordinariam ente complexo de prender o esqui, re-
servado no topo da hierarquia aos quase profissionais
(e foi enorme m inha surpresa no dia em que vi mi-
nha prim a Ela usando esse sistema), que utiliza uma
tira ünica mas desmesuradamente longa, passada e
repassada em volta do calçado um numéro incalcu-
lâvel de vezes de acordo com um protocolo aparente-
mente imutâvel, cujo desenrolar me dava a impressâo
de uma cerimônia fundamental (tâo fundamental, tâo
decisiva quanto me pareceu, mais tarde, a forma co­
mo era preso o cinto em As arenas sangrentas, de
Blasco Ibanez, ou a metamorfose indum entâria do
cardeal Barberini em Urbano vin no Galüeu do Ber-
liner Ensemble) e que assegurava ao esquiador a in-
dissolüvel uniâo de seus esquis e seus calçados, multi-

129
plicando tanto os riscos de fratura grave quanto as
chances de desempenhos excepcionais...

Guardâvamos nossos esquis num corredor de ci-


mento, comprido e estreito, guarnecido de suportes
de madeira (voltei a vê~lo, malterado, em 1970). Um
dia, um de meus esquis me escapou das mâos e bateu
de leve no rosto do rapaz que estava a meu lado guar-
dando seus esquis e que, furioso, pegou um de seus
bastôes de esquiar e me desferiu um golpe no rosto
com a ponta do bastâo, abrindo-me o labio superior.
Suponho que ele também me quebrou um ou dois
dentes (ainda eram apenas dentes de leite, o que nâo
apressou o crescimento dos outros). A cicatriz résul­
tante dessa agressâo ainda hoje é perfeitamente visf-
vel. Por razoes mal elucidadas, essa cicatriz parece ter
tido para mim uma importância capital: tornou-se
uma m arca pessoal, um sinal distintivo (no entanto
nâo é considerada “um sinal particular” em minha
carteira de identidade, somente em meu certificado
militar, e acho que porque eu mesmo rive o cuidado
de assinalâ-la): talvez nâo seja por causa dessa cica­
triz que uso barba, mas é provavelmente para nâo
dissimulâ-la que nâo uso bigode (ao contrario de um
antigo colega de classe — que perdi de vista desde
os vinte anos — que, atormentado, é o caso de dizê-
lo, por um sinal labial que julgava demasiado carac-
teristico, no caso, parece-me, nâo um a cicatriz mas
uma verruga, desde muito cedo deixou crescer um bi­
gode para ocultâ-lo); foi essa cicatriz também que me
fez preferir a todos os quadros reunidos no Louvre,
e mais precisamente numa sala chamada “dos sete mé­
tros”, o Retrato de um homem, dïto O Condottiere,

130
de Antonello de Messina, que veio a ser a figura cen­
tral do primeiro romance mais ou menos acabado que
consegui escrever: ele se intitulou inicialmente Gas­
pard pas mort, depois Le condottiere; na versâo final,
o heroi, Gaspard Winckler, é um falsarîo de talento
que nâo consegue forjar um Antonello de Messina e
élevado, aposessefracasso, a assassinar seu comandi-
târio. O condottiere e sua cicatriz desempenharam
igualmente um papel prépondérante em Un homme
qui dort (por exemplo, p. 105: “...o retrato incrivel-
mente enérgico de um homem da Renascença, com
uma minüscula cicatriz acima do lâbio superior, à es-
querda, isto é, à esquerda para ele, à direita para vo-
cê...”) e até no filme que rodei com Bernard Que-
ysanne em 1973 e cujo ünico ator, Jacques Spiesser,
tem no lâbio superior uma cicatriz quase exatamente
idêntica à minha: tratava-se de um simples acaso, mas
que para mim foi secretamente déterminante.

131
22

As leis do Esporte sâo leis duras e a vida W as


agrava ainda mais. Aos privilégios concedidos em to-
dos os dominios aos vencedores se opôem, quase com
excesso, os vexâmes, as humilhaçôes, as troças impos­
tas aos vencidos; elas beiram às vexes a crueldade,
como o costume, em princîpio proibido mas diante
do quai a Administraçào fecha os olhos, pois o pübli-
co dos estâdios lhe é muito afeito, que consiste em fa-
zer o ultimo colocado em uma prova correr em volta
da pista com os calçados postos ao contrario, exerci-
cio que parece ameno à primeira xdsta mas que na
verdade é extremamente doloroso e cujas conseqiiên-
cias (contusoes dos dedos, bolhas, exulceraçôes do
peito do pé, do calcanhar, da planta ) praticamente
proibem sua vîtima de ter esperança de obter uma
classificaçâo honrosa nas competiçôes dos dias se­
guin tes.
Qitanto mais festejados os vencedores, tanto mais
punidos os vencidos, como se afelicidade de uns fosse
o exato oposto da infelicidade dos outros. Nas corri­
das de rotina — campeonatos de classificaçâo, cam-
peonatos locais — osfestejos sâo escassos e os castigos
quase inofensivos: alguns gracejos, algumas vaias, al-
gumas troças sem importância, nâo maiores que as

132
penas impostas aos perdedores nos jogos de prendas.
Mas quant o mais importantes as competiçôes, tanto
mais séria a aposta, tanto para uns como para outros:
o triunfo reservado ao vencedor de uma Olimpiada,
e mais particularmente ao que tiver ganho a corrida
das corridas, isto é, os 100 métros rasos, terâ talvez
como conseqüëncia a morte do que tiver chegado por
ûltimo. É uma conseqüëncia ao mesmo tempo impre-
visîvel e inelutâvel. Se os D eus es estiverem a seu fa-
vor, se ninguêm no Estâdio estender em sua direçao
o punho com o polegar abaixado, ele sem dûvida te­
râ a vida poupada e sofrerâ apenas os castigos reser­
vado s aos outros vencidos; como estes, deverâficar nu
e correr entre duas fileiras de Juizes armados de va-
ras e chibatas; como estes, ficarâ exposto no pelouri-
nho e depois terâ que percorrer as aldeias com uma
pesada goliïha de condenado presa ao pescoço. Mas
se um ûnico espectador erguer-se e designâ-lo, exi-
gindo para ele a puniçâo reservada aosfracos, entâo
ele morrerâ; a multidâo inteira irâ apedrejâ-lo e seu
cadâver esquartejado serâ exposto por très dias nas
aldeias, pendurado nos ganchos de açougueiro exis­
tent es nos pôrticos principais, sob os cinco anéis en-
trelaçados, sob a orgulhosa divisa de W — f o r t i u s
a l t i u s c i t i u s —, antes de ser lançado aos câes.

Essas mortes sâo raras, Sua multiplicaçâo lhes tor-


naria o efeito quase nulo. Elas sâo tradicionais para
os 100 métros rasos das Olimpiadas e excepcionais pa­
ra todas as outras disciplinas e todas as outras com­
petiçôes, Pode acontecer, é verdade, que o pûblico
dos estâdios, tendo posto todas as suas esperanças num
Atleta, sinta-se particularmente decepcionado pela
mediocridade de sua performance e resolva atacâ-lo,

133
geralmente bombardeando-o compedras ouprojéteis
diverses, fragmentos de escumalha, restos de ferro,
cacos de vidro, alguns dos quais podem revelar-se par-
ticularmente perigosos. Mas, na maior parte do tem­
po, os Organizadores se opôem a tais vias de fato e
intervêm para protéger a vida dos Atletas ameaçados.

Mas a desigualdade dos tratamentos reservados


aos vencedores e aos vencidos esta longe de ser o unico
exemplo de injustiça sistemâtica na vida W. 0 que
faz a originalidade de W, o que conféré às competi-
çôes algo de unico e picante que as distingue de qual-
quer outra é que justamente a imparcialidade dos
resultados proclamados — da quai os Juizes, os Âr-
bitros e os Cronometristcis sâo, na ordem respectiva
de suas responsabilidades, os implacâveis defensores
— baseia-se numa injustiça organizada, fundamen-
tal, elementar, que, desde o inicio, instaura entre
os participantes de uma corrida ou de um concurso
uma discriminaçâo que na maioria das vexes sera
decisiva.
Essa discriminaçâo institucional é a expressâo de
uma polûica consciente e rigorosa. Se a impressâo do­
minante que residta do espetâculo de uma corrida é
a de uma total injustiça, isso se deve ao fato de que
as Autoridades nâo se opôem à injustiça, Ao contra­
rio, consideram-na o fermento mais eficaz da luta;
pensam que um Atleta magoado, revoltado pelo ar-
bitrio das decisôes, pela iniqüidade das arbitragens,
pelo abuso de poder, pelas intervençoes, o favoritis-
mo quase exagerado que os Juizes demonstram a to-
do instante, sera cem vezes mais combativo que um
Atleta persuadido de que mereceu sua âerrota.

134
Épreciso que mesmo o melhor nâo esteja seguro
de ganhar; é preciso que mesmo o mais fraco nâo es­
teja seguro de perder. E preciso que ambos corram
idêntico risco, esperem com a mesma esperança in-
sensata a vitôria, com o mesmo terror indizwel a
derrota.
A adoçâo dessa polûica audaciosa levou a uma
série de medidas discriminatôrias que podem, gros-
seiramente, ser classificadas em dois grupos principais:
as primeiras, que poderiam ser chamadas de oficiais,
sao anunciadas no inîcio das reuniôes; consistem em
gérai em handicaps, positivos ou negativos>impostos
a Atletas ou a équipés ou até mesmo a uma aldeia
inteira. Assim, por exemplo, por ocasiâo de um en-
contro de W contra Noroeste-W (ou seja} de um
encontro de seleçoes) a équipé dos 400 m W (Hogarth,
Moreau e Perkins) pode ter que correr 420 m, enquan-
to a équipé Noroeste- W (Friedrich, Russell, DeSou-
za) sô correrâ 380 m. Ou entâo, nas Espartaquiadas,
por exemplo, todos os concorrentes de Oeste-W serâo
penalizados em cinco pont os. Ou ainda, o terceiro ar-
remessador de peso de Norte- W (Shanzer) terâ direito
a uma tentativa suplementar.
As segundas medidas sao imprevisweis; sâo dei-
xadas ao capricho dos Organizadores, e em particu-
lar dos Dire tores de corridas. O publico também po­
de participar, mas em proporçao bem menor. A idêia
gérai é introduzir numa corrida ou num concurso élé­
ment os perturbadores que ora minimizarâo os efei-
tos dos handicaps de partida, ora os acentuarâo. E
nesse esptrito que as barreiras das corridas de obstâ-
culos sâo às vezes ligeiramente deslocadas para um dos
concorrentes, o que o impede de transpô-las com um

135
pé de apoio e o obriga a um sapateio que em gérai
se révéla desastroso para seu desempenho . Ou entâo,
no auge de uma corrida, um Ârbitrofalacioso p 0de
às vezes gntar STOP: os concorrentes devem entâo
imobilizar-se, deter-se em pleno impulso numa posi-
çâo geraiment e msuportâvel, e quem conseguir man­
ier a posiçao por mais tempo provavelmente sera pro-
clamado vencedor.

136
23

Numa quinta-feira à tarde da primavera ou do


verâo de 1944, fomos passear na floresta levando nos-
sas merendas, ou melhor, o que nos haviam dito ser
nossas merendas, em sacolas. Chegamos a uma cla-
reira, onde nos esperava um grupo de maquisards.
Demos a eles nossas sacolas. Lembro-me de que fi-
quei muito orgulhoso de compreender que o encontro
nâo fora em absoluto obra do acaso e que daquela
vez o costumeiro passeio da quinta-feira fora apenas
o pretexto escolhido para reabastecer os Resistentes.
Acho que eles eram uns doze: nos, as crianças, dévia-
mos ser perto de trinta. Para mim, evidentemente,
eles eram adultos, mas hoje penso que nâo deviam
ter muito mais de vinte anos. A m aioria usava b ar­
ba. Apenas alguns tinham armas; um deles, em par-
ticular, trazia granadas penduradas nos suspensorios
e foi esse detalhe que mais me impressionou. Sei hoje
que eram granadas defensivas, lançadas para efeitos
de proteçao durante o recuo e cujo involucro de aço
em guilhochê explode em centenas de fragmentos
mortiferos, e nâo granadas ofensivas, lançadas à frente
no momento de partir para o ataque e que causam
mais medo e barulho que danos. Nâo me lembro se
aquele passeio foi excepcional ou se se repetiu varias

137
vezes. Muito tempo depois fiquei sabendo que as di-
retoras do colégio “eram da Resistência”.

