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95-3883 coo-843.91
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OU A MEMÔRIA
DA INFÂNCIA
Traduçao:
PAU LO NEVES
COMPANMIA D a S LEXRAS
Copyright © 1975 by Éditions Denoël
Tftulo original;
W ou le souvenir d'enfance
Capa:
Süvia Ribeiro
Foto da capa:
R. D oisneau/Rapho
Preparaçâo:
Carlos Alberto Inada
Revisâo:
Eliana Antonioli
îsabel Cttry Santana
1995
Todos os direitos desta ediçao reservados à
ED ITO RA SCHW ARCZ LTD A.
Rua T upi, 522
0Ï233-00Û - Sâo Pauio si'
Telefone: (011) 826*1822
Fax: (011) 826-5523
Ha neste livro dois textos simplesmente altemados; poderia
quase parecer que eles nada têm em comum, no entanto estâo
indissoluvehnente imbricados, como se nenhum dos dois pudes-
se existir sozinho, como se apenas de seu encontro, dessa luz lon-
gmqua que lançam um sobre o outro, pudesse se revelar o que
jamais é inteiramente dito num, jamais inteiramente dito no ou
tro, mas somente em sua frâgii interseçâo.
Um desses textos pertence por inteiro ao imaginàrio: é um
romance de aventuras, a reconstituiçâo, arbitrâria mas minu-
dosa, de um fantasma infantü que evoca uma cidade regida pelo
idéal olimpico. O outro texto é uma autobiografia: o relato frag-
mentâno de uma vida de criança durante a guerra, um relato
pobre de façanhas e de lembranças, feito de fragmentos espar -
sos, de ausências, de esquecimentos, de dûvidas, de hipôteses,
de anedotas insignificantes. O relato de aventuras, em compen-
saçâo, tem algo de grandioso, ou talvez de suspeito. Pois come-
ça contando uma histôria e, de repente, se lança numa outra:
nessa ruptura, nessa/ratura que suspende a narraiiva em tomo
de nâo se sabe quai expectativa, se acha o lugar inicial de onde
saiu este livro, aqueles pontos de suspensâo a que se prenderam
os fios rompidos da infância e a trama da escrita.
G.P.
w
OU A M EM Ô RIA
DA IN FÂN C IA
Para E
PRIMEIRA PARTE
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Por muito tempo investiguei os traços de minha
histôria, consultei mapas e anuârios, montes de ar-
quivos. Nâo encontrei nada, e me pare cia às vezes que
tinha sonhado, que tudo nâo passava de um inesque-
civel pesadelo.
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uma vez, apôs tantas outras, que pego serem minhas
sombras tutelares.
U
sem trabalho. Acabeipor me instalar em H., junto
à fronteira luxemburguesa. Havia encontrado um em-
prego de lubrificador na maior oficina da cidade. Mo -
rava numa pequena pensâo familiar e passava a maior
parte das noites numa cervejaria vendo telemsâo ou,
às vezes, jogando gamâo com um ou outro de meus
companheiros de trabalho.
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2
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em Veneza me lembrei de repente de que essa histo-
ria se chamava “W ” e que ela era, de certo modo,
se nâo a historia, pelo menos uma historia de minha
infância.
Afora o titulo bruscamente restituxdo, eu nâo ti-
nha praticamente nenhum a lembrança de W. Tudo
o que sabia cabe em menos de duas linhas: a vida de
uma sociedade preocupada apenas com o esporte, nu-
ma îlhota da Terra do Fogo.
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3
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desse chegar a uma escolha satisfatôria: uma, a rigor,
poderia ser tomada por uma serpente sinuosa cujas
escamasfossem louros, a outra por uma mâo que fosse
ao mesmo tempo raiz; a terceira pare cia tanto um ni-
nho quanto um braseiro, ou uma coroa de espinhos,
ou uma sarça ardente, ou mesmo um coraçâo tras-
passado.
Nâo havia nem endereço nem numéro de telefo-
ne. A carta dizia apenas isto:
Prezado senhor,
Ficariamos extrem am ente gratos se consentisse em
vir conversar conosco sobre um assunto de seu intéresse,
Estaremos no hôtel B e rg h o f no num éro 18 da
Nurm bergstrasse, na prôxim a se x ta fe ita , 2 7 de ju -
Iho, e o aguardaremos no bar a partir das 18 horas.
Agradecendo-lhe antecipadamente e escusando-nos
por nâo poder dar-lhe maiores explicaçôes no momen-
to, rogamos acre dite, senhor, em nossos sentim entos
de estima.
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dado nâo conheciam meu antigo nome e teria sido
necessârio um improvdvel, um inexplicâvel concurso
de circunstâncias para que um homem que tivesse me
conhecido em minha vida anterior me reencontrasse
e reconhecesse. H, é apenas uma aldeia, afastada dos
grandes eixos rodoviârios, os turistas a ignoram, e eu
passava a maior parte de meus dias no fundo
do fosso de lubrificaçao ou deitado embaixo dos mo-
tores. E, além de tudo, que teria podido exigir de mim
aquele que, por um incompreenswel acaso, tivesse en-
contrado minha pista? Eu nâo tinha dinheiro, nâo ti-
nha a possibilidade de tê-lo. A guerra da quai eupar-
ticipara acabara havia mais de cinco anos, era mais
que provâvel que me tivessem anistiado.
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pedi emprestado por um momento à secretâria da ga-
ragem, sô podia tratar-se da abreviaçâo americana
de Medical Doctor, mas essa sigla, corrente nosEsta-
dos Unidos, nâo tinha nenhuma razâo para figurai'
no cabeçalho de um alemâo, ainda que mêdico, ou
talvez eu devesse supor que esse Otto Apfelstahl, em-
bora me escrevesse de K., nâo era alemâo, mas ame-
ricano; isso nada tinha de surpreendente em si: hâ
muitos alemâes emigrados para os Estados Unidos, nu-
merosos médicos americanos sâo de origem alemâ ou
austnaca; mas que podia querer de mim um mêdico
americano, e o que viera fazer em K J E era concebî-
vel que um mêdico, nâo importa sua nacionalidade,
pusesse em seupapel de cartas a indicaçâo de suapro-
fissâo, mas substituûse as informaçôes que séria Uci-
to esperar de um doutor em medicina — seu endere-
ço ou o endereço do consultôrio, seu numéro de tele-
fone, seus horârios de consulta, suas funçôes hospita-
lares etc. — por um brasâo tâo anti quado quant o
sibilinof
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sïgla 11MD” ou sobre o significado do brasâo. Mas nâo
encontrei nada.
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raros e documentas insignificantes, nâo tenho outra
escolha senâo evocar o que por muito tempo insisti
em cham ar o irrevogâvel; o que foi, o que se deteve,
o que ficou enclausurado: o que foi, sem duvida,
para hoje nâo ser mais, mas o que foi, também, p a
ra que eu seja ainda.
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e seu nome teria sido gammeth, ou gam m el.1 A ce-
na inteira, por seu tema, sua doçura, sua luz, asse-
melha-se para mim a um quadro, talvez de Rem
brandt ou talvez inventado, que se chamaria Jésus
diante dos doutores.2
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areia; um a de minhas brincadeiras consistia em de-
cifrar, com Fanny, letras em jornais, nâo iidiches, mas
franceses.
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Fuz sentar-me ao fundo da sala. Levantando por
um instante os olhos do jornal, o barm an me olhou
com ar interrogativo; pedi-lhe uma cerveja. Ele trou
ve, arrastando os pés; notei que era um homem bas-
tante velho, sua mâo consideravelmente enrugada tre-
mia um pouco.
— Esta bem vazio — eu disse, em parte para di-
zer alguma coisa, em parte porque aquilo me pare-
cia defato surpreendente. Ele balançou a cabeça, sem
responder, depois me perguntou de repente:
— Vai querer Bretzels?
— Comot — respondi sem compreender.
— Bretzels. Bretzels para corner enquanto bé
bé sua cerveja.
— Nâo, obrigado. Jamais como Bretzels. Consi-
ga-me um jornal, porfavor.
Ele virou as costas, mas certamente eu havia me
expressado mal ou ele nâo prestara atençâo em meu
pedido pois, em vez de se dirigir ao porta-jomais junto
à pare de, voltou para seu balcâo, depositousua ban-
deja e sam por uma pequena porta que dévia dar no
escritôrio.
Olhei meu relôgio. Marcava apenas seis e cinco.
Levantei-me, fu i buscar um jornal. Era um suplemen-
to econômico semanal de um diârio luxemburguês,
o Luxemburger Wort, que datava de mais de dois me-
ses. Percorri-o durante uns dez minutos, bebendo mi-
nha cerveja, absolutamente sozinho no bar.
Nâo dava para dizer que Otto Apfelstahl estava
atrasado; também nâo dava para dizer que fosse pon-
tual. Tudo o que dava para dizer, tudo o que dava
para dizer para si mesmo, tudo o que dava para eu
dizer para mim mesmo, era que, em qualquer encon-
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tro, sempre se deve prever um quarto de hora de to-
lerância. Eu nâo deveria ter sentido necessidade de
me tranqüilizar, nâo tinha nenkum motivo para es-
tar inquieto, no entanto a ausência de Otto Apfels-
tahl me deixava pouco à vontade. Eram mais de seis
horas, eu estava no bar, eu o esperava, quando ele
é que deveria estar no bar me esperando.
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los muito curtos, jâ embranquecidos, cortados à es-
covinha. Vestia um terno cinza-escuro de jaquetâo.
Se é que um homem pode andar com sua profissâo
estampada no rosto, ele nâo dava a impressâo de ser
mêdico, mas homem de negôcios, procurador de um
grande banco ou advogado.
Ele se deteve a poucos centïmetros de mim.
— 0 senhor é Gaspard Winckler? — perguntou-
me} mas na verdade afrase quase nem era interroga-
tiva, era mais uma constataçâo.
— H m m m ... Sou... — respondi bobamente,
erguendo-me ao mesmo tempo, mas ele me deteve
com um gesto:
— Nâo, nâo, fique sentado, sentemo-nos, esta-
remos bem melhor assim para conversar.
Sentou-se. Considerou por um instante meu co-
po vazio.
Costa de cerveja, pelo que vejo.
~~ De vez em quando — eu disse, sem saber mui
to bem o que responder.
— Prefiro châ.
Virou-se ligeiramente para o balcâo, erguendo
dois dedos num gesto vago. O garçom veio em seguida.
— Um châ para mim. Quer outra cerveja? —
me perguntou.
Aceitei.
— E uma cerveja para o cavalheiro.
Eu me sentia cada vez mais desconfortâvel. Dé
via perguntar-lhe se o nome dele era Otto Apfelstahl?
Dévia perguntar-lhe, de saida, à queima-roupa, o que
queria de mim? Tirei meu maço de cigarros e lhe ofe-
reci um, mas ele recusou.
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— Fumo apenas charuto, e mesmo assim sô de-
pois do jantar .
— O senhor ê médicof
Minha pergunta — ao contrario do que eu inge-
nuamente havia pensado — nao parée eu surpreendê-
lo. Ele apenas esboçou uni sorriso.
— Por que o fato de sô fum ar charuto apôs o
jantar o faz pensar que eu possa ser médicot
— Porque essa é uma das quest ôes que me faço
a seu respeito desde que recehi sua carta.
— 0 senhor se fez muitas outras quest5est
— Algumas, sim.
— Quais?
— Bem, por exemplo, o que quer de mim?
— De fato, eis uma questâo que se impôe. De ~
seja que eu responda de imediato?
— Ficaria muito agradecido.
— Posso antes lhe fazer uma perguntat
— Por favor.
— Acasojâ se perguntou o que aconteceu com
o indimduo que lhe deu seu nome?
— Comot — disse eu sem compreender.
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6
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historia que, para mim e todos os meus, em breve iria
tornar-se vital, ou seja, na maioria das vezes, mor-
tal.3
30
Greve dos operârios de construçâo nova-iorquinos.
Conflito îtalo-etfope. A bertura eventual de negocia-
çôes para a interrupçâo das hostilidades.
Crise no Japâo.
Reforma eleitoral na França.
Negociaçôes germano-lituanas.
Processo na Bulgâria depois de sediçôes no exército.
Carlos Prestes preso no Brasil; teria sido denunciado
por um comunista americano que se suicidou.
Avanço das tropas comunistas no Norte da China.
Bombardeio de ambulâncias pelos italianos na Etiopia.
Na Polonia, interdiçâo do abate de animais segundo
o rito talmüdico.
Na Austria, condenaçâo de nazistas acusados de pre-
parar atentados.
Atentado contra o présidente do Conselho Iugosla-
vo: o deputado Arnautovitch dispara contra o prési
dente Stojadinovitch, sem atingi-lo.
Incidentes na faculdade de direito de Paris. A aula
do sr. Jèze é interrompida por bombas de gases fétidos.
Contramanifestaçâo da Uniâo Fédéral dos Estudan-
tes e dos Estudantes Neutralistas.
Renault fabrica o Nerva grand sport,
Tristan und Isolde em versâo intégral no teatro da
Opéra.
Eleiçâo de Florent Schmitt para a Academia.
Comemoraçâo do centenârio de Ampère.
A semifinal da Copa da França de futebol sera dis-
putada entre Charleville e Red Star, de um lado, e
os vencedores das partidas Sochaux-Fives e Racing-
Lille, de outro.
Projeto de uma Maison de la Radio.
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Gibbs recomenda, para peles gordurosas, o creme de
sabâo Gibbs; para peles secas, o creme rapido sem sa
bâo Gibbs.
Scarface no Studio des Ursulines.
Tchapaïev no Panthéon.
Sansâo no Param ount.
La Guerre de Troie n ’aura pas lieu no Athénée.
Anne-Marie , de Raymond Bernard, roteiro de An
toine de Saint-Exupéry, com Annabella e Pierre-
Richard Wilm, na Madeleine. Anunciada para sexta-
feira, 13 de março, a estréia de Tempos modernos,
de Charlie Chaplin. *
7
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if#
;
— Na época Gaspard Winckler era um garoto ;
de oito anos, surdo-mudo. Sua mâe, Caecilia, era uma
cantora austnaca, mundialmente conhecida, que se
refugiara na Suiça durante a guerra. Gaspard era um
menino doente e raquûico, condenado por sua enfer-
midade a um isolamento quase total. Ele passava a
maior parte do tempo agachado num canto de seu
quarto, nâo se interessando pelos ricos brinquedos que
sua mâe ou seus famûiares lhe ofereciam diariamen-
te, recusando-se quase sempre a alimentar-se. Para
vencer aquele estado de prostraçâo que a desesperava,
a mâe resolveu dar a volta ao mundo com ele; pen-
sava que a descoberta de novos horizontes, as mudan-
ças de clima e de ritmo de vida teriam um efeito sa-
lutar sobre seufilho, quem sabe até desencadeando
um processo capaz de restituir-lhe a audiçâo e afala,
pois todos os médicos consultados eram categôricos
nesse ponto: nenhuma lesâo interna, nenhum distûr-
bio genético, nenhuma malformaçâo anatômica ou
fisiolôgica explicava seu surdimutismo, que sô podia
ser atribuido a um traumatismo infantil cujas razôes,
infelizmente, eram ainda desconhecidas, embora a
criança tivesse sido levada a vârios psiquiatras. Tudo
isso, o senhor me dira, parece ter pouca relaçâo com
sua prôpria aventura e continua sem explicar como
o senhor fo i adquirir a identidade dessa pobre crian
ça. Para compreendê-lo, ê preciso antes de mais na-
da que o senhor saiba que, tanto fo r frecauçao co
mo por gosto pelo trabalho bem-feito, a organizaçâo
de ajuda que se encarregou do senhor nâo utïlizava
papéisfalsos, mas passaportes, carteiras de identida
de e carimbos autênticos fomecidos porfuncionârios
da administraçâo devotados a sua causa. Acontece que
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o funcionârio genebrïno que dévia se ocupar de seu
caso morreu très dias antes de sua chegada à Suiça,
sem nada ter preparado, quandojâ haviam sido acer-
tados todos os contât os, todas as etapas de sua via-
gem ulterïor. A organizaçào ficou sem ter como agir.
Foi quando interveio Caecüia Winckler, que perten-
cia a essa organizaçào e era inclusive uma das princi-
pais responsâveis por ela na Suiça. E fo i assim que,
para atender o caso mais urgente, lhe entregaram o
passaporte, ligeiramente retocado, que Caecilia ha-
via mandado fazer algumas semanas antes para o pro-
prio filho.
— E elef
— Os regulamentos intemacionais admitem de
bom grado que um menor de idade divida o passa
porte com um de seus pais.
— Mas o que teria acontecido a seguir?
— Nada, suponho; eles teriam dado umjeito pa
ra que Gaspard obtivesse outro passaporte; nâo creio
que tenham pensado em pedir-lhe o seu de volta um
dia.
— Entâo por que o senhor acha que eu teria po-
dido encontrâ-los?
— Eu lhe disse algo semelhantef O senhor nâo
me deixa continuar: algumas semanas apôs sua pas-
sagem por Genebra, quando todos se convenceram
de que o senhor estava em segurança, Caecüia e Gas
pard partiram para Trieste, onde embarcaram num
iate de 25 métros, o Sylvandre, magnifica embarca-
çâo capaz de fazê-los atravessar ospiores tufoes. Eram
seis a bordo: Caecüia, Gaspard, Hugh Barton, um
amigo de Caecüia que era de certo modo o coman
dant e de bordo, dois marujos malteses que tambêm
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funcionavam como camareiro e cozinheiro, e um jo-
vem preceptor, Angus Pilgrim, especializado na edu-
caçâo de surdos-mudos. Contrariamente à esperança
de Caecüia, nâo parece que a viagem tenha melho-
rado o estado de Gaspard, que, a maior parte do tem
po, permanecia em sua cabine e sô excepdonalmen-
te consentia em subir ao convés para olhar o mar. Da
leitura das carias que Caecüia, Hugh Barton, Angus
Pilgrim e mesmo Zeppo e Felipe, os dois marujos, es-
creveram nessa época e que, por razôes que o senhor
nâo tardarâ a compreender, fu i levado a consultar,
desprende-se, com o passar dos meses, uma impres-
sâo pungente: aquela viagem concebida antes de tu-
do como uma cura perde aos poucos sua razâo de ser;
vai se tomando cada vez mais claro que fo i inûtil em-
preendê-la, mas também nâo hâ razâo alguma para
interrompê-la; o barco erra, levado pelos ventos, de
costa em costa, de porto em porto, detém-se um mes
aqui, très meses ali, buscando cada vez mais inutil-
mente o espaço, a enseada, o horizonte, a praia, o
quebra-mar onde o milagre poderia produzir-se; e o
mais estranho ê que, quant o mais a viagem prosse-
gue, mais cada um parece convenddo de que tal lu-
gar existe, de que em algum ponto do mar hâ uma
ilha, um atol, um rochedo, um cabo onde de repente
tudo poderâ acontecer, onde tudo se desvendarâ, tu-
do se iluminarâ, que bastarâ uma aurora um pouco
especial, ou um pôr-do-sol, ou qualquer outro acon-
tecimento sublime ou irrisôrio, uma passagem de aves,
um bando de baleias, a chuva, a calmaria absoluta,
o torpor de um dia tôrrido. E todos se agarram a essa
ilusâo, até o dia em que, ao largo da Terra do Fogo,
envolvido por um daqueles subitos tornados que na-
quela area sâo quase cotidianos, o barco naufraga.
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8
37
nota as retificaçoes e os comentârios que hoje julgo
dever acrescentar.
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Esse nâo era mcu pai. O outro tentou sem muito empe-
nho conseguir um lugar no mundo dos diamantistas no
quai seu cunhado o havla introduzido mas, apôs alguns
meses como engastador, preferiu renunciar a um futu-
ro prôspero e tornou-se operârio especializado.7
Em meu pai, gosto muito de sua despreocupaçâo.
