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Niterói, 26 de dezembro de 2023

Prelúdio em Si mesmo

Me vejo num campo verde, vasto, e uma moça de vestido amarelo me dança
com seus longos cabelos. Flores, céu azul, o ar fresco da primavera. Ela e
as flores balançam, belos cisnes de um setembro manso e sereno. À noite,
quando em casa, somos um. E as estrelas... Meissa e Bellatrix me encantam
e eu me apaixono. Tudo me canta uma doce beleza, me alimenta a alma de
um sabor e de uma textura leite e mel.
Me vejo num barco a remo, eu e dois amigos, pescando, marujos, e
compartilho com eles desse momento inocente e crucial. Me compartilho
com eles e eles comigo. O mar é calmo e abriga mistérios, as ondas batem
contra o casco, rítmicas-melódicas, sinto a maresia em minha boca e meus
olhos, abrigo em mim essa linda memória e penso em lembrá-la a sós. O céu
é claro e imenso, quase infinito e, ao entardecer, Vesper me chama pra casa
onde eu sou um, com minhas roupas salgadas, com estes peixes que nunca
me pertencerão, com o chapéu quente e com feridas nos dedos. E agradeço
muito. Muito.
Me vejo num museu antigo e de paredes altas, com cheiro de séculos
passados. Me sinto em paz no cume da história, sustentado por todo o
saber, por todos os quadros e esculturas. As pilastras me oprimem — elas
me dizem em segredo o que perdemos. De dentro da pintura uma figura
me olha e me diz a verdade, ou parte dela, e eu confio no que ouço. Sou
envolto de uma poeira sempiterna, tenra, os homens e mulheres de outrora
me sussurram o único romance e eu sei. Eu sei. Eu entendo. Eu entendo...
Me vejo nas ruas de um Rio de Janeiro mais calmo de noite, sento-me
num banco sob a luz de um poste e não me sinto sozinho mas que pertenço.
Seria aqui o meu lugar? E sinto saudades porque sei que não (eu sempre
soube), então volto para casa. Para casa... Cercado de livros, e eu os leio
e tomo café sem açúcar, quem sabe decido se fumo um cigarro (eu decido,
mas as cinzas caem nas páginas e o cheiro se aloja e se faz meu hóspede,
então não decido mais). E nessa casa, que é minha casa, meu lar, eu me
sinto eu mesmo. Me sinto confortável. Eu sei o que eu sinto.
Me vejo abraçando minha família. Me vejo acordando cedo e dormindo
cedo. Me vejo rezando, me vejo escrevendo. Me vejo sempre descansado e
em paz com um propósito.

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A beleza incomparável de tudo isso é há muito tempo todo o meu tema.
É assim que vivo meus dias. Acordo e é isso. Durmo e é isso. Tudo gira
em torno dessa mesma realidade. Tudo é essa mesma estética, essa mesma
lógica, esse mesmo drama, esse mesmo mistério. E quem diria que eu viria
a isto? Soubesse disto poucos anos atrás teria rido, e ainda assim é verdade.
Digo com propriedade e confiança que é possível ser feliz e eu mesmo o
confirmo. Faz pouquíssimo tempo, me era nem mesmo inalcançável, mas
incompreensível. Absolutamente incompreensível. E agora me vejo quase lá
e tenho esperança. Quem diria? Quem diria... Faz pouquíssimo tempo e eu
era a criança cinza chorando no banheiro e fingindo que eu era feliz e agora
tudo se pôs no seu perfeito lugar e a beleza de tudo isso é incomparável.
Oxalá fosse tudo assim por completo tão belo, tão certo, tão bom. Mas vejo
com o canto d’olho a verdade inescapável. Sinto nas entranhas o contraste
magno e me incomoda essa ciência. Me sinto sujo de mim mesmo e não
haveria disso; o que eu vejo é tão bonito! O que eu vejo é tão certo. O que
eu vejo é tão bom. Oxalá alcançasse por um segundo a magnitude desse
momento infinito.
Enfim tenho amor à beleza de ser — e apreço pela vida, significado,
certeza — e quero ser eternamente junto de tudo isso, junto do inefável,
mas me sinto sujo de mim mesmo. Ao meu redor o mundo é um lindo
romance, mas

faísco, e meu fogo é breu.

Me vejo, pasmem, na igreja. E, de joelhos diante de Nosso Senhor eu


choro. Eu choro porque tudo está tão diferente e eu era tão perdido, eu
estava tão triste. E toda essa transformação tem um denominador comum.
E apesar de desconfortável é verdade. Eu não saberia negá-lo e nem poderia.
E peço desculpas. E Ele me abraça. E eu sou inteiro novamente. Nada é
como eu achei que seria e, apesar disto, está tudo bem. Está tudo bem.
Está tudo bem.

— Luiz G.

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