Conservo a lembrança bem mais mtida de um


outro passeio, um a tarde, poucos dias antes do N a­
tal, muito provavelmente em 1943. Éramos bem me-
nos numerosos, talvez apenas meia duzia, e acho que
eu era a ünica criança (na volta fiquei cansado e o
professor de ginâstica me carregou nos ombros). Fo-
mos à fîoresta buscar nossa ârvore de Natal. Foi nes-
sa ocasiâo que aprendi que os pinheiros e os abetos
eram ârvores completamente diferentes, que o que eu
chamava abeto era na verdade um pinheiro, que as
verdadeiras àrvores de Natal eram abetos, mas que
nao havia abetos em Vîllard-de-Lans, nem mesmo em
toda a regiâo do Dauphiné. O abeto era uma ârvore
muito mais alta, muito mais reta e mais escura que
o pinheiro; para vê-lo era preciso ir até os Vosges. Foi
portanto um pinheiro que abatemos, ou, mais preci-
samente, o topo de um pinheiro cuja base era toda
pelada. Creio que havia em nosso grupo, além do pro­
fessor de ginâstica, o cozinheiro e o porteiro do colé­
gio, que era uma espécie de faz-tudo; decerto foi ele
quem fez as vezes de lenhador; ajustou a seus sapatos
de m ontanha grampos gigantescos como braçadeira
e trepou até o alto da ârvore estreitando-a por meio
de uma correia de couro passada nos seus punhos (bem
mais tarde, aos doze ou treze anos, voltei a ver uma
m anobra quase idêntica, mas dessa vez era a de um
instalador de linhas que se içava até o alto de um poste
telefônico).

138
Na tarde da véspera de Natal, instalamos a â r­
vore no grande hall ladrilhado do colégio. Enfeita-
mos a ârvore e ocultamos o suporte de m adeira que
a m antinha de pé com musgo e uma espécie de papel
castanho que imitava o cascalho e que também usâ-
vamos para fazer o fundo do presépio. Lembro-me
dos tesouros que eram as estrelas, as guirlandas, as
vêlas e as bolas (o resto do ano elas dormiam no sôtâo
do colégio), mas as bolas daquela época nâo eram
como hoje bolhas de vidro muito finas recobertas de
estanho prateado e brilhante, e sim bolas feitas de uma
espécie de papel machê, pintadas de cores nâo muito
vivas.
À noite, talvez depois da missa da meia-noite,
em todo caso, em meu espirito, muito tarde, fez-se
um a brincadeira com o professor de ginâstica que,
como cada um de nos, havia posto seus sapatos em
volta da ârvore (um enorme par de sapatos de esqui
que so podia ser o receptâculo de um présente mirifi-
co), pondo num daqueles sapatos um pacote gigan-
tesco, feito apenas de embalagens superpostas que
encerravam, como ültimo e unico présenté, uma ce-
noura.

Fui dormir. Estava sozinho em meu dormitorio.


No meio da noite despertei. Nâo creio que a questâo
que me afligia tivesse a ver diretamente com Papai
Noël, mas estava impaciente por saber se havia de fato
recebido um présente.
Sai da cama, abri a porta em silêncio e, descal-
ço, percorri o corredor que conduzia à galeria que
dava a volta na parte superior do hall. Apoiei-me con­
tra a balaustrada (ela era quase de minha altura: em

139
1970, quando voltei a visitar o colégio, quis fazer o
mesmo gesto e me espantei ao ver que a balaustrada
chegava apenas à metade de meu corpo.. Acho que
toda a cena se fixou, se cristalizou em meu espirito:
imagem petrificada, imutâvel, da quai conservo a lem-
brança fisica, inclusive a sensaçâo de minhas mâos
agarrando avidamente as grades, inclusive a impres-
sâo do métal frio contra m inha testa quando ela en-
costou na barra de apoio da balaustrada. Olhei para
baîxo: nâo havia muita luz, mas ao cabo de um ins­
tante consegui ver a grande ârvore enfeitada, o mon­
te de sapatos ao redor e, enfiada num dos meus, uma
grande caixa retangular.
Era um présente que me enviava m inha tia Es-
ther: duas camisas xadrez, gênero cow-boy. Elas pi-
cavam a pele. Eu nâo gostava delas.

140
24

Quem corne ça a se familiarizar com a vida W,


um noviço, por exemplo, que, vindo das casas de Jo-
vens, chega por volta dos catorze anos a uma das qua-
tro aldeias, compreenderd bem depressa que uma das
caracteristicas, e talvez a principal, do mundo que do-
ravante ê o seu é que o rigor das instituiçôes $6 se com­
para à amplitude das transgressées de que elas sao ob-
jeto . Essa descoberta, que constituirâ para o neôfito
um dos elementos déterminantes de sua salvaguarda
pessoal, verificar-se-â com freqüência, em todos os m-
veis, a todo instante . A Lei é implacâvel, mas a Lei
é impreviswel. Ninguém deverâ ignora-la, mas nin-
guém pode conhecê-la. Entre os que se submetem a
ela e os que a editam se ergue uma barreira intrans-
ponwel. O Atleta deve saber que nada ê seguro; deve
contar com tudo, para o melhor e o pior; as decisoes
que lhe concemem, sejam futeis ou vitais, sao toma-
das à sua revelia; ele nâo tem o menor contrôle sobre
elas. Pode acreditar que, esportista, sua funçâo ê ga-
nhar, pois é a Vitôria que festejam e é a derrota que
punem; mas ele pode chegar por ültimo e ser procla-
mado Vencedor: naquele dia, por ocasiâo daquela
cornda, alguém, em alguma parte, terâ decidido que
o critério séria quem perde ganha.

141
No entanto os Atletas fariarn mal em entregar-
se a especulaçôes so bre as decisoes tomadas a seu res-
peito. Na maioria das corridas e dos concursos, sâo
efetivamente os primeiros, os melhores que ganham,
e verifica-se quase sempre que hâ interesse em ganhar.
As transgressoes estâo ai para lembrar aos Atletas que
a Vitôria é uma graça, e nâo um direito: a certeza
nâo é uma virtude esportiva; nâo basta ser o melhor
para ganhar, séria simples demais. É preciso saber que
o acaso também faz parte da regra. Uni-du-ni-tê ou
Pomponeta, ou qualquer outro joguinho do tipo, de-
cidirâo às vezes o resultado de uma prova. E mais im­
portante ter sorte que m.érito.

A preocupaçdo de “dar a cada um sua chance”


pode parecer paradoxal num mundo em que a maior
parie das manifestaçôes se baseia num sistema de eli-
minatôrias (os campeonatos de classificaçâo) que im-
pede, em quase todos os casos, quatro entre cinco
A tletas de participar das provas principais. Essa preo-
cupaçâo no entanto é évidente e a ela deve-se a exis-
tência de duas das instituiçôes mais caractensticas da
vida esportiva W: as Espcirtaqutadas e o Siste'ma dos
Desafios.
As Espartaquiadas sâo, como se sabe, jogos aber-
tos aos A tletas “sem nome ”, aos que nâo se classifica-
ram em suas aldeias e portanto nâo participam dos
campeonatos locais ou das provas de seleçâo, nem das
Olimpiadas, nem das Atlantiadas. Ilâ quatro Espar-
taquïadas por ano, uma por trimestre. Sâo provas
muito disputadas e de alto nivel competitivo, embo-
ra opondo entre si os elementos mais fracos das équi­
pés, aqueles que, na gïria do pûblico, sâo chamados

142
‘a infant arm ”, “a Estrebaria” ou “os be duin os”. Com
efeito, tais provas sâo para esses Atletas a ûnica chance
de obier um nome e dispor de algumas das vantagens
(direito às duchas, livre trânsito nos Estâdtos, bons
equipamentos etc.) reservadas aos Atletas nomeados.
Por outra lado, as Espartaquïadas reilnem 1056 Atle­
tas enquanto nas Olimpiadas hâ apenas 264, e com
freqüência o grande numéro de participantes garan­
te uma combatividade excepcional que, das élimina-
tôrias àsfinais, conféré às corridas e aos concursos um
vigor incomum e a todo o encontro um clima bastan-
te nervoso; as recompensas, alias, em gérai correspon-
dem às expectativas e a Vitôria desses desclassifica-
dos é festejada com um calor e um entusiasmo que
os Vencedores das Olimpiadas nem sempre conhecem.
Os vencedores das Espartaquïadas, durante todo o tri­
mestre apôs seu triunfo, gozarâo plenamente de seu
nome e de todas as prerrogativas a ele ligadas; terâo
direito, em particular, a um handicap favorâvel nos
campeonatos de classificaçâo e é quase de praxe que
um Vencedor da Espartaquiada (um Newman, um
Taylor ou um Lômô para os 200 m, por exemple) ven-
ça também no campeonato de classificaçâo seguinte,
e com isso seja integralmente admitido em todos os
outros encontros.
Éôbvio que os Atletas classificados sentem somente
desprezo pelas Espartaquïadas e por seus vencedores.
Logo as autoridades tiveram a idéia de utilizar esse des­
prezo efazer dele o mot or de uma manifestaçâo origi­
nal; dainasceu o Sistema dos Desafios. O princïpio do
Desafio é simples: umAtlela classificado e que portanto
nâo participou da Espartaquiada se aproxima do Ven­
cedor logo apôs sua vitôria e o desafia a repetir sua

143
façanha. Dizem, em gina de estâdio, que ele o “aper~
ta” ou ainda que lhe “dâ um peitaço”. O esparta-
quista nâo tem o direito de recusar; quando muito
pode esperar triunfar de seu adversârio graças ao han­
dicap, às vezes considerâvel, que os Juizes lhe darâo
e que sera determinado pelos Dire tores de corrida em
funçâo nao tanto do estado de fadiga do Vencedor
quant o da qualidade do uâ p e rta d o re m principio,
quanto mais célébré for o apertador (quanto mais no­
mes tiver), tanto maior sera o handicap concedido.
Assim, se oJones de Humphrey d ’A rlington von Kra-
mer-Casanova (por esses nomes se reconhece o se-
gundo sprinter de 100 m de Noroeste- W, Vencedor
olîmpico etc.) desafia Smolett Jr. ( Vencedor dos 100
m nas Espartaqutadas), Smolett Jr. partira com trinta
métros de dianteira, o que, numa distância tao pe-
quena, constitui provavelmente uma vantagem de-
cisiva. Se oJones mesmo assim conseguir triunfar, ira
imediatamente bénéficiai'-se da Vitôria do outro e se
apossarâ nâo so de seu nome (Smollet Jr.), como tam-
bém dos do segundo {Anthony) e terceiro ( Gunther)
da corrida, o que, em principio, lhe assegura vanta-
gens considerâveis. Mas, caso perder, é seu titulo mais
prestigioso que perderâ, o de Jones, o de Vencedor
olimpico, e que doravant e passarâ, com todas as prer-
rogativas aferentes, ao Smolett Jr. {chamado agora
oJones de Smollet Jr. ) que terâ imprudent emente de-
safiado.

O Sistema dos Desafios é, por excelência, uma


arma de dois gumes. Pois, assim como o espartaquista
nâo pode recusar o desafio, nenhtim Atleta classi-
ficado pode recusar-se a lançar-lhe o desafio, bas-

144
tando que a midtidâo ou que uma Autoridade lhe faça
esse pedido. 0 humor das Autoridades, ao fixarem o
handicap que o desafiante concédé ao desafiado, de -

terminarâ por si sô o resuit ado da prova: ou privarâ


o espartaquista da ûnica Vitôria que podia esperar
conquistar, ou destronarâ num instante um Atleta
cujas Vitôrias poderiam ter tornado impudente. Nâo
que as Autoridades se oponham à impudëncia; pelo
contrario, com freqüência a encorajam, divertem-se
com ela. Gostam qxie sens Vencedores sejam os Deu-
ses do Estâdio, mas tampouco lhes desagrada, ao pre-
cipitarem de vez no Inferno dos inominâveis os que
ha pouco acreditavam ter satdo dele para sempre,
lembrar a todos que o esporte é uma escola de mo-
déstia.

145
25

Varias vezes, como naquela noite de Natal, fi-


quei sozinho, ou pelo menos fui a ünica criança a fïcar
no colégio. Eu o explorava em todos os sentidos. Cer-
ta vez, no decorrer de uma tarde de verâo, abri uma
porta que conduzia ao sotâo: era uma comprida pas-
sagem em desvao que recebia luz por estreitas lucar-
nas e repleta de malas e baüs. Num dos baüs, talvez
junto daqueles enfeites de ârvore de Natal de que ja
falei, descobri rolos de filme, certamente educativos,
ou destinados à catequese, que desenrolei para olhar
contra a luz. A maior parte nâo apresentava interes­
se para mim e os recoloquei no ïugar com o maior
cuidado. Um deles mostrava o deserto, com palmei-
ras, oasis, camelos; desse guardei um grande peda-
go, que nâo me cansava de olhar.
Na volta as aulas inventei um estratagema bas-
tante curioso: anunciei a todos os meus colegas que
no ano seguinte iria à Palestina, e mostrava o pedaço
de filme como se fosse a prova de que nâo estava men-
tindo; a operaçâo nâo era puramente desinteressada;
visava a obtençâo de parcelas das merendas que meus
colegas comiam as quatro da tarde: uma vez estabe-
lecxdo o fato de que eu iria à Palestina, eu prometia
a este ou àquele coîega enviar um quilo, ou dez qui-

146
los, ou cem quilos, ou uma caixa, de laranjas, essa
fruta mâgica de que so tmhamos um conhecimento
livresco; se ele me desse l m etade de sua merenda,
receberia a partir do ano stguinte todo um carrega-
mento de laranjas e, como garantia desse mercado a
termo, lhe cederia desde jâ um a ponta do meu peda-
ço de filme. So um garoto se deixou convencer: deu-
me a metade de sua m erenda e logo em seguida foi
correndo me denunciar à diretora. Eu havia rouba-
do e havia mentido. Fui severamente punido, mas nâo
lembro mais em que consistiu a puniçâo.