Vejo um homem que assobia baixinho. Ele tinha um no
me simpâtico: André, Mas fiquei muito decepcionado
no dia em que soube que na verdade — digamos, nos
registros oficiais — ele se chamava Icek Judko, o que
para mim nâo signifie ava grande coisa.8
Minha tia, que gostava muito dele, que o educou
quase sozinha, e que assumiu o compromisso solene de
cuidar de mim, o que alias ela fez muito bem, me disse
um dia que ele era um poeta: que gazeteava na escola,
que nâo gostava de usar gravata, que se sentia melhor
na companhia dos amigos que com os diamantistas (o que
me deixa sem saber por que ele nâo escolhia seus amigos
entre os diamantistas).8
Meu pai também era muito valente. No dia em que
a guerra começou, foi à junta de recrutamento e se alis-
tou. Destacaram-no para o décimo segundo regimento
estrangeiro.
As lembranças que tenho de meu pai nâo sâo mui
to numerosas.
Em certa êpoca de minha vida, alias a mesraa a que
me referi anteriormente, o amor que eu tinha por meu
pai se confundiu com uma paixâo feroz pelos soldados
de chumbo. Minha tia me intimou certo dia a escolher,
para o Natal, entre um par de patins e um grupo de sol
dados de infantaria. Escolhi os soldados de infantaria;
ela nem se deu ao trabalho de me dissuadir e foi com-
39
prar os patins, o que sô lhe perdoei depois de muito tem
po. Mais tarde, quando eu estava começando a freqüen-
tar o liceu, toda manhâ ela me dava dois francos (acho
que eram dois francos) para meu ônibus. Mas eu punha
o dinheiro no bolso e ia para o liceu a pê, o que me fazia
chegar atrasado mas me permitia, très vezes por sema-
na, comprar um soldado (de argila, infelizmente) numa
lojinha situada em meu itinerârio. Um dia, inclusive,
vendo na vitrine um soldado agachado eom um telefo-
ne de campanha, lembrei-me de que meu pai opéra va
nas transmissôes10 e aquele soldado, comprado no dia
seguinte, tornou-se o centro habituai das operaçôes es-
tratégicas ou tâticas que eu empreendia com meu peque-
no exército.
Imaginava para meu pai varias mortes gloriosas.
A mais bêla era que ele fora ceifado por um tiro de me-
tralhadora ao levar, como estafeta, a mensagem da vitô-
ria ao general Fulano.
Eu era um pouco bobo. Meu pai tinha morrido de
maneîra estupida e lenta. Foi logo depois do armisticio.11
Ele estava no caminho de uma bomba perdida. O hospital
estava Iotado. Hoje ele é novamente uma pequena igreja
deserta numa cidadezinha inerte. O cemitêrio esta bem
conservado. Num canto apodrecem aïgumas cruzes de ma-
deira com nomes e numéros de registre.
Visitei uma vez o que se pode chamar o tûmulo de
meu pai. Foi num 1? de novembre. Havia lama por to
da parte.12
De vez em quando penso que meu pai nâo era um
imbecil. Digo-me em seguida que esse tipo de definiçâo,
tanto positiva como negativa, nâo tem maior alcance.
No entanto, consola-me um pouco saber que havia nele
sensibilidade e inteligêneia.
40
Nâo sei o que teria feito meu pai se ainda estivesse
vivo. O mais curioso é que sua morte, bem como a de
minha mâe, parece-me muito seguidamente uma evidên-
cia. XJm retorno à ordem das coisas.
II
41
usado, certamente logo lhe destinaram as tarefas dômes-
ticas de pôr a mesa, descascar as batatas, ïavar a ïouça.
P are ce que vejo, quando penso nela, uni a rua tortuosa
do gueto, com uni a luz mortîça, neve talvez, quitandas
miserâveis e mal iluminadas, diante das quais hâ filas
interminâveis. E minha mâe ali, uma coisinha de na-
da, insignificante como très batatas, enrolada quatro ve-
zes num xale tricotado, carregando um cesto escuro que
tem o dobro de seu peso.19
Mesmo assim a dispenso dos maus-tratos, embora
esteja mclinado a pensar que, no meio e nas circunstân-
cias que acabo de brevemente evocar, eles pudessem ser
comuns. Vejo, ao contrario, uma grande doçura e uma
grande paciência, muito amor. Âaron, meu avô, que ja
mais conbeci, adquire com freqiiência o aspecto de um
sâbio. A noite, arrumadas cuidadosamente suas ferra-
mentas,20 ele pôe os ôculos de armaçâo de aço e lê a Bî-
blia em voz alta. Os filhos sâo virtuoses e se dispôem por
ordem de tamanho em volta da mesa; Laja pega o prato
que um a um eles lhe estendem e derrama uma concha
de sopa.21
42
gino que sonhou. Foi buscar, em alguma parte, um atlas,
um mapa, uma estampa, viu a torre Eiffel ou o Àrco
do Triunfo. Pensou talvez uma porçâo de coisas: certa
mente nâo nos vestidos ou nos bailes, mas talvez no cli-
ma suave, na tranqüilidade, na felicidade. Bevem ter-
Ihe dito que nâo haveria mais massacres nem guetos, mas
dinheiro para todos.
E partiram. Nâo sei quando, nem como, nem por
que. Séria um pogrom que os expulsava, alguém que os
chamava?23 Sei que chegaram a Paris, seus pais, ela,
Soura, a irma mais moça, prova velmen te os outros tam-
bém. ïnstalaram-se no 20? arrondissement, numa rua
cujo nome esqueci.
Laja, a mâe, morreu. Minha mâe aprendeu, acre-
dito, o oficio de cabeleireira. Depois conheceu meu pai.
Casaram-se. Ela estava com 21 anos e dez dias. Foi em
30 de agosto de 1934 na Prefeitura do 20? arrondisse
ment. ïnstalaram-se na rua Vilin; passaram a gerenciar
um pequeno salâo de cabeleireiro.
Nasci no mes de março de 1936. Foi'am talvez très
anos de uma felicidade relativa que certamente se obs-
cureceu com as doenças de minha primeira infância (co
queluche, rubéola, varicela),21 dificuldades materiais
diversas, um futuro que se anunciava sombrio.
Veio a guerra. Meu pai se alistou e morreu. Minha
mâe tornou-se viu va de guerra. Vestiu luto. Deu-me a
criar. Seu salâo foi fechado. Passou a trabalhar como
operâria numa fâbrica de despertadores.25 Greio lem-
brar-me de que um dia se feriu e teve a mâo per fur ada.
Foi obrigada a ostentar a estrela.
Um dia ela foi comigo atê a estaçâo ferroviâria. Era
1942. Era a estaçâo de Lyon. Comprou-me uma revisti-
nha que dévia ser um Chariot. Àcho que a vi agitar um
43
lenço branco na plataforma no instante em que o trem
se punha em movimento. Eu ia para Villard-de-Lans,
corn a Cruz Vermelha.
44
rem juntas de saüde, casernas, casamentos e classes
em fim de ano letivo.
45
artigos fotogrâficos para olhâ-îas e invariavelmente
me surpreendo ao encontrâ-las por cînco ou dez fran-
cos nas lojas de departamentos.
46
O nome de m inha famîlia é Peretz. Ele se en-
contra na Biblia. Em hebraico quer dizer “buraco”,
em russo “pimenta”, em hüngaro (em Budapeste, mais
precisamente) é assim que se désigna o que chama-
mos Bretzel (Bretzel, alias, nâo é senâo um diminuti-
vo — Beretzele — de Beretz, e Beretz, assim como
Barulc ou Barek, é forjado a partir da mesma raiz que
Peretz — em arabe, quando nâo em hebraico, B e
P sâo um a ünica e mesma letra).
Os Peretz de bom grado fazem rem ontar sua ori-
gem a judeus espanhois expulsos pela Inquisiçâo (os
Perez seriam marranos) e dos quais se pode traçar a
migraçâo na Provença (Peiresc), depois nos Estados
do papa, e finalmente na Europa central, principal-
mente na Polonia, mas também na Romênia e na Bul-
gâria. Uma das figuras centrais da familia é o escri-
tor iidiche polonês Isak Leibuch Peretz, a quem todo
Peretz que se preze trata de ligar-se por intermédio
de pesquisas genealogicas as vezes acrobâticas. Quanto
a mim, séria sobrinho-bisneto de Isak Leibuch Peretz.
Ele teria sido o tio de meu avô.
Meu avô chamava-se David Peretz e vivia em Lu-
bar tow. Teve très filhos; a mais velha chama~se Es-
ther Chaja Perec; o do meio, Eliezer Peretz, e o mais
moço, Icelt Judlto Perec. No intervalo que sépara os
très nascimentos, ou seja, entre 1896 e 1909, Lubar-
tow teria sido sucessivamente russa, depois polonesa,
depois russa de novo. Segundo me explicaram, um
funcionârio de cartorio que ouve em russo e escreve
em polonês ou vira Peretz e escreverâ Perec. Nâo é im-
possivel que fosse o contrario: segundo m inha tia, os
russos é que teriam escrito “tz” e os poloneses “c”. Es-
sa explicaçâo aponta, mais do que esgota, toda a ela-
47
boraçâo fantasmâtica ligada à dissimulaçâo patro-
mmica de minha origem judaica que fïz em torno
de meu nome e que marca, além disso, a minüscula
diferença existente entre a ortografia do nome e sua
pronüncia: deveria ser Pérec ou Perrec (e é sempre
assim, com um acento agudo ou dois rr, que o escre-
vem espontaneamente); é Perec, sem no entanto se
pronunciar Peurec.*
48
Edmond Charles Gallée, prefeito da referida cidade,
assinaram o atestado de obito no mesmo dia às nove
horas. Meu pai completaria 31 anos très dias mais tarde.
49
to, ou, na escola, quando no reinicio das aulas, em
outubro, preenchiam-se as fichas para os professores
que ainda nâo conheciam voce: profissao do pai: fa-
lecido), como se a descoberta daquele minüsculo es-
paço de terra encerrasse por fim aqueia morte que
eu jamais aprendera, jamais experimentara, jamais
conhecera nem reconhecera, mas que me fora neces-
sârio, durante anos e anos, deduzir hipocritamente
dos cochichos compadecidos e dos beijos suspirosos das
damas.
Naquele dia eu estava usando, pela primeira vez,
um par de sapatos pretos e um terno escuro com fi-
nas listras brancas, completamente horrivel, do quai
nao sei mais que membro de minha familia adotiva
tivera a bondade de se ver livre me dando de présen
té. Voltei para Paris enlameado até quase os joelhos.
Calçados e terno foram limpos, mas dei um jeito de
jamais usà-Ios de novo.
50
de 1946 um de meus tios maternos visitou a rua de
l’Assomption — onde tu morava com m inha tia Es-
ther — e ali passou uma noite. Acho também que,
na mesma época, conheci um homem que havia es-
tado no mesmo regimento que meu pai.
51
23. Na verdade, minha mâe chegou a Paris com
a famdia quando era bem pequena, ou seja, prova-
velmente logo apos o fim da Primeira Guerra Mun-
diaï.
52
vestigio de Aron Szulewicz. Minha avo paterna, Rose,
deveu apenas à sorte o fato de nâo ter sido detida:
estava em casa de uma vizinha quando os policiais pas-
saram por sua casa; ela se refugiou por algum tempo
no convento do Sacré-Coeur e conseguiu chegar à zona
livre, nâo, como acreditei por muito tempo, fazendo-
se trancar dentro de um a mala, mas ocultando-se na
cabine do condutor do trem.
45
que considero pior que o primeiro, convence-me su-
ficientemente, hoje, a nâo querer recomeçar,
Isso nâo se deve, como aleguei por muito tem
po, a uma alternativa sem fim entre a sinceridade de
uma fala a encontrar e o artifïcio de uma escrita preo-
cupada exclusivamente em erguer suas muralhas: é
algo ligado à propria coisa escrita, tanto ao projeto
da escrita como ao projeto da lembrança.
Nâo sei se nâo tenho nada a dizer, sei que nâo di-
go nada; nâo sei se o que teria a dizer nâo é dîto por
ser indizivel (o indizivel nâo esta escondido na escrita,
é aquilo que muito antes a desencadeou); sei que o que
digo é branco, é neutro, é signo de uma vez por todas
de um aniquilamento de uma vez por todas.
É isso o que digo, é isso o que escrevo e é somente
isso o que se encontra nas palavras que traço e nas li-
nhas que essas palavras desenham e nos brancos que
o intervalo dessas iinhas deixa aparecer: por mais que
eu persiga meus lapsos ou passe duas horas m atutando
sobre o comprimento do capote de papai, ou busqué
em minhas frases, para evidentemente logo encontrâ-
las, as ressonâncias miüdas do Édipo ou da castraçâo,
sempre irei encontrar, em minha propria repetiçâo/ape-
nas o ültimo reflexo de um a fala ausente na escrita, o
escândalo do silêncio delbs e do meu silêncio: nâo es
crevo para dizer que nâo direi nada, nâo escrevo para
dizer que nâo tenho nada a dizer. Escrevo: escrevo por-
que vivemos juntos, porque fui um no meio deles, som
bra no meio de suas sombras, corpo junto de seus cor-
pos; escrevo porque eles deixaram em mim sua marca
indelével e o vestigio disso é a escrita: a lembrança de
les esta morta na escrita ; a escrita é a lembrança de sua
morte e a afirmaçâo de m inha vida.
54
9
— E depoist
— E depois o quel
— 0 que tenho a ver com essa histôria além do
fato de ter um homônimo afogado?
— Por enquanto, nada . Acho que séria antes
minha vez de entrar nela. 0 breve resumo desses acon-
tecimentos talvez o tenha feito acreditar que eu conhe-
cesse intimamente afam ûia Winckler, ou que per-
tencesse à rede que o ajudou a encontrar, aqui mesmo,
sob o abrigo de uma nova identidade, uma segurança
que nada, até o présenté, veto ameaçar. Nâo fo i isso
o que aconteceu. A té quinze meses atrâs, mais preci-
samente até 9 de maio do ano passado, data mais pro-
vâvel do naufrâgio, tanto sua histôria como a de seu
homôlogo me eram desconhecidas. Embora medtocre
melômano, eu sabia que Caecilia Winckler era uma
grande cantora e acho inclusive que a ouvi cantar no
papel de Desdêmona no Metropolitan pouco antes da
guerra. Em compensaçâo, embora eu jamais tivesse
tido relaçoes dire tas com sua famûia ou com quai-
quer de seus membros, conhecia de nome a organi-
zaçâo de apoio que o ajudou e apreciava o trabalho
considerâvel que ela realizava em varias partes do
mundo. Era umasimpatia de certo modo profissional;
55
me ocupo, com efeito — e é nessa qualidade que
intervenho hoje na histôria de Gaspard Winckler e,
indiretamente, na sua —, me ocupo de uma compa-
nhia de auxûio aos nâufragos. Trata-se de uma or
ganizaçâo privada, internacional, que recebe fundos
seja de organizaçoes de beneficência, seja de doaçôes
privadas, seja de algumas instituiçoes governamentais
ou municipais, o Ministério da Marinha Mercante,
por exemplo, ou a Uniâo das câmaras de comércio
do mar do Norte, seja, principalmente, das compa-
nhias seguradoras. Ela foi, na origem, uma espéde
de anexo do Bureau Véritas. Sabe o que é o Bureau
Véritasf
— Nâo — confessei.
—s E uma organizaçâo fundada no inicio do sé-
culo X IX e que publica anualmente uma série de es
tât isticas sobre as construçÔes navals, os movimentos
marïtimos, os naufrâgios e as avarias. No fim do sé-
culo passado, um dos dirigentes do Bureau manifes-
tou o desejo, em seu testamento, de que parte das
subvençôes, entâo muito volumosas, que os govemos
destinavam anualmente à organizaçâo fosse consagra-
da a socorrer os nâufragos, em vez de contentar-se em
contâ-los. A sugestao era perfeitamente estranha aos
estatutos do Bureau, mas as sociedades de salvamen-
to estavam na moda e o conselho administrative de-
cidiu dedicar 0,5% de seu orçamento anual à criaçâo
de um organismo filantrôpico que se encarregasse de
reunir todos 05 dados relacionados a embarcaçôes em
perigo e, na medida de seus limitados recursos, pres-
tar-lhes socorro. Umpouco mais tarde, 0 Lloyd’s Ré
gister o f Shipping e o American Bureau o f Shipping,
duas organizaçoes rivais do Bureau Véritas, associa-
56
ram-se a esse esforço e a sociedade de socorro aos nâu
fragos bem ou mal pôde desenvolver-se.
— Nâo entendo muito bem como vocês operam;
quando um barco afunda, vocês évidentemente nâo
estâo no local!
Otto Apfelstahl me olhou em silêncio durante al-
guns segundos. Notei que o bar estava de novo deser-
to; sozinho, bem ao fundo, um barm an de casaco pre-
to ~~ nâo era o que me havia servido nem um dos que
haviam chegado depois — acendia vêlas fixadas em_
velhas garrafas e arrumava as mesas. Olhei meu re-
lôgio; eram nove da noite. Meu nome ainda era Gas
pard Winckler? Ou sera que deveria ir atrâs de um
nome no outro lado do mundo?
— Quando um barco afunda — retomou enfim
Otto Apfelstahl (e sua voz me pare cia espantosamen-
te prôxima, e a menor de suas palavras me atingia
como se ele estivesse falando de mim ) —, ou hâ um
outro navio, nâo muito distante, que vemlhe prestar
socorro, é o que acontece no melhor dos casos, ou nâo
hâ, e os passageiros se amontoam a bordo de botes
salua-vidas ou em jangadas improvisadas, ouficam
à dériva agarrados a mastros, a destroços desampa-
rados que as correntes arrastam. A maioria submer
ge nas très ou quatro horas seguintes, mas alguns en-
contram, nâo se sabe apoiados em que esperança, a
força de sobreviver durante dias, durante semanas.
Hâ alguns anos resgatou-se um deles, a mais de 8 mil
quilômetros do local de seu naufrâgio, amarrado a
um tonel, parcialmente corroido pelo sal, mas ainda
vivo apôs mais de très semanas de infortunio. Talvez
o senhor saiba que um camareiro da marinha mer-
cante britânica sobrex/iveu quatro meses e meio numa
57
jangada, de 23 de novembro de 1942 a 5 de abril de
1943, depois que seu navio soçobrou no Atlântico ao
largo dos Açores. Esses exemplos sâo raros mas exis-
tem, assim como acontece ainda hoje de nâufragos
serem lançados a um recife ou a uma ilha deserta, ou
de encontrarem um frâgü refügio numa plataforma
de gelo que diminuidia a dia. E a nâufragos desse tipo
que nossa ajuda pode aplicar-se mais eficazmente. Os
grandes navios seguem rotas conhecidas e quase sem-
pre é possivel organizar o socorro rapidamente, mes-
mo em caso de avaria grave ou de incêndio criminoso.
Nossa açâo diz respeito sobretudo aos isolados, aos ia-
tes, àspequenas embarcaçôes de recreio, às traineiras
em perigo de naufrâgio. Graças a uma rede de corres-
pondentes hoje espalhados por todos os pont os névral
gie os, podemos num tempo recorde recolher todas as
informaçôes necessdrias e coordenar as operaçôes de
salvamento. E a nossos escritôrios que chegam as gar-
rafas lançadas ao mar e seu équivalente modemo, os
SOS emitidos pelas embarcaçôes em perigo. Ese, infe-
lizmente, na maioria das vezes nossas bus cas resultam
apenasna descoberta de cadâveresjâ emporte dilace-
radospelas aves marinhas, pode acontecer também que
uma de nossas embarcaçôes, um de nossos avides ou
helicôpteros, chegue a tempo aos locais de naufrâgio
para resgatar uma ou duas vidas humanas.