Essa lembrança brumosa coloca questôes obscuras


que jamais consegui élucidai*. Como se explica que, du­
rante aquele perfodo, que correspondia talvez às férias
de inverno, e por ocasiâo da noite de Natal, eu pudesse
ser a unica criança num colégio que estava no momento
praticamente cheio, nâo de crianças doentias, como
era sua vocaçâo primeira, mas de crianças refugiadas?
Aonde entâo elas iam de férias e quem lhes dava aque-
las merendas das quatro da tarde das quais eu era, inex-
plicavelmente, o ünico a estar privado? E, sobretudo,
como eu podia saber que iria à Palestina? Esse era um
projeto real que m inha tia Esther e m inha avo haviam
concebido, certamente convencidas de que minha mâe
jamais retornaria. Minha avo queria muito que “o me-
nino” (é assim, como fiquei sabendo mais tarde, que
Esther e ela me chamavam) fosse com ela para a Pales­
tina, para Haifa, morar com seu filho Léon. Mas Léon
e sua mulher (que também se chamava Esther) jâ ti-
nham très filhos e hesitaram tanto em adotar um quarto
que minha avo, Rose, acabou indo sozinha, bem de-
pois do fim da guerra, em 1946.

147
Em 1943-44, minha avo tinha um domicflio em
Villard. Um pouco mais tarde foi morar num asilo para
crianças em Lans e me levou junto consigo. Nâo me
lembro de tê-la visto uma ünica vez durante toda a
minha estadia no Colégio Turenne (o que nâo quer
dizer que ela nâo tenha ido; quer dizer apenas que nâo
me lembro). A explicaçâo mais logica séria que deslo-
quei em um ano ou seis meses toda essa cena, que te-
ria se passado em Lans. Mas o cenârio e os detalhes
dessa lembrança, o sotâo, o patio onde se realizaram
minhas desastrosas transaçôes, a catâstrofe materiali-
zada pela irrupçâo da diretora sâo para mim especffi-
cos ao colégio e se opôem formalmente ao pequeno
pensionato de Lans, onde se locaHza uma outra lem­
brança, igualmente forte, igualmente penosa, ou até
mais, porém fundamentalmente diferente.

148
26

A concepçâo das crianças, em W, dâ ensejo a


uma grande festa que é chamada Àtlantiada.
As mulheres Wsâo mantidas em gineceus e sub-
metidas a uma forte vigilância, nâo por temor de que
fujam — sua docilidade ê exemplar>e a visâo que eïas
têm do mundo exterior é antes de pavor — mas para
protegê-las dos homens: numerosos Atletas, com efei-
to, geralmente entre aqueles que as leis implacâveis
do Esporte W afastaram das A tlantiadas, tentam qua-
se diariamente, a despeito das sançôes severas que pu-
nem esse tipo de atitude, penetrar furtivamente no
alojamento das mulheres e alcançar os dormitôrios.
Alias, a ôtica particular que rege a sociedade W en-
contra também aqui uma aplicaçâo original: o rigor
do castigo infligido ao Atleta, com efeito, é direta-
mente proporcional à distância que o sépara das m u­
lheres no momento da detençâo: se fo r surpreendido
nas proximidades da cerca eletrificada em volta do
gineceu, corre o risco de ser fuzilado na hora; se tiver
franqueado a zona das patrulhas, pode pegar aigu-
mas semanas de prisâo; se conseguir transpor os muros
do alojamento, sô receberâ uma simples cacetada, e
se tiver a sorte de chegar aos dormitôrios — toi coisa
jamais se viu, mas nâo é teoricamente imposswel —

149
sera fehcilado publicamenle no Estâdio Central e re-
ceberâ o titulo de Casanova de honra, o que lhe per-
rmtîrâ participai' oficialmente da A tlantiada seguinte.
O numéro de mulheres é bastante restrito. Ra-
ramente ex ce de o meio milhar. O costume manda,
com efeito, que se deixe viver a totalidade dos fühos
homens (salvo se apresentarem no nascimento aigu-
ma malformaçâo que os tome inaptos as competiçoes,
estando entendido que no pentatlo e no decatlo uni
problema fisico menor é frequent emente considera-
do mais como um trunfo que como uma desvanta-
gem), mas que se conserve apenas uma menina de co­
da cinco.
A té treze ou catorze anos, as meninas convivem
com os rapazes nas Casas de Jovens. Depots os rapa-
zes sâo enviados as aldeias, onde se tornam noviços
e mais tarde Atletas, enquanto as meninas vâo para
o gineceu. Là elas se ocupam o dia todo com ativiâa-
des de utihdade pïiblica: tecelagem de maillas, abrigos
e esiandartes, fabricaçâo de calçados, confecçâo das
roupas de cerimônia, tarefas alimentares e domésti-
cas dwersas, a menos, é claro, que estejam para dar
à luz ou que se ocupem, durante alguns meses, dos
recém-nascidos. Jamais saem do gineceu, a nâo ser
para as Atlantfadas.

As Atlantiadas ocorrem mais ou menos a cada


mês. As mulheres presumivelmente fecundâveis sâo
conduzulas ao Estâdio Central, despojadas de suas
roupas e largadas na pista, onde se pôem a correr o
mais râpido que podem. Deixa-se que tomem uma
meia volta de dianteira, e a seguir sâo lançados em seu
encalço os melhores Atletas W, isto é, os dois melhores

150
de cada disciplina em cada aldeia, o que perfaz 176
homens, jâ que hâ 22 disciplinas e quatro aldeias.
Uma volta de pista em gérai é o suficiente para que
os corredores alcancem as mulheres, e com freqüên-
cia é diante das tribunas de honra, seja na prôpna
pista, seja na relva, que elas sâo violadas.

Esse protocolo particular que faz com que as


A tlantiadas nâo se assemelhem a nenhuma outra com-
petiçâo W tem, como se percebe, varias conseqüên-
cias importantes. Em primeiro lugar, priva compte -
tamente os nâo classificados (mesmo se triunfaram nas
ultimas Espartaquiadas) e os terceiros dos campeo-
natos de classificaçâo (por exemplo, Perkins nos 400 m
W, Shanzer no arremesso de peso Norte-W, Amstel
nos 100 m Noroeste-W etc.) de toda chance de obter
uma mulher enquanto permanecerem terceiros ou,
com maior razao ainda, nâo classificados (e isto, mes­
mo se esse terceiro for, nâo obstante, primeiro ou se-
gundo num campeonato local, numa prova de seleçâo
ou mesmo numa competiçâo olimpica). Em segundo
lugar, o numéro de mulheres sendo sempre infenor
a 176 {na verdade, raramente ultrapassa cinqüenta),
a maioria dos Atletas autorizados a disputar a A tlan­
tiada, com freqüência uns dois terços ou às vezes mais,
nâo ira obter absolutamente nada. Enfim, é évidente
que, tendo em vista a prôpria natureza da competi­
çâo e a meia volta de dianteira concedida às mulhe­
res, sâo os corredores de média distancia ou, no mâ-
ximo, os sprinters de 400 m os maiores favoritos. Os
sprinters de 100 m e 200 m perdem geralmente o fô-
lego antes de chegar à meta, os corredores defundo
ou de maratona tem dificuldade de se impor numa

151
distância que raramente excede uma volta do Estâ-
dio, ou seja, 550 métros. Quanto aos nao-corredores,
se os saltadores têm às vezes uma escassa chance, os
lançadores de peso e os lutadores sâo praticcimente
eliminados de antemâo.
Para compensar essas diferenças e estabelecer um
certo equilîbrio, a Administraçâo das Allantt'adas ate-
nuou progressivamente as regras da corrida e admitiu
procedimentos que seriam evidentemente inaceitâveis
no quadro de uma competïçâo normal. Foi assim que
de inicio se tolerou a rasteira e depois, de uma manei-
ra mais gérai, todas as manobras destinadas afazer
um concorrente perder o equilîbrio: encontrâo de
ombros, cotovelada, joelhada, empurrâo com umaou
as duas mao s, percussâo transcutânea do poplité in­
terno, causando uma flexâo reflexa da perna etc.
Durante certo tempo tentaram-se proibir algumas
agressées consideradcts muito violentas, como o estran-
gulamento, a mordida, o uppercut, o golpe do coelho
— golpe seco com os dedos dobrados na altura da ter-
ceira vértebra cervical —, a cabeçada no plexo solar,
o vazamento do olho, os golpes de todo tipo dirigidos
ao sexo etc. Mas como esses ataques se tornafam cada
vez mais frequentes, fo i ficando dificil reprimi-los e
eles acabaram por ser admitidos nas regras. Todavia,
para evitar que os concorrentes ocultassem armas sob
as malhas (nâo armas defogo, cujo uso é evidentemente
proibido aos Atletas, mas, por exemplo, os cinturoes
de couro chumbados que ospugilistas utilizam, aspon-
tas de lança dos arremessadores de dardo, os pesos dos
lançadores de peso, ou diversos instrumentos perfu-
radores, tesouras, garfos, facas, que eles poderiam ter
obtido), o que fana degenerar a competiçâo e a trans-

152
formaria numa camificina de conseqüências impre-
visweis — afinal de contas, sâo os melhores elemen-
tos das aldeias, os melhores Esportistas da Ilha que
sâo admitidos a apresentar-se nas A tlantiadas —, fo i
imposto que os adversârios correriam, tal como as mu-
Iheres que perseguem, inteiramente nus. A unica to~
lerância — que se justifica na medida em que se tra-
ta apesar de tudo de uma corrida a pê, ainda que seu
transcurso seja um tanto conturbado — diz respeito
aos calçados, cujas pontas sâo aguçadas e tomadas
particularme?ite aceradas e lacérantes.

153
27

Nao me lembro exatamente em que época nem


em que condiçôes deixei o Colégio Turenne. Penso
que foi apos a chegada dos alemâes a Villard e pouco
antes de sua grande ofensiva contra o Vercors.
Seja como for, num dia de verâo me vi na estrada
com m inha avo. Ela carregava uma mala grande e eu
uma pequena. Fazia calor. Com freqüência interrom-
piamos a marcha; m inha avo sentava-se sobre a mala
eeu n o châo, ou sobre um marco quilométrico. Aqui-
lo durou um tempo consideravelmente longo, Eu dé­
via ter oito anos e minha avo pelo menos 65, e levamos
toda uma tarde para percorrer os sete quilômetros que
separam Villard-de-Lans de Lans-en-Vercors.

O asilo para crianças onde nos instalamos era


bem menor que o Coïégio Turenne. Nao me lembro
nem de seu nome nem de seu aspecto e, quando vol-
tei a Lans, foi em vâo que tentei identificâ-lo, fosse
nâo sentindo em parte alguma um sentimento de fa-
milîaridade, fosse, ao contrario, decidindo a propo-
sito de qualquer chalé que era aquele, e me esforçando
por extrair de um detalhe de sua arquitetura, da exis-
tência de um escorregador, de um alpendre ou de uma
cancela a m atéria de uma lembrança.

154
Muito mais tarde é que fiquei sabendo que mi­
nha avo se empregara naquele pensionato como co-
zinheira. Como ela praticam ente nâo falava francês
e seu sotaque estrangeiro poderia fazer com que fosse
perigosamente notada, ficou decidido que passaria por
muda.

Tenho um a ünica lembrança daquele pensiona­


to. Certo dia encontraram uma garotinha trancada
num cubiculo onde guardavam as vassouras. Havia
ficado ali varias horas. Todos afirm aram que eu era
o culpado e exigiram que o reconhecesse: mesmo se
nâo o tivesse feito por maldade ou se o tivesse feito
sem saber que era maldade, e com maior razâo ain-
da se nâo o tivesse feito de proposito mas apenas ti­
vesse passado a chave na porta por inadvertência, sem
saber que estava trancando a garotinha na peça, eu
dévia confessâ-lo: ficara a tarde toda na sala de jogos
(parece-ine que era uma peça muito grande, com li-
noleo no châo e très janelas que formavam uma va-
randa) e era portanto o ünico a ter podido trancar
a garotinha. Mas eu sabia muito bem que nâo tinha
feito aquilo nem de proposito, nem sem querer, e me
recusei a confessar. Creio que fui posto de castigo e
que durante vârios dias ninguém falou comigo.
Algum tempo mais tarde — mas esse outro acon-
tecimento nâo é uma outra lembrança, e permanece
indissoluvelmente ligado ao primeiro , estâvamos
novamente nessa mesma sala de jogos. Uma abelha
pousou em minha coxa esquerda. Levantei-me brus-
camente e ela me picou. Minha coxa inchou de for­
ma realmente colossal (foi nessa ocasiâo que aprendi
a diferença que hâ entre uma vespa, essencialmente

155
inofensiva, e uma abelha, cuja picada pode em certos
casos ser mortal; o zangâo nâo pica, mas o vespao, fe-
lizmente raro, é ainda mais temfvel que a abelha). Para
todos os meus colegas, e sobretudo para mim mesmo,
aquela picada foi a prova de que eu havia trancado
a garotinha: o bom Deus é que me havia punido.

156
28

Nenhuma manifestaçâo esportiva W, nem mes-


mo a abertura solene das Olimpiadas, oferece um
espetâculo comparâvel ao das Atlantiadas.
Esse atrativo excepcional se deve em boa parte,
certamente, ao fato de as Atlantiadas, ao contrario
de todas as outras competiçôes, que se desenrolam
num clima de rigor e arrebatada disciplina, transcor-
rerem sob o signo da mais compléta liberdade. Nâo
requerem nem Juizes de Linha, nem Cronometnstas,
nem Ârbitros. Nas corridas normais, quer se trate de
eliminatôrias ou de finais, os doze concorrentes sao
postos na linha de partida dentro de compartimen­
tas gradeados {um pouco semelhantes aos utilizados
para os cavalos de corridas) que o tiro de pistola do
Starter fa z abrir ao mesmo tempo {a menos que um
Juiz facecioso décida retardar por alguns instantes o
mecanismo de abertura de um, de dois ou de todos
os compartimentas, o que geralmente provoca inci­
dentes espetaculares). Nas Atlantiadas, os 176 con-
correntes sâo amontoados na zona de partida; uma
grade de ferro eletrificada, com vârios métros de com­
priment o, é colocada na pista e os sépara das mulhe-
res. Quando as mulheres tomaram distancia suficien-
te, o Starter corta a corrente e os homens podem

157
lançar-se em perseguiçâo de suas presas. Mas nâo se
trata, mesmo no sentido estrito da palavra, de uma
partida. Na verdade, a competiçâo, isto é, a luta, co­
rne çou ha muito tempo. Um terço dos concorrentes
jâ estâo praticamente eliminados, uns porque foram
espancados ejazem inanimados no châo, outros por­
que os golpes que receberam, e particularmente os
ferimentos nos pés e nas pernas ocasionados pelos cal-
çados com pont as, tornam-nos inaptos para realizar
uma corrida, por menor que seja.
Nas Atlantiadas nâo hâ, propriamentefalando,
uma estratégia unica que garant a a vitôria. Cada par­
ticipante deve tentar avaliar suas chances em funçâo
de suas qualidades individuais e decidir sua linha de
conduta. Um bom corredor de média distância, que
sabe que poderâ produzir seu esforço mdximo apôs
trezentos ou quatrocentos métros de corrida, tem evi-
dentemente intéresse em se colocar mais atrâs em re-
laçâo à linha de partida: quanto menos adversârios
tiver atrâs de si, menores serao as chances de ser agre-
dido antes da partida. Ao contrario, um pugilista ou
um lançador de peso, que sabem que nâo têm quase
nenhuma chance na corrida, tentarâo eliminar de
imediato um mdximo de adversârios. Assim alguns
tentarâo proteger-se o maior tempo posswel, enquanto
outros atacarâo de saida. Entre esses dois grupos mais
ou menos definidos, a massa dos concorrentes jamais
sabe muito bem quai a melhor técnica, ainda que o
idéal para eles seja evidentemenie conseguir entregar
seus adversârios mais perigosos — os melhores corre-
dores — à agressividade geralmente cega dos pugi-
listas.

158
Esse esquema elementar se complica considéra-
velmente em razâo das possibilidades de ahança. A
noçâo de aliança nâo tem nenhum sentido nas outras
competiçôes: nelas a Vitôria ê ûnica e pessoal, e é ape-
nas por temor de represâlias que um concorrente que
partiu mal dard, se puder, sua ajuda ao mais bem
colocado de seus compatriotas. Mas, nas Atlantiadas,
e essa é uma de suas caracteristicas especificas, ha tan-
tos Vencedores quantas mulheres a conquistar, e, sen-
do todas as Vitôrias idênticas (pois séria evidentemente
utopico da parte de um concorrente cobiçar uma mu-
lher em particular), éperfeitamente possivel a um gru-
po de concorrentes unir-se contra os outros até a par-
tilha final das mulheres. Essas alianças tâticas podem
assumir dois aspectos conforme os contendores se
aliem segundo sua nacionalidade {ou seja, segundo
sua aldeia) ou segundo sua especialidade. As duas cli-
vagens taras vezes se verificam ao mesmo tempo, em-
bora isso seja perfeitamente possivel, mas em gérai se
sucedem e as vezes com uma rapidez aterrorizante,
sendo sempre um espetâculo espantoso ver, por exem-
plo, um lançador de martelo de Noroeste- W (no caso,
Zacharie ou Andereggen) bâter-se contra um de seus
colegas das outras aldeias, como Olafsson de Mor­
te- W ou Magnus de W, e imediatamente depois unir-
se a ele para atacar seus prôprios compatriotas (Frie­
drich ou Von Kramer, ou Zanucci, ou Sanders etc.).

Mas essas butas preliminares que se desenrolam


na zona de partida antes da corrida propriamente dita
sâo, elas prôprias, também elas, apenas a culminân-
cia, a ûltima manifestaçào, as peripécias ûltimas de
uma guerra — nâo parece que a palavra seja aqui

159
demasiado forte — que, mesmo tendo se desenrola-
do fora das pistas, nâo deixa de ser menos renhida
nem menos mortifera. A razâo dessa guerra é sim­
ples: é que os participantes de uma Atlantiada (os
dois primeiros de cada prova de classificaçâo) foram
designados vârios dias e as vezes até très sémanas
antes, e com isso cada dia, cada hora, cada minuto
foram para os fu tu r os concorrentes a ocasiâo de se
desembaraçar de seus adversârios e aumentar suas
chances de triunfo. E verdaâe que essa luta perma­
nente t da quai a propria competiçâo nâo é senâo o
ponto final, é uma das grandes Leis da vida W, mas
ela encontra aqui, na ocasiâo das Atlantiadas, seu
campo de açâo mais favorâvel, na medida em que
a recompensa ~~~ uma mulher — acompanha ime-
diatamente a Vitôria.

Montam-se armadilhas, arquitetam-se traficân-


cias, alianças se fazem e se desfazem nos bastidores
dos Estâdios, nos vestiârios, nas duchas, nos refeitô-
rios. Os mais experientes procuram negociar seus con-
selhos; compra-se a indulgência de um lutadar: ele
fingirâ que bâte e o outro se fingird de morto até o
sinal do Starter. Quinze ou -vinte dos nâo classifica-
dos, dos beduinos, atraidos pela esperança insensata
de uma vantagem geralmente irrisôria, um meio ci-
garro, uns torrôes de açucar, uma barra de chocola­
té, um pouco de manteiga trazida de um banqueté,
atacam um Campeao de uma aldeia vizinha e o dei-
xam estendido como morto . Batalhas campais irrom-
pem à noite nos dormitôrios. Atletas sâo afogados nos
lavatôrios ou nas latrinas.

160
A A dministraçâo nâo ignora essas disputas de in­
teresse incessantes. Por ioda parte manda afixar car-
tazes proibindo-as; lemb.a que a moral do Esporte
nâo admite o trâfico, que a Vitôria nâo se pode com-
prar. Mas jamais tentou algo sério para pôrfim a is~
so. Parece conformada. E uma prova, para ela, de
que a vigilância dos Atletas esta sempre alerta, que
nâo é somente na pista, mas em toda parte e a todo
instante, que a Lei W se exerce.
As outras competiçôes transcorrem rium silène io
total. E o Diretor da Corrida que, erguendo o braço,
dâ o sinal dos aplausos e das aclamaçoes. Nas A tlan-
tîadas, ao contrario, a multidâo pode, ou melhor, deve
berrar à vontade e seus gritos, captados, sâo retrans-
mitidos a plena potêneia por alto-falantes dispostos
em volta do Estâdio.
As vociferaçôes e os clamores, na pista e nas ar-
quibancadas, sâo tant os, atingem tal paroxismo no
final da corrida, quando os sobreviventes conseguem
enfim se apoderar de suas presas ofegantes, que se po -
deria quase pensar num motim.

161
29

Veio a Libertaçao; nao guardei nenhuma ima-


gem, nem de suas peripécias, nem mesmo das mani-
festaçôes de entusiasmo que a acompanharam e a
seguiram e das quais por certo participe!. Voltei a
Villard com m inha avo e morei alguns meses com ela
no minusculo domicilio que ela ocupava na parte ve-
lha da cidade.
Depois das férias fui para a escola comunal, e
é esse ano escolar (taîvez o “curso elementar, segun-
do ano”, em todo caso o équivalente do terceiro ano
primario) que constitui ainda hoje o ponto de parti-
da de m inha cronologia: oito anos, terceiro ano (co-
mo qualquer outra criança escolarizada em condi-
çôes normais), espécie de ano zéro do quai nâo sei
o que o precedeu (quando, exatamente, aprendi a
1er, a escrever, a contar?), mas a partir do quai pos-
so datar m aquinalmente tudo o que veio a seguir:
1945, a rua des Bauches, o concurso das boisas de
estudo ao quai permanece ligada minha obsessâo pe­
las fraçôes (como reduzi-las); 1946, o Liceu Claude-
Bernard, o primeiro ginasial, o îatim* 1948, o grego*
1949, o Colégio Geoffroy-Saint-Hiïaire, em Étampes
(repito o quarto ginasial, abandono o grego e esco-
Iho o alemâo etc.).

162
Da escola mesmo, praticamente nâo me lembro,
a nâo ser que era o centro de um comércio desenfreado
que tinha por objeto as insfgnias americanas (as mais
conhecidas sendo uma plaça redonda de métal ama-
relo com as iniciais U S em relevo e um a espécie de
medalha mostrando dois fuzis entrecruzados) e os te-
cidos de seda de pâra-quedas. Sei que um de meus
colegas de classe se chamava Philippe Gardes (jâ fa-
lei dele) e fiquei sabendo depois que, provavelmente,
também Louis Argoud-Puix tinha estado na classe.
Foi talvez naquele inverno que eu teria feito, pela
primeira e ültima vez em m inha vida, uma descida
em bobsleigh ao longo da estrada em declive que vai
das Frimas ao centro de Villard. Nâo chegamos ao
fim: mais ou menos na m etade do caminho, à altura
do sitio dos Gardes, quando a équipé inteira (deviamos
ser sete ou oito sobre o bob, que estava amassado e
enferrujado, mas que ainda assim era impression an­
te pelo tamanho) se inclinava para a direita para fa-
zer a curva, eu me inclinei à esquerda e fomos parar
no fundo de uma ravina que margeia aquele ponto
da estrada, apos uma queda de alguns métros, feliz-
mente amortecida pela espessura da neve. Nâo sei se
realmente vivi esse acidente ou se, como jâ se viu nou­
eras ocasiôes, inventei-o ou tomei-o emprestado, mas,
em todo caso, ele ficou como um dos exemplos favo-
ritos de meu “canhotismo contrariado”: com efeito,
eu teria sido canhoto de nascença; na escola me te-
riam obrigado a escrever com a mâo direita; isso te­
ria se traduzido nâo em uma gagueira (o que parece
ser freqüente), mas em uma ligeira inclinaçâo da ca-
beça para a esquerda (sensfvel ainda hâ poucos anos)
e sobretudo em uma incapacidade de distinguer, nâo