— Mas o senhor nâo disse ha pouco que o nau
frâgio do Sylvandre aconteceu hâ quinze mesesf
— De fato. Por que me faz essa perguntaf
— Sufonho que espera de mim que participe
dessa busca, nâo é mesmo?
— Exato — disse Otto Apfelstahl —, gostaria
que fosse até lâ e encontrasse Gaspard Winckler.
38
— Mas por que?
— Por que nâo?
— Eu quis dizer: que esperança razoâvel vocês
ainda podem ter de encontrar um nâufrago quinze
meses depois?
— Localizamos o Sylvandre apenas dezoïto ho-
ras apôs ele ter enviado sinais pedindo socorro. Ele
fora jogado de encontro ao quebra-mar de uma mi-
nûscula ilhota, ao sut da üha Santa Inès, a 54°35’ de
latitude sul e 73°14’ de longitude oeste. Malgrado um
vento extremamente violento, uma équipé de socor
ro da guaràa civil chilena conseguiu chegar ao iate
algumas horas mais tarde, na manhâ do dia seguin-
te. No interior, encontraram cinco cadâveres e cou
seguiram identificâ-los: eram Zeppo e Felipe, Angus
Pilgrim, Hugh Barton e Caeciha Winckler. Mas ha-
via um sexto nome na lista dos passageiros, o de uma
criança de uns dez anos, Gaspard Winckler, e eles nâo
encontraram seu corpo.
59
10
A RUA V IU N
60
houvesse, em alguma parte, uma pilha de toros de
madeira perfeitamente cübicos com os quais faziamos
pequenos fortes e automoveis como as personagens de
L ’île rose, de Charles Vildrac.
61
O imovel do numéro 24 é constituido por uma
série de pequenas construçôes, de um ou dois anda-
res, em tomo de um patiozinho um tanto sordido. Nâo
sei em quai delas habitei. Nâo procure! entrar no in-
terior das moradias, hoje em gérai ocupadas por tra-
balhadores imigrados portugueses ou africanos, con-
vencido de resto de que isso nâo reavivaria com mais
intensidade minhas ïembranças.
Acho que David, Rose, Isie, Cécile e eu morâva-
mos juntos. Nâo sei quantos cômodos havia, mas creio
que eram mais de dois. Também nâo sei onde Rose
tinha seu armazém (talvez no numéro 23 da rua Julien-
Lacroix, que cruza a rua Vilin em seu trecho inferior).
Esfher me disse um dia que Rose e David moravam
no 24, num local diferente do de meus pais, e que
era um a dependência de zelador. Talvez isso queira
simplesmente dizer que ficava no térreo e que era
muito pequeno.
DUAS FOTOS
62
sobrancelhas sâo muito finas e bem desenhadas. O ros-
to é oval, as bochechas bem marcadas. Minha mâe
sorri mostrando os dentes, sorriso um pouco tolo que
nâo lhe é habituai, mas que responde por certo ao
pedido do fotografo.
Tenho cabelos louros com uma onda muito bo-
nita na testa (de todas as Ïembranças que me faltam,
esta é talvez a que eu mais fortemente gostaria de ter:
minha mâe me penteando, fazendo-me aquela ondu-
laçâo engenhosa). Visto uma jaqueta (ou um casaqui-
nho, ou um abrigo) de cor clara, fechada até o pes-
coço, com um colarinho pequeno pespontado. Tenho
orelhas grandes, bochechas rechonchudas, um quei-
xo pequeno, um sorriso e um olhar de viés jâ muito
caracteristicos.
63
parece ser o casacâo daquele que esta tirando a foto
(meu pai?).
Minha mâe esta com um grande chapéu de fel-
tro cingido por um a faixa, e que lhe cobre os olhos.
Uma pérola esta presa ao lobo de sua orelha. Ela sorri
com doçura, inclinando muito levemente a cabeça
para a esquerda. Como a foto nâo foi retocada, o que
com toda a certeza aconteceu com a precedente, vê-se
que tem um a grande pinta junto da narina esquerda
(à direita na foto). Veste um mantô de tecido escu-
ro, de gola ampla, aberto sobre uma biusa certamente
de seda sintética, de colarinho redondo, fechada por
sete grandes botôes brancos, sendo que o sétimo quase
nâo dâ para ver, uma saia cinza com listras fininhas
que desce até a metade das canelas, mêlas talvez igual-
mente cinza e sapatos bastante curiosos, reforçados,
sola espessa de borracha, gâspea alta e grandes laços
de couro arrematados por uma espécie de bolota.
Es tou de boina, casacâo escuro de gola ragla fe-
chado por dois grandes botôes de couro e que desce
até a m etade de minhas coxas, os joelhos descober -
tos, meias de lâ enroladas nos tornozeîos e pequenas
botinas, talvez engraxadas, de um botâo sô.
Minhas mâos sâo gorduchas e minhas bochechas
rechonchudas. Tenho orelhas grandes, um. sorrisinho
triste e a cabeça ligeiramente inclinada para a es
querda.
No fundo hâ ârvores que jâ perderam boa parte
de suas folhas e uma menina que veste um casaco claro
com uma minüscula gola de pele.
64
BULEVAR DELESSERT
O EXODO
65
inferior por uma fina treliça metâlica e, bem ao fun-
do, um patio de fazenda com uma charrete.
Nâo sei onde ficava essa aldeia. Sempre achei que
fosse na Normandia, mas agora penso que ficava a
leste ou ao norte de Paris. Varias vezes, com efeito,
houve bombardeios muito proximos. Uma amiga de
m inha avo havia se refugiado la com seus filhos e me
levara junto. Ela contou a m inha tia que costumava
esconder-me debaixo de um edredom toda vez que
havia bombardeio, e que os alemâes que tomaram a
aldeia gostavam muito de mim, que brincavam co-
migo, e que um deles ficava o tempo todo me levan-
do para passear sentado sobre seus ombros. Ela fica-
va com muito medo — dizia à minha tia, que depois
me contou — de que eu dissesse alguma coisa que nâo
dévia dizer e ela nâo sabia como me instruir sobre es
se segredo que eu dévia guardar.
(Segundo m inha tia, ela era uma mulher muito
gorda e muito gentil. Costurava calças. Seu filho se
tornou médico. Sua filha trabalhou fazendo colares
de pérolas na empresa de meu tio, depois foi para os
Estados Unidos, casou-se e mandou buscar a mâe.)
UMA FOTO
66
boina prêta. O mantô é talvez o mesmo que ela veste
na foto tirada no bosque de Vincennes, a julgar pelo
botâo, mas desta vez eîe esta fechado. A boisa, as lu-
vas, as meias e os sapatos com cordôes sâo pretos. Mi
nha mâe é viüva. Seu rosto é a ünica m ancha clara
da foto. Ela sorri.
A ESC OLA
67
mento. Eram quadradinhos de papelâo amarelos ou
vermelhos nos quais estava escrito: “1 ponto”, emol-
durado de um a guirlanda. Quando se alcançava uni
certo numéro de pontos na semana, tinha-se direito
a uma medalha. Eu tinha vontade de ganhar uma me-
dalha e um dia a obtive. A professora a prendeu no
meu avental. Na saida, na escada, houve um empura-
em purra que se propagou de degrau em degrau e de
criança em criança. Eu estava no meio da escada e
derrubei uma menina. A professora achou que eu ti-
nha feito de proposito; precipitou-se em minha dire-
çâo e, sem ouvir meus protestas, arrancou minha me
dalha.
Vejo-me descendo a rua des Couronnes a correr
daquela m aneira particular que as crianças têm de
correr, mas ainda sinto fisicamente aquele empurrâo
nas costas, aquela prova flagrante da injustiça, e a
sensaçâo cenestésica daquele desequilibrio imposto pe-
los outros, vindo de cima de mim e incidindo sobre
mim, permanece gravada em meu corpo de forma tâo
intensa que me pergunto se essa lembrança nâo en-
cobre, na verdade, seu exato contrario: nâo a lem
brança de um a m edalha arrancada, mas a de uma
estrela pregada com alfinete.1
68
A P A R TW A
69
Uma caracteristica triplice percorre essa lem-
brança: pâra-quedas, braço na tipoia, faixa hernial,
coisas relacionadas a suspensâo, sustentaçâo, quase
protese. Para existir, é preciso um suporte. Dezesseis
anos mais tarde, em 1958, quando as vicissitudes do
serviço militar fizeram de mim um efêmero pâra-que-
dista, pude 1er, no minuto mesmo do salto, um texto
decifrado dessa lembrança: fui precipitado no vazio;
todos os fios se romperam; cai, sozinho e sem susten
taçâo. O pâra-quedas se abriu. A corola se desdobrou,
cabide frâgil e seguro antes da queda controlada.
70
— O estudo do diârio de bordo e dos documen
tas portuârios, preenchidos toda vez que o Sylvandre
fazia escala, e o cruzamento de diversas informaçoes
meteorolôgicas e radiogoniométricas nos permitiram,
posteriormente, reconstituir de maneira mais ou me-
nos satisfatôria as circunstâncias do naufrâgio. A ul-
tima escala do Sylvandre havia sido em Port Stanley,
nas Malvinas; dali o iate chegara ao estreito de Le
Maire, dobrara o cabo Hotm, e depois, em vez de con-
tinuar em direçâo ao Pacific o, subira para a baia de
Nassau alcançando, pela passagem muito estreita que
sépara as ilhas Hoste e Navarin, o canal de Beagle,
quase em /rente de Ushuaia. A 7 de maio, ao rneio-
dia, Hugh Barton, como todo dia, détermina as coor-
denadas e anota no diârio de bordo sua posiçâo: algo
como 57° de latitude sul e 71° de longitude oeste, ou
seja, mais ou menos na altura da peninsula de Breck-
nock, a parte mais ocidental da Terra do Togo pro-
priamente dita, entre as ilhas OBrien e Londonderry,
ao largo dos ûltimos contrafortes da cordilheira de
Darwin, ou seja, a menos de cem milhas maritimas
do local do naufrâgio. No dia seguinte, excepdonal-
mente, a posiçâo nâo é indicada ou, em todo caso,
o que para nos dâ no mesmo, nâo é anotada no diârio
de bor do. No dia 9, as très da madrugada, um ha-
leeiro norueguês em caça no mar de Weddell e um
radioamador da üha Trïstâo da Cunha captam uma
mensagem de alerta do Sylvandre, mas nâo conseguem
estabelecer comunicaçào com ele. A mensagem nos
é transmitida menos de duas horas depois, mas o iate
jâ esta mudo e em vâo nossas estaçôes de Punta Are-
nas e do cabo Hermite tentam entrar em contato.
Conclui-se do relatôno feito pornossos corresponden-
tes chilenos que o SOS do Sylvandre precedeu de mui-
to pouco, alguns minutos, talvez até apenas algumas
dezenas de segundos, a catdstrofe. As trancas dos bo
tes salva-vidas nâo estavam desaferrolhadas, très dos
cinco cadâveresnâo estavam sequer vestidos, ninguêm
teve tempo de pôr uma bôia individual. A violência
do choque deve ter sido terrîvel. Angus Pilgrim fo i
hteralmente esmagado contra a parede de sua cabi
ne; Hugh Barton teve a cabeça destroçada pela que-
da do mastro principal, Zeppo fo i despedaçado pelos
rochedos e Felipe decapitado por um cabo de aço. Mas
a morte mais hornvel fo i a de Caecilia; ela nâo mor-
reu imediatamente, como os outros, mas, com a es-
pinha que brada por um bau que, mal fixado, fora
arrancado de seu lugar no momento da colisâo, ten-
tou, certamente durante varias horas, alcançar e de-
pois abnr a porta de sua cabine; quando a équipé de
socorro chilena a descobriu, seu coraçâo mal havia
cessado de bâter e suas unhas ensangüentadas hatdam
arranhado profundamente a porta de carvalho.
— E o filho?
— Ele estava na cabine xnzinha à de Caecilia.
Tudo estava revirado, suas roupas, seus brinquedos.
Mas ele nâo estava la.
72
— Talvez tivesse caido no mar.
— Muito pouco provâvel. Séria preciso que ele
estivesse no convés e nâo havia nenhuma razâo para
isso.
— Mas se mesmo assim estivesse?
— As très da madrugada? Que estaria fazendo
no convés às très da madrugada?
— Alguém, Hugh Barton, por exemplo, talvez
tenha pensado que o espetâculo da tempestade po-
deria ter um efeito decisivo sobre o menino...
Mas Otto Apfelstahl sacudiu a cabeça.
— Nâo — disse ele —, nâo é possivel. Mesmo
se tivesse sido precipitado ao mar, o mar o tena des-
troçado contra as pedras do récif e e terîamos encon -
trado um vestigio, um indîcio, alguma coisa dele, san-
gue, uma mec ha de cabelo, um boné, um sapato, seja
o que for. Nâo, efetuamos buscas, nossos homens-râs
mergulharam quase até a exaustâo, esquadrinhamos
cada irregularidade do rochedo. Em vâo,
73
Peguei um cigarro. Sua mâo me ofereceu um is-
queiro aceso. Murmurez um agradecimento quase
inaudivel.
Permanecemos assim silenciosos durante talvez
cmco minutos. De quando em quando eu aspirava
uma longa baforada, acre e seca, de meu cigarro. Otto
Apfelstahl parecia perdido na contemplaçâo de seu
isqueiro, que virava e revirava em todos os sentidos.
Depois coçou duas ou très vezes o pescoço.
— Se ~ disse ele enfim, rompendo um silêncio
que se tornava cada vez mais pesado —, se conside-
rarmos a velocidade média do Sylvandre e sua posi-
çâo tal como foi calculada e anotada dia 7 de maio
ao meio-dia, percebe-se que no dia 9, as très horas
da madrugada, o late jà devena estar muito mais
adiante em direçâo a oeste. Se, por outro lado, admi-
tirmos que sô uma perturbaçdo extrema, um desvario
gérai, quase umpânico, pode impedir um comandan-
te de bordo de cumprir essa formalidade elementar,
mas mdispensâvel para a segurança de um barco, que
é uma indicaçào de posiçâo, chegamos necessariamen-
te a uma unica conclusâo. Percebe quai?
~ Creio perceber, mas nao estou certo de que
seja a unica.
— Que esta querendo dizer?
— Eles deram meia-volta para ir à procura dele,
isso pode querer dizer que o menino haviajugido, nâo
digo que nâo, mas também pode querer dizer que o ha-
mam abandonado e que em seguida se arrependeram.
— Sera que isso altéra alguma coisa?
— Nâo sei.
74
Fez-se novamente um longo silêncto.
— Como conseguiu me encontrarf — perguntei.
— Eu estava um pouco fascinado pot aquela ca-
tâstrofe, pela personalidade das vûimas, por aquela
espécie de mistêrio que cercava o desapare ciment o do
merdno. Escala apôs escala, reconstîtui a histôria da
idagem, entrei em contato com asfamilias e os amigos
dos desaparecidos, tive acesso às carias que haviam
recebido. Hâ très meses, aproveitando uma passagem
por Genebra, tive ocasiâo de encontrar o ex-secretâno
particular de Caecilia, voce o conhece, foi ele quem
lhe deu seus papéis de identidade; ele mefalou de sua
existência, me contou o que sabia de sua histôria. Você
era bem mais fâcil de descobnr que o outro. Existem
apenas 25 consulados sutços em toda a Alemanha...
— E mais de mil ilhotas na Terra do Fogo —
acrescentei como que para mim mesmo.
— Mais de mil, sim. Quase todas inacessiveis,
inabitadas, inabitâveis. E a guarda costeira argentina
e a chilena vasculharam incansavelmente as outras.
75
(...)
SEGUNDA PARTE
81
fêrtil e verdejante. A natureza profundamente hostil
do mundo circundante, o relevo acidentado, o solo
ârido, a paisagem constantemente glacial e brumosa
tornam ainda mais maravilhosa a campina fresca e
alegre que entâo se descortina: nâo mais a charneca
desértica varrida pelos ventos selvagens do Antârtico,
nâo mais os taludes retalhados, nâo mais as descar-
nadas algas que milhoes de aves marinhas nâo ces-
sam de sobrevoar, mas voles suaves coroados de bos-
quezinhos de carvalhos e plâtanos, caminhos de terra
margeados de pedras se cas empilhadas ou allas se bes
de amoras, grandes campos de mirtilos, nabos, bata-
tas-doces.
A despeito dessa clemência singular, nem osfue-
guinos nem os patagônios se implantaram em W.
Quando o grupo de colonos cujos descendentes for-
mam hoje a populaçâo inteira da ilha ali se estabele-
ceu no final do sêculo X I X , W era uma ilha absolu-
tamente deserta, como o sâo ainda quase todas as ilhas
da regiâo; a bruma, os récif es, os pântanos haviam
impedido sua abordagem; exploradores e geôgrafos
nâo haviam completado nem sequer haviam empreen-
dido o reconhecimento de seu traçado, e na maioria
dos mapas W nâo apareda ou era apenas uma mam lijijg
cha indistinta e sem nome cujos contornos impreci- ISlflI
si il
sos mal separavam a terra do mar. iijjli
A tradiçâo faz remontar a um certo Wilson afun-
11
daçâo e o prôprio nome da ilha. Desse ponto de par-
tida unânime, numerosas verso es foram propostas.
Numa, por exemplo, Wilson é um guardiâo de farol
cuja negligência teria sido responsâvel por uma tern-
vel catâstrofe; noutra, é o Uder de um grupo de con-
victs que teriam se amotinado ao serem levados para
il
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a Austrâlia; noutra ainda, é um capitâo Nemo des-
gostoso do mundo e que confia construir uma Cidade
idéal. Uma quarta versâo, bastante prôxima da an-
terior mas significativamente diferente, faz de Wilson
um campeao (outras dizem um treinador) que, exal-
tado pelo empreendimento olimpico, mas desesperado
com as dificuldades que Pierre de Coubertin entdo
enfrentava, e convencido de que o idéal olimpico so
podia ser rîdicularizado, conspurcado, desviado em
proveito de sôrdidos interesses mercantis, submetido
aos piores compromissos justamente por aqueles que
pretendiam servi-lo, résolve fazer de tudo para fun-
dar, ao abrigo das disputas chauvinistas e das mani-
pulaçôes ideolôgicas, uma nova Olîmpia.
Os detalhes dessas tradiçôes sâo desconhecidos;
mesmo sua legitimidaâe esta longe de ser garantida. Is-
so nâo tem maior importância. EspeculaçÔes habüido-
sas sobre certos costumes (por exemplo, talprixnlégio
concedido a tal aldeia) ou sobre alguns patronimicos
ainda em uso poderiamfomecer esclarecimentos sobre
a histôria de W, sobre a proveniência dos colonos
(sabendo-se com certeza, pelo menos, que eram bran-
cos, ocidentais e, inclusive, quase todos anglo-saxôes:
holandeses, alemâes, escandinavos, représentantes da-
quela classe orgulhosa que nos Estados Unidos
chamam-se Wasp), sobre o numéro deles, sobre as leis
que estabeleceram etc. Mas que W tenha sido funda-
da por piratas ou esportistas, isso, no fundo, é indife-
rente. 0 que é verdade, o que é certo, o que impressiona
à primeira vista, é W ser hoje uma terra em que o Es-
porte é rei, uma naçâo de atletas em que o Esporte e
a vida se confundem num mesmo esforço magnifie o.
A divisa orgulhosa
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F O R T IU S A L T ÏU S C IT ÏU S
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as fixa. Quase nada as confirma. Nenhuma cronolo-
gia a nâo ser a que arbitrariam ente reconstituf com
o passar do tempo. Tempo passava. Havia estaçôes.