163
so a direita da esquerda (isso me valeu a reprovaçâo
em meu exame de motorista: o examinador pediu
que eu virasse à direita e por pouco nâo bâti num
caminhao à esquerda; também contribui para fazer
de mim um remador muito médiocre: nâo sei de que
lado é preciso rem ar para m udar a direçâo do bar-
co), mas também o acento grave do acento agudo,
o côncavo do convexo, o sinal de maior (>) do sinal
de menor (<), e de uma maneira gérai todos os enun-
ciados que implicam com maior ou menor razâo uma
lateralidade e/ou uma dicotomia (hipérbole/parâbo-
la, num erador/denom inador, aferente/eferente, di-
videndo/divisor, caudal/rostral, metâfora/m etom -
mia, paradigm a/sintagm a, esquizofrenia/parandia,
Capuletos/Montecchios, W hig/Tory, guelfos/gibeîi-
nos etc.); isso explica também o gosto que tenho pe-
los procedimentos mnemotécnicos, quer sirvam para
diferenciar o bombordo do boreste pensando na pa-
lavra bateria,* a corte ou lado direito e o jardim ou
lado esquerdo — do palco de teatro — pensando em
Jésus Cristo,** o côncavo e o convexo imaginando uma
cova,*** quer, de maneira mais gérai, para lembrar-
me de pi (que fa im e à faire apprendre un nombre
utile aux sages... ****)} dos imperadores romanos (Ce-

(*) A pro n u n cia francesa de batterie é batri, co m binaçâo de bâ­


bord (“ b o m b o rd o ”) e tri-bord (“boreste"). (N . T .)
(**) T rata -se o riginalm ente de um a m em orizaçâo, p a ra o ator
da C om édie-Française, dos iados do palco do teatro das T u lh erias em
relaçâo à “corte” (ou lado do rei) e ao “ja rd im ” (ou lado da rain h a).
A associaçâo com Jésus Cristo se explica, ap aren tem en te, pelas duas
iniciais. (N. T .)
(***) Cave, em francês, p a ra m em orizar que o côncavo (conca­
ve em francês) form a u m a cova. (N . T .)
(****) Prim eiros versos de um poem a criado pelo m atem atîco
M aurice D ecerf p a ra m em orizar, de acordo com o num éro de letras

164
sautica, Claunégalo, Vivestido, N ertrahadan, M ar­
co) ou de um a simples regra de ortografia (o acento
circunflexo de cime cai no abîme).
Minha avô e m inha tia Esther logo retornaram
a Paris. Fui m orar na casa da cunhada de Esther, m i­
nha tia Berthe, que tinha um filho de quinze anos,
Henri, e morava numa casa de campo situada na parte
baixa de Villard, perto da area de patinaçâo e da pe-
quena pista de esqui que se chaîna, se nâo me enga-
no, Les Bains (havia uma outra que se chamava Les
Clochettes e um a terceira, bem mais dificil e muito
mais afastada, que era La Cote 2000). Parece-me que
a casa era grande; era um a espécie de chalé com uma
grande sacada de madeira. Eu tinha um belo quar­
to, com uma cama no meio. Uma vez adoeci e, para
me curar, Berthe me fez beber uma infusâo de hastes
de cerejas que achei muito ruim. O utra vez ela me
colocou ventosas e a colocaçâo de ventosas permane-
ce intimamente ligada a um a operaçâo culinâria que
Berthe praticava com freqüência: o corte de peque-
nas rodelas de massa, usando um copo e seguindo uma
ordem rigorosa para aproveitâ-la o mais economica-
mente possfvel, rodelas essas dispostas a seguir numa
chapa untada e levada ao forno, e que depois se trans-
formavam em biscoitos ou, ao cabo de operaçôes ain-
da mais delicadas, em pequenos croissants recheados.

de cada palavra, a seqüência dos décim ais de pi (3,1415926535...). Em


O hom em que calculava, M alba T a h a n oferece um verso correspon-
dente em português p a ra os nove prïm eiros algarism os: “Sou o m edo
e tem or constante do m enino vadio”. (N . T .)

165
30

A criança W ignora quase tudo do mundo onde


ira viver. Durante os catorze primeiros anos de sua
vida deixaram-na, por assirn dizer, fazer o que qui-
sesse, sem buscar inculcar-lhe nenhum dos valores tra-
dicionais da sociedade. Nâo lhe deram o gosto do Es-
porte, nâo a persuadiram da necessidade do esforço,
nâo a submeteram às duras leis da competiçâo. É uma
criança entre crianças. Ninguém lhe alimentou o de-
sejo de superar, de ultrapassar os outros; suas neces­
sidade s espontâneas foram satisfeitas; ninguém se er-
gueu contra ela, ninguém ergueu contra ela o muro
de sua ordem, de sua lôgica, de sua Lei.

Todas as crianças W sâo educadas juntas; nos pri­


meiros meses, as mâes as conservam perto delas, no
calor calafetado dos berçârios instalados nos gineceus.
Depois sâo levadas à Casa das Crianças. E um lugar
afastado da Fortaleza, emmeio a um grande parque,
um longo pavilhâo iluminado por amplas aberturas.
O interior ê uma peça unica, imensa e sem dimsôrias,
ao mesmo tempo dormitôrio, sala de jogos e refeitô-
rio; as cozinhas ficam numa extremidade, as duchas
e os banheiros na outra. Os meninos e as meninas cres-
cem juntos, numa promiscuidade compléta e feliz.

166
Podem chegar a 3 mil, quinhentas meninas e 2500 me-
ninos, mas apenas uma dezena de educadores de am-
bos os sexos é suficiente para vigiâ-los. A palavra vi-
giar, alias, éimprôpria. As crianças nâo se submetem
a nenhuma vigilância; nâo se pode sequer falar de en-
quadramento; os adultos nâo possuem funçâo peda -
gôgica, mesmo se podem às vezes ser levados a acon-
selhar ou a explicar; sua tarefa essencial é de ordem
sanitâria: contrôle médico, identificaçâo de doenças,
profilaxia, intervençôes cirûrgicas de rotina: adenôi-
des, amigdalas, apendicectomia, reduçâo de /raturas
etc. As crianças de mais idade, os adolescentes de tre-
ze ou catorze anos, cuidam dos maisjovens, ensinam-
Ihes a arrumar a cama, a lavar a roupa, a preparar
os aliment os. T odos decidem livremente seus horârios,
suas atividades e seus jogo s.

Do que se passa nas aldeias e nos estâdios, as


crianças s6 têm um conhe ciment o confuso, quase in -
teiramente imaginârio. Seu dominio é imenso e seus
confins tâo cobertos de mato que elas nem mesmo sa-
bem que obstâculos intransponiveis — fossos, cercas
eletrificadas, campos minados — as separam do mun-
do adulto. As vezes ouvem ao longe clamores, deto-
naçoes, toques de clarins; vêem passar no céu milha-
res de balôes multicores ou exaltantes revoadas de
pombas. Sabem que sâo os sinais de festas grandiosas
às quais serao admitidas um dia. De vez em quando
as imüam em grandes farândolas alegrès, ou entâo,
à noite, branclindo tochas acesas, entregam-se a cor-
rerias desenfreadas e, sem fôlego, tontas de alegria,
caem em desordem umas por cima das outras.

167
E durante seu dêcimo quinto ano que as crian-
ças deixam para sempre sua Casa, as meninas rumo
aos gineceus dos quais nâo mais sairâo a nâo ser por
ocasiâo das Atlantiadas, os rapazes rumo à aldeia onde
se tornarâo os futuros Atletas ,

0 adolescente faz do mundo em que ira entrar


uma idêia geralmente maravilhosa: a tristeza que pode
sentir ao deixar seus companheiros é atenuada pela
certeza de reencontrâ-los em breve, e é com uma im-
pactência feliz, e até mesmo com entusiasmo, que ele
sobe no helicôptero encarregado de levâ-lo.

Designado a uma aldeia, o adolescente sera no-


viço por pelo menos très anos antes de tornar-se Atle-
ta. Participarâ das sessoes de treinamento da manhà,
mas nâo dos campeonatos. No entanto passarâ os seis
primeiros meses de noviciado com algemas nas mâos,
grilhoes nos pés, acorrentado à noite a seu leito e mili­
tas vezes até amordaçado. E o que chamam a Qua-
rentena, e nâo é exagero dizer que esse é o penodo
mais doloroso da vida de um esportista W; tudo o que
vem depois, as humilhaçôes, as injurias, as injustiças,
os golpes, é nada, por assim dizer, qucise nâo pesa mais
ao lado dessas primeiras horas, dessas primeiras se-
manas. A descoberta da vida W é, de fato, um espe-
tâculo bastante terrivel. O noviço percorre os Estâdios,
os campos de treinamento, as pistas, os alojamentos
coletivos; ainda é apenas um adolescente tranqüilo
e confiante, para quem a vida se confundia até entâo
com o calorfratemo de seus milhares de companhei­
ros, e tudo o que para ele se associava com imagens
de festas luxuosas, aqueles clamores, aquelas musicas

168
triunfais, aquelas revoadas de aves brancas, Uie apa-
rece agora sob uma luz insuportâvel. Depois ele verâ
a volta dos vencidos, Atletas pâlidos de fadiga, titu-
beando sob o peso das golilhas de carvalho; os verâ
cair bruscamente ao châo, com a boca aberta, respi-
rando com dificuldade; os verâ um pouco mais tarde
lutar entre si, entredevorar-se por um pedaço de sai­
sieha} por um pouco d ’âgua, por uma tragada de
cigarro. Verâ, ao amanhecer, oretorno dosvencedo-
res, empanturrados de ban ha e vinho de mâ quali-
ddde, desabando em seus vomitôrios.

Assim se passarâ seu primeiro dia. Assim se pas-


sarâo os seguintes. No inîcio, ele nâo compreenderâ.
Noviços um pouco mais antigos talvez tentem even-
tualmente explicar-lhe, contar o que se passa, dizer
o que ele deve e o que nâo devefazer. Mas, na maio-
ria das vezes, nâo o farâo. Como explicar que o que
ele descobre nâo é algo pavoroso, nâo é um pesadelo
do quai ira despertar bruscamente, algo que expul-
sarâ de seu espirito? Como explicar que aquilo é a vi­
da, a vida real, que aquilo ê o que haverâ todos os
dias, que é aquilo que existe e nada mais, que é inû-
til acrediiar que alguma outra coisa exista, fingir acre-
ditar noutra coisa, que nem mesmo vale a pena ten-
tar disfarçar, tentar enfarpelar aquilo, que nâo vale
a pena fingir acreditar em algo que haveria por trâs,
ou abaixo, ou acima? Hâ aquilo e pronto. Ha as com-
petiçôes todos os dias, as Vitôrias ou as derrotas. E
preciso lutar para viver. Nâo hâ outra escolha. Nâo
existe alternativa. Nâo é possivel tapar os olhos, nâo
é possivel recusar. Nâo hâ recurso, nem piedade, nem
salvaçâo a esperar de alguém . Nâo hâ a esperar se-

169
quer que o tempo traga uma soluçâo. Ha aquilo, hâ
o que ele viu, e às vezes sera menos ternvel que o que
viu, as vezes sera muito mais ternvel que o que viu.
Mas, para onde quer que volte os olhos, é aquilo que
verâ e nada mais, e somente aquilo sera verdadeiro.

Mas mesmo os mais antigos Atletas, mesmo os


veteranos caquéticos que vêm fazer palhaçadas nas
pistas entre duas provas e que a multidâo folgazâ ali­
menta comfrutos podres, mesmos esses ainda crêem
que hâ outra coisa, que o céu pode ser mais azul, a
sopa melhor, a Lei menos dura, crêem que o mérito
sera recompensado, crêem que a vitôria lhes sorrirâ
e que ela sera bêla.

Mais râpido, mais alto, mais forte. Lentamen-


te, ao longo dos meses da Quarentena, a orgulhosa
divisa olïmpica se grava na cabeça dos noviços. Mui­
to poucos tentam se suicidar, muito poucos se tornam
realmente loucos. Alguns nâo cessam de berrar, mas
a maior parte se cala, obstinadamente.

170
31

É dessa época que datam as primeiras leituras


de que me lembro. Deitado de bruços em minha ca-
ma, eu devorava livros que meu primo Henri me da-
va para 1er.

Um desses livros era um romance de folhetim.


Creio que se chamava A volta ao mundo de um pe-
queno parisiense (esse tftulo existe, mas hâ vârios ou-
tros muito parecidos: Viagem de um pequeno pari­
siense pela França, A volta ao mundo de um garoto
de quinze anos, Viagem de duas crianças pela Fran­
ça etc.). Nâo era um daqueles grandes livros verme-
lhos como os Julio Verne da coleçâo Hetzel, mas uma
brochura volumosa que reunia vârios fasciculos, cada
um deles com um a capa ilustrada. Uma dessas capas
representava um garoto de uns quinze anos avançan-
do por um caminho muito estreito escavado no alto
de um a falésia que dava para um precipicio sem fun-
do. Essa imagem clâssica do romance de aventuras
(e dos westerns) tornou-se tâo familiar para mim que
sempre acreditei ter visto équivalentes proximos delà
em livros lidos bem mais tarde — como O castelo dos
Cârpatos ou Mathias Sandorf — nos quais, recente-
mente ainda, em vâo busquei encontrâ~la.

n i
O segundo livro era Michaël, câo de circo, do
quai pelo menos um episodio se gravou em minha me-
moria, o do adeta que quatro cavalos vâo tentar des-
membrar; na verdade, nâo sâo sens membros que os
cavalos puxam, mas quatro cabos de aço dispostos em
X dissimulados sob as roupas do atleta: ele sorri sob
essa suposta tortura, mas o diretor do circo exige que
ele mostre sinais do mais atroz sofrimento.