Esquiava-se ou colhia-se feno. Nâo havia começo nem
fim. Nâo havia mais passado, e durante muito tem
po também nâo houve mais futuro; simplesmente
aquilo durava. Estava-se ali. A coisa se passava num
lugar que era longe, mas ninguém poderia ter dito
exatamente longe de que lugar, taîvez simplesmente
longe de Villard-de-Lans. De tempos em tempos mu-
dâvamos de lugar, ïamos para uma outra hospeda-
gem ou uma outra familia. As coisas e os lugares nâo
tinham nomes ou tinham vârios; as pessoas nâo ti-
nham rosto. Uma vez era uma tia, a vez seguinte era
uma outra tia. Ou entâo uma avo. Um dia encontrâ-
vamos uma prima e quase haviamos esquecido de que
tmhamos uma prima. Depois nâo encontrâvamos mais
ninguém; nâo sabiamos se aquilo era normal ou nâo,
se ia continuar o tempo todo assim ou se era apenas
provisorio. Sera que havia épocas de tias e épocas sem
tias? Nada perguntâvamos, nâo sabiamos muito bem
o que caberia perguntar, deviamos sentir um pouco
de medo da resposta que teriamos obtido câso pen-
sâssemos em perguntar alguma coisa. Nâo colocâva-
mos nenhum a questâo. Esperâvamos que o acaso fi-
zesse voltar a tia ou, se nâo aquela tia, um a outra,
afinal, pouco importava saber quai das tias séria e in
clusive que houvesse tias ou que nâo as houvesse. Na
verdade, sempre estâvamos um pouco surpresos de que
houvesse tias, e primas, e um a avo. Na vida, passâ-
vamos muito bem sem elas, nâo viamos muito bem
para que aquilo servia, nem por que eram pessoas
mais importantes que as outras; nâo gostâvamos muito
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daquele jeito que elas tinham, as tias, de aparecer e
desaparecer a toda hora.
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o rnenor sentido em W —, acarreta automaticamen-
te a desqualificaçâo, ou seja, a derrota, sançâo aqui
extremamente importante, para nâo dizer capital),
o nâo-respeito de um costume, quando nâo esté ligado
à competiçâo, sô pode ter um significado de desafio:
sobre essa base muito simples se construiu o mecanis-
mo, bastante complexo, que rege os encontros entre
as aldeias.
Para compreender esse mecanismo, que ê um dos
pilares da vida W, cumpre precisar um pouco essa
noçâo de “aldeia”: as aldeias nâo agrupam a totali-
dade dos habitantes de W, mas apenas os esportistas
e aqueles que, embora nâo praticando mais nenhum
esporte, embora nâo participando mais das compe-
tiçôes, sâo diretamente necessârios aos esportistas:
os diretores de équipé, os treinadores, os médicos, os
massagistas, os nutricionisias etc. A queles cuja atvm-
dade esta ligada, nâo aos individuos, mas a seus com-
bates, ou seja, na ordem decrescente da hierarquia
e das responsabilidades, os organizadores, os direto
res de corrida, os juïzes e os ârbitros, os cronometris-
tas, os guardas, os musicos, os portadores de tochas
e estandartes, os lançadores de pombas, os varredo
res de pista, os servidores etc., alojam-se nos estâdios
ou em dependências anexas. Os outros, aqueles cuja
atividade nâo esta ou nâo esta mais diretamente re-
lacionada com o Esporte, isto é, principalmente os
velhos, as mulheres e as crianças, se alojam num con-
junto de prédios situados a alguns quilômetros a su-
doeste de W e chamado a Fortaleza. É la que se en-
contram, entre outros, o hospital e a enfermana
central, o asilo, as casas de jovens, as cozinhas, os ate-
liès etc. 0 prôprio nome Fortaleza vem do prédio cen
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tral, uma torre com ameias, quase semjanelas, cons-
truîda numa pedra cimenta e por osa, uma espécie
de lava petrificada, e cujo aspecto evocaria mais ou
menos o de um fa ro l Essa torre serve de sede ao Go-
vemo Central de W. É la que, no maior segredo, sâo
tomadas as decisoes mais importantes, aquelas, em
particular, que dizem respeito à organizaçâo das
maiores reuniôes esportivas, osJogos, que sâo em nu
méro de très: as Olimpiadas, as Espartaquiadas e as
Atlantiadas. Os membros do Govemo sâo escolhidos
entre os Organizadores e o corpo de Jtuzes & Ârbi-
tros, mas jamais entre os Atletas. A gestâo de uma
cidade esportiva exige, com efeito, uma imparciali-
dade total, e qualquer que fosse o atleta, nâo im
porta sua honestidade, seu senso do fair play, séria
muito tentado a favorecer sua propria vitôria ou a
de sua équipé para respeitar atê o fïm a neutralida-
de implacavel dosJutzes. De maneira mais gérai, ne-
nhuma funçâo administrativa, em escalâo algum, ja
mais ê confiada a um Atleta em exercido: as aldeias
e os estâdios (de certo modo os nweis municipais do
Govemo) sâo geridos por funcionârios nomeados pe-
lo Poder Central e geralmente escolhidos entre os cro-
nometrïstas e diretores de corrida (entende-se por “di-
retor de corrida” um suborganizador responsâvel pelo
desenrolar normal de uma prova; convém nâo con-
fundi-lo com um “diretor esportivo”, ou “diretor de
équipé”, responsâvel pelo treinamento e boa condi-
çâo dos Atletas).
Em suma, em W, uma aldeia é mais ou menos
o équivalente do que alhures chamariam uma uvila
olimpica”, do que na prôpria OUmpia chamavam o
Leonidaion, ou ainda daqueles campos de treinamen-
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to onde esportistas de um ou vârios païses passam um
periodo para entrât em forma às vésperas dos gran
des encontros intemacionais.
Cada aldeia possui, além dos alojamentos dos
Atletas, pistas de tremamento, um ginâsio, uma pis-
cina, salas de massagem, uma enfermaria etc. A meio
caminho de cada aldeia existe um estâdio, de dimen-
sôes bastante mo destas, reservado às competiçôes en
tre as duas aldeias que lhe sâo conexas. Mais ou me
nos no centro do quadrilâtero formado pelas quatro
aldeias encontra-se o Estâdio Central, muito mais im-
ponente, onde têm lugar osJogos, isto ê} as competi
çôes que opôem représentantes de todas as aldeias,
e as assim chamadas fprovas de seleçâo ”, ou simples-
mente "seleçôes”, isto é, encontros que opôem as al
deias nâo conexas. De fato, compreende-se que W,
por exemplo, possa enfrentar-se dianamente com
Norte- W {no estâdio que lhes é comum, a meio ca
minho de W e Norte-W) e com Oeste-W {no estâdio
a meio caminho de W e Oeste-W), mas hâ pouca
chance de se medir com Noroeste-W, aldeia com a
quai nâo partilha diretamente um estâdio. Do mes-
mo modo, Norte-W tem poucas ocasiôes de confron-
to com Oeste-W. Hâ portanto entre as aldeias opor-
tunidades de encontro bastante diferenciadas. Como
isso se produz com freqüência, essa diferença exacer-
bou a oposiçâo das aldeias entre si; por uma espécie
de reflexo l‘a ldeâo”, os Atletas acabam por conside-
rar os Atletas da aldeia que nâo lhes é conexa como
sens piores inimigos. As disputas entre duas aldeias
nâo conexas sâo assim animadas por um espirito com-
bativo, uma agressimdade, uma vontade de vencer que
dâo a essas competiçôes um atrativo que nem sempre
91
têtu as disputas entre aldeias conexas e, menas ain-
da, as provas de classificaçdo no interior de uma uni-
ca aldeia.
As competiçôes, como vemos, sâoportanto de qua-
tro tipos. Na base da escala hâ os campeonatos de clas-
sificaçâo, 677i que os Atletas de uma mesma aldeia ga-
nham o direito de participar das disputas interaldeias.
A seguir vêm os campeonatos locais, que opôem
as aldeias conexas; hâ quatro desses campeonatos: W
contra Norte-W, W contra Oeste-W, Norte-W con
tra Noroeste-W, Oeste-W contra Noroeste-W.
Depois as “seleçôes”, que opôem as aldeias nâo
conexas, W contra Noroeste-W e No 7'te-W contra
Oeste- W.
Enfzm osjogos, que, como dissemos, sâo em nu
méro de très: as Olimpfadas, que se realizam uma vez
por ano; as Espartaqufadas, que se realizam a cada
très meses e sâo, excepcionalmente, abertas aos Atle
tas nâo classificados em sua aldeia; e as Allant fadas,
que se realizam todos os meses.
A data dosJogos êfixada pelo Governo Central.
Os outros encontros sâo regidos pelo princfpio do de-
safio: toda manhâ, por ocasiâo do circuito de treina-
mento, um Atleta de uma das aldeias, designado na
noite antenor por seu diretor esportivo, parte em sen-
tido contrario e desa/ia o primeiro atleta que encon-
trar. Très possibilidades podem ocorrer: ou o Atleta
que ele desafia é um Atleta de sua prôpria équipé e
as competiçôes do dia serâo campeonatos de classifi-
caçâo interna; ou pertence a uma das duas aldeias
conexas, e nesse caso haverâ campeonatos locais; ou
entâo pertence à aldeia nâo conexa e haverâ uma
disputa de seleçâo.
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15
93
reita, de cima para baixo, o sitio dos Garde, onde mo-
ravam Marc, o irmâo de meu tio David, sua mulher
Ada e seus filhos Nicha e Paul, e um pouco mais aci-
ma, à esquerda, uma casa de campo chamada o ïglu,
onde viviam Berthe, a irma de David, seu marido Ro
bert e seu filho Plenri.
Acho que eu sabia o que era um iglu: abrigo fei-
to de blocos de gelo empilhados, construido pelos es-
quimos; mas certamente nâo conhecia a significaçâo
da palavra frim as , que designava a casa de campo
que minha tia ocupava. Até este minuto mesmo, em
que um escrupuîo tardio de autobiografo me levou
a consuîtar diversos dicionârios, acreditei na explica-
çâo que certamente me deram na primeira vez que
perguntei o que aquilo queria dizer: um équivalente
poético do inverno que evoca ao mesmo tempo a bran-
cura da neve e o rigor do clîma, e so agora venho a
saber — perguntando-me como pude ignorâ-lo por
tanto tempo — que désigna muito mais especifica-
mente o nevoeiro que congela.
Da casa de campo propriamente, nâo guardo ne-
nhum a lembrança précisa, embora tenha passado
diante delà nâo faz muito tempo, em setembro de
1970. Sei que hâ uma escada extema, flanqueada por
uma m ureta que sustenta grandes bolas de pedra: is-
so porque très dessas bolas sâo visiveis num a foto em
que aparecem, agrupados na escada, num dia de ve-
râo, alguns adolescentes entre os quais se podem re-
conhecer m inha prima Eîa e meu primo Paul.
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bigode cinza, que usava camisas sem colarinho (essas
camisas sem colarinho que Orson Welles gosta de fa-
zer Aldm Tam iroff usai* e que para mim sempre evo-
cam a dignidade perdida dos apâtridas ou o orgulho
humilhado dos grâo-duques transforma dos em car-
regadores) e de quem conservo uma lembrança niti-
da: ele serrava sua madeira sobre um cavalete formado
por duas cruzes paralelas, apoiadas na extremidade
de seus dois montantes de m aneira a formar aquela
figura em X que chamamos “Cruz de Santo André”
e reunidas por uma travessa perpendicular, o conjunto
chamando-se, muito singelamente, um X.
Minha lembrança nâo é uma lembrança da ce-
na, mas lembrança da palavra, simples lembrança
dessa letra transform ada em palavra, desse substan-
tivo unico na lingua a ter apenas um a ünica letra,
ünico também pelo fato de so ele ter a forma daquilo
que désigna (o tê do desenhista se pronuncia como
a letra que ele représenta, mas nâo se escreve “T ”),
mas signo também da palavra que se anula com um
risco — a seqüência de x sobre a palavra que nâo se
quis escrever —, signo contraditorio da ablaçâo [em
neurofisiologia, onde, por exemplo, Borison e McCar-
thy (J. Appl. Physiol., 1973,34:1-7) opôem aos gatos
intatos {intact), gatos dos quais cortaram seja os nervos
vagos ( VAGX ), seja os nervos carotidianos (CSNX)]
e da multiplicaçâo, da ordenaçâo (eixo dos X) e da
incognita matemâtica, ponto de partida enfim de uma
geometria fantasmâtica em que o V desdobrado cons-
titui a figura de base e cujas combinaçôes mültiplas
traçam os simbolos maiores da historia de minha in-
fância: dois V ligados pelas pontas desenham um X;
prolongando as hastes do X por segmentos iguais e
95
perpendiculares, obtém-se uma cruz gamada ( JJj ),
ela propria facilmente decomponfvel, por uma rota*
çâo de 90° de um dos segmentos em 5 sobre seu ân-
gulo inferior, no signo % ; a superposiçâo de dois V
em posiçôes invertidas leva a uma figura ( XX ) da
quai basta reunir horizontalmente as hastes para ob-
ter uma estrela judaica ( $ ). É na mesma perspecti-
va que me lembro de ficar impressionado pelo fato
de Charlie Chaplin, em O grande ditador, ter substi-
tuido a cruz gamada por uma figura idêntica (do pon-
to de vista de seus segmentos) que adquire a forma
de dois X entrecruzados ( \ ).
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escuro e de confecçâo bastante curiosa: nâo parece ter
braguilha e se abotoa dos lados; nâo é impossfvel que
fosse um short de minha prima Ela, alias é muito gran
de para mim, nâo tanto em comprimento (pude veri-
ficar em outras fotos — de Henri e de Paul, entre ou
tras — que as calças curtas chegavam facilmente, na
época, quase até os joelhos), mas em largura, o que
sublinha o tamanho do cinto que o prende à cintura;
tenho as pernas nuas, muito bronzeadas; talvez meus
joelhos tivessem tendência a se tocar (parece que, ao
chegar em Villard, eu era muito raquitico, mas isso
quase nâo é visivel na foto); estou com sandâlias bran-
cas que deviam ser de borracha ou imitaçâo de bor-
racha; olho diretamente para a objetiva, com a boca
entreaberta e um meiô sorriso; minhas orelhas sâo
imensas e bastante salientes.
97
Embora cronologicamente impossfvel, jâ que ela
sô teria podido desenrolar-se em pleno inverno, e a des-
peito do desmentido de que foi objeto mais tarde, é
nesse primeiro e curto perfodo que me obstino em si-
tuar a seguinte cena: desço com m inha tia a estrada
que leva à aldeia; no caminho, minha tia encontra uma
senhora, sua amiga, a quem digo bom-dia estenden-
do a mâo esquerda; alguns dias antes, fazendo pati-
naçâo no gelo na pista que se estende abaixo dos Bains,
fui derrubado por um treno pequeno; cai de costas e
quebrei a omoplata; é um osso que nâo dâ para en-
gessar; para que ele pudesse reconstituir-se, prende-
ram-me o braço direito nas costas com todo um siste-
ma de contençâo que me impedia o menor movimen-
to, e a m anga direita de meu casaco pende no vazio,
como se eu fosse defmitivamente maneta.
Nem minha tia nem m inha prima Ela guarda-
ram lembrança alguma dessa fratura que, suscitan-
do o compadecimento gérai, era para mim fonte de
uma inefâvel felicidade.
Em dezembro de 1970 fui passar uns dias na ca
sa de um amigo que vivia em Lans, a sete quilôme-
tros de Villard, e la conheci um pedreiro chamado
Louis Argoud-Puix. Nascido e criado em Villard, ti-
nha aproximadamente minha idade e nâo tivemos ne-
nhum a dificuldade para evocar a lembrança de um
colega comum, Philippe Gardes, cujos pais hospeda-
ram por um bom tempo Marc, Ada, Nicha e Paul
e cuja irmâ mais velha mais tarde veio a casar-se com
Nicha. Quando de meu ültimo ano em Villard, fre-
qüentei a escola püblica com Philippe. Louis Argoud-
Puix me afirmou que havia feito toda a escola com
Philippe, mas nâo se lembrava em absoluto de mim.
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Perguntei-lhe se estava lembrado do acidente que me
teria ocorrido. Tam bém nâo se lembrava, mas nâo
deixava de surpreender-se muito, pois conservava a
lembrança précisa de um acidente exatamente idên-
tico tanto em suas causas (patinaçâo no gelo, choque
do trend, queda de costas, fratura da omoplata) co-
mo em seus efeitos (impossibilidade de engessar, re-
curso a uma contençâo de aparência mutiladora)
ocorrido a esse mesmo Philippe num a data que alias
nâo soube precisar.
O fato aconteceu, um pouco mais tarde ou um
pouco mais cedo, mas nâo fui sua vitima heroica e
sim um a simples testemunha. Como no episodio do
braço na tipoia da estaçâo ferroviâria de Lyon, per-
cebo bem o que aquelas fraturas eminentemente re-
parâveis e que demandavam apenas uma imobilizaçâo
temporâria podiam substituir, ainda que a metâfo-
ra, hoje, me pareça inopérante para descrever com
precisâo o que havia sido quebrado e que sem düvida
era inütil esperar encerrar no simulacro de um mem-
bro fantasma. Mais simplesmente, essas terapêuticas
imaginârias, menos de contençâo que de apoio, esses
pontos de suspensào, designavam dores nomeâveis e
vinham no momento oportuno justificar caricias cujas
razôes reais so eram dadas em voz baixa. Seja como
for, e tâo remot amen te quanto me lembro, a palavra
omoplata e sua comparsa, a palavra clavicula, sem-
pre me foram familiares.
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100
combinavam varias disciplinas, o pentatlo e o deca-
tlo. Muito inexplicavelmente, mas talvez por razôes
morfolôgicas, o salto com vara nâo é, ou nâo é mais,
praticado. Também nâo hâ provas de revezamento;
elas nâo teriam aqui nenhum sentido, nâo seriam
compreendidas pelo publico: a vitôria de um homem
é sempre a vitôria de sua équipé, a vitôria upor équi
p é ” nâo quer dizer nada.
Para garantir o interesse dosJogos é preciso évi
dent emente que a luta entre os représentantes das al-
deiasseja renhida. Assim, cada aldeia tem de alinhar
concorrentes no inicio de cada prova e deve, porcon-
seguinte, formar seus homens tendo em vista essa obri-
gaçâo. Com isso o treinamento dos Atletas obedece
a uma especializaçâo intensa e procura-se formar, pa
ra cada tipo de prova, aqueles que serâo os melhores
nessa prova e somente ne la.
O efetivo de uma aldeia oscila entre 380 e 420
Atletas. Entre estes, um numéro varidvel (entre cin-
qüenta e se tenta ) de noviços {sâo rapazes de catorze
anos que, vindo das Casas de jovens, chegam à aldeia
à medida que os veteranos a abandonam ) e um nu
méro invariâvel de concorrentes, 330 divididos em 22
équipés de quinze Atletas cada uma. Quando um
Atleta deixa sua équipé, seja por ter atingido o limi
te de idade, seja por nâo ser mais capaz de nenhuma
performance aceitâvel, seja por causa de um aciden-
te, os Dire tores esportivos escolhem, entre os noviços
■mais antigos {eles têm entâo dezessete ou dezoito anos),
o que lhes parece, com base em critérios morfolôgi-
cos, fisiolôgicos e psicolôgicos e também a partir dos
resultados obtidos no treinamento, o mais capacita-
do para ocupar seu lugar.
101
As provas de classificaçâo regularmente pratica-
das em cada aldeia para cada équipé permitem de-
terminar quais os très melhores dentre esses quinze
Atletas. Sâo esses très Atletas classificados que repre-
sentam a aldeia nos campeonatos locais, nas provas
de seleçao e nas Olimpiadas. Os dois melhores têm,
além disso, o direito,ferozmente cobiçado, de parti-
cipar das Atlantiadas. Em compensaçâo, sâo os doze
ultimos, isto ê, os Atletas nâo classificados, que to-
mam parte nas Espartaquiadas.
Vê-se que esse modo de repartiçâo de certa forma
dinâsiico responde sobretudo a um cuidado de orga-
nizaçâo; ele permite uma contagem exata e rigorosa
dos Atletas, o que, do ponto de vista das Autorida-
des, reduz ao mâximo todas as operaçoes de contrôle.
Sabe-se de uma vez por todas que hâ, em toda a W,
sessenta sprinters de 100 m rasos divididos em quatro
équipés de quinze, que seis participam dos campeo
natos locais ou das provas de seleçâo, oito das Atlan
tiadas, doze das Olimpiadas e 48 das Espartaquiadas.
Sabe-se, do mesmo modo, que as Atlantiadas reûnem
176 concorrentes, as Olimpiadas, 264 e as Espartaquia
das, 1056. Umavezfixados, esses numéros nâo tarda-
ram a tornar-se imutâveis, incorporaram-se ao ritual
das éliminâtorias; graças a eles, o desenrolar de uma
disputa, seja quaifor, tem sempre garantida uma re-
gularidade absoluta, o que so pode satisfazer a A dmi-
nistraçâo dosJogos, sempre desejosa de eficâcia.
Esse sistema apresenta evidentemente alguns in-
convenientes para os Dire tores esportivos, quer sejam
responsâveis por uma aldeia inteira ou apenas poruma
équipé. 0 mais grave, sem dûvida, é impedir a acumu-
laçâo defunçôes. Sabe-se — as medalhas de ouro da
102
maior parte dos Jogos, as duplas vitôrias de Thorpe
em Estocolmo, de Phll em Anvers, de ÎCuts em Mel
bourne, de Snell em Tôquio, as tnplices vitôrias de
Zatopec em Helsinque e de Owens em Ber Uni, a qua
drupla vitôria de Paavo Nurm i em Paris estâo ai para
demonstrâ-lo — que um sprinter êgeralmente tâo boni
nos 100 m rasos quant o nos 200, um corredor de dis-
tância média nos 800 e nos 1500, um fundista nos
5000, nos 10 000 e na maratona. A maior parte dos
Diretores esportivos teria assim o maior interesse, an
tes de uma grande competiçâo, de ahnhar um mes-
mo Atleta — o que estivesse no melhor de sua forma
— na partida de varias provas. Embora seja teorica-
mente possivel, embora nenhuma lei escrita proîba a
acumulaçâo de funçôes, issojamais aconteceu: nenhu
ma aldeia jamais se arriscou a indicar num encontro
menos concorrentes do que o normalmente prewsto,
decerto por receio de indispor os Organizadores, quan-
do nâo por que a apresentaçâo dos Atletas as Autori-
dades, por ocasiâo da abertura das Olimpiadas, por
exemplo, simula a forma de um W grandioso dese-
nhado pelos 264 concorrentes, e uma équipé com efe-
tivo reduzido (mas contando com um sô de seus cam-
peôes para arrebatar varias vitôrias) perturbaria a
perfeiçâo desse mosaico humano.
Préféré-se admitir, mesmo se nem sempre isso de
fato se verifica, que os métodos de treinamento sâo
suficientemente apropriados aos diferentes tipos de
prova para que um sprinter, por exemplo, possa ser
especificamente preparado para os 100 métros, en-
quanto um outro o serâ para os 200.
103
Resta, é claro, o caso do pentatlo e do decatlo.
Uma das conseqüências desse treinamento ultra-es-
pecializado é que nâo se ter)i tempo — nem, a bem
àizer, método — paraformar umAtleta capaz de pra-
ticar cmco ou dez provas diferentes coin um minimo
de eficâcia. O treinamento pluridisciplinar que se-
guem os noviços em seus primeiros anos na aldeia
séria ainda o mais bem adaptado, mas os pequenos
esforços empreendidos para realizâ-lo de maneira pro-
fissional, a fim de formar Atletas realmente pouva
ient es, nâo forum coroados de sucesso. Jsso se explica
Jacilmente: as leis do esporte W, como cada aldeia
logo compreendeu, sdo feitas de toi modo que é pre-
ferivel fazer de tudo para ganhar cinco corridas, com
cmco Atletas preparados para apenas essas corridas,
a uma ûnica vitôria com um ûnico Atleta que triun-
fasse em cinco ou dez provas.
Os Organizadores, de inicio espantados com a
fraqueza verdadeiramente deplordvel dos resultados
obtidos nos decatlos e pentatlos, por pouco nâo su-
primiram essas provas. Mantiveram-nas, afinal, mas
adaptanclo-as de maneira totalmente original à me-
diocndade dos concorrentes: fizeram delas prôvas para
nr, falsas provas destinaclas a relaxar o publico da ten-
sâo extremamente forte que impera durante a maior
parte das competiçoes: ê disfarçados de palhaços, com
os rostos pintados de maneira exagerada, que os con
correntes do pentatlo e do decatlo entrain no estâdio,
e cada prova é um pretexto para a troça: os 200 mé
tros rasos sâo corridos a pé-coxinho, os 1500 métros
sào uma corrida com saco, a tâbua de suporte do sal-
to em distância com freqüência é perigosamente en-
sebada etc. A vitôria nessas provas requer por certo
104
algumas aptidôes esportivas,, mas sobretudo qualida
des de ator, um certo senso da pantomima, da paro
dia ou do grotesco. Um noviçofazedor de curetas, ou
com tiques nervosos, ou com uma leve desvantagem,
se é raquûico, por exemple, ou se coxeia ou arrasta
um pouco a pem a, ou se apresenta alguma tendên-
cia à obesidade, ou, ao contrario, se é de uma ma-
greza extrema, ou se possui um forte estrabismo, corre
o grande risco ~~ mas com freqüência se correm ris-
cos ainda maiores que o de se entregar àsfacécias de
um pûblico folgazâo — de iniegrar a équipé do pen
tatlo ou do decatlo.
É também ai — ranssimo exemplo de mudança
de équipé — que poderâ participât, caso tenha con-
tado com os apoios necessârios, um Atleta afastado
para sempre da competiçâo em conseqüência, por
exemplo, de um acidente, se ainda forjovem demais
para usufruit os direitos dos veteranos e manifesta-
mente inapto para vir a ser treinador.
17
106
de batalha naval movel (variante bastante compli-
cada da batalha naval em que os navios, como se
sabe, têm o direito de se deslocar durante a partida;
terei a oportunidade de voltar a falar desse jogo); eles
nâo me deixaram entrar na partida, afirmando que
eu era muito pequeno para compreender seu meca-
nismo, o que me humilhou bastante.
107
___ ____ ____ ___ _________________________ ______________ ____ ___ - ■■- --------------------------------------- -
E claro que a organizaçâo de base da vida espor:
tiva em W (a existência das aldeias, a composiçâo das
équipés, as modalidades de seleçâo, para dar dessa
organizaçâo apenas exemplos elementares) tem por
finalidade ûnica exacerbar a competiçâo, ou, se qui-
serem, exaltar a vitôria. Desse ponto de vista, pode-
se dizer que nao existe sociedade humana capaz de
rivalizar com W. O struggle for life é a lei aquz; mas
a luta em si também nada significa, nao é o amor do
_
esporte pelo esporte, da façanha pela façanha, que
anima os homens W, e sim a se de da vitôria, da vitô
ria a qualquer preço. 0 pûblico dos estâdios jamais
perdoa a um Atleta ter perdido, e nâo poupa seus
aplàusos aos vencedores. Gloria aos vencedores! A i dos
venctdos! Para o esportista profissional que é o cida-
dâo de uma aldeia, a vitôria é a ûnica saida possivel,
a umca chance. A vitôria em todos os niveis: em sua
prôpna équipé, nas disputas com as outras aldeias,
nos Jogos, enfim e sobretudo.
Como todos os outros valores morais da socieda
de W, essa exaltaçâo do triunfo encontrou na vida
cohdiana sua expressâo concreta: cerimônias grandio-
sas sâo dadas em honra dos Atletas vitoriosos. É ver-
dade que os vencedores sempre foram celebrados, que
108
subiram ao pôdio, que para elesfoi tocado o hino de
sua naçâo, que receberam medalhas, troféus, taças,
diplomas, coroas, que sua cidade natal fez deles cida-
dàos eméritos, que seu govemo os condecorou. Mas
essas celebraçoes e homenagens em nada se compa-
ram com as que a naçâo W réserva a seus vencedores.
Toda noite, quaisquer que tenham sido as competi-
çôes disputadas no dia, os très primeiros de cada sé
rie, apôs terem subido ao pôdio, apôs terem sido lon-
gamente aplaudidos pela multidâo, que lhes lançou
flores, confetes, lenços, apôs terem recebido das mâos
dos caligrafos oficiais o diploma brasonado que imor-
taliza seu feito, apôs terem. tido o insigne privilégio de
içar a bandeira de sua aldeia no alto dos mastros olim-
picos, os très primeiros de cada série sâo conduziclos,
precedidos dos portadores de tochas e estandartes, dos
lançadores de pombas e das fanfarras, aos grandes sa-
lôes do Estâdio Central, onde é preparada para eles
uma recepçâo ritual, cheia de brilho e munificência.
Eles retiram seus abrigos e sâo convidados a escolher
um traje magnifie o} uma casaca enfeitada, uma capa
de seda com galôes rutilantes, um uniforme rendado
coberto de condecoraçôes, um fraque, um gibâo com
peitilho pregueado e omamentos de renda. Sâo leva-
dos até diante das Autoridades, que brindam à sua
saûde, congratulando-o$. Sâo arrastados num turbi-
Uxâo de brindes e libaçôes. Oferecem-lhes um banqueté
que se prolonga quase até o amanhecer: as iguarias
mais requintadas lhes sâo oferecidas, os vinhos mais
capitosos, as cames mais finas, as guloseimas mais sa-
borosas, as bebidas alcoôlicas mais embriagadoras.
As festas celebradas no momento dos grandesfo-
gos têm evidentemente mais amplitude e mais brilho
J 09
que as /estas dadas aos vencedores dos campeonatos
de classificaçâo ou dos campeonatos locais. Mas essa
diferença, poracentuada que seja, nâo é essencial para
a compreensâo do sistema de valûtes praticado em W.
O que em contraparticla é muito mais signi/icativo,
e que constitui inclusive um dos traços mais originais
da sociedade W, nâo é que os vencidos sejam exclu-h
dos dessas /estas — isso séria apenas justiça — mas
que sejam purci e simplesmente privados da re/eiçâo
da noite. É/dcil compreender, com e/eito, que, se tanto
vencedores como vencidos recebessem comida, o uni-
co privilégio dos vencedores séria o de obier uma co
mida de melhor qualidade, uma comida de /esta em
vez de uma comida cotidiana. Os Organizadores, nâo
sem razao, consideraram que isso talvez nâo fasse su-
/iciente para dar aos A t le tas a combatividade ne ces-
sâria a competiçôes de alto nivel Para que um Atleta
vença, primeiro é précis o que queira vencer. Pot cer-
to a preocupaçâo com sua glôria pessoal, o desejo de se
ficar/amoso, o orgidho nacional constituem motiva-
çoes poderosas. Mas, no instante crucial, no momento
em que o homem deve dar o melhor de si, em que deve
ir além de suas forças e buscar num derradeiro es/or-
ço a energia que lhe permitirâ conquistar a vitôria,
nâo é inutil que o que esteja entâo emjogo dependci
de um mecanismo quase elementar de sobrevivência,
de um rejlexo de de/esa tornado quase instintivo: o
que o Atleta espera de sua vitôria é muito mais que
o prestigio, necessariamente/ugaz, de ter sido o mais
forte, é a garantia, pela simples obtençâo dessa re/ei
çâo suplementar, de uma melhor condiçâo flsica, a
certeza de um melhor equilibrio alimentât e, conse-
qüentemente, de uma melhor forma.
110
É aqui que se poderâ apreciar até que ponto o
sistema de alimentaçâo W se inséré de maneira sutil
no sistema global da sociedade e se toma inclusive uma
de suas articulaçôes essenciais. É claro que a ausên-
cia da refeiçâo da noiie nâo constûui em si uma pri-
vaçâo vital. Se tal acontecesse, hâ muito nâo haveria
mais vida esportiva, nem mesmo simplesmente vida,
em W: com efeito, um câlculo elementar mostra que,
no melhor dos casos, o dos campeonatos de classifi-
caçâo, apenas 264 Atletas, de um total de 1320, têm
oportunidade de jcintar. Apôs os campeonatos locais
ou as provas de seleçâo, nâo hâ mais que 132 e, no
fincd dosJogos, restam apenas 66, ou seja, exatamenle
um em cada vinte. A grande maiona dos Atletas sé
ria, portanto, cronicamente subnutrida. Isso nâo acon-
tece: seu régime comporta très refeiçôes por dia, a pn-
meira de manhâ bem cedo, antes do circuito pelas
aldeias, a segunda ao meio-dia, ao final das sessôes
de treinamento, a terceira às quatro horas da tarde,
durante o intervalo tradicional que sépara as elimt-
natôrias dasfinais. Em compensaçâo, essas refeiçôes
sâo calculadas de forma a nâo satisfazer todas as ne-
cessidades dietéticas e energéticas dos atletas. 0*açû-
car esta quase completamente ausente delas, assim
como a vitamina B l, indispensâvel à assimilaçâo dos
glicidios. Os Atletas sâo portanto submetidos de mo
do permanente a um régime de carência que, a mé-
dio ou longo prazo, arrisca comprometer seriamente
sua resistência àfadîga muscular. A refeiçâo dos ven
cedores, com suas frutas frescas, sens vinkos doces,
suas bananas se cas, suas tâmaras, suas geléias de mo-
rango, suas compotas, seus medalhôes de chocolaté,
constûui assim, desse ponto de vista, uma verdadeira
111
recuperaçâo glictdica, indispensâvel à boa condiçâo
dos Atletas.
O inconvéniente desse mêtodo, obviamente, é
que ele cotre o risco, ao favorecer os vencedores e
penaiizar com severiclade os vencidos num dominio
precisamente ligado às condiçoes fisiolôgicas da com-
petiçâo, de acentuar as diferenças entre os atletas e
culminât numa espécie de sistema em circuito fecha-
do: os vencedores do dia, recompensados na mesma
noite pot uma raçâo suplementar de açucar, têm to-
das as chances de set também os vencedores do dia
seguinte, e assim pot diante, uns sendo cada vez maïs
vigorosos, os outros cada vez mais fracos. Claro que
isso tiraria todo inter esse das competiçôes, os resulta-
dos sendo, por assim dizer, conhecidos de antemao.
Para atenuar esse inconveniente, 05 organizadores nao
tomaram nenhuma medida especial; em vez de proi-
birem aos vencedores a entrada nos estâdios no dia
seguintë a sua vitôria — medida evidentemente con
traria ao espirito mesmo da vida em W —, eles prefe-
riram, dando prova uma vez mais de sua sagaciclade,
de seu profundo conhecimento do coraçâo humano,
confiât naquilo que chamam, rindo, a natureza. A
experiência lhes deu razâo. Os vencedores nâo sâo ex-
cluîdos das competiçôes do dia seguinte. Mas, na
maioria das vezes, passaram a noite acordados e sô
voltaram a seus alojamentos para a chamada mati
nal. Desejosos de açucar, precipitaram-se sobre as
comidas, empanturraram-se como glutôes. Embria-
gados por sua vitôria, foram levados a responder a
todos os brindes que se erguiam em sua homenagem,
misturando vinhos e lieores até rolar debaixo da me-
sa. Compreende-se facilmente por que, em tais con-
112
diçoes, é rarissimo um Atleta tviunfar duo,s vezes se-
guidas. A sabedoria aconselharia o vencedor a refrear-
se, a recusar ou, pelo menos, a hmitar as hbaçôes,
a consumir com moderaçâo alimentos escolhidos. Mas
para os laureados festejados as tentaçôes sâo tao fo r
tes que séria preciso uma aima szngularmente auste-
ra para resistir. Ninguém os impele a isso, alias, nem
as Autoridades — pelo contrario, elas os convidam
a todo instante a esvaziar seus copos — nem os Dire-
tores esportivos, que, preocupados com o bem-estar
de sua équipé, têm todo o interesse em que uma per
muta râpida dos vencedores assegure o mais rapida-
mente possivel ao maior numéro de Atletas a indis
pensâvel contribuiçâo energética dessas refeiçôes da
noite.
113
19
114
gundo m inha tia, era um judeu convertido, e foi tal-
vez tanto por proselitismo quanto por medida de pro-
teçâo que ele exigiu que Q.u fosse batizado.
Nâo sei como foi minhe educaçâo religiosa e es-
queci tudo que me inculcaram do catecismo, exceto
que me dediquei a seu estudo com um fervor e uma
devoçâo exagerados. Conservo, em todo caso, uma lem-
brança extremamente précisa de meu batismo, cele-
brado num dia do verâo de 1945. Na mesma m anhâ
eu fizera um voto de pobreza, isto é, decidira que,
para começar, usaria na cerimônia de batismo as rou-
pas que usava todos os dias. Havia me retirado para
um canto da horta que ficava atrâs do colégio e esta-
va mergulhado em oraçôes quando apareceram as di-
retoras e duas empregadas. Estavam me procurando
havia uma hora. Agarraram-me e, apesar de meus
protestos, despiram-me, jogaram-me numa cuba cheîa
de âgua frla e me esfregaram sem amenidade com sa-
bâo de Marselha — ou seu équivalente na época —
antes de me obrigarem a vestir um fantâstico terno
azul-marinho. Meu ünico consolo foi ficar com meus
sapatos, que nada tinham de cerimonial.
O terno azul-marinho pertencia a meu padrinho,
um rapazinho belga refugiado em Villard com a ir
ma, que foi m inha m adrinha. Mais tarde me disse-
ram que eles eram filhos de um a das damas de honra
da rainha da Bélgica. Certamente foi deles que rece-
bi como présente de batismo um a espécie de imagem
em relevo da Virgem com o Menino, emoldurada com
douraduras, que contemplei com devoçâo a tarde in-
teira, dispensado de estudar, sentado no fundo da clas
se, e que à noite pendurei acima de meu leito.
115
'
116
tada, uma palm ada ou um sopapo —, alguns dos in
térims, provavelmente dos mais velhos. A cerimônia,
tâo fabulosa quanto fabulada, teve lugar ao ar livre;
para minha grande decepçâo, o bispo nâo portava sua
m itra nem seu bâculo; vestia um a batina prêta e ape-
nas uma estola e um barrete roxos testemunhavam.
sua elevada condiçâo. Lembro-me de que senti mui-
ta vontade de tocâ-lo, mas nâo sei se consegui.
(*) Esse tipo de b rin ca d eira verbal e m uico p rô p rio da lingxia fran-
cesa. N o p rim e iro caso, lia u n i jo g o e n tre g a re (“e staç âo fe rro v ia ria ",
ou tam b é m “c u id a d o r) e cigare (“c h aru to "); no segundo, en tre p ie (“pe-
g a ” ; “ta g a re la ”) e p issette (“m ija d in h a ”). (N . T .)
117
20
118
ele é campeâo oltmpico dos 1500 métros, ou: ele se
chama Lewis, classifie ou-se em segundo no salto tri-
plo na disputa local de W contra Oeste- W, quando
é suficiente dizer: ele é o Schreiber, ou: ele é Van den
Bergh. O abandono dos nomes prôpnos correspon-
dia à lôgica W: em pouco tempo a identiclade dos
A tletas se confundiu com o enunciado de seus desem-
penhos. A partir dessa idêia-chave — um atleta nâo
é senao suas vitôrias ~~ edificou-se um sistema ono-
mâstico tâo sutil quanto rigoroso.