O terceiro livro era Vinte anos de-pois, que dei-


xou uma impressâo muito exagerada em minha lem-
brança, talvez por ter sido o ünico dos très Hvros que
reli depois e que ainda hoje eventualmente releio: acho
que sabia aquele livro de cor e tanto assimilara seus
detalhes que relêdo consistia simplesmente em verifï-
car que eles estavam exatamente em seus lugares: as
cantoneiras de cobre da mesa de Mazarino, a carta
de Porthos que ficou durante quinze anos no bolso
de um velho gibào de D’Artagnan, o tetrâgono de Ara-
mis em seu convento, o estojo de ferramentas de Gri-
m aud graças ao quai se descobre que os tonéis nâo
estâo cheios de cerveja mas de polvora, o papel da
Armênia que D’Artagnan faz queimar na orelha de
seu cavalo, a m aneira como Porthos, que tem ainda
um pulso firme (da grossura, imagino, de uma coste-
leta de carneiro), transforma tenazes de chaminé em
saca-rolhas, o livro de imagens que o jovem Lufs xiv
observa quando D’Artagnan vem buscâ-îo para fazê-
lo deixar Paris, Planchet refugiado na casa da hos-
pedeira de D’Artagnan e falando flamengo para fazer
crer que é seu irmao, o camponês que carrega ma-
deira e que indica a D’Artagnan, num francês impe-
câvel, a direçâo do castelo de La Père, o odio in-
flexivel de M ordaunt pedindo a Cromwell o direito de
substituir o carrasco levado pelos mosqueteiros, e cem
outros episodios, partes intégrantes da historia ou sim­
ples torneios de frase que me parecem nâo apenas que
sempre os conheci, porém mais ainda, no limite, que
quase me serviram de historia: fonte de uma memô-
ria inesgotâvel, de um repisar constante, de um a cer-
teza: as palavras estavam em seu lugar, os livros con-
tavam histôrias; podia-se acompanhar; podia-se reler
e, relendo, reencontrar, engrandecida pela certeza de
vir a reencontrâ-la, a impressâo que primeiro se ha-
via sentido. Esse prazer jamais se esgotou: leio pouco,
mas releio sem parar, Flaubert e Julio Verne, Roussel
e Kafka, Leiris e Queneau; releio os livros que amo
e amo os livros que releio, e toda vez com o mesmo
gosto, quer releia vinte paginas, très capitulos ou o li­
vro inteiro: o sabor de uma cumplicidade, de um a co-
nivência ou, mais ainda e além, de um parentesco en-
fim redescoberto.

Havia no entanto algo que me afligia nesses très


primeiros livros, predsamente o fato de serem incom-
pletos, de implicarem outros, ausentes e inencontrâ-
veis: as aventuras do pequeno parisiens e nâo estavam
conclufdas (dévia haver um segundo volume), Mi­
chaël, o câo de circo, tinha um irmâo chamado Jerry,
heroi de aventuras insulares que eu desconhecia por
completo, e meu primo Henri nâo possuia nem Os
très mosqueteiros nem O visconde de Bragelonne, que
me pareciam ser raridades bibliogrâficas, livros sem
preço, que eu podia apenas esperar algum dia poder
consultar (com relaçâo aos Très mosqueteiros essa
crença foi logo desmentida, mas ela persistiu por vâ-

173
rios anos em relaçao ao Viseonde de Bragelonne: lem-
bro-me de que, para lê-lo, retirei-o de uma biblio-
teca municipal e fiquei quase surpreso ao ver em
livraria as primeiras ediçoes de boîso, primeiro da Ma­
rabout, a seguir do Livre de Poche).
Henri havia lido Os très mosqueteiros e O vis-
conde de Bragelonne e também, acredito, A dama .
de Montsoreau; ele se îembrava muito pouco dos Très
mosqueteiros (mas ainda assim o suficiente, acho,
para me explicar o que era indispensâvel para uma
boa compreensâo de Vinte anos depois, por exem-
plo quem eram Rochefort, ou Bonacieux (“aquele
canalha do Bonacieux”), ou a lady de W inter que
Mordaunt quer tanto vingar), mas ainda estava muito
marcado por sua leitura do Visconde de Bragelonne:
foi assim que eu soube como haveriam de morrer
(com exceçâo de Aramis, que se torna bispo) esses
personagens dos quais nao conhecia nem as prim ei­
ras nem as ultimas aventuras: Porthos esmagado por
uma pedra que nâo consegue mais erguer, Athos em
seu leito no momento mesmo em que morre na Ar-
gélia seu filho Raoul, D’Artagnan atingido por,um
projétil no cerco de Maestricht quando acaba de ser
nomeado maréchal.
A morte de D’Artagnan é a que mais me trans-
portava, no sentido estrito da palavra, alias, jâ que
Henri me contava como ela acontecera, imitando,
com minha participaçâo, as principais peripécias en-
quanto me carregava num pequeno carrinho de mâo
nos grandes passeios que faziamos até as casas dos
camponeses das redondezas de Villard para nos abas-
tecermos de ovos, leite e manteiga (lembro-me das

114
formas de m adeira que serviam para fazer os torroes
de manteiga e da nitidez das marcas — vaquinha, flor
ou rosâcea — que elas deixavam na manteiga ainda
coberta de gotinhas esbranquiçadas).

De tanto insistir, havia conseguido que Henri me


ensinasse a jogar batalha naval movel. Um dia em que
ele queria particularm ente me agradar, lançou~se à
confecçâo de dois grandes tabuleiros e de figurinhas
de navios que nos permitiriam travar combates sérios.
Estava quase terminando aquele trabalho meticulo-
so, feito com um cuidado que se assemelhava para
mim ao fervor, decerto por responder ao fervor de mi-
nha espera, quando, num a m anha em que devo ter
me mostrado particularm ente exaspérante, ele foi to-
mado de uma côlera tao inexplicavel quanto violen­
ta que o fez destruir e pisar em cima dos preciosos
tabuleiros. Varias vezes, nos anos que se seguiram,
contei a Henri esse incidente, sempre assinalando a
que ponto aquilo me parecera impossfvel, ilogico, qua­
se irreal, sempre me lembrando da impressâo de in-
credulidade sentida diante dos tabuleiros estraçalha-
dos. Toda vez, Henri se surpreendia que aquela colera
de adolescente tivesse me impressionado tanto: mas
parece-me que o que deduzi daquele gesto inacredi-
tâvel nâo foi que Henri era apenas uma criança, foi
antes, mais secretamente, que ele nâo era, que nâo
era mais o ser infalivel, o modelo, o detentor do sa-
ber, o dispensador de certezas que eu nâo queria que
deixasse, ele, pelo menos, de ser para mim.

175
32

Ao cabo de sets meses de Quarentena, o recém-


chegado é oficialmente declarado noviço. Essa nomea-
çao dâ ensejo a duas manifestaçôes. A primeira é uma
cenmônia de entronizaçâo que se desenrola no Estâdio
Central, na presença de todos os Atlelas: retiram-se
dos jovens suas algemas, seus grühoes, e entregam-
Ihes a tnsigma de sua nova funçâo: um grande triân-
gitlo de tectdo branco que eles costuram, com a pon-
ta para cima, nas costas do abrigo. Um sub-Diretor
de corrida ou um Cronometrista pronuncia um pe-
queno discurso cujos termos raras vezes variam de uma
cerimônia para outra ou de uma Autoridade para ou­
tra, e que, desejando as boas-vindas aos Atletas, exalta
as vtrtudes do Esporte e lembra os grandes prinôtpios
do Idéal olimpico W. Dépôts, para encerrar a ceri­
mônia, uma disputa amistosa, isto é, cujos resulta-
dos nâo serào objeto de nenhuma homologaçâo e nâo
darâo lugar a nenhuma, recompensa, reune os Atle­
tas e os noviços.

A segunda manifestaçâo, de carâter bem mais


pnvado, tem lugar nos alojamentos das aldeias, A
princîpio sécréta e clandestina, ela acabou sendo re-
conhectcla pela Administraçâo, que, de acordo com

176
sua polûica habituai, nâo procurou proibi-la mas con-
tentou-se em codificar seu desenvolvimento. 0 obje-
to dessa manifestaçâo é escolher entre os A tletas aquele
que serâ o protetor do noviço, ou seja, que se encar-
regarâ de seu treinamento, que o guiarâ nos Estâdios,
que lhe ensinarâ as técnicas do Esporte, as regras so~
ciais, os sinais exteriores de respeito, os costumes da
aldeia. É ele, évidentemente, que vira em seu socorro
toda vez que fo r ameaçado. Em troca, o noviço servi­
ra seu tut or com devoçâo e reconhedmento: arrumard
sua cama toda manhâ, lhe trarâ sua tigela de aveia,
lavarâ sua roupa e suas marmitas, servira sua refei-
çâo do meio-dia; zelard pelo bom estado de seu equi-
pamento esportivo, de suas malhas, de seus calçados
de competiçâo. Acessoriamente, lhe servira de par-
ceiro sexual.
É claro que é preciso ser classificado para ter a
honra de protéger um noviço. Jâ fo i dito que hâ, em
cada aldeia, 330 Atletas, dos quais 66 sâo classifica­
dos regularmente, isto ê, ganharam seus nomes nos
campeonatos de classificaçâo, e uns vinte sujeitos, no
mdximo, que conseguiram obier uma identidade
triunfando nas Espartaquiadas. Ora, o ef ztivo dos no-
viços oscila, como vimos, entre cinqüenta e setenta.
Portante, poderia haver mais ou menos o mesmo nu­
méro de Campeôes protetor es e de noviços protegi-
dos. Mas séria desconhecer profundamente a nature-
za da sociedade W acreditar que pudesse ser assvm.
Na verdade, a designaçao do tutor é determinada pelo
residtaclo de um combate singular entre os dois me-
Ihores Campeôes da aldeia, ou seja, aqueles que sâo
pelo menos Campeôes olimpico s e cujo nome é pre-
cedido do artigo definido (o Kekkonen, o fones, o

177
MacMillan etc,). Se houver vârios Gampeoes olîmpi-
cos numa aldeia, o que éfrequente, jâ que hâ 22 Cam-
peôes olîmpicos e 4 aldeias, escolhem-se prioritaria-
mente os que tnunfaram nas disciplinas ditas nobres:
em primeiro lugar as corridas de velocidade, os 100 m,
os 200 m, os 400 m , depois o salto em altura, o salto
em distância, os 110 m com barreiras, as corridas de
média distância etc,, até, em desespero de causa, os
pentatlos e decatlos.

Em gérai, portanto, a maioria dos noviços aca-


ba tendo por protetor titular um ou outro desses dois
super-CampeÔes; pode acontecer que eles sejam dis-
putados asperamente e que sua obtençâo ocasione
uma luta sanguinâria; mas na maioria das vexes a par-
tilha se fax por acordo tâcito : cada Campeâo fax sua
escolha alternadamente no lote dos noviços que che-
gam, e o combat e singular que os opôe se limita a al-
gumas invectivas tôpicas e a um simulacro de corpo-
a-corpo.

Compreende-se assim facilmente de que manei-


ra essa instituiçâo, que de inicio visava apenas o sim­
ples relacionamento de veteranos e calouros; um pouco
à imagem do que se pratica regularmente nos colé-
gios e regimenlos, pôde tomar-se em W a base de uma
organixaçào vertical complexa, de um sistema hierâr-
quico que engloba todos os Esportistas de uma aldeia
numa rede de relaçôes em cascata cujojogo constitui
toda a vida social cia aldeia. Os protêt ores titular es,
com efeito, nâo sabem o que faxer de seus numerosos
afilhados; eles se reservam dois ou très e negociam os

178
serviços dos demaisjunto aos outros Atletas. Coin isso
seformam verdadeiras clientelas que 05 dois CampeÔes
manipulam a seu bel-prazer.

No piano estritamente local, o poder dos Cam­


peÔes protetores é imenso e suas chances de sobrevi-
vência sâo consideravelmente maiores que as dos ou­
tros Atletas. Mediante trotes sistemâticos, fazendo com
que os noviços e os beduznos os atomientem, os zm-
peçam de corner e de dormir, eles podem esgotar seus
compatriotas mais temweis e perigosos, os que se clas-
sificam logo atrâs deles em sua especialidade, os que
os perseguem de perto a cada corrida, a cada con-
curso, e cuja Vitôria sabem que séria o sinal de uma
impie dosa vingança.