Os noviços nâo têm nomes. Sâo chamados “no-
viço Podem ser reconhecidos por nâo terem o W nas
costas de seus abrigos, mas um grande triângulo de
tecido branco, costurado com a ponta para baixo.
Os A tletas em atividade nâo têm nomes, mas
apelidos. Esses apelidos foram, na origem, escolhi-
dos pelos proprios A tletas; faziam alusâo seja a par-
ticularidades ftsicas (o Mago, o Nariz Achatado, o
Lâbio Leporino, o Ruivo, o Carapinha), seja a qua
lidades morais (o Astuto, o Fogoso, o Molengâo), se
ja a particularidades étnicas ou regionais (o Fnsio,
o Sudeto, o Insular). Posteriormente foram acrescen-
tadas denominaçoes quase completamente arbitrârias
que se inspiravam, se nâo na antropommia indige-
na, ao menos em sua imitaçâo escoteira: Coraçâo de
Bisâo, Jaguar Veloz etc.
A Administraçâo jamais viu com bons olhos a
existência desses apelidos que, muito populares entre
osAtletas, ameaçavam desvalorizar o uso dos nomes-
titulos. Além de jamais tê-los aceito oficialmente {para
ela, um Atleta, afora os nomes que podem valer-lhe
suas vitôrias, sô é designado pela inicial de sua aldeza
acompanhada de um numéro de identificaçâo), tam-
119
bém conseguiu, porum lado, restringir seu uso ao in-
terior das aldeias, evitando assim que se popularizas-
sem nos estâdios e, por outro, impedir sua renovaçào.
Os apelidos sâo doravante hereditârios: o Atleta que
abandona sua équipé deixa ao noviço que o substitut
seu nome oficial (isto ê, seu numéro de identificaçâo
na aldeia) e seu cognome. Foi engraçado, durante al-
gum tempo, verumgigante batizado “magricela”, ou
um obeso atendendo ao cognome de “baixote”. Mas,
a partir da terceira geraçâo, os apelidos perderam to-
do o seu poder evocador. Desde entâo nâo eram mais
que referências inexpressivas, pouco mais humanas
que as matrîculas oficiais. A partir de entâo sô con-
tavam os nomes dados pelas vitôrias.
O modo de classificaçâo dos Atletas e a organi-
zaçâo das competiçôes fazem haver menos nomes que
A tletas (o que é évidente, uma vez que os nomes assi-
nalam as vitôrias) e que um Atleta — e essa é uma
particularidade notâvel do sistema de nomes W —
possa ter vârios nomes.
Dos campeonatos de classificaçâo saem 264 no
mes, 66 por aldeia, que correspondent aos très pri-
meiros em cada uma das 22 disciplinas praticadas.
Os quatro campeonatos locaisfornée em quatro vezes
66 outros, ou seja, também 264; as duas provas de
seleçâo acrescentam duas vezes 66, isto é, 132. As
Olimpiadas e as Espartaqufadas têm cada uma 66 ven-
cedores, ou seja, mais uma vez 132 nomes. As Atlan-
tiadas, enfim, que consistem numa prova inteiramente
particular, têm um numéro indeterminado de ven-
cedores (geralmente de cinqüenta a oitenta), todos
com o direito ao mesmo nome, o de Casanova. Ha
portanto, no total, em W, 793 nomes. Mas, jâ que os
120
campeonatos locais, as Seleçôes, as Olimpîaàas e as
Atlantiadas sâo disputadas pelos vencedores dos cam
peonatos de classificaçâo, dai decorre que os 264 Atle
tas classificados e jâ providos de um nome graças a
sua vitôria nos campeonatos de classificaçâo irâo dis-
putar 463 dos 529 titulos restantes, enquanto para os
1056 Atletas nâo classificados restarâ a disputa dos
66 nomes postos emjogo nas Espartaquiadas. Em su-
ma, dos 1320 Atletas em exercicio, ao todo 330 Atle
tas terâo direito a uma identidade oficial, 264 graças
aos campeonatos de classificaçâo e às outras compe-
tiçôes, 66 graças às Espartaquiadas. Os 66 campeôes
das Espartaquiadas nâo poderâo portât outros titu
los senâo o que tiverem ganho nessas provas; os ou
tros, ao contrario, poderâo acumular até seis nomes.
Assim, um corredor dos 400 métros rasos de Norte- W
pode:
— ser Westerman, ao classificar-se em primei-
ro lugar no campeonato de classificaçâo de Norte- W;
— ser Pfister, ao classificar-se em segundo lu
gar no campeonato local W contra Norte-W;
— ser Cummings, ao classificar-se em segundo
lugar no campeonato local Norte-W contra No-
roeste-W;
— ser Grunelius, ao chegar em primeiro lugar
na seleçâo Norte - W contra Oeste- W;
— receber o titulo prestigioso do Gustafson, ao
triunfar nas Olimpiadas (para o vencedor das Olim-
piadas, faz-se précéder o nome do artigo definido, co-
mo acontece com as cantoras, e diz-se “o Gustafson"
“o Jones”, “o Kekkonen” etc.);
— ser enfim Casanova, ao figurât entre os ven
cedores de uma Atlantiada.
121
Sâo esses seis nomes que, inscritos em seu qua-
dro de honra, constituirâo seu tûulo oficial e que, res-
peitando uma hierarquia imutâvel, ele pronunciarâ
desta forma quando tiver de se apresentar diante das
Autoridades: o Gustafson de Grunelius de Pfister de
Cummings de Westerman-Casanova.
Claro que essas denominaçôes, ainda que ofîciais,
sâo de duraçâo variâvel. O tûulo de campeâo olim-
pico é um dos mais sôlidos, jâ que sô hâ uma Olim-
piada por ano; o tûulo de Casanova é posto emjogo
todos os meses, a cada A tlantiada; os tûulos prove-
mentes das vitôrias obtidas nas seleçôes, nos campe o-
natos locais e nos ca?npeonatos de classificaçâo devem
ser defendidos quase toda semana.
O tûulo de campeâo oltmpico, o mais estâvel,
e portanto o mais disputado, représenta uma culmi-
nância na carreira de um Atleta. Rapidamente se
estabeleceu o costume de conseruar seu privilégio para
quem o conquistou uma vez, mesmo se jamais repe-
tiu a façanha. Assim como é chamado para o resto
da vida “senhor Présidenten aquele que foi, ainda
que apenas por uma semana, présidente do Conse-
lho} também é vitallcia a denominaçâo “o Kekko-
nen” para quem venceu os 110 métros com barrei-
ras nas Olimpûidas, ainda que sb uma vez. Toda-
via} para nâo confundir esse, ou melhor, esses, pois
sâo vârios, Kekkonen de honra com o Kekkonen em
exercicio, transformasse ligeiramente o tûulo, em gé
rai com a duplicaçâo da primeira sûaba. Diz-se as
sim o Kekekkonen, o Jojones, o MacMacMillan, o
Schoschollaert, o Andrandrews, para assinalar os ex-
vencedores olimpicos dos 110 métros com barreiras,
dos 100 métros rasos, dos 200 métros rasos etc.
122
Esses tîtulos hononficos sâo bem mais que sim
ples marcas de respeito. Com efeito, o costume quer
que diversos privilégios sejam associados aos nomes.
Os Atletas classificados (isto é, que têm pelo menos
um nome) têm o direito de locomover-se livremente
pelo Estâdio Central. Os que têm dois nomes (por
exemplo, Amstel-Jojones, 3? nos 100 m de N.-O. -W,
ex-campeâo oltmpico) têm direito a duchas suplemen-
tares. Os que têm très nomes (por exemplo, Moreau-
Pfister- Casanova, 2? dos 400 m W , 2? dos 400
W-N.- W> vencedor da Atlantiada) têm direito a um
treinador particular que se chama o Oberschrittma-
cher, isto é} o Treinador Gérai, certamente porque o
primeiro a ter ocupado esse posto era alemâo; os que
têm quatro nomes têm direito a um abrigo novo etc.
123
21
124
muito comprida; provavelmente esta presa a um a es-
taca e parece nâo perceber que a fotografam; b) mi-
nha tia; veste uma calça de la cinza, com bainha vi-
rada bem estreita, pregas bastante marcadas, blusa
(ou camlsa) clara, de mangas curtas ou arregaçadas,
casaco de la angora colocado sobre os ombros e reti-
do por um ünico botâo superior. Nâo parece usar
jdias. Esta penteada com uma risca no meio, cabelos
puxados e presos atrâs. Sorri de modo um tanto me-
lancolico; segura nos braços c) um cabrito branco com
cabeça prêta que nâo parece muito satisfeito e que
olha para a direita, em direçâo à cabra que é prova
velmente sua mâe; d) eu proprio; com a mâo esquer-
da seguro uma das pernas do cabrito; com a direita
estendo, como se quisesse mostrar seu interior à pes-
soa que esta nos fotografando, um grande chapéu
branco, de palha ou lona, que com certeza pertence
a minha tia; visto calças curtas de tecido escuro, uma
camisa xadrez tipo cow-boy, de mangas curtas (por
certo uma daquelas de que terei ocasiâo de falar no-
vamente), e um pulôver sem mangas. Minhas meias
estâo esgarçadas; m inha barriga esta um pouco estu-
fada. Meus cabelos estâo cortados muito rente, mas
mechas irregulares me caem sobre a testa. Minhas ore-
Ihas sâo grandes e bastante salientes; inclino um pouco
a cabeça para a frente e, com um ar um tanto con-
trariado, olho para a câmera de baixo para cima.
Muito nitidam ente à esquerda e atrâs do grupo for-
mado por m inha tia, o cabrito e eu vêem-se é) uma
galinha branca, semi-encoberta por j) uma campo-
nesa de uns sessenta anos, vestindo um longo vestido
escuro e um grande chapéu de palha que lhe oculta
quase por completo o rosto; esta com um a mâo na
125
cintura; ao lado delà, g) um cavalo de pêlo escuro,
com arreios, munido de viseiras, cortado em parte pela
margem esquerda da fotografia. Bem embaixo na fo-
to, à direita, percebe-se uma boisa de couro vagabun-
do ou imitaçâo de couro com grandes alças, que tal-
vez pertença a minha tia.
126
dar cambalhotas enquanto a meda nâo estivesse muito
alta. Contavam-nos um acidente que havia ocorrido
a uma garotinha: sakando do alto de uma meda, ela
caira sobre um forcado dissimulado no meio do feno
e uma das hastes lhe atravessara completamente a
coxa.
De outra vez fomos colher mirtilos. Guardo a
imagem bucolica de uma multidâo de crianças aga-
chadas sobre toda a extensao de um a colina. Servia-
mo-nos de um instrumento chamado “carda”, um
minüsculo cesto de madeira com a borda inferior pro-
vida de dentes e que recolhia a cada passagem bagas
em parte esmagadas, espécie de papa enegrecida que
nâo tardava a nos deixar completamente manchados.
127
um dos materiais mais raros do mundo (mas a rari-
dade da hicoria era uma das provas de sua existên-
cia, ao passo que havia coisas inteiramente ausentes
e acerca das quais nos perguntâvamos como podiam
existir, por exempîo as laranjas (primeiro é um mé
tal precioso, depois um habitante dos céus, o conjun-
to uma fruta deliciosa...*), de que terei ocasiâo de
voltar a falar, ou entâo os chocolatés recheados, ou,
melhor ainda, o papel prateado, dobrado em pape-
lotes ou em barquinhas, que envolve esses chocola
tés...). Do mesmo modo, sei que o tam anho idéal dos
esquis se calcula da seguinte maneira: é preciso ficar
de pé, braços e mâos erguidos como uma prolonga-
çâo do corpo, e a ponta do esqui mantido vertical-
mente deve vir apoiar-se no meio da palma da mao.
Quanto à altura idéal dos bastôes, é preciso segurâ-
los com os braços dobrados e os cotovelos colados ao
corpo, e a ponta dos bastôes deverâ entâo roçar o so
lo. Eu poderia multiplicar os exemplos, quer se trate
da calcadura das pistas (a colônia de crianças pondo-se
em fila, com os esquis perpendiculares ao eixo da en-
costa, e subindo aos saltinhos), da lubrificaçâo do es
qui (diversas qualidades de graxa, identificadas pela
cor da embalagem de papelâo: azul para a neve mais
fina, ver de para a normal, vermelha para o schuss,
branca para o esqui de fundo etc.; aquecer a graxa
antes de aplicâ-la; passar primeiro uma camada de
parafina translücida; raspar as graxas muito velhas,
nâo engordurar a linha média dos esquis, evitar lu-
brificar as lâminas, mas, ao contrario, afiâ-las etc.),
128
das escaladas das encostas (numa época em que so ex-
cepcionalmente havia “subidas mecânicas”: subidas
perpendiculares à encosta (calcando a neve com os
esquis), subidas em ziguezague, subidas acompanhan-
do o eixo da encosta, ou entâo com esquis retos (pro-
vidos de peles de focas), ou abertos em V, com o corpo
apoiado para trâs, sobre os bastôes etc.), do equipa-
mento (importância do calçado; engraxar os sapatos;
se nâo, esfregâ-los com bolas de papel jornal; fusôs,
anoraks, luvas, bonés ou gorros, oculos etc.), enfim,
e sobretudo, dos sistemas de fixaçâo: meus esquis se
prendiam junto aos tornozelos; eram duros de fechar
(fazia-se alavanca com a ponta de ferro do bastâo),
nâo se fixavam bem no pé e ao menor movimento se
abriam; eu sonhava com presilhas que se fecham na
frente do calçado e cujo fio metâlico que se encaixa
na depressâo do calcanhar tem a forma de uma pon
ta de lança; ou, mais ainda, com aquele sistema ex-
traordinariam ente complexo de prender o esqui, re-
servado no topo da hierarquia aos quase profissionais
(e foi enorme m inha surpresa no dia em que vi mi-
nha prim a Ela usando esse sistema), que utiliza uma
tira ünica mas desmesuradamente longa, passada e
repassada em volta do calçado um numéro incalcu-
lâvel de vezes de acordo com um protocolo aparente-
mente imutâvel, cujo desenrolar me dava a impressâo
de uma cerimônia fundamental (tâo fundamental, tâo
decisiva quanto me pareceu, mais tarde, a forma co
mo era preso o cinto em As arenas sangrentas, de
Blasco Ibanez, ou a metamorfose indum entâria do
cardeal Barberini em Urbano vin no Galüeu do Ber-
liner Ensemble) e que assegurava ao esquiador a in-
dissolüvel uniâo de seus esquis e seus calçados, multi-
129
plicando tanto os riscos de fratura grave quanto as
chances de desempenhos excepcionais...
130
de Antonello de Messina, que veio a ser a figura cen
tral do primeiro romance mais ou menos acabado que
consegui escrever: ele se intitulou inicialmente Gas
pard pas mort, depois Le condottiere; na versâo final,
o heroi, Gaspard Winckler, é um falsarîo de talento
que nâo consegue forjar um Antonello de Messina e
élevado, aposessefracasso, a assassinar seu comandi-
târio. O condottiere e sua cicatriz desempenharam
igualmente um papel prépondérante em Un homme
qui dort (por exemplo, p. 105: “...o retrato incrivel-
mente enérgico de um homem da Renascença, com
uma minüscula cicatriz acima do lâbio superior, à es-
querda, isto é, à esquerda para ele, à direita para vo-
cê...”) e até no filme que rodei com Bernard Que-
ysanne em 1973 e cujo ünico ator, Jacques Spiesser,
tem no lâbio superior uma cicatriz quase exatamente
idêntica à minha: tratava-se de um simples acaso, mas
que para mim foi secretamente déterminante.
131
22
132
penas impostas aos perdedores nos jogos de prendas.
Mas quant o mais importantes as competiçôes, tanto
mais séria a aposta, tanto para uns como para outros:
o triunfo reservado ao vencedor de uma Olimpiada,
e mais particularmente ao que tiver ganho a corrida
das corridas, isto é, os 100 métros rasos, terâ talvez
como conseqüëncia a morte do que tiver chegado por
ûltimo. É uma conseqüëncia ao mesmo tempo impre-
visîvel e inelutâvel. Se os D eus es estiverem a seu fa-
vor, se ninguêm no Estâdio estender em sua direçao
o punho com o polegar abaixado, ele sem dûvida te
râ a vida poupada e sofrerâ apenas os castigos reser
vado s aos outros vencidos; como estes, deverâficar nu
e correr entre duas fileiras de Juizes armados de va-
ras e chibatas; como estes, ficarâ exposto no pelouri-
nho e depois terâ que percorrer as aldeias com uma
pesada goliïha de condenado presa ao pescoço. Mas
se um ûnico espectador erguer-se e designâ-lo, exi-
gindo para ele a puniçâo reservada aosfracos, entâo
ele morrerâ; a multidâo inteira irâ apedrejâ-lo e seu
cadâver esquartejado serâ exposto por très dias nas
aldeias, pendurado nos ganchos de açougueiro exis
tent es nos pôrticos principais, sob os cinco anéis en-
trelaçados, sob a orgulhosa divisa de W — f o r t i u s
a l t i u s c i t i u s —, antes de ser lançado aos câes.
133
geralmente bombardeando-o compedras ouprojéteis
diverses, fragmentos de escumalha, restos de ferro,
cacos de vidro, alguns dos quais podem revelar-se par-
ticularmente perigosos. Mas, na maior parte do tem
po, os Organizadores se opôem a tais vias de fato e
intervêm para protéger a vida dos Atletas ameaçados.
134
Épreciso que mesmo o melhor nâo esteja seguro
de ganhar; é preciso que mesmo o mais fraco nâo es
teja seguro de perder. E preciso que ambos corram
idêntico risco, esperem com a mesma esperança in-
sensata a vitôria, com o mesmo terror indizwel a
derrota.
A adoçâo dessa polûica audaciosa levou a uma
série de medidas discriminatôrias que podem, gros-
seiramente, ser classificadas em dois grupos principais:
as primeiras, que poderiam ser chamadas de oficiais,
sao anunciadas no inîcio das reuniôes; consistem em
gérai em handicaps, positivos ou negativos>impostos
a Atletas ou a équipés ou até mesmo a uma aldeia
inteira. Assim, por exemplo, por ocasiâo de um en-
contro de W contra Noroeste-W (ou seja} de um
encontro de seleçoes) a équipé dos 400 m W (Hogarth,
Moreau e Perkins) pode ter que correr 420 m, enquan-
to a équipé Noroeste- W (Friedrich, Russell, DeSou-
za) sô correrâ 380 m. Ou entâo, nas Espartaquiadas,
por exemplo, todos os concorrentes de Oeste-W serâo
penalizados em cinco pont os. Ou ainda, o terceiro ar-
remessador de peso de Norte- W (Shanzer) terâ direito
a uma tentativa suplementar.
As segundas medidas sao imprevisweis; sâo dei-
xadas ao capricho dos Organizadores, e em particu-
lar dos Dire tores de corridas. O publico também po
de participar, mas em proporçao bem menor. A idêia
gérai é introduzir numa corrida ou num concurso élé
ment os perturbadores que ora minimizarâo os efei-
tos dos handicaps de partida, ora os acentuarâo. E
nesse esptrito que as barreiras das corridas de obstâ-
culos sâo às vezes ligeiramente deslocadas para um dos
concorrentes, o que o impede de transpô-las com um
135
pé de apoio e o obriga a um sapateio que em gérai
se révéla desastroso para seu desempenho . Ou entâo,
no auge de uma corrida, um Ârbitrofalacioso p 0de
às vezes gntar STOP: os concorrentes devem entâo
imobilizar-se, deter-se em pleno impulso numa posi-
çâo geraiment e msuportâvel, e quem conseguir man
ier a posiçao por mais tempo provavelmente sera pro-
clamado vencedor.
136
23
137
vezes. Muito tempo depois fiquei sabendo que as di-
retoras do colégio “eram da Resistência”.
138
Na tarde da véspera de Natal, instalamos a â r
vore no grande hall ladrilhado do colégio. Enfeita-
mos a ârvore e ocultamos o suporte de m adeira que
a m antinha de pé com musgo e uma espécie de papel
castanho que imitava o cascalho e que também usâ-
vamos para fazer o fundo do presépio. Lembro-me
dos tesouros que eram as estrelas, as guirlandas, as
vêlas e as bolas (o resto do ano elas dormiam no sôtâo
do colégio), mas as bolas daquela época nâo eram
como hoje bolhas de vidro muito finas recobertas de
estanho prateado e brilhante, e sim bolas feitas de uma
espécie de papel machê, pintadas de cores nâo muito
vivas.
À noite, talvez depois da missa da meia-noite,
em todo caso, em meu espirito, muito tarde, fez-se
um a brincadeira com o professor de ginâstica que,
como cada um de nos, havia posto seus sapatos em
volta da ârvore (um enorme par de sapatos de esqui
que so podia ser o receptâculo de um présente mirifi-
co), pondo num daqueles sapatos um pacote gigan-
tesco, feito apenas de embalagens superpostas que
encerravam, como ültimo e unico présenté, uma ce-
noura.
139
1970, quando voltei a visitar o colégio, quis fazer o
mesmo gesto e me espantei ao ver que a balaustrada
chegava apenas à metade de meu corpo.. Acho que
toda a cena se fixou, se cristalizou em meu espirito:
imagem petrificada, imutâvel, da quai conservo a lem-
brança fisica, inclusive a sensaçâo de minhas mâos
agarrando avidamente as grades, inclusive a impres-
sâo do métal frio contra m inha testa quando ela en-
costou na barra de apoio da balaustrada. Olhei para
baîxo: nâo havia muita luz, mas ao cabo de um ins
tante consegui ver a grande ârvore enfeitada, o mon
te de sapatos ao redor e, enfiada num dos meus, uma
grande caixa retangular.
Era um présente que me enviava m inha tia Es-
ther: duas camisas xadrez, gênero cow-boy. Elas pi-
cavam a pele. Eu nâo gostava delas.
140
24
141
No entanto os Atletas fariarn mal em entregar-
se a especulaçôes so bre as decisoes tomadas a seu res-
peito. Na maioria das corridas e dos concursos, sâo
efetivamente os primeiros, os melhores que ganham,
e verifica-se quase sempre que hâ interesse em ganhar.
As transgressoes estâo ai para lembrar aos Atletas que
a Vitôria é uma graça, e nâo um direito: a certeza
nâo é uma virtude esportiva; nâo basta ser o melhor
para ganhar, séria simples demais. É preciso saber que
o acaso também faz parte da regra. Uni-du-ni-tê ou
Pomponeta, ou qualquer outro joguinho do tipo, de-
cidirâo às vezes o resultado de uma prova. E mais im
portante ter sorte que m.érito.
142
‘a infant arm ”, “a Estrebaria” ou “os be duin os”. Com
efeito, tais provas sâo para esses Atletas a ûnica chance
de obier um nome e dispor de algumas das vantagens
(direito às duchas, livre trânsito nos Estâdtos, bons
equipamentos etc.) reservadas aos Atletas nomeados.
Por outra lado, as Espartaquïadas reilnem 1056 Atle
tas enquanto nas Olimpiadas hâ apenas 264, e com
freqüência o grande numéro de participantes garan
te uma combatividade excepcional que, das élimina-
tôrias àsfinais, conféré às corridas e aos concursos um
vigor incomum e a todo o encontro um clima bastan-
te nervoso; as recompensas, alias, em gérai correspon-
dem às expectativas e a Vitôria desses desclassifica-
dos é festejada com um calor e um entusiasmo que
os Vencedores das Olimpiadas nem sempre conhecem.
Os vencedores das Espartaquïadas, durante todo o tri
mestre apôs seu triunfo, gozarâo plenamente de seu
nome e de todas as prerrogativas a ele ligadas; terâo
direito, em particular, a um handicap favorâvel nos
campeonatos de classificaçâo e é quase de praxe que
um Vencedor da Espartaquiada (um Newman, um
Taylor ou um Lômô para os 200 m, por exemple) ven-
ça também no campeonato de classificaçâo seguinte,
e com isso seja integralmente admitido em todos os
outros encontros.
Éôbvio que os Atletas classificados sentem somente
desprezo pelas Espartaquïadas e por seus vencedores.
Logo as autoridades tiveram a idéia de utilizar esse des
prezo efazer dele o mot or de uma manifestaçâo origi
nal; dainasceu o Sistema dos Desafios. O princïpio do
Desafio é simples: umAtlela classificado e que portanto
nâo participou da Espartaquiada se aproxima do Ven
cedor logo apôs sua vitôria e o desafia a repetir sua
143
façanha. Dizem, em gina de estâdio, que ele o “aper~
ta” ou ainda que lhe “dâ um peitaço”. O esparta-
quista nâo tem o direito de recusar; quando muito
pode esperar triunfar de seu adversârio graças ao han
dicap, às vezes considerâvel, que os Juizes lhe darâo
e que sera determinado pelos Dire tores de corrida em
funçâo nao tanto do estado de fadiga do Vencedor
quant o da qualidade do uâ p e rta d o re m principio,
quanto mais célébré for o apertador (quanto mais no
mes tiver), tanto maior sera o handicap concedido.
Assim, se oJones de Humphrey d ’A rlington von Kra-
mer-Casanova (por esses nomes se reconhece o se-
gundo sprinter de 100 m de Noroeste- W, Vencedor
olîmpico etc.) desafia Smolett Jr. ( Vencedor dos 100
m nas Espartaqutadas), Smolett Jr. partira com trinta
métros de dianteira, o que, numa distância tao pe-
quena, constitui provavelmente uma vantagem de-
cisiva. Se oJones mesmo assim conseguir triunfar, ira
imediatamente bénéficiai'-se da Vitôria do outro e se
apossarâ nâo so de seu nome (Smollet Jr.), como tam-
bém dos do segundo {Anthony) e terceiro ( Gunther)
da corrida, o que, em principio, lhe assegura vanta-
gens considerâveis. Mas, caso perder, é seu titulo mais
prestigioso que perderâ, o de Jones, o de Vencedor
olimpico, e que doravant e passarâ, com todas as prer-
rogativas aferentes, ao Smolett Jr. {chamado agora
oJones de Smollet Jr. ) que terâ imprudent emente de-
safiado.
144
tando que a midtidâo ou que uma Autoridade lhe faça
esse pedido. 0 humor das Autoridades, ao fixarem o
handicap que o desafiante concédé ao desafiado, de -
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los, ou cem quilos, ou uma caixa, de laranjas, essa
fruta mâgica de que so tmhamos um conhecimento
livresco; se ele me desse l m etade de sua merenda,
receberia a partir do ano stguinte todo um carrega-
mento de laranjas e, como garantia desse mercado a
termo, lhe cederia desde jâ um a ponta do meu peda-
ço de filme. So um garoto se deixou convencer: deu-
me a metade de sua m erenda e logo em seguida foi
correndo me denunciar à diretora. Eu havia rouba-
do e havia mentido. Fui severamente punido, mas nâo
lembro mais em que consistiu a puniçâo.
147
Em 1943-44, minha avo tinha um domicflio em
Villard. Um pouco mais tarde foi morar num asilo para
crianças em Lans e me levou junto consigo. Nâo me
lembro de tê-la visto uma ünica vez durante toda a
minha estadia no Colégio Turenne (o que nâo quer
dizer que ela nâo tenha ido; quer dizer apenas que nâo
me lembro). A explicaçâo mais logica séria que deslo-
quei em um ano ou seis meses toda essa cena, que te-
ria se passado em Lans. Mas o cenârio e os detalhes
dessa lembrança, o sotâo, o patio onde se realizaram
minhas desastrosas transaçôes, a catâstrofe materiali-
zada pela irrupçâo da diretora sâo para mim especffi-
cos ao colégio e se opôem formalmente ao pequeno
pensionato de Lans, onde se locaHza uma outra lem
brança, igualmente forte, igualmente penosa, ou até
mais, porém fundamentalmente diferente.
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sera fehcilado publicamenle no Estâdio Central e re-
ceberâ o titulo de Casanova de honra, o que lhe per-
rmtîrâ participai' oficialmente da A tlantiada seguinte.
O numéro de mulheres é bastante restrito. Ra-
ramente ex ce de o meio milhar. O costume manda,
com efeito, que se deixe viver a totalidade dos fühos
homens (salvo se apresentarem no nascimento aigu-
ma malformaçâo que os tome inaptos as competiçoes,
estando entendido que no pentatlo e no decatlo uni
problema fisico menor é frequent emente considera-
do mais como um trunfo que como uma desvanta-
gem), mas que se conserve apenas uma menina de co
da cinco.
A té treze ou catorze anos, as meninas convivem
com os rapazes nas Casas de Jovens. Depots os rapa-
zes sâo enviados as aldeias, onde se tornam noviços
e mais tarde Atletas, enquanto as meninas vâo para
o gineceu. Là elas se ocupam o dia todo com ativiâa-
des de utihdade pïiblica: tecelagem de maillas, abrigos
e esiandartes, fabricaçâo de calçados, confecçâo das
roupas de cerimônia, tarefas alimentares e domésti-
cas dwersas, a menos, é claro, que estejam para dar
à luz ou que se ocupem, durante alguns meses, dos
recém-nascidos. Jamais saem do gineceu, a nâo ser
para as Atlantfadas.
150
de cada disciplina em cada aldeia, o que perfaz 176
homens, jâ que hâ 22 disciplinas e quatro aldeias.
Uma volta de pista em gérai é o suficiente para que
os corredores alcancem as mulheres, e com freqüên-
cia é diante das tribunas de honra, seja na prôpna
pista, seja na relva, que elas sâo violadas.
151
distância que raramente excede uma volta do Estâ-
dio, ou seja, 550 métros. Quanto aos nao-corredores,
se os saltadores têm às vezes uma escassa chance, os
lançadores de peso e os lutadores sâo praticcimente
eliminados de antemâo.
Para compensar essas diferenças e estabelecer um
certo equilîbrio, a Administraçâo das Allantt'adas ate-
nuou progressivamente as regras da corrida e admitiu
procedimentos que seriam evidentemente inaceitâveis
no quadro de uma competïçâo normal. Foi assim que
de inicio se tolerou a rasteira e depois, de uma manei-
ra mais gérai, todas as manobras destinadas afazer
um concorrente perder o equilîbrio: encontrâo de
ombros, cotovelada, joelhada, empurrâo com umaou
as duas mao s, percussâo transcutânea do poplité in
terno, causando uma flexâo reflexa da perna etc.
Durante certo tempo tentaram-se proibir algumas
agressées consideradcts muito violentas, como o estran-
gulamento, a mordida, o uppercut, o golpe do coelho
— golpe seco com os dedos dobrados na altura da ter-
ceira vértebra cervical —, a cabeçada no plexo solar,
o vazamento do olho, os golpes de todo tipo dirigidos
ao sexo etc. Mas como esses ataques se tornafam cada
vez mais frequentes, fo i ficando dificil reprimi-los e
eles acabaram por ser admitidos nas regras. Todavia,
para evitar que os concorrentes ocultassem armas sob
as malhas (nâo armas defogo, cujo uso é evidentemente
proibido aos Atletas, mas, por exemplo, os cinturoes
de couro chumbados que ospugilistas utilizam, aspon-
tas de lança dos arremessadores de dardo, os pesos dos
lançadores de peso, ou diversos instrumentos perfu-
radores, tesouras, garfos, facas, que eles poderiam ter
obtido), o que fana degenerar a competiçâo e a trans-
152
formaria numa camificina de conseqüências impre-
visweis — afinal de contas, sâo os melhores elemen-
tos das aldeias, os melhores Esportistas da Ilha que
sâo admitidos a apresentar-se nas A tlantiadas —, fo i
imposto que os adversârios correriam, tal como as mu-
Iheres que perseguem, inteiramente nus. A unica to~
lerância — que se justifica na medida em que se tra-
ta apesar de tudo de uma corrida a pê, ainda que seu
transcurso seja um tanto conturbado — diz respeito
aos calçados, cujas pontas sâo aguçadas e tomadas
particularme?ite aceradas e lacérantes.
153
27
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Muito mais tarde é que fiquei sabendo que mi
nha avo se empregara naquele pensionato como co-
zinheira. Como ela praticam ente nâo falava francês
e seu sotaque estrangeiro poderia fazer com que fosse
perigosamente notada, ficou decidido que passaria por
muda.
155
inofensiva, e uma abelha, cuja picada pode em certos
casos ser mortal; o zangâo nâo pica, mas o vespao, fe-
lizmente raro, é ainda mais temfvel que a abelha). Para
todos os meus colegas, e sobretudo para mim mesmo,
aquela picada foi a prova de que eu havia trancado
a garotinha: o bom Deus é que me havia punido.
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lançar-se em perseguiçâo de suas presas. Mas nâo se
trata, mesmo no sentido estrito da palavra, de uma
partida. Na verdade, a competiçâo, isto é, a luta, co
rne çou ha muito tempo. Um terço dos concorrentes
jâ estâo praticamente eliminados, uns porque foram
espancados ejazem inanimados no châo, outros por
que os golpes que receberam, e particularmente os
ferimentos nos pés e nas pernas ocasionados pelos cal-
çados com pont as, tornam-nos inaptos para realizar
uma corrida, por menor que seja.
Nas Atlantiadas nâo hâ, propriamentefalando,
uma estratégia unica que garant a a vitôria. Cada par
ticipante deve tentar avaliar suas chances em funçâo
de suas qualidades individuais e decidir sua linha de
conduta. Um bom corredor de média distância, que
sabe que poderâ produzir seu esforço mdximo apôs
trezentos ou quatrocentos métros de corrida, tem evi-
dentemente intéresse em se colocar mais atrâs em re-
laçâo à linha de partida: quanto menos adversârios
tiver atrâs de si, menores serao as chances de ser agre-
dido antes da partida. Ao contrario, um pugilista ou
um lançador de peso, que sabem que nâo têm quase
nenhuma chance na corrida, tentarâo eliminar de
imediato um mdximo de adversârios. Assim alguns
tentarâo proteger-se o maior tempo posswel, enquanto
outros atacarâo de saida. Entre esses dois grupos mais
ou menos definidos, a massa dos concorrentes jamais
sabe muito bem quai a melhor técnica, ainda que o
idéal para eles seja evidentemenie conseguir entregar
seus adversârios mais perigosos — os melhores corre-
dores — à agressividade geralmente cega dos pugi-
listas.
158
Esse esquema elementar se complica considéra-
velmente em razâo das possibilidades de ahança. A
noçâo de aliança nâo tem nenhum sentido nas outras
competiçôes: nelas a Vitôria ê ûnica e pessoal, e é ape-
nas por temor de represâlias que um concorrente que
partiu mal dard, se puder, sua ajuda ao mais bem
colocado de seus compatriotas. Mas, nas Atlantiadas,
e essa é uma de suas caracteristicas especificas, ha tan-
tos Vencedores quantas mulheres a conquistar, e, sen-
do todas as Vitôrias idênticas (pois séria evidentemente
utopico da parte de um concorrente cobiçar uma mu-
lher em particular), éperfeitamente possivel a um gru-
po de concorrentes unir-se contra os outros até a par-
tilha final das mulheres. Essas alianças tâticas podem
assumir dois aspectos conforme os contendores se
aliem segundo sua nacionalidade {ou seja, segundo
sua aldeia) ou segundo sua especialidade. As duas cli-
vagens taras vezes se verificam ao mesmo tempo, em-
bora isso seja perfeitamente possivel, mas em gérai se
sucedem e as vezes com uma rapidez aterrorizante,
sendo sempre um espetâculo espantoso ver, por exem-
plo, um lançador de martelo de Noroeste- W (no caso,
Zacharie ou Andereggen) bâter-se contra um de seus
colegas das outras aldeias, como Olafsson de Mor
te- W ou Magnus de W, e imediatamente depois unir-
se a ele para atacar seus prôprios compatriotas (Frie
drich ou Von Kramer, ou Zanucci, ou Sanders etc.).
159
demasiado forte — que, mesmo tendo se desenrola-
do fora das pistas, nâo deixa de ser menos renhida
nem menos mortifera. A razâo dessa guerra é sim
ples: é que os participantes de uma Atlantiada (os
dois primeiros de cada prova de classificaçâo) foram
designados vârios dias e as vezes até très sémanas
antes, e com isso cada dia, cada hora, cada minuto
foram para os fu tu r os concorrentes a ocasiâo de se
desembaraçar de seus adversârios e aumentar suas
chances de triunfo. E verdaâe que essa luta perma
nente t da quai a propria competiçâo nâo é senâo o
ponto final, é uma das grandes Leis da vida W, mas
ela encontra aqui, na ocasiâo das Atlantiadas, seu
campo de açâo mais favorâvel, na medida em que
a recompensa ~~~ uma mulher — acompanha ime-
diatamente a Vitôria.
160
A A dministraçâo nâo ignora essas disputas de in
teresse incessantes. Por ioda parte manda afixar car-
tazes proibindo-as; lemb.a que a moral do Esporte
nâo admite o trâfico, que a Vitôria nâo se pode com-
prar. Mas jamais tentou algo sério para pôrfim a is~
so. Parece conformada. E uma prova, para ela, de
que a vigilância dos Atletas esta sempre alerta, que
nâo é somente na pista, mas em toda parte e a todo
instante, que a Lei W se exerce.
As outras competiçôes transcorrem rium silène io
total. E o Diretor da Corrida que, erguendo o braço,
dâ o sinal dos aplausos e das aclamaçoes. Nas A tlan-
tîadas, ao contrario, a multidâo pode, ou melhor, deve
berrar à vontade e seus gritos, captados, sâo retrans-
mitidos a plena potêneia por alto-falantes dispostos
em volta do Estâdio.
As vociferaçôes e os clamores, na pista e nas ar-
quibancadas, sâo tant os, atingem tal paroxismo no
final da corrida, quando os sobreviventes conseguem
enfim se apoderar de suas presas ofegantes, que se po -
deria quase pensar num motim.
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Da escola mesmo, praticamente nâo me lembro,
a nâo ser que era o centro de um comércio desenfreado
que tinha por objeto as insfgnias americanas (as mais
conhecidas sendo uma plaça redonda de métal ama-
relo com as iniciais U S em relevo e um a espécie de
medalha mostrando dois fuzis entrecruzados) e os te-
cidos de seda de pâra-quedas. Sei que um de meus
colegas de classe se chamava Philippe Gardes (jâ fa-
lei dele) e fiquei sabendo depois que, provavelmente,
também Louis Argoud-Puix tinha estado na classe.