Mas o sistema das client elas é tao feroz quant o


frâgil A obstinaçâo de um adversârio ou o capricho
de um Ârbitro podem, num segundo, fazer o Cam-
peâo perder esses nomes que conquistou tao duramen-
te e que tâo selvagemente defendeu. E a massa de seus
fiéis se volt ara contra ele, que ira mendigar as miga-
Ihas, os torrôes de açucar e os sorrisos dos novos Ven-
cedores.

179
33

Havia também na casa de tia Berthe ura grande


dicionârio Larousse em dois volumes. Talvez tenha
sido ali que aprendi a gostar dos dicionârios. Daque-
le, so me lembro de uma prancha coïoricla intitulada
“Pavilhôes”, que reprocluzia a maior parte, se nâo a
totalidade, das bandeiras das naçôes soberanas — in­
clusive Sâo Marino e Vaticano. Certamente so dei uma
atençâo especial àquela prancha porque, durante toda
aquela época, Henri e eu confeccionamos uma cole-
çâo de bandeiras americanas, inglesas, francesas e rus-
sas, de um lado, e alemâs, de outro (nâo me lembro
que houvesse outras, canadenses ou iugoslavas, por
exemplo), com as quais marcâvamos num grande ma-
pa da Europa afixado na parede o avanço triunfal'dos
exércitos aliados, tal como nos informava dia apos dia
nosso jornaî cotidiano, Les Allobroges (eu me orgu-
lhava de saber que Allobroges designava, no tempo
dos gauleses, os povos da Saboia e do Dauphiné). As
bandeiras correspondiam a exércitos, ou mesmo a co-
mandos ou a divisôes, o importante sendo, parece, que
figurasse em cada bandeira o nome de um general.
Esqueci quase todos esses nomes de générais, mesmo
sabendo ainda que eram Jukov, Eisenhower, Mont­
gomery, Patton ou Omar Bradley. Meu favorito era

180
o general de Larm inat. Tinha também uma queda
por Thierry d’Argenlieu, nâo apenas por ser o ünico
aîmirante que eu conhecia, mas porque corria o boato
de que era monge.

Outra de minhas lembranças diz respeito a Fran­


çois Bilïoux, que também foi para mim uma espécie
de fdolo, sobre tu do a partir do momento em que nâo
mais o confundi com François Billon. Sua passagem
por Villard ocasionou um a aglomeraçâo gigantesca.
A praça, no centro da quai havia uma fonte hoje de-
saparecida, estava repleta de gente. Henri e eu con-
seguimos aproximar-nos da tribuna. Henri tinha na
mâo o livro de Ilya Ehrenbourg, A queda de Pans
(havia algo que me espantava naquele livro, que eu
nâo conseguia compreender: era um livro escrito por
um russo, mas se passava em Paris; na traduçâo fran~
cesa, nâo se percebia isso, mas, no texto russo, como
é que se dizia e que efeito causava 1er, por exemplo,
“m a Cujas” ou “rua Soufflot”?). Henri estendeu o li­
vro a François Billoux, que o devolveu com uma de-
dicatoria. De minha parte, mais afortunado dessa vez
que com o bispo, consegui que ele me apertasse a mâo.

Era freqüente eu ir buscar o jornal na praça (o


quiosque de jornais, cigarros, souvenirs, cartôes-pos-
tais continua no mesmo lugar). Num dia de maio de
1945 encontrei de novo a praça lotada e tive muita
dificuldade para chegar ao quiosque e comprar o jor-

181
nal. Voltei correndo pelas ruas repletas de uma mul-
tidâo entusiâstica, brandindo Les Allobroges e gritan-
do a plenos pulmoes: “O Japâo capitulou!” .

Uma noite fomos ao cinéma: Henri, Berthe, o


pai de Henri, que suponho tinha acabado de chegar
de Paris para nos ajudar a voltar para la, e eu, O fil­
me chamava-se Le grand silence blanc e Henri esta-
va impaciente para vê-lo, pois se lembrava de uma
magnffica historia de Curwood que tinha esse titulo,
e durante o dia todo me falara da banquisa e dos es-
quimos, dos caes de trenos e das raquetes, do Klon-
dike e do Labrador. Mas logo nas primeiras imagens
ficamos terrivelmente decepcionados: o grande deserto
branco nâo era o Grande Norte, mas o Saara, onde
um jovem oficial, chamado Charles de Foucauld, fa-
tigado das extravagâncias com mulheres dissolutas (ele
bebia champanhe nos sapatos delas), se tornava mis-
sionario apesar das objurgaçôes de seu amigo, o ge­
neral Laperrine, que na época era apenas capitâo e
que chegava demasiado tarde com seu pelotâo ]f>ara
salva-lo dos malvados tuaregues que cercavam seu for­
te. Lembro-me da morte de Charles de Foucauld: ele
é am arrado a um poste, a bala que o liquida entra
em cheio em seu olho e o sangue escorre em sua face.

182
34

A fronteira que sépara os Esportistas das Auto-


ridades é tanto mais marcada por nao ser compte la­
mente intransponîvel. As Lets W, em gérai tâo lacô-
nicas, e cujo prôprio süêncio é uma ameaça mortal
para os Atletas que sofrem seujugo, sâo aquisurpreen-
dent emente prolixas: elas descrevem minuciosamente,
complacentemente, quase com generosidade, todas
as situaçôes que podem permitir a um Atleta chegar,
apôs alguns anos de competiçâo, a um posto de res-
ponsabilidade, seja em sua aldeia, como Diretor de
équipé ou como Treinador, massagista, encarregado
das cluchas, barbeiro etc., seja nosEstâdios, onde uma
série de pequenos postos estritamente hierarquizados
lhe podem ser propostos: servente, pregoeiro, varre-
dor, lançador de pombas, portador de toc ha ou de
estandarte, mascote, musico, caligrafo, guardiâo de
portico etc.

A primeira vista, nâo parée e muito dificil um


Atleta preencher as condiçôes requeridaspara um ou
outro desses postos e gozar das prerrogativas a eles li-
gaclas, prerrogativas que, por minimas que possam
parecer (isençâo de corvêias, direito às duchas, alo-
jamento individualizado, livre acesso aos Estâdios, aos

183
vestiârios, às salas de recepçâo etc.), se révélant com
freqüência indispensâveis para a simples sobrevivência
do Veterano. Hâ em primeiro lugar todo um sistema
de pontos, prêmios e bonificaçôes que sâo contabili-
zados ao longo da carreira do Atleta: o acumulo de
pontos se efetua de tal maneira que em principio sâo
suficientes quatro anos de desempenhos regulares para
que o ex-Campeâo tenha mais ou menos garantido
um posto privilegiado. Hâ em seguida diversas com-
binaçôes de Vitôrias que permit em aos Vencedores
passar a front eira, saltar a barreira em prazos ainda
mais curtos: em très anos, se o Atleta consegue uma
Seqüência, isto é, se se classifica em segundo ou ter-
ceiro très vezes seguidas nas Olimpiadas; em dois anos,
se conquista a Dupla, duas Vitôrias olimpicas segui­
das, desempenho considerado como a mais gloriosa
de todas, mas da quai a histôria W nâo oferece ne-
nhum exemplo; ou mesmo num ano, mima ünica
temporada, ganhando uma Qjuadra (um primeiro lu­
gar no Campeonato de classificaçâo, nos dois Cam-
peonatos locais, na prova de Seleçâo) ou uma Trinca
(primeiro no Campeonato de classificaçâo, primeiro
na Seleçâo, primeiro na Olimpiada), combinaçâo que
parece estatisticamente a mais provâvel, mas que na
verdade é bastante rara. Hâ enfim, em consonância
com o espirito mesmo da vida W, diversos sistemas
que parecem baseados no mero acaso: um péssimo
Atleta, um trapaceiro inveterado, incapaz do menor
desempenho honesto, incapaz de criar um Nome pa­
ra siprôprio, poderâ, de um dia para o outro, tomar-
se Autondade: serâ suficiente, por exemplo, que o nu­
méro de sua camiseta correspondu ao desempenho do
Vencedor.

184
A abundância dessas Leis, sua preciscio, o gran­
de numéro e a variedade das possibüidades ofereci-
das podemfazer supor que basta realmente pouco pa­
ra que um Atleta se tome Autondade. Como se as
Leis W, ao afirmarem querer recompensar tanto o
mérito esportivo quant o a simples regularidade ou a
niera sorte, quisessem dar a impressâo de que Atletas
e Autoridades pertencem à mesma Raça, ao mesmo
mundo, como se todos fossem da mesma familia e um
mesmo e unico objetivo os unisse: a Gloria mai or do
Esporte; como se nada os séparasse verdadeirameu­
te: os concorrentes rivalizam e redobram esforços nas
pistas; amontoada nas arquibancadas, de pé, a mul-
tidâo de seus companheiros os aclama ou os despre-
za; as Autoridades estâo sentadas nas Tribunas e um
mesmo espîrito as anima, um mesmo combat e as gal-
vaniza, uma mesma exaltaçâo as faz vibrar!

Mas conhecemos suficientemente o mundo W


para saber que suas Leis mais clementes sâo apenas
a expressâo de uma ironia um pouco mais feroz. A
generosidade aparente das regras que determinam
o acesso aos postos oficiais esbarra sempre no capri-
cho da Hierarquia: o que um Cronometrista sugere,
um Ârbitro pode recusar; o que um Arbitro prome-
te, um Juiz pode proibir; o que um Juiz propoe, um
Diretor dispôe; o que um Diretor concédé, um ou-
tro pode negar. As grandes Autoridades têm todo
o poder; podem tanto permitir quanto proibir; po­
dem homologar a escolha do acaso ou preferir o acaso
de sua propria escolha; podem decidir e a qualquer
momento voltar atrâs de sua decisâo.

185
Jamais é certo que um A tleta, ao final de sua car-
reira, conseguird tornar-se Autoridade e, sobretudo,
jamais é certo que continuai'a sendo-o. Mas, de qual-
quer modo, ele nâo tem outra saida. Os veteranos
excluîclos das équipés e que nâo obtiveram posto e que
sâo chamados as mulas, nâo têm nenhum direito,
nenhuma proteçâo. Os dormitôrios, os refeitôrios, as
duchas e os vestiârios lhes sâo vedados. Nâo têm o di­
reito de falar, nâo têm o direito de sentar-se. Com
freqüência sâo despojados de seu abrigo e de seus cal-
çados. Precipitam-se para as lixeiras, rondam à noite
os patibulos, tentando, apesar dos Guardas que os
abatem na hora, arrancar dos cadâveres dos venci-
dos apedrejados e enforcados alguns nacos de came.
Amontoam-se em grupos compactos, tentanto em vâo
se aquecer, na noite glacial, e dormir fo r u m instante.

As autoridades menores, a bem dizer, nâo têm


muito o que fazer: os encarregados das duchas giram
negligentemente suas torneiras de âgua fervente ou
gelada; os barbeiros manejam seus aparelhos de tos-
quiar; os guardiâes de pôrtico fazem estalar seus lon-
gos chicot es; os pregoeiros dâo o sinal dos aplctusos
e das vaias.

Mas é preciso que os Pïomens se levant em e se


ponham em fila. E preciso que saiam dos alojamen-
tos — Raus! Raus! —, é preciso que se ponham a cor-
rer — Schnell! Schnell! —, é preciso que entrem no
Estâdio numa ordern impecâvel!

As autoridades menores, seja quaifor seu escalâo,


sâo onipotentes diante dos Atletas. E fazem respeitar

186
as duras Leis do Esporte com uma selvageria dez ve­
xes acrescida pelo terroi Pois se alimentant melhor,
vestem-se melhor, pois dormem melhor e nâo sofrem
tanta pressâo, mas sua sorte dépende a todo instante
do olhar enfurecido de um Diretor, da sombra que
perpassa o rosto de um Arbitro, do humor ou da fa ­
ce cia de um Juiz.
35

Antes de ir a Paris, passamos um dia inteiro em


Grenoble. Nâo tomamos o teleférico que sobe até a
Grande Chartreuse; alias, ele nâo funcionava. Em vez
disso, eu e Henri fomos a um pequenissimo cinéma
que se chamava, acho, Le Studio; era uma sala mui-
to bonita, com um tapete e grandes poltronas, real-
mente muito diferente das espécies de hangares ou
salôes paroquiais que haviam sido até entâo meus ci­
némas. Vimos A vida privada de Identique VIII , um
filme de Alexander Korda, com Charles Laughton.
Acho que foi ai que vi e ouvi pela primeira vez a ma-
jestosa pancada de gongo que précédé a apresenta-
çâo dos filmes da Rank. Do filme propriamente dito,
apenas uma cena me ficou: aquela em que o velho"
rei, ligeiramente caquético, mas sempre magnifica-
mente vestido e sempre guloso, dévora as escondidas
de sua nona esposa (diante da quai treme como uma
criancinha), sozinho e a dentadas, um frango inteiro.