Foi talvez naquele inverno que eu teria feito, pela
primeira e ültima vez em m inha vida, uma descida
em bobsleigh ao longo da estrada em declive que vai
das Frimas ao centro de Villard. Nâo chegamos ao
fim: mais ou menos na m etade do caminho, à altura
do sitio dos Gardes, quando a équipé inteira (deviamos
ser sete ou oito sobre o bob, que estava amassado e
enferrujado, mas que ainda assim era impression an
te pelo tamanho) se inclinava para a direita para fa-
zer a curva, eu me inclinei à esquerda e fomos parar
no fundo de uma ravina que margeia aquele ponto
da estrada, apos uma queda de alguns métros, feliz-
mente amortecida pela espessura da neve. Nâo sei se
realmente vivi esse acidente ou se, como jâ se viu nou
eras ocasiôes, inventei-o ou tomei-o emprestado, mas,
em todo caso, ele ficou como um dos exemplos favo-
ritos de meu “canhotismo contrariado”: com efeito,
eu teria sido canhoto de nascença; na escola me te-
riam obrigado a escrever com a mâo direita; isso te
ria se traduzido nâo em uma gagueira (o que parece
ser freqüente), mas em uma ligeira inclinaçâo da ca-
beça para a esquerda (sensfvel ainda hâ poucos anos)
e sobretudo em uma incapacidade de distinguer, nâo
163
so a direita da esquerda (isso me valeu a reprovaçâo
em meu exame de motorista: o examinador pediu
que eu virasse à direita e por pouco nâo bâti num
caminhao à esquerda; também contribui para fazer
de mim um remador muito médiocre: nâo sei de que
lado é preciso rem ar para m udar a direçâo do bar-
co), mas também o acento grave do acento agudo,
o côncavo do convexo, o sinal de maior (>) do sinal
de menor (<), e de uma maneira gérai todos os enun-
ciados que implicam com maior ou menor razâo uma
lateralidade e/ou uma dicotomia (hipérbole/parâbo-
la, num erador/denom inador, aferente/eferente, di-
videndo/divisor, caudal/rostral, metâfora/m etom -
mia, paradigm a/sintagm a, esquizofrenia/parandia,
Capuletos/Montecchios, W hig/Tory, guelfos/gibeîi-
nos etc.); isso explica também o gosto que tenho pe-
los procedimentos mnemotécnicos, quer sirvam para
diferenciar o bombordo do boreste pensando na pa-
lavra bateria,* a corte ou lado direito e o jardim ou
lado esquerdo — do palco de teatro — pensando em
Jésus Cristo,** o côncavo e o convexo imaginando uma
cova,*** quer, de maneira mais gérai, para lembrar-
me de pi (que fa im e à faire apprendre un nombre
utile aux sages... ****)} dos imperadores romanos (Ce-
164
sautica, Claunégalo, Vivestido, N ertrahadan, M ar
co) ou de um a simples regra de ortografia (o acento
circunflexo de cime cai no abîme).
Minha avô e m inha tia Esther logo retornaram
a Paris. Fui m orar na casa da cunhada de Esther, m i
nha tia Berthe, que tinha um filho de quinze anos,
Henri, e morava numa casa de campo situada na parte
baixa de Villard, perto da area de patinaçâo e da pe-
quena pista de esqui que se chaîna, se nâo me enga-
no, Les Bains (havia uma outra que se chamava Les
Clochettes e um a terceira, bem mais dificil e muito
mais afastada, que era La Cote 2000). Parece-me que
a casa era grande; era um a espécie de chalé com uma
grande sacada de madeira. Eu tinha um belo quar
to, com uma cama no meio. Uma vez adoeci e, para
me curar, Berthe me fez beber uma infusâo de hastes
de cerejas que achei muito ruim. O utra vez ela me
colocou ventosas e a colocaçâo de ventosas permane-
ce intimamente ligada a um a operaçâo culinâria que
Berthe praticava com freqüência: o corte de peque-
nas rodelas de massa, usando um copo e seguindo uma
ordem rigorosa para aproveitâ-la o mais economica-
mente possfvel, rodelas essas dispostas a seguir numa
chapa untada e levada ao forno, e que depois se trans-
formavam em biscoitos ou, ao cabo de operaçôes ain-
da mais delicadas, em pequenos croissants recheados.
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30
166
Podem chegar a 3 mil, quinhentas meninas e 2500 me-
ninos, mas apenas uma dezena de educadores de am-
bos os sexos é suficiente para vigiâ-los. A palavra vi-
giar, alias, éimprôpria. As crianças nâo se submetem
a nenhuma vigilância; nâo se pode sequer falar de en-
quadramento; os adultos nâo possuem funçâo peda -
gôgica, mesmo se podem às vezes ser levados a acon-
selhar ou a explicar; sua tarefa essencial é de ordem
sanitâria: contrôle médico, identificaçâo de doenças,
profilaxia, intervençôes cirûrgicas de rotina: adenôi-
des, amigdalas, apendicectomia, reduçâo de /raturas
etc. As crianças de mais idade, os adolescentes de tre-
ze ou catorze anos, cuidam dos maisjovens, ensinam-
Ihes a arrumar a cama, a lavar a roupa, a preparar
os aliment os. T odos decidem livremente seus horârios,
suas atividades e seus jogo s.
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E durante seu dêcimo quinto ano que as crian-
ças deixam para sempre sua Casa, as meninas rumo
aos gineceus dos quais nâo mais sairâo a nâo ser por
ocasiâo das Atlantiadas, os rapazes rumo à aldeia onde
se tornarâo os futuros Atletas ,
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triunfais, aquelas revoadas de aves brancas, Uie apa-
rece agora sob uma luz insuportâvel. Depois ele verâ
a volta dos vencidos, Atletas pâlidos de fadiga, titu-
beando sob o peso das golilhas de carvalho; os verâ
cair bruscamente ao châo, com a boca aberta, respi-
rando com dificuldade; os verâ um pouco mais tarde
lutar entre si, entredevorar-se por um pedaço de sai
sieha} por um pouco d ’âgua, por uma tragada de
cigarro. Verâ, ao amanhecer, oretorno dosvencedo-
res, empanturrados de ban ha e vinho de mâ quali-
ddde, desabando em seus vomitôrios.
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quer que o tempo traga uma soluçâo. Ha aquilo, hâ
o que ele viu, e às vezes sera menos ternvel que o que
viu, as vezes sera muito mais ternvel que o que viu.
Mas, para onde quer que volte os olhos, é aquilo que
verâ e nada mais, e somente aquilo sera verdadeiro.
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31
n i
O segundo livro era Michaël, câo de circo, do
quai pelo menos um episodio se gravou em minha me-
moria, o do adeta que quatro cavalos vâo tentar des-
membrar; na verdade, nâo sâo sens membros que os
cavalos puxam, mas quatro cabos de aço dispostos em
X dissimulados sob as roupas do atleta: ele sorri sob
essa suposta tortura, mas o diretor do circo exige que
ele mostre sinais do mais atroz sofrimento.
173
rios anos em relaçao ao Viseonde de Bragelonne: lem-
bro-me de que, para lê-lo, retirei-o de uma biblio-
teca municipal e fiquei quase surpreso ao ver em
livraria as primeiras ediçoes de boîso, primeiro da Ma
rabout, a seguir do Livre de Poche).
Henri havia lido Os très mosqueteiros e O vis-
conde de Bragelonne e também, acredito, A dama .
de Montsoreau; ele se îembrava muito pouco dos Très
mosqueteiros (mas ainda assim o suficiente, acho,
para me explicar o que era indispensâvel para uma
boa compreensâo de Vinte anos depois, por exem-
plo quem eram Rochefort, ou Bonacieux (“aquele
canalha do Bonacieux”), ou a lady de W inter que
Mordaunt quer tanto vingar), mas ainda estava muito
marcado por sua leitura do Visconde de Bragelonne:
foi assim que eu soube como haveriam de morrer
(com exceçâo de Aramis, que se torna bispo) esses
personagens dos quais nao conhecia nem as prim ei
ras nem as ultimas aventuras: Porthos esmagado por
uma pedra que nâo consegue mais erguer, Athos em
seu leito no momento mesmo em que morre na Ar-
gélia seu filho Raoul, D’Artagnan atingido por,um
projétil no cerco de Maestricht quando acaba de ser
nomeado maréchal.
A morte de D’Artagnan é a que mais me trans-
portava, no sentido estrito da palavra, alias, jâ que
Henri me contava como ela acontecera, imitando,
com minha participaçâo, as principais peripécias en-
quanto me carregava num pequeno carrinho de mâo
nos grandes passeios que faziamos até as casas dos
camponeses das redondezas de Villard para nos abas-
tecermos de ovos, leite e manteiga (lembro-me das
114
formas de m adeira que serviam para fazer os torroes
de manteiga e da nitidez das marcas — vaquinha, flor
ou rosâcea — que elas deixavam na manteiga ainda
coberta de gotinhas esbranquiçadas).
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176
sua polûica habituai, nâo procurou proibi-la mas con-
tentou-se em codificar seu desenvolvimento. 0 obje-
to dessa manifestaçâo é escolher entre os A tletas aquele
que serâ o protetor do noviço, ou seja, que se encar-
regarâ de seu treinamento, que o guiarâ nos Estâdios,
que lhe ensinarâ as técnicas do Esporte, as regras so~
ciais, os sinais exteriores de respeito, os costumes da
aldeia. É ele, évidentemente, que vira em seu socorro
toda vez que fo r ameaçado. Em troca, o noviço servi
ra seu tut or com devoçâo e reconhedmento: arrumard
sua cama toda manhâ, lhe trarâ sua tigela de aveia,
lavarâ sua roupa e suas marmitas, servira sua refei-
çâo do meio-dia; zelard pelo bom estado de seu equi-
pamento esportivo, de suas malhas, de seus calçados
de competiçâo. Acessoriamente, lhe servira de par-
ceiro sexual.
É claro que é preciso ser classificado para ter a
honra de protéger um noviço. Jâ fo i dito que hâ, em
cada aldeia, 330 Atletas, dos quais 66 sâo classifica
dos regularmente, isto ê, ganharam seus nomes nos
campeonatos de classificaçâo, e uns vinte sujeitos, no
mdximo, que conseguiram obier uma identidade
triunfando nas Espartaquiadas. Ora, o ef ztivo dos no-
viços oscila, como vimos, entre cinqüenta e setenta.
Portante, poderia haver mais ou menos o mesmo nu
méro de Campeôes protetor es e de noviços protegi-
dos. Mas séria desconhecer profundamente a nature-
za da sociedade W acreditar que pudesse ser assvm.
Na verdade, a designaçao do tutor é determinada pelo
residtaclo de um combate singular entre os dois me-
Ihores Campeôes da aldeia, ou seja, aqueles que sâo
pelo menos Campeôes olimpico s e cujo nome é pre-
cedido do artigo definido (o Kekkonen, o fones, o
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MacMillan etc,). Se houver vârios Gampeoes olîmpi-
cos numa aldeia, o que éfrequente, jâ que hâ 22 Cam-
peôes olîmpicos e 4 aldeias, escolhem-se prioritaria-
mente os que tnunfaram nas disciplinas ditas nobres:
em primeiro lugar as corridas de velocidade, os 100 m,
os 200 m, os 400 m , depois o salto em altura, o salto
em distância, os 110 m com barreiras, as corridas de
média distância etc,, até, em desespero de causa, os
pentatlos e decatlos.
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serviços dos demaisjunto aos outros Atletas. Coin isso
seformam verdadeiras clientelas que 05 dois CampeÔes
manipulam a seu bel-prazer.
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o general de Larm inat. Tinha também uma queda
por Thierry d’Argenlieu, nâo apenas por ser o ünico
aîmirante que eu conhecia, mas porque corria o boato
de que era monge.
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nal. Voltei correndo pelas ruas repletas de uma mul-
tidâo entusiâstica, brandindo Les Allobroges e gritan-
do a plenos pulmoes: “O Japâo capitulou!” .
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vestiârios, às salas de recepçâo etc.), se révélant com
freqüência indispensâveis para a simples sobrevivência
do Veterano. Hâ em primeiro lugar todo um sistema
de pontos, prêmios e bonificaçôes que sâo contabili-
zados ao longo da carreira do Atleta: o acumulo de
pontos se efetua de tal maneira que em principio sâo
suficientes quatro anos de desempenhos regulares para
que o ex-Campeâo tenha mais ou menos garantido
um posto privilegiado. Hâ em seguida diversas com-
binaçôes de Vitôrias que permit em aos Vencedores
passar a front eira, saltar a barreira em prazos ainda
mais curtos: em très anos, se o Atleta consegue uma
Seqüência, isto é, se se classifica em segundo ou ter-
ceiro très vezes seguidas nas Olimpiadas; em dois anos,
se conquista a Dupla, duas Vitôrias olimpicas segui
das, desempenho considerado como a mais gloriosa
de todas, mas da quai a histôria W nâo oferece ne-
nhum exemplo; ou mesmo num ano, mima ünica
temporada, ganhando uma Qjuadra (um primeiro lu
gar no Campeonato de classificaçâo, nos dois Cam-
peonatos locais, na prova de Seleçâo) ou uma Trinca
(primeiro no Campeonato de classificaçâo, primeiro
na Seleçâo, primeiro na Olimpiada), combinaçâo que
parece estatisticamente a mais provâvel, mas que na
verdade é bastante rara. Hâ enfim, em consonância
com o espirito mesmo da vida W, diversos sistemas
que parecem baseados no mero acaso: um péssimo
Atleta, um trapaceiro inveterado, incapaz do menor
desempenho honesto, incapaz de criar um Nome pa
ra siprôprio, poderâ, de um dia para o outro, tomar-
se Autondade: serâ suficiente, por exemplo, que o nu
méro de sua camiseta correspondu ao desempenho do
Vencedor.
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A abundância dessas Leis, sua preciscio, o gran
de numéro e a variedade das possibüidades ofereci-
das podemfazer supor que basta realmente pouco pa
ra que um Atleta se tome Autondade. Como se as
Leis W, ao afirmarem querer recompensar tanto o
mérito esportivo quant o a simples regularidade ou a
niera sorte, quisessem dar a impressâo de que Atletas
e Autoridades pertencem à mesma Raça, ao mesmo
mundo, como se todos fossem da mesma familia e um
mesmo e unico objetivo os unisse: a Gloria mai or do
Esporte; como se nada os séparasse verdadeirameu
te: os concorrentes rivalizam e redobram esforços nas
pistas; amontoada nas arquibancadas, de pé, a mul-
tidâo de seus companheiros os aclama ou os despre-
za; as Autoridades estâo sentadas nas Tribunas e um
mesmo espîrito as anima, um mesmo combat e as gal-
vaniza, uma mesma exaltaçâo as faz vibrar!
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Jamais é certo que um A tleta, ao final de sua car-
reira, conseguird tornar-se Autoridade e, sobretudo,
jamais é certo que continuai'a sendo-o. Mas, de qual-
quer modo, ele nâo tem outra saida. Os veteranos
excluîclos das équipés e que nâo obtiveram posto e que
sâo chamados as mulas, nâo têm nenhum direito,
nenhuma proteçâo. Os dormitôrios, os refeitôrios, as
duchas e os vestiârios lhes sâo vedados. Nâo têm o di
reito de falar, nâo têm o direito de sentar-se. Com
freqüência sâo despojados de seu abrigo e de seus cal-
çados. Precipitam-se para as lixeiras, rondam à noite
os patibulos, tentando, apesar dos Guardas que os
abatem na hora, arrancar dos cadâveres dos venci-
dos apedrejados e enforcados alguns nacos de came.
Amontoam-se em grupos compactos, tentanto em vâo
se aquecer, na noite glacial, e dormir fo r u m instante.
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as duras Leis do Esporte com uma selvageria dez ve
xes acrescida pelo terroi Pois se alimentant melhor,
vestem-se melhor, pois dormem melhor e nâo sofrem
tanta pressâo, mas sua sorte dépende a todo instante
do olhar enfurecido de um Diretor, da sombra que
perpassa o rosto de um Arbitro, do humor ou da fa
ce cia de um Juiz.
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tâo muito rentes ao vagâo de onde se olha) as plaças
azuis com algarismos brancos indicando o numéro de
quilômetros que nos separavam de Paris, as centenas
de métros sendo indicadas por estacas brancas, com
exceçâo da quinta, que era vermelha. Esse é um hâ-
bito que conservei e creio nâo ter feito desde entâo
viagens de trem, durassem elas uma hora ou a metade
de um dia, sem me distrair vendo desfilar os cem m é
tros, os meios-quilômetros e os quilômetros a uma ve~
locidade hoje considéravelmente maior que a daque-
la viagem de volta.
Haviamos partido à noite. Chegamos a Paris no
dia seguinte depois do meio-dia. Minha tia Esther e
meu tio David nos esperavam na plataform a. Ao sair
da estaçao, perguntei como se chamava aquele mo-
numento; responderam-me que nâo era um monu-
mento, mas apenas a estaçao ferroviâria de Lyon.
Subimos no Citroën preto de meu tio. Acompa-
nhamos Pïenri e seus pais à casa deles, na avenida Ju-
not (duque de Abrantes), em M ontmartre, e depois
fomos para nossa casa, na rua de l’Assomption.
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mas sei que nào era dos que eu cobiçava. Mais tarde,
levando um grande feîxe de flores vermelhas e mar-
chando ao lado de mais duas crianças, um a com flo*
res azuis, a outra com flores brancas, desfilei diante
de um general.
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Imerso num mundo semfreio, ignorante das Leis
que o esmagam, algoz ou vttima de sens companhei-
ros sob o olhar irônico e desdenhoso de seus Juizes,
o Atleta W nâo sabe onde estâo seus verdadeiros ini-
migos, nâo sabe que poderia vencê-los e que essa Vi-
tôria séria a ûnica verdadeira que poderia arrebatar,
a ûnica que o libertaria. Mas sua vida e sua morte
lhe pare cem inelutâveis, inscrit as de uma vez por to-
das num destino inominâvel.
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de apostas clandestinas que a Administraçâo contrô
la às escondidas por intermédio de suas pequenas au-
toridades acompanha as Competiçôes. Qxiem acerta
na ordem os numéros de matricula dos très primeiros
de uma Prova olimpica tem direito a todos os pnvilé-
gios; quem os acerta em desordem é convidado a par-
ticipar do banqueté de triunfo dos vencedores.
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las chagas purulent as, todas aquelas marcas indelê-
veis de uma humilhaçâo sem jim , de um terror sem
fundo, todas essas provas, administradas cada hora,
cada dia, cada segundo, de um esmagamento cons
ciente, organizado, hierarquizado, é preciso verfun-
cionar aquela mâquina enorme em que cada peça
contribui, com uma eficâcia implacâvel, para o ani-
quilamento sistemâtico dos homens, para nâo mais
achar surpreendente a mediocridade dos desempenhos
registrados: os 100 métros rasos correm-se em 23 ”4,
os 200 métros em 3V ’; o melhor saltador jamais ul-
trapassou 1,30 m.
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do sapo, e os mais lentos serâo jogados no tanque de
âgua fria sob a risada homérica dos SS; repetir sem
parar o movimento que consiste em curvar-se muito
râpido sobre os calcanhares, com as mâos perpendi-
cuiares; muito râpido (cada vez mais râpido, râpi
do, Schnelt, los Mensch), deitar de bruços na lama
e levantar, cem vezes seguidas, depois correr e se jo-
gar na âgua para se lavar e ficar vinte e quatro horas
com as roupas molhadas.
Paris-Carros-Blévy
1970-1974
196
ESTA O B RA FOI COM POSTA PELA U E O
VËTICA EDITORIAL EM BASKERVIUX E
JM PRESSA PELA GEO G KARL LA EM OFF
SET SOBRE PAPEL. J’ÔULN S O LT 1>A COM-
l’A N illA SU 2A N O PARA A ED ITOU A
s u jv va rcz k m o u t u b r o d e isor».
também em outras, como no seu gi'ari
de romance A irida, modo de usar, Aqui
adquirem uma outra carga, mais pes-
soaî. Para Perec, o judaismo é “uma for
ma de estranhamento de si, de silêncio
e de vazio” , de uma linguagem dos seus
pais, que ele nào sabe mais falar. Sua fa-
milia “acabou sendo a literatura”. W ou
a memôria da infância nâo se contenta
com isso: é uma cerimônia obliqua de
luto, uma maneira de enterrar digna-
rnente esses pais que ele nunca pôde
enterrar. “Escrevo porque eles deixa-
ram em mina sua marca indelével e o
vestigio disso é a escrita: a lembrança
deles esta rnorta na escrita; a escrita é a
lembrança de sua morte e a afimiaçao
de minha vida."
Arthur Nestrovski