A viagem até Paris levou muito tempo. Henri me


ensinou a calcular os quilômetros localizando junto
à borda exterior da via da direita (quando se vai p a­
ra Paris: isso torna a observaçâo quase impossivel
quando se vem de Paris, pois nesse caso os sinais es-

188
tâo muito rentes ao vagâo de onde se olha) as plaças
azuis com algarismos brancos indicando o numéro de
quilômetros que nos separavam de Paris, as centenas
de métros sendo indicadas por estacas brancas, com
exceçâo da quinta, que era vermelha. Esse é um hâ-
bito que conservei e creio nâo ter feito desde entâo
viagens de trem, durassem elas uma hora ou a metade
de um dia, sem me distrair vendo desfilar os cem m é­
tros, os meios-quilômetros e os quilômetros a uma ve~
locidade hoje considéravelmente maior que a daque-
la viagem de volta.
Haviamos partido à noite. Chegamos a Paris no
dia seguinte depois do meio-dia. Minha tia Esther e
meu tio David nos esperavam na plataform a. Ao sair
da estaçao, perguntei como se chamava aquele mo-
numento; responderam-me que nâo era um monu-
mento, mas apenas a estaçao ferroviâria de Lyon.
Subimos no Citroën preto de meu tio. Acompa-
nhamos Pïenri e seus pais à casa deles, na avenida Ju-
not (duque de Abrantes), em M ontmartre, e depois
fomos para nossa casa, na rua de l’Assomption.

Dois dias depois, minha tia me m andou buscar


pâo, rua abaixo. Ao sair da padaria, me enganei de
direçao e, em vez de tornar a subir a rua de l’Assomp­
tion, tomei a m a de Boulainvilliers: levei mais de uma
hora para reencontrar m inha casa.

Mais tarde, fui para a escola municipal, na rua


des Bauches. Mais tarde, fui a uma m erenda de N a­
tal oferecida por soldados canadenses; nâo me lem-
bro mais que brinquedo me coube na distribuiçao,

189
mas sei que nào era dos que eu cobiçava. Mais tarde,
levando um grande feîxe de flores vermelhas e mar-
chando ao lado de mais duas crianças, um a com flo*
res azuis, a outra com flores brancas, desfilei diante
de um general.

Mais tarde, fui com minha tia ver uma exposi-


çâo sobre os campos de concentraçâo. Ficava no c&-
minho de La Motte-Picquet-Grenelle (no mesmo dia
descobri que havia métros que nâo eram subterrâneos
mas aéreos). Lembro-me das fotos que mostravam as
paredes dos fornos laceradas pelas uniras dos gasea-
dos e de um jogo de xadrez fabricado com migalhas
de pâo.

190
36

O A tleta W nâo tem poderes sobre sua vida. Na-


da terri a esperar do tempo que passa. Nem a alter-
nância dos dias e das noites nem o ntmo das estaçôes
lhe serâo de alguma valia. Suportarâ com igual rigor
a neblina da noite de inverno, as chuvas glaciais da
primavera, o calor tôrrido das tardes de verao. Cer-
tamente pode esperar que a Vitôria melhore sua sor­
te: mas a Vitôria é tào rara e tantas vezes irrisôria!
A vida do A tleta W nâo ê senâo um esforço obstina-
do, incessante, a perseguiçâo exténuante e va desse
instante ilusôrio em que o triunfo poderâ trazer o re-
pous o. Quantas centenas, quantos milhares de horas
esmagadoras por um segundo de serenidade, um se-
gundo de calmaP Quantas semanas, quantos meses de
esgotamento por uma hora de descansof

Correr. Correr nas pistas, corrernospântanos, cor-


rernalama. Correr, saltar, arremessar pesos. Raste-
jar. Agachar-se, erguer-se. Erguer-se, agachar-se. Râ-
pido, cada vez mais râpido. Correr em volta, jogar-se
no châo, rastejar, erguer-se, correr. Permanecer depé,
em posiçâo de sentido, horas, dias, dias e noites. De
bruços! De pé! Vistam-se! Tirem a roupa! Vistam-se!
Tirem a roupa! Corram! Saltem!Rastejem! Dejoelhos!

191
Imerso num mundo semfreio, ignorante das Leis
que o esmagam, algoz ou vttima de sens companhei-
ros sob o olhar irônico e desdenhoso de seus Juizes,
o Atleta W nâo sabe onde estâo seus verdadeiros ini-
migos, nâo sabe que poderia vencê-los e que essa Vi-
tôria séria a ûnica verdadeira que poderia arrebatar,
a ûnica que o libertaria. Mas sua vida e sua morte
lhe pare cem inelutâveis, inscrit as de uma vez por to-
das num destino inominâvel.

Hâ dois mundos, o dos Senhores e o dos escra-


vos. Os Senhores sâo inacessiveis e os escravos se en-
tredevoram. Mas mesmo isso o Atleta W nâo sabe.
Préféré crer em sua Estrela. Espéra que a sorte lhe
sorrici. Um dia os Deuses estarâo a seu lado, tirarâ
o numéro premiado, sera aquele que o acaso elegerâ
para levar até a pira central a Chama oUmpica, o que,
dando-lhe o grau de Fotôforo oficial, o dispensarâpa­
ra sempre de qualquer corvéia, lhe garantira, em prin-
ctpio, uma proteçâo permanente. Eparece defato que
tocla a sua energia se consagra a essa ûnica esper a,
a essa ûmca esperança de um milagre miserâvel que
lhe permitirâ escapar dos golpes, do castigo, da hu-
milhaçâo, do medo. Um dos traços definitivos da so-
ciedade W é que ne la se interroga permanentemente
o destino: com migalhas de pâo hâ muito amassadas,
os Esportistas fabricam ossinhos, pequenos dados. In-
terpretam a passagem das aves, a form a das nuvens,
das poças, a queda dasfolhas. Colecionam talismâs:
uma ponta do calçado de um Campeâo olvmpico, uma
unha de enforcado. fogos de carias ou de tard circu­
lant nos alojamentos: a sorte décidé a partilha das en-
xergas, das raçôes e das corvéias. Todo um sistema

192
de apostas clandestinas que a Administraçâo contrô­
la às escondidas por intermédio de suas pequenas au-
toridades acompanha as Competiçôes. Qxiem acerta
na ordem os numéros de matricula dos très primeiros
de uma Prova olimpica tem direito a todos os pnvilé-
gios; quem os acerta em desordem é convidado a par-
ticipar do banqueté de triunfo dos vencedores.

Os orfeôes com uniformes de gala cantam o Hi-


no à alegria. Mühares de pombas e balôes multicores
sâo soltos no céu. Precedidos de imensos estandartes
com anéis enlrelaçados que o vento faz tremular, os
Deuses do Estâdio penetram nas pistas, em filas im-
pecâveis, com os braços estendidos para as tribunas
oficiais onde os grandes Dignitârios W os saudam.

Épreciso vê-los, esses Atletas que, com suas rou-


pas listradas, parecem caricaturas de esportistas de
1900, lançarem-se, cotovelos junto ao corpo, numa
grotesca prova de velocidade. É preciso ver esses lan-
çadores cujos pesos sâo bolas de canhâo, esses salta-
dores com tomozelos atados, esses saltadores em dis­
tancia que caem pesadamente num fosso cheio de
estrume. É preciso ver esses lutadores cobertos de al-
catrâo e de plumas, é preciso ver essesfundistas salti-
tando num pê sô ou apoiados nas mâos e nos pés, é
preciso ver esses sobrexdventes da maratona, estropia-
dos, transidos, tropeçando entre duasfileiras cerradas
de Jmzes de linha armados de varas e paus, é preciso
vê-los, esses Atletas esqueléticos, de rosto cadavérico,
com a espinha sempre curvada, aqueles crânios cal-
vos e luzentes, aqueles olhos cheios de pânico, aque-

193
las chagas purulent as, todas aquelas marcas indelê-
veis de uma humilhaçâo sem jim , de um terror sem
fundo, todas essas provas, administradas cada hora,
cada dia, cada segundo, de um esmagamento cons­
ciente, organizado, hierarquizado, é preciso verfun-
cionar aquela mâquina enorme em que cada peça
contribui, com uma eficâcia implacâvel, para o ani-
quilamento sistemâtico dos homens, para nâo mais
achar surpreendente a mediocridade dos desempenhos
registrados: os 100 métros rasos correm-se em 23 ”4,
os 200 métros em 3V ’; o melhor saltador jamais ul-
trapassou 1,30 m.

Qjuem penetrar um dia na Fortaleza a principio


encontrarâ apenas uma série de peças vazias, longas
e cinzentas. O ruido de seus passos ressoando sob as
altas abôbadas de concreto lhe causarâ medo, mas ele
deverd prosseguir por muito tempo seu caminho an­
tes de descobnr, enterraclos nas profundezas do châo,
os vestigios subterrâneos de um mundo que acredi-
tard ter esquecido: um grande numéro de dent es de,
ouro, de alianças, de ôculos, milhares e milhares de
peças de roupa amontoadas, fichârios empoeirados,
provisôes de sabâo de ma qualidade...

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37

Durante anos desenhei esportistas de corpos ri­


gides, com expressôes faciais inumanas; descrevi em
minücia seus incessantes combates; enumerei com obs-
tinaçâo seus troféus sem fim.

Anos e anos mais tarde, em L ’univers concentra­


tionnaire, de David Rousseau, li o seguinte:
A estrutura dos campos de repressâo é comandada
por duas orientaçôes fundamentais: nenhum traba-
Iho, “esporte”, um mmimo de alimento. A maioria
dos detidos nâo trabalha, e isso quer dizer que o tra-
balho, mesmo o mais pesado, é considerado um re-
fügio. A menor tarefa deve ser cumprida a passo de
corrida. Os golpes, que sâo comuns nos campos “nor-
mais”, tornam-se aqui a bagatela cotidiana que co~
manda todas as horas do dia e às vezes da noite. Um
dos jogos consiste em mandar os detidos se vestir e
se despir varias vezes por dia e debaixo de cacetadas;
também em fazê-Ios sair e entrar correndo no Block,
enquanto, à porta, dois SS espancam os Haeftlinge
a golpes de Gummi. No pequeno patio retangular e
cimentado, todo o esporte consiste em: fazer os ho-
mens dar voltas correndo muito depressa durante ho­
ras ininterruptas, com o chicote; organizar a marcha

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do sapo, e os mais lentos serâo jogados no tanque de
âgua fria sob a risada homérica dos SS; repetir sem
parar o movimento que consiste em curvar-se muito
râpido sobre os calcanhares, com as mâos perpendi-
cuiares; muito râpido (cada vez mais râpido, râpi­
do, Schnelt, los Mensch), deitar de bruços na lama
e levantar, cem vezes seguidas, depois correr e se jo-
gar na âgua para se lavar e ficar vinte e quatro horas
com as roupas molhadas.

Esqueci as razôes que, aos doze anos, fizeram-


me escoîher a Terra do Fogo para ali instalar W: os
fascistas de Pinochet se encarregaram de dar a meu
fantasma uma ültima ressonância: varias ilhotas da
Terra do Fogo sâo hoje campos de deportaçâo.

Paris-Carros-Blévy
1970-1974

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ESTA O B RA FOI COM POSTA PELA U E O
VËTICA EDITORIAL EM BASKERVIUX E
JM PRESSA PELA GEO G KARL LA EM OFF­
SET SOBRE PAPEL. J’ÔULN S O LT 1>A COM-
l’A N illA SU 2A N O PARA A ED ITOU A
s u jv va rcz k m o u t u b r o d e isor».
também em outras, como no seu gi'ari­
de romance A irida, modo de usar, Aqui
adquirem uma outra carga, mais pes-
soaî. Para Perec, o judaismo é “uma for­
ma de estranhamento de si, de silêncio
e de vazio” , de uma linguagem dos seus
pais, que ele nào sabe mais falar. Sua fa-
milia “acabou sendo a literatura”. W ou
a memôria da infância nâo se contenta
com isso: é uma cerimônia obliqua de
luto, uma maneira de enterrar digna-
rnente esses pais que ele nunca pôde
enterrar. “Escrevo porque eles deixa-
ram em mina sua marca indelével e o
vestigio disso é a escrita: a lembrança
deles esta rnorta na escrita; a escrita é a
lembrança de sua morte e a afimiaçao
de minha vida."

Arthur Nestrovski

Georges Perec nasceu em Bordeaux,


França, em 1936, e m orreu em Paris
em 1982. Publicou, entre outros, Les
choses (1965), La disparition (1969), La
boutique obscure (1973), Je me souviens
(1978) e La vie mode d'emploi (1978),
este publicado pela C om panhia das
Letras (A vida, modo de usar, 1991).

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